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W e b - R e v i s t a S O C I O D I A L E T O • w w w . s o c i o d i a l e t o . c o m . b r Bacharelado em Linguística e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178-1486 • Volume 1 • Número 6 • feverei ro 2012
Homenagem ao Prof . Dr. Ataliba Teixeira de Castilho
1
O HIBRIDISMO CULTURAL À LUZ DAS CONCEPÇÕES
BAKHTINIANAS: INFERÊNCIAS POSSÍVEIS
Karine Miranda Campos (UniRitter)1
RESUMO
O presente trabalho intenta estabelecer uma relação entre os conceitos de polifonia e carnavalização e a
concepção de hibridismo cultural. Para que possamos realizar esse exercício de reflexão, partiremos das
definições de identidade adotada por Stuart Hall − para quem a identidade define-se como algo
processual − e de nação defendida por Benedict Anderson cujo conceito está vinculado à ideia de
comunidade imaginada. Historicamente, o homem busca parâmetros com os quais possa se identificar de
forma estável. A instauração dos processos de navegação provoca o contato entre diferentes culturas,
transformando permanentemente os fatores que determinam as identidades do homem. A crise identitária
que assola o homem moderno nos leva a questionar como podemos determinar hoje conceitos de cultura
nacional, identidade e hibridismo. Partindo da compreensão de que o homem é resultado de uma infinda
cadeia responsiva de enunciados, tentamos evidenciar a complexidade das identidades humanas na
modernidade.
PALAVRAS-CHAVE
Polifonia, Carnavalização, Identidade, Nação, Hibridismo cultural.
INTRODUÇÃO
A importância do material produzido pelo grupo multidisciplinar de pensadores
russos durante a década de 1920, mais tarde conhecido como Círculo de Bakhtin, se
destaca pela busca da “Prima Philosofia” adotando uma perspectiva inovadora de
abordagem das questões da linguagem. Ao afirmar que a subjetividade humana surge na
e pela linguagem, cariam-se novos paradigmas para os estudos literários, artísticos e
sociais. As ideias do círculo condenam o marxismo vulgar em que predomina uma
lógica determinista e mecanicista, gerando uma visão unilateral e unidirecional
1Graduada em Letras Português e suas Respectivas Literaturas pelo UniRitter e Mestranda do PPGL/
UniRitter.
W e b - R e v i s t a S O C I O D I A L E T O • w w w . s o c i o d i a l e t o . c o m . b r Bacharelado em Linguística e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178-1486 • Volume 1 • Número 6 • feverei ro 2012
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simplificada das relações entre a base econômica e as manifestações da superestrutura,
além de criticar a visão formalista da literatura que estudava o texto literário apenas em
sua estrutura. O grupo considera o texto literário como produção humana e, por isso,
deve ser compreendido em seu caráter sócio-histórico assim como toda produção de
enunciados. A língua é um fato social cuja existência atrela-se à necessidade humana de
comunicação. A fala ou enunciado é o objeto principal de estudo e análise pelo qual é
possível evidenciar as questões da unicidade e eventividade do Ser, da formação do
caráter subjetivo no indivíduo e do componente axiológico intrínseco ao ser humano.
Bakhtin defende a existência de uma dicotomia entre o mundo da teoria – mundo
do juízo teórico, em que os atos concretos de nossa vida são objetivados na elaboração
teórica de caráter filosófico, científico, ético e estético – e o mundo da vida – ligado à
historicidade humana formado pela sequência irrepetível de atos. O dualismo apontado
por Bakhtin não pode ser superado a partir da razão teórica, mas pela razão prática da
qual emerge a unicidade dos atos efetivamente realizados. O agir, segundo o teórico, é o
ato de posicionar-se axiologicamente perante o mundo, ou seja, assumir a posição do eu
em oposição ao outro. O homem constitui sua subjetividade ao posicionar-se perante o
outro. É nessa relação de alteridade entre eu e tu que se encontra a balize do princípio
constitutivo maior do mundo real do ato realizado.
