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O Governo Goulart e o Golpe de 64 - Caio Navarro de Toledo.pdf

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Caio Navarro de Toledo

O Governo Goulart

E o Golpe de 64

Índice

Um governo no entreato golpista

O "golpe branco" ou "a solução de compromisso"

A crise político-institucional na versão parlamentarista

Um governo no trapézio

A politização da sociedade — esquerda e direita

mobilizam-se

O golpe político-militar

Conclusões

Indicações para leitura

Um governo no entreato golpista

O governo João Goulart nasceu, conviveu e morreu sob o signo

do golpe de Estado. Se, em agosto de 1961, o golpe militar pôde

ser conjurado, em abril de 1964, no entanto, ele deixaria de se

constituir no fantasma — que rondou e perseguiu permanentemente o

regime liberal-democrático inaugurado em 1946 — para se tornar nu-

ma concreta realidade.

No dia 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros resignava sem ao

menos completar sete meses na Presidência da República. Na carta-

renúncia — autêntica paródia e pastiche da carta-testamento de Ge-

túlio Vargas, como observaram diversos autores —, Quadros não for-

mulou uma única razão convincente para explicar e justificar o seu

teatral gesto. Se, naquele momento, a denúncia do golpe janista

soava como uma mera especulação, hoje restam poucas dúvidas a esse

respeito. A rigor, a renúncia constituía-se no primeiro ato de uma

trama golpista. Julgava o demissionário que os ministros militares

não apenas impediriam a posse de João Goulart, como também procu-

rariam impor, juntamente com o massivo e sonoro "clamor popular",

o retorno do "grande líder". Na sua fantasia, Quadros voltaria,

pois, nos "braços do povo".

As ilusões do renunciante, contudo, logo se desvaneceram. Nem

os ministros militares e, menos ainda, as massas populares tomaram

qualquer iniciativa no sentido de reivindicar a volta de Quadros.

Em várias partes do país, os setores populares e democráticos sai-

riam às ruas para defender, isto sim, a posse de João Goulart, a-

meaçada por um arbitrário veto militar, plenamente respaldado pela

UDN e demais setores conservadores. As manifestações populares,

associadas com as de políticos democráticos e de militares nacio-

nalistas, conseguiram impedir o golpe militar que se configurava

em agosto de 1961.

Assim, com a diferença de poucos dias, duas tentativas de gol-

pe se sucediam: a de Jânio Quadros e a dos setores militares. Três

anos depois, tendo sido alcançada uma forte coesão ideológica no

seio das Forças Armadas, os militares impuseram, juntamente com a

significativa mobilização política das classes dominantes e de se-

tores das classes médias, uma nova ordem político-institucional no

país. Os setores populares e democráticos, a partir de então, pa-

gariam um preço muito elevado pela resistência oferecida aos gol-

pistas em 1961.

Foi, portanto, no entreato de alguns ensaios golpistas e de um

golpe político-militar, plenamente vitorioso, que existiu o gover-

no João Goulart. Nos seus dois anos e meio de vigência (setembro

de 1961 a março de 1964), um novo contexto político-social emergiu

no país. Este novo quadro caracterizou-se por uma intensa crise

econômico-financeira, freqüentes crises político-institucionais,

extensa mobilização política das classes populares, ampliação e

fortalecimento do movimento operário e dos trabalhadores do campo,

crise do sistema partidário e acirramento da luta ideológica de

classes.

Este período da história política brasileira é significativo

ainda pois nele se intensificam e se condensam alguns dos impasses

e dos conflitos da democracia burguesa. Se entendemos que as con-

tradições sociais são processos constitutivos da formação social

capitalista e de seus regimes políticos, então o período de

1961/1964 deve ser visto como um momento privilegiado da vida po-

lítica brasileira posto que nele ocorreu uma polarização política

e ideológica com dimensões inéditas e com características singula-

res. Para os que vêem nos conflitos e nos antagonismos o sinal da

desagregação social, os "tempos de Goulart" só podem ser encarados

como trágicos "tempos do caos e da anarquia".

1964 é, pois, um marco divisor e uma referência obrigatória em

qualquer avaliação sobre o passado recente. Decorridos menos de 20

anos da queda do regime liberal-democrático, não deixam de ser a-

inda conflitantes as interpretações sobre o período Goulart. A

nosso ver, motivações antagônicas parecem estar presentes em algu-

mas dessas interpretações. As esquerdas — não obstante reconheçam

os reais avanços sociais e políticos ocorridos no período —, bus-

cam, fundamentalmente, investigar as razões dos limites e das im-

possibilidades da democracia burguesa com características "popu-

listas". A direita, ao definir os "tempos de Goulart" como a ex-

pressão acabada de toda a perversidade social (subversão, cor-

rupção, crise de autoridade, desordem etc), procura justificar a

implantação do regime autoritário e a perpetuação do poder de Es-

tado militarizado.

O "GOLPE BRANCO" OU

"A SOLUÇÃO DE COMPROMISSO"

O veto militar

Com a renúncia de Jânio Quadros, o Congresso Nacional, reunido

extraordinariamente no dia 25 de agosto de 1961, dava posse, na

Presidência da República, a Ranieri Mazzilli (presidente da Câmara

dos Deputados). Tal solução era encontrada em virtude de se encon-

trar ausente do país o vice-presidente da República, João Goulart.

Imediatamente, os meios de comunicação do país passavam a di-

vulgar versões — cuja veracidade seria confirmada nos dias seguin-

tes — segundo as quais haveria, da parte de expressivos círculos

militares, uma forte oposição à posse constitucional de João Gou-

lart na Presidência da República. As notícias iam mais longe: a-

firmava-se que os ministros militares não apenas desaconselhavam o

retorno imediato de Goulart, como estavam decididos a detê-lo no

momento em que pisasse o território nacional. Ao mesmo tempo que

difundiam estas informações, vários jornais da chamada grande im-

prensa — expressando a opinião política dos setores conservadores

das classes dominantes — conclamavam as Forças Armadas a assumirem

um papel decisivo na crise política que se configurava com a re-

núncia de Jânio Quadros. Em outras palavras, tais setores estimu-

lavam e apoiavam o golpe militar.

No dia 28 de agosto, através do presidente-interino, os três

ministros militares buscaram impor ao Congresso a aprovação de uma

breve nota onde — sem qualquer justificativa — era vetada a posse

de Goulart. Por uma expressiva maioria, os congressistas manifes-

taram-se contra aquela arbitrária e ilegal exigência. No dia 30,

os ministros militares voltariam à carga. Através de um manifesto

à nação, agora se dignavam a explicitar as razões do veto a João

Goulart. A certa altura, afirmava o documento: "Na Presidência da

República, em regime que atribui ampla autoridade e poder pessoal

ao chefe do governo, o sr. João Goulart constituir-se-á, sem dú-

vida alguma, no mais evidente incentivo a todos aqueles que dese-

jam ver o País mergulhado no caos, na anarquia, na luta civil".

Todas estas "previsões" eram feitas na base do passado político de

Goulart. Na ótica dos militares e dos demais setores civis golpis-

tas, Jango simbolizava tudo aquilo que havia de "negativo" na vida

política brasileira: demagogo, subversivo e implacável inimigo da

ordem capitalista. Seria o "diabo" tão vermelho como o pintavam?

Goulart: por um capitalismo "humano" e "patriótico"

Nos primeiros anos de sua rápida trajetória política, os es-

treitos laços de amizade mantidos com o ex-ditador — seu vizinho

de estância na longínqua São Borja (RS) — transformavam Goulart em

figura altamente suspeita aos olhos dos setores antigetulistas.

Como deputado pelo Rio Grande do Sul, eleito em 1950, Goulart so-

freu contundentes ataques pela imprensa; esteve seriamente ameaça-

do de perder o mandato parlamentar, pois raramente comparecia à

Câmara Federal. Dedicava-se às suas tarefas de presidente do Dire-

tório Estadual do PTB e, desde então, orientava toda a sua ação

política em direção ao movimento sindical. Destacando-se neste ti-

po de atividade, foi escolhido, em 1953, por Vargas, para o cargo

de ministro do Trabalho.

Foi um "deus nos acuda". Como admitir, num Ministério do Esta-

do, indagavam os setores de direita e liberais conservadores, o

"chefe do peronismo brasileiro", o "demagogo sindicalista", o

"corrupto negociante"? Pior ainda, prognosticavam: controlando e

manipulando a classe operária e as massas populares, a partir do

Ministério do Trabalho, Jango se constituiria numa peça importante

para o sucesso de um novo golpe de Estado que estaria sendo engen-

drado pelo "maquiavélico" Vargas.

Como ministro do Trabalho, Goulart é diariamente acusado de

insuflar greves e de pregar a luta de classes. Seu maior sonho,

afirmam ainda seus críticos, seria o de implantar no Brasil a "Re-

pública sindicalista" nos moldes do justicialismo peronista. Fa-

zendo blague, mas iradamente, um influente periódico das classes

dominantes denunciava que Jango, ao invés de ser ministro do Tra-

balho, transformara-se num autêntico "ministro dos Trabalhado-

res"... Diante desta lamentação, a resposta de Goulart seria ex-

tremamente elucidativa. Numa entrevista, expressou com muita cla-

reza a estratégia do Estado democrático-burguês quanto à questão

sindical: "(...) essa confiança do proletariado na secretaria de

Estado que dirijo deveria constituir-se num motivo de tranqüilida-

de (para os patrões), e nunca de alarme. Pretender-se-ia, talvez,

que o operariado brasileiro, já tão desencantado, não acreditasse

nos poderes constitucionais?" (grifo nosso).

Como herdeiro de imensa fortuna pessoal e grande proprietário

de terras ("um latifundiário com saudável instinto de propriedade

privada", como afirmou um de seus colaboradores), Goulart era, tal

como seus críticos de direita, um fiel defensor do capitalismo. No

entanto, asseverava ele, sua diferença em relação a estes residia

na sua aspiração a um capitalismo mais "humanizado" e "patrióti-

co"; ou seja, Jango dizia opor-se àquilo que hoje se convencionou

chamar de "capitalismo selvagem". "Não passa de torpe intriga o

boato de que sou contra o capitalismo. Ã frente do Ministério do

Trabalho estou pronto a estimular e a aplaudir os capitalistas que

fazem de sua força econômica um meio legítimo de produzir rique-

zas, dando sempre às suas iniciativas um sentido social, humano e

patriótico."

Pouco mais de oito meses permaneceria no Ministério do Traba-

lho do segundo governo Vargas. Enquanto Goulart defendia publica-

mente um aumento de 100% para os trabalhadores que ganhavam salá-

rio mínimo, Vargas, através de seu ministro da Guerra, tomava co-

nhecimento de um documento ("Memorial dos Coronéis") assinado por

81 oficiais do Exército. Nele se advertia o Exército e a Nação dos

perigos do "comunismo solerte sempre à espreita", do "clima de ne-

gociata, desfalques e malversação de verbas", da "crise de autori-

dade" que solapava a coesão de "classe militar" etc. Em nenhum

instante o nome de Jango era citado no "Memorial", mas a conse-

qüência da sua divulgação pela imprensa foi a sua imediata demis-

são do Ministério do Trabalho. (Entre os signatários do documento,

redigido pelo então ten.cel. Golbery do Couto e Silva, estavam mi-

litares que, dez anos mais tarde, afastariam Goulart definitiva-

mente da vida política brasileira: Amaury Kruel, Syzeno Sarmento,

Sílvio Frota, Ednardo D'Ávila, Euler Bentes, etc.)

Como vice-presidente da República, durante o qüinqüênio desen-

volvimentista de Juscelino Kubitschek, João Goulart não deixaria

de estar sob o fogo cerrado da direita e de setores liberais-

conservadores. No manifesto de agosto de 1961, os ministros mili-

tares alinhavam algumas acusações: "No cargo de vice-presidente,

sabido é que usou sempre de sua influência em animar e apoiar,

mesmo ostensivamente, manifestações grevistas promovidas por co-

nhecidos agitadores. E, ainda há pouco, como representante oficial

em viagem à URSS e à China Comunista, tornou clara e patente sua

incontida admiração ao regime destes países, exaltando o êxito das

comunas populares".

Desta forma, na ótica dos políticos e militares, comprometidos

com as ideologias liberal-conservadora e de direita, de nada adi-

antava Goulart reiteradamente afirmar a sua crença no capitalismo.

Deixavam, pois, de reconhecer que a atuação política de Jango (se-

ja na condição de ministro de Trabalho, seja na de vice-presi-

dente) contribuía objetivamente para um melhor controle do Estado

burguês sobre as atividades sindicais. Igualmente, aqueles setores

deixavam de perceber que — tal como concebia e exercia suas fun-

ções políticas e administrativas — Jango era uma eficiente porta-

voz, nos meios sindicais e populares, da ideologia populista do

Estado protetor e "acima das classes". Obstinadamente reacionários

e intransigentemente anticomunistas, não conseguiam deixar de re-

presentar Jango na figura de "perigoso agitador" e de "demagogo

sindicalista".

A luta pela legalidade

Nem todos os setores sociais e políticos, no entanto, inter-

pretavam nessa direção a trajetória política de João Goulart. Não

viam, pois, razões para lhe negar o direito de assumir a Presidên-

cia da República. Ideologicamente, estes setores afinavam-se com o

nacionalismo reformista, com a liberal-democracia, com a esquerda

revolucionária. Governadores de estados, parlamentares federais e

estaduais, sindicatos de trabalhadores, entidades de empresários

(CONCLAP), estudantes e alguns setores militares, se manifestavam

em defesa da ordem constitucional.

Dos governadores estaduais que declararam seu apoio à posse de

Goulart (Carvalho Pinto, São Paulo; Ney Braga, Paraná; Mauro Bor-

ges, Goiás e Leonel Brizola, Rio Grande do Sul), foram estes dois

últimos os que mais intensamente se empenharam na" "defesa da le-

galidade". Contudo, foi a partir de Porto Alegre que se unificou a

oposição nacional ao golpe militar, em virtude da decidida ação

política de seu governador e da adesão do III Exército, sob o co-

mando do gal. Machado Lopes. Brizola mobilizou amplos recursos de

seu estado, chegando, inclusive, a se dispor a distribuir armas à

população civil para combater eventuais ataques das forças golpis-

tas. Através das emissões da "Rede da Legalidade", acompanhava-se

o desenrolar dos acontecimentos em todo o país e articulava-se o

movimento antigolpista em nível nacional.

Militares nacionalistas (o mal. Lott fora preso por ter lança-

do um manifesto contra o golpe), altos-oficiais do Exército, orga-

nizações militares sediadas nos estados do Pará, Minas Gerais, Rio

Grande do Sul, São Paulo, Goiás, Guanabara e até mesmo em Brasí-

lia, almirantes, associavam-se ao movimento contra a solução cons-

piratória. Apesar de proibidas e reprimidas, manifestações popula-

res sucediam-se nos grandes centros urbanos (passeatas, comícios,

panfletagem etc). Várias entidades de classe condenavam os golpis-

tas e defendiam a posse de Goulart. Inúmeras greves políticas em

diversos setores (têxtil, transportes, bancários, metalúrgicos,

portuários, etc.) culminam numa greve nacional em "defesa da lega-

lidade", deflagrada pelo Comando Geral da Greve (CGG), embrião do

CGT. A UNE decretou "greve nacional"; na Bahia os estudantes cria-

vam a Frente de Resistência Democrática.

A "solução de compromisso"

O Congresso Nacional, expressando o sentimento geral dos seto-

res democráticos e populares, negava-se, no primeiro momento, a

transigir com os golpistas. Contudo, os dois grandes partidos con-

servadores (UDN e PSD) articulavam, desde as primeiras horas da

crise, a chamada "solução de compromisso": a emenda constitucional

que instituía o regime parlamentarista no País. Se o golpe militar

era derrotado, um golpe político, no entanto, era perpetrado con-

tra o regime vigente, pois a carta de 1946 proibia, taxativamente,

toda e qualquer reforma constitucional num clima insurrecional. Um

outro significado deste "golpe branco" é que a emenda parlamenta-

rista retirava a eleição do presidente da República do âmbito po-

pular, transferindo-a para o espaço reduzido da Câmara Federal.

Por 236 votos a favor e 55 contra (40 eram do PTB), a emenda

constitucional era aprovada no Congresso Nacional. Os congressis-

tas julgavam-se vitoriosos, pois afirmavam ter evitado uma "guerra

civil" no país. Na verdade, o Congresso, através de sua maioria

conservadora e liberal-democrata — com o incentivo dos militares

dissidentes e com a anuência dos golpistas —, adiantou-se em ofe-

recer tal solução, pois o avanço das forças populares passava a se

constituir numa ameaça política indesejável. Para os ideólogos

burgueses da Ciência Política, o Congresso Nacional, neste episó-

dio, dava uma excelente lição daquilo que denominam de "realismo

político" ou da "arte de conciliação".

Alguns analistas afirmam, hoje, que o parlamentarismo não se

configurava, naquela conjuntura, como uma saída política inescapá-

vel. Argumentam que o tempo corria na direção favorável à manu-

tenção do regime presidencialista, posto que o crescimento da par-

ticipação popular e a ampliação dos setores políticos e militares

antigolpistas punham na defensiva e em minoria as forças reacioná-

rias. Como sugere o ex-deputado Almino Afonso: "Com mais alguns

dias de resistência política do presidente João Goulart teria ha-

vido a solução normal, que seria a sua posse dentro do sistema

presidencial". Ao contrario disso, João Goulart não apenas concor-

dou com a emenda constitucional, como se apressou em escolher uma

solene efeméride nacional para ser empossado. No dia 7 de setembro

de 1961, João Belchior Marques Goulart recebia no Congresso Nacio-

nal a faixa presidencial, sob o manto do regime parlamentarista.

De acordo com a emenda parlamentarista, o Poder Executivo pas-

sava a ser exercido pelo presidente da República e por um Conselho

de Ministros (Gabinete Parlamentar), a quem caberia a "direção e a

responsabilidade da política do governo, assim como a administra-

ção federal". Ao presidente competiria nomear o presidente do Con-

selho de Ministros (primeiro-ministro) ou chefe do governo e, por

indicação deste, os demais membros ministros de Estado. Na verda-

de, transformava-se o presidente da República em autêntico chefe

de Estado, perdendo a sua iniciativa de elaborar leis, orientar a

política externa, elaborar propostas de orçamentos, etc. O governo

se efetivava fundamentalmente através do Conselho de Ministros

que, por sua vez, dependia permanentemente do voto de confiança do

Congresso Nacional. A emenda constitucional nº 4, nas suas Dispo-

sições Transitórias, previa a realização de um plebiscito que vi-

esse a decidir acerca da "manutenção do sistema parlamentar ou

volta ao sistema presidencial". Tal consulta popular devia ocorrer

nove meses antes do término do período presidencial de Goulart.

Sob rédeas relativamente curtas, João Goulart iniciava, assim,

seu governo na versão parlamentarista. Mas, conforme confessaria a

um assessor, faria ele de tudo para abreviar a vida do novo regi-

me. Recusava-se a representar o papel de uma "Rainha Ehzabeth".

Queria governar, não apenas reinar...

A CRISE POLlTICO-INSTITUCIONAL

NA VERSÃO PARLAMENTARISTA

Na curta existência do regime parlamentarista (setembro de

1961 a janeiro de 1963), o país veria sucederem-se três Conselhos

de Ministros, além de se defrontar com o agravamento de sua situa-

ção econômico-financeira e se debater ainda com novas crises polí-

tico-institucionais. Administrativamente ineficiente e politica-

mente inviável, o parlamentarismo — sistema natimorto, como alguns

o denominaram — teria os seus dias contados dentro da vida repu-

blicana brasileira.

