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O HOMEM NA VISÃO CRISTÃ Ernest BENZ Se Deus não se tornasse homem, tampouco o mundo teria sido criado. Porque, na realidade, foi para que Deus se tornasse homem que Ele criou o mundo. Um estudo da compreensão cristã do homem não pode limitar-se atualmente, em plena época do movimento ecumênico, à Antropologia de uma única confissão cristã. Realmente, o empenho teológico das Igrejas cristãs, mediante uma reflexão comum sobre as bases bíblicas comuns à doutrina cristã, orienta-se no sentido de elaborar uma compreensão quanto possível comum da essência e da dignidade do homem, de sua relação com Deus, com o universo e com seus semelhantes. No entanto, essa imagem comum do homem de acordo com a fé cristã constitui ainda apenas um objetivo do empenho ecumênico, e o esforço para atingir esse objetivo está ainda apenas no começo. Não existem ainda declarações teológicas de compromisso, nas quais se possa exprimir o novo esforço e em que o presente estudo se possa apoiar. Quem desejar atualmente compreender a imagem cristã do homem deve ainda forçosamente recorrer às fontes do Antigo e do Novo Testamento. Além disso, deve examinar as afirmações da tradição da Igreja antiga e dos principais expoentes das Igrejas e Confissões cristãs a respeito do tema Antropologia cristã, bem como os tipos de uma imagem do homem que se concretizaram na prática, no decurso da história da Igreja. Num estudo da Antropologia cristã, recomenda-se, contudo, não consultar somente os manuais de dogmática das confissões cristãs e as modernas interpretações teológicas, que, por sua vez aparecem como interpretações dos anunciados do Novo e do Antigo Testamento. Pelo menos, são de igual importância as manifestações espontâneas dos místicos cristãos, para quem tinha relevância a questão da concepção da imagem cristã do homem relacionada com sua própria experiência religiosa. A experiência religiosa dos místicos é um dos mais fortes impulsos criadores da história do espírito cristão. Enquanto os capítulos antropológicos dos manuais de dogmática possuem, em grande parte, um caráter convencional, apresentando, no decurso da evolução histórica da

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O HOMEM NA VISÃO CRISTÃ Ernest BENZ Se Deus não se tornasse homem, tampouco o mundo teria sido

criado. Porque, na realidade, foi para que Deus se tornasse homem que Ele criou o mundo.

Um estudo da compreensão cristã do homem não pode limitar-se

atualmente, em plena época do movimento ecumênico, à Antropologia de uma única confissão cristã. Realmente, o empenho teológico das Igrejas cristãs, mediante uma reflexão comum sobre as bases bíblicas comuns à doutrina cristã, orienta-se no sentido de elaborar uma compreensão quanto possível comum da essência e da dignidade do homem, de sua relação com Deus, com o universo e com seus semelhantes.

No entanto, essa imagem comum do homem de acordo com a fé

cristã constitui ainda apenas um objetivo do empenho ecumênico, e o esforço para atingir esse objetivo está ainda apenas no começo. Não existem ainda declarações teológicas de compromisso, nas quais se possa exprimir o novo esforço e em que o presente estudo se possa apoiar. Quem desejar atualmente compreender a imagem cristã do homem deve ainda forçosamente recorrer às fontes do Antigo e do Novo Testamento. Além disso, deve examinar as afirmações da tradição da Igreja antiga e dos principais expoentes das Igrejas e Confissões cristãs a respeito do tema Antropologia cristã, bem como os tipos de uma imagem do homem que se concretizaram na prática, no decurso da história da Igreja.

Num estudo da Antropologia cristã, recomenda-se, contudo, não

consultar somente os manuais de dogmática das confissões cristãs e as modernas interpretações teológicas, que, por sua vez aparecem como interpretações dos anunciados do Novo e do Antigo Testamento. Pelo menos, são de igual importância as manifestações espontâneas dos místicos cristãos, para quem tinha relevância a questão da concepção da imagem cristã do homem relacionada com sua própria experiência religiosa. A experiência religiosa dos místicos é um dos mais fortes impulsos criadores da história do espírito cristão. Enquanto os capítulos antropológicos dos manuais de dogmática possuem, em grande parte, um caráter convencional, apresentando, no decurso da evolução histórica da

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Igreja, poucas idéias novas surgem, precisamente na Antropologia da mística cristã, impulsionada por recentes experiências religiosas, aspectos surpreendentemente novos, cheios de vida e até revolucionários na concepção e efetivação da imagem cristã do homem. No campo da Antropologia deve-se, pois, recorrer amplamente às afirmações dos místicos cristãos.

Esta abordagem torna-se tanto mais importante, quanto é certo

que, durante séculos, certos temas da Antropologia cristã, sob o império de concepções dogmáticas unilaterais, retrogrediram ou caíram no esquecimento. Foi por isso, talvez, que, desde a Reforma, no século XVI, a qual reduziu a questão religiosa à questão de relacionamento pessoal do homem com Deus e à questão da fé e da justificação, o problema da compreensão cristã

da natureza e da relação do homem com o universo passou, dentro

dos limites do cristianismo europeu, ,cada vez mais para o segundo plano. Neste particular, sobretudo, foram os místicos que levaram adiante, através dos séculos o conhecimento sobre a relação íntima entre Deus, homem e universo, interpretando-o com formas sempre novas, conforme a característica da sua experiência de Deus e do Cristo.

O HOMEM – IMAGEM DE DEUS O ponto de partida da compreensão cristã do homem é o

reconhecimento de que o homem foi criado conforme a imagem de Deus. Esse pensamento da criação do homem conforme a imagem de Deus (Gên. 1,27: Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus) tornou-se aos poucos, por uma multissecular tradição teológica, tão familiar e natural aos cristãos, que hoje poucos ainda compreendem ou sequer têm uma leve idéia do mistério inconcebível expresso nessa concepção do homem. Com efeito, o conteúdo dessa afirmação é, nada mais nada menos, que o Deus inconcebível, superessencial, superpotente, que supera todo ser, todo poder e todo conhecimento, não quis ficar sozinho em sua transcendência mas criou um parceiro, desejou ser representado pessoalmente por uma de suas criaturas, escolhendo entre todas elas o homem para retratar-se nele. Pois isto não quer dizer apenas que Deus imprimiu sua própria imagem em forma de um selo num material. moldável, mas sim que elevou o homem àquela criatura na qual ele próprio, Deus, que na ser reconhecido em sua imagem e, com isso, chegar à ,consciência de si mesmo, fazendo com que o homem passasse a

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pertencer decisivamente à auto-revelação de Deus tornando-se a história humana uma teogonia! '

No homem Deus realiza sua auto-imagem; no homem ele se mostra

assim como ele é. Fazendo do homem a sua cópia, não somente faz com que este participe de sua imagem, mas constitui-o parceiro de sua auto-realização, de sua auto-revelação. Deus e homem estão relacionados entre si tão estreitamente, que se pode dizer que um supõe o outro. Precisamente neste sentido são significativas as afirmações dos grandes místicos. Eles que viveram a unio mystica (união mística) com Deus, exprimiram essa relação íntima entre Deus e o homem, reiterando sempre este pensamento, que Deus e homem se supõem mutuamente.

"Sei que sem mim Deus não subsiste nem por um instante; se eu voltasse ao nada, ele deveria morrer por carência".

(ANGELUS SILESIUS) Essa é, sem dúvida, a mais radical explanação da idéia de que o

homem foi criado segundo a imagem de Deus. O homem encontra sua realização em Deus, seu protótipo, mas também Deus, por sua vez, é somente no homem que ele atinge a plenitude de sentido do seu próprio ser. Na unio mystica realiza-se a aspiração do homem para com Deus e a aspiração de Deus para com o homem.

Nenhum místico percebeu de maneira tão viva esta relação entre

Deus e o homem como bilateral, nem compreendeu tão profundamente o mistério da relação de imagem entre Deus e o homem, como o mestre ECKHART.

Pode-se expressar a sua visão com os seguintes pensamentos

simples: Deus não quer estar sozinho. Sua mais íntima essência é amor. Mas, amor 100mente pode completar-se numa livre reciprocidade de amor. Deus criou o homem conforme a sua imagem e doou-lhe, com isso, a liberdade de dedicar-lhe seu inteiro amor, correspondente ao amor de Deus, mas, com a liberdade, Deus franqueou para o homem também a possibilidade de se apartar dele. Na realidade, o homem exerceu sua liberdade conforme seu lado negativo: amou-se a si próprio, em lugar de dirigir seu amor para Deus. Mas Deus não pode deixar de amar o homem e de esperar dele o cumprimento de seu amor numa livre reciprocidade. Ele desperta no homem o amor de Deus, gerando e fazendo nascer nele o

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seu Filho. O "abismo" divino é a razão mais profunda de onde promana e "transborda" o amor de Deus que inunda a alma humana para nela se completar. '

O HOMEM E AS OUTRAS CRIATURAS Já na Igreja antiga a idéia do homem como criatura criada à imagem

de Deus foi interpretada em duas direções. Primeiramente, compreendeu-se com isso que o homem, como todas as demais criaturas do universo, é, por sua essência, criação de Deus. Isto significa que ele não é divino por sua natureza, mas foi criado do nada e, como criatura, está em relação de pura e Simples dependência de Deus, nada tendo por si mesmo, pois deve tudo inclusive seu ser, exclusivamente à vontade de seu divino Criador. Com isso se exprime uma relação bem acentuada do homem com as outras criaturas. O homem está numa solidariedade de fraternidade comum com todas as demais criaturas, que receberam igualmente de Deus seu ser, sua vida e sua forma. -

Na teologia ocidental mais recente, a idéia da solidariedade das

criaturas entre si, em virtude do fato de terem sido todas criadas igualmente por Deus, a quem devem seu ser, sua vida e sua forma, cedeu quase completamente seu lugar ao pensamento da posição privilegiada do homem e da sua especial função de dominador. Só raramente e por poucas personalidades carismáticas da história da religiosidade ocidental foi praticada e expressa a idéia da solidariedade do homem com as outras criaturas. Um dos poucos carismáticos que sentiu de modo original a fraternidade de todas as criaturas foi FRANCISCO DE ASSIS, que expressou essa experiência em seu "Canto do Sol":

"Louvado sejas tu, meu Senhor, com todas as tuas criaturas sobretudo com o nosso irmão sol... ' Louvado sejas tu, meu Senhor, por nossa irmã lua. Louvado sejas tu, meu Senhor, por nosso irmão, o vento... Louvado sejas tu, meu Senhor, por nossa irmã, a mãe terra, que nos

prove e nos nutre ... Louvado sejas tu, meu Senhor, por nossa irmã, a morte corporal".