A vida conhece dois centros de valores que são fundamentalmente e
essencialmente diferentes, e ainda assim correlacionados um com o outro: eu
mesmo e o outro; e é em torno desses centros que todos os momentos
concretos do Ser são distribuídos e dispostos. (BAKHTIN apud FARACO,
2003, p.22)
A dinamicidade do universo de criação ideológica é estabelecida através do jogo
de forças, caracterizado pela metáfora do diálogo. A metáfora do diálogo, por sua vez, é
compreendida como uma infinda cadeia responsiva. Todo enunciado é, portanto,
resposta de um anterior ao mesmo tempo em que provoca o surgimento de outros
enunciados dos mais variados posicionamentos (confirmando, discordando,
questionando, completando, etc.).
W e b - R e v i s t a S O C I O D I A L E T O • w w w . s o c i o d i a l e t o . c o m . b r Bacharelado em Linguística e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178-1486 • Volume 1 • Número 6 • feverei ro 2012
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As relações dialógicas são, portanto, relações entre índices sociais de valor –
que, como vimos, constituem, no conceitual do Círculo de Bakhtin, parte
inerente de todo enunciado, entendido este não como unidade da interação
social; não como um complexo de relações entre palavras, mas como um
complexo de relações entre pessoas socialmente organizadas. (FARACO,
2003, p.64)
Admitirmos que o homem forma sua subjetividade na e pela linguagem é
compreendermos que a existência humana é essencialmente dialógica, característica que
se reflete em sua produção. Torna-se impossível detectarmos o termo adâmico do qual
se originaram todos os demais enunciados que circulam nas mais variadas esferas
sociais. Desse modo, podemos inferir que o homem moderno esteja imerso em uma
realidade híbrida por sua natureza linguística. As concepções filosóficas de Bakhtin
partem da observação da fala cotidiana e estendem-se para a produção literária. Os
conceitos de polifonia e carnavalização bakhtinianos originam-se nos estudos de
romances dos autores Dostoiévski e Rabelais. A observação de tais conceitos parece ser
fundamental para compreensão da formação identitária do sujeito na era da
modernidade.
Para Stuart Hall (2004), as definições identitárias do sujeito alteram-se, na
medida em que refletem a complexidade da realidade moderna, tornam-se
descentralizadas e fragmentadas. O sujeito do iluminismo – baseado na concepção de
unidade e centralização do indivíduo – desaparece, dando espaço ao sujeito sociológico
– cuja concepção vincula-se ao processo interativo entre o homem e a sociedade.
Nossas afirmações são baseadas em proposições e premissas das quais nós
não temos consciência, mas que são, por assim dizer, conduzidas na corrente
sanguínea de nossa língua. Tudo que dizemos tem um “antes” e um “depois”
uma “margem” na qual outras pessoas podem escrever. (HALL, 2003, p. 41)
A ideia do sujeito sociológico converge com a visão de Bakhtin, pois “o núcleo
ou essência interior desse sujeito é formado e modificado num diálogo contínuo e
permanente com os mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos
oferecem” (HALL, 2003, p.11). O sujeito pós-moderno surge do processo dialógico
entre o mundo pessoal e o mundo público, não possui uma identidade permanente, mas
identificação, ou seja, um contínuo processo de reconhecimento que se altera
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constantemente. O caráter dinâmico e permanentemente incompleto desse processo de
identificação parece nos remeter à ideia de que o homem e sua produção devam ser
considerados quanto ao seu caráter sócio-histórico. As antigas identidades atribuídas aos
indivíduos por fatores empíricos não nos possibilitam avançar nos estudos da sociedade
moderna. O conceito moderno de identidade está sujeito a constantes transformações o
que o torna permanentemente incompleto, característica que, consoante Bakhtin,
caracteriza o romance de Dostoiévski como polifônico.