Do ponto de vista econômico, o governo parlamentarista não a-

penas herdava as profundas distorções da política desenvolvimen-

tista do governo Kubitschek como também tinha de fazer face às

conseqüências imediatas das medidas econômico-financeiras postas

em prática pela fracassada administração Quadros. No período Ku-

bitschek, ao se optar por um elevado nível de investimentos e ao

se manter as importações de equipamentos necessários ao de-

senvolvimento econômico, apelou-se para um progressivo endivida-

mento externo. No período 1956/60, mostram os dados oficiais, o

déficit nas transações correntes (mercadorias e serviços) alcançou

a elevada cifra de 1,2 bilhões de dólares. De outro lado, "como o

investimento externo fazia-se com a regalia da Instrução 113, isto

é, sem cobertura cambial, o atendimento do déficit fez-se, princi-

palmente, através de empréstimos a curto prazo e de atrasos comer-

ciais, aumentando o endividamento externo" (Cibilis Viana, Refor-

mas de Base e a Política Nacionalista de Desenvolvimento). A taxa

inflacionária elevou-se significativamente nos últimos anos do go-

verno Kubitschek, agravada fundamentalmente pela "deterioração das

relações de troca, acúmulo de estoques invendáveis de café adqui-

ridos pelas autoridades monetárias; crescimento insuficiente da

oferta de produtos agrícolas e oligopolização do comércio ataca-

dista de gêneros alimentícios" (Idem, ibidem). No período desen-

volvimentista anterior, houve um acentuado descompasso entre o

crescimento do setor industrial e o da agricultura. Ainda segundo

o autor acima, "a produção agrícola apresentou a taxa anual média

de crescimento de 4,3% inferior a de todos os demais períodos".

Com o aumento da população urbana (75% entre 1952 a 1961) e um au-

mento do poder de compra dos assalariados em geral, houve, conse-

qüentemente, a expansão da demanda de alimentos. Com o insuficien-

te crescimento da produção agrícola para o mercado interno, pas-

saram a ocorrer, a partir de 1961, agudas crises de abastecimento,

gerando inquietações sociais e movimentos reivindicatórios de

grande extensão nos campos e nas cidades.

Além desses problemas, o governo que se empossava tinha de en-

frentar as graves conseqüências da reforma cambial precipitadamen-

te realizada por Quadros. Através da famigerada Instrução 204 da

SUMOC, instituiu-se o regime de liberdade cambial (enganosamente

denominado de "verdade cambial"). A partir de agora, as importa-

ções passavam a ser realizadas a taxas de mercado livre, ficando

suprimidos os subsídios governamentais às compras de petróleo,

trigo e papel. Na justificativa oficial, buscava-se alcançar o e-

quilíbrio das transações com o exterior, altamente comprometido no

governo Kubitschek. A eliminação dos subsídios teve como con-

seqüência uma brusca e imediata alta do custo de vida, particular-

mente daqueles produtos que eram fundamentais no orçamento das

classes trabalhadoras.

Um gabinete de "união nacional"

No dia 8 de setembro de 1961, o Congresso Nacional aprovava o

primeiro Conselho de Ministros; era ele presidido por Tancredo Ne-

ves, conhecida figura do PSD mineiro. Goulart e Tancredo denomi-

naram o gabinete de "união nacional". Uma vez mais, pois, a fórmu-

la da "união nacional" era desenterrada do arsenal ideológico das

classes dominantes a fim de encobrir a existência de conflitos e

antagonismos no interior da conjuntura política. Na verdade, o

primeiro gabinete representava uma nítida derrota do movimento po-

pular que, alguns dias antes, havia empolgado o país. Como as es-

querdas viriam a denunciar, tratava-se de um autêntico "gabinete

de conciliação": "conciliação para evitar que fossem colhidos os

frutos da vitória popular. Conciliação com os imperialistas, con-

ciliação com os golpistas" (Paulo M. Lima, in Revista Brasiliense,

nº 22).

A vitória das forças politicamente conservadoras do Congresso

evidenciava-se mediante a composição do Gabinete, onde 4 ministros

representavam o PSD e 2 a UDN; ao partido do qual o presidente da

República era o presidente nacional, PTB, coube apenas uma pasta:

o Ministério das Relações Exteriores, na figura de Francisco San

Tiago Dantas. O importante Ministério da Fazenda teve sua respon-

sabilidade entregue ao banqueiro Walter Moreira Salles — ideologi-

camente identificado com os manuais ortodoxo-conservadores em ma-

téria de política econômico-financeira. Procurava-se, assim, con-

quistar o apoio do FMI e das autoridades financeiras norte-

americanas.

Em matéria de política econômica, pode-se afirmar que "o pro-

grama do Conselho de Ministros obedecia aos mesmos princípios con-

servadores enunciados nos efêmeros governos Café Filho e Jânio

Quadros, revelando-se, sob muitos aspectos, antagônicos ao ideário

do nacionalismo desenvolvimentista" (Cibilis Viana, op. cit.). Se-

gundo este programa, por exemplo, não se fazia nenhuma crítica à

reforma cambial implementada pelo governo anterior. Não seria es-

te, no entanto, o pensamento que orientava a assessoria econômica

de Goulart (Goulart e Tancredo tinham assessorias distintas). Com-

posta de petebistas e nacionalistas-reformistas, a assessoria de

Goulart buscaria influir sobre a orientação conservadora do gabi-

nete ao defender, por exemplo, o fortalecimento do setor estatal

da economia. Nos seus primeiros pronunciamentos, Goulart faria

críticas ao regime de "verdade cambial" e postularia a realização

das Reformas de Base.

Embora majoritariamente conservador, o gabinete de Tancredo

Neves, logo nos seus primeiros meses de existência, tomou duas de-

cisões amplamente apoiadas pelos setores progressistas e nacio-

nalistas. A rigor, contudo, estas duas medidas nada mais faziam do

que concretizar estudos oriundos do governo Quadros. Por proposta

do ministro das Minas e Energia, Gabriel Passos (um nacionalista

quase solitário na "constelação entreguista" da UDN), o Conselho

de Ministros cancelava todas as autorizações feitas ao truste nor-

te-americano Hanna Corporation (companhia de mineração que explo-

rava jazidas em Minas Gerais). A outra decisão que repercutiu fa-

voravelmente nos meios progressistas do país foi o restabelecimen-

to das relações diplomáticas com a URSS (rompidas no governo Du-

tra, em plena "guerra fria"). Dava-se, assim, continuidade à polí-

tica externa independente cujos princípios básicos ("não interven-

ção de um Estado nos negócios internos de outro" e "autodetermina-

ção dos povos") foram enunciados no governo do contraditório Jânio

Quadros.

Exatamente dois meses depois, uma prova decisiva teria de en-

frentar a política externa independente do Brasil. Em Punta Del

Este, Uruguai, reunia-se a Organização dos Estados Americanos (OE-

A) a fim de debater a situação de Cuba, após seu governo revolu-

cionário ter-se definido oficialmente pelo socialismo. Além da ex-

pulsão, proposta pelos EUA, pretendiam estes fazer aprovar sanções

contra o governo presidido por Fidel Castro. O Brasil se opôs a

qualquer forma de sanção (militar, econômica, rompimento das rela-

ções comerciais e diplomáticas) contra Cuba. No entanto, aprovou

uma declaração onde se afirmava a "incompatibilidade entre um re-

gime marxista-leninista e os princípios democráticos do sistema

interamericano". Cedendo parcialmente às fortes pressões norte-

americanas, o governo brasileiro se absteria na votação que propu-

nha a expulsão de Cuba da OEA.

As relações norte-americanas/brasileiras sofreriam ainda um

sério abalo quando, duas semanas após o encerramento da reunião da

OEA, o governador Leonel Brizola, cunhado de João Goulart, de-

sapropriou os bens da Companhia Telefônica Nacional, no Rio Grande

do Sul, subsidiária da International Telephone & Telegraph (ITT).

"O Departamento do Estado protestou, energicamente, classificando

o ato de Brizola como um 'passo atrás' nos planos da Aliança para

o Progresso (...) E o Congresso dos EUA, diante da perspectiva de

outras estatizações, votou a emenda Hinckenlooper, que determinava

a suspensão de qualquer ajuda aos países que desapropriassem bens

americanos, sem indenização imediata, adequada e efetiva" (Moniz

Bandeira, O Governo João Goulart).

Diante de futuras tentativas de encampações (Carlos Lacerda,

governador da Guanabara, anunciou — demagogicamente — que expro-

priaria empresas estrangeiras em seu estado), o governo federal

apressou-se em declarar sua disposição em negociar um acordo geral

com as empresas de serviços públicos de propriedade estrangeira.

Procurava, assim, o governo brasileiro demonstrar sua "boa vonta-

de" face ao capital estrangeiro; ao mesmo tempo tentava limpar o

terreno dos possíveis obstáculos que poderiam dificultar as con-

versações a serem mantidas, nas semanas seguintes, entre os presi-

dentes do Brasil e dos EUA.

Assessorado pelo embaixador brasileiro nos EUA, Roberto Cam-

pos, e por Moreira Salles, o presidente Goulart — no discurso pro-

nunciado perante o Congresso norte-americano e no comunicado con-

junto dos presidentes do Brasil/EUA — procura tranqüilizar a opi-

nião pública e os homens de negócios norte-americanos quanto aos

caminhos a serem trilhados pelo governo brasileiro nos próximos

anos. Entre outros temas, Goulart manifestou a adesão de seu go-

verno aos "princípios democráticos"; defendeu enfaticamente a par-

ticipação do capital privado estrangeiro no desenvolvimento brasi-

leiro; aprovou o princípio da "justa compensação" nos casos de de-

sapropriações de empresas estrangeiras operando no Brasil, etc.

Embora revelasse preocupações quanto às dificuldades de execução

do programa reformista da Aliança para o Progresso, Goulart elogi-

ou a iniciativa de Kennedy (provocada pela Revolução Cubana). Ad-

vertindo sobre os perigos que representaria o fracasso deste pro-

grama para os "povos democráticos", o presidente brasileiro fez

seu o ideário reformista de Kennedy: "Aqueles que tornarem impos-

sível a revolução pacífica, farão inevitável a revolução violen-

ta".

Apesar de todas as "juras de fidelidade e de amor" feitas por

Goulart à democracia e ao capital estrangeiro, o país pouco lucra-

ria com a festejada viagem de Goulart aos EUA e México. Como ob-

servou um estudioso: "(...) o FMI e os outros principais credores

do Brasil voltaram à sua atitude de esperar-para-ver dos últimos

anos do governo Juscelino. Sentiam-se pessimistas. Não confiavam

em que Jango tivesse o desejo, nem o poder de continuar o duro

programa antiinflacionário empreendido por Jânio" (Thomas Skidmo-

re, De Getúlio a Castelo).

A campanha das Reformas. Goulart X Gabinete

Internamente, a viagem de Goulart aos EUA rendeu-lhe alguns

proveitos; pela primeira vez, em toda a sua carreira política, a

direita mais conservadora prestou-lhe homenagens. A UDN, através

de seu líder na Câmara, Herbert Levy, saudou a sua performance nos

EUA como a de um verdadeiro estadista. Porém, muito curto seria o

período de tréguas que a oposição conservadora concederia ao go-

verno de Goulart. A partir do dia 1º de maio, a guerra novamente

lhe seria declarada.

Em reiteradas oportunidades, o presidente da República tinha

se pronunciado acerca da urgência de o Executivo e de o Congresso

aprovarem as reformas estruturais exigidas para a superação dos

graves problemas econômicos, sociais e institucionais enfrentados

pelo país. Não obstante se pudesse afirmar que era praticamente

consensual — no Gabinete, no Congresso, nas Forças Armadas, nas

associações e confederações rurais, na Igreja, nas organizações de

trabalhadores rurais, etc. — o reconhecimento da necessidade da

Reforma Agrária, as concepções acerca do seu sentido social e po-

lítico, da sua extensão e das pré-condições legais à sua realiza-

ção eram conflitantes. No seu discurso de 1º de maio, em Volta Re-

donda, Goulart chamou sobre si a fúria dos conservadores. Embora

não explicitamente, Jango se opôs à forma moderada e conciliadora

pela qual o gabinete de Tancredo Neves vinha encaminhando o debate

do anteprojeto de Reforma Agrária de autoria do ministro da Agri-

cultura, o conhecido usineiro pernambucano Armando Monteiro (PSD).

Apesar de ter criado importantes assessorias técnicas (Superinten-

dência da Reforma Agrária, SUPRA, e o Conselho Nacional de Reforma

Agrária), o primeiro gabinete não chegou a enviar nenhum projeto

de Reforma Agrária ao Congresso.

A rigor, o que provocou a violenta reação dos setores de di-

reita foi o apelo do presidente ao Congresso no sentido de este

realizar uma reforma da Carta de 1946. A reforma constitucional

reivindicada por Goulart visava basicamente a alterar o § 16 do

Art. 141 que condicionava as desapropriações de terra à "prévia e

justa indenização em dinheiro". A vigência de tal preceito consti-

tucional, na prática, impedia — pelos altos recursos a serem des-

pendidos pelo governo — a realização de uma Reforma Agrária que

implicasse uma ampla redistribuição de terras àqueles que nela e-

fetivamente trabalhavam. Diante da proposta do presidente da Repú-

blica, unem-se proprietários rurais, setores da Igreja, congres-

sistas liberais e conservadores, imprensa etc, para denunciar a

"reforma agrária radical" cogitada, segundo eles, por Goulart. Na

ótica desses grupos, a "revolução agrícola" deveria se fixar na

"obediência aos preceitos constitucionais aliada ao interesse pri-

oritário pelo estímulo à produção" (Aspásia Camargo, "A Questão

Agrária", in Brasil Republicano).

Como observou a autora acima, o discurso de Volta Redonda pode

ser considerado como um importante marco político: seja porque re-

presentou o primeiro esforço concentrado do governo em torno da

realização das Reformas de Base (o segundo momento dessa campanha

ocorreria a partir de abril de 1963), seja porque significou o a-

fastamento político do presidente da República face ao Conselho de

Ministros e ao regime parlamentarista propriamente dito. Reconhe-

ce-se, também, nessa data, o início da intensificação da luta pela

antecipação do Plebiscito.

Sem o apoio do presidente da República, o Gabinete Tancredo

Neves tinha os seus dias contados. Sob o pretexto de terem de cum-

prir a exigência legal de desincompatibilização funcional a fim de

poderem concorrer às eleições de outubro de 1962, todos os membros

do Gabinete Tancredo pediram demissão em junho.

As crises de Gabinete

A formação do 2º gabinete parlamentarista implicou uma compli-

cada batalha política para o presidente Goulart. Os dois grandes

partidos conservadores do Congresso, PSD e UDN, uniam suas forças

para rejeitar o nome do petebista San Tiago Dantas, indicado por

Jango para presidir o novo gabinete. As razões da recusa eram evi-

dentes: San Tiago, que fazia parte da chamada "esquerda positiva",

notabilizara-se, nos meses anteriores, pela condução da política

externa independente. O febril anticomunismo da direita brasileira

jamais poderia perdoar-lhe o reatamento das relações diplomáticas

do Brasil com a URSS; igualmente, a sua intransigente oposição,

dentro da OEA, a qualquer sanção contra Cuba socialista lhe vale-

ria a pecha de "traidor da pátria", por parte dos setores conser-

vadores. Além do mais, era um elemento da estrita confiança de

Goulart, estando, pois, inteiramente solidário na luta que este

movia contra o parlamentarismo e a favor das reformas de base.

Sendo forçado a buscar apoio no PSD, Goulart apresentou um ou-

tro candidato: Auro Soares de Moura Andrade, presidente do Senado.

No entanto, esta decisão desagradou as lideranças sindicais com-

prometidas com a luta pelas Reformas e que, desde o mês de junho,

vinham defendendo a formação de um "Conselho de Ministros naciona-

lista e democrático". Diante da negativa face ao nome de San Tiago

e da eminente aprovação do Conselho de Ministros a ser chefiado

pelo conservador Moura Andrade, o Comando Geral da Greve (CGG) de-

cretou uma greve geral em todo o país para o dia 5 de julho. No

dia anterior, porém, o senador do PSD desistia da sua indicação a

primeiro-ministro. Apesar da renúncia de Moura Andrade e dos in-

sistentes apelos de Jango, a greve foi mantida. Na Guanabara, es-

tado onde se concentrou praticamente todo o movimento paredista,

os militares do I Exército — sob o comando do general nacionalista

Osvino Alves — colaboraram com os grevistas; não cederam veículos

de seu uso para transporte público e também participaram das nego-

ciações para a libertação dos líderes sindicais reprimidos pela

polícia do reacionário governador da Guanabara, Carlos Lacerda (S.

Amad Costa, CGT e as Lutas Sindicais Brasileiras). A greve — con-

siderada pelo líder comunista Jover Telles como a maior da histó-

ria do movimento operário brasileiro — foi igualmente vitoriosa

pelo fato de o presidente Goulart sancionar, uma semana depois, a

lei que instituiu o 13º salário, uma das principais reivindicações

da greve geral.

O novo gabinete, presidido por Brochado da Rocha (PSD), rece-

bia voto de confiança no dia 13 de julho. Tratava-se de um gabine-

te de centro com orientação reformista. Nos seus dois curtos meses

de existência, este conselho distinguiu-se basicamente por duas

iniciativas políticas. A primeira consistiu num projeto de lei en-

viado ao Congresso visando antecipar a realização do Plebiscito;

propunha-se o dia 7 de outubro, data marcada para as eleições da

renovação do Congresso e escolha de alguns governadores de estado.

Nova derrota de Goulart e do gabinete; nova greve geral seria de-

cretada pelas lideranças sindicais. Embora tivesse uma extensão

menor do que a anterior, a greve foi igualmente vitoriosa pois, na

madrugada de 15 de setembro (data fixada para a paralisação dos

trabalhadores), o Congresso aprovou um projeto conciliador dos

pessedistas Gustavo Capanema e Benedito Valadares. O Plebiscito,

finalmente, tinha agora seu dia definido: 6 de janeiro de 1963. No

entanto, a greve não reivindicava apenas a convocação do referen-

dum popular; exigia, também, a sanção da Lei de Remessa de Lucros

(aprovada pelo Congresso mas ainda não regulamentada pelo Executi-

vo), a elevação dos níveis de salário mínimo na base de 100%, etc.

Posto que o governo prometeu realizar estudos no sentido de aten-

der àquelas reivindicações, o Comando Geral do Trabalhadores

(CGT), recentemente criado, suspendia a greve.

A segunda importante iniciativa do Gabinete Brochado da Rocha

consistiu numa mensagem enviada ao Congresso na qual se solicitava

a autorização deste para que o Conselho de Ministros pudesse le-

gislar, através de decretos, sobre as Reformas de Base, remessa de

lucros, regulamentação do direito de greve, abuso do poder econô-

mico, etc. Expressando os interesses dos proprietários e das asso-

ciações rurais, bem como da burguesia associada ao capital multi-

nacional, a aliança PSD/UDN fechava a questão contra a "delegação

de poderes" pedida pelo gabinete. Prevendo a iminente derrota no

plenário do Congresso, Brochado da Rocha demitiu-se. Desta forma,

o Congresso cedia quanto à convocação do Plebiscito, mas a sua

maioria não abriria mão de sua condição de intransigente defensora

dos interesses das classes proprietárias e dos setores politi-

camente conservadores e de direita. Uma vez mais, Brizola se en-

carregaria de expressar a insatisfação dos movimentos populares e

das correntes políticas nacionalistas e de esquerda: "O povo não

poderia esperar outra coisa de um Congresso constituído, em sua

maioria, de latifundiários, financistas, ricos comerciantes e in-

dustriais representantes da indústria automobilística, empreitei-

ros e integrantes da velha oligarquia brasileira" (apud M. Victor,

5 Anos que Abalaram o Brasil).

A campanha do plebiscito

O terceiro e último Conselho de Ministros, presidido pelo ex-

ministro do Trabalho, Hermes Lima, duraria pouco mais de 4 meses.

