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O GOLPE MILITAR DE 1964 FOI O MARCO ZERO DE UM PERÍODO QUE MUDARIA A HISTÓRIA DO PA- ÍS. COMEÇOU FESTEJADO NAS RU- AS, VIROU DITADURA E INVENTOU O BRASIL GRANDE. CRIOU RAÍZES NOS PORÕES DA TORTURA E PRO- DUZIU 362 MORTOS E DESAPARE- CIDOS EM 21 ANOS. NÃO HÁ COMO ENTENDER A NAÇÃO DE HOJE SEM PASSAR POR ELE. CINQUENTA ANOS DEPOIS, O GOLPE DE 64 NÃO É APENAS UM RETRATO NA PARE DE . 64/50 Especial/50 ANOS DO GOLPE _ DOMINGO, 30 DE MARÇO DE 2014

O Golpe Militar de 64 - O Globo

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Page 1: O Golpe Militar de 64 - O Globo

O GOLPE MILITAR DE 1964 FOIO MARCO ZERO DE UM PERÍODOQUE MUDARIA A HISTÓRIA DO PA-ÍS. COMEÇOU FESTEJADO NAS RU-AS, VIROU DITADURA E INVENTOUO BRASIL GRANDE. CRIOU RAÍZESNOS PORÕES DA TORTURA E PRO-DUZIU 362 MORTOS E DESAPARE-CIDOS EM 21 ANOS. NÃO HÁ COMOENTENDER A NAÇÃO DE HOJE SEMPASSAR POR ELE. CINQUENTA ANOSDEPOIS, O GOLPE DE 64 NÃO ÉAPENAS UM RETRATO NA PAREDE.

64/50Especial/50ANOSDOGOLPE_

DOMINGO, 30 DE MARÇO DE 2014

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DOCUMENTOS REVELAM A HISTÓRIA DECOMO O GOVERNO JOÃO FIGUEIREDO, OÚLTIMO DOS GENERAIS-PRESIDENTES,ENCOBRIU O ATENTADO TERRORISTA NO

RIOCENTRO E PREMIOU COM AIMPUNIDADE OS MILITARES ENVOLVIDOS

TERRORISMODOCUMENTOS REVELAM A HISTÓRIA DECOMO O GOVERNO JOÃO FIGUEIREDO, OÚLTIMO DOS GENERAIS-PRESIDENTES,ENCOBRIU O ATENTADO TERRORISTA NO

RIOCENTRO E PREMIOU COM AIMPUNIDADE OS MILITARES ENVOLVIDOS

2 l O GLOBO l Especial l Domingo 30 .3 .2014

Eles sabiam: o presidente João Batista Fi-gueiredo e o general Danilo Venturini,chefe do GabineteMilitar da Presidência,foram informados com mais de um mêsde antecedência que o Destacamento deOperações de Informações (DOI) do 1ºExército, no Rio, preparava um atentadoterroristanoRiocentro, em1981.O chefe do Serviço Nacional de Infor-

mações, Otávio Medeiros, chegou a in-dicar até a fonte—NewtonCruz, o che-fe da Agência Central do SNI.Eles nada fizeram: um mês depois, na

noite de quinta-feira 30 de abril de 1981,duas bombas explodiram em torno dopavilhão, enquantoElbaRamalho canta-va “Banquete de Signos” para milharesde pessoas. O show pelo Dia do Traba-lho, com participação de 30 artistas, erapromovido pelo Centro Brasil Democrá-tico (Cebrade), vinculado a partidos deoposição ao regimemilitar.Uma bomba detonou no colo do sar-

gento paraquedista Guilherme Rosário,dentro do Puma conduzido pelo capitãode infantariaWilsonChavesMachado.O carro estava em movimento, o que

impede determinar o local escolhido pa-ra a explosão. No estacionamento, seriaum ato intimidador. Na porta ou dentrodo show, ummassacre.Osargentomorreu,ocapitão ficou feri-

do e sobreviveu. Serviam no DOI do 1ºExército, com jurisdição sobreos estadosdoRio,Minas eEspírito Santo.Minutos depois, outra bomba abriu

um buraco no chão em frente à centralde energia, sem danos. O espetáculocontinuou—mesmo se houvesse explo-didoacasade força,umgerador seriaau-tomaticamente ligado,oqueexpõeopla-nejamentoprimitivodaoperação.A revelação sobre o conhecimento an-

tecipado desse ato terrorista e sua difu-são pela hierarquia do governo militarestá confirmada, documentada e assina-dapelo chefe doSNIOtávioMedeiros.

Fez isso em depoimentos no QG doExército, em Brasília, no segundo Inqué-ritoPolicialMilitar (IPM) sobreo caso.Suaprimeira narrativa ocorreuno final

de 1999. Contou que “de ummês emeioa ummês antes de 30 de abril”, soube pe-lo subordinadoNewtonCruzdo “projetode uma operação que seria realizada pordois elementos do DOI no Riocentro,mas que “foramdissuadidos”. Achandoocaso “contornado”, ressalvou, não avisoua “nenhuma autoridade do Exército ouda administração do Estado do Rio”.Omitiu nesse depoimento um detalhe:informara o presidente e o chefe do Ga-bineteMilitar.Cruz, aodepor emBrasília, apresentou

versão diferente: “Soube da possibilida-de de ser lançada uma bomba no estaci-onamento do Riocentro, por dissidentesdo DOI, cerca das vinte horas do dia 30de abril de 1981”. Foi informado por tele-fonema do chefe de Operações do SNI,Ari Pereira deCarvalho.Na sua versão, quem alertou Carvalho

foiocoronelFreddiePerdigãoPereira,daagência do SNI no Rio: “Perdigão os de-movera, os convencera a colocar a bom-baem local afastado,demodoanãocau-sar danos pessoais oumateriais, e estavaindo junto com eles. Não havia o que fa-zer, eles não estavam lá para matar nin-guém”. Ressalvou “não se lembrar" de teravisado seu chefe, Medeiros, achandoque“nãoo fezantesdosacontecimentos,sódepois”.Restava umconflito de datas. Umgene-

raldiziaquesouberacercadeummêsan-tes. Outro alegava conhecimento no dia,com uma hora de antecedência. Essa di-vergência levou os principais chefes doSNI aumconfronto. Enamanhãdequin-ta-feira 27 de janeiro de 2000, eles foramsubmetidosaumaacareação.Discutiram diante do encarregado do

Inquérito Policial Militar, generalSérgio Ernesto Alves Conforto.Estavam presentes o procura-dor Cezar Luís Rangel Couti-nho, o escrivão tenente-coro-

nel José Roberto Rousselet de Alencar,com o tenente-coronel José Carlos Car-doso e o coronel Valter Carvalho SimõesJr como testemunhas.No quartel-general do Exército, diante

do subordinado, Medeiros reafirmou tersido informado por Cruz “de um mês emeio a um mês” antes do atentado. En-tão, revelou que “transmitiu esse conhe-cimento ao presidente e ao general Ven-turini”, chefe do Gabinete Militar. Ao ou-vir a confissão,Cruz criou “ummomen-to de maior tensão” — anotou oencarregado do IPM. Retrucou o ex-chefe, desqualificando-o: “Mentira!"Medeiros devolveu: “Você não lem-

bra?” Repetiu o repasse da informação aFigueiredoeaVenturini.Cruzpiscou, ar-refeceu o tom de voz, sugerindo um “en-gano” de Medeiros: “Talvez o fato a quese refere diga respeito a outro evento”.“Permaneceram em suas posições de

opinião”, registram os autos. No fim hou-veumadistensãoepassaramaconversarsobre fatos “que os teriam afastado”. Aacareação terminou com Medeiros eCruz abraçados, “emocionados”.O registro do que aconteceu naquela

manhã no QG do Exército foi subscritopor todos e está guardadohá15 anosnosarquivos do Superior Tribunal Militar.Ele é essencial para a compreensão daanarquia nos quartéis, durante a dita-dura, que levou as Forças Armadas bra-sileiras ao maior desastre de sua histó-ria. Expõe os generais doúltimo governomilitar — o presidente da República, oschefes do Gabinete Militar e do SNI, en-tre outros— acobertando integrantes doDOI, do SNI e do Centro de Informaçõesdo Exército (CIE) em atos de terrorismo,com ameaça à vida de milhares de civis.Econcederamaosenvolvidosamaior re-compensa funcional possível na buro-cracia da violência: a impunidade.Se no centro do governonãohavia sur-

presa com o atentado, menos ainda nocomando do 1º Exército. Extraordináriomesmo só o fiasco da “missão”, com umcadáver eum ferido.Um ano antes discutira-se no DOI um

projeto para ataque contra o espetáculode 1º de maio no Riocentro. Foi em abrilde 1980. O espetáculo organizado porChico Buarque, que lançava a música“Apesardevocê”,destinava-seaofinancia-

mento do Centro Brasil Demo-crático, ligado ao PartidoComunista. No comandodo Destacamento deOperações de Informa-ções estava o coronel

Romeu Antonio Ferreira. O DOI era umaanomalia burocrática na estrutura hierar-quizada e disciplinada do Exército. Nas-cera no final de 1969, como organismopolicial autárquico. Seus integrantes nãousavam farda, trabalhavam em sigilo esob codinomes. Oficiais chamavam-se“doutores”.Os subalternos, “agentes”.Ferreiraerao“Dr.Fábio”.Ummêsantes

doshow, recebeudosubchefede Investi-gaçõesEdsonSáRocha,o“Dr.Sílvio”,me-morial de duas páginas descritivas daforma de abordagem e de execução doatentado, acompanhado de umdesenhoesquemático das instalações do Riocen-tro, comáreas assinaladas.O objetivo era provocar um “apagão”

durante o show, levando milhares aopânico dentro do pavilhão. A confusãose prolongaria no estacionamento, on-de estariam espalhados objetos pontia-gudos para perfurar pneus dos carros.Na origem, a iniciativa não seria do

DOI mas da agência carioca do SNI, naconexão mantida pelo coronel FreddiePerdigão Pereira comparte da equipe deOperaçõesdodestacamento, entre eles osargentoGuilhermePereira doRosário.“Dr. Fábio” leu o plano e o rejeitou.

Conversou com “Dr. Sílvio” que, segun-do ele, concordou. Procuradores doMi-nistérioPúblicoFederal discordam.En-tendemque Edson Sá Rocha participoudo primeiro plano e do atentado dozemeses depois.Naquele início de abril de 1980 o co-

mandante do DOI encaminhou os pa-péis com veto explícito (“negativo”) aoseu imediato, “Dr. Fernando”nascido Ju-lio Miguel Molinas Dias. Quando bom-bas explodiram, no ano seguinte, eraMolinas quemcomandavaoDOI.Naspáginasseguintesrelata-seahistória

de como foi encobertooatentado terroris-ta no Riocentro durante o governo Figuei-redo. Baseia-se em depoimentos e docu-mentos guardadosnos arquivosdoSupre-moTribunalMilitar, da ProcuradoriaMili-tar e doMinistério Público Federal no Rio,além de entrevistas com oficiais, ex-agen-tes e colaboradores do DOI, CIE e do SNIno período. Nesses 33 anos, duas investi-gações apresentaram fatos novos e rele-vantes: a conduzida em 1999 pelo generalSérgioConfortoeaencerradanomêspas-sadopelosprocuradoresAntoniodoPassoCabral, Sergio Suiama, AnaCláudia de Sa-les Alencar, Tatiana Pollo Flores, AndreyMendonçaeMarlonWeichert,doMinisté-rio Público Federal no Rio. Juntas, des-montam a maior das pantominices mon-tadasduranteo regimemilitar. l

1CHEFE DO SNI INFORMOUO PRESIDENTE SOBREO PLANO UM MÊS ANTES

“Vou levar até o fima apuração dosfatos, por meiodo InquéritoPolicial Militar”João FigueiredoPresidente da República,em 5 de maio de 1981

50ANOSDOGOLPE/RIOCENTRO_

JOSÉ CASADO

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Domingo 30 .3 .2014 l Especial l O GLOBO l 3

Na noite de quinta-feira 30 de abril de1981, véspera do feriado do Dia do Tra-balho, o comandante do 1º Exército,GentilMarcondes Filho, jantava comosseus imediatos, o general Armando Pa-trício e o coronel Leo Frederico Cinelli.Celebravam a ascensão de Patrício,

que acabara de assumir a chefia do Es-tado-Maior. Vinha da 4ª Brigada de In-fantaria Motorizada, em Belo Horizon-te, subordinadaaogeneral JoséLuisCo-elhoNetto, expoente da alamilitarmaisradical e um dos fundadores do Centrode Informações do Exército (CIE).Marcondes Filho iniciava a contagem

regressiva para aposentadoria — emtrêsmeses, passaria à reserva.Pouco depois das 22 horas, a conversa

foi interrompida pelas notícias sobre ex-plosõesnoRiocentro. Acabouo jantar.Fumando um cigarro atrás do outro,

Marcondes Filho atendeu o telefonemado ministro do Exército, Walter Pires.Cinelli, chefe da 2ª Seção do Estado-Maior, conversou com o secretário deSegurança, Waldir Muniz. Ex-chefe daagência carioca do Serviço Nacional deInformações (SNI), Muniz confirmou oenvolvimento demilitares. Perguntou aCinelli se iria ao local eouviu: “OExérci-to não temnada a ver com isso.”Em casa, na Tijuca, o gaúcho JulioMi-

guel Molinas Dias, comandante doDestacamento de Operações de Infor-mações (DOI), assistia ao jogoGrêmio xSãoPaulo.No intervalo, a TVGlobodeua informação sobre as explosões.O telefone tocou. Ouviu do agente de

plantão: “Acidente com explosivo comumavítima”—ele registrounumdiário.Quem informou “deu o nome quente‘Dr.Marcos’”, escreveu à caneta.Codinomes eramobrigatórios noDOI.