O significado é inerentemente instável: ele procura o fechamento (a
identidade), mas ele é constantemente perturbado (pela diferença). Ele está
constantemente escapulindo de nós. Existem sempre significados
suplementares sobre os quais não temos qualquer controle, que surgirão e
subverterão nossas tentativas para criar mundos fixos e estáveis. (DERRIDA
apud. HALL, 2003, p.41)
A polifonia existente na obra de Dostoiévski é retirada do universo social
objetivo, universo cujos conflitos entre os diferentes planos e o caráter contraditório da
realidade social é dado como fato objetivo da época. O dialogismo instaurado pela
polifonia transforma o indivíduo, até então coisificado pelo autor, em senhor de sua
própria consciência. “O que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente
do grande coro de vozes que participam do processo dialógico” (BEZERRA, 2007, p.
194). Caracterizam a polifonia a interação e a coexistência de múltiplas vozes e
consciências equipolentes. As conversações entre as personagens, cujas consciências
interagem com liberdade, possibilitam que suas consciências não sejam pré-
determinadas pelo autor, mas construídas pelos próprios personagens. Entre autor e
personagens se estabelece uma relação dialógica solidária, em que tanto personagens
quanto o autor constroem sua subjetividade de forma permanentemente inacabada.
O conceito de carnavalização parece se aproximar do conceito de hibridismo
cultural. Desde as primeiras navegações, o homem inaugura um contínuo e progressivo
contato com múltiplas culturas distintas. De forma simplista, podemos inferir que a
natureza exploradora e a necessidade comunicacional humana vinculam de certo modo
os homens em uma mesma trama dialógica que constitui o tecido ao qual damos os
nomes de história e cultura. Bakhtin afirma que a produção de enunciados socialmente
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aceitos pressupõe o enquadramento desses, em regras convencionadas pelas instâncias
sociais institucionalizadoras do discurso oficial, tais como Igreja, Escola, Justiça, etc.
As identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença
e não estão livres do jogo de poder, de divisões e contradições internas, de
lealdades e de diferenças sobrepostas. Assim, quando vamos discutir se as
identidades nacionais estão sendo deslocadas, devemos ter em mente a forma
pela qual as culturas naciona9is contribuem para “costurar” as diferenças
numa única identidade. (HALL, 1998, p. 65)
As instancias oficiais exercem uma força centralizadora sobre as ações humanas,
o caráter balizador dos discursos oficiais determina axiologicamente o espaço ocupado
pelos indivíduos dentro da sociedade. Uma vez não reconhecido pelas instituições
oficiais o discurso é jogado à margem.
Fica registrada a carnavalização como movimento desestabilização,
subversão e ruptura em relação ao “mundo oficial”, seja este pensado como
antagônico ao grotesco criado pela cultura popular da Idade Média e
Renascimento, seja este pensado como modo de presença que aspira à
transparência e à representação da realidade como sentido acabo (sic), uno e
estável, o que é incompatível com a polifonia. (DISCINI, 2006, p.84)
Hall (1998) alega que as culturas nacionais são constituídas de instituições
culturais, símbolos e representações. “Uma cultura nacional é um discurso – um modo
de construir sentidos que influenciam e organizam tanto nossas ações, quanto a
concepção que temos de nós mesmos” (idem, p.50) do mesmo modo que as forças
centrípetas apresentadas por Bakhtin centralizam o discurso humano.
1 IDENTIDADE, NAÇÃO E HIBRIDISMO CULTURAL
A identidade, até então vista como unificada e estável, que estabilizava o
universo social em tempos anteriores não mais corresponde à complexidade da
realidade humana moderna. Para muitos teóricos “as velhas identidades, que por tanto
tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas
identidades e fragmentando o sujeito moderno” (HALL, 1998, p.7). O conceito de
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identidade está intrinsecamente relacionado ao conceito de alteridade, pois é no contato
com o outro que o indivíduo constitui sua determinação. “A consciência de si toma sua
forma na tensão entre o olhar sobre si próprio visão do espelho, incompleta e o olhar
do outro ou do outro de si mesmo visão complementar” (BERND, 2003, p.17). As
identidades dentro da modernidade estão deslocadas e fragmentadas.