A rigor, a partir de meados de setembro de 1962, o comando do Exe-

cutivo passava praticamente para as mãos do presidente da Repúbli-

ca. Como viria a assinalar mais tarde o último premier do governo

parlamentarista: "Vivia-se no país uma atmosfera mais presidencia-

lista que parlamentarista" (Hermes Lima — apud M. Bandeira, op.

cit). Nesse sentido, deve-se reconhecer que o Gabinete provisório

— oficialmente empossado dois meses depois — estava inteiramente

solidário com o mais importante objetivo político perseguido por

Goulart naquele momento: articular as forças políticas e sociais

do país a fim de derrotar o parlamentarismo na eleição plebiscitá-

ria de 6 de janeiro.

Pode-se afirmar que este gabinete esteve inteiramente envolvi-

do com a campanha do Plebiscito. Excluída a direita mais ardorosa-

mente anticomunista e antijanguista (a maioria da UDN IPES/ IBAD,

imprensa conservadora, etc), poucos "moveram uma palha" em defesa

do parlamentarismo. Em contrapartida, inúmeras foram as entidades

e organizações que se empenharam na batalha política pelo retorno

do presidencialismo. Importantes figuras políticas nacionais (al-

gumas delas particularmente interessadas em se candidatar, em e-

leições diretas, para a sucessão presidencial de Jango) apoiaram

ostensivamente a derrubada do regime parlamentarista. Entre eles

se incluíam Juscelino Kubitschek, Leonel Brizola, Cid Sampaio, Ma-

galhães Pinto, Juraci Magalhães e Carlos Lacerda (a UDN, partido

dos três últimos, defendia a manutenção do parlamentarismo).

Durante a campanha do Plebiscito, importantes figuras da ofi-

cialidade militar posicionaram-se a favor da volta do presidencia-

lismo. Poucas razões igualmente tinham os trabalhadores para apoi-

arem o regime parlamentarista. Nas últimas semanas de 1962, a CNTI

(Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria) conclamava

os trabalhadores brasileiros a comparecer ao referendum: "Todos,

no, dia 6 de janeiro de 1963, assinalem o NÃO: NÃO à espoliação do

país; NÃO aos exploradores do povo; NÃO à carestia e à fome. Por-

tanto, companheiro, um NÃO grande ao parlamentarismo". A rigor,

para os trabalhadores, a luta pela retomada do presidencialismo

significava, simplesmente, dar um "voto de confiança" ao presiden-

te da República que vinha defendendo publicamente a realização de

reformas fundamentais na estrutura da sociedade brasileira. No dia

6 de janeiro de 1963, depois de uma intensa e dispendiosa campanha

político-publicitária contra o regime parlamentarista — comandada

por Goulart e financiada por setores da burguesia brasileira —,

cerca de 13 milhões de eleitores compareciam às urnas. Numa pro-

porção de 5 votos para 1, rejeitava-se o regime implantado na cri-

se político-militar de agosto de 1961.

O regime parlamentarista fracassou pois se revelou altamente

ineficaz do ponto de vista administrativo, como também pelo fato

de ter-se constituído numa fonte permanente de crises institucio-

nais e políticas. O caráter híbrido e dualista do sistema — o pre-

sidente da República e o Conselho de Ministros, além de disputarem

o controle do Executivo, divergiam quanto aos seus programas e

prioridades de governo — dificultava a tomada de decisões que a

realidade econômica e social do país urgentemente demandava. Não

se sustentam, pois, aquelas interpretações que atribuem exclusiva-

mente à "má vontade" ou ao "desinteresse" de Goulart a responsabi-

lidade pela "triste sorte" que veio a ter o parlamentarismo no pa-

ís. Ressalte-se que o gabinete presidido por Brochado da Rocha

buscou agilizar as decisões no campo administrativo e econômico;

mas as Reformas de Base e outras medidas que estavam previstas pa-

ra serem implementadas esbarraram na intransigente oposição da a-

liança PSD/UDN. O Congresso que encerrava a sua legislatura em

1962, sendo majoritariamente conservador, constituiu-se, assim,

num forte obstáculo ao encaminhamento de políticas de caráter re-

formista oriundas do Executivo (seja da Residência da República,

seja do Gabinete).

Na crise político-militar de agosto de 1961, os dois maiores

partidos conservadores apressaram-se em instituir no país um regi-

me que lhes permitiria deter maiores possibilidades para o contro-

le do Executivo. Como vimos, em certa medida, foram bem-sucedidos

nesse intento, pois conseguiram impor limites e barreiras à ação

do Executivo reformista — reconhecidamente mais eficazes do que

aqueles tradicionalmente utilizados em regime presidencialista. No

entanto, o parlamentarismo — forjado a toque de clarim e em ritmo

marcial — não resistiu às inúmeras crises políticas que seu fun-

cionamento provocou e não conseguiu resolver.

Um governo no trapézio

No dia 23 da janeiro de 1963, com a revogação da emenda parla-

mentarista, João Goulart reassumia os plenos poderes que a Carta

de 1946 conferia ao presidente da República. Após o malogro da ex-

periência parlamentarista, todas as indagações políticas resumiam-

se na seguinte: conseguiria o governo presidencialista de Goulart

superar a crise econômico-financeira, aliviar as tensões sociais e

afastar as crises políticas que vinham continuadamente desgastando

a administração pública? Não seria exagerado afirmar que — entre

os diferentes setores sociais — era praticamente consensual o re-

conhecimento de que da solução da crise econômico-financeira de-

pendia fundamentalmente o encaminhamento satisfatório dos demais

problemas que afetavam o país. As propostas que as diversas clas-

ses sociais e grupos políticos ofereciam para resolver os proble-

mas da inflação, do déficit da balança de pagamentos, da continui-

dade do desenvolvimento econômico etc, não deixavam de ter orien-

tações diferentes e, por vezes, antagônicas. A este respeito deve-

se ressaltar que os tempos de Goulart constituíram-se em anos "ex-

tremamente férteis" na medida em que neles se processaram intensos

debates sobre os rumos e direções que deveriam ser trilhados pela

economia e sociedade brasileiras. Como observou um economista: "Ao

contrário dos anos anteriores, em que reduzidas minorias controla-

vam a formulação política, nestes anos novos agrupamentos passaram

a fazer ouvir sua voz no processo de decisão social. A política

econômica não foi indiferente a este contexto social mais comple-

xo" (Carlos Lessa, 15 Anos de Política Econômica) .

Como tende a ocorrer em todo regime democrático-burguês, o E-

xecutivo anunciava que o seu Plano de Governo tinha condições de

resolver em profundidade os impasses e as dificuldades enfrentados

pelo conjunto da sociedade brasileira. Essa ambiciosa proposta foi

denominada de "Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico-Social:

1963-1965", tendo sido elaborada pelo economista Celso Furtado

(ministro do Planejamento), com a colaboração de San Tiago Dantas

(ministro da Fazenda). A concepção e a execução do Plano Trienal —

bem como as reações dos diferentes setores sociais e políticos a

ele — contribuem de forma significativa para entendermos o que foi

o governo Goulart.

A análise da composição do primeiro ministério presidencialis-

ta, bem como o exame crítico do Plano Trienal, anunciavam muito

expressivamente o estilo conciliador que iria predominar durante o

governo Goulart — autêntico "governo de trapézio", segundo o jul-

gamento de um jornalista político. No Ministério encontravam-se

políticos conservadores do PSD (Antônio Balbino e Amaral Peixoto),

petebistas do grupo "fisiológico" (San Tiago Dantas e José Ermírio

de Moraes — um dos expoentes da chamada "burguesia nacional"), um

petebista do "grupo compacto" ou "ideológico" (Almino Afonso),

técnicos "apartidários" como Celso Furtado e militares "duros" co-

mo o gal. Amaury Kruel. Por outro lado, o Plano Trienal, na sua

formulação teórica, julgava poder harmonizar e satisfazer interes-

ses contraditórios — de patrões e empregados, de proprietários e

trabalhadores assalariados. Quais os principais objetivos e pro-

postas do Plano?

Plano Trienal: "combater a inflação com desenvolvimento"

Diante das duas mais importantes tendências do comportamento

da economia brasileira no início dos anos 60 — "aceleração infla-

cionária" (37% em 1961 e 51% em 1962) e "desaceleração do cresci-

mento"-(taxa de 7,3% em 1961 e 5,4% em 1962) —, o Plano trienal

pretendia compatibilizar o combate ao surto inflacionário com uma

política de desenvolvimento que permitisse ao país retomar as ta-

xas de crescimento do PIB (em torno de 7%) alcançadas durante o

período de 1957 a 1961. Como reconheciam os setores de esquerda, o

Plano constituía-se num avanço em relação às teses ortodoxas domi-

nantes, pois buscava combater o processo inflacionário "sem sacri-

fício do desenvolvimento". Paralelamente a estes dois objetivos

principais, o Plano pretendia contribuir para uma melhor distribu-

ição dos frutos do desenvolvimento econômico, juntamente com "a

redução das desigualdades regionais de níveis de vida". Enfatiza-

va, porém, o Plano Trienal, que se o processo inflacionário não

fosse reduzido a limites toleráveis, o País — com uma iminente hi-

perinflação (prevista em 100% para fins de 1963, caso o plano de

estabilização falhasse) — teria toda a sua atividade econômica pa-

ralisada e, conseqüentemente, passaria a ser o palco de perigosas

lutas sociais.

Tanto a análise feita pelo Plano sobre as causas do processo in-

flacionário, como as soluções ali apontadas, não deixariam de ser

objeto de intensas polêmicas. Do lado do setor externo, admitiam

as esquerdas que era correta a afirmação segundo a qual a inflação

era provocada pela drenagem de recursos de recursos para o exteri-

or (através da "deterioração das relações de trocas") e pela

transferência de renda (na forma de subsídios governamentais) para

o setor exportador. Contudo, os "remédios" propostos — "refi-

nanciamento da dívida externa" e "entrada de recursos externos"

para a amortização de empréstimos anteriormente contraídos — eram

praticamente ineficazes como medidas antiinflacionárias; além do

mais, amortizar dívidas com a entrada de capitais estrangeiros a-

gravaria ainda mais o nosso endividamento no exterior. Para as es-

querdas, o Plano constituía-se numa nova capitulação ao latifúndio

e ao imperialismo: não se propunha a eliminação dos subsídios ao

setor latifundiário-exportador nem se reconhecia o papel inflacio-

nário representado pelas remessas ao exterior de "juros, lucros e

royalties, e a entrega de enorme soma de recursos públicos às

grandes companhias estrangeiras, diretamente e através de isenções

de impostos e favores cambiais" (H. Hoffmann, "O Plano Trienal e a

Inflação", in Estudos Sociais, nº 16).

Em relação ao setor público, a estratégia adotada para reduzir

a pressão inflacionária consistia num "conjunto de medidas de ação

convergente". Destacava, contudo, a "redução do dispêndio público

programado" como o mais importante fator responsável pela inflação

no País. Contra esta perspectiva, críticos à esquerda advertiam:

"(...) o nível de gastos públicos não pode ser comprimido se se

quer que a economia se desenvolva" (Paul Singer, Análise Crítica

do Plano Trienal). Como se verá mais adiante, a realidade não dei-

xará de dar razão a esses críticos.

Um plano antipopular e capitulacionista

Para o ministro da Fazenda, San Tiago Dantas, o êxito da polí-

tica econômico-financeira passava a depender da "compreensão geral

das áreas oficiais e não oficiais" acerca da "dramática situação"

que enfrentava o País. Era voz corrente, nos círculos oficiais,

que "o País não suportaria, no momento, nem reivindicações salari-

ais nem a pressão por maiores lucros, e as medidas que se adotam

para evitar que à conjuntura desemboque num colapso financeiro de-

vem ter a compreensão e a colaboração dos dirigentes das classes

produtoras e dos sindicatos de trabalhadores" (Carlos Castello

Branco, Introdução à Revolução de 1964). Na perspectiva do gover-

no, nivelavam-se, assim, as "boas vontades": de um lado, a dos em-

presários que deveriam moderar, provisoriamente, o apetite por lu-

cros crescentes; de outro, a dos trabalhadores assalariados, que

deveriam deixar de pressionar — adiando, pois, suas greves e rei-

vindicações — por salários mais elevados. Ora, bem se sabia que

tais reivindicações visavam, simplesmente, recompor para a classe

trabalhadora um nível de participação menos deteriorado na renda

nacional. (Como mostrou um economista, a partir de 1958, com a ú-

nica exceção de 1961, houve uma acentuada deterioração do salário

mínimo real.) (Francisco de Oliveira, "Crítica à Razão Dualista",

in Estudos Cebrap.) Apesar da sua formulação teórica não conside-

rar os salários como fatores inflacionários, na prática, no entan-

to, o Plano pedia aos trabalhadores — como sempre o fazem os pla-

nos de "salvação nacional" — "colaboração", "paciência" e "patrio-

tismo". Mas, acima de tudo, que (novamente) "apertassem os cin-

tos"...

O entusiasmo governamental começou a se esboçar em fevereiro e

março, em virtude do apoio que o Plano recebia de associações das

"classes produtoras" (a Confederação Nacional da Indústria, CNI),

de governadores de estados etc; contudo, ele sofreria seus primei-

ros e fortes abalos com as críticas vindas de setores sindicais e

das organizações políticas nacionalistas e de esquerda. Logo nos

primeiros dias de fevereiro um manifesto do CGT revelaria que se-

ria tormentosa a administração do presidente Goulart. Nesse docu-

mento combatia-se a política financeira do Plano Trienal, pois en-

quanto este deixava intactos os lucros fabulosos do capital es-

trangeiro, dos latifundiários e dos grandes grupos econômicos na-

cionais, impunha, por outro lado, maiores sacrifícios às classes

populares e trabalhadoras. Um crítico de esquerda assinalaria:

"(...) o Plano Trienal visa a combater a inflação sem reduzir o

crescimento econômico do país, no que se manifesta, tipicamente, a

inspiração da burguesia nacional. Do ponto de vista dos defensores

do Plano esta seria uma razão suficiente para que os trabalhadores

o apoiassem. A verdade é, porém, que esta não é uma razão sufi-

ciente, mas uma razão burguesa e, portanto, inaceitável para os

trabalhadores" (Jacob Gorender, "O Plano Trienal e o Combate à In-

flação", Novos Rumos, fevereiro de 1963).

As críticas avolumaram-se e se intensificaram a partir do mo-

mento em que as conseqüências da política de eliminação de subsí-

dios ao trigo e ao petróleo (uma das medidas prioritárias no com-

bate à inflação) começaram a ser sentidas pelos setores populares.

Em fevereiro, calculou-se que o fim da política de subsídios au-

mentaria o custo do transporte em 40% e o preço do trigo e do pão

em 177%. Nos três primeiros meses de 1963, o índice geral dos pre-

ços subiu 16%, enquanto no mesmo período de 1962 o índice de au-

mento foi de 8%. A condenação ao Plano, unânime por parte dos se-

tores sindicais e populares e das organizações políticas de es-

querda (CGT, PUA, FPN, UNE, "grupo compacto" do PTB, etc), iria

ter repercussões dentro do próprio Ministério, na medida em que a

"diretriz de Almino Afonso no Ministério do Trabalho, ao fortale-

cer as direções operárias mais independentes, como o CGT, PUA,

etc, colidiu com os interesses de Goulart" (Moniz Bandeira, op.

cit.). Do lado dos empresários (particularmente da poderosa indús-

tria automobilística concentrada em São Paulo) havia "queixas ge-

neralizadas de falta de crédito". Diante das "violentas críticas"

destes setores — encampadas pela própria CNI — haverá, no segundo

trimestre de 1963, o relaxamento da política monetária que fará os

meios de pagamento crescerem de 179,4 bilhões de cruzeiros contra

a expansão projetada de 74,1 bilhões, "o que afetou definitivamen-

te o esquema do Plano Trienal" (C. Lessa, op. cit.).

Os aspectos antinacionais da política econômico-financeira do

governo Goulart ficariam também evidenciados quando das conversa-

ções entre Brasil e EUA acerca da negociação da assistência econô-

mica norte-americana e refinanciamento da dívida externa. Em março

de 1963, San Tiago Dantas viajava a Washington com um forte argu-

mento para convencer o governo norte-americano a fornecer assis-

tência financeira ao Brasil: o Plano Trienal era a decisiva prova

de que o País passava a se enquadrar dentro do receituário econô-

mico-financeiro propugnado pelo governo dos EUA e pelo FMI. Mas-

os EUA, além de exigirem um compromisso formal por parte do gover-

no brasileiro de que o plano "não ficaria apenas no papel", impu-

seram ainda uma nova condição para a concessão do empréstimo soli-

citado: o governo Goulart deveria resolver com a máxima urgência a

questão da desapropriação da AMFORP (American Foreign Power, sub-

sidiária da Bond & Share). Duas cartas de Goulart foram entregues

a Kennedy por intermédio de San Tiago Dantas: nelas o governo bra-

sileiro comprometia-se a cumprir as duas exigências norte-ameri-

canas. (Entre os políticos norte-americanos circulava a versão de

que a chamada "ajuda externa" dos EUA era freqüentemente desperdi-

çada pela má administração aos governos latino-americanos. No caso

brasileiro, deixava, pois, de ser informado que, "na verdade, o

que ocorria não era uma transferência de capitais dos EUA para o

Brasil e, sim, ao contrário, um escoamento de recursos do Brasil

para os EUA". Entre 1947 e 1960 entraram (empréstimos e investi-

mentos) US$ 1.814 milhões e "saíram no mesmo período.... US$ 2.459

milhões sob a forma de remessas de lucros e juros, deixando um

saldo negativo da ordem de USS 645 milhões" que, "acrescidos de

US$ 1.022 milhões, sob a rubrica Serviços, ou seja, remessas de

lucros clandestinas, perfaziam um total de USS 1.667 milhões. Em

suma, num período de 13 anos, um volume considerável de dólares

foi transferido do Brasil para os EUA. Rigorosamente, exportávamos

muito mais capitais do que recebíamos" — Moniz Bandeira, op. cit.)

Para tornar ainda mais complicada a situação do governo brasi-

leiro nas negociações de Washington, um porta-voz do Departamento

de Estado — baseado nos relatórios de Mr. Gordon enviados regular-

mente da embaixada norte-americana no Brasil — alertava a opinião

pública de seu país sobre a "perigosa atuação de comunistas" den-

tro da assessoria técnica de Goulart. Apesar das duas cartas do

governo brasileiro (onde se garantia o acatamento às exigências

norte-americanas) e de uma solene declaração oficial que negava a

existência de "esquerdistas" na assessoria governamental, os EUA

aprovaram um empréstimo de apenas USS 84 milhões, prometendo USS

314,5 milhões para o ano fiscal de 1964, caso as medidas de con-

tenção inflacionária fossem efetivamente aqui aplicadas; antes,

contudo, deveriam elas ser aprovadas por uma comissão do FMI, cuja

visita ao Brasil estava prevista para meados de 1963. Embora os

"brios nacionalistas" do governo brasileiro fossem feridos — noti-

ciou-se que San Tiago Dantas ameaçara abandonar as negociações com

os EUA —, "razões pragmáticas" fizeram com que as imposições nor-

te-americanas fossem aceitas, conforme se verificou através do a-

cordo Dantas/ Bell.