Molinas, o “Dr. Fernando”, comandava o“Dr.Marcos”, capitãode artilhariaWilsonLuizChavesMachado, de 34 anos.Logo confirmou-se amorte do “agen-

te Wagner”. Na vida real, sargento para-quedista Guilherme Pereira do Rosário,de 35 anos. A explosão decepara-lhe as

mãos, lançando partes de seu corpo a30metros , e destruindo o Puma.Molinas anotou no diário: “O Robot

(quem carrega bomba) está morto. Temuma granada que estava no carro e bota-ramno chão.” Era gente doDOI emcarrocomplacas frias (OT0297) doDOI.Antes de virar “Robot”, o “agenteWag-

ner" viajara a Brasília. Passou 15 dias eretornou ao Rio na quarta-feira 29 deabril, véspera do atentado. Ao chegarem casa, surpreendeu a mulher, Suely,com uma novidade: ia deixar o DOI,transferidopara a capital emdezembro.Às 5 da manhã da quinta-feira 30 de

abril, ele saiu de casa, no Irajá, ZonaNorte do Rio, dirigiu até o Colégio deAplicação, onde deixou o filho de 14anos, e seguiu para o destacamento.Durante o dia, telefonou três vezes

para amulher.Naúltima ligação, confe-riu se ela comprara carne para o chur-rasco do dia seguinte na casa da sogra.Estaria de volta às 21 horas, avisou. Jan-tar em família era um hábito que culti-vavamem16 anos de casamento.A carreira de Rosário no Exército já

era tão longa quanto a ditadura: 17anos, os últimos cinco no DOI, ondeconquistara a Medalha do Pacificadorcom Palma — “em atos de abnegação,coragemebravura comriscodaprópriavida”, dizia o decreto de 1975. Era con-decoração difícil, cobiçada por oficiais(em 1975, podia ser somente de 42 dos769 superiores imediatos de Rosário,todos compatente de capitão).O capitão Machado ganhara apenas

umamedalhadebronzepor “bons servi-ços”. Estava no DOI há apenas 15 meses,masocupava a subchefia deOperações.Molinas foi para a sede do DOI, na

Rua Barão de Mesquita, Centro. Che-gou em seguida o major Edson ManoelMarques Lovato da Rocha, o “Dr.Wil-son”. Ele chefiava a Central deOperaçõesde Informações, artériaprincipal doDOI.O cenário se tor-nou caótico na sede do destaca-mento. Oficiais se amontoavam.O

capitão José Ribamar Zamith apareceuexaltado, via uma tentativa de “viradademesa” da esquerda.A 22 quilômetros de distância, o Rio-

centro guardava a cena de um crime:duas bombas explodidas, um sargentomorto, calçando coturnos pretos sóusados em combate, e um capitão feri-do, socorrido comas vísceras expostas.Molinas e Lovato convocaram todos

de folga. Deram ordens expressas paracoleta de todo e qualquer objeto quepudesse “comprometer” oDOI. O coro-nel Cinelli ordenou o envio de peritosda Polícia do Exército para remover ocorpo do sargento. À paisana, advertiu.Paulo Gonçalves Roma, o “Dr. Nil-

ton”, foi despachado para o HospitalMiguel Couto, onde o capitão estavaem cirurgia. Havia uma lógica na es-colha: Roma era subchefe no setor deAnálise de informações e, em tese,distanciado da Operações, pivô docaso. Porém, frequentava a Opera-ções e era major, estava acima de Ma-chado na caserna.Roma chegou ao hospital por volta das

duas horas da manhã. Machado já con-valescia no Centro de Terapia Intensiva,com 16 agentes bloqueando os acessos.Atravessou a madrugada no Box 7 doCTI. Lovato apareceu. Entubado, masconsciente, o capitão reconheceu o Ro-mae seu chefe direto, Lovato.Nãohaviamargem para dúvida sobre o significa-do da presença deles. Mais tarde Romafoi substituído por Hélio Régua Barce-los Jr., o “Dr. Jonas”, contemporâneo deMachado naAcademiaMilitar.Outro oficial, Divany Carvalho Bar-

ros, o “Dr. Áureo”, estava no Riocentro.Amigo do sargento morto, tambémrecebera a Medalha do Pacificadorcom Palma no final de 1975. Encon-trara-se com Rosário pouco antes.Conhecia detalhes da “missão” e sa-bia até o local onde o sargento estaci-onara seu Passat branco, antes de en-trar no Puma do capitão Machado eseguir para o show. Ele passou a loca-lização do carro, que o Exército rebo-cou num posto próximo.Barros conversou como perito da Po-

lícia Civil Joaquimde LimaBarreto. De-le recebeu um revólver Taurus calibre38, que reconheceu comoarmaprivadadosargento, eumagranadademão, re-

tirada intacta entre as pernas domorto e a lataria do Puma. Reco-lheu também a caderneta detelefones de Rosário.Lima Barreto servira no

DOI, de onde conhecia Barros e Rosá-rio. Via o sargento com frequência nasede do esquadrão antibombas em vi-sitas ao perito-chefe José Paulo Bo-neschi. Barros, depois, coordenou aretirada do Puma. Contratou um re-boque usado em serviços à Viação Re-dentor. Pediu recibo.Voltou aoquartel doDOI e entregouo

revólver e a granada. Manteve no bolsoa caderneta de telefones do sargento.Escondeu-a por duas décadas. Sabiaque alguns dos 107 nomes registradosestavam relacionados ao crime.Um deles era o do coronel Freddie

Perdigão Pereira, com quem Barros eRosário haviam trabalhado em Opera-ções nos anos 70. Outro era Hilário JoséCorrales,marceneiro naCidadeNova.Barros sabia, também, que o sargen-

to, o coronel e omarceneiro eramrema-nescentes do autodenominado GrupoSecreto, responsável por dezenas debombasnoRio entre 1968 e 1980. Trata-va-se de uma unidade paramilitar nas-cida antes do golpe de 1964, apadrinha-da e frequentada pela cúpula das agên-cias do Exército, daMarinha e do SNI.Barros sabia, ainda,quePerdigãohavia

liderado o grupo responsável pela se-gunda bomba, lançada em frente à su-bestaçãode energia doRiocentro.Desde 1968 Perdigão participava de

ações clandestinas. Saiu gravementeferido numa, a serviço do CIE. Atingi-do na virilha em tiroteio com terroris-tas na Lagoa, recebeu a Medalha doPacificador com Palma. Passou o restoda vidamancando.Ganhou fama pela ferocidade na tor-

tura de presos em instalações do CIEem Petrópolis (Casa da Morte, codino-me Codão) e no Alto da Boa Vista. Naépoca do atentado, ele já se associara aocapitão Ailton Guimarães Jorge, ex-DOI,banqueiro do jogo do bicho. Com Perdi-gão no Riocentro, estavamWilson Mon-teiro Pinna, o “Dr. Emerson”, e MagnoCantarinoMotta, o “AgenteGuarani”.Uma longa amizade unia o casal Can-

tarino Motta à família Rosário — apa-drinhavam os respectivos filhos. Eliza-bete,mulher do “AgenteGuarani”,man-tinha um discreto romance com o sar-gento. Ao saber da sua morte, foi aoRiocentro. Desesperou-se diante docorpomutilado do namorado.No amanhecer de 1º de maio, a cena

do crime noRiocentro estava “limpa”: ocadáver, o ferido, seus carros, suas ar-mas, documentos e segredos estavamsob a guarda doDOI. l

2 UM JANTAR INTERROMPIDO:DUAS BOMBAS, UM CAPITÃOFERIDO E UM SARGENTO MORTO

ANIBAL PHILOT/30-4-1981

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“Soube de umaoperação que seriarealizada porelementos do DOIno Riocentro ummês antes de 30de abril. Transmitiao presidente e aogeneral Venturini”Otavio MedeirosChefe do SNI,em 27 de janeiro de 2000

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DO PRESIDENTE AO CAPITÃO, TODA ACADEIA DE COMANDO EVITAVA ARESPONSABILIDADE POR TORTURASE ATOS TERRORISTAS. HOUVE FORTEPRESSÃO PARA ENCOBRIR OENVOLVIMENTO DOS MILITARES

IMPUNIDADEDO PRESIDENTE AO CAPITÃO, TODA ACADEIA DE COMANDO EVITAVA ARESPONSABILIDADE POR TORTURASE ATOS TERRORISTAS. HOUVE FORTEPRESSÃO PARA ENCOBRIR OENVOLVIMENTO DOS MILITARES

4 l O GLOBO l Especial l Domingo 30 .3 .2014

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“Eudevo dizer a vocês uma coisa que émuito importante”, anunciou o cantorGonzaguinha para a multidão ruidosa.“No meio do espetáculo, explodiram,eu disse ‘explodiram’ duas bombas...” Aplateia foi silenciando. “Essas duasbombas representam exatamente umaluta para destruir aquilo que nós todosqueremos, uma democracia...” Emen-dou chamando ao palco Luiz Gonzaga,seu pai. Subiram acordes de “Vida deviajante”. Reconciliavam-se num dueto,depois de duas décadas distanciados,período emqueo filhoproduziu 72mú-sicas, 54 vetadas pela Censura.Do lado de fora do Riocentro, sobra-

vam testemunhas do atentado, como oinspetor de segurança Jadir Cardoso deOliveira e o vigia Magno Braz Moreira.Quando chegaram para trabalhar nocentro de convenções, notaram a au-sência da PolíciaMilitar. Inédito até pa-ra a PM: o 18º Batalhão recebeu ordemdocoronel FernandoPott para “não for-necer policiamento” e aquartelar “doischoques para pronto emprego”. Eramexigências do comandante da PM, Nil-ton Cerqueira. Ele telefonara a Pott deBrasília. Ex-chefe do DOI em Salvador,Cerqueira comandara a caçada no ser-tão ao ex-capitão Carlos Lamarca, de-sertor do Exército e terrorista urbano.Lamarca se rendeu, mas Cerqueiramandou executá-lo.O inspetor Oliveira fazia a ronda pelo

pátio e notou quatro carros estaciona-dos emposições irregulares, dois próxi-mos ao pavilhão central. Pediu por rá-dio que fossemabordados.Magno Braz Moreira trocara a farda

de soldado paraquedista pelo empregona Servis, contratado pelo centro deconvenções. Controlava a portaria paraconvidados quando apareceu um Pu-ma comdois homens diante da guarita.Solicitou credenciais. “O motorista

disse que estavam ‘de serviço’ e pediupara telefonar” — contou. Apresenta-ram identidadesmilitares e foramàAd-ministração. Telefonaram. O vigia disse

que não entendeu o que falaram, pare-cia código. Ficaram lá uns 15 a 20minu-tos. Depois entraramno carro.O motorista rumou para o estaciona-

mento destinado ao público, lotado esilencioso. Retirou tíquete de entrada(nº 69239). O showhavia começado.Atrasado,MauroCesar Pimentel, de 19

anos, temia perder a apresentação deFagner. Diante do pavilhão, percebeu teresquecidoa carteirano carro.Voltou, pe-gou e encarou o esportivo à frente, o Pu-ma, um dos seus sonhos de consumo:“Observei bem o carro. Ele (o carona)conversava como cara do lado,manuse-ando um objeto cilíndrico. Quando meviu, falou: ‘Pô, o que você tá fazendoaqui...’ Pedi desculpa, me virei e saí. An-dei, e a explosãome jogouno chão.”O inspetor Oliveira observava o pátio

à distância: “Ele deu um ‘cavalinho depau’ para entrar na vaga, parou, houveum estrondo e vi subir fumaça. Acioneios bombeiros, único órgão de seguran-ça que apareceu naquele dia.”Ainda no chão, Pimentel viu o moto-

rista sair do Puma se arrastando: “Le-vantei, fui lá e segurei ele.” Conseguiusentá-lo.Buscouumdocumento: “Oca-ra é capitão do Exército!”, gritou.As três testemunhas no pátio des-

mentem o capitão Machado na meiadúzia de depoimentos que deunos últi-mos 33 anos. Em todos, isentou-se eculpou o sargento Rosário: não sabia enem viu a bomba, parou e saiu do carrouma única vez, para urinar, voltou, aci-onou o veículo e aconteceu a explosão.Às duas horas da manhã, Suely José do

Rosário acordou com pancadas na portado apartamento, em Irajá, Zona Norte doRio. Abriu e encarou dois homens. À pai-sana, diziam ser do Exército — um delesmais tarde foi identificado como WilsonMonteiroPinna,o “AgenteEmerson”.Ele estendeu-lhe um crucifixo: “Se-

gure isso.” Trêmula, perguntou:“Cadê o Guilherme?” Ouviu:“Faleceu.” Chamou os filhos efoi ver o corpo domarido.