Hall (1998) classifica três conceitos de identidades distintas: a do sujeito do
Iluminismo, a do sujeito sociológico e a do sujeito pós-moderno. O sujeito no
Iluminismo caracterizado como um indivíduo centrado, unificado, dotado de razão e
consciência cujo núcleo interior nasce com o sujeito e desenvolve-se com ele sem sofrer
alteração. “O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa” (HALL, 1998,
p.11). O sujeito sociológico permanece dotado de um núcleo centralizado que
corresponde a sua identidade. No entanto, o processo de formação e modificação desse
núcleo é realizado no diálogo continuo entre o mundo “exterior” e “interior”, ou seja,
entre o mundo pessoal e o mundo público. Muito próxima dessa dicotomia, Bakhtin ao
caracterizar o romance polifônico constata a existência de uma dicotomia entre o mundo
da teoria – mundo do juízo teórico, em que os atos concretos de nossa vida são
objetivados na elaboração teórica de caráter filosófico, científico, ético e estético – e o
mundo da vida – ligado à historicidade humana formado pela sequência irrepetível de
atos.
Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais
“lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as
“necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como
resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de
identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais,
tornou-se mais provisório, variável e problemático. (HALL, 1998, p.12)
Esse processo dialógico entre os mundos resulta no sujeito pós-moderno cuja
identidade não mais se caracteriza como fixa ou permanente, sua definição deixa de ser
biológica para ser historicamente definida. O indivíduo passa a assumir diferentes
identidades, não mais unificadas em torno de um “eu” coerente. “As sociedades
modernas são, portanto, por definição, sociedades de mudanças constante, rápida e
permanente” (HALL, 1998, p.14). “Encontramos, aqui, a figura do indivíduo isolado,
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exilado ou alienado, colocado contra o pano-de-fundo da multidão ou da metrópole
anônima e impessoal” (HALL, 1998, p. 32). O conceito de identidade cultural moderna
é constituído através da ideia de pertencimento a uma cultura nacional. Na medida em
que as sociedades modernas tornam-se complexas assumem uma forma mais coletiva.
No mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem
em uma das principais fontes de identidade cultural. Aos nos definirmos,
algumas vezes dizemos que somos ingleses ou galeses ou indianos ou
jamaicanos. Obviamente, ao fazer isso estamos falando de forma metafórica.
Essas identidades não estão literalmente impressas em nossos genes.
Entretanto, nós efetivamente pensamos nelas como se fossem parte de nossa
natureza essencial. (HALL, 1998, p.47)
Influenciada pelas transformações políticas que assolaram as sociedades nos
últimos séculos surge a ideia de nação cujo cerne indica um grupo de indivíduos que
comungam dos mesmos interesses. O conceito de nação deixa de ser vinculado apenas à
esfera política e se transforma em uma entidade que produz sentidos, um sistema de
representação cultural. Através desse processo de representação simbólica. Anderson
(1989) define nação como sendo uma comunidade imaginada. O termo “imaginada”
justifica-se a partir da constatação de que os indivíduos de uma nação, apesar de
acreditarem pertencer a uma unidade nacional, nunca terão conhecimento de seus
compatriotas e ainda que os conheçam, jamais chegarão a concordarem amplamente em
suas concepções.
Para dizer de forma simples: não importa quão diferentes seus membros
possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca
unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como
pertencendo à mesma e grande família nacional. [...] Uma cultura nacional
nunca foi um simples ponto de lealdade, união e identificação simbólica. Ela
é também uma estrutura de poder cultural. (HALL, 1998, p. 59)
As comunidades e nações, quando observadas fora do foco generalizador,
apresentam sua heterogeneidade, cada indivíduo se identifica parcialmente com os
parâmetros adotados pela cultura nacional em que está inserido. Entre comunidades e
nações diferentes se estabelece uma relação de espelhamento baseado na ideia de
superioridade/inferioridade, nem sempre pacífica. “A lealdade e a identificação que,
numa era pré-moderna ou em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo,
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à religião, foram transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura
nacional” (HALL, 1998, p.49).
