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O Guardador de Segredos - Davi Arrigucci Jr

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    Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel.

  • DAVI ARRIGUCCI JR.

    O guardador desegredosEnsaios

  • memria deSebastio Uchoa Leite

  • In Natures infinite book of secrecyA little I can read.Shakespeare Antony andCleopatra, I, 2.

  • Sumrio

    PrefcioPoesia e segredo

    1. Drummond meditativo2. Joo Cabral: o trabalho de arte3. A luz de So Lus4. O silncio e muitas vozes5. A poesia de Roberto Piva

    O mundo deliranteO cavaleiro do mundo delirante

    6. Nota sobre Ceclia7. O guardador de segredos

    Prosa do serto e da cidade1. O serto em surdina2. O cerco dos ratos3. Serto: mar e rios de histrias4. Tempo de espera5. Curiosidades indiscretas6. Quando dois so trs ou mais (Borges, Bioy, Bustos Domecq)7. Fala sobre Rulfo

    Imaginao e crtica1. Gilda: o senso da forma2. A imaginao andarilha3. Questes sobre Antonio Candido4. Em busca do sentido (Entrevista)

    Extra, extraCadver com batatas e molho ingls

  • Prefcio

    A variada matria deste livro, composto de ensaios avulsos, escritos de 1999 at opresente, pode no dar uma ideia exata do secreto propsito que os orienta e lhes d o mesmoar de famlia, apesar da diversidade aparente do assunto. Todos se voltam para a relaoproblemtica que vincula a literatura experincia histrica, e na trama desse enlace, seja emprosa ou verso, tentam entrever o sentido que se aninha em obras e dobras, para citar opoeta a quem o livro dedicado.

    Todo ensaio, sem deixar de vencer dificuldades anlogas s que do forma artstica a umpoema, a um conto ou a uma novela, antes de tudo uma tentativa de sondagem do que seoculta no mais fundo desse objeto esquivo que a obra. O alvo se constri segundo regrasprprias que o ensaio busca desvendar, num lance arriscado, para apropriar-se do outro etorn-lo princpio constitutivo de seu prprio ser. Apropriar-se do ser do outro torna-se, pois,um meio de construo no esforo de ler o sentido de outrem e de si mesmo.

    Como a natureza, a poesia ama ocultar-se e muitas vezes se d em forma de palavrascomo um segredo. Sabe-se que v a tarefa de procurar desvend-lo cabalmente, pois algosempre escapa do que se deseja interpretar, mas ainda assim os diversos escritos aquireunidos se arriscam na busca perplexa que lhes acena com a promessa de sentido.

    So Paulo, abril de 2010D. A. Jr.

  • POESIA E SEGREDO

  • 1. Drummond meditativo*

    Para todos ns, Carlos Drummond de Andrade a figura emblemtica da poesia modernano Brasil. No creio que Manuel Bandeira seja, como muitos creem, um poeta menor einferior a Drummond, mas Bandeira o grande poeta da passagem para a modernidade,enquanto Drummond o poeta central da experincia moderna brasileira. Ao considerar estefato, dei com o seguinte ponto que me pareceu fundamental: tudo na obra desse poeta noacontece seno por conflito.

    Realmente, tudo conflitivo em Drummond. E conflitivo desde o comeo de sua carreira.Ele experimentou contradies e dificuldades desde o incio para forjar o denso lirismomeditativo que o caracteriza. Quando consideramos seus grandes poemas, logo nos damosconta do atrito dos elementos contraditrios e da densidade reflexiva de sua lrica. At afigura humana do poeta, sua atitude caracterstica, parece estar associada a essa densidade dareflexo: o ser e o dizer ensimesmado. raro que uma foto sua escape ao ar pensativo comque nos habituamos a v-lo.

    E desde o princpio estamos diante desse trao decisivo do estilo ou do modo de ser daobra: a exigncia de uma mediao reflexiva para se chegar poesia. Um caminhoatravessado por dificuldades. Se compararmos com Manuel Bandeira, de imediato se notar adiferena: Bandeira d a impresso da mais fluente naturalidade. O prprio Drummondchamou nossa ateno, porm, para a fbrica altamente engenhosa de Bandeira, como estdito em seus Passeios na ilha, percebendo com preciso o quanto havia de cuidadosaconstruo naquela aparente espontaneidade.

    A primeira impresso que nos d Bandeira a do poeta ingnuo, na acepo queFriedrich Schiller empregou o termo no seu ensaio de fins do sculo XVIII: Poesia ingnua esentimental. Ingnuo seria o poeta que procede instintivamente, conforme a natureza,enquanto sentimental este seria o caso de Drummond seria o poeta reflexivo, ou antes,o poeta que tendo se perdido da natureza busca, por meio da reflexo, restabelecer asensibilidade ingnua.

    Com efeito, para Drummond a naturalidade parece constituir um problema, e a poesia, oobjeto de uma procura dificultosa. Assim, a questo fundamental essa poesia travada peladificuldade que parece ser a sina drummondiana. Procura da poesia no apenas um dosmelhores poemas de A rosa do povo, mas o traado do esforo que caracteriza suaaproximao ao potico. E basta lembrar outros poemas na mesma direo, comoConsiderao do poema, Oficina irritada ou O lutador, para sentir o peso dessadificuldade e quanto a mediao do esforo reflexivo uma exigncia ntima para o poeta. Sedermos alguma folga aos conceitos de Schiller, Drummond ser nosso poeta moderno esentimental.

  • No caso de Bandeira, a criao potica se mostra como natureza prolongada, e a crenana inspirao, na sbita manifestao do potico que constitui para ele o alumbramento,confirma o modo de ser ingnuo. No entanto, sabemos que o alumbramento bandeiriano essa linda palavra parece trazer consigo, pela trama dos sons, ecos simbolistas, entremeandoluz sombra e levando a iluminao a confundir-se com o mistrio uma noocomplexa. Exige do poeta uma atitude de apaixonada escuta e s se d quando ela, poesia,quer, mas tambm no basta para concretizar em palavras a inspirao, uma vez que estadepende tambm dos pequeninos nadas da linguagem, que podem estropiar um verso ou umaimagem. Um poema pode ser, ento, o resultado de um esforo construtivo de anos a fio:Bandeira gostava de lembrar a histria de sua sofrida estatuazinha de gesso, renitente ao lacreverbal com que buscava encerr-la num verso. E assim o Itinerrio de Pasrgada ocaminho difcil da aproximao poesia e a histria da aprendizagem do ofcio de poetaenquanto artista da palavra. Bandeira, que acreditava na importncia da inspirao at paraatravessar uma rua, no tinha, porm, nada de ingnuo.

    O caso de Drummond, no entanto, mais complicado. Sua concepo do potico exige areflexo como mediao necessria para o encontro da poesia. Ora, essa modalidade depensamento que a reflexo tem uma origem romntica. Os pr-romnticos alemes quedesenvolveram esse tipo de pensamento reflexivo, que nasce como uma fantasia do Eu sobre oEu, como uma forma de pensar sobre o pensar. um pensar sem fim que lembra o sonho,mediante o qual fundaram suas principais concepes.

    O dobrar-se do Eu sobre si mesmo, tal como o leitor se depara na obra drummondiana,parece evocar, ento, a meditao romntica centrada em si mesma, no prprio corao ondese acha o inalcanvel da reflexo. A frmula O meu corao maior que o mundo exprimeessa tendncia do pensamento para o infinito e o que no se pode alcanar, a vastidoimpreenchvel do corao em que se perde o pensamento.

    Na verdade, a reflexo se torna, para Drummond, a condio para chegar poesia e, auma s vez, a dificuldade que o impede de alcan-la. Esse o paradoxo central de que partesua obra, a contradio que est na raiz de seu percurso potico e que ele vive dramaticamentedesde o princpio e no apenas, como se poderia supor, no tempo da madureza e dos densospoemas meditativos, maneira dos Versos boca da noite, um dos mais belos poemas queescreveu. Neste e em tantos outros, podemos sentir a presena viva da tradio da lricameditativa do romantismo, que, nos pases de lngua inglesa, deu a linhagem que de Shelley,Keats e Swinburne vem at Yeats e alguns dos modernos, como o norte-americano WallaceStevens.

    Em Drummond sentimos a fora do pensamento como em nenhum outro poeta nosso; e,desde o comeo, ele experimenta dramaticamente as contradies que enfrenta: seu lirismonunca puro, mas, sem prejuzo de sua alta qualidade, sempre mesclado de drama epensamento. Alguns dos melhores crticos do poeta, como Antonio Candido, autor do notvelensaio Inquietudes na poesia de Drummond, acham que a obra inicial, marcada pelo humormodernista, em linguagem anticonvencional e irreverente, se organiza em torno do fato. Nomeu modo de entender, porm, nunca se trata propriamente do fato direto, mas do fatoenvolvido pela reflexo; h sempre mediao do pensamento, e o fato surge interiorizado: arepercusso do mundo na interioridade do Eu, no movimento caracterstico da reflexo, dopensar sobre o pensar, mesmo nos poemas-piada.

  • Esse pensar sobre o pensar no tende apenas a criar uma infinitude da progresso notempo; ele tambm um infinito da conexo. Benjamin, que estudou detidamente a reflexodos romnticos em suas relaes com o pensamento de Fichte, chamou a ateno para esseaspecto da questo, tal como aparece em Novalis, para quem pensar conectar infinitamente...O chiste, o Witz dos pr-romnticos alemes, uma forma de conexo, de articulao deelementos dspares ou contraditrios. E a essa tradio pode ser conectado tambm o poema-piada modernista de Drummond.

    No caso de nosso poeta, trata-se do dilogo com a herana romntica baseado numaatitude profundamente antirromntica. Drummond o primeiro a desconfiar de qualquersentimento; o primeiro a criticar e ironizar todo sentimentalismo, no sentido vulgar elacrimoso do termo. Em Sentimental, famoso poemeto de Alguma poesia trata-se daanedota do namorado que tenta escrever o nome da amada com letras de macarro e impedido pela voz da famlia mineira: Est sonhando? Olhe que a sopa esfria! , nota-se como os fatos se articulam com a reflexo nas complicadas dobras em que se envolve osentimento na busca de expresso. O poema objetiva na cena figurada pelo Eu a situaoexemplar de um idlio constrangido que serve, por sua vez, de mediao reflexiva para adificuldade de exprimir o prprio sentimento, a confisso amorosa pura e simples. V-secomo o poeta se perdeu da naturalidade, e a busca do natural deve ser mediada pela reflexo.Os fatos servem ao pensamento e s por meio deste se exprime o sentimento, transformado emsentimento refletido.

    O poema-piada, designao ao que parece criada por Srgio Milliet, facilita acompreenso do sentido humorstico reinante entre os modernistas, mas muito diferente emcada um dos poetas, como se observa em Oswald de Andrade, Manuel Bandeira ou MuriloMendes. Nas mos de Drummond est realmente perto do esprito do chiste pelo casamento decomicidade com seriedade, de graa acintosa com severa gravidade, envolvendo aambiguidade de tom prpria da conexo dos elementos opostos. Raramente se observa areduo de seus poemetos do incio ao mero anedtico: a articulao de elementosdivergentes ou contrastantes conduz ressonncia dos fatos na alma, sem se esgotar na purapiada. Assim, por exemplo, num poema mnimo como Cota zero (Stop./ A vida parou/ oufoi o automvel?), a atitude de avaliao implicada no ttulo e o tom interrogativo com queela se desenvolve, no qual contrastam perspectivas diversas sobre coisas muito diferentes,pem em movimento reflexivo os ritmos opostos da provncia e da cidade grande, daexistncia arrastada e da mquina, do atraso e do moderno, mas tambm da cota de vida e demorte que um cone da vida moderna como o automvel introduz na avaliao da prpriaexistncia. Mnimo, mas complexo.