O caso da compra da AMFORP — o "escândalo da AMFORP" como fi-

cou conhecido na imprensa da época — transformou-se em grave pro-

blema político para a administração Goulart. Enquanto retirava os

subsídios para o trigo e o petróleo e cortava alguns investimentos

públicos, sob o pretexto de combater a inflação, o governo brasi-

leiro anunciava, em fins de abril, que se ultimavam os entendimen-

tos para a compra da AMFORP (que congregava 12 empresas de servi-

ços públicos). San Tiago Dantas e Roberto Campos (que a esquerda

nacionalista ironicamente chamava de "Bob Fields", por ser ele um

"refinado entreguista") tinham acertado com os representantes da

empresa norte-americana o valor da transação: 188 milhões de dóla-

res. Na mesma ocasião, um grupo de trabalho integrado por técnicos

brasileiros (CONESP) — dissolvido logo a seguir por Goulart — ava-

liava os bens da AMFORP em torno de 57 milhões de dólares. Para os

setores nacionalistas, estava-se diante de uma imensa negociata,

pois, além do preço extorsivo, as 12 usinas norte-americanas esta-

vam obsoletas, constituindo-se em verdadeiro "ferro velho". Tais

denúncias tiveram ampla repercussão Política. Goulart recuou, pro-

telando a realização da compra, para desagrado do governo norte-

americano. (Em outubro de 1964, demonstrando eloqüente "boa vonta-

de" para com os empresários e governo dos EUA, o governo do mal.

Castelo Branco adquiria a AMFORP.)

O prestígio político de Goulart foi seriamente abalado neste

episódio; inclusive os setores conservadores não lhe pouparam du-

ras críticas, ao ser conivente com negociações que os grupos na-

cionalistas classificavam de autêntico "crime de lesa-pátria". O

plano, antes de completar 6 meses de duração, inviabilizava-se po-

lítica e economicamente. Nem os emprésários, nem os trabalhadores

lhe ofereciam qualquer apoio. Em maio, o Ministério da Fazenda,

diante das fortes pressões dos assalariados, tomava uma decisão

inteiramente contrária às projeções do Plano, ao conceder um au-

mento de 70% aos funcionários civis e militares, quando estava

previsto apenas 40%. De outro lado, como já foi mencionado, o go-

verno — face às reivindicações de setores industriais — voltaria

atrás em suas medidas de contenção do crédito.

O malogro do Plano se revelou de forma completa ao se proceder

ao balanço do ano de 1963: nem desaceleração da inflação, nem ace-

leração do crescimento foram alcançadas. Houve, sim, inflação sem

desenvolvimento. Razão, pois, tinham os críticos de esquerda quan-

do — denunciando a retórica progressista do Plano — advertiam para

os aspectos recessionistas, antipopulares e antinacionais das me-

didas concretas ali propostas.

As reformas: como garantir a propriedade

e impedir a "convulsão social"

Outra batalha política que esteve em pauta durante todo o go-

verno Goulart foi a das Reformas de Base (Agrária, Bancária, Admi-

nistrativa, Fiscal, Eleitoral, Urbana, etc). Recorde-se que esta

problemática fazia parte dos programas dos três gabinetes parla-

mentaristas e agora aparecia como um dos objetivos básicos do Pla-

no Trienal. (Como se encarregavam de divulgar os confidentes e

cronistas palacianos, Goulart queria notabilizar-se na história

política do Brasil como o "presidente da Reforma Social".) Reco-

nhece-se, no entanto, que a bandeira das Reformas passou a ser em-

punhada pelo governo, de forma mais enérgica, no período presiden-

cialista, apenas a partir do instante em que se começou a perceber

o malogro do Plano Trienal. Logo nos primeiros meses do ano, aná-

lises feitas pelas esquerdas não apenas denunciavam o "cozimento

em água fria das reformas" — amplamente agitadas por Goulart du-

rante a campanha do Plebiscito —, como também passavam a duvidar

do conteúdo efetivamente transformador de que poderiam se revestir

as propostas governamentais (Caio Prado Jr., Revista Brasiliense,

nº 44). Qual seria, enfim, a perspectiva oficial acerca das Refor-

mas de Base?

Assinala um sociólogo que, na visão dos governantes, "se não

houvesse Reformas de Base (...) não se criariam as novas 'condi-

ções institucionais' para o desenvolvimento de outra etapa da eco-

nomia brasileira" (Octavio Ianni, Estado e Planejamento Econômico

no Brasil); significava isso — conforme o reconhecimento do pró-

prio Plano Trienal — que as Reformas de Base eram indispensáveis,

ao lado do planejamento, a fim de que o capitalismo industrial

brasileiro pudesse alcançar um nível de desenvolvimento superior.

Afirmava o Plano, por exemplo, que as reformas fiscal e agrária

eram essenciais se se pretendesse a "eliminação de entraves insti-

tucionais à utilização ótima dos fatores de produção". Razões eco-

nômicas e sociais impunham a urgente realização das reformas, den-

tre elas a que mais debates provocou naquele período: a Reforma

Agrária.

De um lado, era preciso aumentar a produção agrícola (alimen-

tos que suprissem as demandas da população urbana em crescimento;

matérias-primas para a expansão industrial etc), ao mesmo tempo

que se buscava criar um mercado interno mais amplo para os bens

manufaturados. De outro lado, prevendo-se situações incontroláveis

de tensões e distúrbios sociais, propunha-se uma melhor redistri-

buição da terra (em mãos de um reduzido número de latifundiários e

freqüentemente mantida de forma improdutiva). É exemplar a este

respeito o testemunho de um dos mais íntimos colaboradores de Gou-

lart, acerca da concepção que este defendia de Reforma Agrária:

"(...) o que Jango tentava fazer não tinha nada de muito ousado

nem de radical. Ele dizia sempre que, se o número de proprietários

rurais fosse elevado de 2 para 10 milhões, a propriedade seria

muito melhor defendida, e simultaneamente possibilidades maiores

seriam abertas a mais gente de comer mais, de se educar melhor, de

viver mais dignamente. Por isso é que Jango, latifundiário, queria

fazer a Reforma Agrária para defender a propriedade e assegurar a

fartura, evitando o desespero popular e a convulsão social" (Darci

Ribeiro, "Governo Goulart caiu por suas qualidades, não por seus

defeitos", in A História Vivida II — O ESP, grifos nossos).

Apesar de não ter nenhum sentido revolucionário, corresponden-

do, pois, de um lado, às necessidades da consolidação do capita-

lismo industrial e, de outro lado, à estratégia da dominação soci-

al burguesa, a Reforma Agrária proposta por Goulart será objeto de

intensa e constante oposição por parte dos proprietários rurais e

seus setores políticos, de setores da Igreja Católica, etc. (Re-

corde-se que, no período parlamentarista, idêntica foi a reação

desses grupos. A diferença estava no fato de que naquele momento

Goulart não tinha ainda formulado oficialmente a sua proposta de

Reforma Agrária e de Reforma Constitucional.) Tais setores não ad-

mitiam, por exemplo, a alteração dos preceitos constitucionais sob

a alegação de que — caso isso viesse a ocorrer — corria-se o risco

de ser invalidado o estatuto da propriedade privada no Brasil...

Além do mais, conforme assinalou um historiador, as demais refor-

mas propostas (eleitoral, educacional etc.) poderiam implicar a

"alteração do equilíbrio político" e permitia até então a hegemo-

nia das forças conservadoras e de direita, particularmente no Le-

gislativo. A preocupação política maior das classes dominantes di-

ante das possíveis mudanças no campo são ressaltadas por uma estu-

diosa: "Havia, sem dúvida, o incontrolável temor de se ver ingres-

sar na cena política camadas sociais constituídas em 'clientelas

políticas' que pudessem ser enquadradas, tal como o fora a classe

operária com Getúlio Vargas. Tais temores eram, sem dúvida, reali-

mentados pela aceleração da eclosão de conflitos rurais, que cada

vez mais se orientavam para a ocupação de terras" (Aspásia Camar-

go, op. cit.).

Enquanto setores do PSD — apesar dos fortes compromissos do

partido com os proprietários rurais — chegaram, num primeiro mo-

mento, a aceitar a discussão do anteprojeto do Executivo, a UDN

fechava a questão contra qualquer alteração constitucional. Mas, a

posição do PSD será outra a partir da Convenção da UDN realizada

em abril de 1963. (Na cronologia do golpe de 64, esta reunião da

UDN teve um papel decisivo: nela, ilustres figuras do partido de-

fenderam a intervenção das Forças Armadas e dos EUA a fim de porem

termo ao "comunismo legal" de Goulart.) Influenciado pelas mani-

festações das chamadas "bases" da UDN, o PSD recuará definitiva-

mente face às suas primeiras conversações com o governo. Tal fato

mostrou-se de forma evidente na votação da "emenda Bocaiúva" (e-

menda constitucional, apresentada pelo PTB, que buscava tornar fi-

nanceiramente viável a Reforma Agrária). Por 7 votos (PSD, UDN e

PSP) contra 4 (PTB e PDC), a emenda seria rejeitada na Comissão

Especial da Câmara, no mês de maio. Em Plenário, a emenda foi der-

rotada, em outubro, graças à aliança PSD e UDN — após intensa mo-

bilização dos proprietários rurais, comandados principalmente pela

Confederação Rural Brasileira(CRB).

Como ainda observaria a autora acima, a partir do veto na Co-

missão Especial, os setores nacionalistas desencadeariam uma cam-

panha de pressão nacional sobre o Congresso para a imediata apro-

vação das reformas. Através de comícios, passeatas, manifestos, os

setores nacionalistas e populares exigem "reformas já!", ao mesmo

tempo que denunciam o reacionarismo do Congresso controlado pelo

PSD UDN e pelo "milionário IBAD". (Brizola diria que o PSD e a

UDN, ao exigirem o pagamento prévio e em dinheiro, tornavam a

questão agrária em autêntico "negocio agrário".)

De outro lado, após ter sido batido na Comissão Especial, Gou-

lart — apesar das fortes críticas vindas dos grupos nacionalistas

e de esquerda — volta-se novamente para o PSD. Em busca de apoio,

aceita mudanças no anteprojeto de Reforma Agrária do executivo, a

fim de torná-lo "menos radical" e, assim, aceitável para o conser-

vadorismo do PSD. Para isso, afastou toda a "assessoria gaúcha",

vinculada politicamente a Leonel Brizola, que não concordava em

fazer "concessões programáticas" no anteprojeto. Porém, serão in-

frutíferos os esforços do novo ministro da Justiça, Abelardo Jure-

ma, figura de relevo do PSD, a quem foi atribuída a específica ta-

refa de articular a antiga aliança PSD/PTB. (Jurema sintetizaria a

visão conciliadora do governo através de uma famosa frase: "O PSD

sem o PTB irá para a reação; o PTB sem o PSD irá para a Revolu-

ção".) Idêntica missão foi confiada a Tancredo Neves (PSD) ao ser

indicado líder da bancada do Governo na Câmara. Porém, o fosso en-

tre o PTB e o PSD aprofundava-se na razão direta da aproximação

deste com a UDN, os quais se alarmavam com a "agitação social", a

"desordem" e a "comunização crescente do país" promovidas — segun-

do estes — por Goulart, pelo PTB e pelas "forças subversivas"

(CGT, UNE, FMP, etc).

De outro lado, os setores nacionalistas e de esquerda, criti-

cavam Goulart pela sua indecisão e indefinição em relação a uma

série de medidas concretas de caráter nacionalista e popular que

poderiam ser tomadas pelo governo, independentes de qualquer re-

forma constitucional. Entre essas medidas — algumas delas defendi-

das pelo próprio presidente em seus discursos — ressaltavam as se-

guintes: regulamentação da Lei de Remessa de Lucros (aprovada pelo

Congresso, mas "engavetada" pelo Executivo); nacionalização das

concessionárias de serviços públicos, moinhos, frigoríficos e in-

dústria farmacêutica; intervenção no mercado de gêneros alimentí-

cios; monopólio das operações de câmbio pelo Banco do Brasil; mo-

nopólio das exportações de café pelo IBC; ampliação do monopólio

estatal do petróleo, etc.

Administrativamente pouco se realizava, pois o governo se con-

sumia em sucessivas crises políticas. Como assinalavam os observa-

dores políticos, havia — do ponto de vista administrativo — "uma

pasmaceira geral contaminando todas as hostes governistas"; da

mesma forma, o Congresso apresentaria em 1963 um dos seus períodos

de maior improdutividade legislativa. Esta realidade dava munição

aos setores de direita que alardeavam a "incompetência administra-

tiva" do Executivo e a "crise de autoridade".

O isolamento e debilidade política do governo

A sucessão de crises políticas advinha das contradições em que se

debatia o governo: ao mesmo tempo que agitava a bandeira do nacio-

nalismo e das Reformas — solicitando, pois, o apoio das massas po-

pulares e dos setores políticos de esquerda — Goulart, por outro

lado, protelava indefinidamente a realização de medidas populares,

afastava colaboradores ideologicamente progressistas, combatia os

setores independentes (não pelegos) do movimento sindical, conde-

nava abertamente iniciativas políticas de esquerda (em abril de

1963, na cidade de Marília, SP, usou a típica linguagem de direita

ao proibir um congresso "comuno-fidelista"). As concessões à rea-

ção não se reduziam a estes fatos, pois o governo reservava os

cargos mais importantes da administração federal (particularmente

aqueles responsáveis pelapolítica econômico-financeira) apenas pa-

ra os representantes das classes dominantes, indicava também "du-

ros" das Forças Armadas para estratégicos postos de comando e man-

tinha compromissos com o conservador PSD.

Sob a permanente desconfiança da direita e da esquerda, o go-

verno Goulart acabaria isolando-se politicamente. A ambigüidade e

a debilidade política do governo se mostrariam de forma definitiva

no episódio do Estado de Sítio. No dia 4 de outubro, o presidente

da República encaminhava ao Congresso mensagem solicitando a de-

cretação do Estado de Sítio em todo o território nacional, pelo

prazo de 30 dias. A justificativa do Ministério da Justiça escla-

recia que o Executivo necessitava de poderes especiais para impe-

dir "grave comoção intestina com caráter de guerra civil" que pu-

nha em "perigo as instituições democráticas e a ordem política".

Explicitamente eram indicadas algumas das situações internas que

perturbavam a ordem institucional: "manifestações coletivas de in-

disciplina" nas polícias militares de alguns estados; "sublevação

de graduados e soldados" (Revolta dos Sargentos) que punha em ris-

co a disciplina e hierarquia militares; as freqüentes reivindica-

ções salariais que passavam a "ser fatores de agravamento da crise

político-social" (na ocasião ocorria a greve dos bancários em São

Paulo e o PUA anunciava a decretação de uma greve geral caso aque-

la paralisação fosse julgada ilegal por parte da justiça traba-

lhista) e, por fim, o fato de existirem governadores de importan-

tes estados "conspirando contra a Nação". A ira de Goulart e de

seus ministros militares voltava-se particularmente contra o go-

vernador da Guanabara que, em entrevista a um jornal norte-ameri-

cano (Los Angeles Times), havia ridicularizado a autoridade do

presidente da República, além de insinuar que os militares brasi-

leiros estavam confusos e desorientados diante de uma administra-

ção inteiramente "desastrosa" para o país. Coerente com a "vocação

golpista" de seu partido, Carlos Lacerda conclamava o Departamento

de Estado a deixar de lado sua "passividade" face à grave situação

em que se encontrava o Brasil, presidido por um "totalitário à mo-

da sul-americana" e que "descambava para a esquerda". Não havia

dúvida de que o Estado de Sítio objetivava, imediatamente, a in-

tervenção na Guanabara e a conseqüente derrubada do conspirador-

mor da UDN. (Carlos Lacerda afirmaria, posteriormente, que havia

escapado, naqueles dias, de um atentado por parte de um comando

pára-quedista a mando de Goulart. Embora a denúncia fosse negada

por oficiais militares, a UDN e o PSD conseguiram aprovar a cons-

tituição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito a fim de apurar

a denúncia de Lacerda.) Logo a seguir, caso manifestasse solidari-

edade ao seu aliado da Guanabara, poderia "rolar a cabeça" do go-

vernador de São Paulo, Adhemar de Barros — acusado de fornecer ar-

mas (contrabandeadas da Bolívia) a grupos paramilitares ("milícias

patrióticas"). Mas, indagavam os setores de esquerda: quem garanti-

ria que Miguel Arraes também não fazia parte da "lista de sanea-

mento" elaborada pelos militares, com a inteira complacência de

Goulart? Idêntica pergunta faziam as lideranças sindicais e popu-

lares de todo o País acerca do destino que viriam a ter as organi-

zações em que militavam.

Embora por razões distintas, todos os grupos políticos e asso-

ciações de classe — à direita e à esquerda — opuseram-se à conces-

são do Estado de Sítio (apenas os setores "pelegos" do movimento

sindical e fração do PTB tradicionalmente fiel a Goulart tentaram

o apoio inútil à medida de força). Os setores nacionalistas e de

esquerda viam no Estado de Sítio uma grave ameaça às liberdades

democráticas e aos movimentos progressistas. Afirmava, por exem-

plo, uma nota do CGT: "Somos, por princípio, contrários ao Estado

de Sítio porque entendemos que a manutenção e ampliação das liber-

dades democráticas são meios insubstituíveis e necessários às lu-

tas contra os inimigos do Brasil e aos interesses da povo". A di-

reita, por seu lado, via no Estado de Sítio uma tentativa de golpe

tramada por Goulart a fim de permanecer no poder, tal como o fize-

ra Getúlio Vargas em 1937. Diferentemente da ditadura estadono-

vista, estaríamos, então, face a uma "ditadura esquerdizante",

proclamavam os setores de direita.

Quem dará o golpe?

Nos meses seguintes ao frustrado pedido de Estado de Sítio —

retirado pelo governo tão logo se deu conta da fragorosa derrota

que sofreria no Congresso —, ressurgiria, mais vigorosamente ainda

na cena política, o fantasma do golpe de Estado. Na visão da di-

reita era Goulart quem o articulava através de seu "dispositivo

militar" e com a colaboração de setores de esquerda. Enquanto a

direita promovia uma sistemática campanha alarmista, verberando o

"golpe de Jango", as esquerdas — que não deixavam de denunciar a

trama golpista da direita — levantavam suspeitas e desconfianças

face ao governo. Ainda no mês de outubro, como assinalou um cro-

nista político, as esquerdas se sentiriam "abandonadas por Gou-

lart".! Alguns fatos pareciam comprovar essa observação: substitu-

ição de Bocaiúva Cunha ("grupo compacto") . por Doute1 de Andrade;

contactos com o PSD; autorização da chamada "operação Arraes"

(treinamento o IV Exército, cujo objetivo foi o de fazer uma "cla-

ra advertência" ao "governador esquerdista" de Pernambuco) e a

condenação, por parte do governo, de um congresso das forças popu-

lares e de esquerda programado para fins de outubro em Recife. Em-

bora criticassem o governo, em virtude de suas constantes "idas e

vindas", as esquerdas entendiam que não lhes convinha romper poli-

ticamente com Goulart. Levavam em conta, para tal decisão, o avan-

ço golpista da direita. Novamente a esquerda nacionalista buscaria

convencer Goulart de que a sua única "saída", diante do seu cres-

cente isolamento político, era vincular-se de forma inequívoca e

definitiva com os setores populares e progressistas. Esta também

seria uma condição fundamental, argumentavam os setores de esquer-

da, para a efetiva realização das Reformas de Base e para se impe-

dir o golpe.