O contato entre culturas diferentes é instaurado pelo processo de globalização
instaurado pelos navegadores durante o período de “descobrimentos”. Globalização é
compreendida como o conjunto de processos, atuantes em âmbito global, ultrapassando
as fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações tornando
o mundo cada vez mais interconectado.
A globalização implica um movimento de distanciamento da ideia
sociológica clássica da sociedade como um sistema bem delimitado e sua
substituição por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida
social está ordenada ao longo do tempo e do espaço. (GIDDENS apud.
HALL, 1998, p. 68)
Os fluxos culturais, entre as nações, e o consumismo global criam
possibilidades de “identidades partilhadas” – como “consumidores” para os
mesmos bens, “clientes” para os mesmos serviços, públicos para as mesmas
mensagens e imagens – entre pessoas que estão bastante distantes umas das
outras no espaço e no tempo. À medida as culturas nacionais tornam-se mais
expostas a influências externas, e é difícil conservar as identidades culturais
intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do
bombardeamento e da infiltração cultural. (HALL, 1998, p. 74)
O contato intercultural provocado pela globalização desestabiliza as fronteiras
que, até então, delimitavam as diferentes identidades culturais, fazendo emergir o que
Hall denomina de “identidades partilhadas”. Identidades que se formam na intersecção
das fronteiras naturais, difundidas através dos processos migratórios, diásporas e pelo
advento da internet. Surge, nesse contexto, um sujeito hibridizado cuja identidade
fragmentada assume diferentes posicionamentos constituídos por fragmentos de outras
culturas. No entanto, a hibridização cultural não provoca um apagamento das tradições
originais do sujeito.
A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no velho sentido,
porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas
interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas” (e não
a uma “casa” particular). As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas
têm sido obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir
qualquer tipo de pureza cultural “perdida” ou de absolutismo étnico.
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2 A POLIFONIA
A metáfora do diálogo é estabelecida dentro de determinadas regras
convencionadas socialmente e impostas aos sujeitos que desejem participar dessa
infinda cadeia responsiva. As instâncias oficiais da sociedade tendem a reger, de forma
centralizadora, as manifestações dialógicas através de regras e parâmetros que
determinam um modelo dialógico tornando-o socialmente aceito. A partir do estudo da
prosa romanesca de Dostoiévski, Bakhtin cria uma tipologia universal do romance
classificando-o em duas modalidades: o monológico e o polifônico. Ligado à categoria
monológica está o conceito de autoritarismo enquanto que ligado à categoria polifônica
estão os conceitos de realidade em formação, dialogismo e incompletude. O romance
polifônico caracteriza-se por ser um gênero em formação sujeito a alterações em que as
personagens são representadas em um infindo processo evolutivo. O romance
monológico é vinculado à indiscutibilidade dos discursos, ao autoritarismo, ao
dogmatismo e ao apagamento dos universos individuais das personagens e sua sujeição
ao universo do autor.
A polifonia e o dialogismo se imbricam na natureza ampla e multifacetada do
universo romanesco, instaurado pela presença de vários personagens e pela capacidade
do autor de recriar a riqueza dos seres e caracteres humanos, traduzindo a multidão de
vozes da vida social, cultural e ideológica representada. O monologismo centraliza o
discurso em seu produtor, no caso do romance o próprio autor, impedindo a
manifestação da consciência do outro. Esse modelo discursivo está atrelado às
instâncias oficiais de poder – a igreja, o Estado, a legislação, etc. – que exercem sob os
demais indivíduos sociais uma força de ordem centrípeta, cuja pretensão é estabelecer
ao seu discurso o valor de verdade absoluta e inquestionável. Os personagens, dentro do
universo monológico, não possuem nada a dizer; o autor manifesta tudo no lugar das
personagens. O autor, do alto de seu distanciamento, coisifica o outro, ignorando o
indivíduo, transformando-o em matéria muda.
A polifonia é aquela multiplicidade de vozes e consciências independentes e
imiscíveis cujas vozes não são meros objetos do discurso do autor, mas os
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próprios sujeitos desse discurso, do qual participam mantendo cada uma sua
individualidade caracterológica, sua imiscibilidade. (BEZERRA, 2007, p.