    O chiste drummondiano uma espcie de engenho potico associativo, que d lugar ironia porque permite uma avaliao refletida das coisas discrepantes que nele se juntam e sechocam, como num relmpago iluminador. Embora o termo chiste no seja o ideal ele norecobre exatamente o campo semntico do Witz alemo, ou do wit dos ingleses nem do motdesprit dos franceses , parece melhor, no entanto, do que o poema-piada. Em Drummond,ele constitui tambm um meio de articulao, ou seja, uma forma de sintaxe, atravs da qual areflexo conecta a multiplicidade na unidade. o que se pode constatar pela leitura analticado Poema de sete faces, que abre seu universo lrico, sob o esprito do chiste.

    Como vrios dos grandes poemas de Drummond, esse j foi muito citado e se incorporou

  • experincia banal do leitor, de modo que perdeu muito do poder de surpresa. precisorestituir-lhe a fora originria, pela leitura renovada. W. H. Auden afirmou certa vez: [...]every poem is rooted in imaginative awe. E, de fato, essa raiz que o poema tem na surpresa,sua capacidade de despertar nossa imaginao pelo assombro, preciso escav-la pelaleitura, deixando-a mostra. No caso do Poema de sete faces, trata-se de resgatar at a suadificuldade: a complexidade das mltiplas faces que nele se articulam, mas que comeam pornos levar perplexidade. A cada uma das sete estrofes, temos uma face nova e surpreendente,sem que se perceba de imediato a coerncia do conjunto. H uma lgica interna, no entanto,que preciso desentranhar.

    As sete estrofes so irregulares, assim como os versos, mas a irregularidade no a doverso livre modernista, em que o poeta escapa aleatoriamente da contagem das slabas, masquase sempre para ajust-lo, com base na entonao e nas pausas sintticas, ao movimento dosentido, adequando o corte da linha sentena. Aqui a discrepncia no muita e pareceguardar ainda um senso da medida, com variaes pequenas em torno das sete slabas daredondilha maior. Irregulares, sem ser polimtricos ou completamente livres, mascaram adesordem, acompanhando as variaes do assunto. Os mais discrepantes chamam a ateno,como este: Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu corao. Parece a combinao deum de nove slabas com outro de sete, e nele se introduz o motivo fundamental do corao,ponto recorrente da interrogao reflexiva de onde se podem compreender as variaesmltiplas e aparentemente aleatrias do assunto.

    Basta parafrasear um pouco para se ter uma ideia da descontinuidade ostensiva damatria, mas o princpio a retomada de um lugar-comum da tradio. Com efeito, naprimeira estrofe, temos a cena do nascimento maldito do poeta, um tpico rodeado de ecosbblicos e modernos, at o clebre: Vai, Carlos, ser gauche na vida, uma viso pardica,rebaixada e irnica dessa verdadeira expulso do paraso. O termo gauche, galicismocorrente ao tempo do modernismo, evoca a viso baudelairiana do poeta, no famosoLalbatros: Ce voyageur ail, comme il est gauche et veule!. A figura desajeitada e fraca uma estrofe inteira desenvolver aqui o motivo da fraqueza e do abandono de Deus resultante desse destronamento pardico ressurge submetida errncia do desterrotranscendental.

    Ocorre, pois, uma inverso realista de expectativas romanescas ou sublimes em torno dafigura do poeta, enquanto ser bafejado pela inspirao divina, obrigado agora ao destinoerrante e dessacralizado na cidade moderna. Na segunda e na terceira estrofes se monta umcenrio de cinema mudo, como numa comdia de Mack Sennett ou Carlitos, onde reinam osdesejos frenticos e desencontrados, s voltas com a ideia fixa das pernas. O motivo erticorege a desordem urbana, tornando impossvel toda harmonia: A tarde talvez fosse azul,/ nohouvesse tantos desejos. A intromisso de uma frase de elegncia culta em meio estripuliaenumerativa das pernas demonstra como a mistura de nveis de estilo se tornou essencial viso modernista de Drummond, certamente muito chocada pela novidade da cidade grandeem contraste e confronto com as expectativas que deveria trazer seu olhar da provncia.Compacta nessa passagem, estar de fato contida toda a histria de uma experincia pessoal ehistrica, em seu trnsito de Itabira do Mato Dentro para Belo Horizonte e, depois, o Rio deJaneiro: a mudana da provncia para a cidade grande, que longe de ser a Paris de Baudelaire apenas a metrpole brasileira em que o bonde tem ainda cara de novidade. Mas a mudana

  • grande para quem sai do interior e vem para a cidade desconhecida, pois para quem cumpre opercurso, o mundo vasto e complexo. O tratamento realista e um tanto grotesco se ajusta aessa mistura discrepante da matria, marcada pela fixao sexual, correspondendoconcretamente a uma expanso da viso do mundo, de repente mudada pela chegada dostempos modernos.

    O que aqui se d a abertura ao sentimento do mundo que se expandiu aps a PrimeiraGuerra Mundial. essa a experincia histrica bsica que a poesia inaugural de Drummondtraz consigo como uma descoberta pessoal, como algo intensa e dramaticamenteexperimentado at as camadas profundas de sua subjetividade, tocada pelas mudanas domundo vivido. A poesia dessa descoberta, a princpio grotescamente materialista, pareceaumentar aos olhos de hoje, recoberta por uma ptina de pureza lrica ento inesperada, comoo prprio poeta soube captar mais tarde, recordando os filmes de Carlitos que viu mocinho, noCanto ao homem do povo Charlie Chaplin.

    O motivo das pernas contrasta com o tema meditativo do corao, introduzido pelo versolongo da terceira estrofe. Esse corao interrogativo pergunta pelo que no tem resposta. Ohomem srio que de repente aparece em meio baguna dos desejos lembra a cara parada deoutro cmico, Buster Keaton. Atrs de tudo, na defensiva, ele uma espcie de raisonneur dacomdia clssica, personagem que se interroga sobre o sentido das coisas e faz as vezes doautor, constituindo um notvel contraponto desabalada corrida atrs das pernas. Elecorresponde ao corao interrogativo, como uma outra face do Eu; por meio dele, percebe-secomo o poema vai se armando como a imagem projetiva do sujeito, como a cena urbana emque pululam os desejos em desacordo , como em Sentimental, um meio para a reflexo doEu sobre o seu prprio sentimento de estar no mundo. O Poema de sete faces encarna odrama da expresso desse sentimento, cujo centro, o corao, fornece o caminho da reflexo eo princpio de coerncia estrutural: por essa via, as mltiplas faces se articulam na unidade.

    As duas estrofes que restam, to famosas, recolocam o motivo do corao, centroirradiador do poema. Para nossa surpresa, agora vemos que o corao no apenas o lugar dainterrogao meditativa em contraste com a errncia exterior do desejo, mas tambm o lugarda vastido, do desejo ilimitado. Chegamos ao ponto do ensimesmamento e da descoberta deuma vastido interior maior que a exterior. Este ltimo aspecto se torna perceptvel pelamedida do corao quando relacionado com o vasto mundo: mais vasto meu corao.

    Esse sentimento da vastido tem sido lido pela crtica como um sentimento egotista deonipotncia do sujeito, arrebatado por uma iluso juvenil de poder diante do mundo. Nessesentido, creio, foi lido por Antonio Candido, no referido ensaio, em que formula as diversasequaes entre o corao e o mundo ao longo da trajetria do poeta. Contudo, a coernciaquanto posio do sujeito, tal como apresentada desde o incio do poema o serrebaixado, desajeitado e fraco que o poeta, abandonado em seu exlio terreno , exige, aocontrrio, que se considere a vastido lugar da falta que ama a imagem do sentimento deno poder do Eu, da impotncia que a base de sua viso irnica. O corao o lugar dodesejo impreenchvel, do ilimitado, de que a vastido um smbolo.

    O lugar da unidade, o corao, tambm o lugar da multiplicidade, da mxima disperso,o lugar onde, refletido, o sentimento de estar no mundo tambm sentimento de no poder. Porisso, tambm a que se agua o senso de insuficincia da linguagem na qual no se encontra aconsonncia adequada expresso desse ilimitado que no se pode dizer: aquilo a que falta

  • nome. Essa insuficincia ironizada na referncia rima; ao explicitar um procedimentoconstrutivo como esse, o poeta d curso ao tratamento cmico, de pardia e farsa, que adotaem passagens anteriores, buscando por meio do chiste a conexo da matria discordante.Sabemos que a rima, para que seja eficaz, deve configurar no apenas uma harmonia entresons de palavras correlatas, mas corresponder quela unidade entre som e sentido, cujaaliana secreta faz a fora da linguagem da poesia, como notou Valry. No caso, o que seexplicita a inadequao do procedimento, a desarmonia profunda que a rima no podevencer, pois que ser sempre aleatria e gratuita diante do que deveria exprimir, mas nopode. A insuficincia da linguagem, a luta por vezes v com as palavras se formula como umproblema j nesse incio da poesia de Drummond. A poesia, para esse poeta sentimental,torna-se o produto de um esforo, de um trabalho difcil, mediado pela reflexo.

    Essa impossibilidade de exprimir o que necessrio dramatizada, no extremo, naltima estrofe, e de novo ironicamente, como a cena de um idlio constrangido, anlogo ao deSentimental. Essa confidncia difcil, tratada num quadro de conversa de botequim, mostrade uma vez por todas que o desajeitamento, a gaucherie do poeta, a expresso condizente danaturalidade impossvel: a natureza que se busca, porque j no se tem, tambm umproblema para a linguagem. O fazer dificultoso ou problemtico uma exigncia do que seprocura exprimir. Desde o comeo, portanto, dizer o que vai no corao um caminhoaportico, no qual se enfrenta o risco da no passagem, o infinito que desafia o dizerensimesmado do poeta, debruado sobre o prprio corao.

    Visto assim, o Poema de sete faces, mediante o chiste, linguagem de articulao, dforma unitria s discrdias do corao, que preciso de algum modo exprimir: as facestumultuadas que pululam no mundo mas se organizam como sentimento refletido na forma dopoema. No princpio, o chiste j meditao, e sua forma reflexiva prepara os grandes elongos poemas que viro depois e nos daro, por fim, o perfil fino e preciso de um Drummondmeditativo.

    * Publicado em O Estado de S. Paulo, 12 jul. 2007, Caderno 2, pp. D6-D7.

  • 2. Joo Cabral: o trabalho de arte*

    1.

    A oposio que afastou a ideia inspirada de poesia de Manuel Bandeira da viso deCarlos Drummond de Andrade, para quem o poema foi sempre fruto de uma dificultosaelaborao, teve em Joo Cabral de Melo Neto uma continuidade notvel. Numa confernciafeita em So Paulo, em 1952, sobre Poesia e composio, que seu mais importante textode crtica fora de sua prpria obra potica e do ensaio sobre a pintura de Mir, ele ope otrabalho de arte inspirao, embora reconhea o entendimento possvel, em determinadaspocas, entre essas duas maneiras de fazer poesia.