Passada a alvorada, o comandante do1º Exército reuniu sua equipe. Quis sa-ber se deveria ir ao enterro do sargento.Naquela manhã de 1º de maio, Gentil

Marcondes Filho teve a inesperada visitado general Oswaldo Pereira Gomes. As-sessor doministrodoExército,Walter Pi-res, Gomes recebera ordem de viajar aoRionamadrugada. Suamissãoera tripla:levarmensagem reservada doministro aMarcondes Filho; se necessário, auxiliá-lo em aspectos jurídicos do caso; e, so-bretudo, verificar “sua disposição para aapuração”. Não se conhece o teor damensagem de Pires, mas sabe-se que oemissário considerou o comandante do1º Exército “surpreendidopelos fatos".MarcondesFilhoalmoçoue foivisitaro

capitão. Levou o chefe de Estado-Maior,general Armando Patrício, e o relações-públicas, coronel Job Lorena.Depois, se-guirampara o funeral do sargento.Os três ajudaram a carregar o caixão.

Ao se despedir da viúva, o comandanteouviu: “E agora?Queméque vai criar osmeus filhos? A Pátria?” À saída, decla-rou que o sargento e o capitão estavamno Riocentro “a serviço do Serviço deInformações”. O porta-voz Lorena dis-tribuiu uma nota: definia Rosário eMa-chado como “vitimados no atentado”.O regime se mostrava, mais uma vez,

enredado na própria armadilha: do pre-sidente ao capitão ferido, toda a cadeiade comando evitava a responsabilidadepor torturas, matanças e atos terroristas.O padrão de omissão, definido desde1964, previa um epílogo com recompen-sas aos perpetradores—promoção, con-decoração e garantia de impunidade.No sábado 2demaio, desembarcouno

Rio Danilo Venturini, chefe do GabineteMilitar. Como o presidente, o generalVenturini soube, comummêsdeantece-dência, do planejamento no DOI paraatentado contra o show no Riocentro.Não se sabe se no ano anterior a Presi-dência foi informada sobre o veto aopla-no terrorista contra idêntico espetáculo.Venturini veio conversar com Mar-

condes Filho porque Figueiredo estariano Rio na segunda-feira, para a festa debodas de ouro de Emílio GarrastazuMédici, o presidente que criou o DOI.Viu em Marcondes Filho mais que umgeneral aflito comodesastre produzidopelos subordinados — era imagem etradução da desordemnos quartéis.

Na tarde de sábado 2 demaio, o chefedo Estado-Maior convocou o coronelLuiz Antônio Ribeiro do Prado paraanunciar-lhe uma nova função:

encarregadodo Inquérito PolicialMilitardo Riocentro. Prado ficou surpreso. Bu-rocrata, cuidavadaLogística (a4ªSeção).Sua intimidadecomassuntosdo setordeInformações equivalia à do corneteiroresponsável pelo toque de alvorada. Ale-gou que enfrentava umproblema famili-ar, com a filha hospitalizada, e havia diasestava ausente doquartel.O general Patrício insistiu, era “uma or-

dem”. Justificouaescolha:desejava-sequeo encarregadodo IPM fossemais “antigo”queocoronel LeoCinelli, da 2ª Seção (In-formações), a quem o DOI se reportavaadministrativamente. E que pertencesseaos quadros doEstado-Maior. Pradoobe-deceu. No domingo foi visitar o capitãoMachado no hospital, acompanhado porCinelli. Evitouperguntas.Na segunda-feira 4 de maio, Prado foi

chamado à sala do comandante. Na suaversão, Marcondes Filho recomendou-lhe conduzir o IPM “direitinho”. Pradoentendeu como advertência e pressãopara “encobrir o envolvimento dos mili-tares”. Não se conhece a versão do gene-ral,mortopor câncer no ano seguinte.No cotidiano, segundo Prado, os ges-

tos de coação partiam principalmentedo chefe do Estado-Maior. Acusou Pa-trício diretamente, 18 anos mais tarde,em acareação no segundo IPM.À noite, Marcondes Filho foi à cele-

bração dos 50 anos de casamento deEmílio e ScylaMédici. Na igreja da Urcaestavam os sucessores de Médici, o ex-presidente Ernesto Geisel e o presiden-te João Figueiredo, visivelmente tenso.O comandante havia conversado bre-

vemente e a sós comopresidente.Na festa no Iate Clube, ele se reuniu

com os generais Ednardo D’Avila Melloe José Luis Coelho Netto, personagens-símbolo do radicalismomilitar.Mello fora demitido por Geisel do co-

mando do 2º Exército em 1975, depoisdos assassinatos do operário ManoelFiel Filho e do jornalista Vladimir Her-zog noDOI emSão Paulo.Coelho Netto, uma referência no

porão, comandara o Centro de Infor-mações do Exército no governo Mé-dici. Na era Geisel, amargou um pos-to inferior no SNI. Com Figueiredo,assumiu a 4ª Divisão, em Minas. NoIate, isolou-se em conversa comMar-condes Filho.O ato terrorista no Riocentro era o

mais recente episódio da série de bom-bas e incêndios em bancas de jornal noRio e emBeloHorizonte. Conspirava-secontra a redemocratização do país. l

3 ENCARREGADO DO IPMACUSOU DE COAÇÃO SEUCHEFE NO 1º EXÉRCITO

“Estavam a serviçodo Exército, maisprecisamente aserviço do Serviçode Informações”Gentil Marcondes FilhoComandante do 1º Exército,em 1º de maio de 1981

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ANIBAL PHILOT/30-6-1981

Domingo 30 .3 .2014 l Especial l O GLOBO l 5

50ANOSDOGOLPE_

Ocomandante Gentil Marcondes Filhotinha pressa. Em poucas semanas esta-ria aposentado e queria rápida conclu-são do Inquérito Policial Militar (IPM)sobre as explosões no Riocentro. Po-rém, o coronel Luiz Antônio do PradoRibeiro, encarregadodo IPM, começaraa ver feitiços. Quase todos reais.Percebeu vigilância. E reclamou da 2ª

Seção por enviar ao gabinete do minis-tro do Exército relatórios diários e deta-lhados sobre os seusmovimentos.Numa visita-surpresa ao capitão Wil-

son Machado no hospital, topou comHélio Régua Barcelos Jr (“Dr. Jonas"). Eouviu que, para o DOI, a “única soluçãoaceitável” seria a atribuição do atentadoa terroristas de esquerda. Na volta, Mar-condes Filho o convocou. Recomendoucautela nas visitas a Machado, porque“poderia haver umaação contra ele”.Prado passou a sentir-se ameaçado e

isolado.Achouosdepoimentosda turmadoDOI“arrumadinhos”econtraditórios.Fatos atropelavam versões oficiais,

como estampava O GLOBO na quarta-feira 6 de maio: “Laudo confirma quehavia duas bombas no Puma”.EmviagemaBrasília, no dia anterior, o

repórter Merval Pereira encontrou o se-nador Tancredo Neves, cuja neta trans-portara o capitão ferido ao hospital nanoitedoshow.Conversaram,eosenadorcomentou: “Homem corajoso esse Cha-gas (Freitas, governador doRio). Liberouum relatório onde está confirmado quehavia outras duas bombas dentro do Pu-ma, alémdaque estourou.”O laudohavia sidoentregueaocoman-

dante do 1º Exército, em sigilo, pelo se-cretário de Segurança. À tarde no Con-gresso, quando o repórter pediu deta-lhes, Tancredo devolveu com peculiarironia: “Você tambémsoubedisso?”No fim da primeira semana, Prado já

suspeitava de Patrício, chefe do Estado-Maior, aquemoDOIrespondia.Não teveacesso ao relatório sobre outras duasbombas desativadas dentro do Puma,mas tinhaevidênciasdequeocapitãoeo

sargento transportavam “artefato comfins desconhecidos”. Foi ao comandantee escutou uma sugestão para conclusãodo IPM: “Autoria desconhecida”.A pressão aumentou com telefonemas

anônimosàsuacasa.Decididoasair, jus-tificou o pedido com suspeitas sobre oenvolvimento da 2ª Seção, comandadapelo coronel Leo Cinelli, e a virtual su-bordinação do DOI a Patrício. Afirmou-se constrangidopara tomarodepoimen-to de Patrício, superior hierárquico. Su-geriu sua substituição por um generalcom“meios próprios para investigação”.Entregou o ofício a Patrício, que, se-

gundo ele, o convenceu a restringir omotivo da saída ao problema de hierar-quia. Prado aceitou e foi procurar seuantigo professor na Escola deComandoe Estado-Maior do Exército (Eceme)Enio Gouvêa dos Santos, também ami-go e confidente deMarcondes Filho.Estavadeprimido,naspalavrasdeSan-

tos. Relatou pressões: “Não se prestaria arealizar determinadas coisas.” Analisa-ramsuapassagempara a reserva.O ministro do Exército chegou ao Rio

e convocou todos os generais da áreapara uma reunião no dia seguinte. Umalonga amizadeuniaWalter Pires ao pre-sidente Figueiredo. Conviviam desde aacademianoRio, cavalgavam juntosemBrasília e transpiravam fidelidade.No sábado 9 de maio, Pires entrou na

antiga sede do Ministério do Exército,ao lado da Central do Brasil, disposto aresolver a crise detonada por Prado.Marcondes Filho passou a palavra aooficialmais antigo entre os presentes—uma regra básica na caserna.O general Ênio Gouvêa dos Santos co-

meçou dizendo achar necessária uma in-vestigaçãoampla, “na totalidade”.Logo foiinterrompido por José Luis Coelho Netto,chefe da 4ª Divisão. Irritado, ele afir-mou não admitir que “o nome doExército viesse a ser envolvido”.Discutiram de forma áspera.Santosmandou CoelhoNettose calar: “Eu estou falando,

sou o mais antigo, e a palavra não lhe foidada.”Nasala,CoelhoNettoerao terceiroporordemdeantiguidade.Emudeceu.Falou em seguida Euclides Figueire-

do, chefe da 1ªDivisão e irmãodopresi-dente Figueiredo. Concordou com San-tos. Ressaltou que o culpado pelo aten-tado deveria ser apontado “ainda quefosse o próprio presidente,meu irmão”.A reunião avançou na direção sugeri-

dapor Santos, que, claramente, preferiaanomeaçãodeViníciusKruel comoen-carregado do IPM.Oministro convidouKruel. O diálogo foi gravado e mais tar-de confirmado em juízo por Santos,Kruel e outras testemunhas. Parte foidivulgada pelo repórter Hélio Contrei-ras, da revista “IstoÉ”. Eis um trecho:“Pires — Kruel, queremos que você

seja o novo encarregadodo IPMdoRio-centro, em substituição ao Prado.Kruel —Não gostaria de assumir esta

função. Sou um soldado, mas acreditoque não seria conveniente...Pires — O seu nome não envolve

qualquer restrição.Kruel— Em função do apelo do chefe,

aceitaria o cargo, mas devo deixar claroque não aceitaria pressões... Vou buscara verdade e os responsáveis pelo atenta-do, para que sejampunidos.”Pires interrompeu para atender um

telefonema do presidente Figueiredo.Relatou o convite, as condições e a dis-posição de Kruel em punir culpados.Emseguida, comunicou: adecisãoesta-va adiada por 48 horas.O general-presidente se expunha nu-

mamanobra de retirada. Salvo Pires—oque é incerto —, ninguém ali sabia queFigueiredosoubeummêsantesdoplanopara atentadonoRiocentro.Diante da oportunidade para deter-

minar uma investigação ampla e públi-ca sobreoaparatomilitar-terrorista, fla-grado comumabombano colo, o presi-dente preferiu deixar os generais do 1ºExército com a impressão de que, sim-plesmente, não queria investigação.Na segunda-feira 11 de maio, Mar-

condes Filho mobilizou 40 soldadoscomfuzispara removerocapitão sobre-vivente do Miguel Couto para o Hospi-tal Central do Exército, percurso de 15minutos como tráfego rotineiro.Nodia seguinte, políticos da oposição

receberam um envelope postado numaagência dos Correios em Botafogo.