198)
3 CARNAVALIZAÇÃO
O riso e a carnavalização, segundo os teóricos do Círculo, estabelecem um
momento em que todas as vozes são equipolentes, um mundo de vozes plenivalentes. A
importância da carnavalização e do riso manifesta-se em sua força democratizadora que
dessacraliza os discursos oficiais, os discursos da ordem e da hierarquia, os discursos do
sério e do imutável.
[...] as leis, proibições e restrições que determinam a estrutura e a ordem da
vida ordinária, não carnavalesca, são suspensas durante o carnaval: o que se
suspende antes de tudo é a estrutura hierárquica e todas as formas correlatas
de terror, reverência, piedade e etiqueta – isto é, tudo aquilo que resulta da
desigualdade social hierárquica ou de qualquer outra forma de desigualdade
entre pessoas (inclusive etária). (BAKHTIN, 1997, p.122)
Bakhtin estuda o discurso literário de Dostoiévski e Rabelais como fato social.
Ao analisar o processo de criação do romance monológico, a partir do conceito de
reificação marxicista quanto à relação entre a produção da mercadoria e seu produtor,
cuja produção submete o homem reduzindo-o a coisa, o teórico conclui que a reificação
do homem surge com a sociedade de classes e chega ao limite com o capitalismo.
Paradoxalmente, o mesmo capitalismo que sujeita o indivíduo às mais variadas formas
de violência – econômica, política, ideológica, etc.– é responsável também pela
emergência de vozes que lutam contra essa submissão. Segundo Bezerra (2007), a visão
bakhtiniana do romance polifônico encontra na Rússia, durante o período capitalista, o
contexto perfeito para realizar-se.
[...] e justamente na Rússia, onde uma diversidade de universos e grupos
sociais nitidamente individualizados e conflituosos havia rompido o
equilíbrio ideológico, criado as premissas objetivas dos múltiplos planos e as
múltiplas vozes da existência, indicando que a essência conflituosa da vida
social em formação não cabia nos limites da consciência monológica segura e
calmamente contemplativa e requeria outro método de representação.
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Estavam criadas as condições objetivas da multiplicidade de vozes ou
polifonia [...] (BEZERRA, 2007, p.193)
As concepções desenvolvidas por Bakhtin de monologismo, dialogismo e
polifonia não as consideram como abstrações desvinculadas de seu conteúdo histórico,
social e ideológico. O autor interage com as personagens, regendo-as, sem interferir em
suas vozes, possibilitando a interação em pé de igualdade com e entre elas. Ao contrário
do que se imagina o romance polifônico não relega o autor a uma postura passiva, pois,
a consciência do autor não é apagada, tão pouco refletida na consciência da
personagem. É, portanto, dentro da categoria romanesca de polifonia que Bakhtin
identifica a carnavalização. O teórico na obra Questões de Literatura e de Estética ao
analisar a obra de Rebelais esclarece:
O objetivo deste trabalho é eliminar a ruptura entre o formalismo e o
ideologismo abstratos no estudo do discurso literário. A forma e o conteúdo
estão unidos no discurso, entendido como fenômeno social – social em todas
as esferas da sua existência e em todos os seus momentos – desde a imagem
sonora até os estratos semânticos mais abstratos. (BAKHTIN, 1998, p.71)
Bakhtin afirma que “A festa, as crenças populares ligadas a ela, sua atmosfera
particular de licenciosidade e de alegria arrancam a vida de sua trilha habitual, tornando
possível o impossível [...]” (BAKHTIN, 1998, p.430). A função social da festividade
carnavalesca brasileira observada pelo antropólogo Roberto da Matta – festa popular
originária do entrudo português – parece convergir com a posição bakhtiniana.