    Em mais de uma ocasio, Cabral confessou ter descoberto a possibilidade de escreverpoemas e abandonar a laboriosa e v carreira de crtico literrio, quando leu No seidanar, do primo Manuel Bandeira. Era um poema em versos livres, distante j de qualquerconstrangimento de medidas da tradio, voltado para o sopro de liberdade moderna, quereverberava em Libertinagem, o grande livro bandeiriano de 1930.

    Mas a verdade que, diferentemente de Bandeira, a composio era para ele menos oato de aprisionar a poesia no poema, cujo momento propcio o poeta inspirado deviaaguardar, que elaborar a poesia em poema. Nessa direo, o potico s podia se mostrarcomo resultado de um esforo consciente de construo, afastando-se das tentaessurrealistas de inspirao onrica de seu primeiro livro, Pedra do sono, de 1942. Um poucomais tarde, em momentos de proximidade do silncio e da esterilidade, como na Fbula deAnfion severa travessia do deserto dos sentimentos e da inspirao , sua atitudeasctica se mostraria distinta tambm da concepo aportica que sempre regeu a procura dapoesia de Drummond, fundada na reflexo, desde o comeo de sua obra.

    Nessa continuidade histrica entre os modos de conceber a poesia para esses trsgrandes poetas, o ponto relevante , afinal de contas, a essncia da concepo do trabalhopotico. Joo Cabral no teve dvidas de batizar o seu com a exata expresso de trabalho dearte, contrapondo a ateno vigilante e a lucidez do fazer que o caracterizam espontaneidadeinstintiva. De sua perspectiva, atravs da funcionalidade precisa desse trabalho que o poeta,valendo-se de todos os recursos de que a inteligncia ou a tcnica pode servir-se, intensifica aemoo.

    Essa noo foi decisiva para o rumo que tomou sua obra, aproximando-a por vezes, commuita intimidade e frtil aproveitamento, da engenharia, da arquitetura e da pintura, como sepode ver no caso de Le Corbusier e no de Mir, cujas ideias e modo de ser o auxiliaram adefinir sua concepo de fazer artstico. Na verdade, ela tem razes materiais, segundo penso,na noo mais ampla de trabalho, como o gesto, que ao dar corpo ao desejo funda todaconstruo humana e lastreia nossa experincia histrica. Nesse sentido, creio que remonta

  • at, especificamente, ao trabalho dos cabras do eito nos canaviais, que o poeta aprendeu aadmirar menino, junto com os romances de cordel, primeira descoberta da poesia, nosengenhos da famlia em Pernambuco: Poo do Aleixo, Pacoval, Dois Irmos. O papel dessasrazes na constituio de sua potica no est de todo esclarecido.

    Embora evitasse a poesia da memria, foi da decerto que o poeta extraiu a seiva socialque, embora no parea primeira vista, alimenta seus versos, sua atitude tica e a peculiardico que desenvolveu para exprimir-se para alm de toda preocupao em comunicar. Eisso definiu o rumo de seu percurso potico, para o qual mais tarde seria to importante oencontro com a Espanha e suas tradies, que de algum modo reitera a experinciapernambucana de sua formao e os valores fundamentais que escolheu com extrema lucidezdesde cedo. De fato, aproxima-se com paixo da paisagem fsica e cultural espanhola, ondereencontra reforados aqueles valores na mo certa dos toureiros que sabe como domar aexploso, no talhe justo de Sevilha, na arte de superfcie de Mir, no canto a palo seco,na ametria dos versos medievais e nas rimas toantes dos romanceiros, entre tantas outrascoisas.

    Na fantasia meio ficcional e alegrica da secura da inspirao a que se presta Anfion, omito grego que j servira ao ideal classicizante de Valry, mestre da busca da poesia entoute lucidit, lhe impe outro conceito fundamental da composio: a noo de limite, que,casada do trabalho potico ou nele implicada, define sua atitude de estrita conteno de todoarroubo lrico e de esforo de condensao da linguagem.

    Assim, Joo Cabral tendeu a materializar na linguagem, com obstinado rigor expresso mgica no horizonte desencantado do poeta , todo o esforo de composioatravs do trabalho, avesso inspirao e ao fluxo lrico dos sentimentos, concentrado em darconsistncia de pedra, com toda a sua concretude e arestas ntidas e precisas, fluidez da vidasubjetiva. Um dos resultados mximos dessa concentrada e desconcertante retrica para finsprprios Tecendo a manh, que se acha em A educao pela pedra (1962-5).

    2.

    Composto de dezesseis versos, dispostos na slida arquitetura de dois blocos de linhaspares (dez mais seis) como os demais textos do livro, este poema to ostensivamente benfeitochama logo a ateno pela sonoridade gritante entretecida sintaxe. E tambm pela clareza,que j no apenas aquela do engenheiro que sonha coisas claras, mas a que resulta dacerrada articulao interna e nasce de uma determinada ideia de forma levada ao extremo,estampando-se feito espelho do sol dos galos que tanto d na vista. De imediato, portanto, poesia que se d a ver ou salta aos olhos.

    Os versos variam entre oito e doze slabas poticas, mas no so propriamente versosregulares desses metros; tampouco discrepam muito no ritmo longo e encadeado queperseguem, dispensando com frequncia as sinalefas e destacando os hiatos, como no versoespanhol medieval (em Gonzalo de Berceo, por exemplo).

    O decisivo, porm, como se segmentam, introduzindo uma inovao rtmica adequada direo do sentido. Partem-se, com efeito, em fragmentos breves, realados, como se notapela pontuao abundante, sobretudo a partir do terceiro verso. que assumem uma espcie

  • de movimento de vaivm, pela reiterao paralelstica de segmentos idnticos ou parecidos,acompanhando a sintaxe da frase, ao mesmo tempo truncada e imbricada em inesperadosajustes, de tal modo que sugerem o ir e vir de uma lanadeira tecendo, alinhavando os fios dotema entre todos os termos, casados entre si pelas repeties vocabulares, pelos sonssemelhantes e pelos enlaces sintticos. A aliana entre ritmo e sintaxe torna-se ento um fatorconstrutivo de primeira ordem.

    As aliteraes, levadas at a paranomsia como num jogo de palavras de trava-lngua,funcionam tambm como elementos da sintaxe, estabelecendo atravs da sonoridade similaruma solidariedade literal entre os vocbulos e, assim, conformam progressivas sequncias desimilitudes verbais que vo encorpando a construo, pela integrao das partes no todo.Poucas vezes se poder observar o som posto a servio da estruturao de forma toprovocadora e estridente: o prprio rudo chamando a ateno sobre o processo, destacadopelo aspecto cursivo do gerndio desde o ttulo. E somente uma poderosa imagem como a dosgalos cantando em cadeia unssona poderia sugerir como aqui a completa combinao plsticaentre o som e o sentido no resultado final da composio.

    Mediante esses procedimentos descritos, o contedo tende a se espelhar na expresso,que se torna ento literalmente aquele luzir sensvel da ideia, com que Hegel se referiu forma significativa da obra de arte. A perfeio dos enlaces internos multiplica decerto asdirees do sentido, uma vez que o trabalho de construo por si s encarna concretamente otema de que se trata, exacerbando-o ao mximo. Assim como a metfora do ttulo tornaconcreta a manh como um tecido, o tecido de palavras que se segue, na demonstrao dottulo, ganha carnadura concreta pelo entrelaamento dos termos, mimetizando o ato de tecerna forma do discurso potico, em que se entrelaam muitos componentes como os muitos galosnecessrios para, com o sol, tecer a manh.

    A mltipla rede de relaes entrelaadas entre o tecer, o texto e a manh, que se arma nacomplexidade interna da estrutura, confere por si mesma um expansivo raio de conotaes spalavras e s prprias slabas, ao atribuir latente fora simblica aos termos isolados e suaspartculas e ao todo em que se junta tudo. E, uma vez tudo recolhido na totalidade, desta sedesprende, com halo multiplicado de significao, a luz balo: nicos termos sem enlaces,dois substantivos apenas justapostos, pairando mais potentes pela prpria soltura contrastantecom que se soltam do corpo uno e travado do poema. E do mximo travamento entre as partesresulta, por fim, a mxima soltura.

    Desde o ttulo, a ideia de tecer se torna um motivo temtico aliado ao modo de compor opoema e ao processo da natureza a manh fazendo-se enquanto se tece o texto, como se elafosse resultado dele e da faina dos galos teceles , o que transforma o poema numa espciede mquina de tecer, num tear de palavras, lembrando a machine mouvoir, de LeCorbusier.

    medida que a mquina verbal avana na tecelagem, retorna, paradoxalmente, origem,desfazendo a metfora do texto enquanto tecido, entrelaamento, contextura, ao mesmo tempoque vai, ao contrrio, configurando concretamente a metfora da tessitura da manh. Nesseremontar origem volta tambm raiz do tecer enquanto trabalho manual do tecelo, aoartesanato puro e simples, e, por essa via, base material do trabalho, como que desvelandoseu prprio modo de ser quanto mais se aferra sua atividade construtiva. Ao mesmo tempoque as palavras ganham ento a materialidade do trabalho manual como objetos que

  • participam concretamente da tecelagem, o poema como um todo vira a mquina de palavraspara produzir um tecido que tambm uma construo da manh metfora, erguida,desdobrada e refeita pela inslita arquitetura verbal.

    A palavra construo, que se aplica to bem ao poema, parece convir porque realmentese trata de algo que se faz e se ergue por meio de palavras como um trabalho de fabricao,em que o fazer potico readquire toda a fora de origem do poien grego, no sentido de coisasfeitas de palavras, como diria Joo Cabral. A materialidade dessa ao que volta origem de enorme fora simblica, uma vez que se casa em profundidade com o tema, sobretudo como que nele subjaz enquanto potencialidade de significado.

    que a construo toda se baseia, ao que parece, numa frase de origem popular eproverbial do tipo Uma andorinha sozinha no faz o vero, de onde retira, para reafirm-lo,o sentido coletivo do trabalho, desdobrado e concretizado na forma do texto. E assim seconfigura uma potencial alegoria da solidariedade humana, capaz de produzir, pelacolaborao annima de muitos, um resultado libertrio, autnomo e emancipado daconstruo, a que parece aludir a expresso final, desvencilhada da articulao sinttica dotodo, luz balo: o fruto do trabalho coletivo se desprende dele, com vida prpria.

    Embora a leitura alegrica se desprenda com facilidade dessa construo to articulada edemonstrativa, a verdade que a imagem final justaposta a luz que paira livre eilimitadamente no ar traz consigo muito maior carga significativa em sua admirvel foraplstica, como se na unidade da luz resultante da mais estreita articulao se salvasse amultiplicidade de seus componentes (assim como o canto repetido dos galos com seus fios desol fundidos na luz plena da manh). como se ela se limitasse com o indevassvel, que vemdepois e se desprende dela, pairando sozinho no ar.

    Ambguo em seu limite ilimitado, o poema expe ento sua potica pelo grau de suaarticulao interna, construda por um trabalho artstico que parece liberar o seu produto docriador, dando-lhe uma vida objetiva independente das circunstncias de sua criao. Realiza,assim, um ideal do poema moderno de revelar pela articulao rigorosa de sua prpriacomplexidade a regra de seu jogo, que se torna visvel (ou ruidosa), mediante sua aplicaopelo trabalho de arte, que se defronta, no entanto, com seu limite.