Há poucas indicações, aliás, na teologia mais recente, em que ainda

aparece este conhecimento da solidariedade do homem com as demais criaturas como motivo dominante do pensamento e da prática cristã. Falta também, em grande parte, à teologia a visão de que precisamente a perda

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dessa consciência de solidariedade é uma das principais conseqüências da revolta do homem contra Deus, modificando tão radicalmente sua relação com Deus, com o universo e com seus irmãos, as outras criaturas.

Muito mais enfaticamente foi posto em primeiro plano o segundo

aspecto da idéia do homem como imagem de Deus: o fato de Deus ter criado o homem à sua imagem determina a dignidade toda particular do ser humano em face de todas as demais criaturas. Deus criou somente o homem à sua imagem.

Na realidade, o fato de se contemplar no homem a imagem

completa de Deus, que nas outras criaturas só transparece em indícios, fundamenta também a unidade da humanidade, dentro da qual as diferenças biológicas, raciais, geográficas e históricas, constituem apenas individuações desse caráter de imago Dei (imagem de Deus) comum a todos os homens. A imagem de Deus no homem é o sinal próprio de sua determinação e vocação divinas e o fundamento da futura unificação da humanidade no reino de Deus.

Em que consiste essa semelhança com Deus? Durante certo tempo,

sob a influência da filosofia dualista de Platão, a teologia cristã tentou ver essa semelhança unicamente na capacidade espiritual do homem e na sua potência cognitiva. AGOSTINHO, na posição fundamentalmente dualista de seu pensamento, em sua grandiosa obra sobre a Trindade divina, que inspirou toda a teologia medieval, partiu da idéia básica de que, se o homem foi criado conforme a imagem de Deus, se deve reencontrar nele um vestígio da vida intratrinitária de Deus, vestígio este que só pode ser descoberto na vida intelectual do homem, em sua "mens". Desta forma, numa análise do processo da percepção sensível, em seguida da memória e do conhecimento espiritual, AGOSTINHO procura identificar no intelecto humano esses vestígios da Trindade divina (vestigia trinitatis) e, com isso, abordar a imagem de Deus no homem sob o aspecto metafísico e psicológico.

Novamente coube à mística cristã superar essa consideração

dualista do homem, compreendendo-o, em sua totalidade de corpo e espírito, como imagem de Deus. A imagem de Deus imprime-se até mesmo na esfera da corporalidade do homem. Atrás da idéia da criação do homem segundo a imagem de Deus, já se encontram o pensamento e a intenção fundamentais da Encarnação, da descida de Deus na carne: a

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auto-apresentação de Deus no homem. Já na própria criação do homem conforme a imagem de Deus anuncia-se a sua vontade de auto-revelação na corporalidade da história. Mesmo sob o ponto de vista de sua criação corporal, o homem é o ser universal, no qual se resumem as forças e os princípios formadores e as formas de expressão de todo o universo numa unidade pessoal de espírito, alma e corpo.

O HOMEM E O UNIVERSO Na idéia do homem como imagem de Deus transparece desde logo

também sua relação com o universo, pois também o universo, o cosmos, é imagem de Deus; também nele estão representadas as idéias criadoras de Deus; também nele realizam-se corporalmente as formas espirituais que existiam na consciência de Deus. Deus é um ens manifestativum sui, um ser que quer existir, revelar-se, manifestar-se e dar corpo a si mesmo, e todo o âmbito do universo criado é o local e a obra de S1Ua auto-revelação e autorrealização.

Homem e universo estão igualmente, portanto, numa relação de

imagem. Para determinar mais precisamente essa relação, a Antropologia

cristã foi buscar na mística neoplatônica um antigo pensamento, dando-lhe um outro sentido; a idéia do homem como microcosmo - o pequeno mundo. Isto significa que o homem, graças a sua natureza espiritual e corporal, representa o compêndio de todas as formas de vida e feições de todos os elementos e forças do universo. Todo o âmbito' da vida das criaturas não passa de um desdobramento do homem. No reino global do mundo animal, vegetal, do mundo orgânico e mineral, vão-se desenvolvendo todos aqueles elementos de formas' e forças que no homem encontram sua forma definitiva.

Essa idéia do homem como microcosmo foi apresentada na

interpretação cristã, em oposição ao pensamento neoplatônico, de maneira tal, que a idéia do ser criado e da diferença essencial entre Deus e o homem nunca foi esquecida: ao contrário, precisamente da posição privilegiada do homem derivou-se uma determinada hierarquia: .

1. de adoração, 2. de amor, 3. de serviço e

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4. de responsabilidade. Quem mais claramente expressou essa idéia foi JOHANN ARNDT,

que em 'seus "Quatro Livros Sobre o Verdadeiro Cristianismo" sintetizou o conjunto da experiência mística no cristianismo do Ocident1e.

1. Adoração: O homem deve "usar as criaturas de Deus... para o

reconhecimento, louvor e glória de Deus, para que em tudo Deus seja glorificado por Cristo Jesus, nosso Senhor". As criaturas, em cujo centro se acha o homem, são concebidas como "mãos e mensageiras de Deus", que nos devem conduzir até ele.

2. Amor: Um olhar para a admirável ordem da natureza deve

exortar o homem a amar a Deus, que assinalou cada uma das formas de sua criação com "o sinal de sua escrita e inscrição vivas". Ao homem que tem fé abre-se o universo como uma área "de todos os dons perfeitos, que provêm do Pai das luzes (Tg. 1,17) e inspiram ao homem o amor independente para com Deus".

Mostra-se aqui uma compreensão especificamente cristã do

universo e da posição do homem dentro do universo: o mundo, como criação de Deus, é concebido como domínio da ordem divina, cuja validade se fundamenta na sua vontade e é por da garantida. Nisso se baseia uma grande confiança interna do homem para com o mundo, concebido como âmbito da autorrealização do Criador divino, como império da divina Providência; um mundo, portanto, frente ao qual o homem pode manifestar a sua atitude funda· mental de que ele, tal como é, é bom e correto. Na relação entre o homem e' o mundo supera-se o dualismo. Homem e mundo são ambos criaturas de Deus, oriundos da mão onipotente do Criador. O homem não foi atirado nem caiu num mundo mau, hostil, pecador e ruim por natureza; ele ergue-se no mundo de Deus como criatura divina, como microcosmo em meio a um macrocosmo; o qual se move segundo as mesmas leis e ordenações e é construído dos mesmos elementos que se reencontram também na forma espiritual-corporal do homem.

3. Serviço: A mesma ordem hierárquica indica ao homem seu

serviço específico no mundo. O homem é "a criatura mais nobre": enquanto todas as demais criaturas foram criadas para servirem ao homem, ·este foi criado para servir a Deus. Na própria ordem das criaturas

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s·e exprime o fato de que o homem foi criado por Deus. Deus imprimiu em todas as criaturas um sinal através do qual se pode descobrir o Criador. O homem, porém, como fim de todas as criaturas, alcançou o mais alto grau de semelhança com Deus. No homem, Deus "imprimiu desde o começo simplesmente o seu selo integral, de modo que nele se possa ver a sua imagem completa", a qual nas demais criaturas somente é reconhecida em vestígios (ARNDT, livro 4, 2.a parte,cap. 23, § 2). Aí fundamenta-se também a unidade do gênero humano, dentro do qual as diferenças biológicas, raciais, geográficas e históricas são apenas diferenciações no domínio da mesma natureza humana, cuja mais alta qualificação é dada pelo selo da semelhança com Deus. Esta imagem de Deus no homem é o sinal característico de seu destino e , vocação divinos: Por causa deste destino e desta vocação, "todos os homens devem considerar-se um só homem e manter entre si o mais alto grau de unidade e de paz" (ARNDT, livro 4, 2.a parte, capo 25, § 3). Logo, o homem compreendido assim está a serviço de uma dupla solidariedade: primeiramente, a serviço da solidariedade de fraternidade do homem com todas as outras criaturas que, como ele, receberam de Deus seu ser, sua vida e sua forma; em segundo lugar, a serviço da solidariedade da "fraternidade mais próxima" dos homens entre si, uma vez que, pela criação segundo a imagem de Deus, se distinguem das demais criaturas (ARNDT, livro 4, 2.a parte, capo 25, § 4).

4. Responsabilidade: Com isso, já está também definida a

responsabilidade do homem. Esta vem intimamente ligada com sua posição dentro da totalidade das criaturas e do universo. É muito importante, para a compreensão cristã do homem, considerar o ponto de vista da responsabilidade superior ao ponto de vista de domínio - "Dominai a terra" (Gên. 1,28). Exatamente pelo fato de as criaturas possuírem o que possuem em consideração ao homem, este tem a responsabilidade não somente por si mesmo, mas também pelas demais criaturas e pelo mundo, perante Deus e por causa de Deus. "Quanto melhores e mais nobres são as criaturas, tanto mais o homem é responsável por elas perante Deus,."

O DOMÍNIO DO HOMEM SOBRE A TERRA Somente com base nesta idéia de responsabilidade do homem pelas

outras criaturas, responsabilidade esta decorrente de sua posição especial dentro da hierarquia das criaturas, como única criada "à imagem de

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Deus", é que se deve entender a incumbência de domínio sobre toda a hierarquia das criaturas abaixo dele, que Deus atribuiu ao homem com as palavras: "Dominai a terra" (Gên. 1,28), dirigi das por Deus a Adão e Eva no paraíso. Este é o ponto em que a Antropologia e Cosmologia cristãs mais profundamente se distinguem da imagem do homem' e da imagem cósmica do mundo na concepção das religiões não-cristãs. Para os budistas, antes de tudo, esta incumbência de Deus' ao homem, de submeter a si todas as criaturas, parece inteiramente inaceitável, ou, antes, lhe parece como o pecado em pessoa. Essa concepção, com efeito, fere sua mais profunda convicção de que a finalidade do homem na sua relação com o mundo não é o domínio, mas a identificação com ele, a experiência da unidade com o universo. Na realidade, a secularização do cristianismo e da cultura cristã prendeu-se justamente nessa incumbência dada por Deus aos homens. Todo o desenvolvimento da técnica moderna realizou-se sob o signo de uma proclamação desta tarefa, do domínio do homem sobre a natureza, proclamação esta que se foi desvencilhando cada vez mais das suas raízes religiosas, a partir do século XVI. Acelerou-se o processo de secularização da tarefa de domínio pelo fato de que a revolução técnica e a emancipação das ciências naturais ocorreram numa época em que a própria Igreja cristã tinha negligenciado quase que totalmente na sua doutrina e pregação as tarefas de uma Cosmologia cristã.