Dentro havia um manifesto do des-conhecido “Pátria e Liberdade —ComandoDelta” assumindo a auto-ria das explosões no Riocentro. Ter-

roristas reafirmavam-se, protegidos eintocáveis.Naquela semana, Prado aceitou a su-

gestão do general Coelho Netto para serinternadonohospital doExército, justifi-cando a saída do inquérito “por proble-masde saúde”.Durantedias, foi submeti-doa inúmerosexames.Resultado:nuncaestivera tão saudável.Figueiredo, Pires e Marcondes Filho en-

tregaramo IPMaocoronel JobLorena, au-tor das notas oficiais qualificandoMacha-do e Rosário como “vitimados” em carro“sabotado”. Lorena inocentou-os e deixoude ladoa segundabombaexplodida.O re-latório, apresentado na quinta-feira 1º dejulho,passouàHistória comofarsa.Lorena eMachado foram promovidos.

O capitão virou coronel, o coronel virougeneral. O sargento morto continuousargento. Desde então, sua viúva batalhana Justiça pela promoção póstuma: Ro-sário, o “Robot”, morreu “em serviço”—diz o atestadodeóbito.Nosábado4dejulho,doisdiasdepoisdo

relatório de Lorena, o presidente recebeuuma carta com a etiqueta “estritamentepessoal-confidencial”. Nela o chefe do Ga-bineteCivil,GolberydoCoutoeSilva, lem-brava a Figueiredo: “Para quem sabe, co-monós, combaseeminformaçõesde fon-te altamente fidedigna (não utilizáveis,embora, em qualquer investigação formalou processo criminal)” — escreveu —,“verdadeindiscutíveléqueumgruporadi-cal (...)desencadeouações terroristasmúl-tiplas obedecendo a linhas hierárquicasdistintas das legais e legítimas e que se es-tendemnãosesabeatéqueníveissuperio-resdosescalõesgovernamentais.”Acrescentou: “Osimples saberoumes-

mo desconfiar da intenção da prática deatos terroristas por parte de terceiros im-plica, emmuitos casos, certa dosede res-ponsabilidade pessoal para quem bus-que intervir, sejamesmo para contençãoou fazê-los abortar, ou sequer omitir-sedequalquer providência.”Golbery demitiu-se no mês seguinte,

apósmaisdequatroanosnocentrodopo-der.ViuGeiselenfrentarapolíticadatortu-ra e do extermínio de adversários do regi-me ao demitir o ministro do Exército, Syl-vio Frota—não por preocupação comdi-reitos humanos, apenas por disciplinamilitar. E assistiu Figueiredo desfalecer di-antedoporãodaditadura.Meio séculodepoisdogolpede1964, as

Forças Armadas ainda exibem sequelasdaanarquiaque resultounomaiordesas-tre de suahistória.O toquede silêncio so-breopassadoperpetuaa impunidade. l

4 SOB A FARSA DO INQUÉRITO,OS TERRORISTAS DO DOIPERMANECERAM INTOCÁVEIS

“Um grupo radicaldesencadeou açõesterroristasobedecendo alinhas hierárquicasque se estendemnão se sabe até queníveis superioresdos escalõesgovernamentais”Golbery do Couto e SilvaChefe do Gabinete Civil em carta aFigueiredo, em 4 de julho de 1981

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6 l O GLOBO l Especial l Domingo 30 .3 .2014

50ANOSDOGOLPE/HISTÓRIA_

ARQUIVO

-JUIZ DE FORA (MG)- Dias antes da manhã de31 de março de 1964, jornalistas de Juizde Fora já sentiam que algo grave esta-va para acontecer. Abertamente, reuni-ões entre o general Olympio MourãoFilho, comandante da 4ª Região Militar,o governador Magalhães Pinto (UDN-MG) e o comandante da Polícia Militarde Minas Gerais, coronel José Geraldo,se sucediam no aeroporto da cidade.Policiais vigiavam integrantes do Parti-do Comunista, e prisões de oficiais queeram contra a conspiração — até entãonão revelada ao país — haviam sidoefetuadas, como a de RobertoNeves, ir-mão de Tancredo.

No dia 29 demarço, dois dias antes deas tropas saírem da cidade em direçãoao Rio de Janeiro, onde pretendiamanunciar a “revolução” e prender o pre-sidente João Goulart, postos de gasoli-na foramobrigados a limitar a venda docombustível. Então capitão da PM, Ed-mar Moreira, hoje deputado e conheci-do por não ter declarado à Justiça Elei-toral um castelo de R$ 25 milhões, era oresponsável pela fiscalização. Para queas tropas pudessem se deslocar semimprevistos e com o tanque cheio, elecontrolava o racionamento.

— Cheguei perto do aeroporto, numadessas reuniões. Estava ao lado do se-cretário de Segurança, Monteiro deCastro, e perguntei: “O que está aconte-

cendo?”. Ele me respondeu: “Ah, rapaz,vá cuidar de sua vida!” — diz WilsonCid, então repórter do “Diário Mercan-til” e do “Diário da Tarde”, ambos os veí-culos sediados em Juiz de Fora e per-tencentes ao grupo dos Diários Associ-ados, de Assis Chateaubriand.

Parte das tropas de Mourão saiu dosquartéis às 4h do dia 31 de março, paravistoriar o caminho e tomar os postosde fiscalização perto do Rio Paraibuna.Nos quartéis da 4ª Região, o ritmo erapuxado. Joaquim Gomes de Faria, en-tão com 19 anos, era soldado no 10º Re-gimento de Infantaria.

— No dia 31, a programação foi cance-lada. Fomos para um exercício de cam-po. Por volta das 11h chegou a ordempara voltarmos imediatamente. Quandochegamos ao quartel,metade da tropa játinha sido deslocada — diz ele.

Faria eramotorista profissional e diri-gia um Studio B-42, caminhão que ha-via sido usado na Segunda GuerraMundial. De Juiz de Fora, “carregandomunição, gênero alimentício e solda-dos”, foi para as margens do rio Parai-buna, na divisa de Minas Gerais com oRio de Janeiro.

Até hoje o bancário aposentado Hum-berto Ferreira, com 14 anos em 1964,

guarda um folheto com as palavras deMourão. Ele estava saindo da escola naruaHalfeldquandoavistouumavião cru-zar o céu. Papéis caíampela cidade. Era odiscurso do general, que ele guarda emumapasta atéhoje.Nomomento, anteviaque a folha fazia parte da História.

O local onde as tropas pernoitaramno dia 31 era estratégico. Comandantedo contingente, Mourão Filho esperavaenfrentar, antes de chegar ao PalácioLaranjeiras, o Regimento Sampaio, queestava sob o comando do coronel Rai-mundo Ferreira de Souza. O destaca-mento vinha do Rio de Janeiro (1º Regi-mento de Infantaria), e poderia estar,segundo o diário do general, ainda fiela Jango e com ordens de atacá-lo.

Também soldado à época, Luiz de Fa-ria era filho do dono da maior parte dasterras àsmargensdo ladomineirodoRioParaibuna. A propriedade, perto da pon-te que liga um estado a outro, serviu deestadia, à noite, ao general Mourão Fi-lho. Luiz ajudou a apontar canhões, emsua fazenda, para a Pedra de Paraibuna,paredão rochoso de 500 metros de altu-ra. Ao pé da montanha, em Levy Gaspa-rian (RJ), está a estrada pela qual mar-charia a 1ª Infantaria parao combate, ca-so não aderisse ao golpe desencadeadopor Mourão.

Explosivos foram fixados na ponte deParaibuna para que a implosão evitasse oavanço dos adversários. Nada disso, po-rém, aconteceu, pois Raimundo Ferreirade Souza aderiu à marcha golpista. Deuma oficina mecânica, Mourão disse ao

marechal Odilio Denys, um dos articula-dores do movimento, que estava ao tele-fone representando o 1º regimento de in-fantaria e que o golpe estava em curso.

De Paraibuna, as tropas seguiram pa-ra Areal. O movimento estava articula-do em outros estados do país. No cami-nho para o Rio, Mourão Filho ficou sa-bendo que o general Arthur da Costa eSilva, no comando do Exército, nomea-ria o general Octacilio Ururahy parachefiar o I Exército, cargo que achavaque tinha o direito de ocupar.

Ao chegar à Guanabara, quando Jangojá havia fugido e decidido não derramarsangue, namadrugada do dia 2, às 2h damanhã, Mourão Filho acordou o generalpara tirar satisfações. Suas tropas se aco-modaram nas imediações do estádio doMaracanã, cedido pelo governador Car-los Lacerda. Um pouco depois, no mes-mo dia, o presidente da Câmara dos De-putados, RanieriMazzilli, assumia a pre-sidência da República.

“Meu humor não podia ser pior (...)Costa e Silva pediu como amigo que euaguardasse uns poucos dias (para a no-meação) porque a situação ainda nãoestava segura. Aí começou a desgraçado Brasil. Eu tirara a nação de um abis-mo e a empurrava a outro”, anotouMourão em seu diário. l

Testemunhas relembram avanços das tropas de OlympioMourão Filho, que deram início à ditadura

BRUNOGÓES

[email protected]

A MARCHA DOS TANQUESOS MOVIMENTOS QUEPRECIPITARAM O GOLPE

Preparação. Encontro de tropas, em Resende: No caminho para o Rio, Mourão Filho ficou sabendo que o general Costa e Silva nomearia o general Octacilio Ururahy para chefiar o I Exército, cargo que achava que tinha o direito de ocupar

Dia 31/4hDia 2/2h

Enviado especial

Filha do generalMourão Filho, ela conta comorecebeu a notícia do golpe pelo telefone, deMadri.— “Papai,mas e o voto? Como é que vai ficar

isso?” Ele disse: “Não, pode ficar tranquila. Não sepreocupe, porque em trinta dias vai haver eleiçãoaqui no Brasil compresidentes civis”.

LAURITA MOURÃOFILHA DO GENERAL

Repórter do “DiárioMercantil” e “Diário daTarde”, acompanhou de perto todos osacontecimentos. Sua grande dúvida sobre operíodo é a falta de informações do governo.—Oqueme intriga é o Jango não ter sabido de

nada. Aqui (Juiz de Fora) foi tudo feito às claras.

WILSON CIDJORNALISTA

Ele lembra que os oficiais ficavamde prontidão esentiamque “algo estava no ar”. No dia 30, Fariafoi liberado à noite. Voltou para casa, perto doquartel, e retornou para o serviço pelamanhã.—Ocomandante daminha companhia disse

que estávamos partindo em situação real.

JOAQUIM FARIASOLDADO

FOTOS DE LAURO SOBRAL

Presidente do ComandoGeral dos Trabalhadores(CGT) em1964, ele teve sua prisão decretada edecidiu entregar-se no dia 5 de abril. No quartel, emJuiz de Fora, foi recebido a socos e pontapés.—Eles começaram a chutarmeu tornozelo com

botinas. Tambémmederam socos nos rins.