    Como disse Valry, o belo exige talvez a imitao servil do que indefinvel nascoisas. Cabral parece cumprir risca, com seus versos recorrentes, essa forma de imitao,que tenta apreender o modo de ser da coisa imitada at o seu extremo, a margem silenciosa doindizvel.

    *Publicado em O Estado de S. Paulo, 26 set. 2007, Caderno 2, p. 9.

  • 3. A luz de So Lus*

    Uma das coisas mais bonitas e significativas da obra toda de Ferreira Gullar, cuja paixode artista contagia mesmo quando nos fala da perda e da derrota, do desgaste do tempo e damorte, a reconstruo do destino individual pelo enlace com o destino de muitos, num tempohistrico que tende a separar e aniquilar o indivduo em sua solido planetria.

    Gullar , antes de mais nada, um grande poeta o ltimo grande poeta brasileiro, naexpresso de um de seus pares, Vinicius de Moraes , mas desde o incio reconhece acondio histrica geral no dia a dia dos homens comuns e nas pequenas coisas, como na luzde So Lus do Maranho, por onde comea seu itinerrio, marcado pelas revelaes dainfncia pobre numa cidade da periferia do mundo.

    A elaborao artstica dessa matria biogrfica se torna decisiva para que ele se situediante do mundo contemporneo. Desde cedo, descobre que sua arte tem fora se nascer docho da experincia humana a poesia, luz do cho, para ele linguagem viva que brotado concreto e do particular de onde ela pode alar-se em canto, em voz individual, mas paraincorporar outras vozes, mover-se sempre por um desejo de dar voz aos que no a tm,traduzindo de fato a solido em multido, conforme dir em Traduzir-se, um de seus maisnotveis poemas. O social lateja no mais ntimo de sua linguagem.

    fundamental considerar que o artista nele cresce organicamente em funo desse fulcrocentral da experincia e tende a irradiar-se em formas e gneros diferentes de atuao, comouma necessidade ao mesmo tempo ntima e geral de expanso expressiva. Em cada momentode sua carreira encarna radicalmente esse desejo de expresso, embora tenha assimilado emprofundidade as tendncias construtivistas da arte moderna, levando s ltimas consequnciasseu trabalho com a linguagem, por vezes atingindo o limite da destruio da sintaxe e dadesarticulao da palavra, como se v em A luta corporal, marco histrico na poesiacontempornea brasileira posterior ao modernismo.

    Mas logo retorna, refeito, remoado, tentando outra vez o lance. Sua teoria do no objeto,seus experimentos concretistas e neoconcretistas e, paradoxalmente, pelo jorro expressivo, oPoema sujo, tudo corresponde ao mesmo foco candente de quem buscou em si, nas prpriascontradies intensa e fundamente vividas, as solues controvertidas da expresso pessoal.

    Por outro lado, sua atuao no espao do grande pblico e da cultura de massa no seafasta dessa fonte e, por isso, mantm a qualidade, como demonstram seus trabalhos para oteatro, em colaborao com Oduvaldo Viana Filho e Dias Gomes, ou para o cinema, comAntnio Carlos Fontoura, e mesmo seus roteiros para a televiso, que se nutrem de um saber ede um domnio da linguagem para os quais a atitude do homem comum, exposto em todas assuas fragilidades, em meio s dificuldades da vida, continua sendo o centro da mesma visodramtica e apaixonada.

  • Desse modo, em tudo o que fez, como poeta, ensasta, crtico de arte, dramaturgo,roteirista de tev, memorialista, cronista, encarnando uma rara figura polidrica no meiocultural brasileiro, percebe-se essa raiz potica que ele um dia deixou exposta no admirveldepoimento Uma luz do cho. E dela depende ainda o selo de garantia de autenticidade e dequalidade que procurou conferir a tudo a que se dedicou com empenho e ardor.

    Um meio de avaliar suas atividades no conjunto, de apreciar a fora e a qualidade de suatrajetria intelectual e humana, no sentido mais amplo, acompanhar o traado de seus passos,como nos apresentado em Rabo de foguete. Nessas memrias do exlio, escritas numa formade narrativa prxima do romance, pode-se observar o processo de constituio de suaexperincia pessoal, formada em meio s circunstncias polticas da histria recente daAmrica Latina, como uma dura aprendizagem de nosso verdadeiro destino latino-americano,de que sua trajetria pessoal pode ser vista como um smbolo.

    Obrigado a abandonar o pas, no incio da dcada de 1970, durante a ditadura militar,Gullar se viu forado a uma longa peregrinao no exterior, passando por diversos pasesvizinhos e sucessivos golpes de Estado, at a volta ao Brasil, em 1977, quando preso etorturado. O relato desses anos de falta de liberdade, terror e tristeza muito mais que umdocumento autobiogrfico e histrico, pois nos d, pela forma artstica, a verdadeira dimensohumana de um destino individual no contexto histrico global de nosso tempo. Num dosmomentos mais fortes da narrativa, conta-nos como nasceu em Buenos Aires, no instante domaior desespero e da maior excitao criadora, o Poema sujo, no qual as questes daidentidade, da linguagem e do tempo se enlaam numa coerncia profunda, espcie de sntesede seu tumulto interior e da condio de sua existncia.

    ento que o poeta desgarrado e erradio, abandonado prpria sorte num mundo hostil,reencontra as imagens caras da infncia, os cheiros, as cores, as ruas, os quintais, a luz de SoLus: a cidade imaginria, fruto do desejo e do trabalho, que o homem carrega intacta namemria perante a catstrofe, e num lampejo, num universo em que tudo exlio, a poesia denovo viva presena humana.

    Assim, no movimento expressivo entre a intimidade mais particular e o infinito douniverso em que o ser humano vive a conscincia dramtica de sua prpria fragilidade, funda-se a razo da grandeza da obra toda de Gullar.

    *Publicado originalmente nos Prmios Prncipe Clauss 2002 e na Gazeta Mercantil, So Paulo, em 16 nov. 2007.

  • 4. O silncio e muitas vozes*

    Desde o princpio, por tudo o que j fez, Ferreira Gullar sempre nos deixou esperando agrande poesia. E ela veio de novo calmamente, depois de um silncio profundo, como umtumulto; chegou agora com Muitas vozes. Havia muito no se juntavam, na poesia brasileira,tantas coisas belas numa safra s.

    Foi preciso muita coisa passar: o exlio, depois a morte rondar perto, familiar e semnfase; os mortos restarem no abandono do cho impenetrvel; o silncio crescer dos ausentesao cosmos, at a estridncia. E ainda assim de tudo ficar um pouco o galo saiu de entre asplantas em novo anncio; Cludia Ahimsa virou musa do planeta Terra; o bem-te-vi cantou devolta em So Lus , para s ento a poesia mostrar-se como no coisa, como voz, essavoz que somos ns, que no alcana o ser da coisa, que quer ser coisa na linguagem dopoema, e apenas som.

    Mas som com sentido: testemunho de nossa precria condio perante os astros e a nicaeternidade que de fato conhecemos, a do instante de vida: a polpa, o gosto vivo da fruta, omomento do sexo, tudo na ntegra irrecupervel na palavra. Gullar ouve as vibraes do mito,mas tem os ps no cho e a escuta dos homens. Recolhe a poesia das vozes entrelaadas sua,com toda a simplicidade. A grande poesia pode estar ao rs da fala e ao alcance dos ouvidos.

    No oco da voz (do poema) se forma o sentido que o poeta atribui s coisas que no o tme cujo ser resta impenetrvel para ele como o morto na cova. A fora do concreto vem, noentanto, do instante de vida que fica na memria e toma forma potica na linguagem: a voz queno quer se apagar, que repete outras vozes mortas e refaz com palavras o gosto de alegria dahortel, ou o que, intangvel, adeja/ acima/ do que a morte beija.

    A complexidade da sntese potica que se acha nesse livro, em que os temas daidentidade, do tempo e da linguagem se defrontam com o silncio e a morte, o resultadoformal de uma longa e densa experincia. importante observar que o processo deconstituio dessa experincia foi exposto, em boa parte, no relato notvel de suas memriasdo exlio, Rabo de foguete. Nele o drama vivido pelo poeta merc das circunstnciaspolticas da histria recente da Amrica Latina se converte, mediante uma narrativa prximado romance, num processo de escavao da subjetividade atravessada pela experinciahistrica. A poesia o Poema sujo surge ento, em meio ao sofrimento, como o ltimoreduto da identidade pessoal diante das catstrofes do mundo contemporneo.

    Mas nesse embate a morte que j ronda na pegada dos desastres, exigindo um outrosentimento do tempo e um novo aprendizado. Como prprio de seu modo de ser, a forma doromance se desdobra no processo de aprendizagem, quando faltam regras de como proceder ejustamente essa insuficincia se torna fato no enredo. Rabo de foguete coloca essa questodesde o comeo, ao relatar os rumos da existncia errante depois que a vida virou de cabea

  • para baixo. A poesia vem agora resgatar em fortes e vvidas imagens os guardados damemria.

    Sob muitos aspectos, a matria deste livro a mesma, configurada, porm, em ritmo deverso, com outra concentrao e intensidade. No mais sob o hausto longo da narrao,mesmo se na cadncia entrecortada pelos captulos curtos das memrias, mas, sim,condensada no instantneo lrico, que recorta do fundo histrico e pessoal da experinciaseres que foram parte de uma vida e personagens de um romance e agora so tambm motivospoticos. Na verdade, figuras de uma dana da morte, que o poeta traz de novo nossapresena, no pela mo, como no tpico medieval da dana macabra, mas pela voz, comovozes enlaadas sua, a voz que d forma aos poemas, qual se soma por vezes a voz deoutros poetas: Gonalves Dias, Bandeira, Drummond, Cabral, Rilke. Comoventes poemasbreves em que se tece na forma quebrada do ritmo o dilogo interrompido com os mortos:Thereza, Visita, Internao, Meu pai, Evocao de silncios, O Morto e o vivo.Complexos e lmpidos poemas meditativos, de autorreflexo, de reconhecimento dasmudanas e dos limites de si mesmo e da voz potica: Nasce o poeta, Adormecer, Tato,Reflexo, Aprendizado, Lio de um gato siams, No-coisa, Isto e Aquilo.Extraordinrios poemas longos de pressentimento e antecipao da morte: Nova concepoda morte, Morrer no Rio de Janeiro. E ainda muito mais, belos poemas erticos e deexaltao da vida e seus instantes fugazes: Definio da moa, Sortilgio, Coito,Improviso matinal, Pergunta e resposta.

    A atitude do homem comum, sem lugar entre a pretenso e a humildade, exposto comtodas as suas fragilidades, exatamente como nas memrias, est de novo presente aqui. Comefeito, um homem frgil quem est atrs da voz que nos fala, sozinho como o canio pensantede Pascal em face do infinito silncio do cosmo. O poeta que reconhece que a poesia/ saberfalhar. Ou aquele que ao sentir-se a si mesmo pelo tato, diante da certeza invencvel damorte, tambm se d conta da realidade palpvel de sua presena no mundo. na solidocsmica, isolado dos mortos queridos, onde o poema apenas um inaudvel rudo em meio vastido indiferente do universo, que o poeta se reconhece no pequeno sinal de vida, capazno entanto de iluminar aos nossos olhos no s a morte, mas tambm o amor e o gosto da vida.