A pregação eclesiástica esquecera-se em grande parte de acentuar

com ênfase que essa incumbência "Dominai a terra" foi dada por Deus ao homem antes da queda, isto é, antes do abuso de sua liberdade na revolta contra Deus, e que essa enorme incumbência de domínio estava ligada a uma não menos abrangente responsabilidade para com o mundo que lhe fora entregue por Deus.

A tarefa de domínio dada ao homem íntegro está de antemão ligada

à atribuição da mais elevada responsabilidade pelo mundo diante de Deus. Ela só pode ser desempenhada, a partir da queda, pelo homem renovado em Cristo. Quanto maior for o alcance do domínio do homem, tanto maior é sua responsabilidade perante Deus pelas criaturas, que lhe foram confiadas, e essa responsabilidade só pode ser plenamente reconhecida e exercida por aquele que recuperou de Cristo e em Cristo a renovação da sua imagem de Deus. Somente a partir desse reconhecimento é que se poderia superar uma evolução errônea da

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técnica e um abuso do domínio que, através dela, o homem exerce sobre o mundo.

A transformação da imagem científica do mundo, da concepção

geocêntrica, que se baseia na idéia bíblica do mundo, para a heliocêntrica e para a visão da pluralidade dos mundos, que se propagou desde COPÉRNICO e GALILEU, não afetou em princípio a idéia do homem como microcosmo. O "choque copernicano", porém, provocou uma desvalorização do homem e uma correspondente desvalorização da história da salvação; esta foi a razão porque a Igreja recusou fortemente a nova imagem do mundo. O homem que, segundo a concepção geocêntrica da Bíblia, era a "coroa" da obra divina, cuja redenção representava a preocupação principal de Deus, começou a aparecer, na concepção heliocêntrica do mundo, como um habitante insignificante de um mesquinho grão de poeira: a história da salvação parecia degradada a uma bagatela sem qualquer valor. A representação da tremenda solidão de nossa terra e do abandono do homem dentro de um universo inimaginavelmente amplo e enorme, levou no sentimento do barroco a uma crise niilista, a qual, porém, foi logo superada pela idéia de que também. o cosmo maior é o lugar da presença e auto-manifestação de Deus, isto é, que o espaço do universo é o sensório de Deus (NEWTON). Já na segunda metade do século XVIII, SWEDENBORG desenvolveu uma teologia do universo maior, contemplando na pluralidade de mundos uma correspondente pluralidade de manifestação e descida do Logos divino. Depois que a concepção da pluralidade de mundos só em nossos dias se impôs à consciência geral, no contexto dos êxitos das viagens espaciais, causando uma transformação radical da consciência que o homem tem do mundo, pode-se constatar uma evolução quase em sentido contrário. A experiência da triste solidão da Lua e de' Marte, a descoberta da ausência, nos planetas do nosso sistema solar, de atmosfera, de água e de ar, assim como de tudo que nos torna humanamente suportável e agradável a vida sobre a terra, tornou a trazer, pela primeira vez, à consideração não só da consciência científica, mas também religiosa, a incomparável singularidade da Terra e do homem. Contemplando a Terra a brilhar numa luz viva e azulada por sobre a paisagem desolada, morta e cheia de crateras da Lua, exclamou espontaneamente um dos astronautas: "Oh! Que Terra paradisíaca!" Físicos como PASCAL JORDAN (1968) formulam a tese segundo a qual é mais provável que a Terra seja o único corpo celeste em que se desenvolveu a vida orgânica até o grau de consciência humana. Com a singularidade da Terra foi redescoberta também a singularidade do

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homem, tão depressa desvalorizado na época da ciência positivista. A teologia, que no século das grandes descobertas científicas se separou das ciências naturais, tem que começar a recuperar tudo, a começar por uma teologia da matéria e da corporalidade, até uma nova interpretação da "imago Dei" e da posição do homem no universo, à qual pertence, não em último lugar, também uma teologia da técnica. A visão do universo maior não concorre para a diminuição do homem, mas sim para fazer com que o mistério da Encarnação pareça ainda maior.

O PROBLEMA DO MAL A compreensão cristã do mal prende-se imediatamente à idéia

fundamental da criação do homem conforme a imagem de Deus. É errado deduzir a noção cristã do mal e do pecado do pressuposto dualista de oposição entre espírito e corpo, razão e matéria. O triunfo do mal não se identifica com a vitória da matéria, da "carne", sobre o espírito. Entretanto, é certo que se percebe uma tal interpretação dualista, porque, durante séculos, a doutrina cristã do pecado foi influenciada também em muitos autores da Igreja pelos pressupostos filosóficos do dualismo neoplatônico. Além disso, em AGOSTINHO existe ainda a influência do maniqueísmo, eivado de concepções dualistas da religião zoroástrica, que via na concupiscência sexual o impulso primordial do pecado.

Mas, fecha-se também o acesso para a compreensão de uma

Antropologia cristã, quando se toma como ponto de partida um dualismo metafísico. O único ponto de partida legítimo é a idéia de liberdade, que se baseia na concepção do homem como imagem de Deus. Deus criou o homem à sua imagem. Uma vez que Deus, o Criador, é pessoa, cujo ser pessoal se desdobra na imperscrutável 'e misteriosa plenitude de sua vida interior, também ao homem, sua imagem, compete o caráter de: pessoa. O homem é pessoa, porque' Deus é pessoa e porque foi criado à imagem de Deus. O ser pessoal do homem é a marca própria de seu ser à imagem de Deus; e aqui está o fundamento da sua nobreza, que o distingue de todas as demais criaturas. Se a fé cristã se distingue de outras religiões pelo fato de que Deus para o cristão é pessoa, essa fé encontra, assim, a sua realização dinâmica e a sua eficácia criadora, que abrange todo o mundo, na conseqüência que daí se segue, isto é, que também o homem é pessoa.

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Mas, pelo fato de Deus ter criado o homem à sua imagem, isto é, como pessoa, incorreu em um tremendo risco. O sinal próprio do ser pessoal de Deus é a liberdade. Criando Deus o homem à sua imagem, transmitiu-lhe também este sinal de nobreza, a liberdade, pois esta liberdade constitui o único pressuposto para o amor, a única possibilidade para que o homem, como parceiro de Deus, pudesse retribuir seu amor livre, correspondendo ao amor de Deus com o seu livre amor mútuo. .

Aqui encontramos o núcleo mais íntimo da idéia de imagem, a visão

cristã do amor. Conforme a visão cristã, o amor em sua forma consumada só é possível entre pessoas e, inversamente, uma pessoa não pode se realizar de forma perfeita mediante o amor por uma coisa, mas sim somente através do amor por uma outra pessoa. Mas o pressuposto fundamental do amor é a liberdade.

Aqui se esboça um mistério que só os místicos da envergadura de

um Mestre ECKHART ousaram exprimir: Por que deu ele esse arriscado passo de reproduzir-se numa criatura sua, imprimindo-lhe J sinal distintivo da sua pessoa? A essa questão os místicos, baseados na sua experiência íntima, só apresentam a única resposta: Deus não quis ficar sozinho; desejou realizar seu ser, que é amor, no encontro com um outro ser que estivesse em condições de responder com seu próprio amor livre ao amor divino. - O homem deveria ser o parceiro de Deus, em cujo livre amor para com Deus se completasse o mais íntimo ser do Criador.

"Deus se interessa por mim tanto como eu por ele, Ajudo tanto seu ser, como ele trata do meu".

(ANGELUS SILESIUS) O RISCO DA LIBERDADE O risco em que Deus incorreu ao criar o homem à sua imagem

consistiu em conceder a liberdade ao homem como pessoa. O homem poderia usar esta liberdade para retribuir o seu amor a Deus, seu Criador, oferecendo-se a ele com um livre amor e unindo-se a ele.

Entretanto, no próprio dom da liberdade estava contida também a

outra possibilidade, a de se decidir contra Deus e fazer-se a si mesmo o alvo de seu amor. O acontecimento que na história mosaica da criação vem descrito como o da "queda do pecado" é, na sua essência íntima, a

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decisão do homem, que consiste na prova da liberdade doada por Deus, a livre decisão do homem contra Deus, seu Criador. Esta rebelião do homem contra Deus consiste em abusar da dignidade própria de seu ser, do dom do seu ser pessoal, do selo do seu ser à imagem de Deus, a fim de colocar a si mesmo contra Deus como centro próprio de seu querer e amor, para ser "como Deus".

Essa caracterização do pecado como rebelião do homem contra seu

Criador foi realçada na moderna Antropologia cristã. "Deus e seu rebelde" (E. BRUNNER) é um título usual na teologia moderna para designar a relação entre Deus e o homem perturbada pelo pecado. Assim, reconhece-se acertadamente que o problema do pecado se acha ligado de modo mais íntimo à liberdade do homem e que, por sua vez, essa liberdade se acha unida à semelhança com Deus.

Na Antropologia moderna, porém, foi esquecida em grande escala a

'noção de que, com o abuso da liberdade e com a ativação do ser pessoal do homem num sentido contrário ao seu protótipo divino, foi introduzida também a desordem no relacionamento de todo o universo com Deus. A Igreja antiga sabia ainda algo do mistério segundo o qual, com a revolta do homem contra Deus, também o cosmo e a hierarquia das outras criaturas foram arrastados na relação perturbada e na rebelião do homem contra Deus e que os efeitos dessa rebelião repercutirão até na esfera física do homem na sua corporalidade. Um pouco dessa noção restava ainda na teologia mística de JAKOB BOHME, pois dizia que a revolta do homem paradisíaco contra Deus teve como conseqüência até mesmo o entorpecimento da corporalidade e da materialidade do mundo, dando à morte poder sobre o homem. Somente pela destruição da primitiva relação entre modelo e copia de Deus e o homem pode surgir o conflito entre o espírito e o corpo, conflito que não remonta a uma estrutura originalmente dualista do ser, mas se relaciona com a rebelião do homem contra Deus. Somente por essa rebelião a "vida indissolúvel" do homem se transformou em "dissolúvel".

Encarnação de Deus Essa concepção especial do pecado como rebelião do homem que

abusa de sua 'liberdade contra Deus constitui também a compreensão fundamental especificamente cristã da redenção do homem, a visão de

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Jesus Cristo com, o a figura histórica que representa o penhor da redenção do homem, Isto e, a concepção especificamente cristã da Encarnação.