CLODESMIDT RIANISINDICALISTA

Explosivos tambémforam fixados naponte de Paraibunapara que a implosãoevitasse o avançodos adversários.Nada disso, porém,aconteceu, poisRaimundo de Souzadecidiu aderir

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Domingo 30 .3 .2014 l Especial l O GLOBO l 7

50ANOSDOGOLPE_

-PORTOALEGRE -DepostodocargoeexiladonoUruguai,oex-presidente JoãoGoulart tinhaumplanodevol-tar ao Brasil. Por isso, cada vez mais decidido a re-gressar do exílio, Jango,menos de ummês antes demorrer, renunciou ao asilo político que o Uruguailhe concedia desde o dia 21 de abril de 1964.O pedido de renúncia ao status de asilado foi en-

caminhadoaoentãoministrodasRelaçõesExterio-res doUruguai, Juan Carlos Blanco, no dia 9 de no-vembro de 1976, sob a justificativa de que Jangopretendia residir definitivamente no país vizinho.Noofício emespanhol, inédito até hoje, Jango as-

sinala que não tem outro objetivo que não seja“proceder de acordo com o ordenamento jurídicovigente, que reclamaadita atitude (renúncia aoasi-lo)comorequisitoprévioe fundamentalparasolici-tar residência nesta República”.A iniciativa tinha como objetivo livrar o ex-presi-

dente da obrigação de comunicar às autoridadesdo Uruguai, desde 1973 governado por uma Juntamilitar que colaborava com a ditadura brasileira,sobre seus deslocamentos – com isso, ele poderiaregressar aoBrasil semque a informação se tornas-se oficial. Em 6 de novembro de 1976, uma decisãodo então presidente uruguaio, Alberto Demicheli,tornou sem efeito o asilo político de Goulart.O documento pertence ao acervo doMovimento

de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande doSul (MJDH).Semobenefícioecomdocumentosdemorador, o ex-presidente poderia agir como um ci-dadão comum. Na condição de asilado, precisavasolicitar a emissão de umTítulo de Identidade eVi-agem ao Ministério das Relações Exteriores, geral-mente com validade máxima de 120 dias, sempreque quisesse deixar o Uruguai.O presidente doMJDH, Jair Krischke, disse que a

estratégia de Jango também podia estar relaciona-da ao golpe que derrubara,meses antes, emmarçode 1976, Isabel Perón da Presidência argentina.— A situação de asilado começava a criar restri-

ções, já que a situação política, tanto na Argentinaquanto no Uruguai, havia se complicado bastante.Além demais liberdade para ir e vir, acredito que aintenção de Jango também incluía investimentosna economia local e, em médio prazo, um passa-porte uruguaio. Apesar de ser umaditadura, oUru-guai tinha interesse no potencial econômico que opresidente representava— analisou.Noofícioque remeteuaoMinistériodasRelações

Exteriores, o ex-presidente justificou ao governo vi-zinhoque se sentiaunidoaoUruguainão sópor ra-zões afetivas, “mas tambémpelas vinculações gera-das emdistintas atividades comerciais que incluemtanto o setor de agricultura e pecuária como o in-dustrial e exportador”.Na correspondência, destacaoquechamade“permanentegratidãoe reconheci-mento ao governo da República e ao povo oriental(do Uruguai) pelas atenções recebidas”.O neto do ex-presidente, Christopher Goulart,

afirmouquea revelaçãododocumento reforçaa te-se de que Jango planejava voltar logo ao Brasil.— As evidências de que ele estava articulando a

volta do exílio são grandes, e a renúncia ao asilo émais uma prova disso— argumentou.Um dos biógrafos de Jango e amigo do ex-presi-

dente, o advogado Iberê Teixeira afirma que nuncahavia visto documentos comprovando a iniciativade renúncia ao asilo.—Comoasilado, ele tinha que prestar contas de-

talhadas ao governo quando queria se ausentar dopaís. Jango era vigiado constantemente, mas a faltade um comunicado oficial sobre seus deslocamen-tos poderia ajudá-lo a se livrar dos arapongas. Naminha opinião, a estratégia (da renúncia) era na di-reção de voltar ao Brasil— disse Teixeira. l

PARA TENTAR VOLTAR AO BRASIL,JOÃO GOULART RENUNCIOU AOASILO POLÍTICO NO URUGUAI

DOCUMENTOSDOEXÍLIO

AP/4-4-1964

Asilo sem fim. Jango acena ao chegar a Montevidéu, dias depois do golpe militar: ele viverá no país vizinho até morrer

FLÁVIO ILHA

[email protected]

Aquela terça-feira amanheceuensolaradanaGranjadoTor-to, em Brasília. Era 31 demarço de 1964, horas antes

do golpe que afastaria a família de JoãoGoulart do Brasil por 12 anos. Na noitedo dia 30, Jango fizera seu último dis-curso no Brasil: no auditório do Auto-móvel Clube, no Rio, diante de milita-res, sindicalistas eparlamentares, opre-sidente da República — convidado dehonra para a comemoração do 40º ani-versário da Associação de Sargentos eSubtenentes da Polícia Militar — de-nunciou as “forçasmais reacionárias” e“os eternos inimigos do povo" queconspiravam contra o seu governo.Na manhã do dia seguinte, na pis-

cina do Torto, uma das residênciasoficiais da Presidência, a primeira-dama Maria Thereza tentava se dis-trair comos filhos. Denise, de 5 anos,e João Vicente, 6, brincavam sem sedar conta do que acontecia no país.A atenção da mãe estava voltada pa-ra o rádio, por onde ela acompanha-va os acontecimentos daqueles dias.— A gente já estava numa expectati-

vamuito grandehavia uns três ouqua-tro dias. Eu estava muito preocupada:eu, na Granja do Torto, com os meni-nos, e Jango, no Rio. A gente já sabiaque a situação eramuito tensa— lem-bra ela, em conversa comOGLOBO.Por volta das 11h, a mais jovem— e

bela — primeira-dama da História dopaís recebeu uma ligação de TancredoNeves, que lhe pediu que não se preo-cupasse porque João Goulart estavanuma reunião e ligaria para ela em se-guida. Meia hora depois, o telefonerealmente tocou. E era Jango.— Ele me ligou, disse que ficasse

tranquila, em casa, que ele estava re-

solvendo problemas e que iria encon-trar com a gente mais tarde. Ele não es-tava tenso, só preocupado conosco.A casa, comode costume, estava cheia.

Empregados, filhos, a governanta Etelvi-na, o cabeleireiro daprimeira-dama,Vir-gílio, e a amiga Zenália. Quando caiu anoite, o capitão que fazia a segurançaoficial avisouquebloqueariamaentradada residência e pediu que os emprega-dos deixassem o local. Até então, MariaThereza não sabia que também sairia.No início da madrugada, o capitão

Azambuja, ajudante de ordens do presi-dente, chegou de avião à Granja do Tortopara levar a família a Porto Alegre. Lá, elesse encontrariam com Jango. Foi o tempodeMaria Thereza fazer asmalas dos filhosedeixar a casaparaondeachouquevolta-ria dias depois. Deixou para trás todos ospertences. Despediu-se da casa — e doBrasil — vestida com uma saia preta decouro e uma camisa branca de seda. Pou-co antes, receberauma ligaçãode seu esti-lista, Dener Pamplona de Abreu, que pe-diu que ela não viajasse de preto, “ uma

cormuito triste”. Ela tinha só 24 anos.— Às 2h da manhã, o ajudante de or-

dens chegou e disse que eu teria queme retirar do Torto. Levei duas mali-nhas para as crianças e nada mais.Duas horas depois, de madrugada, a

família Goulart chegou à capital gaúcha.No avião, os filhos estavam animados.Mas Maria Thereza falou pouco na via-gem. Em solo gaúcho, o encontro com omarido demorou a acontecer:—OJango jáestava lá,masmandouque

eu seguisse para a fazenda do RanchoGrande, onde me encontraria. Só que elenão me encontrou. Mandaram uma pes-soa avisar que ele estava em reunião como (Leonel) Brizola.Amanhecia quando a família desem-

barcou na fazenda em São Borja, cidadenatal do casal. A ex-primeira-dama lem-bra com tristeza esse momento e diz quefoi o único do exílio em que chorou:—Choreiumpouquinho.Mesenti soli-

tária quando o avião aterrissou na fazen-da. Foiumacoisaquemebateuocoraçãode ver. Acho que é o campo demadruga-

da, amanhecendo. Você já viu isso?—perguntou, comoolhardistante.—Osbichinhos andando, a casa solitária,sem sol nemnada. É a sensaçãode so-lidão. Quando o avião desceu, pensei:o que estou fazendo aqui?Na fazenda do RanchoGrande, a fa-

mília se despediu de Azambuja e deum Virgílio aos prantos, que dizia quequeria ir para o exílio. Mas eles volta-ram para o Rio. Denise, João Vicente,Maria Thereza e Etelvina ficaram asós. Dormiram um pouco e, por voltadas 11h do dia 1º de abril, um jipe doExército chegou à fazenda. Um capi-tão bateu na porta e ordenou que elesdeixassemacidade, ou sairiampresos.Horas depois, o bimotor de Jango che-gou a São Borja e os levou aoUruguai.— Ficamos sozinhos lá na fazenda,

esperando o que ia acontecer. Nãopensei em nada. Pensei que estava to-talmente perdida. Não sabia o que fa-zer, para onde ir, onde estavameuma-rido. Era tanto nervosismo que, quan-do me disseram “vai embora”, eu deigraças a Deus.

“VOLTINHA DUROU 12 ANOS”Cinquenta anos depois, aos 74, elalembra que, a caminho de Montevi-déu, Denise perguntou ao piloto,Ma-noel Leães, oManeco, para onde iam:— Ele disse que daríamos uma volti-

nha no Uruguai, e a voltinha durou 12anos — contou, lembrando o abraçoquedeunomaridonoprimeiroencon-tro depois do golpe, já no dia 3 de abril.De volta ao Brasil, em 1976, Maria

Thereza — que diz não entender acomparação com Jaqueline Kennedy eque se considera só “interessante”—recuperou umúnico vestido de Dener.— É o único dele que tenho. É lindo:

cor areia, de renda francesa, justo nocorpo. É um patrimônio. Andei desfi-lando com ele lá em casa. l

Nas lembranças deMaria Thereza, o medo,a solidão e o exílio

Viúva de Jango, tida até hoje como a primeira-dama mais bonita do país, contaa saída da Granja do Torto, a ameaça de prisão e o reencontro com o marido

ARQUIVO PESSOAL

Divina dama. Símbolo de beleza e elegância dos anos 1960, Maria Thereza deixou a residência oficial da Presidência carregando apenas duas malas ; quando chegou à fazenda da família em São Borja, sentiu-se sozinha e chorou

MEMÓRIASDEFAMÍLIA

“Nós ficamossozinhos lá nafazenda. Era tantonervosismo que,quando me disserampara ir embora, eudei graças a Deus”

LETICIA FERNANDES

[email protected]

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Page 8: O Golpe Militar de 64 - O Globo

8 l O GLOBO l Especial l Domingo 30 .3 .2014

50ANOSDOGOLPE_

LUCIO MARREIRO/19-4-1988

Um número enfeita a ficha resumida deoficiais que marcaram a história recentedas Forças Armadas: “063”. No Almana-que do Exército, o código identifica osmilitares graduados no curso de Infor-mações do Centro de Estudos do Exérci-to (CEP), no Forte do Leme. Suas bancasescolares forjaram uma geração de ma-jores, capitães e tenentes que operou amáquina de torturar, matar e fazer desa-parecer dos porões do regime.

Desde 1964, logo após a derrubada deJango, os militares contavam com o Ser-viçoNacional de Informações (SNI) paracoordenar as atividades de inteligência eperseguir os inimigos do regime que seestabelecia. Mas foi no Forte do Leme,pelas mãos do general Octavio Pereirada Costa, que jovens oficiais conhece-ram a doutrina de “operações de infor-mações”: o enfrentamento direto, noqual teriam de buscar a qualquer custo,sem os limites impostos por lei, aquiloque era negado pelo adversário.

Os cursos de Informações do CEP, ca-tegorias B (para oficiais de nívelmédio)e C (subtenentes e sargentos), começa-ram em 1966, motivados pelo cresci-mento das ações armadas de organiza-ções de esquerda e pelo fantasma docomunismo. Enquanto as altas paten-tes aprendiam a teoria no curso de In-formações oferecido pela Escola Supe-rior de Guerra (ESG), o CEP ensinavaos alunos a conduzir interrogatórios, adisfarçar-se, a penetrar em residências

sem deixar vestígios e a pensar e agircomo guerrilheiros, à paisana, além deestourar “aparelhos subversivos”.

Os instrutores não tiveramo trabalhodeelaborar as aulas.Oprojeto chegouprontodo Forte Gulick, no Canal do Panamá, on-de funcionavaaEscoladasAméricas, basemilitar americana acusada de treinar qua-drosda repressãopolíticanaAméricaLati-na.Na listadegraduadosnaescola, figura-vam ditadores como o nicaraguenseAnastácioSomoza,oargentino JorgeVide-la e o paraguaio Alfredo Stroessner.

EXECUÇÕES: UM MAL NECESSÁRIOEra preciso aprender rápido. Baseadosem manuais que desaconselhavam o usode ameaças contra o inimigo, “a menosquepudessem ser cumpridas”, e que con-sideravam prisões e execuções um malnecessário, os instrutores preparavam osquadros da repressão em menos de seismeses. Até 1971, quando foi transferidopara Brasília e assumido pelo SNI, o cur-so tornou-se o caminho mais curto paraquem seguiu carreira nos porões.

Paulo Malhães, o coronel que confes-sou recentemente às comissões esta-dual e nacional da Verdade o envolvi-mento da morte e ocultação de corposde guerrilheiros, cursou o CEP. Arran-cava dedos, dentes e vísceras dos cor-pos dos militantes para evitar que fos-sem identificados. Freddie PerdigãoPereira, um dos mais violentos agentesdo regime, responsabilizado pela bom-ba do Riocentro (abril de 1981), tam-bém. O então tenente Ailton Guima-rães Jorge, que mais tarde seria o Capi-

tão Guimarães do jogo do bicho, só in-gressou nas operações repressivas daPolícia do Exército, na Vila Militar, de-pois de passar pelo Forte do Leme.