Uma longa entrevista de Goulart, concedida em novembro a uma

revista de ampla circulação em todo o País, ao mesmo tempo que

provocava contundentes críticas da direita (os líderes da UDN i-

dentificavam no depoimento do presidente um "esforço de preparação

de ambiente subversivo"), ia, por outro lado, reforçar as expecta-

tivas das esquerdas de influírem sobre a composição de um novo Mi-

nistério e de um novo programa de governo. No depoimento, em tom

pessimista e quase patético, Goulart reiterou a urgência das re-

formas ("desejo evitar que a crise caminhe para um desfecho caóti-

co e subversivo"); denunciou as "forças reacionárias" anti-

reformistas; responsabilizou a "deterioração das relações de tro-

cas" como principal causa das dificuldades cambiais do País e de-

fendeu enfaticamente a "intervenção dos trabalhadores na vida pú-

blica". Interpretando recente decisão política da Frente de Mobi-

lização Popular, Miguel Arraes, após se referir ao importante de-

poimento de Goulart, iria expressar o programa das forças popula-

res face ao governo. A certa altura, afirmava a nota do governador

de Pernambuco: "(...) se o presidente da República, fiel à sua

formação política e aos compromissos que tem com as massas traba-

lhadoras, deseja superar nossa aguda crise interna e manter nossa

política externa independente, ele precisa apoiar-se nas 'forças

populares' e com elas estabelecer um novo governo, capaz de elabo-

rar e executar um programa democrático, nacionalista e progressis-

ta". Mais abaixo era esclarecido que, no "novo governo", deveria

estar garantida a "participação de representantes das 'forças po-

pulares' em (seus) setores fundamentais".

Durante o mês de dezembro, a FMP — particularmente o seu setor

"brizolista" — acalentou a esperança de ver Brizola ocupar o cargo

de ministro da Fazenda, em substituição a Carvalho Pinto. Para a

direita, que se alarmava com a intensa mobilização popular (um dos

slogans dizia: "Contra a espoliação, Brizola é a solução"), a no-

meação teria o sentido inequívoco de uma "provocação" e seria a

prova definitiva da consolidação da esquerda dentro do governo.

(Afirmavam os "brizolistas" que o novo ministro, logo após a sua

posse, decretaria a "moratória no plano internacional".) Governa-

dores de Estado (com a exceção de Pernambuco, Sergipe e Piauí),

PSD e UDN ameaçaram com represálias imediatas. No plano interna-

cional, os EUA — através da embaixada no Brasil — declaravam que

suspenderiam todas as operações de financiamento e assistência,

além de bloquearem suas relações comerciais com o país (Carlos

Castello Branco, op. cit.). Depois de alimentar, por algumas sema-

nas, as ilusões das esquerdas, o próprio Goulart — que tinha ainda

vivo na memória o episódio da desastrada indicação de "Bejo" (Ben-

jamim Vargas) para a chefatura de polícia do Distrito Federal em

1945 — encarregou-se de "jogar água fria" na febril agitação dos

brizolistas. Para o Ministério da Fazenda foi designado um ban-

queiro, Nei Galvão. Segundo era voz corrente, tratava-se de um bu-

rocrata "despreparado para o cargo"; um "homem de centro-direita"

(Brizola diria que, com este ato, Goulart afastava as forças popu-

lares da "ante-sala do Ministério da Fazenda"). Igualmente tal de-

cisão desagradou frações das classes dominantes, pois Carvalho

Pinto — tido como um eficiente administrador — vinha, segundo es-

ses setores, tentando revitalizar algumas medidas de estabilização

propostas pelo Plano Trienal. A demissão de Carvalho Pinto repre-

sentou, assim, o rompimento de um dos últimos elos que a burguesia

brasileira ainda mantinha com o governo de Goulart.

O balanço do ano de 1963 revelaria de forma dramática o fra-

casso da política econômica do governo: o índice geral dos preços

alcançou 78% (previa-se 25%); a taxa do PIB chegou ao ponto mais

baixo que se conhecia nos últimos anos, 1,5%; o déficit da caixa

do Tesouro Nacional atingiu 500 bilhões de cruzeiros (previa-se

300 bilhões); os meios de pagamentos cresceram de 65% (previa-se

34%). Sem crescimento econômico e com uma vertiginosa inflação, o

descontentamento passa a ser generalizado: nunca o País assistiu,

num curto período de tempo, ao surgimento de tantos movimentos

reivindicatórios. Os "tempos de Goulart" singularizam-se dentro da

história política brasileira: neles, a política deixou de ser pri-

vilégio do parlamento, do governo e as classes dominantes, para

alcançar de forma intensa a fábrica, o campo, o quartel.

A POLITIZAÇÂO DA SOCIEDADE — ESQUERDA E DIREITA MOBILIZAM-SE

O recrudescimento da luta de classes no início dos anos 60 foi

responsável por uma intensa politização de inúmeros movimentos so-

ciais, além de implicar transformações no sistema partidário e na

vida parlamentar.

Uma das dimensões da crise do sistema partidário brasileiro

residiu no fato de que os partidos políticos legais — em número de

13 nas eleições de 1962 — mostravam-se incapazes de refletir, em

toda a sua extensão, a correlação de forças existentes no interior

da formação social. Igualmente era reconhecido que tais agremia-

ções políticas reproduziam com pouca fidelidade a diversidade das

tendências e dos conflitos ideológicos que perpassavam a realidade

social do País (O. Brasil de Lima Jr., O Sistema Partidário Brasi-

leiro).

A crise do sistema partidário: FNP versus ADP

A "crise de representatividade" dos partidos políticos eviden-

ciava-se por alguns sintomas característicos; nas duas últimas e-

leições, verificou-se tanto um aumento do número de votos em bran-

co e nulos ("votos de protesto"), como o número de alianças e co-

ligações (em alguns estados, assistiu-se à formação de "esdrúxu-

las" alianças entre o PTB e UDN; 47% dos eleitos pela Câmara Fede-

ral vieram de coligações).

A luta ideológica de classes — que se expressava pelo confron-

to entre diferentes orientações acerca das reformas sociais ("ra-

dical", "modernização-conservadora", anti-reformismo) e acerca do

nacionalismo (antiimperialismo, nacionalismo moderado, entreguis-

mo) implicará na divisão dos grandes partidos em alas e facções,

cujos pontos de vista sobre aquelas questões eram, freqüentemente,

irreconciliáveis.

Neste sentido, os dois maiores partidos conservadores do País

(PSD e UDN) — em 1962 detêm, juntos, 54% da representação na Câma-

ra Federal — refletiram em suas fileiras a polarização ideológica

que ocorreu no período de Goulart. O PSD — partido que sempre se

beneficiou da máquina administrativa do Estudo (no nível federal e

estadual) — não deixou de ter os seus "dissidentes", a "ala moça".

contrariamente às perspectivas da maioria dos membros do partido —

comprometida com a defesa dos grandes proprietários rurais e dos

"industriais tradicionais" —, este pequeno núcleo do PSD condenava

o anti-reformismo visceral de suas "elites" e apoiava as Reformas

de Base e algumas propostas nacionalistas. A UDN também teve a sua

ala progressista: a "Bossa Nova", que defendeu as Reformas (inclu-

sive a reforma constitucional), a política externa independente, a

lei de remessa de lucros, a democratização do ensino, etc. — teses

a que se opunha energicamente a ortodoxia reacionária dos setores

dirigentes do partido (Maria Victoria Benevides, A UDN e o Udenis-

mo). O PTB — que, ao contrário dos outros dois partidos, teve um

significativo crescimento em todo o período liberal-democrático —,

igualmente se encontrava fraccionado. O partido — cujos quadros

provinham principalmente do Ministério do Trabalho — apresentava-

se dividido em duas grandes facções: o "grupo compacto" (ou "ideo-

lógico") e o "grupo fisiológico". Enquanto o primeiro procurava

manter uma linha de independência face ao comando populista de

Goulart, o segundo aceitava, sem a menor restrição, a política de

conciliação do presidente da República, que acumulava também a

função de presidente nacional do PTB. Esta facção do partido pos-

tulava a realização de reformas sociais "não radicais" e, para is-

so, defendia uma maior aproximação com o PSD. Na formulação de San

Tiago Dantas, tratava-se de uma "esquerda positiva" — "construti-

va", pragmática, "não ideológica". Por seu lado, o "grupo compac-

to" destacou-se por uma negação da tradicional política cliente-

lística desenvolvida pela "velha guarda" petebista que controlava

a burocracia sindical e a máquina da Previdência Social. Contra o

"fisiologismo", entendia este grupo que o PTB deveria ter uma atu-

ação política que correspondesse a uma orientação ideológica mais

nítida e mais definida. Ao defender a realização de reformas de

base de cunho radical e propugnar medidas político-econômicas de

caráter anti-imperialista, o "grupo compacto" identificava-se com

os demais setores da esquerda nacionalista brasileira.

A Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) e Ação Democrática

Parlamentar (ADP) surgirão na cena política com o propósito de ar-

ticular, respectivamente, "progressistas" e "conservadores" que

atuavam nos diferentes partidos políticos. Tais organizações su-

prapartidárias constituíam-se, assim, na demonstração eloqüente do

aguçamento das contradições sociais e da conseqüente intensifica-

ção da luta ideológica de classes no seio da formação social bra-

sileira. O chamado "realinhamento do sistema partidário", nos anos

60, realizava-se, pois, através desses dois "superpartidos" dentro

do Congresso. Os mais importantes projetos e discussões que passa-

vam pelo Legislativo tinham, na verdade, suas decisões encaminha-

das por estas duas entidades. Nas votações em plenário, a fideli-

dade dos parlamentares era dada, em muitas ocasiões, não aos par-

tidos aos quais pertenciam, mas a uma daquelas organizações. Esta

situação levava algumas lideranças políticas conservadoras a la-

mentar a debilidade dos partidos e a "desordem" da vida parlamen-

tar: "(...) estas duas frentes parlamentares, FPN e ADP, em muito

concorreram para a balbúrdia que se instalou no Congresso, princi-

palmente na Câmara, durante todo o governo Goulart. Quase que os

partidos desapareceram e as lideranças, de governo e de oposição,

passaram a ter existência nominal (...)" (Abelardo Jurema, Sexta-

feira 13). Enquanto a FPN reunia a maioria dos deputados federais

do PTB e do PSB (mais os setores "nacionalistas" do PSD, UDN e

PDC), a ADP tinha seu núcleo básico proveniente da aliança

PSD/UDN/PSP e dos demais pequenos partidos. Até mesmo alguns depu-

tados do PTB — de uma diminuta "ala direita" — alinhavam-se com o

reacionarismo e o entreguismo da ADP.

A politização à esquerda

A luta política e a luta ideológica, no entanto, não estiveram

reduzidas à esfera político-institucional; pelo contrário, elas

alcançaram seus mais significativos desdobramentos a partir do mo-

mento em que envolveram outros setores da sociedade brasileira. De

um lado, estariam os trabalhadores urbanos e rurais, os soldados,

os estudantes; de outro, os empresários, os militares, a Igreja,

etc.

O sindicalismo brasileiro, no triênio 61/63, alcançou um dos

seus momentos de mais intensa atividade (de 1958 a 1960, no gover-

no Kubitschek, tinham ocorrido no País cerca de 177 greves, en-

quanto nos três anos seguintes foram deflagradas um total de 435

paralisações); o que mais distinguiu o movimento sindical nestes 3

anos, porém, foi o seu crescente engajamento nas lutas partidárias

dessa conjuntura de crise. "O envolvimento dos sindicatos nas lu-

tas políticas tornou mais urgente a necessidade de unificar a ação

dos sindicatos cujas direções seguiam a mesma orientação política.

Deste modo, na medida em que as disputas ideológicas envolviam o

sindicalismo brasileiro, assistiu-se à formação de diferentes or-

ganizações de coordenação que agrupavam sindicatos de tendências

diferentes" (L. Martins Rodrigues, Sindicalismo e Classe Operá-

ria).

Foi assim que surgiram, em fins dos anos 50 e início de 60, o

CPOS, o PUA, o PAC, o Fórum Sindical de Debates de Santos (SP),

etc. Da mesma forma que as demais uniões sindicais, o Comando Ge-

ral dos Trabalhadores (CGT) nasceu de movimentos grevistas: em 5

de julho de 1962, lideranças comunistas e trabalhistas que apoia-

vam o governo de Goulart criaram o Comando Geral de Greve a fim de

coordenar uma greve nacional em defesa de um "gabinete nacionalis-

ta". No mês seguinte, por ocasião do IV Encontro Sindical Nacio-

nal, três mil trabalhadores propuseram a transformação do CGG em

CGT. Embora contrariasse a legislação sindical brasileira — que

ainda hoje proíbe a criação de organizações sindicais horizontais

— o CGT funcionou até abril de 64; houve, inclusive, em abril de

63, uma tentativa no final frustrada pela Justiça — do então mi-

nistro do Trabalho, Almino Afonso, no sentido de legalizar esta

central sindical nacional, apesar dos veementes protestos das

classes dominantes.

No triênio 61/63, o CGT e outros organismos de alianças inter-

sindicais tiveram uma intensa atuação política. Diversos aconteci-

mentos e circunstâncias políticas levaram o CGT e estes órgãos a

decretarem (ou ameaçarem) greves políticas. Algumas das razões

dessas decisões foram: defesa da posse de Goulart em, agosto de

1961, pressão para convocação do Plebiscito, defesa da Revolução

Cubana, ameaçada pelos EUA por ocasião da "crise dos mísseis",

pressão sobre o Congresso para a aprovação das Reformas de Base,

apoio aos sargentos, negação do Estado de Sítio, etc. Para afronta

dos setores de direita, os líderes do CGT eram freqüentemente re-

conhecidos como interlocutores do presidente da República e de im-

portantes lideranças políticas do País. Daí a fama que passaram a

ter de "Quarto Poder" da República...

Não obstante tenha demonstrado uma relativa independência face

ao comando de Goulart e de sua assessoria sindical — particular-

mente por ocasião de algumas crises políticas e durante a realiza-

ção de algumas greves —, o CGT colaborou estreitamente com o go-

verno, apoiando-o publicamente na maioria de suas iniciativas po-

líticas. Tal compromisso era justificado pelo fato de a ideologia

nacional-reformista elaborada pelo PCB e hegemônica dentro do CGT

ser convergente com as propostas reformistas do governo Goulart.

Contudo, o controle político da entidade por parte de comunistas e

petebistas de esquerda sempre foi aceito com muitas reservas por

parte de Goulart; tentativas foram feitas pelo governo para "criar

a sua própria base no meio sindical" – foi o caso, por exemplo, do

apoio de Goulart à fracassada UST e ao arquipelego Ari Campista

por ocasião da eleição para a renovação da diretoria do CNTI, em

1963.

Razão parece ter um estudioso quando observa: "o CGT foi mais

uma organização política das lideranças comunistas e nacionalis-

tas, destinada a ampliar seu poder de pressão na coligação nacio-

nal-populista, do que um organismo sindical propriamente dito" (L.

Martins Rodrigues, op. cit.). Como comprovação desta última afir-

mativa, cita-se, entre outras, a preocupação secundária do CGT com

o fortalecimento dos sindicatos no interior das empresas. Ou seja,

absorvido pelas grandes batalhas nacionais — lutas pelas reformas

estruturais, pela limitação do capital estrangeiro espoliativo,

pela defesa das liberdades democráticas, pela ampliação do papel

do Estado na economia, etc. —, o CGT deixou de realizar um traba-

lho permanente junto às bases sindicais. De outro lado, deve ser

observado que as greves políticas deflagradas pela organização ti-

veram êxito apenas junto às empresas estatais ou controladas pelo

governo, sendo praticamente nula a participação do operariado de

São Paulo (empresas privadas, nacionais e estrangeiras) nessas pa-

ralisações de caráter político. Ressaltou um pesquisador que a

maioria das greves políticas alcançou sucesso quando obteve o "a-

poio tácito dos militares". Igualmente é sublinhado o fato de tais

greves coincidirem com períodos onde ocorria um pronunciado declí-

nio do salário real, pois "a inflação predispunha os trabalhadores

a sair às ruas" (K. Erickson, Sindicalismo no Processo Político do

Brasil). A debilidade político-organizativa deste chamado "Quarto

Poder" (ou "V Exército", como a ele se referia Jango) ficou defi-

nitivamente evidenciada quando, em abril de 1964, a classe operá-

ria brasileira assistiu — sem nenhuma resistência — à preparação e

ao desfecho dó golpe antipopular e antioperário.

A politização dos movimentos de trabalhadores do campo igual-

mente se constituiu numa realidade nova dentro da história políti-

ca brasileira. "No final dos anos 50, a amplitude que assume a

proletarização da força de trabalho e suas repercussões na conjun-

tura política do momento permitiram que se manifestasse uma reação

massiva dos foreiros e dos trabalhadores rurais, dando origem ao

que se chamou globalmente de 'movimento camponês'" (M. Nazareth

Wanderley, Capital e Propriedade Fundiária). As Ligas Camponesas

nasceram da resistência — muitas vezes armada — dos foreiros (pe-

quenos agricultores e não proprietários) contra a tentativa de ex-

pulsão das terras onde trabalhavam, movida pelos proprietários; de

1959 a 1962, as Ligas tiveram uma acelerada expansão em todo o

Nordeste. As Ligas contestavam, abertamente, a dominação política

e econômica a que estavam secularmente submetidas as massas ru-

rais. Em algumas localidades, ocorreram conflitos armados entre

"camponeses" e proprietários de terra; lideranças camponesas serão

perseguidas e assassinadas a mando dos latifundiários, alarmados

com a politização das massas rurais. Para Francisco Julião, depu-

tado federal por Pernambuco, cuja legendária fama advinha da lide-

rança que exercia sobre as Ligas, a luta é contra o latifundiário:

"não vemos inimigo no soldado, no padre, no estudante, no indus-

trial, no comunista; o inimigo é o latifundiário". Neste sentido,

a principal bandeira empunhada pelas Ligas foi a Reforma Agrária

Radical. Na luta pela Reforma Agrária, as Ligas associam-se às de-

mais organizações políticas de todo o País que, através de comí-

cios, passeatas, manifestos, pressões diretas sobre o Congresso,

clamam pela realização das Reformas de Base. (Julião e as Ligas

Camponesas, durante muito tempo, foram objeto de extensas reporta-

gens em conhecidas revistas semanais do País e do exterior [Time,

Look etc]). O Nordeste faminto e sedento, tal como era caracteri-

zado nessas matérias — onde se enfatizava também a Presença de

"perigosa literatura subversiva" no seio das Ligas —, estava a um

passo de uma "guerra camponesa".)

Paralelamente, os trabalhadores rurais organizam-se através de

sindicatos. Embora, de início, tais organizações tivessem uma ori-

entação distinta à das Ligas — partindo do pressuposto de que no

campo predominavam relações capitalistas, os sindicatos buscavam

reforçar a "consciência proletária" dos trabalhadores rurais, es-

timular as greves, etc. —, a atuação concreta de ambas tornou ir-

relevantes as suas diferenças ideológicas. Como observou a autora

acima, progressivamente os sindicatos incorporam em suas reivindi-

cações a luta pela Reforma Agrária. Após a promulgação do Estatuto

do Trabalhador Rural (março de 1963) — do qual um dos significados

é a tentativa do Estado de exercer, à maneira da CLT, um controle

mais direto sobre as atividades sindicais dos trabalhadores rurais

—, Julião propõe que as Ligas se constituam na vanguarda política

dos sindicatos rurais. "Quem faz parte da Liga, entre no Sindica-

to, e o que entra no Sindicato permaneça na Liga(...) O Sindicato

pedirá o aumento dos salários, o 13º mês, as férias, as indeniza-

ções, a escola, o hospital, a maternidade, uma casa decente (...)

A Liga, que não depende do Ministério do Trabalho, irá na frente,

abrindo o caminho e lembrando a todos que nem o salário, nem o 13º

mês são suficientes; são migalhas. O essencial é a terra" (M. N.

Wanderley, op. cit., grifos nossos). No entanto, deve-se reco-

nhecer que, a partir de 1962, diante da expansão do sindicalismo

rural, diminuiu consideravelmente a importância política das Li-

gas. O vanguardismo que Julião a elas pretendia conferir, igual-

mente não se concretizou.