Aos membros das grandes religiões não-cristãs da Àsia torna-se

particularmente difícil compreender o pensamento fundamental da revelação crista, a idéia da encarnação de Deus na força histórica de Jesus Cristo. O homem religioso do Oriente tem uma tendência a compreender aldeia crista de encarnação como analogia com a concepção hinduística do Avatar, que parte do princípio de que o divino volta à terra sempre de novo, revestindo-se sempre outra vez de forma humana, a fim de manifestar, em todas as épicas e a todos os povos, a verdade divina de maneira compreensível e acessível. S, pois, natural que se compreenda também. a figura de Jesus Cristo como um Avatar desses, como uma forma de descida do divino na humanidade. É precisamente no domínio do hinduísmo que sempre se fazem novas tentativas de compreender a cristologia nesse sentido. Mas a compreensão crista da Encarnação baseia-se num pressuposto fundamentalmente diferente, sem o qual torna-se incompreensível toda a imagem cristã do homem, a compreensão especificamente cristã da moralidade: o verdadeiro sentido da Encarnação está não simples frase do Evangelho de João (1,14):

“verbum caro factus est” – “o verbo se fez carne”. O conteúdo deste pensamento deixa-se demonstrar melhor

precisamente pela sua oposição à idéia do Avatar. A idéia do Avatar pressupõe que o divino se revista de formas terrestres sempre novas, de modo que a única forma divina se mostre, no decurso cíclico dos tempos, ora com um, ora com outro revestimento terrestre. Duas coisas, entretanto, são características da noção da Encarnação: primeiramente, a absoluta e definitiva irrepetibilidade do acontecimento, e, em segundo lugar, o traço extremamente material, que consiste em que não se trata de um ser divino transcendente que toma o aspecto de uma corporabilidade terrestre para se manifestar nesse corpo aparente, como numa espécie de roupagem, mas sim que o próprio Deus, como homem, como membro de um determinado povo, de uma determinada família e de um determinado tempo, entra na corporabilidade, na carne e na materialidade da história da humanidade, criando no meio dela o começo, a s,emente e o despontar de uma radical transformação de todo o modo de ser do homem, transformação esta que abrange e penetra todas as esferas da natureza humana, a material, a psíquica e a espiritual. A

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Encarnação não é o caso especial de uma vinda de Deus cíclica ,e sempre, renovada em envoltórios sempre novos, mas a intervenção de Deus na história da humanidade de uma vez por todas, assumindo num ato de inconcebível humilhação as condições históricas, materiais, corporais e carnais do ser humano na forma de uma única pessoa histórica. Essa pessoa tolera as condições históricas do nosso ser humano terrestre, supera em si as raízes de sua corrupção espiritual, moral e física, inaugurando, assim, uma forma transformada, renovada, elevada do ser humano.

Não há palavras para se enfatizar de maneira suficiente esta

oposição à tradicional idéia do Avatar, e, por isso, é preciso realçar justamente o elemento material, ou até mesmo materialista, que, está contido na idéia da Encarnação. Com Jesus Cristo pisou a nossa terra um homem no qual o próprio Deus se submeteu às condições da existência humana e no qual ele se opôs à corrupção que penetrara na natureza humana por sua rebelião contra Deus. Por meio dessa autodoação total ele recoloca em estado de cumprir seu destino divino a criatura que ele próprio criara à sua imagem e que devia oferecer-se-Ihe com amor livre e livre adoração, mas que, abusando de sua liberdade divina, se voltara contra ele. A idéia do homem como imago Dei é a base e o pressuposto da idéia da Encarnação.

O SERVO SOFREDOR DE DEUS Somente com base nesta concepção, pode-se também

compreender em seu sentido pleno e mais profundo a idéia do sofrimento, do sacrifício, da morte e da ressurreição de Jesus Cristo. Na figura histórica de Jesus Cristo o próprio Deus atravessou todos os abismos do ser humano, expôs-se a todas as dores do homem, assumiu toda culpa que resultara para o homem de sua revolta contra Deus e suportou o mais grave castigo dessa culpa, a morte. A Encarnação assim compreendida não possui o caráter de um revestimento variável de Deus numa forma humana, que permitisse ao ser divino falar aos homens com palavras humanas; mas, antes, há aqui sofrimento, padecimento, penitência, expiação, em todas as camadas da esfera espiritual, psíquica e corporal do homem. Aqui não houve apenas a tentação espiritual, a dúvida espiritual, a tentação, o desânimo e o desalento psíquicos, mas foi sofrida também a dor física mais intensa até seu supremo excesso, a mais violenta dor espiritual até o desespero - "Meu Deus, meu Deus, por que

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me abandonaste?" - Aqui foi oferecido um sacrifício cruento, sofrida uma morte terrível.

Aqui surge então a questão decisiva sobre a ordem e a posição do

sofrimento dentro da Antropologia cristã, que, em última análise, é uma questão sobre o sentido e o significado da cruz do Gólgota. Da parte dos adversários e, principalmente, das grandes religi6es asiáticas sempre se objetou ao cristianismo que este, em vez de superá-lo, glorifica o sofrimento.

A objeção não é de todo injusta. Houve, de fato, épocas na história

da piedade cristã em que o sofrimento como tal foi objeto de uma espécie de glorificação extática, sobretudo em alguns períodos da Idade Média, quando a Igreja cristã se viu abalada pelas mais graves crises internas e externas. Não posso esquecer, tampouco, a experiência, que se repete com certa regularidade, quando se me oferece a oportunidade de acompanhar amigos asiáticos por antigas igrejas alemãs ou museus de arte medieval: justamente asiáticos, vindos do silêncio de uma repousante piedade budista e acostumados a ver a imagem de Buda sentado, tendo nos lábios o sorriso da vitória sobre o mundo e mergulhado em profunda meditação, são justamente eles que se mostram sempre de novo profundamente surpresos, perturbados e até revoltados com a crueldade brutal da arte medieval, que se manifesta principalmente na representação de pavorosas cenas de martírio, no gosto de uma pormenorizada ilustração de todas as espécies de esfolamento, degolação, mutilação e assadura dos santos; onde não se pode negar, pelo modo de representar o sofrimento, um certo traço de sadismo intencional. A mesma reação provocava sempre em meus amigos budistas a vista da representação medieval do Homem-das-dores, mostrando Cristo no estado da mais horrenda profundeza do sofrimento. Deveras, devo acrescentar aqui uma confissão pessoal. Ao voltar para a Europa, depois de longo estágio na esfera da mais alta arte budista e sob a profunda impressão da grande figura de Buda na arte japonesa, foi-me difícil aceitar de novo, interiormente, essa face da arte cristã que, evidentemente, exprime um elemento essencial da mensagem cristã.

Precisamente em conseqüência do fato de que também a arte

moderna da Igreja, sob a impressão da destruição da imagem do homem por uma série de guerras mundiais e revoluções do passado mais recente, tenha recolocado em primeiro plano, de maneira intencionalmente

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escandalosa, esse elemento da glorificação do sofrimento, torna-se necessário falar do sentido e da ordem originais do sofrimento na concepção cristã. O ponto de partida só pode ser aqui a autocompreensão messiânica de Jesus.

A esperança escatológica do judaísmo tardio aguardava como

inaugurador do reino de Deus o Messias, o Filho do Homem, que deveria chegar com o poder e a glória de Deus, vencer os seus inimigos com o sopro de sua boca e reunir os seus, os escolhidos de seu reino, ao redor de si, depois de ter tomado lugar no trono da glória e depois de usar seus inimigos como escabelo de seus pés. A figura do salvador, na expectativa escatológica do judaísmo tardio, era uma figura de alguém cheio de poder e glória. Os próprios discípulos de Jesus viviam a princípio na expectativa desse poderoso salvador, que traria e inauguraria o reino de Deus; por isso, preparavam-se para desempenhar nesse reino, ao lado de seu fundador, o papel de juízes e superiores. Havia, pois, nessa promessa da vinda do Messias, o Filho do Homem, uma tentação de poder e exaltação de si próprio, quando não de superexaltação.

O Evangelho de MATEUS relata com clareza um reconhecimento

profundamente correto, ao descrever a tentação de Jesus no deserto, imediatamente após o batismo no Jordão e a vocação que se seguiu, como uma tentação do poder mundano. DOSTOIEVSKI apreendeu o sentido dessa história da tentação no concebê-la como tentativa de uma satânica inversão da missão divina de Jesus, reduzindo-o ao papel de um poder mundano, político, social e mágico, ou seja, como tentação de auto-exaltação no papel glorioso de dominador do mundo. '.

Uma ratificação deste ponto de vista encontra-se no fato de que o

próprio Jesus estava convicto de uma imagem completamente diferente de sua missão, que decepcionou profundamente a seus discípulos, cujas idéias visavam o poder e a ascendência. Ensinava-lhes alguma coisa que perturbava e irritava sua expectativa acerca do reino de Deus e do Filho do Homem, ou seja, o Filho do Homem devia "padecer muito" (Mt. 16,21). Ligou a imagem do Filho do Homem, que devia vir com a imagem da outra grande figura da promissão profética, a imagem do servo de Deus que padece (Is. 53). Via sua missão em andar primeiramente pela terra no. rebaixamento e humilhação como o servo sofredor de Deus, experimentando e vivendo em si todo sofrimento dos homens e até deixando cair sobre si o poder da mais terrível inimiga do homem, a

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morte. Só depois de haver percorrido todo c abismo da dor e morte humana é que poderia ser colocado no estado da glória e voltar em glória. Ele assumiu, portanto, conscientemente o sofri· mento até a morte física no destino do Filho do Homem. Por isso, as palavras de Jesus sobre o destino do Filho do Homem estão sempre unidas a um anúncio de sofrimento e de morte.

Em todo ocaso, já nos anúncios do sofrimento acha-se claramente

ex· pressa o sentido característico do sofrimento para a imagem cristã do homem: o sofrimento não constitui o objetivo nem o fim em si na realização do destino humano, mas indica o ponto da grande transformação para c renascimento, para a ressurreição, para a nova criação, para a incorporação na nova realidade do reino de Deus.

O MISTÉRIO DA CRUZ Este pensamento recebe seu esclarecimento mais profundo da

compreensão cristã do próprio pecado. O pecado, com efeito, como expusemos, é compreendido como um abuso da liberdade do homem, o qual, criado por Deus como colaborador de seu reino e companheiro de seu amor, empregou mal a sua liberdade para colocar-se no ápice da criação e opor-se a Deus como rebelde, em usurpada posição de domínio. Essa rebelião, essa alienação voluntária, conduziu o homem à total contradição com Deus que, em conseqüência disso o entregou à morte. Por isso, a volta para Deus somente será possível, se as conseqüências dessa rebelião, que se estendem até as mais profundas raízes da corporalidade e Se caracterizam pelo sofrimento e pela morte, forem novamente superadas em todas as camadas do ser humano, até mesmo na corporalidade.