Perdigão esteveno cursode janeiro a ju-lho de 1966, logo na primeira turma. Aoconcluí-lo, foi elogiado pelo general Octa-vioCosta pelo “valor intelectual, pelamar-cante curiosidade intelectual, seu valorhumano, pela lealdade e espírito de cola-boração”. Mas o comandante ressalvouque o jovem capitão poderia produzirmais se mostrasse amadurecimento emo-cional. Cinco anos depois, mais maduro,Perdigão seria umdos torturadores daCa-sa da Morte de Petrópolis, um dos maisbárbaros aparelhos clandestinos do Cen-tro de Informações do Exército (CIE).

Violência, mas “aplicada com inteli-gência”. Regras sujas, mas sem perder ahierarquia e a disciplina. Poderes ilimi-tados, mas sem ceder às tentações pes-soais. Era essa a aposta dos comandan-tes. O próprio CIE, unidade vinculadadiretamente ao gabinete doMinistro doExército, foi ungido à luz dos ensina-mentos do CEP, no mesmo momentoem que Informações transformava-sepraticamente em nova Arma do Exérci-to, tão forte quanto a Artilharia, a Cava-laria, a Infantaria e a Intendência.

Atéhoje, oExército resiste a fornecerda-dos como ementa, disciplinas, carga horá-ria e nomes de instrutores e de alunos docurso. Chegou mesmo a negar a sua exis-tência. Porém, o número “063” apareceem praticamente todas as fichas resumi-das de torturadores. Versados em “Funda-mentos de Informações”, “Produção de

Conhecimento”, “Operações de Inteligên-cia”, “Operações de Contrainformações”,entre outrasmatérias, eles operariamumamudança no combate à luta armada.

Para oferecer a primeira resposta à esca-lada de ações da guerrilha, o Exército pra-ticamentecatoua laçoosagentesnecessá-rios. Muitos deles foram arregimentadosnosquadrosdaspolíciasCivil eMilitar, tra-zendo das delegacias e quartéis o pau-de-arara eoutras técnicas rudimentares e vio-lentas de interrogatórios de criminososcomuns. Contaminou também as caser-nas com a expertise das ruas e seus vícios.

SOCO NA CARA NÃO AJUDAVAO curso de Informações do Leme mu-dou o cenário. Com as primeiras levasde diplomados, foi possível renovar osquadros e aumentar o grau de controlesobre as operações. A lógica do sopapoe do pau-de-arara não chegou a serafastada, mas passou a coexistir commétodos de tortura mais técnicos, queenvolviam o terror psicológico e a cria-ção de uma rede clandestina de cárce-res, onde os agentes passaram a agircom extrema liberdade, sem as restri-ções de uma unidade militar formal.

Paulo Malhães, em depoimento à Co-missão Nacional da Verdade, relatou aexperiência pessoal com o processo. Eleadmitiu que, nos primeiros anos de in-terrogador, imitava a polícia na dose deviolência contra ospresos.Disseque, de-pois, adotou métodos mais científicos,convencido de que um sujeito que levaum soco da cara jamais teria disposiçãode colaborar comos seus torturadores. l

Centro de Formação do Exército formou a elite da repressão aos inimigos do regime

CHICOOTAVIO

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DOUTRINA DOS PORÕESA ESCOLA QUE

DISCIPLINOU A TORTURACartilha importada. Agentes formados pelo CEP, no Forte Duque de Caxias, seguiam as instruções trazidas da Escola das Américas, no Panamá, uma base militar americana acusada de treinar quadros da repressão na América Latina

Caracterizou-sepelo valorintelectual,curiosidade , valorhumano, lealdadee espírito decolaboração”Octávio CostaGeneral, em elogio ao capitãoFreddie Perdigão

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Page 9: O Golpe Militar de 64 - O Globo

Defensor de agricultores, intelectuais,líderes estudantis e religiosos,Modes-to da Silveira viu “os tanques do gol-pe” na Cinelândia. Seis anos depois,foi sequestradoe levadoaumasaladoDOI em que as paredes tinham san-gue coagulado. Hoje, guarda mais de

30 agendas daquela época. Algumas en-cardidas, outras empoeiradas. E, comose de um jogo se tratasse, convida: “Va-mos ver a de 68?”O advogado de 87 anos vai então ao dia

13 de dezembro, data da decretação doAto Institucional número 5 (AI-5) e naagenda lê: “Prisão Sobral Pinto”.—Esse “prisão” escrevi entre aspaspor-

que foi o sequestro do Sobral, né?—con-ta ele, lembrando colegas de profissão.Todas as agendas estão em seu aparta-

mento. E, numa época de infiltrados eacusadores, os compromissos anotadosviraram álibis e testemunhas de defesa.Até hoje Silveira é considerado, por co-

legas, como o advogado quemais defen-deubrasileiros no regimemilitar. Ele nãosabe dizer quantos clientes teve, mas dizque cuidou de gente “de Belém a PortoAlegre”, de agricultores e operários a no-mes como Mário Alves, Ferreira Gullar,David Capistrano e Dom Adriano Hipó-

lito. De muitos, não cobrou nada.E amemória do dia do golpe é nítida:—Naquele dia, quando cheguei à Cine-

lândia, o povo esperava um comício emapoio a Jango. Mas não apareceram líde-res sindicais, estudantis ou intelectuais.Apareceram tanques do Exército. Quandovoltaram os canhões para o povo, ficouclaroqueeles eramdogolpe. Entãocome-çaram a vaiar. Dois à paisana deram tirosparaoaltoeentraramnoClubeMilitar.Nomeu escritório, gente já pedia socorro.Para o mineiro de Uberaba, “o pior era

quando você perdia o cliente”, numa refe-rência à morte. Maria Auxiliadora LaraBarcellos, a Dodora — citada pela presi-dente Dilma Rousseff em discurso de2010, foi umdeles. Presa e torturada, suici-dou-se no exílio.Em 1970, Silveira foi sequestrado pela

repressão e ficou no DOI-Codi do Rio pordois dias. Não sofreu tortura física, maspsicológica.Na sala havia sangue coagula-

do, e amáquina de choque estava ligada.— Passaram a falar das minhas três fi-

lhas: “Sabe aquela? Trago aqui, boto a ar-ma na boca e pow!”Modesto está hoje naComissãodeÉtica

daPresidência epresta assistência jurídicaa antigos clientes. Auxilia a Comissão Na-cional da Verdade e pede que ela tenhamais membros, poder de intimação e dêmais atenção à Operação Condor.— É preciso olhar o apoio financeiro e

logístico de um regime que fez, no míni-mo,meiomilhão de vítimas diretas. l

ALESSANDRADUARTE

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Nas agendas do advogado, memóriasda luta para libertar presos políticos

PEDRO KIRILOS

Modesto da Silveira. O advogado que mais defendeu brasileiros na ditadura

PERFIL Modesto da Silveira

Defensor de agricultores,intelectuais, artistas ereligiosos perseguidos pelarepressão, Modesto daSilveira perdeu a conta dequantas pessoas ajudoudentro e fora dos tribunais

Domingo 30 .3 .2014 l Especial l O GLOBO l 9

50ANOSDOGOLPE_

NABOR GOULART

-PORTOALEGRE-Elenão foipresopeladitadurabrasileira, não passou pelos porões da tor-tura nempegou emarmas.Mesmo assim,Jair Krischke teve papel fundamental namilitância política: formou uma rede deinformantesepesquisadoresqueajudouaesclarecer centenas de desaparecimentos,mortes e sequestros ocorridos entre osanos de 1960 e 1980. A contragosto, tor-nou-se também um dos símbolos da lutacontra as ditaduras doCone Sul.Háquemo compare até com o alemão OskarSchindler, que salvou cerca de 1,2 mil ju-deus do nazismo.Em 1979, Krischke oficializou juridica-

mente o Movimento de Justiça e DireitosHumanos (MJDH) do Rio Grande do Sul,grupo que atuou na clandestinidade du-rante todo regime militar e que ajudou asalvar 2mil vidas das garras das ditadurasdo continente. Entre os salvos, estavambrasileiros que partiram para o exílio e es-trangeiros que passaram pelo Brasil paradepois se refugiar na Europa — todos fu-

gindodos golpesmilitares deChile (1973),Uruguai (1973) e Argentina (1976).Nascido em Porto Alegre em 1938, Kris-

chke guarda mais de 100 caixas de docu-mentos que comprovam não só a partici-pação de militares de Brasil, Argentina,Chile e Uruguai na Operação Condor, co-mo também as atrocidades cometidas naépoca. Hoje, ao analisar o regime militarbrasileiro e sua conexão com as outras di-taduras, afirma que “fomos os grandes di-fusoresdopau-de-arara”,métodode tortu-ra que nos países vizinhos ficou conheci-do como “periquera” (em referência aosperiquitos dos pampas).— O aparelho repressivo brasileiro foi

mais seletivo, mas produziu muitas víti-masapartirde torturasbárbarasaplicadaspelo aparato oficial, ligado às polícias e aoExército. E essas torturas nós exportamospara países vizinhos— diz Krischke.Embora não milite em partido algum,

JairKrischke sedefine comosocialista. Em1961, participou do episódio conhecidocomoCadeia da Legalidade, que ajudou agarantir a posse do então vice-presidente,João Goulart, após a renúncia de Jânio

Quadros. Na época com22 anos, Krischkemontou umpalanque eletrônico num an-tigo sobrado de Porto Alegre— com duascaixasde someummicrofone—epassoua transmitir discursos de apoio a Jango.Três anos depois, no dia do golpe, Kris-

chke foipegodesurpresapelaviolênciadareação às reformas sugeridas por Jango.Como outros personagens daquele perío-do, chegouaacreditar que “as coisas se re-solveriam” em umou dois anos.— As coisas só ficaram realmente dra-

máticas a partir de 1968, quando houveum golpe dentro do golpe e tivemos quepassar a viver comextremocuidado—dizele. —Num primeiro momento, tiramosmuitos brasileiros do país e levamos paraArgentina ou Uruguai. Depois, a necessi-dade foi inversa: levar uruguaios, chilenose argentinos para o exílio na Europa.O esquemaera arriscado e, obviamente,

clandestino. Mas tinha chancela do AltoComissariadodasNaçõesUnidasparaRe-fugiados. Fugitivos do regime, que conver-giam de todo o país para o Rio Grande doSul, se escondiamemcasasdeamigos, emcentros paroquiais, em sindicatos, em en-

tidades comunitárias. Muitas vezes se es-condiam em casas de amigos de amigosaté terem segurança para um desloca-mento terrestre pela vasta fronteira do RioGrande do Sul com Argentina e Uruguai— a pé, de carro, de ônibus, em viagensfracionadas que podiam durar semanas.Muitosmilitantes acabaram“caindo”, no

jargão da época — foram interceptadospor militares, descobertos em desloca-mento ou sumiram entre as fronteiras.Algumas rotas também foram interrom-

pidas, o que obrigava a abrir paciente-mente uma nova forma de fuga. Krischkecalcula que 80% dos brasileiros salvos daditadura fugiram pelo Rio Grande do Sul,principalmente para o Uruguai — graçasaos mil quilômetros de fronteira seca pra-ticamente sem vigilância. Uma grandeparte dos refugiados depois obteria o sta-tus de refugiado concedido pelas NaçõesUnidas e, com isso, conseguiam asilo emalgumpaís europeu.DepoisdosgolpesnoUruguai, no Chile e na Argentina, o grupode Krischke também passou a focar nosalvamento de estrangeiros que fugiamdas ditaduras do Cone Sul. l

Líder doMovimento de Justiça e Direitos Humanos diz que o Brasil foi o ‘difusor do pau-de-arara’

FLAVIO ILHA

[email protected]

A LISTA DE KRISCHKEO GAÚCHO QUE SALVOU2 MIL LATINO-AMERICANOS

Operação Condor. Gaúcho guarda no Rio Grande do Sul mais de cem caixas de documentos que comprovam as atrocidades cometidas nas ditaduras do Cone Sul e afirma que o Brasil passou longe de ter o que chamam de ‘ditadura branda’

“Num primeiromomento, tiramosmuitos brasileirosdo país e levamospara Argentina ouUruguai. Depois, anecessidade foiinversa”Jair KrischkeFundador do Movimento deJustiça e Direitos Humanos

“É preciso olhar o apoiofinanceiro e logístico deum regime que fez, nomínimo, meio milhão devítimas diretas”

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Page 10: O Golpe Militar de 64 - O Globo