Com orientação ideológica antagônica à dos movimentos popula-

res de tendência esquerdizante, setores da Igreja católica fomen-

tam a criação de sindicatos rurais "democráticos". Condenando Ju-

lião e as lideranças de esquerda, postulam que os trabalhadores

rurais apenas devem defender os seus direitos trabalhistas; comba-

tem, assim, qualquer envolvimento dos sindicatos na luta por uma

Reforma Agrária radical posto que, afirmam, a "propriedade privada

é um dos pilares da civilização democrática e cristã". Ao lado das

federações e sindicatos "democráticos", criam-se outros sob a di-

reção dos nacionalistas (PCB) e da "esquerda católica" (Ação Popu-

lar). Em dezembro de 1963, 26 federações de todo o País se reúnem

para a fundação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na A-

gricultura (CONTAG). Graças a uma aliança entre a AP e o PCB, os

"democratas", que contavam com o controle de 8 federações, saem

derrotados. A primeira diretoria da CONTAG passou a ser constituí-

da por 4 membros do PCB, 3 da AP e 2 "independentes". Uma das pri-

meiras decisões da CONTAG foi a de se filiar à CGT, integrando-se,

assim, às mobilizações conduzidas pelas forças nacionalistas (S.

Amad, op. cit.).

À frente antilatifúndio e antiimperialista também esteve vin-

culado o Movimento Nacional dos Sargentos. Além de reivindicarem

melhores condições salariais, alterações dos rígidos regulamentos

disciplinares etc, as camadas subalternas das Forças Armadas mani-

festavam-se contra a manutenção do Art. 138 da Carta de 1946, que

lhes vedava um direito elementar da "cidadania": o direito de se-

rem eleitos. As associações de sargentos de todo o país — muitas

delas vinculadas à liderança brizolista — uniam-se aos trabalhado-

res rurais e urbanos, aos estudantes, aos parlamentares naciona-

listas na luta pelas reformas e na denúncia da espoliação imperia-

lista. (Ficou célebre uma declaração pública de um líder do movi-

mento: "Se os reacionários não permitem as reformas, usaremos, pa-

ra realizá-las, nosso instrumento de trabalho: o fuzil".)

As manifestações dos setores subalternos das Forças Armadas —

severamente contestadas pela maioria da oficialidade — culminaram

com um grave acontecimento: a fim de protestarem contra a decisão

do STF, que denegou o recurso de dois sargentos eleitos no ano an-

terior, 650 sargentos da Marinha e da Aeronáutica, na madrugada do

dia 12 de setembro de 1963, rebelaram-se em Brasília. Apoderaram-

se de vários edifícios militares, equipamentos de rádio, serviços

de telefonia e telegráficos. Pouco mais de 12 horas foram sufici-

entes para tropas militares dominarem os sublevados. O CGT, a UNE,

a FPN solidarizaram-se com o movimento dos sargentos; o CGT amea-

çou decretar greve geral, caso o governo solicitasse o Estado de

Sítio, reivindicado por altos comandos das Forças Armadas. Apesar

de terem sido "exemplarmente punidos" — os líderes do movimento

foram transferidos para as mais longínquas guarnições do País —,

prosseguiriam até abril de 1964, os atos de "insubordinação" e de

"rebeldia" à hierarquia militar, por parte dos politizados setores

subalternos das Forças Armadas.

Era conhecida a tradição política do movimento estudantil bra-

sileiro. Em décadas recentes, empunhou as bandeiras da redemocra-

tização, do nacionalismo, da defesa do ensino público, da anistia

aos presos políticos, etc. Embora tivessem a Reforma Universitária

como reivindicação específica, os estudantes, através de sua enti-

dade nacional, a UNE, integraram-se também na frente antilatifún-

dio e antiimperialista. Postulam, como tarefa política imediata e

decisiva, a formação de uma "aliança operário-estudantil-

camponesa" (Constituição da UNE, 1963). Como observou um estudio-

so, para os estudantes que militam na UNE, a Reforma Agrária e a

Reforma Universitária são simples momentos da "dialética social".

Argumentava, assim, um documento da entidade: "A aliança com os

operários, camponeses, intelectuais progressistas, militares, de-

mocratas e outras camadas da vida nacional deve ser incrementada

na certeza de que, entrelaçando nossas reivindicações, torná-las-

emos infinitamente mais fortes. Esta aliança implica em fazer da

reforma agrária bandeira dos estudantes, do mesmo modo que as

transformações em nosso ensino possam ser objetiva e subjetivamen-

te aspiração de operários e camponeses; e assim por diante" (Octa-

vio Ianni, O Colapso do Populismo no Brasil, grifos nossos). Na

UNE defrontavam-se, neste momento, diferentes tendências da es-

querda brasileira: PCB, PC do B, AP, Política Operária (POLOP),

Quarta Internacional e outros grupos menores. Na luta ideológica

que aí se trava, todos combatem o PCB. O apoio político que este

oferecia ao governo — excepcionais foram os seus desacordos com a

"política de conciliação" de Goulart — bem como a sua subordinação

aos estreitos limites da ideologia nacional-reformista, foram al-

gumas das duras críticas que o PCB sofria das demais correntes de

esquerda. Todas estas tendências — que se autoproclamavam de "es-

querda revolucionária" — condenam a estratégia, oficialmente pro-

pugnada pelo PCB, de aliança do proletariado com a "fração pro-

gressista" da burguesia brasileira como "exigência histórica" para

a consolidação da "revolução democrático burguesa" — etapa prévia

e necessária para a passagem ao socialismo. Algumas dessas corren-

tes de esquerda, postulando o marxismo-leninismo, propõem uma

"frente de esquerda" — e não uma "frente única" como defendia o

PCB — a fim de libertar a luta de massas do "reformismo" e da "po-

lítica pequeno-burguesa da colaboração de classes".

Embora aquelas tendências pouco ortodoxas fossem encontradas

no interior do movimento estudantil, a UNE não deixou de partici-

par ativamente da ampla frente antilatifúndio e antiimperialista

coordenada pela Frente de Mobilização Popular (FMP). À FMP vincu-

lavam-se o CGT, as Ligas Camponesas, a FPN, a UNE, o movimento dos

sargentos. Em certa medida, o "radicalismo" do movimento estudan-

til, onde o confronto entre as diversas correntes de esquerda era

bastante visível, contribuía para UNE pressionar o governo de Gou-

lart e a FMP mais para a "esquerda".

A contramobilização de direita

Não foram apenas os setores populares e progressistas que po-

liticamente se mobilizaram nesse período. Os empresários — bem co-

mo os militares e setores da Igreja Católica — organizaram-se para

defender seus interesses e para combater o avanço político dos mo-

vimentos sociais de orientação nacionalista e de esquerda. Num es-

tudo recentemente publicado, documenta-se, ampla e exaustivamente,

a atuação político-ideológica dos empresários, aglutinados em tor-

no do complexo IPES/IBAD, o qual teve um papel decisivo na contra-

mobilização de direita. (Todo este item se baseia no trabalho de

R. Armand Dreifuss, 7964: A Conquista do Estado.)

O Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), criado em fins

da década de 50, propunha-se o "ambíguo propósito de defender a

democracia"; durante os "tempos de Goulart" sincronizou suas ati-

vidades às de organizações paramilitares e anticomunistas, tais

como o Movimento Anticomunista (MAC), a Organização Paranaense An-

ticomunista (OPAC), a Cruzada Libertadora Militar Democrática

(CLMD) etc. Intimamente associado à Aliança Democrática Parlamen-

tar, o IBAD financiou generosa e ostensivamente os candidatos a-

poiados pela ADP nas eleições de 1962 (cerca de 650 que postulavam

as Assembléias Legislativas, 250 a Câmara Federal e vários gover-

nos estaduais). Em julho de 1962, o IBAD uniu-se ao Instituto de

Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), pois seus objetivos programá-

ticos eram plenamente coincidentes.

O IPES é fundado em fins de 1961; seus criadores são empresá-

rios — particularmente aqueles vinculados ao "bloco de poder mul-

tinacional e associado" — que "visavam a uma liderança política

compatível com sua supremacia econômica e ascendência tecnoburo-

crática". Tal objetivo era buscado, pois se afirmava que a "dire-

ção do país não podia mais ser deixada somente nas mãos dos polí-

ticos". Com essa proposição, os empresários pretendiam dizer, pelo

menos, duas coisas: a) o país não deveria ser dirigido por políti-

cos de "esquerda"; b) diante do crescente debilitamento político e

ideológico dos partidos conservadores e de direita, não deviam as

classes dominantes confiar apenas nos mecanismos tradicionais de

representação junto ao Estado burguês. O complexo IPES/IBAD procu-

rou desempenhar, assim, o papel de "verdadeiro partido da burgue-

sia — a vanguarda das classes dominantes — e seu estado-maior para

a ação política, ideológica e militar". Entre os objetivos perse-

guidos pela organização, destacavam-se: impedir a solidariedade da

classe operária; conter a sindicalização dos trabalhadores rurais

e a mobilização dos camponeses; apoiar as facções de direita den-

tro da Igreja Católica; dividir o movimento estudantil; bloquear

as forças nacional-reformistas no Congresso e nas Forças Armadas;

mobilizar a alta oficialidade militar e as "classes médias" para a

desestabilização do regime "populista". A tarefa "construtiva" do

IPES/IBAD estaria na sua proposta de uma nova ordem sócio-política

sob a hegemonia do capital multinacional e associado.

A ação política do complexo IPES/IBAD se fazia através de inú-

meros grupos de trabalho — constituídos por intelectuais, burocra-

tas e especialistas — que tinham acesso direto às Forças Armadas,

ao Executivo, ao Congresso, às associações de empresários, aos

sindicatos, à Igreja, aos partidos políticos, aos meios de comuni-

cação, etc. O IPES/IBAD igualmente financiou ativos grupos "demo-

cráticos" e "anticomunistas" que atuavam nesses diferentes seto-

res, tais como o Movimento Sindical Democrático, a Frente da Ju-

ventude Democrática, o Grupo de Ação Patriótica, o Movimento de

Arregimentação Feminina (MAF), a Campanha da Mulher pela Demorada

(CAMDE), o Serviço de Orientação Rural de Pernambuco (SORPE), a

Federação dos Círculos Operários, etc.

A ação ideológica do complexo direitista fez-se de múltiplas

formas: financiamento de importantes ornais da "grande imprensa" e

revistas que se alinhavam na luta anticomunista e anti-Goulart; na

edição de livros, jornais, revistas, panfletos, com ou sem a chan-

cela do IPÊS; realização de ciclo de conferências e estudos, semi-

nários, fórum de debates; patrocínio de programas de rádio e de

TV;produção de filmes, slides, cartuns, histórias em quadrinhos;

financiamento de centros de pesquisa, etc.

O complexo IPES/IBAD intensificava sua "ação conspiratória" à

medida que a crise econômica e a mobilização nacional-popular a-

profundavam-se; contando em sua fundação com cerca de 80 membros,

esse número, em meados de 1963, saltou para 500 empresários. Em

São Paulo, 70% da liderança da Federação das Indústrias do Estado

de São Paulo (FIESP) faz parte da organização de direita. Os re-

cursos financeiros do complexo IPES/IBAD provinham de industriais

brasileiros e estrangeiros, de banqueiros nacionais e multinacio-

nais, de proprietários rurais (cafeicultores, usineiros, pecuaris-

tas etc), de companhias de segurança e de publicidade, etc. Miguel

Arraes demonstrou com documentos que o IBAD recebeu contribuições

da Texaco, Shell, Ciba, Schering, Coca-Cola, IBM, Esso, Cigarros

Souza Cruz, Hanna Mining Corp., General Motors, etc. O IPES conse-

guiu ajudas financeiras de 297 corporações norte-americanas; con-

tribuições também vieram da Alemanha Ocidental, Inglaterra, Bélgi-

ca, etc. Recursos da Central Intelligence Agency (CIA), agência

governamental norte-americana, foram igualmente canalizados para

as campanhas do IBAD.

Diante das denúncias de deputados da FPN, criou-se uma Comis-

são Parlamentar de Inquérito para investigar o envolvimento do I-

BAD e do IPES na "corrupção eleitoral" ocorrida em 1962. Como as-

sinala o autor em cujo estudo nos apoiamos: "O IBAD foi fechado

por haver sido considerado culpado de corrupção política. O IPES

foi absolvido com base no fato de que não havia sido realizada pe-

lo Instituto nenhuma atividade incomum que infringisse os seus ob-

jetivos publicamente declarados (...) em sua Carta". O IPES, pois,

agia "sem aparecer", enquanto o IBAD era a sua "tropa de choque".

Esta estratégia da direita golpista foi sintetizada por Raul Pilla

— venerável liberal que saudou com entusiasmo a derrubada do regi-

me constitucional — ao observar que "duas instituições muito úteis

foram organizadas, uma visando estudos doutrinários para dissemi-

nar idéias e esclarecer os cidadãos, a outra para a ação política,

levando-as a cumprir seus deveres patrióticos" (grifos nossos).

Nesta "feliz associação" entre ciência e ideologia "iluminista",

por um lado, e ação política, por outro, ficava, pois, sintetizada

a práxis golpista.

Em abril de 1964, cumprindo seus "deveres patrióticos", seto-

res da chamada "sociedade civil" e do Estado, com o apoio do De-

partamento de Estado norte-americano, "salvariam" a Nação. Através

de um movimento político-militar, os "revolucionários" — como a-

firmou um de seus líderes, na comemoração do 18º aniversário do

golpe de 64 — buscavam repudiar um conjunto de realidades, ditas

"perversas": "as greves políticas que duravam meses, a de-

sorganização econômica, a inversão dos valores, a subversão dos

princípios da hierarquia e da disciplina, a incompetência adminis-

trativa, o oportunismo político e, em suma, a anarquia".

O GOLPE POLÍTICO-MILITAR

Analisando a política econômica brasileira nos últimos seis

meses do governo Goulart, um autor assinalou que o "governo vagava

quase sem rumo no mar tempestuoso das dificuldades da situação e-

conômico-financeira do País". Como foi anteriormente observado, as

medidas econômico-financeiras adotadas pela administração federal

— a partir do reconhecimento do fracasso do Plano Trienal — pas-

saram a se revestir de um sentido praticamente errático. Contudo,

o caráter transitório e instável dessas medidas não se devia ape-

nas a uma "incompetência administrativa", como proclamavam os crí-

ticos conservadores. Numa certa medida, as vicissitudes e dificul-

dades da política econômico-financeira — a desaceleração do cres-

cimento econômico e a aceleração do ritmo inflacionário — advinham

de circunstâncias que escapavam parcialmente ao controle go-

vernamental. De um lado, fatores de ordem estrutural contribuíam

decisivamente para neutralizar o combate às pressões inflacioná-

rias; de outro, o reduzido crescimento econômico — que se expres-

sava pela diminuição do nível de inversão — deitava também as suas

raízes na polarização política que caracterizava a conjuntura bra-

sileira nos anos 1962/1963. Como formulou um estudioso, a inversão

caiu "não porque não pudesse realizar-se economicamente, mas sim

porque não poderia realizar-se institucionalmente" (F. de Olivei-

ra, op. cit., grifos do autor).

A incontrolável alta do custo de vida, tendo como conseqüência

uma drástica redução do poder aquisitivo dos salários, foi respon-

sável pela eclosão de sucessivas greves durante todo o período —

greves que não mais se limitavam aos centros urbanos. Incentivada

pelo governo Goulart, cresceu a sindicalização no campo (calcula-

va-se que o número de sindicatos rurais, 300 em meados de 1963,

atingia o expressivo número de 1500 em março de 1964). Em 1963 o-

correram em todo o país 172 greves de trabalhadores. Era igualmen-

te significativo que as paralisações, a partir dos anos 60, deixa-

vam de acontecer predominantemente no eixo Rio—São Paulo. Em 1963,

por exemplo, 65% das greves foram deflagradas fora dos dois maio-

res centros industriais do País. O ano de 1964 prenunciava ser

também bastante agitado em termos de movimentos reivindicatórios:

em apenas 15 dias do mês de janeiro, ocorreram 17 greves na Guana-

bara. Em fevereiro e março, as paralisações de trabalhadores ru-

rais no Nordeste foram intensas; em Pernambuco, cerca de 300 mil

trabalhadores em engenhos e usinas desencadearam uma greve políti-

ca. Diante do lock out, aventado pelas classes patronais, os tra-

balhadores — a fim de evitar a intervenção federal no estado go-

vernado por Miguel Arraes —, suspenderam a greve de protesto. Na

Paraíba, Pernambuco, Minas Gerais e Goiás as invasões de terras

eram denunciadas com grande alarde pelos meios de comunicação.

A direita "fecha o cerco".

As esquerdas apóiam Goulart, desconfiando.

As classes dominantes tinham, assim, motivos para verem aumen-

tadas as suas apreensões: seus lucros e suas propriedades — tal

como apregoavam seus propagandistas — estavam sendo ameaçados e os

trabalhadores em greve não eram reprimidos pelas forças federais.

Em meados de janeiro, sob intensas críticas de setores da burgue-

sia associada ao capital multinacional e dos credores estrangei-

ros, Goulart regulamentou a Lei de Remessa de Lucros que tinha si-

do aprovada pelo Congresso há mais de 16 meses. Algumas semanas

atrás, para forte desagrado dos investidores estrangeiros, o pre-

sidente Goulart emitiu um decreto que implicava a "completa revi-

são de todas as concessões governamentais na indústria de minera-

ção".

Para a direita brasileira e para a embaixada norte-americana,

não cabiam mais dúvidas quanto à "esquerdização" do governo Gou-

lart. Duas graves denúncias passavam a circular com insistência

nos meios políticos, tendo ampla cobertura da imprensa em geral.

Bilac Pinto, presidente da UDN e porta-voz político do chefe do

Estado-Maior do Exército, gal, Castelo Branco, com grande alarde,

divulgou um documento onde se declarava que estava em curso no pa-

ís uma "guerra revolucionária"; mais especificamente, a "guerra

revolucionária" já teria alcançado a sua terceira fase — a da

"subversão da ordem e obtenção de armas". Ou seja, o país estava

prestes a assistir à "tomada do poder pelos comunistas". Denuncia-

va a direita que o governo Goulart insuflava as invasões de terra,

as greves operárias e de trabalhadores do campo, além de "distri-

buir armas a sindicatos rurais e marítimos". Na verdade, tratava-

se do início da intensificação da "guerra psicológica" contra o

governo constitucional, pois nenhuma prova concreta foi oferecida

quanto à veracidade dos fatos denunciados. O liberal Bilac Pinto

assim justificaria a completa ausência de provas: "em caso de fa-

tos notórios, a lei dispensa até mesmo as provas. Os tribunais di-

ariamente condenam na base da notoriedade dos fatos". A outra de-

núncia dizia respeito às "manobras continuístas" do presidente da

República. Afirmava-se que, com a proposta de Reforma Consti-

tucional, Goulart visava a alteração do dispositivo legal que ve-

dava a reeleição do presidente da Republica. Calculava a direita

que, com a extensão do voto aos analfabetos, com a realização das

reformas sociais e com o apoio das forças populares e de esquerda,

Jango seria imbatível nas eleições previstas para 1965. (Esta pos-

sibilidade levou importantes políticos — com os olhos voltados pa-

ra a presidência da República — a se afastarem ou hostilizarem

Goulart. Entre eles estavam Juscelino Kubitschek, Magalhães Pinto

e Leonel Brizola.)