A antiga iconografia cristã ilustrava essa idéia de maneira

extraordinariamente viva e eternamente verdadeira, ao pintar debaixo da cruz a caveira e os fêmures cruzados de Adão. De acordo com uma tradição ora: apócrifa do século 11, a cruz foi erguida no Gólgota no mesmo lugar em que Adão fora enterrado. Ali onde aquele que fora criado por primeiro sofrera a morte como castigo de sua rebelião contra Deus, ali foi também crucificado aquele que vicariamente assumiu a culpa da morte de Adão e, como novo Adão ressuscitado, como o "primogênito entre os mortos", inaugurou a nova humanidade dos filhos de Deus.

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É significativo que a imagem de Cristo como o homem das dores seja de todo estranha para a Igreja antiga. Cristo sofreu a morte mais dolorosa e mais vergonhosa que a antiga justiça penal conhecia, a morte de escravo na cruz, para percorrer, desse modo, o curso de vida do homem decaído, que se encontrava no estado de rebelião contra Deus, chegando até o ponto mais profundo de rebaixamento na esfera espiritual, psíquica e corporal e, partindo daí, implantar na humanidade, até a esfera do físico, a raiz de um novo modo espiritual-corporal de ser.

Esta é a razão porque na Igreja antiga a cruz não visava em si a

glorificação do sofrimento, mas era antes "sinal de vitória", no sentido dos antigos marcos de vitória, que se erguiam nos lugares em que a batalha mudara de rumo e onde se oferecera o grande sacrifício da batalha, que possibilitou a vitória, selando a derrota do inimigo. A inscrição da cruz, na Igreja antiga, designava a cruz como o "terror dos demônios", porque foi erigida como sinal de vitória, anunciando a inauguração do glorioso domínio de Deus e incutindo medo nos tradicionais poderes demoníacos do mundo: por sua simples presença, a árvore da cruz afirma-lhes que seu domínio terminou e um novo senhor inaugurou o seu poder. No ponto mais profundo do rebaixamento, surge o império do reino de Deus na humanidade e, desde o momento da ressurreição do primogênito entre os mortos, vai-se ampliando progressivamente.

Igualmente, no hino à cruz, cantado na Igreja antiga, aquela é

chamada "a cruz da beleza do reino de Deus". Nas representações da cruz, feitas pela Igreja antiga, Cristo aparecia sempre como o triunfado e coroado que se anuncia no trinco da cruz como o Senhor do novo éon. Só assim se compreende que também um imperador, notando a profunda transformação da estrutura espiritual e política do Império Romano causada pelo cristianismo, tenha fixado nos estandartes das 1egiões imperiais a cruz, que valia como consolador sinal de vitória para a comunidade dos até então perseguidos cristãos, a cruz que se conservara mesmo durante atrozes perseguições, erguendo-a, então, como um sinal do triunfo bélico sobre as legiões de seus adversários reunidos sob o sinal dos antigos deuses. Entretanto, o imperador CONSTANTINO inaugurou, com isso, uma época da história da Igreja, onde se introduziu nela, subrepticiamente, a tentação de abuso do poder, aquela tentação que apareceu no começo da consciência messiânica de Jesus e que foi superada por ele, mas que na Igreja se foi propagando sempre mais fortemente nos séculos posteriores sob o signo do poder espiritual.

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Por aí vemos que o sofrimento, na concepção cristã, não aparece

como fim em si mesmo, mas como elemento da vitória. Tampouco é, como no budismo, um sofrimento debaixo das condições gerais de ser do homem neste mundo, mas está ligado à idéia especificamente cristã de liberdade. A rebelião contra Deus, escolhida com liberdade, que é, em última análise, uma vontade da afirmação pessoal do homem contra Deus, só pode ser superada pela vitória sobre si mesmo, pela autodoação e sacrifício da vontade de afirmação própria na aceitação do sofrimento. Cada cristão é chamado a tornar-se imitador de Cristo; a inserção no corpo de Cristo faz-se pela realização e imitação do destino de Cristo. A designação da Igreja antiga para o cristão é "cristóforo", portador de Cristo. Neste pensamento se inclui a vitória sobre si mesmo como autodoação até a morte. O sofrimento é um elemento inegável no grande drama de liberdade, o qual, visto da parte de Deus e operado por ele, se identifica com o drama da Redenção.

Olhando precisamente por este ângulo, torna-se compreensível,

também, a diferença da idéia budista do sofrimento. Novamente, não se trata de uma fuga da materialidade, da corporalidade terrestre, concebida como prisão do espírito e como invólucro na rotatividade de nascimento, morte e renascimento, mas sim, de uma entrada em um novo ser, espiritual e corporal, em que estão superados os poderes destruidores da oposição a Deus, que operam em todas as camadas do ser humano e são transfigurados numa nova forma de espiritualidade e corporalidade. A superação do sofrimento não ocorre aqui por uma declaração espiritual de não-existência dele, como acontece na meditação budista, mas por padecer-se com fé, até o fim, o sofrimento, com vistas ao sofrimento que o próprio Deus tomou sobre si e o toma ainda a todo instante em benefício nosso; sofrimento esse que se concebe como o começo de uma profunda transformação do homem, como raiz e fonte de uma nova e imperecível forma do ser humano.

SIGINIFICADO DA RESSURREIÇÃO PARA A ANTROPOLOGIA CRISTÃ Mas igualmente claro é o significado real e até materialista que a

concepção cristã atribui à ressurreição. Uma concepção dualista do homem, que pressupõe uma diferença essencial entre a parte espiritual e o material-corporal de sua existência, leva necessariamente à idéia da imortalidade da alma, uma vez que somente à natureza espiritual do

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homem compete o caráter ontológico da imortalidade. A esperança cristã, porém, não tem em mira a imortalidade da alma, mas sim a ressurreição do corpo. A corporalidade não é uma propriedade estranha ao espiritual. Todo ser espiritual tende a incorporar-se, e sua forma definitiva e eterna é uma forma corporal. Justamente os grandes teólogos das Igrejas orientais exprimiram constantemente e de modo inequívoco o que SOLOVIOV formulou com as seguintes palavras: "Que adiantaria ao homem a maior e mais alta vitória moral, s,e não fosse superado o último inimigo, a morte, que espreita na derradeira profundeza da esfera física, corporal e material do homem"?

Aqui torna-se clara a concepção fundamental não dualista e até

antidualista da imagem cristã do homem. A meta da Redenção não é a separação entre o espírito e o corpo, nem a dissolução entre a natureza humana espiritual e a corporalidade material: a finalidade da Redenção é, antes, o homem novo em sua totalidade corporal, psíquica, espiritual. A imagem cristã do homem tem essencialmente um aspecto corporal, que se funda na idéia da Encarnação e encontra a sua mais forte e significativa expressão na idéia da Ressurreição. A corporalidade não é algo estranho à perfeição de Deus. O espiritual não existe abstratamente, mas só numa manifestação concreta, corporal. A corporalidade é, na palavra de um dos grandes místicos do protestantismo, "o fim dos caminhos de Deus" (F. C. OETINGER). Em oposição a toda tentativa dualista de separar Deus e o mundo, espírito e corporalidade, o centro da mensagem cristã é a descida de Deus para dentro da história humana, da corporalidade humana, 'com o fim de renovar o homem, a natureza humana combalida pela revolta contra Deus e, por isso, arrastada à temporalidade e à morte, e para restaurá-la pela ressurreição num ser novo e imperecível. Pela Encarnação, pela vinda do "Segundo Adão" e sua Ressurreição abre-se um período do novo ser do homem. Vida, sofrimento, morte e ressurreição de Jesus Cristo constituem o começo de um novo tempo, onde entram em ação novas forças do reino de Deus, novas forças do espírito e da vida, com o fim de transformar o homem velho, para renovar a imagem de Deus, decaída de seu protótipo, fundar e inaugurar para sempre um reino, no qual a possibilidade negativa de liberdade é superada por um dedicado ato de auto-sacrifício do próprio Deus e onde uma nova humanidade está em condições de fundar aquele reino do livre amor, que é o único digno da comunidade entre Deus e o homem e no qual essa comunidade chega à plenitude. Essa irrupção de Deus na história, "quando se completou o tempo", na figura de Jesus Cristo, não é um acontecimento único, estático,

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nem um evento que se vai repetindo de acordo com o decurso cíclico dos tempos, mas é um prelúdio do final dos tempos, o começo de uma transformação do homem até a esfera da corporalidade, transformação que se completará com a descida gloriosa do Filho do Homem no reino de Deus.

A idéia da Encarnação ilustra também a dignidade inteiramente

única, que a pessoa humana possui na religião cristã, em face a todas as demais religiões. É ela que proporciona o conceito correto e próprio da criação do· homem à semelhança de Deus. Se encontramos que o conteúdo dessa idéia é que no fato de ser criado se fundamenta a nobreza do homem, sua relação especial para com Deus e sua posição única dentro do universo, este pensamento é agora aprofundado até o seu significado mais profundo, pelo fato de Deus não ter julgado impróprio tomar a figura do homem e "ser tido como homem" (Fip. 2,7), a fim de que, em toda a possibilidade de semelhança, se identificasse em sua corporalidade, até a forma do sofrimento e da morte. Dessa maneira, quis ele refazer a imagem deformada de Deus, renovando-a, transfigurando-a e superformando-a.

O SIGNIFICADO DE CRISTO PARA A IMAGEM DO HOMEM Somente a partir dessa interpretação de Cristo como o novo,

"último" Adão (l Cor. 15,45), como o "primeiro dos ressuscitados", o "primogênito entre os mortos", como a "primícia" entre os que "dormem" (1 Cor 15,20; Col 1,18; At 26,23), aparece a compreensão cristã do homem em sua plena. luz. O homem cristão é concebido como "primícia", porque o Filho, a quem deve seu completo ser humano; é a "a primícia". No reino de Deus, através de Cristo, é confirmada e assegurada para sempre a ordem particular e extraordinária do homem, assumida por ele na série das criaturas. "No princípio", Deus criou o homem à sua imagem e o constituiu, a ele, que foi o último a ser criado, na seqüência das criaturas, e o fim de toda criação anterior, "o primeiro", ao lhe transmitir o domínio sobre a terra e sobre as demais criaturas. Agora, o homem renovado em Cristo, a primícia da nova humanidade, é novamente confirmado na sua posição. "O Pai das luzes ... gerou-nos segundo sua vontade pela palavra da verdade, a fim de que sejamos as primícias de suas criaturas" (Tg 1,17-18). Essas "primícias" são os escolhidos do reino de Deus; deles é formada a elite que se acha em redor do trono do Cordeiro e canta o "cântico novo". "Estes foram comprados dentre os homens, para serem as

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primícias para Deus e para o Cordeiro." (Apc 14 3-4). Manifesta-se aí a consciência aristocrática de elite, expressa teoricamente na doutrina da predestinação (pág., AI9~), mas que, em todo caso, não repousa sobre uma exagerada autoconsciencia e autorreinvidicação, mas sim, sobre total autodoação e auto-renuncIa, sobre a crucificação e a morte do homem velho.