    A lrica se exprime aqui nos ocos de uma histria vivida e lembrada, talhada no cortebreve e emocionante do poema, supondo, porm, o processo oculto de um aprendizado diantedo que arrasta a tudo e a todos junto com o prprio poeta e que est alm de toda experinciapossvel: a morte que o tempo traz implacavelmente e o poeta experiente espera sem nfase,mera noo que existe/ s enquanto existo, o fim que est fora de seu alcance.

    Depois de doze anos de silncio, oculta como a natureza, a poesia volta ao sol do Rio, luz de So Lus. No se podia pedir mais a Gullar.

    *Publicado no Jornal de resenhas, Discurso Editorial/USP/Unesp/Folha de S.Paulo, no 51, 12 jun. 1999.

  • 5. A poesia de Roberto Piva

    O MUNDO DELIRANTE*

    a poesia v melhoreis o esprito do fogoCiclones

    Desde que apareceu, editada por Massao Ohno em 1963, a poesia de Roberto Piva bateucomo um ciclone para desarrumar a paisagem paulistana e instaurar seu mundo delirante.Paranoia revelava um poeta com cara de menino, mas que vinha armado com o poemaporrada para demolir a cidade e viver o sonho de outra coisa: Nnive ser destruda, era oseu vaticnio.

    Nesse tempo, no era comum que um poeta se expusesse tanto pessoalmente e, para ospadres da norma potica hegemnica, com seu radicalismo formal eram os anos doconcretismo , o alarido podia soar como bravata de maluco.

    A sequncia da obra no desmereceu o turbilho inicial: acentuou o tom de provocao;a irreverncia desbordou, para exprimir, de boca cheia, o desejo de transgresso; a atitude doiconoclasta passou a imperar, no querendo deixar pedra sobre pedra. Na prtica, o discursopotico, em versos livres de cortes bruscos e direes imprevistas, mostrou-se ainda maiscambiante, conforme as enumeraes variveis da matria heterognea e a mobilidade fugidiados estados de esprito. Por outro lado, expandiram--se as imagens com fora alucinada, paracondensar em unidade inslita, soldada pela analogia, a multiplicidade catica da viso douniverso.

    Desde o princpio, o poeta preferiu o caos ao lugar da ordem. Fiel somente ao prpriodesejo, saiu em busca das figuraes do sonho, assumindo o papel de enfant terrible, serintratvel, contra todos e tudo. O anjo rebelde, sexuado e sem papas na lngua, siderado pormeninos de carne e osso, fez-se ento a figura emblemtica para anunciar o desconcerto domundo segundo Piva. E, pelo mesmo gesto, tambm se tornou personagem de si mesmo; tinha oumbigo cravado em Santa Ceclia e destoava da msica dominante na poesia brasileira: era omais novo dos malditos.

    O individualismo anrquico, sua marca de fbrica, se ala desde ento contra asconstrues do industrialismo e da modernizao conservadora, cuja face predatria vencarnada na Babilnia capitalista que So Paulo, desafiada por seu rob pederasta e peloerotismo desbragado de seus adolescentes de sono quente. A cidade monstruosa,desencontrada de si mesma, surge no espelho dos versos com sua mistura de progresso eatraso, a coleo completa de mazelas, mas tambm com o seu secreto encanto: a poesiaesquiva de suas praas e ruas feias, sujas, descuidadas, de repente bonitas , e vemrefletida em imagens passionais de amor e dio que caracterizam a relao do poeta com seu

  • espao. Em meio aos flashes da cidade, os recortes de amor trazem o poeta para a alcova ou asauna, onde o erotismo rola solta, numa atmosfera lasciva de inferno com ares dantescos, ouna caada dos amores furtivos pelas ruas como no Satricon de Petrnio.

    Nessas imagens, h ainda ressonncias da Pauliceia desvairada; a figura de Mrio deAndrade, vrias vezes evocada, o companheiro de andanas erradias pelas avenidas noiteadentro.

    So, entretanto, variadas as marcas da herana modernista: Murilo Mendes e Jorge deLima tm presena igualmente fortssima. Alm disso, h a assimilao de muitas outrasleituras: de Rimbaud e Lautramont, de Reverdy e dos poetas do Esprit nouveau, de GeorgTrakl e Gottfried Benn, mas, sobretudo, do surrealismo e da gerao beat norte-americana,sem falar, claro, da poesia italiana contempornea e de Dante, que, alm de inspir-lo pormomentos na transfigurao do mundo, lhe fornece uma espcie de mitologia pessoal dadiscrdia. que gosta de comparar um antepassado, que lutou nas Cruzadas e foi queimadopor heresia em praa pblica, com o av Cacciaguida da Commedia.

    Piva encontrou, porm, uma frmula nova e original para exprimir a experincia de seutempo, fazendo das mltiplas citaes matria prpria.

    Poeta culto e inquieto, ele mobiliza o que l, o que ouve ou v so tambm recorrentesas referncias ao jazz, a compositores eruditos, a grandes pintores , com a mesma fria comque investe contra seus fantasmas. A salada no pequena, mas h um ponto de vista seletivo,e o molho comum tem ponta picante.

    O fato que sempre soube resguardar uma atitude pessoal autntica, de profunda econstante coerncia, ao longo do tempo, e deu com uma forma especfica do discurso potico,cuja novidade e complexidade preciso tentar compreender.

    A crtica brasileira (e no me ponho fora dela), j de si vasqueira, fez que no viu evoltou as costas para uma obra potica com quase meio sculo de produo incessante egrande contundncia. claro que a agressividade, a bandeira acintosa do homossexualismo, odesregramento dos sentidos um trao rimbaudiano a que Piva d vazo, por vezes commuito senso de humor no esto a para tornar ameno o convite leitura e podem dificultaro reconhecimento crtico. H uma parcialidade assumida e at reivindicada que podedesagradar a muita gente, assim como a direo geral do projeto de uma poesia experimentalfundada na exigncia de uma vida experimental. Ela parece pedir demais do leitor: tantoexcesso pode lev-lo a pensar que o delrio do caos esteja instalado de preferncia no prpriopoeta, trancafiado com seus botes na cidade que escolheu para fazer exorbitar at aalucinao e, sem espanto, ficar vendo vnis sentado na praa da Repblica.

    Em resumo: a atitude enrage faz o feitio virar contra o feiticeiro e acaba afastandocautos e incautos. A poesia de Piva, porm, quando ele a alcana, est para alm disso tudo. Overdadeiramente difcil no so os espinhos explcitos do radicalismo e da rebeldia, masdizer o que a novidade da mistura incandescente que ele inventou, sem reduzi-la ao sabido.E, mais ainda, mostrar seu poder de iluminao: como de vez em quando d certo, d comalgo que s raras vezes a forma revela, conforme escreveu seu mestre Murilo Mendes. Noconjunto e nas partes, compreender criticamente essa obra continua sendo um aberto desafio.

    A vontade libertria de renegar a ordem dada e de suscitar pela desordem as imagens deum mundo diferente, aberto por brechas para o livre curso do desejo, mostra que na poesia dePiva, desde o comeo, a lrica vem misturada pica. Poeta andarilho, ele carrega, feito o

  • romancista, seu espelho pelas ruas da cidade, para contar o percurso como uma experinciaimediata do presente. Mas no apenas o contedo de uma conscincia no presenteintemporal ou eterno da lrica; tambm a narrao de um encontro com o mundo ao redor,que se processa e se distende no tempo e traz pulsante a memria histrica da cidade.

    Os instantneos lricos de fato se expandem em ondas narrativas em torno do eu-personagem e de seu meio, alm de serem poesia de alcova e de exaltao do amor fsico. E,por isso, busca ritmos de flego amplo, mesmo com os riscos do excesso e da verborragia.

    Seu modo de expresso uma espcie de epos desbordante, pontuado de iluminaeslricas, que vai alm do verso livre modernista ou do versculo maneira de Rimbaud ou deWhitman, embora descenda em parte desta ltima linhagem. um discurso prximo daoralidade, como se estivesse voltado para a recitao diante de um auditrio, maneira deAllen Ginsberg, mas com uma mistura moda da casa que o singulariza e uma tenso constanteque parece exigir a chama sempre viva do vate inspirado.

    Resduo do tempo forte da inspirao, o poema corre o risco do informe ao preferir aautenticidade da expresso de uma experincia emocional intensa ao trabalho de arte. Emboraepisdico, o discurso toma a forma de um magma ou fluxo verbal contnuo, derivado da fala,para o qual um ritmo de repeties e associaes se torna fundamental, combinando osmateriais mais diversos em liga estreita e explosiva.

    Ao contrrio da lio de Joo Cabral e de seu toureiro que doma a exploso com moprecisa e pouca, dando vertigem, geometria, Piva sente a necessidade da exploso. Bastav-lo soltar da jaula a ona que pinta s vezes em seus versos como animal totmico. Em tornodela, o poeta rene uma revoada de revoltados contra a destruio do planeta, enquanto fortempo, pois os tempos no so de solidariedade, e os galos j no tecem a manh.

    A frmula a que chegou se mostra malevel e impressiva, coadunando-se perfeitamentebem matria que tem para cantar e contar. Piva um rapper antes que o rap tivesse sidoinventado.

    Como nesse gnero de msica, chama nossa ateno para uma difcil poesia que moranos espaos pobres, no abandono da grande metrpole, onde parece residir apenas o horror doque no se quer ver. Mas so aspectos que, em contraponto, ajudam a compor a verdadeirafisionomia da cidade. Nesse sentido, ele d voz ao refugo do que se quis, ao outro com que seconvive no avesso da ordem dominante. Por isso, provoca aquela surpresa paradoxal que nosfaz perceber valor humano mesmo no que parece completamente degradado, ao mesmo tempoque pe em xeque a ordem estabelecida.

    Assim, a fala se faz um instrumento poderoso para exprimir as iluminaes lricas e ospercalos da experincia da rua; canaliza as sobras da metrpole trepidante e predatria,condenada periferia do mundo globalizado. Antes que esta expresso fosse corrente, amultiplicidade catica do universo j estava irmanada na viso delirante que ele tem dacidade.

    Mas o que na cidade moderna est fora da alada do dinheiro e da produo, o que elaprpria recalca em zonas perifricas ou marginais, alijando-o de si para a barra pesada de simesma, isso o que ressurge com fora em seus versos, feito carga obscura de coisas doinconsciente. o lado sombrio do que todos ns tambm somos. E isso o que lanado numrio comum coalhado de dejetos: Tiet imaginrio, Anhembi de tempo e esquecimento,aparentemente estagnado, sob o qual flui, no entanto, a corrente gordurosa dos detritos, o lixo

  • rio abaixo, onde jaz a histria segregada, refletida no espelho invertido da cidade.Em grande parte, a histria do que se perde, do que vai pelo ralo do capitalismo, feito

    matria imprestvel e sem nome canalizada no canto. E eis que corre nos poemas um epos daentropia urbana, do que nela nos assombra e s vezes nos ilumina: vises dantescas egrotescas o inferno que a prpria cidade gera, consome e lana fora, enquanto passam asguas e as palavras.

    Esse fluxo potico sem margem, que no teme o informe e a falta da medida, sob oimpulso dionisaco, e que retorna muitas vezes inspirao de Nietzsche, alimenta-se da fonteoriginria da lrica que o ditirambo, para exprimir tanto a alegria jubilosa quanto a maisfunda tristeza. Voltado para as grandes emoes, buscando sofregamente o xtase, deve mantero atrito das contradies nas imagens, em que se fundem palavras elevadas e baixas numaidntica mistura, em contnuo transe, impelidas pelo ritmo a uma dana frentica de altastenses. Dessa forma, tende ao sublime, vivendo um jogo perigoso beira da destruio.