Se a direita "fechava o cerco" sobre o governo federal, nem

todos os setores de esquerda apoiavam incondicionalmente o presi-

dente da República. Embora tivessem tido um comportamento unânime,

ao aplaudirem as medidas nacionalistas do início do ano, as es-

querdas consideravam inadmissível, por exemplo, que o governo man-

tivesse em vigência a Instrução 263 da SUMOC; esta, ao liberar o

câmbio, provocou forte desvalorização do cruzeiro, bem como uma

elevada alta do custo de vida. Igualmente, causava "viva desconfi-

ança nos meios progressistas a abertura de negociações para o re-

escalonamento das dívidas do Brasil com seus credores em bases

confusas". Setores da FMP — particularmente os "brizolistas" que

aí tinham hegemonia — também levantavam suspeitas quanto às inten-

ções "continuístas" de Goulart que, segundo aqueles grupos, teria

o apoio da direção do Partido Comunista Brasileiro.

No dia 15 de janeiro, um experiente jornalista político escre-

via, com todas as letras, em sua bem informada coluna: "Março pas-

sou a ser o mês do golpe" Direita e esquerda acusam-se reciproca-

mente quanto à a autoria desse possível "ato contra a democracia".

Mas, enquanto os grupos de direita, civis e militares, aglutina-

vam-se e passavam à ofensiva contra o governo Goulart, este nem

tinha o pleno apoio das esquerdas nem estas conseguiam superar su-

as divergências internas para uma ação comum antigolpista. (A ri-

gor, nunca passou de arma propagandística, forjada pela direita, o

"golpe tramado pelas esquerdas".) Incumbido por Goulart, San Tiago

Dantas, em princípios de fevereiro, tentaria unificar os setores

políticos progressistas através de uma Frente Ampla — que iria do

PSD ao PCB. O "programa mínimo" da Frente incluía emendas consti-

tucionais concedendo voto aos analfabetos, elegibilidade dos pra-

ças e sargentos, revisão do art. 141 da Constituição (que impunha

o pagamento à vista e em dinheiro nos casos de desapropriações de

terra), legalização do PCB e negociação de uma moratória da dívida

externa. Como objetivos imediatos, pretendia-se garantir a aprova-

ção das reformas e o fortalecimento político do governo diante das

ameaças golpistas vindas da direita. Com a exceção do PCB, todos

os demais grupos de esquerda rejeitavam a inclusão do PSD numa

possível frente de "forças progressistas".

O comício do dia 13, sexta-feira

As desconfianças de setores da esquerda face ao governo Gou-

lart ainda eram muito intensas; a proposta de aliança com o PSD

contribuiu para aumentarem as suspeitas quanto à persistência da

política de conciliação de Jango. A efetiva "guinada para a es-

querda" do governo Goulart, na visão das esquerdas, apenas ocorre-

ria com o "Comício de 13 de março" — o comício das Reformas. Orga-

nizado pelo CGT e pela assessoria sindical de Goulart (Gomes Tala-

rico, Crockat de Sá e outros), o comício da Guanabara — ao qual

deveriam seguir-se outros nos maiores centros urbanos do País —

visava demonstrar o apoio popular às propostas de Reformas de Base

do governo. Além disso, o Executivo pretendia também pressionar o

Congresso Nacional no sentido de que este aprovasse rapidamente os

projetos a ele encaminhados.

Na história da chamada "democracia populista" brasileira, pou-

cos atos públicos tiveram tanto impacto e repercussão política

quanto o comício daquela sexta-feira 13. Com amplo apoio oficial e

sob a proteção dum rigoroso esquema de segurança montado pelo I

Exército, cerca de 200 mil pessoas demonstraram de forma muito

significativa o elevado grau de politização que começava a atingir

diferentes setores da sociedade brasileira. No extenso mar de car-

tazes e de faixas empunhados pela massa popular, liam-se alguns

slogans que inquietariam as classes dominantes e atemorizariam as

classes médias: "Reformas ou Revolução"; "Forca para os gorilas!";

"yankees, go home"; "Defenderemos as Reformas à bala!"; "Legalida-

de para o PCB"; "Reeleição de Jango!". No palanque, ministros de

Estado, militares, governadores de estado, deputados, dirigentes

S1ndicais, lideres estudantis comprimiam-se ao lado do presidente

da República. Após 3 horas de inflamados discursos, Goulart encer-

rou o ato anunciando a promulgação de dois decretos: o da naciona-

lização das refinarias particulares de petróleo e o da desapro-

priação das propriedades de terras (com mais de 100 hectares) que

ladeavam as rodovias e ferrovias federais e os açudes públicos fe-

derais. Prometeu também enviar ao Congresso outros projetos de re-

formas (agrária, eleitoral, universitária e constitucional); anun-

ciou ainda que nos próximos dias decretaria algumas medidas urgen-

tes "em defesa do povo e das classes populares" (tabelamento de

aluguéis, controle dos preços etc). No seu discurso, Goulart ata-

cou "democracia dos monopólios nacionais e internacionais", as

"associações de classes conservadoras", a "mistificação do antico-

munismo", a campanha dos "rosários da fé contra o povo", os "pri-

vilégios das minorias proprietárias de terras", etc. Contudo, o

radicalismo esquerdizante ficou por conta do líder nacional dos

"Grupos de Onze", Leonel Brizola. Pouco antes da fala de Goulart,

Brizola, através de um eloqüente discurso, defendeu o fim da "po-

lítica de conciliação" e postulou a emergência de um "governo na-

cionalista e popular". Criticando severamente o Legislativo ("con-

trolado por uma maioria de latifundiários, reacionários e ibadia-

nos"), o líder nacionalista propôs a "derrogação do atual Congres-

so"; pediu, assim, a convocação de uma Assembléia Constituinte

(nos dias seguintes, a palavra de ordem do brizolismo seria:

"Constituinte sem golpe!").

A rigor, os dois decretos emitidos pelo governo tinham efeitos

bastante limitados: o da nacionalização das refinarias não atingia

senão as empresas nacionais (a lucrativa distribuição dos produtos

petrolíferos continuava com a Esso, Shell, Texaco, etc); de outro

lado, o decreto da SUPRA — como o próprio Goulart reconheceu em

seu discurso — não era senão o "primeiro passo" na direção da Re-

forma Agrária. As esquerdas, no entanto, comemoraram com entusias-

mo o significativo comparecimento popular ao comício; alguns seto-

res destacaram, com grande regozijo, o "radicalismo das manifesta-

ções populares". Neste sentido, um dos líderes brizolistas comen-

taria: "Perante cerca de 200 mil pessoas, foi sepultada, na praça

da República, a política de conciliação". Mas, um pouco mais adi-

ante, o mesmo político advertiria para as possíveis vacilações de

Jango: "O presidente João Goulart — como disseram Arraes e Brizola

— conta com o povo para a grande transformação. Mas é preciso não

esquecer que, na Legalidade e no Plebiscito, o povo também se mo-

bilizou e tudo parecia encaminhar-se para as decisões almejadas. O

governo vacilou, perdeu-se numa teia de pequenas manobras (...). O

momento exige, além de palavras, decisões audazes e rápidas e o

reconhecimento de que o dia 13 foi a iniciação de uma nova etapa

da história brasileira" (Neiva Moreira, in Paulo Schilling, op.

cit., grifos nossos). Entre as "decisões audazes e rápidas", esses

setores nacionalistas exigiam: "ministério nacionalista e popu-

lar"; "afastamento dos militares suspeitos e golpistas"; "revo-

gação da Instrução 263"; "congelamento dos preços"; "intervenção

federal na Guanabara, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do

Sul", etc.

De fato, 13 de março de 1964 pode ser considerado um marco de-

cisivo na recente história política brasileira. Para grande decep-

ção das esquerdas, o dia 13 significaria não a emergência de um

governo nacionalista, democrático e popular mas, sim, o último ato

da chamada "democracia populista". A partir do dia 13 de março —

enquanto as esquerdas se dividiam em discussões acerca da compo-

sição da frente ampla —, a direita passava inteiramente à ofensiva

do movimento social.

A ofensiva golpista

Desde o início de março, setores das classes médias e da bur-

guesia, sob a bandeira do anticomunismo e da defesa da proprieda-

de, da fé religiosa e da moral, saíram às ruas em diversas capi-

tais a fim de Pedir o impeachment do governo federal. Entre estas

manifestações civis, destacou-se a "Marcha da Família com Deus pe-

la Liberdade", realizada em São Paulo, no dia 19 de março, reunin-

do cerca de 500 mil Pessoas. Organizada por movimentos femininos —

com a inteira colaboração do governo do estado de São Paulo, de

setores da Igreja Católica, da FIESP, da Sociedade Rural Brasilei-

ra —, a Marcha foi encerrada com eloqüentes discursos de deputados

do e da UDN contra o governo de Goulart. Como observou um estudio-

so, tais demonstrações públicas tinham o propósito de "criar clima

sócio-político favorável à intervenção militar, bem como de inci-

tar diretamente as forças armadas ao golpe de Estado" (Décio Saes,

"Classe Média e Política", In: Brasil Republicano, vol. 3). Estas

manifestações civis — onde praticamente era inexistente a presença

popular e operária — nunca foram "espontâneas"; além de se inspi-

rarem em campanhas anticomunistas realizadas em outros países,

sempre foram estimuladas e incentivadas pelos conspiradores na á-

rea militar.

Apesar de ter sido precipitada pelo comício do dia 13, a in-

tervenção das Forças Armadas, na verdade, vinha sendo preparada

desde os primeiros dias em que Goulart tomara posse no regime par-

lamentarista. Se naquela ocasião era reduzido o número dos "cons-

piradores de primeira hora", vários acontecimentos ocorridos no

período, envolvendo as forças armadas (Revolta dos Sargentos; Es-

tado de Sítio; atritos entre oficiais e setores políticos naciona-

listas; freqüentes substituições de ministros militares no governo

etc), contribuíram para aumentar o quadro dos descontentes. Na

perspectiva da alta oficialidade militar, no País e no interior da

corporação vinham sucedendo-se "situações intoleráveis": "quebra

da disciplina e da hierarquia", "subversão da lei e da ordem",

"crise de autoridade", "caos administrativo". A conspiração nos

meios militares, inicialmente desarticulada e dispersa em várias

"células de oficiais", conseguiu unificar-se mediante a liderança

do gal. Castelo Branco, empossado na chefia do Estado-Maior do E-

xército em setembro de 1963.

Uma semana após o comício do dia 13, num memorando de caráter

reservado à alta hierarquia do Exército, o gal. Castelo Branco fa-

ria graves considerações sobre a situação político-institucional

do país. Neste documento advertia-se para o perigo representado

pela convocação de uma Constituinte ("a ambicionada Constituinte é

um objetivo revolucionário pela violência com o fechamento do atu-

al Congresso" que implicaria a "instituição de uma ditadura síndi-

co-comunista") e para o desencadeamento de "agitações generaliza-

das do ilegal poder do CGT". A retirada do apoio militar ao gover-

no Goulart foi sintetizada no seguinte trecho: "os meios militares

nacionais e permanentes não são propriamente para defender progra-

mas de governo, muito menos a sua propaganda, mas para garantir os

poderes constitucionais, o seu funcionamento e a aplicação da

lei". Aqui estava a senha para o início da ofensiva na área mili-

tar. No entanto, a data para a deflagração do movimento visando à

derrubada do governo Goulart ainda não tinha sido decidida pelos

altos comandos militares. Nesta altura, julgava-se que o consenso

quanto à "solução cirúrgica" ainda não tinha sido conseguido no

interior da alta oficialidade. Além dos "moderados" ou "legalis-

tas", falava-se na existência de um "sólido dispositivo militar"

de sustentação do governo.

Uma nova revolta no seio dos setores subalternos das Forças Arma-

das contribuiu para que o problemático consenso fosse imediatamen-

te alcançado. Foi a chamada "Revolta dos Marinheiros". No dia 26

de março, mais de 1000 marinheiros e fuzileiros navais reuniam-se

no Sindicato dos Metalúrgicos (Guanabara), a fim de comemorar o

segundo aniversário da proibida Associação dos Marinheiros e Fuzi-

leiros Navais do Brasil. Um contingente de fuzileiros navais, en-

viado para prender os manifestantes, insubordinou-se e solidari-

zou-se com seus camaradas revoltosos. Tendo como intermediário o ,

CGT, o governo convenceu os rebelados a se entregarem, levando-os

presos a um quartel. Contudo, em poucas horas estes sairiam li-

vres, anistiados pelo novo ministro da Marinha. (Comentou-se que

este oficial tinha sido escolhido por Goulart, algumas horas an-

tes, a partir de uma lista elaborada pelo "ilegal CGT".) A suble-

vação dos marinheiros, a anistia e a nomeação do novo ministro a-

tingiram a alta oficialidade das forças armadas como uma "ver-

dadeira bomba". O Clube Militar e o Clube Naval denunciaram com

veemência o "ato de indisciplina acobertado pela autoridade cons-

tituída, destruindo o princípio da hierarquia". Estava, assim, se-

lada a sorte de Goulart.

Segundo um historiador, naqueles dias, "o gal. Castelo Branco

dissera aos conspiradores civis que a demissão do ministro da Ma-

rinha seria o sinal para a deposição de Jango". A partir de agora,

o golpe tinha data marcada: dia 2 de abril. Neste dia estava pre-

vista outra "passeata-monstro" de oposição no centro da Guanabara.

Calculava-se que esta "manifestação civil" daria a suficiente "co-

bertura política para a intervenção militar (T. Skidmore, op.

cit.).

Apesar dos evidentes sinais da trama golpista, Goulart surpre-

enderia os seus mais íntimos e diretos assessores ao decidir com-

parecer a uma reunião no Automóvel Clube, no dia 30 de março. Co-

memorava-se, na oportunidade, o aniversário da Associação dos Su-

boficiais e Sargentos da Polícia Militar da Guanabara. No discurso

que pronunciou, transmitido por rádio e televisão, Jango denunciou

as pressões que vinha sofrendo da direita. Para ele, a tentativa

de golpe contra o seu governo estava sendo financiada pelo imperi-

alismo e pela burguesia associada. Como vários autores comentaram,

o dramático pronunciamento de Goulart tinha ressonâncias semelhan-

tes às da carta-testamento de Vargas. "(...) O discurso não passou

de uma justificativa para a História, por parte de quem já tinha

decidido, não o suicídio físico como Vargas, mas o suicídio polí-

tico" (Paulo Schilling, op. cit).

O golpe vitorioso: nem resistência, nem "guerra civil"

Dois dias antes da data marcada pela alta oficialidade golpis-

ta, o gal. Mourão Filho (comandante da IV Região Militar, MG), na

madrugada do 31 de março, ordenou às suas tropas que se movimen-

tassem em direção ao Rio de Janeiro. Esta iniciativa tinha sido

aprovada pelos governadores de São Paulo e de Minas Gerais que in-

centivaram a antecipação da ação militar. Os golpistas vindos de

Minas aguardavam, no entanto, a decisão do comandante do II Exér-

cito, gal. Amaury Kruel, que até aquele momento vacilava em aderir

a uma ação conjunta contra o I Exército, sediado no Rio. Julgava-

se até aquele momento que, além do I Exército, o III Exército (ex-

tremo sul do País) se posicionaria ao lado da defesa da ordem

constitucional. Relata a "crônica do golpe de 1964" que, antes de

tomar a sua "grave decisão", o gal. Kruel telefonou para o presi-

dente da República instando-o para "abrir mão de suas bases polí-

ticas". Em outras palavras, Kruel exigia que Goulart proibisse o

CGT, o PUA, a UNE e todas as demais "entidades subversivas". Em

troca, prometia o militar, teria ele garantido o seu mandato pre-

sidencial. Diante da recusa de Jango, o gal. Kruel teria "lavado

as mãos" e ordenado que as tropas de São Paulo se movessem para o

Rio de Janeiro a fim de se unir às do gal. Mourão.

De outro lado, os soldados do I Exército, ainda leais ao go-

verno, sob o comando do gal. Âncora, encaminhavam-se para um con-

fronto, no Vale do Paraíba, com as tropas do gal. Kruel. No entan-

to, a luta armada que parecia ser iminente foi rapidamente afasta-

da. Diante da notícia de que Goulart havia abandonado o Rio rumo a

Brasília e informado ainda das "intenções pacifistas" do presiden-

te da República, o gal. Âncora — reunido com o gal. Kruel na Aca-

demia Militar de Agulhas Negras — desistia do combate. Na tarde de

1º de abril, passava com suas tropas para o lado dos golpistas.

Setores militares dispostos a defender a "legalidade" foram

dissuadidos por Goulart a não se envolverem numa "luta fratrici-

da"; outros, porém, fariam ainda algumas tentativas de resistir ao

golpe, mas a completa falência do comando do gal. Assis Brasil,

chefe do "dispositivo militar", fez frustrarem-se rapidamente es-

ses esforços isolados. Algumas horas depois de chegar a Brasília,

Jango voaria para Porto Alegre. Tendo na memória a "crise de agos-

to de 1961", os setores democráticos esperavam, mais uma vez, que

a "salvação" viesse do Sul.

Os tempos eram outros. Apesar dos veementes apelos de Brizola,

que tentava convencer Goulart acerca da necessidade de uma resis-

tência armada, o presidente da República, informado sobre impor-

tantes defecções dentro do III Exército, recusou a última cartada

em defesa da legalidade democrática. Novamente Goulart invocou a

inutilidade dos gestos heróicos que implicariam no "derramamento

do sangue inocente" (Moniz Bandeira, op. cit.). No dia 4 de abril,

Jango rumava para o exílio no Uruguai.

Três dias antes, a direita conseguia no Congresso Nacional a-

provar a declaração de vacância da Presidência da República. Na

madrugada do dia 2 de abril, o presidente da Câmara dos Deputados,

Ranieri Mazzilli, era empossado como presidente da República. Pou-

cas horas depois, estando João Goulart ainda em território nacio-

nal, o presidente dos EUA, Lyndon Johnson, através de um telegra-

ma, saudava calorosamente o novo governo brasileiro.

O golpe político-militar: made in Brazil?

Este telegrama, contudo, não poderia causar muita surpresa.

Durante todo o período, foi intensa a atuação da embaixada norte-

americana no combati político ao governo constitucional de Gou-

lart. (Tal era a intervenção do seu embaixador, Lincoln Gordon,

nos assuntos de exclusivo interesse do governo brasileiro, que o

humor popular criou e difundiu o seguinte slogan: "Basta de inter-

mediários: para Presidente, Lincoln Gordon!"...) Gordon era assí-

duo freqüentador do palácio presidencial. Sugeria nomes para com-

por os Ministérios, censurava as escolhas de "esquerdistas" para

as assessorias do presidente, criticava abertamente projetos e i-

niciativas governamentais. Militares, governadores de estado, de-

putados, empresários e dirigentes sindicais, eram convidados per-

manentes do ativo embaixador.

Entidades políticas e sindicais que faziam sistemática oposi-

ção a Goulart foram generosamente contempladas com recursos finan-

ceiros do governo norte-americano. Tudo que visava a minar o poder

do Executivo federal era incentivado pelos EUA. Thomas Mann, se-

cretário de Estado para Assuntos Interamericanos, declarou a res-

peito: "quando assumi o cargo, até mesmo antes, estávamos consci-

entes de que o comunismo estava corroendo o governo do Presidente

João Goulart, de uma forma rápida, e antes de chegar ao cargo já

tínhamos uma política destinada a ajudar governadores de certos

estados". Tal política ficou conhecida com o significativo nome de

"ajuda às ilhas de sanidade administrativa". Consistiu ela na li-

beração de verbas da Aliança para o Progresso apenas para aqueles

estados cujos governadores eram hostis ao governo federal. Desta

forma, foram beneficiados, entre outros, os estados da Guanabara,

São Paulo e Minas Gerais. Não havia, pois, nenhuma coincidência no

fato de seus governadores serem notórios e importantes "conspira-

dores civis" — respectivamente, Carlos Lacerda, Adhemar de Barros

e Magalhães Pinto.