10 l O GLOBO l Especial l Domingo 30 .3 .2014

50ANOSDOGOLPE/HOJE_

AILTON DE FREITAS

-BRASÍLIA- Criada para esclarecer viola-ções aos direitos humanos e promovera reconciliação nacional, a ComissãoNacional da Verdade (CNV) esbarra narelutância das Forças Armadas em pas-sar a limpo o que ocorreu nos bastido-res e porões da ditadura. Emdezembro,a comissão encerrará suas atividades,com a divulgação de um relatório final.Será o resultado de pelo menos 834 de-poimentos já ouvidos em visitas a 19estados e ao Distrito Federal.O atual coordenador da comissão,

Pedro Dallari, diz que existe colabora-ção pontual, inclusive com reuniõesperiódicas entre assessores da CNV eoficiais designados pelos Comandos doExército, da Marinha e da Aeronáutica.A interlocução, no entanto, não se tra-duz em ações concretas, pelo menosnão na profundidade que a comissãodesejaria.— Por um lado, a relação é boa. Mas,

por outro, a Comissão Nacional da Ver-

dade esperamais, esperamais proativi-dade, espera uma contribuição maisefetiva — diz Dallari.Ele fez a declaração ao classificar co-

mo “inadequado” o silêncio das ForçasArmadas diante de revelações sobre aprisão, tortura e morte do ex-deputadoRubens Paiva, no Rio, em 1971. Da par-te do Exército, persiste a versão oficialde que Rubens Paiva teria sido resgata-do por companheiros.— O que nos preocupa é a ausência

de um posicionamento das Forças Ar-madas com relação a fatos que vão sen-do divulgados e sobre os quais não hánenhum tipo de manifestação. A fugado ex-deputado Rubens Paiva foi des-mentida por um membro das própriasForças Armadas que depôs ao Ministé-rio Público e declarou, com todas as le-tras, que aquilo não existiu, que aquilofoi uma farsa. E as Forças Armadas con-tinuam sustentando oficialmente a tesede que Rubens Paiva estaria foragidoou teria fugido resgatado por seus com-panheiros. Creio inclusive que é ruimdo ponto de vista reputacional para as

Forças Armadas ficarem perseverandonesse erro — diz Dallari.Ele cita também o pedido que a co-

missão fez aoMinistério daDefesa paraque os comandos militares instauremsindicâncias nas unidades onde com-provadamente ocorreram violações dedireitos humanos. O objetivo é sabercomo se dava o funcionamento admi-nistrativo dessas unidades, tanto doponto de vista de execução orçamentá-ria quanto de preenchimento de car-gos. A solicitação foi feita em 18 de fe-vereiro, mas ainda não houve resposta.Na última quarta-feira, o ministro Cel-so Amorim disse que está pessoalmen-te empenhado no caso.O coordenador lembra que o Brasil

tem a tradição de promover transiçõessem rupturas. Para ele, isso seria, emparte, resultado da falta de informa-ções e conhecimento. Daí a preocupa-ção, segundo Dallari, de que a comis-são realize um trabalho técnico e forte-mente amparado em provas. Ele acre-dita que, depois do trabalho da Comis-são Nacional da Verdade, a sociedade

terámenos tolerância a violação aos di-reitos humanos.A lei de criação da CNV diz que a co-

missão não tem poderes para reverter aLei de Anistia, aprovada pelo Congres-so ainda durante a ditadura, em 1979. ALei de Anistia assegurou o perdão a cri-mes cometidos por militares e oposito-res do regime. Segundo Dallari, esse éum debate que não cabe à comissão,mas ao Congresso e ao Judiciário.A CNV foi instalada 2012, numa sole-

nidade com a presença da presidenteDilma Rousseff e seus antecessores doperíodo de redemocratização: José Sar-ney, Fernando Collor de Mello, Fernan-do Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lulada Silva. Ex-militante da luta armada,Dilma, que foi presa e torturada, chorou:— Ao instalar a Comissão da Verdade

não nosmove o revanchismo, o ódio ou odesejo de reescrever a história deuma for-ma diferente do que aconteceu, mas nosmove a necessidade imperiosa de conhe-cê-la em sua plenitude, sem ocultamen-tos, sem camuflagens, sem vetos e semproibições— discursou a presidente. l

Coordenador do projeto reclama da ausência de posicionamento das Forças Armadas

DEMÉTRIOWEBER

[email protected]

VERDADE SEM RESPOSTASILÊNCIO DOS MILITARESINCOMODA COMISSÃO

Em busca dos fatos. Ex-militante política, presa e torturada, a presidente Dilma Rousseff chorou ao discursar na solenidade de instalação da Comissão da Verdade, em maio de 2012, e pediu que história do período fosse revelada por inteiro

-BUENOS AIRES- Nos últimos 30 anos, comestruturas e resultados variados, paí-ses do Cone Sul mergulharam em pes-quisas sobre um passado trágico. Pa-raguai, Argentina, Chile e Uruguai cri-aram comissões da verdade que reco-lheram informações e depoimentosque, em muitos casos, serviram paracolaborar comprocessos judiciais. Emoutros, as denúncias, apesar de gra-víssimas, foram engavetadas.— Fiz minha primeira denúncia, pelo

assassinato de minha mulher, em 1989. Acomissão criada em 2004 confirmou cen-tenasde casos,masmeuprocesso, comoamaioria dos iniciados no Paraguai, conti-nua engavetado — contou Martin Alma-da, que em 2004, junto com o sociólogofrancês Alain Touraine, promoveu a cria-çãodeumacomissãoda verdadenoPara-guai para investigar os crimes da ditadurade Alfredo Stroessner (1954-1989).Ele, junto a outras dez vítimas para-

guaias, recorreu à Justiça argentina, mais

ativa em processos sobre violações dosdireitos humanos nos anos de chumbo.O caso argentino é um dos mais co-

nhecidos e elogiados nomundo. Poucodepois de assumir o poder, em dezem-bro de 1983, o ex-presidente Raúl Al-fonsín anunciou a criação da ComissãoNacional sobre o Desaparecimento dePessoas. Sob fortes pressões de setoresmilitares, Alfonsín deu impulso ao tra-balho da comissão, integrada por 80pessoas, entre elas o escritor ErnestoSábato. Uma das grandes vitórias dogrupo foi ter conseguido o depoimentode 600 sobreviventes de torturas.A comissão visitou centros de tortura

junto com ex-presos políticos. Cerca denove mil familiares das vítimas ajuda-ram com depoimentos e informações.Em 1984, foi entregue o famoso docu-mento “Nunca Mais”, que menciona8.961 desaparecidos. Organizações co-mo as Mães e Avós da Praça de Maio fa-lam, até hoje, em 30mil desaparecidos.O Uruguai também teve sua Comissão

para a Paz, em 2000, no governo de JorgeBattle. Foi importante, na opinião deMa-carena Gelman, neta do poeta argentino

Juan Gelman e cujos pais foram seques-trados e assassinados durante as ditadu-ras de dois países (sua mãe era argentinae foi levada, grávida,paraoUruguai, ondenasceu Macarena), “porque tratou-se daprimeira medida de um governo demo-crático para atender as demandas de fa-miliares e ONG´s de Direitos Humanos,além de ter sido o primeiro reconheci-mento sobre os desaparecimentos”.No Chile, várias comissões investiga-

ram crimes da ditadura do general Au-gusto Pinochet, entre 1973 e 1990. AComissão de Verdade e Reconciliaçãoapresentou o Informe Rettig, com da-dos sobre 2.279 pessoas desaparecidase executadas. Um segundo passo foidado em 2004, quando o socialista Ri-cargo Lagos recebeu o documento daComissão Nacional sobre Prisão Políti-ca e Tortura, que detalha o caso de 35mil vítimas do regimemilitar. Até o anopassado, graças ao esforço de advoga-dos, familiares e pesquisadores chile-nos, foram abertos 757 expedientes nostribunais, envolvendo 1.453 vítimas,quase 500 processados, 307 condena-dos e 71 presos. l

NOS PAÍSES DO CONE SUL, COMISSÕESPROVOCARAM ABERTURA DE PROCESSOS

OEXEMPLODOSVIZINHOS

JANAÍNA FIGUEIREDO

[email protected]

A ComissãoNacional daVerdade esperamais, espera maisproatividade,espera umacontribuição maisefetiva (das ForçasArmadas)Pedro DallariCoordenador da ComissãoNacional da Verdade

UOQUEFOI FEITOEMCADAPAÍS

ARGENTINA.Pouco depois daredemocratização, o governo dopresidente Raúl Alfonsín criou aComissão Nacional sobre oDesaparecimento de Pessoas, que,após novemeses de trabalho, em1984, entregou o famoso documento“NuncaMais”, quemenciona 8.961casos de desaparecidos durante aditadura (1976-1983).

CHILE.Nadécada de 90, depois doretorno da democracia, o governocriou a Comissão de Verdade eReconciliação, que apresentou oInformeRettig, com2.279 casos depessoas desaparecidas e executadasdurante a ditadura de AugustoPinochet (1973-1990). Em2004, oentão presidente Ricardo Lagosrecebeu um segundo documentoelaborado pela ComissãoNacionalsobre Prisão Política e Tortura, quemenciona 35mil vítimas do regimemilitar. Durante o governo do

ex-presidente Sebastián Piñera, queacaba de entregar o poder aMichelleBachelet, foi divulgado um terceirodocumento, redigido pela ComissãoValech, com9.800 novos casos deassassinatos, prisões e torturas.

URUGUAI.Em1985, foi criadaumacomissãoparlamentarpara investigaradetençãodeuruguaiosnaArgentinaduranteaditadura (1973-1985)eassassinatosdedirigentespolíticos.Emagostode2000,opresidente JorgeBatlleanunciouaComissãoparaaPaz,queelaborouumdocumentosobre260denúncias sobrepresosedesaparecidos.

PARAGUAI.AComissão deVerdade eJustiça foi criada em2004no governodopresidenteNicanorDuarte Frutos.Orelatório final foi entregue aoex-presidente FernandoLugo(2008-2012), confirmando aprisão de19.862pessoas durante a ditadura deAlfredoStroessner (1954-1989).

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Page 11: O Golpe Militar de 64 - O Globo

Domingo 30 .3 .2014 l Especial l O GLOBO l 11

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-SÃO PAULO- Uma política de Estado cen-tralizada e articulada para calar o cida-dão é uma prática que o Brasil deixoupara trás com a redemocratização. Noentanto, vestígios de censura a veículosde comunicação e à liberdade de ex-pressão sobrevivem no país, principal-mente por meio de ações judiciais, se-gundo apontam relatórios de organiza-ções de defesa dos direitos humanos eassociações de jornais e de jornalistas.A restrição ao acesso à informação é

resolvida nos tribunais em decisões li-minares e de mérito principalmenteem processos de crimes contra a honra(calúnia, difamação, injúria e desaca-to), previstos no Código Penal. Em ge-ral, ações servem como instrumentopolítico de inibição e intimidação dotrabalho de comunicadores, segundoinforma relatório apresentado recente-mente pela ONG Artigo 19 em sessãoda Comissão Interamericana de Direi-tos Humanos. A ideia era denunciar odesrespeito a artigo do Pacto de São Jo-sé da Costa Rica, que no Brasil tem for-ça de lei.— Se considerarmos que a liberdade

de expressão deve ser preservada, nãodeveria haver nada que colocasse issoem risco. O respeito à honra tem sidovisto como um bem mais alto do que orespeito à liberdade de expressão. O

que se vê é que o Judiciário brasileiroignora padrões internacionais usados,eventualmente, para coibir abusos —diz Paula Martins, diretora para a Amé-rica do Sul da Artigo 19.Entre os padrões citados pela especi-

alista estão, por exemplo, a restrição deproposição de ações por crime de difa-mação por funcionários públicos, emfunção da posição que ocupam e o de-ver de responderem à sociedade porsuas atividades. Outro padrão seria aaceitação de discussão em processosapenas em casos de divulgação de fatoscomprovadamente inverídicos.— Observamos que, em geral, o Judi-

ciário é retrógrado em sua interpreta-ção. A sociedade democrática precisasermais tolerante, o debate será ácido eacirrado. Esse limite alto é exigido pelademocracia — defende Paula, que, emanálise de decisões recentes da Justiça,observa prevalecer, sobre todas as coi-sas, o respeito à privacidade em lugarda liberdade de expressão na análise deliminares por magistrados.Levantamento de decisões relaciona-

das aos crimes de opinião, proferidasentre março de 2012 e setembro de2013 por três tribunais (Supremo Tri-bunal Federal, Superior Tribunal deJustiça e Tribunal de Justiça de SãoPaulo) mostra que, em 80% dos 512acórdãos, os autores eram pessoas cominfluência direta no Direito, como ad-vogados, políticos e militares.