Por muito tempo a Antropologia cristã foi dominada por um

pensamento estático. O homem aparecia na visão teológica como um ser acabado, posto num mundo acabado, como um inquilino planejadamente previsto, numa residência nova pré-fabricada. Igualmente estática era a representação do pecado e da redenção. A queda original era concebida como acontecimento que situou o homem numa situação incorrigível e permanente: a Imagem de Deus, pela desobediência do homem, apareceu como deformada de uma vez por todas e a capacidade de conhecer a Deus f1co~ realmente embotada de modo definitivo, da mesma forma que sua capacidade para o bem e sua inclinação para amar a Deus. O homem decaído aparecia numa situação para sempre irremediável, sem modificar-se no decurso, da história h3mana.

Também a Redenção era concebida de maneira estática. A salvação

aparecia na doutrina dos dogmas da Igreja como restituição e restauração da imagem perdida de Deus e, freqüentemente, mais como um remendo de trapos, mediante os meios de salvação da Igreja, do que uma verdadeira nova criação. Essa concepção estática do homem, de sua imagem primitiva, de sua queda e de sua salvação foi a base das instituições eclesiásticas e da prática sacramental em sua conceituação tradicional.

Semelhante concepção estática do homem e semelhante

conceituação puramente restaurativa da ação salvífica não correspondem, entretanto, de maneira alguma, à idéia original da imagem crista do homem. O Novo Testamento sabe alguma coisa a respeito de uma progressão da salvação na história, tanto em relação a cada homem como a humanidade, e de um crescente aperfeiçoamento do homem. .

Esse traço já se evidencia na pregação de Jesus: "Então, no reino de

seu Pai os justos resplandecerão como o sol. Aquele que tem para ouvir, ouça!" (Mt. 13,43). Esse anúncio de uma admirável elevação ontológica encontra-se já nas promessas de salvação da profecia do Judaísmo tardio.

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Já em Dan. 12, 3. Lê-se a respeito do estado dos justos após a ressurreição: "Os que tiverem sido doutores fulgirão como o brilho do firmamento, e os que tiverem levado muitos à justiça luzirão como as estrelas, por toda a eternidade". No Evangelho de João, Jesus promete a seus discípulos um aumento de suas forças divinas, capaz de superar até as forças espirituais que operam nele. Assim, em Jo. 14,12-13, diz ele em sua oração de despedida a seus discípulos: "Em verdade, em verdade, eu Vos digo: aquele que crê em mim fará também. as obras que eu faço, e fará ainda maiores que estas; porque eu vou para ,o Pai, e tudo que pedirdes em meu nome, eu, vo-lo farei, para que o Pai seja glorificado no Filho . Logo" o poder espiritual dos discípulos de Jesus não se mede por aquilo que o próprio Jesus operava no tempo de sua vida sobre a terra, Jesus promete-lhes uma força espiritual que lhes possibilita maiores obras do que ele mesmo realizava.

Que aqui se pensa nas poderosas obras do Espírito Santo, deduz-se

do fato que imediatamente após a promessa de um grande aumento de forças carismáticas dos discípulos vem o anúncio da vinda do Paráclito.

Iguais expectativas de um grande reforço ontológico, no contexto

com os acontecimentos do fim dos tempos, e o que exprime a primeira carta de João (3,2): "Caríssimos, desde agora somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele aparecer, seremos semelhantes a ele, porque o veremos assim como ele é". Os cristãos que crêem já são desde agora filhos da luz, filhos de Deus, mas esse alto grau não representa ainda o último: este último não apareceu ainda de modo algum. Mas os cristãos sabem que o último grau trará consigo um outro inimaginável aumento do ser: a conformidade com o Cristo exaltado, a transformação da cópia no modelo.

Também Paulo ainda conhece claramente esse novo aumento do

ser, que o renascimento traz consigo. A atuação do Espírito não se faz de uma vez só, mas dele procede uma ação permanentemente progressiva e criadora, que eleva e transfigura o homem de grau em grau. Na segunda carta aos coríntios (4,16) lê-se: "Ainda que em nós se destrua o homem exterior, o interior renova-se de dia para dia". Essa renovação não consiste no restabelecimento de um estado perdido pela queda, mas representa um progresso em forma de abertura de glorificações sempre mais altas, como mostram as palavras que dirige à mesma comunidade em (2 Cor 3,18): "Nós todos, porém, de rosto descoberto, refletimos como

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num espelho a glória do Senhor, e somos transfigurados na mesma imagem, de claridade em claridade, pela ação do Senhor Espírito (do Senhor, que é o Espírito)". Aqui aparece o Espírito como a força de uma progressiva transformação do crente na imagem do próprio Senhor.

Em conseqüência dessa concepção, aparece a idéia do "super-

homem" cristão, que já fora formulada na Igreja antiga, pelo profeta MONTANO, fundador da Igreja montanista.

No contexto do aparecimento da concepção evolucionista de

DARWIN, ' nos campos da Biologia, Zoologia e Antropologia, impôs-se, especialmente na Teologia protestante dos Estados Unidos, no séc. XIX, a tendência de interpretar a história da salvação cristã no sentido de uma evolução e esperar a perfeição futura do homem na forma de obtenção de graus carismáticos sempre mais altos e de meios mais elevados de conhecimento espiritual e de comunicação. Essas idéias tiveram recentemente uma extraordinária atualização e divulgação na Teologia católica, graças a TEILHARD DE CHARDIN (1969) que, partindo do ponto de vista da Paleontologia, procurou desenvolver, em face da tradicional Antropologia restaurativa da doutrina da Igreja, uma nova visão da Antropologia cristã.

Na realidade, suas idéias não são tão novas quanto parecem, pois

remontam a conceitos antigos de uma Antropologia cristã evolutiva; já há muito contida na Teologia de PAULO e de João ou na Teologia mística de um JAKOB BOHME, F. C. OETINGER e ROBERTO FLUDD. Procurava-se, assim, vencer a imagem estática e restaurativa do homem, que s,e encontra nos manuais doutrinários, por meio de uma renovação da Antropologia dinâmica do Novo Testamento. Para ela, Jesus Cristo é materialização única e corporificação de Deus, sob a figura de uma pessoa humana histórica, mas a Encarnação de Deus não s,e limita a esta única intervenção na história, "de cima para baixo"; senão, é o início de um novo grau da evolução que desde então se propaga pelo mundo, ou seja, o progressivo surgimento de uma nova forma de vida e modo de ser, em que se inclui, de maneira progressiva, a humanidade, na continuidade da sua espiritualização, personificação e cristianização.

Cristo não é, pois, somente a figura na qual a Encarnação passa a ser

acontecimento histórico, mas, ao mesmo tempo, a meta final da humanização, em que a humanidade modificada, espiritualizada,

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renascida e aperfeiçoada encontra o seu sumário, para o qual converge a humanização do universo: Esse "Cristo maior" é o foco não só da salvação individual, mas também da coletiva das "pedras de construção vivas" que se ajustam em seu corpo.

Justamente a reinterpretação espiritual da doutrina da evolução

tornou a descobrir, assim, a idéia do homem, que por muito tempo fora encoberta por uma Antropologia dogmática de fundo puramente estático e restaurativo, e que já em PAULO se encontra na sua forma original, progressiva e evolutiva. Com efeito, ele descreve para a comunidade em Éfeso a meta da evolução da cristandade: "... até que todos tenhamos chegado a unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, até atingirmos o estado de homem feito a estatura da maturidade de Cristo" (Ef 4,13). "Tornar-se um homem feito”, "atingir a estatura da maturidade de Cristo", eis a finalidade futura, a atingir no fim dos tempos, que PAULO fixa para o desenvolvimento da história da salvação da humanidade, isto é, o crescimento na perfeição do Cristo maior, o qual, por sua vez, cresce na história e com a história da humanidade e a introduz em seu corpo, até que a tenha compenetrado, transformado, e aperfeiçoado no "homem feito" que ele mesmo é, e será.

Entretanto, essa interpretação "evolutiva" da Antropologia cristã

apresenta a perigosa tentação de ver na própria história da salvação uma espécie de "processo" segundo as leis naturais, que se vai desenrolando com uma força inevitável na história da humanidade. Essa concepção iria de encontro a duas idéias básicas da imagem cristã do homem: por um lado, contra a noção cristã da liberdade e, por outro, contra a idéia fundamental e dramática da história como história da salvação. Apenas num sentido bem espiritualizado e modificado é que o conceito da evolução pode ser aplicado a idéia cristã da imagem de Deus e da história da salvação; isto é, no sentido de que, com Jesus Cristo, começa um novo grau da evolução que, por sua vez, traz o novo sinal característico da dramática autorrealização do espírito de Deus na esfera da liberdade, sinal pelo qual essa evolução da história da salvação se distingue claramente da evolução no remo da preconcebida vida animal. Essa nova forma de evolução está sob o signo da cruz, da quebra da evolução natural e de seu "salto" para uma forma mais elevada de evolução, em que domina a lei da liberdade, da autodoação, da vitória sobre si mesmo.

ESQUEMA PRINCIPAL DA IMAGEM CRISTÃ DO HOMEM

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Somente com base numa compreensão especial de Cristo, que vê em Jesus Cristo o divino Logos encarnado, a descida de Deus na carne e na história sob a forma de um homem, o segundo Adão e iniciador da nova humanidade, é que s·e tornam compreensíveis as diferentes determinação da essência do homem em que se manifestou a autocompreensão, especificamente cristã, do homem, seu sentimento, especificamente cristão e sua forma especificamente cristã de auto-realização.

JUSTIFICAÇÃO A partir da Reforma do séc. XVI, a Antropologia cristã orientou-se

principalmente pelo esquema dá justificação: o homem cristão é o homem ao qual é atribuída pela fé a justiça de Deus, pelos méritos de Jesus Cristo, ganhos por seu sacrifício expiatório na cruz, o homem que, pela fé, é revestido pela justiça de Cristo.