[...] discutir as peculiaridades de nossa sociedade é estudar também essas
zonas de encontro e mediação, essas praças e adros dados pelos carnavais,
pelas procissões e pelas malandragens, zonas onde o tempo fica suspenso e
uma nova rotina deve ser repetida ou inovada, onde os problemas são
esquecidos ou enfrentados; pois aqui – suspensos entre a rotina automática e
a festa que reconstrói o mundo – tocamos o reino da liberdade e do
essencialmente humano. É nessas regiões que renasce o poder do sistema,
mas é também aqui que se pode forjar a esperança de ver o mundo de cabeça
para baixo. (DAMATTA, 1997, p.18)
W e b - R e v i s t a S O C I O D I A L E T O • w w w . s o c i o d i a l e t o . c o m . b r Bacharelado em Linguística e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178-1486 • Volume 1 • Número 6 • feverei ro 2012
Homenagem ao Prof . Dr. Ataliba Teixeira de Castilho
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4 CONCLUSÕES
Bakhtin, em sua teoria acerca da polifonia e carnavalização, aponta a existência
de forças externas que centralizam os discursos sociais. À luz dos estudos
desenvolvidos pelo círculo de Bakhtin reconhecemos o processo de constituição da
subjetividade humana e consequentemente de sua identidade. O homem constitui-se
pela e na linguagem. Além disso, todo enunciado está vinculado a um enunciado
anterior cuja relação é estabelecida de diferentes formas: afirmação, refutação,
questionamento, etc. Compreender a importância da linguagem para a formação da
subjetividade do indivíduo parece ser uma condição indispensável para que se possa
compreender a importância da linguagem na formação identitária do sujeito.
Admitirmos que o homem forma sua subjetividade na e pela linguagem é
compreendermos que a existência humana é essencialmente dialógica, característica que
se reflete em sua produção. Torna-se impossível detectarmos o termo adâmico do qual
se originaram todos os demais enunciados que circulam nas mais variadas esferas
sociais. Desse modo, podemos inferir que o homem moderno esteja imerso em uma
realidade híbrida em virtude de sua natureza linguística. A necessidade comunicacional
humana aliada à globalização instaurada pelos antigos navegadores deu início ao
contato intercultural que resultou nas descentralizações observadas no sujeito moderno.
Estamos imersos em uma cadeia responsiva de enunciados, nossas identidades são
respostas dessa infindável cadeia de enunciados que nos vincula a um discurso adâmico
cuja origem permanece oculta nas “profundezas primitivas” da consciência humana.
A natureza dialógica da subjetividade e da identidade humana resulta em sujeitos
híbridos que dicotomicamente estão dentro e fora das culturas, ocupando um espaço
intermediário. A expressão cunhada em quimbundo pelo escritor José Luandino Vieira,
em Estória de Família, “Kiakudikika, kiazanga”, ou o que se mistura se separa parece
ilustrar com perfeição a situação do sujeito moderno. A mistura de culturas, no entanto,
não ocorre de forma pacífica, pois o caráter axiológico da consciência humana cria
categorias dicotômicas em que enquadramos as culturas e identidades como
superior/inferior e aceita/ rejeitada.
W e b - R e v i s t a S O C I O D I A L E T O • w w w . s o c i o d i a l e t o . c o m . b r Bacharelado em Linguística e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178-1486 • Volume 1 • Número 6 • feverei ro 2012
Homenagem ao Prof . Dr. Ataliba Teixeira de Castilho
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REFERÊNCIAS
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Oliveira. São Paulo: Editora Ática, 1989.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 2 ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética. 4ªed. São Paulo: UNESP,
1998.
BERND, Zilá. Literatura e Identidade Nacional. 2ª Ed. Porto Alegre: Editora
UFGRS,2003.
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: Bakhtin: conceitos-chave. (org.) Beth Brait. 4ª edição.
São Paulo: Contexto, 2005.
DISCINI, Norma. Carnavalização. In:Bakhtin: outros conceitos-chave. (org.) Beth
Brait. São Paulo: Contexto, 2006.
MATTA, Roberto Da. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do
dilema brasileiro. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da
Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.
Recebido Para Publicação em 30 de outubro de 2011.
Aprovado Para Publicação em 23 de janeiro de 2012.