Entidades como a Associação Brasi-leira de Jornalismo Investigativo (Abra-ji) e a Associação Nacional de Jornais(ANJ) vêm criticando episódios de cen-sura no período democrático. Háexemplos como o do jornal “O Estadode S.Paulo”, impedido de divulgar infor-mações sobre a Operação Boi de Barri-ca, da Polícia Federal, que investigounegócios de filho do ex-presidente JoséSarney, o empresário Fernando Sarney.Outro caso foi o do colunista doGLO-

BO Ricardo Noblat, impedido pela Jus-tiça de publicar fotos alusivas à entãocandidata a prefeita de Manaus Vanes-sa Grazziotin nas eleições de 2012.A criminalização de manifestação de

crimes de opinião está prevista na le-gislação penal brasileira e já resultouna condenação, por exemplo, do radia-lista Carlos Eduardo Mendonça. Emseu programa, ele fez comentários so-bre suposto tráfico de influência reali-zado pelo ex-vice-governador de SantaCatarina Leonel Pavan para obtençãode concessão para funcionamento deTV educativa.O ex-presidente da Assembleia Le-

gislativa do Mato Grosso José Rivatambém conseguiu impedir três blo-gueiros de noticiar os 120 processosjudiciais que o político enfrenta. NoPará, o jornalista Lúcio Flávio Pintoresponde, há mais de 20 anos, a pro-cessos movidos por grileiros denunci-ados em suas reportagens.

A ameaça à liberdade de opinião e ex-pressão no Brasil democrático tambémocorre pormeio de crimes contra a pes-soa. Relatório ainda inédito da Artigo19 identificou pelo menos 45 casos deviolações contra jornalistas e defenso-res de direitos humanos em 2013. Seconsiderados os dados dos últimosdois anos, a organização contabiliza 97episódios de violência, quase dois porsemana. Nos dois anos, 11 jornalistasforammortos, e 36, ameaçados demor-te. Pelo menos 14 sofreram tentativasde homicídio.— São assassinatos ou ameaça a

pessoas que têm um ponto de vistaespecífico sobre assuntos públicos,porque têm uma opinião, fazem de-núncias e defendem seus juízos devalor — diz a advogada Camila Mar-ques, do Centro de Referência Legalem Liberdade de Expressão e Acessoà Informação.Lembranças da censura resistem na

manutenção, no ordenamento jurídico,da necessidade do consentimento debiografados para publicação de obrassobre eles. A autorização se estende aoutras pessoas citadas nas obras. A As-sociação Nacional dos Editores de Li-vrosmove ação direta de inconstitucio-nalidade no STF para tentar alterar arti-gos do Código Civil que preveem ame-dida. A ministra Cármen Lúcia deveapresentar seu voto ainda neste ano enão quis dar entrevista sobre o tema. l

Ações judiciais são instrumento de intimidação a veículos de comunicação no regime democrático

THIAGOHERDY

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ECOS DA CENSURAAMEAÇA À LIBERDADEDE EXPRESSÃO RESISTE

“O respeito à honratem sido visto comoum bemmais altodo que o respeito àliberdade deexpressão. O que sevê é que o Judiciárioignora padrõesinternacionais”Paula MartinsDiretora para a América do Sul daONG Artigo 19

Um beco emMana-capuru, a 93km deManaus (AM), e aPonte Rio-Niterói

são unidas por um nome —Presidente Costa e Silva, o ho-memque editou oAto Institu-cional nº 5. Além disso, estãoenvoltos numa polêmica: porque relembrar em ruas dita-dores e agentes do regime?A pedido do GLOBO, os

Correios identificaram 727CEPsde ruas, travessas, becose praças que homenageiamtanto os cinco presidentesmilitares quanto o dia 31 demarço, data do golpe de 1964.Há ainda ao menos dois mu-nicípios (Presidente CasteloBranco, no Paraná, e Presi-dente Figueiredo, no Amazo-nas) e seis bairros que home-

nageiam ex-presidentes da dita-dura, umdeles em Itaperuna, noNorte Fluminense.Quem deseja a mudança diz

que não se pode celebrar aindahoje quemmandou matar e tor-turar. Quem é contra argumentaque ruas emonumentos ajudama contar a História do país, sejaboa ou ruim. O embate está empauta em estados como Rio, SãoPaulo, Minas Gerais, Santa Cata-rina, Paraíba e Amapá, por meiode comissõesda verdade, assem-bleias legislativas e câmaras.O marechal Humberto de

Alencar Castello Branco é omais

lembrado e dá nome a 232 logra-douros públicos e ummunicípio.Entre essas vias, há algumas que,embora sejam uma homenagemaomilitar, são conhecidas de ou-tra forma. Esse é o casodaAveni-da Radial Oeste, ao lado do Está-dio do Maracanã, que se chamaPresidente Castello Branco.Na capital paulista, a Secreta-

riaMunicipal deDireitosHuma-nos e Cidadania de São Pauloidentificou outros 13 logradou-ros com nomes de torturadores.Entre eles está a Rua SérgioFleury, naVila Leopoldina.O ór-gão informa que encaminhará

projetos para que a Câmaraaprovemudanças. Mas a prefei-tura quer primeiro envolver osmoradores na discussão.Comissões da verdade dizem,

por sua vez, que devem incluirem suas recomendações finaisuma orientação para mudançados nomes dos logradouros. Otema será tratado também pelaComissão Nacional da Verdade.No Rio, a comissão conse-

guiu que a Escola PresidenteCosta e Silva, em Nova Iguaçu,na Baixada Fluminense, tives-se o nome trocado para AbdiasNascimento. Mas há escolas

públicas que homenageiamCastello Branco, Costa e Silva eGarrastazu Médici (Bangu). Assecretarias estadual e munici-pal de Educação do Rio infor-maramnão ter projeto para tro-ca de nomes dos colégios. Le-vantamento feito pelo GLOBOem 2013 mostrou que quasemil escolas públicas homena-geiam ex-presidentes da dita-dura,mas poucos alunos fazema conexão como regime.Na Es-cola Municipal Presidente Mé-dici, em Bangu, por exemplo, ojornal perguntou a seis alunasdo 9º ano quem era o homem

que dava nome à escola.Nenhuma delas sabia:— A professora falou, mas

não lembro — disse umadas estudantes.No Rio, o Instituto de Estu-

dos da Religião (Iser) listouruas e lugares ligados ao regi-me e publicou esses dados nosite “Cartografias da ditadura”.— Não tem sentido home-

nagear quemcometeu crimesbárbaros, matou e prendeuilegalmente—defende o pes-quisador do Iser Tiago Régis,umdos responsáveis pelo site.Para a historiadora Beatriz

Kushnir, espaçospúblicosaju-dam a reler a História:— Acho que se deve expli-

car quem é a pessoa, por quee em que momento aquelaescola foi construída. Quandoaquela rua foi aberta, quemo-mento o país vivia e por quese escolheu aquele nome. l

Nas ruas, a polêmica dos nomesBrasil tem 727 logradouros que homenageiam presidentes militares; há quem queira mudar isso

REESCREVENDOAHISTÓRIAJULIANACASTRO

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GLAUCIO DETTMAR/15-12-1992

Arquivos do regime. Durante a ditadura, o Departamento de Censura analisou milhares de peças de teatro, música, filmes e telenovelas, vetando a exibição de parte delas. Hoje em dia, a Justiça ainda decide o que pode ser noticiado

Product: OGloboEspStd PubDate: 30-03-2014 Zone: Especial1 Edition: 1 Page: PAGINA_K User: Oswaldo Time: 03-29-2014 12:13 Color: CMYK

Page 12: O Golpe Militar de 64 - O Globo

l VÍDEO: Assista aos depoimentosde testemunhas sobre o avançodas tropas de Mourão Filho

l FOTOGALERIA: Veja osprincipais acontecimentos dosdias 31 de março e 1º de abril

l MARIA THEREZA: Veja maisimagens da primeira-dama doex-presidente João Goulart

l INFOGRÁFICO: As cançõescensuradas e as que exaltavam apátria verde-amarela

l NO TWITTER:twitter.com/OGloboPoliticaO passo a passo d golpe de 1964

12 l O GLOBO l Especial l Domingo 30 .3 .2014

50ANOSDOGOLPE_

BB ESPECIAL/ 50 ANOS DO GOLPEEditora:FernandadaEscóssia.Editores-assistentes:AntônioGois,Daniel Biasetto,Mair PenaNeto, RodrigoTaves eCristinaTardáguilaCoordenaçãode reportagem:Leila Youssef, CarterAnderson (Rio),FranciscoLeali (Brasília) e Flávio Freire (SãoPaulo)Arte:LéoTavejnhansky (editor), LucianeCosta (editora-assistente)Redatores:CarolinaBenevides,MarceloRemígio, José Figueiredo eBolívar Torres

Hélio Bicudo. Jurista, investigou crimes daditadura

Maria do Rosário.Ministra de DireitosHumanos do governo Dilma Rousseff

Criméia Almeida. Integrou a luta armada eé viúva do militante André Grabois

Maria Amélia Telles. Pesquisadora, foipresa e torturada na ditadura

Heloisa Buarque de Hollanda. Professora,participou de atos culturais de resistência

Emilio Ivo Ulrich. Publicitário, militou naVPR e foi preso durante a ditadura

Gilberto Natalini. Presidente da Comissãoda Verdade da Câmara de São Paulo

Iara Xavier Pereira. Integrante daComissão da Verdade do DF, foi da ALN

Carlos Langoni. Economista, foi presidentedo Banco Central entre 1980 e 1983

Ivan Seixas. Jornalista, membro daComissão da Verdade de SP

Marcelo Cerqueira. Advogado, defendeudiversos presos políticos

Gilney Viana. Coordenador do Projeto àMemória e à Verdade, foi militante da ALN

Maria Theresa Goulart. Viúva de Jango ecompanheira dele no exílio

João Vicente Goulart. Filho do presidenteJoão Goulart

Betty Faria. Atriz, foi protagonista de novelacensurada pela ditadura militar

José Sarney. Foi o primeiro presidente civilda República a governar após o golpe

Fernando Gabeira. Jornalista, participoudo sequestro do embaixador americano

Daniel Aarão Reis. Historiador, foi do MR-8e participou da luta armada

Paulo Vannuchi. Ex-ministro de DireitosHumanos, foi militante da ALN

Jair Krischke. Ativista dos direitoshumanos

Clara Charf. Viúva de Carlos Marighella

João Paulo dos Reis Velloso. Economista,foi responsável pelo 2º PND

Aton Fon Filho. Advogado e ex-militante,ficou preso por 3.625 dias e foi torturado

Álvaro Caldas. Jornalista, participou daluta armada

Fernanda Montenegro. Atriz, sofreuameaças por telefone durante a ditadura

Fábio Konder. Fundador da Comissão daPaz, que denunciava crimes da ditadura

Fernando Henrique. Ex-presidente daRepública, atuou na redemocratização

Clarice Herzog. Empresária e viúva dojornalista Vladimir Herzog

Tom Zé.Músico, preso duas vezes

Lúcia Murat. Cineasta e jornalista, foi presae torturada durante os anos de chumbo

Delfim Netto.Ministro da Fazenda naépoca, idealizou o “milagre econômico”

Pedro Simon. Senador, esteve ao lado deJoão Goulart durante o dia 31/03

Pedro Ivo Moézia. Coronel da reserva,serviu ao DOI-Codi

Cacá Diegues. Cineasta, era um dos líderesdo movimento do Cinema Novo

Jair Bolsonaro. Deputado Federal e capitãodo Exército, na reserva

Flávio Tavares. Jornalista, participou daluta armada, foi preso e torturado

Silvio Tendler. Cineasta, dirigiu o filme“Jango”, que foi lançado no final da ditadura

Rose Nogueira. Jornalista, foi presa política

Carlos Araújo. Advogado, foi casado comDilma Rousseff por 30 anos

Odair José. Cantor, teve músicascensuradas pelo regime

Roberto Farias. Cineasta, dirigiu “Pra Frente,Brasil”, que denunciava torturas no regime

José Serra. Ex-governador de São Paulo,presidia a UNE emmarço de 1964

Waldir Pires. Foi consultor-geral daRepública no governo Jango

Gilberto Braga. Novelista, narrou aditadura na série “Anos Rebeldes”

Lauro César Muniz. Novelista, participoude ações culturais de resistência

Edmar Bacha. Economista, idealizou oPlano Real

José Celso Martinez Corrêa. Dramaturgo,foi fundador do Teatro Oficina

Vladimir Palmeira. Político, foi líder demovimento estudantil e militante

Almino Afonso.Ministro do Trabalho nogoverno João Goulart

Aloysio Nunes Ferreira. Ex-militante daALN, hoje é senador pelo PSDB

Hojenaweboglobo.com.br/pais

AS HISTÓRIAS DE 50 PERSONAGENS NO SITE DO GLOBO

Product: OGloboEspStd PubDate: 30-03-2014 Zone: Especial1 Edition: 1 Page: PAGINA_L User: Oswaldo Time: 03-29-2014 12:48 Color: CMYK