Documentos do Departamento de Estado norte-americano, recente-

mente revelados à opinião pública, evidenciam o grau de participa-

ção e de envolvimento dos EUA na conspiração e execução do golpe

de abril de 1964. Examinemos aqui apenas o caso da chamada "Opera-

ção Brother Sam". No dia 31 de março aprovou-se, numa reunião no

Departamento de Estado um plano militar que consistia no envio às

costas brasileiras de um porta-aviões de ataque pesado (o Forres-

tal), destróieres de apoio, petroleiros bélicos, navios de muni-

ções e navios de mantimentos; aviões transportando armas e muni-

ções (110 toneladas), aviões de caça, aviões-tanques e um posto de

comando-transportado deveriam se deslocar para o Rio de Janeiro. O

objetivo de toda esta aparatosa operação era a de fornecer "apoio

logístico, material e militar" aos golpistas.

Contrariando os próprios prognósticos da CIA, que previa uma

"guerra civil" prolongada no Brasil, os "revolucionários de abril"

não precisaram disparar praticamente um só tiro para derrubar o

governo de Goulart. Alguns telefonemas foram suficientes para que

o golpe fosse vitorioso. Desta maneira, a sigilosa "Operação Bro-

ther Sam" pôde ser cancelada, antes mesmo de ser efetivada. Este

fato permitiu ao solerte embaixador norte-americano proclamar com

muita alegria, mas com idêntica solenidade, que a "revolução de

1964" tinha sido um "produto 100% brasileiro"! Três dias após o

golpe, Carlos Lacerda ouviria de Mr. Gordon a seguinte declaração:

"Vocês fizeram uma coisa formidável! Essa revolução sem sangue e

tão rápida! E com isso pouparam uma situação que seria profunda-

mente triste, desagradável e de conseqüências imprevisíveis no fu-

turo de nossas relações: vocês evitaram que tivéssemos que inter-

vir no conflito" (Carlos Lacerda, Depoimento). Não obstante todas

estas evidências demonstrem o envolvimento norte-americano no pro-

cesso de derrubada de Goulart, não se deve concluir — como insis-

tem certas interpretações mecanicistas — que o "golpe começou em

Washington" ou que a "CIA esteve por detrás de tudo". Nessa ver-

são, os agentes internos — decisivos na preparação e no desencade-

amento do golpe político-militar — não passariam de meros instru-

mentos da política do Pentágono...

As esquerdas: uma derrota inevitável?

Parte das razões que explicam a tranqüila e rápida vitória da

direita, residiu no comportamento político das esquerdas brasilei-

ras durante os "tempos do populismo". Analisando o "fracasso das

esquerdas" em 1964, um autor, assim, comentou: "na pior das hipó-

teses, a derrota era provável. Em qualquer caso, não era inevitá-

vel. Sobretudo, não era inevitável que fosse tão rápida, arrasado-

ra e desmoralizante (...)" (J. Gorender, "64: o Fracasso das Es-

querdas", in Movimento, nº 299). Avaliação incorreta da correlação

de forças existentes, isolamento político em relação às grandes

massas, radicalização apenas no nível da retórica, subordinação

política ao reformismo populista, foram algumas das razões da "ar-

rasadora derrota" sofrida pelas esquerdas em 1964.

Em virtude do CGT ter tido uma intensa e ativa participação

nas diferentes crises políticas do período, passou-se a acreditar

que ele teria uma força política capaz de barrar o caminho de

qualquer ação golpista de direita. O acesso fácil das suas cúpulas

dirigentes aos corredores e gabinetes palacianos — realidade pos-

sível em algumas "democracias populistas" — e a retórica radical

de seus pronunciamentos confundiram as esquerdas acerca do "pode-

rio do CGT". Nem sempre estar próximo do governo, constatariam a-

margamente as esquerdas, significa estar junto ao poder político

real. De outro lado, desconsiderava-se que o sucesso de algumas

greves políticas — o "grande trunfo" do CGT — deveu-se, em parte

ao apoio oficial; igualmente, como se viu, a maioria dessas para-

lisações pouco êxito obteve junto aos operários das empresas pri-

vadas. A greve geral, brandida tantas vezes ameaçadoramente contra

os setores de direita, fracassou; no dia 31 de março, apenas a

Guanabara teve paralisados os seus serviços de transporte (a re-

pressão militar caiu imediatamente sobre a liderança sindical, im-

pedindo-a, assim, de comandar a greve geral). Não obstante a clas-

se operária brasileira não tenha participado do golpe nem aderido

aos "vitoriosos", deve-se ressaltar que ela se manteve indiferente

aos insistentes apelos feitos pelo CGT em defesa da greve geral

antigolpista. Este acontecimento, no fundo, traduzia uma inquesti-

onável realidade: durante todo o período 1962/1963, foi reduzido o

trabalho do CGT junto às bases sindicais; longe de desqualificar a

importante atividade desenvolvida pela organização, no breve perí-

odo em que existiu, deve-se, no entanto, reafirmar aqui que o CGT

constituiu-se mais num organismo político — controlado pela es-

querda nacional-reformista — do que num organismo propriamente

sindical.

A "força revolucionária" das Ligas Camponesas igualmente reve-

lou-se numa decepcionante realidade para as esquerdas brasileiras.

No golpe, somente uma pequena resistência foi tentada por alguns

líderes populares junto aos trabalhadores rurais e foreiros do

Nordeste. Todas essas tentativas foram rapidamente vencidas pelo

forte aparato repressivo. Apesar de as Ligas, a partir da sindica-

lização rural, terem entrado numa fase de declínio, mantinha-se

ainda uma elevada expectativa política em relação a elas. Para is-

so contribuíam as freqüentes declarações de seus líderes. Era o

caso, por exemplo, de Francisco Julião. No dia 31 de março de

1964, abrigado no Congresso Nacional, o líder nacional das Ligas

Camponesas faria uma solene declaração: "Senhor presidente, senho-

res deputados, deixo esta tribuna prometendo ocupá-la mais vezes,

pois resolvi que este ano há de ser para mim o ano parlamentar;

resolvi freqüentar mais esta Casa, porque a minha no Nordeste já

está arrumada. Se amanhã alguém tentar levantar os 'gorilas' con-

tra a Nação, já podemos dispor — por isso ficamos no Nordeste o

ano todo — de 500 mil camponeses para a responder aos 'gorilas' "

(in M. de Nazateth Wanderley e outros, Reflexões Sobre a Agricul-

tura Brasileira). No dia seguinte, os "gorilas" do IV Exército da-

vam ordem de prisão ao governador de Pernambuco, Miguel Arraes,

sem que os camponeses — desarmados e desorganizados — nada pudes-

sem fazer diante da bem armada e bem organizada repressão militar.

De semelhante radicalismo verbal padeceu também a liderança de

Leonel Brizola. Seus famosos Grupos de Onze, criados a partir de

fins de 1963, revelaram-se frágeis demais para se anteporem a

qualquer ação golpista. Embora a direita denunciasse sistematica-

mente o perigo representado por esses grupos, não foi observada

nenhuma atuação significativa dos brizolistas durante o movimento

golpista. A rigor, os adeptos de Brizola limitaram-se, através das

ondas da Rádio Mayrink Veiga, a conclamar o povo a lutar contra os

"gorilas".

Talvez uma das maiores fantasias construídas pelas esquerdas

nacionalistas tenha sido a de crer no "legalismo das forças arma-

das". Na época falava-se freqüentemente nos "generais do povo" que

constituíam o inquebrantável "dispositivo militar" do gal. Assis

Brasil. Voltava-se também a difundir o velho chavão: "militar é o

povo fardado". Igualmente acreditou-se no chamado "sargentismo";

como advertiu um autor, julgava-se que "segurança do regime demo-

crático, em geral, e do governo Goulart, em particular, repousava

nos sargentos" (N. Werneck Sodré, Memórias de um Soldado). Descon-

siderava-se, assim, a "questão militar", tal como foi interpretada

por Gorender: "por sua coesão institucional essencialmente conser-

vadora e antidemocrática, as forças armadas tinham de reagir com

violência às ameaças à sua estabilidade hierárquica e ideológica.

Ameaças advindas da formação de uma ala, pequena porém influente,

de oficiais nacionalistas e, sobretudo, do surgimento de um movi-

mento explosivo de sargentos e marinheiros (...) As precipitações

infantis desse movimento (...) só fizeram enrijecer a reação con-

servadora da instituição militar" (Jacob Gorender, op. cit.).

Superestimando as suas forças (CGT, Ligas Camponesas, Grupos de

Onze, movimento dos sargentos, "dispositivo militar" constituído

de "oficiais nacionalistas e democráticos", etc.) e, conseqüen-

temente, minimizando o poder dos adversários, as esquerdas não

conseguiam enxergar o golpe de direita "virando a esquina". Numa

autocrítica recente, um ex-militante brizolista, num trecho de seu

depoimento, com sabor de anedota, observou: "sim, esperávamos o

golpe e estávamos preparando-nos febrilmente, com todas as forças,

para enfrentá-lo. Acreditávamos, porém, que o golpe, seguindo a

tradição brasileira, viria no segundo semestre (...)" (Paulo S-

chilling, op. cit.). Numa palestra pronunciada na ABI, Rio de Ja-

neiro, a 4 dias do desencadeamento do movimento militar, o secre-

tário-geral do PCB, Luiz Carlos Prestes — conforme o depoimento de

um ex-membro do CC do PCB à época do golpe de 1964 —, "enfatizou

que (...) Goulart tornava-se o porta-bandeira da revolução brasi-

leira e que não havia condições para um golpe reacionário. Se este

ocorresse, 'os golpistas teriam as suas cabeças cortadas'" (Jacob

Gorender, op. cit., grifos do autor).

Fragmentadas em diferentes correntes ideológicas e isoladas

das grandes massas rurais e urbanas, foram as esquerdas e os seto-

res populares que tiveram as suas "cabeças cortadas". Se, na retó-

rica do líder comunista, as "cabeças cortadas" tinham um valor

simplesmente metafórico, tragicamente, porém, na prática dos "ven-

cedores de abril", a expressão ganharia um significado real e con-

creto.

Desta forma, o imobilismo das esquerdas, em geral, se explica-

ria em virtude de uma incorreta, pois idealista, avaliação da cor-

respondência de forças existentes nos meses anteriores a abril de

1964; de outro lado, subordinadas e vinculadas ao "populismo jan-

guista", não conseguiram as esquerdas nacionalistas visualizar e

implementar uma ação independente em relação à política capitula-

cionista de Goulart. Como um "castelo de cartas" desmoronou o frá-

gil e incipiente poder das organizações e entidades que buscavam

representar as classes populares e trabalhadoras.

Conclusões

No período de 1961 a 1964, verifica-se a emergência, no inte-

rior do Estado burguês, de um Executivo que se distinguiu funda-

mentalmente pela tentativa de realizar um amplo programa de Refor-

mas (econômicas, sociais e políticas). Tais Reformas, no entanto,

constituíram-se em simples consignas políticas, pois nunca conse-

guiram ser implementadas — seja pela negativa do Congresso Nacio-

nal (que expressava a oposição de expressivos setores da chamada

"sociedade civil"), seja pela ambigüidade ou incapacidade política

do governo (no parlamentarismo e no presidencialismo). Como se

viu, quando o governo Goulart passou a demonstrar um maior empenho

na aprovação das Reformas, teve seu caminho barrado pelo golpe.

Estas reformas visavam, basicamente, a resolver alguns dos im-

passes enfrentados pelo capitalismo brasileiro no início dos anos

60. Não tinham, assim, nenhum caráter transformador; muito menos

revolucionário, como apregoavam setores das classes dominantes.

Elucidativo a este respeito foi o caso da proposta mais polêmica e

mais intensamente defendida pelo governo: a Reforma Agrária. Tal

reforma buscava responder às necessidades de expansão do capita-

lismo industrial brasileiro ao mesmo tempo que atendia aos impera-

tivos da preservação da ordem burguesa.

Se o governo Goulart não podia senão prever a oposição dos

grandes proprietários rurais — o que de fato ocorreu durante todo

o período —, supunha-se, no entanto, que teria ele o respaldo da

burguesia industrial brasileira para a consecução de seu programa

reformista. Em outras palavras, julgava-se que a chamada burguesia

nacional — cujos interesses o Executivo pretendia representar —

não podia senão se integrar na defesa da política nacional-

reformista. Ficou comprovado, posteriormente, para igual decepção

de setores da esquerda nacionalista — que postulavam a estratégia

da aliança de classes —, que nunca foi politicamente significativo

o compromisso da burguesia brasileira com a realização das refor-

mas. Conclusão análoga pode ser retirada acerca da questão do na-

cionalismo. O nacionalismo da burguesia brasileira sempre teve um

caráter pragmático; ou seja, dependendo das circunstâncias e das

suas conveniências, setores da burguesia brasileira se opõem ou se

associam ao capital multinacional.

A propósito do chamado nacionalismo do governo Goulart, deve

se afirmar que foi ele muito mais retórico do que uma efetiva rea-

lidade. Em contrapartida, a conciliação com o imperialismo consti-

tuiu-se numa constante durante os "tempos de Goulart". A mais im-

portante medida de caráter nacionalista tomada pelo governo — a

promulgação da Lei de Remessa de Lucros — somente se efetivou de-

pois de intensas manifestações dos setores populares. Recorde-se

que o projeto tinha sido aprovado pelo Congresso e aguardou mais

de 16 meses para ser sancionado, pois o Executivo aceitou e se

submeteu às pressões contrárias vindas do governo dos EUA e da

burguesia brasileira associada ao capital multinacional. Reconhe-

ça-se, contudo, que — apesar de não poder ser considerado um go-

verno eminentemente nacionalista — o Executivo denunciou freqüen-

temente a "espoliação imperialista" e sempre manteve estreitas re-

lações com os setores nacionalistas e populares.

Esta aproximação com as organizações políticas das classes po-

pulares e trabalhadoras fazia-se através do reconhecimento da le-

gitimidade de suas reivindicações, do apoio às entidades ditas i-

legais (CGT, PUA, etc), da não repressão às greves políticas, da

extensão da legislação trabalhista ao campo, do respeito às liber-

dades políticas, etc. As medidas populares e nacionalistas, toma-

das no início de 1964 e que culminaram com o Comício do dia 13,

aprofundaram a chamada "guinada popular e de esquerda" do governo

populista de Goulart. Esta vinculação com os movimentos populares

e de esquerda, no entanto, somente ocorre de forma mais intensa

quando o governo verifica que não lhe resta nenhuma alternativa de

sustentação política. Mas esta relação não se deu sem dificuldades

e sem problemas.

Durante todo o período, as desconfianças, por parte dos seto-

res populares e de esquerda, em relação ao governo Goulart, sempre

foram muito fortes. Foi ressaltado, por exemplo, que o mais impor-

tante documento produzido pelo governo (Plano Trienal) tinha um

inegável sentido antipopular e antioperário. A "guinada para a es-

querda" foi, inclusive, interpretada com muitas reservas, pois se

desconfiava das "manobras continuístas" de Goulart. Desta forma, o

governo Goulart nem conseguia o pleno respaldo das classes popula-

res e trabalhadoras, nem se legitimava face ao conjunto das clas-

ses dominantes.

Até o momento em que se constata o malogro do Plano Trienal, o

governo conseguiu um relativo apoio político de expressivos seto-

res da burguesia industrial brasileira (na posse, no Plebiscito,

na execução inicial do Plano Trienal etc). Mas, diante da inca-

pacidade do Executivo — de um lado, em reverter a tendência de es-

tagnação da economia e, de outro, em pôr fim às crescentes reivin-

dicações e greves das classes trabalhadoras —, a quase totalidade

da burguesia nacional passou a conspirar ativamente contra o go-

verno. A crise econômica e o avanço político-ideológico das clas-

ses populares e trabalhadoras passavam a ser encarados como reali-

dades sociais inaceitáveis. No limite, difundiam os ideólogos da

direita, as classes subalternas buscariam impor soluções não bur-

guesas à crise econômico-social. Tal ameaça — embora objetivamente

remota, como se tentou mostrar — provocou a unificação política

das classes dominantes.

A crescente radicalização política do movimento popular e dos

trabalhadores, pressionando o Executivo a romper os limites do

"pacto populista", levou o conjunto das classes dominantes e seto-

res das classes médias — apoiados e estimulados por agências go-

vernamentais norte-americanas e empresas multinacionais — a conde-

nar o governo Goulart. A derrubada do governo contou com a parti-

cipação decisiva das forças armadas, as quais — a partir de meados

de abril de 1964 — impuseram ao país uma nova ordem político-

institucional com características crescentemente militarizadas. As

reformas exigidas pelo capitalismo brasileiro seriam agora imple-

mentadas. Repudiando o nacional-reformismo, as classes dominantes,

através do Estado burguês militarizado, optariam pela chamada "mo-

dernização-conservadora", excluindo, assim, as classes trabalhado-

ras e populares da cena política e pondo fim à democracia populis-

ta.

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Revisão: Argo – www.portaldocriador.org

Indicações para leitura

I. Abordando os diferentes aspectos (econômicos, políticos e

sociais) do governo Goulart existe apenas uma obra na literatura

política brasileira:

Moniz Bandeira, O governo João Goulart: As Lutas Sociais no

Brasil. Do ponto de vista documental, o livro de Thomas Skidmore,

Brasil: De Getúlio a Castelo, constitui-se numa interessante in-

trodução para o conhecimento dos fatos relevantes no período Gou-

lart; documentos esparsos sobre o governo e sobre o período em

questão encontram-se em Edgard Carone, A Quarta República; uma vi-

são jornalística das principais questões políticas: Mário Victor,

5 anos que abalaram o Brasil. Um relato jornalístico comentado do

período que vai de meados de 1962 a abril de 1964 é oferecido em

Carlos Castello Branco, Introdução à Revolução de 1964.

II. Processos políticos e movimentos sociais no período:

Francisco Weffort, O Populismo na Política Brasileira; Octavio

Ianni, O Colapso do Populismo no Brasil; idem e outros, Política e

Revolução Social no Brasil; Caio Prado Jr., A Revolução Brasilei-

ra; S. Amad Costa, CGT e as Lutas Sindicais no Brasil; L. de Al-

meida Neves, CGT no Brasil; K. Paul Erickson, Sindicalismo no Pro-

cesso Político Brasileiro. Recentemente foi publicado o 3º vol.,

tomo III de O Brasil Republicano, contendo importantes ensaios so-

bre o período.

III. Economia brasileira no período:

Carlos Lessa, 75 Anos de Economia Brasileira; Francisco de O-

liveira, "Crítica à Razão Dualista", in Seleções, Cebrap; Maria

Conceição Tavares, Da Substituição de Importações ao Capitalismo

Financeiro; Octávio Ianni, Estado e Planejamento Econômico no Bra-

sil; Cibilis Viana, As Reformas de Base e a Política Nacionalista

de Desenvolvimento;

IV. Sobre o golpe político-militar:

R. Armand Dreifuss, 1964: A Conquista do Estado; Paulo Schil-

ling, Como se coloca a direita no poder (I e II); Marcos Sá Corrê-

a, 1964: Visto e Comentado Pela Casa Branca; Phyllis Parker, 1964:

O Papel dos Estados Unidos no Golpe de Estado de 31 de Março; Hé-

lio Silva, 1964: Golpe ou Contragolpe?; Jacob Gorender, "64: O

Fracasso das Esquerdas", in Movimento, nº 299. Há um elevado núme-

ro de relatos jornalísticos e de memórias sobre os eventos de mar-

ço/abril de 1964. Citam-se aqui apenas alguns deles: Alberto Dines

e outros, Os Idos de Março; Abelardo Jurema, Sexta-feira, 13; Ed-

mar Morei, O golpe começou em Washington.

V. Revistas com artigos sobre o período e sobre o golpe de

1964:

Revista Brasiliense; Estudos Sociais; Revista Civilização Bra-

sileira.