Esse esquema da justificação é característico do pensamento

fortemente jurídico que predominou no Ocidente latino, e só se torna compreensível se, por um lado, como foi o caso dos judeus e cristãos-judeus dos primeiros séculos, a sua vida se pautasse completamente conforme a lei mosaica, com o dia-a-dia inteiramente determinado pelas exigências dessa lei, sentindo constantemente, na vida diária, a dificuldade ou impossibilidade de cumprir todas as exigências dessa complicada e englobante lei, ou, por outro lado, compreende-se este juridicismo, vivendo-se num sistema penitencial da Igreja, impregnado de caráter legal, como o que vigorava no catolicismo romano influenciado peIo Iegalismo da antiga religião romana, levando a uma concepção fortemente jurídica de pecado, penitencia e sacramento. Foi por isso que o problema da justificação passou a aparecer como o ponto central da religião cristã. Hoje, porém, não se pode mais empregar o esquema da justificação como ponto de partida de uma Antropologia cristã, porquanto, tanto o conceito da "lei", que aí se pressupõe, como também a redução da relação entre Deus e o homem a uma relação jurídica não são mais um pressuposto da consciência religiosa de nossa época. O esquema da justificação tornou pálido e desatualizado, por não ter mais, de forma alguma, ponto de apoio em nossa vida e em nossa concepção do mundo.

O retraimento desse esquema tradicional recomenda-se tanto mais

na atual situação ecumênica, porque ele nunca representou um valor universal no cristianismo. O esquema da justificação não teve papel

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importante n: área geral da Igreja ortodoxa oriental, que se manteve distante do pensamento jurídico de Roma. N liturgia da Igreja oriental, não é quase nem citado. Na exposição clássica da Teologia ortodoxa, na Fonte do Conhecimento, de João DAMASCENO, o conceito da justificação não ocorre em absoluto. Já pelo fato de nele estar incluída a idéia de "lei" - nomos - com um conteúdo primariamente cosmológico, que abrange todo o domínio das leis naturais, e porque a ética demonstra uma fundamentação fortemente cosmológica, esse conceito era estranho ao pensamento grego. Na doutrina da justificação, que se estabeleceu no catolicismo romano, fortemente determinado pelo pensamento jurídico de Roma, foi omitido todo o aspecto cosmológico, e a função religiosa ficou reduzida à relação de direito entre Deus e o homem e à pergunta: "Como consigo um Deus misericordioso"?

Deve-se exigir essa retração, quanto ao esquema da justificação,

também porque nem sequer em PAULO, o teólogo da justificação, tal esquema constitui o único na interpretação da relação entre Deus e o homem e da obra de Cristo. Na verdade, ele só emprega de preferência esse esquema quando fala a comunidades judeu-cristãs, que vivem ainda sob a lei mosaica e são oriundos do pensamento jurídico da lei mosaica, como ele próprio. Fala de justificação quando é judeu para os judeus. Ao falar, porem, aos cristãos vindos do paganismo, faz-se grego para os gregos e renuncia inteiramente a esse esquema judaico, empregando, em compensação, esquemas e figuras mais-apropriados ao grego, orientado para as idéias dos mistérios. Ele lhes fala do "homem novo", do "liberto" e "remido", "da nova criatura", da "ressurreição com Cristo", da "transformação", "superformação", "transfiguração" do homem, da "filiação divina" e da "amizade de Deus". Na subseqüente descrição fenomenológica da imagem cristã do homem investigaremos, pois, antes de tudo, esses esquemas.

O HOMEM NOVO Por certo, nenhuma idéia e nenhum sentimento dominam tão

profunda e absorventemente a sensação cristã de vida como a consciência da novidade da vida em que o homem se vê posto por sua participação na vida e no corpo de Cristo. A novidade da mensagem cristã de salvação apareceu como o elemento dominante da boa nova cristã, que não só encheu os corações dos crentes, mas também chamou a atenção dos não-cristãos. Quando PAULO se apresentou em Atenas, os adeptos da filosofia

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epicurista e estóica tiveram conforme os Atos dos Apóstolos, a impressão "de que ele queria anunciar' novos deuses" (At 17,18). Na gravíssima censura dirigida pelos não-cristãos aos cristãos, dizendo que eram ateus, "atheoi", espelha-se igualmente como que às avessas o fato de que a mensagem cristã não se adapta ao antigo esquema religioso e ao mundo dos deuses tradicionais, mas que traz consigo o caráter de novidade, inicialmente incompreensível para os não-cristãos.

Essa reivindicação de novidade total pôde até, no segundo século,

ser elevada à categoria de dogma fundamental de uma Igreja própria. MARCION somente pôde explicar a novidade da salvação, que entrou no mundo com Cristo, afirmando que um "novo", até aí "desconhecido" e "estranho" Deus se anunciou e irrompeu nos domínios do até agora senhor do mundo, o Deus Criador, e libertou à força as almas que estavam detidas nesse mundo dominado pelo demiurgo. O evangelho de MARCIQN, do "Deus estranho", tem por base pura e simplesmente a novidade da salvação iniciada por Cristo, a pura e simples novidade da revelação proporcionada por ele. O novo Deus é o "estranho", o "outro", o até aqui "desconhecido", o Deus verdadeiro, o mais alto, que não se identifica com o Deus Criador, que é mau, raivoso ·e justiceiro, o "Senhor deste mundo", revelado no Antigo Testamento.

Aquilo que em MARCIÃO, de uma forma unilateral, levou ao

contraste entre o antigo e o novo Deus, entre o Antigo e o Novo Testamento, e a uma divisão da história da salvação numa série de "antíteses", pode ser sentido como contraponto através de todo o Novo Testamento. A ação salvadora de Deus será entendida como criação de um novo homem, de um novo universo, de uma nova terra e de um novo céu. No capo 21 do Apocalipse de JOÃO, o vidente presencia a chegada "de um novo céu e de uma nova terra", e vê "a nova Jerusalém", a cidade santa, "descer do céu, preparada como uma esposa ornada para o seu esposo", e a possante voz daquele que, sentado no trono, dizia: "Eis que renovo todas as coisas"! O júbilo dos escolhidos para o reino de Deus, dos 144.000, juntou-se num poderoso "cântico novo", ao redor do trono do Cordeiro (Apc 21,1,5;5,9;14,3).

O novo homem experimenta e reconhece a novidade de sua vida

como vida de Cristo, que começa a amadurecer nele mesmo; Essa nova vida externa-se como poderosa experiência de um estado novo já iniciado. Assim, PAULO pode escrever aos fiéis em Corinto: "Se alguém está em

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Cristo, é uma nova criatura" (2 Cor 5,17). Desta forma, estabelece a realidade que constitui o pressuposto da salvação humana e que, sobretudo, torna-se possível o novo homem. Mas, advertindo, ele pode também escrever imperativamente aos efésios: "Revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus"! (Ef 4,24), e descrever a nova vida apenas como objetivo futuro.

Mais clara ainda a nova conexão entre criação, Encarnação e

renovação do homem numa frase que PAULO escreve à comunidade em Colossos (Col 3,9-11): "Despi-vos do homem velho com as suas obras e revesti-vos do novo, que, pelo conhecimento da imagem de - quem o criou, não cessa de se renovar. Aí não existe mais grego, judeu, circuncisão, incircuncisão, bárbaro, cita, escravo ou livre, mas Cristo é tudo em todos".

Evidencia-se aqui a profundeza do domínio exercido pela idéia da

semelhança do homem com Deus sobre a imagem cristã do homem. O primeiro homem foi criado segundo a imagem de Deus, mas abusou de sua liberdade para revoltar-se contra Deus, seu Criador. Em Jesus Cristo, imagem e resplendor do Pai, foi restaurada a imagem original de Deus entre os homens. Nele, o segundo, "último" Adão, podem então os homens "revestir-se do novo homem", como num novo vestuário, no qual se vão transformando e cujos brilhantes ornamentos vão cobrindo a velha veste em frangalhos, recobrindo a nudez do guardador de porcos, do desleixado "filho perdido" (Lc 15,24).

Característico de todas essas afirmações é o caráter escatológico

Ou, até mesmo, o caráter evolutivo: não se trata aqui de um estado novo já acabado, estado em que o homem seria colocado pela graça, mas de um começo, de uma antecipação, do prelúdio de um novo estado vindouro, cuja realização e acabamento serão alcançados apenas no futuro, um estado que, em sua perfeição, deve ser apenas mencionado, um "começo", que apenas aponta para um ideal futuro, um marco da evolução, que tende para seu fim, mas não alcançou - ainda. O novo homem é um homem concebido dentro do processo da renovação; a nova vida é um elemento do crescimento de Cristo que se encaminha para sua "plena virilidade".

Esse novo homem age, por sua vez, novamente como fermento,

como "levedura" em fermentação, como “nova massa” (1Cor 5,7), dentro

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da velha humanidade. Dessa maneira, por sua fermentação, com o auxílio de um novo fermento, ele contribui para transferir ao reino de Deus a velha sociedade. Nesse processo de crescimento e vir-a-ser do novo homem não se deve subestimar o elemento interminável, inquietante e, dir-se-ia até' mesmo, o elemento que ameaça passar da evolução para a revolução.

O HOMEM RENASCIDO A idéia do renascimento tem sido muitas vezes mal compreendida,

especialmente por se identificar o "renascimento" com uma determinada forma de "conversão", temporariamente datável. Particularmente o cristianismo pietista e do tipo restaurativo contribuiu para certa uniformização e desvalorização do conceito.

Não obstante, existe na história da piedade cristã uma série de

proeminentes personalidades que experimentaram o s,eu renascimento sob a forma de uma conversão, capaz de ser datada no tempo e fixada num local, como é o caso, por exemplo, de JOHN WESLEY, fundador da Igreja metodista, e do seu par-ente espiritual, AUGUST HERMANN FRANKE, fundador do pietismo alemão. Mas a fixação do renascimento num único tipo de vivência psicológica é de todo inadmissível e objetivamente injustificável. Há numerosas, provavelmente até inúmeras, formas do decurso daquele misterioso processo de renovação, transformação e nova criação do homem a que se liga a expressão renascimento. Já ZINZENDORF, em oposição às tendências de AUGUST HERMANN FRANKE de fazer do seu próprio tipo de "conversão" o tipo-padrão do renascimento cristão, monopolizando-o, referiu-se, com razão, ao fato de que Deus "tem muitas maneiras de atrair para si os seus", e que tanto leva ao fim o "modo" de uma evolução gradativa, como o "modo" de uma mudança repentina. O que é decisivo apenas é que provenha de Deus sobre o homem uma ação recriadora e que este receba dele uma nova Vida e uma nova forma.