    Mesmo falando de coisas rasteiras, do cho do cotidiano e dos amores mais prosaicos,Piva, por fora do entusiasmo, no sentido primeiro de estar possudo pelo deus, tende elevao do discurso, que no perde o aprumo por arrastar de cambulhada o mais baixo ou amixrdia do dia a dia. A herana baudelairiana de suas paisagens urbanas est visvel decertonessa mistura estilstica do abjeto com o elevado, mas ressurge mudada por seu poder detransformao dos materiais de emprstimo com que trabalha, sejam velhos ou novos, na suafrmula pessoal.

    que Piva est de olho mgico no processo de modernizao perifrica, que marca suacidade das entranhas at os detalhes mais imperceptveis, acumulando temporalidadesatrasadas e de ponta em camadas mescladas, sem que uma fisionomia definitiva se cristalizena face da mistura em permanente mudana. Em meio ao fluxo, ele flagra o detalhe particularaparentemente aleatrio, mas que faz sentido, pois parte de uma experincia histrica a quede algum modo seus versos do forma ao glosar o ritmo profundo com que a cidade troca depele.

    Ele o profeta andarilho que, com antenas poticas, sai caa do sagrado oculto no chodesencantado da metrpole moderna. Pode no dar com sagrado algum, mas na buscaacompanha o movimento interior e as contradies da cidade com o ritmo receptivo de seusversos, os choques dissonantes de suas imagens, a energia ertica com que junta o disperso esolda os opostos. O modo como registra subjetivamente na sua prpria histria pessoal asmarcas dessa contnua mudana seria por si s um documento importante.

    Mas, na verdade, ele dispe ainda da viso potica, feita de esprito do fogo, a maisproteica das criaturas, que ainda o signo de sua resistncia prometeica aos deuses baratos daeconomia. Por meio dela, capaz de antecipar o vindouro e de ver o invisvel, que seesconde, como assinalou Murilo, no visvel.1

    A poesia de Piva depende dessa fora visionria da imagem, do assombro imaginativocom que ela capaz de despertar o leitor, abrindo seus olhos para que diga ah!. que elaconfia no poder cognoscitivo dos estalos da imaginao, em sua fasca de surpresa erevelao, mesmo quando continuamos todos adormecidos, submersos sob a mar dasmercadorias.

    O legado raro de seus melhores momentos o da lucidez do xtase, signo da revolta quepreferiu aos louros da academia.

  • O CAVALEIRO DO MUNDO DELIRANTE**

    Ningum ampara o cavaleirodo mundo delirante

    Murilo Mendes2

    1.

    O que primeiro chama a ateno na poesia de Roberto Piva, desde a estreia explosiva deParanoia, em 1963, seu mpeto para a provocao.

    Com efeito, o poeta entregava ao delrio sistemtico a conduo do lirismo, fazendo deseu comportamento desregrado tambm o modo de ser de sua linguagem. Essa consonnciaentre a matria e sua expresso ressalta desde que se comea a folhear as pginas da primeiraedio do livro e se reflete admiravelmente nas fotos e no desenho geral de Wesley Duke Lee,que soube manter uma empatia profunda com o foco de seu trabalho, expandindo emfantsticos contrastes de luz e sombra, at a beira da abstrao, a energia do impulsoagressivo que recebia de seu interior. A fisionomia frentica de uma cidade estilhaada emlascas luminosas contra manchas negras se impe ao leitor junto com o jorro ininterrupto dosversos longos, obscuros e sem ponto final.

    Como que tomado pela inspirao, Piva mergulha numa associao desconcertante deimagens visionrias em fluxo contnuo, aproximando-se de um ritmo oratrio de prosa, cujaeloquncia elevada serve, paradoxalmente, para dar vazo a um arsenal de virulncias, muitasvezes da mais baixa extrao. Antes dos movimentos libertrios de 1968, prega ohomossexualismo s bandeiras despregadas, com sua defesa da pederastia e a paixo explcitapelos adolescentes transformados de anjos engraxates em anjos de Sodoma. Escancara oerotismo forte dos amantes chupando--se como razes; faz o elogio da loucura, daalucinao e do xtase, com base em drogas e narcticos, em reiterada litania: do ch compervitin ou de outras anfetaminas e dos cogumelos alucingenos s correrias da maconha eo fogo azul de gim. Desce ao baixo corporal, com sua Apoteose de intestinos e sexpresses blasfemas como a da Virgem que lava sua bunda imaculada na pia batismal. Amescla estilstica do sublime com o baixo e at com o mais chulo d o tom geral do livro, deque os anjos de Rilke dando o cu nos mictrios no nos deixam esquecer.

    Tudo isso (e muito mais) podia soar naqueles anos e talvez soem at hoje ainda comouma forma de pater le bourgeois. O que era, at certo ponto, obedecendo cota que todacriao individual costuma dever tradio literria e cultural mais ampla, ainda quandopossa parecer produto singular e exclusivo da imaginao mais desenfreada. A atitude dePiva, abertamente polmica, buscava um choque moral e esttico no pblico, provocado at rejeio.

    A provocao literria tinha j, certamente, uma longa histria desde Baudelaire, cujasconsequncias para o destino da poesia moderna ningum ignora. Os modelos baudelairianosdo bomio, do dndi e do flneur, os ecos persistentes dos poemas em prosa de Le spleen deParis, embora distantes, no estavam de todo esquecidos na dcada de 1960, cem anosdepois, por fora da tradio de ruptura que marcaria o sculo XX e a histria das vanguardas.

  • Da mesma forma, a experincia do choque no cotidiano da vida moderna que a metrpolefrancesa inaugurou como o novo ambiente com que teve de conviver o poeta lrico j seestendera havia muito at as metrpoles do capitalismo perifrico. A So Paulo dosmodernistas j se tornara nos anos 1920 importante matria de literatura.

    Mas o fato que essas razes da modernidade, reativadas pelas vanguardas, parecemcontinuar atuantes para Piva, antenado com o surrealismo e os beats norte-americanos, de queseus versos dependem em certa medida, como se v, entre outras coisas, pela fidelidade aodesejo, pelo espontanesmo, pela livre associao, pelo ritmo salmdico e panfletrio, peloconvite aos parasos da droga. Contudo, no bastam para explic-lo.

    Trata-se de fato de uma herana relevante a que ele vai acrescentar, no entanto, odecisivo. Ou seja: o que depende de sua experincia pessoal no contexto em que vive. preciso considerar, antes de mais nada, sua vontade de transgresso, sua necessidade deentrega desatinada inspirao momentnea, ao arbtrio dos sonhos, das alucinaes, dosdesejos, com seu mpeto de caador noturno e principalmente a especificidade de todo ummundo delirante que resulta disso em conluio e confronto com o mundo existente sua volta.Essa relao particular e complexa com seu mundo, na qual a realidade do sujeito como quese reencontra fora, o que o define e est latente em sua atitude de provocao, que tambmde defensiva, como esturro de ona acuada.

    Piva ataca e repele um mundo prximo que ele desesperadamente ama e rejeita, massobretudo experimenta at o fundo de suas contradies. Estas constituem a razo da suadesconjuntada realidade; esto no centro de sua experincia lrica e na raiz de seu delrio.

    No creio, por isso mesmo, que sejam as fontes remotas da modernidade ou da vanguardado incio ou do meio do sculo XX o que se deva considerar em primeiro lugar para entendermelhor Paranoia, cuja obscuridade acintosa depende, antes de mais nada, desse tipo deprovocao capaz de encobrir pela afronta sua procedncia imediata. Seus versosclaudicantes entre os ritmos da poesia e da prosa se enrazam em coisas brasileiras maisprximas e concretas do que as referncias literrias mais gerais ali contidas, que superampela riqueza e pela variedade a da maioria dos poetas da gerao de seu autor, mas no devemdesviar o foco da compreenso crtica.

    2.

    A poesia de Piva cresce aglutinando componentes heterogneos e por vezes disparatados coisas copulando no caos , feito os refugos com que se constroem as favelas e nossoprprio inconsciente, assim como a cidade poderosa, precria e desvairada, que , no entanto,o seu cho concreto: Eu abro os braos para as cinzentas alamedas de So Paulo....

    A verdade que um poeta andarilho se mostra, desde Paranoia, profundamente integrado paisagem urbana de So Paulo: h um reconhecimento ntimo no s de suas cinzentasalamedas, mas da paisagem de morfina da praa da Repblica, da avenida So Lus emque meu corao mastiga um trecho de minha vida, da rua das Palmeiras onde as palavrascobrem com carcias negras os fios telefnicos, dos gramados regulares do parqueIbirapuera, dos cantos escusos das vielas malditas, nos quais de repente se encontram ossaltimbancos de Picasso.

  • Os movimentos de universalizao do estilo, atravs das numerosas referncias a nomesde artistas famosos de diversas artes literatura, msica, pintura , procedem de toda partee esto presentes sempre, cumprindo sua funo, ao criar uma fantasmagoria cosmopolita apartir das notas especficas de nossa metrpole. Mas a matriz fundamental desse novonotmbulo alucinado, que muitas vezes evoca Augusto dos Anjos (Um anjo da solidopousa indeciso sobre meus ombros), o estranhamento visionrio de Cruz e Sousa (de que porcerto dependem os visionrios da Beleza de Paranoia) e a adolescncia tresnoitada delvares de Azevedo, com sua mscara satnica, agora apenas uma esttua (devorada compacincia pela paisagem de morfina), sua ntima relao com a cidade que tem sob os ps epercorre to amide e em detalhe.

    A cidade a matria de que se nutre a obra de Piva, mas ela se projeta tambm sobre sualinguagem, cujos alicerces e andaimes ficam de vez em quando mostra, soltos no ar, comopartes fragmentadas que no se juntam nem se completam, interrompendo--se no meio docaminho. Na verdade, a cidade lhe oferece muito mais: seus excessos, suas desmesuras e,principalmente, sua realidade contraditria bsica, de que procede a determinao maisprofunda, a verdadeira razo de ser da forma dessa poesia. H uma organicidade que liga ospoemas a seu espao, o que garante sua eficcia para alm de qualquer desmedida, pois fundea matria numa forma significativa particular, forjando seu modo de ser em adequao comseu mundo.

    Nesse corpo a corpo do Eu com o ambiente urbano, em que a agitao da mente aparececonjugada ao movimento das pernas em sucessivas caminhadas por todo canto o verbocaminhar o que delineia a atitude do Eu na maioria dos poemas de Piva , o itinerrio sefaz sob o signo de Eros. O poeta de fato um caador noturno e o deus que tudo une soldatambm os espaos da errncia do desejo ao longo das alamedas: a poesia vira uma forma deobservao, descoberta e transfigurao imaginria da cidade, ela prpria moldada comoimagem projetiva do desejo.

    Como sempre, porm, a poesia, ainda quando dependente do surto da inspirao ligadaao momento, no necessariamente apenas a traduo direta da experincia imediata. A visodo poeta pode estar mediada pelas leituras em que se embebeu e que retornam suaimaginao, essa memria transformada, ao mesmo tempo que se entrega a seus devaneios depasseante solitrio pelos labirintos de ruas, avenidas e vielas. No so apenas os ecosdantescos que parecem reboar nas exaltadas vises demonacas de Piva. Ele tem sempre osolhos fixos no cho mais prximo da Pauliceia desvairada.

    certo que pode variar de lio de casa segundo modernistas como Murilo Mendes ouJorge de Lima, o professor do Caos, mas Mrio de Andrade o companheiro mais afim etutelar, diversas vezes lembrado em suas andanas atravs das ruas noturnas, desde ascaminhadas de Viso 1961 at as marchas nmades no parque do Ibirapuera, notvelevocao do esprito errante do poeta da rua Lopes Chaves, cujo fermento continua ativonesse novo noturno paulistano. E mesmo nos rumos da sexualidade parecem vibrar asexclamaes irnicas do poeta da Pauliceia atravs do contnuo priplo amoroso deParanoia, onde vm ressoar os passos longnquos dos personagens de Petrnio e, maischegados, os de Mrio atormentado por seus desejos escusos e suas prprias alucinaes:Higienpolis!... As Babilnias dos meus desejos baixos....

  • 3.

    Por esse vnculo explcito com Mrio de Andrade se revela, na verdade, a herana maisprofunda e importante de Piva: a da tradio romntica da meditao andarilha e da poesiaitinerante,3 a que a cidade grande, desde Baudelaire, veio servir de quadro ideal no momentode constituio da modernidade, substituindo a paisagem natural pela nova paisagem urbana.O carter peculiar dessa modalidade de poesia que os romnticos inventaram precisamente aligao entre corpo e mente num mesmo movimento que, por sua vez, propicia uma fusoparticular entre sujeito e objeto, de modo que o espao se interioriza medida que se envolvenos rodopios da reflexo, ao mesmo tempo que por vezes se antropomorfiza e serve decorrelato objetivo para as emoes da interioridade. Mrio praticou essa modalidade depoesia ao longo de toda a sua obra, em que so frequentes os poemas com caminhadasnoturnas, marcadas pela inquietao e mesmo a angstia, como notou Antonio Candido.4

    Piva est mais perto do cho em que se inspira, bem como da tradio potica e daexperincia histrica brasileiras, do que se poderia imaginar e daqui de So Paulo, destacidade particular perifrica, suja, feia, degradada a cada enchente repetida , dos seusdetritos desconjuntados, dos dejetos cumulativos do desenvolvimento desigual e da luta ferozpela riqueza, que ele consegue extrair, a duras custas, a magia de um ouro mais raro, o que apoesia consegue cunhar com as palavras.

    Sua So Paulo j no a Pauliceia de Mrio. Esta depende fundamentalmente ainda deuma sensibilidade impressionista capaz de captar os instantes de iluminao como momentospoticos que impressionam o corao arlequinal do poeta, conforme se v pela bonita sriede Paisagens daquele livro. Veja-se, por exemplo, especialmente a de no 3, talvez a melhorde todas, em que as notas da paisagem urbana como a garoa cor de cinza que impregna detristeza o Eu lrico cedem espao para suas mais fundas inquietudes sobre a prpriaidentidade e suas mscaras, at que Um raio de Sol arisco/ Risca o chuvisco ao meio,pondo um fim luminoso ao quadro meditativo e melanclico.

    bem verdade, no entanto, que a Pauliceia desvairada exprime desde o incio ascontradies histricas das temporalidades desencontradas, resumidas no modo de ser doprprio poeta e que se repetiro na base do quadro urbano de Piva, reiterando ressonncias doverso famoso e revelador: Sou um tupi tangendo um alade!.

    A So Paulo de Piva , porm, uma outra cidade, mais complexa e catica, transida dedesejo, cuja viso noturna se quebra no espelho de mirades de focos de luz: seus detalhesconcretos so numerosos, reiterativos, com acentuada aparncia de realidade e a atmosferados anos 1960. Contra toda expectativa, h uma ntida base realista e documental emParanoia, criada pela profuso de pormenores da cidade da poca. O mesmo se verificatambm pelas fotos de Wesley Duke Lee, cuja relao com o texto constituda algumas vezespor imagens indiciais ou metonmicas como as que o poeta recorta da realidade urbana de seutempo e, noutras, por metforas visuais superpostas ao texto que elas parecem comentar numreflexo confirmatrio. Quando o poeta se refere s esttuas com conjuntivite que ocontemplam fraternalmente, vemos de fato na ilustrao um leozinho lacrimejante que nosmira do fundo de seu desamparo, numa sugestiva imagem do cavaleiro desamparado que oprprio sujeito da elocuo.

    Pormenores como esse, reproduzidos em srie, parecem implicar sua prpria

  • modificao no tempo, trazem consigo o senso embutido da precria durabilidade de suahistria passageira, como se formassem, como peas de um mosaico ou de um caleidoscpio,a pele transitria da cidade cujas mudanas acompanhamos, recordamos ou pressentimos,independentemente da impresso que causam na interioridade do caminhante que a atravessa eregistra. Ao contrrio, representam, realmente, um modo de exteriorizar as emoes do poetaque neles encontram seu correlato, dessa forma adquirindo uma fora simblica que os projetapela liga emocional viso unitria do todo, pois a paisagem inteira est perpassada pelasubjetividade, assim como esta se reencontra no seu reflexo que o espao exterior.

    O cavaleiro errante que cruza a cidade parece trazer nas mos um espelho partido ondevm se refletir os fragmentos do real que ele ao mesmo tempo arrasta e unifica numa visoimaginativa e transfiguradora, imantada pelo arrepio do desejo, a partir das parcelas derealidade a que deu a uma s vez um tratamento realista e verossmil e que acabam pordesembocar, no entanto, na vasta imagem visionria e fantasmagrica, carreada pelo impulsoque extravasa de sua interioridade. Assim se cria o mosaico de uma grande cidade mgica,desconcertante, enigmtica, com a fisionomia espatifada no cristal dos aquriosdesordenados da imaginao do poeta.

    Quando Paranoia apareceu, Piva tinha cara de menino e a elegncia de filho abastado daburguesia paulistana registradas pela cmera de Duke Lee. Dava a impresso de que a cidadecapaz de ser a comoo de minha vida para Mrio de Andrade ainda continuava sendo umGalicismo a berrar nos desertos da Amrica. Mas o livro desfaz essas aparnciasenganosas. O cavaleiro que os poemas representam e dramatizam como um andarilhoangustiado e solitrio perambulando alucinadamente pelas ruas de So Paulo, caa deamores passageiros, j vinha pronto dos desvarios da noite para o poema porrada. Suaimagem a primeira a ser atingida. Depois lana ameaas contra o leitor, abrindo o jorrosolto de suas trombetas de fogo do Apocalipse. Era assim que nascia, com sua eufricaimpiedade, o mais novo dos malditos.

    4.

    O contraste com o quadro dominante na poesia brasileira da poca no podia ser maisostensivo. Era o tempo de novidade do concretismo, que pregava, na direo da linhagemvinda de Poe, atravs de Mallarm at Valry (ou de uma certa leitura dessa linhagem), opoema como um projeto intelectual, concentrado em si mesmo, autoconsciente, levando aoextremo o jogo com a linguagem, a ponto de desconstruir a sintaxe e estilhaar o verso noespao da pgina. Poema visual que parecia aspirar tanto condensao mxima (conforme alio de Ezra Pound) quanto radical rarefao do misterioso ptyx mallarmeano poesiaespiralada em concha que roa o silncio, distante dos ecos do mundo, solitria e estril embusca do absoluto no branco do papel.

    Desde o princpio, Piva reage violentamente contra os concretos, mostra-se submerso noseu mundo delirante constitudo em grande parte pela negao do processo de modernizaobrasileira; ou seja, tinha os olhos voltados para um horizonte de expectativa em tudo diferentee mesmo contraditrio com relao quele a que corresponde o plano piloto da poesiaconcreta, sustentada nos pilotis do industrialismo paulista e aberta aos ventos do futuro vindos

  • do desenvolvimentismo de Braslia, mas encastelada nos avatares da poesia pura, apesar detoda tentativa momentnea de salto participante.

    Piva, cavaleiro solitrio e sempre revoltado, assume, ento, a sina do poeta malditocondizente com seu individualismo anrquico de extrao ps-romntica. Herdeiro do legadomodernista, mas distante de todo construtivismo, adota a inspirao dos surrealistas (dandovazo voz violenta de Maldoror) e o exemplo mais recente dos beats norte-americanos,para apregoar sua insurreio. No rumo oposto ao da neovanguarda concreta dos anos 1950,traduzir depois sua atitude numa frmula de rebeldia: S acredito em poeta experimentalque tenha vida experimental.5

    Esse lema difcil de cumprir supe uma atitude transgressiva de base cujas manifestaesdevem ter a provocao por bandeira e uma exortao constante ao leitor, a quem se dirige odiscurso, mesmo quando se troca a comunicao pelos interesses subjetivos e singulares daexpresso para dar vazo experincia pessoal. Repetindo sua atitude contraditria diante desua matria, a cidade, Piva agride e rechaa violentamente o leitor assim como o acolhecalorosamente nas camadas mais interiorizadas de sua linguagem, marcada, por isso mesmo,tambm por procedimentos retricos voltados para a persuaso de quem o l. O desejo decomunicar ao outro a incomunicao em que se acha angustiosamente tamponado parece umacontradio central a seu projeto potico, permeado pelo conflito de emoes opostas elaceradoras que atingem o prprio ncleo do sujeito dilacerado.

    A provocao sempre foi umas das fontes conhecidas da obscuridade da poesia moderna,sobretudo se conjugada s peculiaridades de linguagem do poeta.6 No seu caso, emboradependa da tradio do versculo de hausto longo que vem de Walt Whitman e de Rimbaud, aestrutura da linguagem que se apresenta em Paranoia, dando as costas a todo esforo decondensao e ao trabalho com a linguagem na construo do poema, entrega-se conforme ainspirao aos desgnios da emoo do momento, exprimindo-se num estilo solto, tentativa detraduo imediata da experincia, sujeita aos riscos da verborragia e do informe.

    Joo Cabral de Melo Neto, numa importante conferncia de 1952, contrastou esses doisextremos da composio literria moderna: o trabalho de arte que define sua potica, voltadapara a construo lcida do poema, conforme a lio de Valry, e a inspirao que procuraaprisionar a poesia no poema.7 Postos entre esses extremos, os poetas tendem a escolheratitudes intermedirias, uma vez que os polos muitas vezes se fundem, mas a falta de umprincpio esttico universal torna a composio o reino das solues pessoais e pode conduzir polarizao entre as exigncias do artesanato artstico e a pura inspirao. Esta marca apoesia de Piva, que parece sempre obrigado a manter a elevao do discurso, mesmo tratandodas coisas mais baixas, como se o vate, possudo pelo deus do instante, no pudesseabandonar o entusiasmo no momento da expresso, abrindo mo de toda proporo eobjetividade, para se lanar no jorro da emoo momentnea. Assim, o poema, mesmoconcludo, ainda permanece ligado esfera da experincia pessoal do poeta e por vezes podesugerir o sentimento do inacabado. Na verdade, o conjunto ganha mais importncia que opoema isolado, projetando a figura paraficcional e dramtica do poeta, a cuja experinciaacabam por remeter as composies.

    O que de fato Piva produz no segue exatamente os padres do verso livre modernista,embora este seja dominante em muitas passagens, enquadradas, porm, num arcabouo maisgeral, sendo, portanto, uma forma de expresso localizada, na dependncia da estrutura

  • discursiva. A conformao do seu discurso dada mediante os princpios estruturais darepetio e da analogia, que respondem pela cadncia paralelstica das linhas e pela efusoimagtica. Na prtica, esses princpios se interligam e permitem que se forme uma espcie deepos pontilhado de imagens em ritmo associativo prprio da lrica, mas tambm prximo,como ficou assinalado, da prosa oratria, com propenso retrica persuasiva, como se sedestinasse recitao diante de um auditrio, alm de conferir certa dramatizao voz dopoeta, imerso numa sucesso de monlogos dramticos.

    Essa instabilidade rtmica entre o verso e a prosa no defeito, mas uma caractersticada expresso em todo esse livro inicial do poeta (e prossegue depois, com modulaesespeciais e abreviaes em outras obras) e parece estar a servio, a meu ver, de umanecessidade expressiva mais funda e relevante, que a combinatria de vozes do poeta, o que preciso distinguir e entender.

    5.

    Paranoia um livro sobre So Paulo, mas tambm e sobretudo um livro sobre RobertoPiva enquanto personagem que caminha pela cidade ao mesmo tempo real e fantasmagrica o cavaleiro do mundo delirante a que seus versos remetem. Em certo momento o Euexplicita essa condio de personagem de si mesmo que o poeta encarna, num quase epitfioantecipado, cujo acento pattico maneira de Augusto dos Anjos faz lembrar, na verdade, ovaticnio de Csar Vallejo sobre sua prpria morte:8

    ROBERTO PIVA TRANSFERIDO PARA REPARO DE VSCERAS...

    Em Paranoia, ouve-se, em primeiro lugar, a voz lrica de um Eu que fala consigo mesmoou com ningum, que sonha e reflete sobre o mundo, que exterioriza pensamentos e emoes,correspondendo tradio meditativa da poesia itinerante:

    eu penso na vida sou reclamado pela contemplao....

    Ou:

    na rua So Lus o meu corao mastiga um trecho de minha vida...

    Seu trao caracterstico um sentimento de exlio e solido, impregnado por vezes deangstia e desespero:

    eu sou uma solido nua amarrada a um poste...

    Ou ainda:

    no exlio onde padeo angstia os muros invadem minha memria ....

    Mas se acalma no ritmo lrico da cano, interiorizado, meditativo, essencialmentedescontnuo e parattico, como nestes versos que encerram o livro, mantendo sua atmosfera

  • recorrente de sonho acordado:

    minha alma minha cano bolsos abertosde minha menteeu sou uma alucinao na ponta de teus olhos...

    Essa mesma voz que apregoa a prpria impiedade eu nunca poderei ser piedoso emanifesta todo o tempo a mais feroz agressividade contra todos e tudo aparece sob essaroupagem de cavaleiro errante e solitrio como o mais frgil e desamparado dos seres. A suatendncia fundamental para a atitude solipsista, refugiada numa dico antes furtiva, dandoas costas a toda audincia e comunicao direta. Contrasta, portanto, com o tom provocativodominante e permite pensar em dobras ocultas onde se resguardam os sentimentos maisntimos dessa complexa e espinhosa personalidade potica.

    Contudo, essa voz no a predominante no livro, cujo tom no dado apenas pelosremansos lricos, pela dico oracular e pelo ritmo descontnuo e associativo, mas, como seobservou acima, por outra voz cuja dico quer persuadir, com sua retrica insistente erepetitiva, e est mais prxima continuidade da prosa, ainda que se exprima em recorteslongos e cadenciados que respeitam a linha do verso. Eles parecem feitos para ser recitadosdiante de um auditrio, maneira de Allen Ginsberg. Correspondem, no entanto, a exignciasexpressivas mais fundas determinadas por aquilo que se poderia definir como oindividualismo dramtico de Piva, que s encontra parmetro semelhante na tradioromntica brasileira em lvares de Azevedo,9 com quem compartilha a atmosfera noturna defantasia e delrio e os traos de perverso e satanismo, embora se manifeste numa direodiversa daquela do autor do Macrio, sem chegar nunca obra dramtica propriamente dita.

    H decerto um elemento dramtico nos versos de Paranoia, e como no caso de lvaresde Azevedo, ele parece decorrer de divises internas irreconciliveis, de binomias doesprito (como disse o romntico no prefcio segunda parte da Lira dos vinte anos), de umapersonalidade conflitiva cujas dvidas e o sentimento da diviso no ficam longe daquilo quecaracteriza a alma adolescente e turbulenta de seus anjos de enxofre.

    Num ensaio clebre, T. S. Eliot, que caminhou da expresso lrica pea de teatro emversos em sua prpria obra, chamou a ateno para a mistura de vozes do poeta.10 Nele realaa importncia desse elemento dramtico, diferente do drama em versos no qual o poeta devecriar discursos poticos especficos e adequados ao e ao carter de cada um dos seresimaginrios que inventa. Os exemplos que d primeiro so os monlogos dramticos deRobert Browning, que assume a mscara de figuras histricas ou ficcionais, falando, noentanto, com sua prpria voz. Diferentemente de suas peas teatrais, neles no criapersonagens, pois fala com sua voz ainda que se sirva de uma persona (para empregar o termoque um discpulo de Browning, Ezra Pound, tornou famoso), como nos casos de Lippo Lippi eAndrea de Sarto, os pintores a que se referem dois de seus mais conhecidos monlogos. essa tambm a tcnica que Jorge Luis Borges utilizou para falar pela mscara de FranciscoLaprida no seu notvel Poema conjetural, reproduzindo o monlogo de um liberal argentinoque enfrenta a pretensa barbrie e descobre ao morrer seu verdadeiro destino sul-americano.

    Mas essa segunda voz, como observou ainda Eliot, est em muitas outras modalidades depoesia que no pertencem ao teatro, nem so propriamente monlogos dramticos como os deBrowning, e fazem uso desse elemento dramtico na sua relao declarada, implcita ou

  • virtual com uma plateia, para comunicar uma finalidade social consciente, com o intuito dediverti-la ou instru-la. Alguma coisa disso h, sem dvida, em Paranoia, e se combina comaquela voz solitria e meditativa do Eu que fala sozinho em outros momentos do livro, dandoas costas a qualquer auditrio. Qual a razo dessa duplicidade de procedimentos e de suacombinatria final para o destino do todo?

    Creio que nessa duplicidade j se exprime o mais profundo: o conflito essencial de quenasce a poesia de Piva, dividida em sua raiz entre o desejo de comunicao e a almaconfinada em seu segredo mais ntimo e incomunicvel, pois o fundo sem termo da solido deonde se origina o poema no totalmente concilivel com sua disposio retrica ou suaexposio final a um auditrio, mas tampouco pode se sustentar no absoluto isolamento. Emsua recolhida solido o poema fala uma linguagem privada e, no extremo, inefvel, porquetrata do desconhecido, do que no tem nome e no se pode dizer. O conflito que aflora namescla de vozes de Piva a condio de sua expresso pessoal, que necessita do xtase parater voz e exprimir o que secretamente fervilha em seu inalcanvel interior.

    O delrio que acompanha o xtase a tentativa de ver mais claro, no cerne da noite,aquilo que de fato sou e quem sabe possa vir luz. No fundo de sua prpria obscuridade, opoeta, demnio incorrigvel, caminha sem rumo pela cidade imaginria em busca de revelaro segredo que traz consigo mesmo.

    *Publicado em Roberto Piva. Obras reunidas. Estranhos sinais de Saturno. So Paulo: Globo, 2008, vol. 3.**Publicado em Roberto.Piva. Paranoia. So Paulo: IMS, 2009.1 Em Poliedro. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1972, p. 140.2 Epgrafe que Piva aps ao Poema de ninar para mim e Bruegel.3 Expresso utilizada por Antonio Candido no importante ensaio sobre Mrio de Andrade como O poeta itinerante, em seu Odiscurso e a cidade. So Paulo: Livraria Duas Cidades, 1993 (3a ed. So Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobreAzul, 2004). Dali tirei tambm o notmbulo alucinado em referncia naquele estudo a Augusto dos Anjos, cujo poema Ascismas do destino , como apontou o ensasta, um dos primeiros marcos dessa modalidade de poesia entre ns e, a meu ver,um dos precursores de Piva.4 Op. cit. Ibidem, p. 264.5 Cf. Biografia em sua Antologia potica. Porto Alegre: l&pm, 1985, p. 102.6 Cf. nesse sentido: Alfonso Berardinelli. Quatro tipos de obscuridade em seu Da poesia prosa. Trad. Maurcio SantanaDias. So Paulo: Cosac Naify, 2007.7 Cf. Poesia e composio em sua Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, pp. 723-37.8 Refiro-me ao famoso poema Piedra negra sobre una piedra blanca, em que se l: Csar Vallejo ha muerto, le pegaban/todos... Cf. Vallejo, C. Poesa completa. Ed. crtica de Juan Larrea. Barcelona: Barral Editores, 1978, p. 579.9 Ver, nesse sentido, Antonio Candido: lvares de Azevedo, ou Ariel e Caliban. Em Formao da literatura brasileira.So Paulo: Martins, 1959, 2o vol., pp. 178-93. A questo do individualismo dramtico, relacionada ao mago do espritoromntico, se acha na p. 180.10. Ver The three voices of poetry. Em On poetry and poets. 4a reimpr. Londres: Faber and Faber, 1965, pp. 89-102.

  • 6. Nota sobre Ceclia*

    A fortuna crtica de Ceclia Meireles est aqum da importncia de sua obra. Nesteestudo acurado de Leila Gouva, em que o trabalho minucioso de anlise brota da dedicaofervorosa, o leitor encontrar uma busca dos fundamentos dessa importncia aliada tentativade compreenso de sua poesia, atravs da leitura cerrada de inmeros poemas e de umexaustivo comentrio sobre sua pureza e significao.

    Embora boa parte da crtica a tenha sempre avaliado positivamente, como ocorreu comalguns poetas modernistas da primeira hora, e mais tarde, com os crticos Darcy Damasceno,Otto Maria Carpeaux, Alfredo Bosi, entre outros, a singularidade de Ceclia no quadro domodernismo e um juzo algo restritivo de Antonio Candido, serviram de acicate para odesenvolvimento do trabalho e justificativa de seu modo de ser mais ntimo. como se Leila,angustiada diante das lacunas da bibliografia ideal e da falta de um reconhecimento completo,quisesse cumprir de algum modo a tarefa de preench-los, numa entrega generosa a seu objetode estudo, que se reflete no tom reivindicatrio e apologtico que atravessa sua argumentao.Mesmo quando no chega a nos convencer, ela ressalta as qualidades de uma obra de primeiraplana e nos estimula a entend-la melhor.

    Trata-se, em linhas gerais, de uma interpretao que nasce de uma identificaoprofunda, mas no exclui o distanciamento crtico, traduzido em esforo analtico e nainvestigao das bases de pensamento em que se fundariam as intuies cristalizadas nasimagens poticas da autora de Viagem. Sem perder a conscincia crtica, o esforo deentendimento acompanha aqui um olhar apaixonado que adere viso lrica de Ceclia,assinalando sua fora de conhecimento, como no final da dcada de 1930 j o fizera Mrio deAndrade. E persegue seus desdobramentos at o espraiar-se da dimenso metafsica. ,portanto, uma reivindicao de valor e, ao mesmo tempo, um mergulho investigativo no vastomar de mistrios e vaga msica que lhe caracteriza a obra, sobretudo naquel