A modalidade da experiência do próprio renascimento em si será,

pois, tão variada quanto à própria individualidade do homem atingido, seu modo de ver as coisas, sua particular aptidão intelectual ou emocional. Os diversos tipos de renascimento não se distinguem apenas por s,e tratar de um acontecimento súbito, com prepotente surpresa, ou do resultado de

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um processo lento, de um "crescimento", "amadurecimento", de uma ",evolução", mas também de acordo com a predominância da capacidade psíquica, pela qual se orienta. No processo de renascimento nunca se extingue a predisposição natural, a capacidade pessoal, o tipo psicológico da experiência e da autorrealização, bem como o nível de formação, mas se preenche de um novo conteúdo, de um novo objetivo e de uma nova dinâmica.

No tipo voluntarista, o renascimento se manifesta numa nova

orientação da vontade e na libertação de novas capacidades e forças que até então não se haviam desenvolvido na pessoa atingida. Em outros, leva a uma ativação das capacidades cognoscitivas, ao surgimento de uma "visão", de uma "intuição no ser", e desperta surpreendentemente, novas e profundas considerações. Já em outros, o renascimento conduz à descoberta de uma inesperada beleza na ordem da natureza ou à descoberta do misterioso sentido da história da salvação. Em outros, ainda, leva a uma visão da vida moral e de suas ordenações, à desprendida realização do amor ao próximo. O próximo aparece ao olhar recém-aberto do renascido como o homem-Deus, como o Cristo presente, ·c força-o a uma atitude completamente nova com relação a seu semelhante.

Entretanto, na experiência do renascimento, não fica simplesmente

eliminado o até então "velho" homem, na determinada estrutura de sua personalidade, nem em seu condicionamento pela hereditariedade, educação e experiência de sua vida anterior, mas a pessoa atingida sente sua vida em Cristo como vida nova, concebendo sua mudança interna como renascimento. Pelas numerosas manifestações autobiográficas acerca do renascimento, verifica-se que são abrangi das ou, pelo menos, podem ser' abrangidas todas as camadas da personalidade humana, desde a esfera da corporalidade até a intelectual, através desse processo de nova criação. De modo sugestivo, no Novo Testamento, o perdão dos pecados encontra-se, com freqüência, ligado à cura de uma doença. O perdão dos pecados produz o restabelecimento da imagem de Deus destruída ou danificada - um ato de criação que causa também o restabelecimento da saúde corporal, da integridade física ou, ao menos, pode causá-la. Outras tantas vezes, o perdão dos pecados parece vir ligado à expulsão de demônios da pessoa atingida.

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No coração do homem, onde entra a própria palavra de Deus, onde é gerado "o Filho" os maus espíritos não têm mais lugar ou poder algum. O novo e criador' poder do Espírito Santo age de igual maneira sobre a esfera psíquica, mental e espiritual do homem, Produz curas de doenças no corporal, purificação dos poderes demoníacos no psíquico, "gnose" e conhecimento de Deus no domínio espiritual.

É importante levar em consideração esse poder penetrante do

Espírito de Cristo, que recria e abrange todas as dimensões do ser humano. Precisamente nos círculos do assim chamado movimento de despertar, caracterizado por uma atitude fortemente antintelectualista e anticientífica, entendeu-se muitas vezes o renascimento no sentido exclusivo de uma “conversão do coração", que não penetra até a esfera intelectual. Esse modo de expor compreende de maneira muito estreita o alcance antropológico e a profunda dimensão do renascimento: não ocorre apenas uma mudança do coração, que influi numa nova atitude ética, m,as também uma iluminação da inteligência, que conduz a um novo conhecimento e a uma elevação da consciência humana podendo chegar até o domínio do supramental. Aí se encontram os pontos de- apoio da gnose cristã, a qual era e é de grande importância para o desenvolvimento da Antropologia crista e para a experiência que JAKOB BõHME descreveu como "visão da essência" e GEORGE Fox, como a "luz interior".

No renascimento, portanto, o velho homem é reativado, recebe

nova força física - todos os casos de cura pela fé pertencem a esse domínio uma nova direção da vontade, uma nova finalidade de seu amor e uma nova luz do conhecimento. O que é psicologicamente admirável é que, em conexão com esse processo, não só aparecem fortalecidas propriedades já existentes e atuantes bem como dotes já formados, mas também dons até então adormecidos são provocados e ativados. A pessoa em questão fica capacitada de romper com inveterados e aparentemente invencíveis hábitos, começando uma nova vida, cheia de um novo sentimento espiritual de vida ou uma nova atitude de consciência e procura novas formas espirituais de expressão: "O que nasceu de Deus vence o mundo" (1 Jo 5,4).

O HOMEM LIBERTADO

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Nenhum outro conceito determina tanto a peculiar soberania da imagem cristã do homem como a idéia de liberdade. Ela é, de fato, como vimos, o selo especial da semelhança do homem com Deus. Só Deus é livre no sentido original da palavra; só ele possui a soberana capacidade de querer-se a si mesmo e, numa decisão livre realizar-se a si mesmo num mundo que ele quis e do modo que quis. Ao criar o homem à sua imagem, ele, o livre, transmitiu e confiou à sua imagem criada a mais alta nobreza de seu ser, a liberdade.

Como já observamos (págs. 210 e SS.), a compreensão cristã de

pecado e redenção está ligada da maneira mais íntima possível a essa idéia de liberdade. O pecado é o abuso da liberdade pelo homem, oriundo da vontade de afirmação de si ao lado de Deus, do querer-se a si mesmo, da vontade de ter pata si mesmo o mundo que lhe fora confiado, colocando-se, assim, no lugar de Deus.

Esse abuso da liberdade enredou o homem na escravidão - no Novo

Testamento, designa-se de preferência como “escravidão'" o estado do homem "caído" (Jo 8,34; Rom 6,16). É a escravidão do egoísmo humano que quer ter todas as coisas para si e gozar delas, que deseja apropriar-se de tudo, dominar tudo e tornar tudo submisso a seus próprios planos e desejos. É a escravidão do amor alienado, não mais voltado para Deus, mas para si próprio e para as coisas deste mundo, cobiçando as para si e rebaixando também os semelhantes à condição de meios do egoísmo, da vontade própria e da exploração.

Também este modo de compreender o pecado já foi logo cedo

reinterpretado no sentido do pensamento dualista do platonismo e do maniqueísmo, explicando como o verdadeiro impulso do pecado os instintos provindos da esfera da corporalidade, da "carne", e como sua autêntica raiz, os desejos sexuais. Esta é uma falsificação posterior, uma reincidência no dualismo, ocasionador das piores conseqüências, superado pela idéia da Encarnação. A servidão do pecado, no entanto, não se identifica com o domínio dos apetites sensuais, nem, tampouco, com a subjugação do espírito pela "cobiça da vida", como ensina o budismo, mas é a perda da liberdade divina, própria do homem enquanto imagem de Deus e que se deveria realizar numa livre e amorosa doação do homem em sua totalidade de espírito e corpo, a Deus, seu modelo, e ao próximo, no qual a imagem de Deus se apresenta visivelmente.

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A escravidão do homem afastado de Deus é mais oprimente que a simples servidão dos sentidos e da sensualidade ou cobiça da vida. Ela é a queda sob o egoísmo, a necessidade de servir somente ao amor-próprio, o impulso à inimizade com Deus e a coação a enredar-se sempre mais, com o espírito, alma e corpo, na rebelião contra Deus. É a inflamação de todo o centro vital ou, como se lê na carta de TIAGO, "da roda da geração", a qual, pondo-se em contradição com Deus, passa a girar agora ao redor do eixo do próprio eu. A escravidão do homem decaído é a servidão do homem todo, não somente de sua "carne", mas sim de todas as camadas de seu ser humano, inclusive do "intelectual". Numa ousada crítica da linguagem do dualismo platônico, assim se exprimiu LUTERO: "O homem não renascido é todo carne, também em seu espírito; e o homem renascido é todo espírito, também quando come e dorme". O homem, cuja energia vital, em contradição com Deus, gira apenas ao redor do centro do próprio eu e da vontade própria, está inteiramente escravizado e não pode libertar-se a si mesmo dessa escravidão, porque a contradição com Deus reside no centro mais íntimo de movimento de sua vida.

É somente partindo deste ponto de vista, que as palavras de

liberdade de uma pessoa cristã adquirem sua ressonância e seu sentido plenos e soberanos. A liberdade que o cristão recebe é a liberdade de Cristo, o novo Adão, conquistou para ele, vencendo o pecado e a morte, realizado o sacrifício da doação total de si a Deus e devotando-se a ele com amor livre, ao tomar sobre si, voluntária e inocentemente, a perseguição, o sofrimento e a morte, concretizando, voluntariamente, como Filho de Deus, em sua própria vida e consumando; ao morrer na cruz, a oração: "Pai, não se faça como eu quero, mas como tu queres" (Mt 26,39) ou"Pai, faça a tua vontade"! (Lc 22,42). A liberdade do cristão é uma liberdade em Cristo, a reconquista em Cristo, o segundo Adão, da liberdade do primogênito das criaturas, no qual está vencida a possibilidade de abuso da liberdade; a ativação da decisão contra Deus. Consiste, na liberdade do renascido que pode, finalmente, cumprir o destino do homem e entregar-se a si próprio a Deus com um amor livre. Com efeito, amor só é possível na liberdade; não se pode obrigar ao amor. A perfeita comunidade entre pessoas não se pode realizar senão pela livre doação de si mesmo. Em Cristo, o homem libertado por ele, pode realizar seu destino como imagem de Deus.

Somente a liberdade torna possível uma comunidade perfeita. Essa

comunidade engloba Deus e o próximo, no qual encontramos a imagem

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de Deus corporificada. Essa liberdade nos torna capazes de livre doação de nós mesmos a Deus e ao próximo, em quem Deus vem ao nosso encontro sob a forma humana. Desta maneira, a liberdade realiza-se no livre serviço do amor. LUTERO exprimiu do modo mais apropriado o grandioso paradoxo da liberdade cristã, que abrange ambas as coisas: amor e serviço:

"Um cristão é um livre senhor de todas as coisas e não submetido a

ninguém. Um cristão é um criado ao serviço de todas as coisas e submetido a todos" (Começo do escrito Von der Freiheit eines Christenmenschen, 1920).

Não se pode deixar de observar que ao esquema evangélico da

libertação - e ao correspondente esquema do resgate - cabia um papel, particular, nos primeiros séculos da Igreja, dentro de uma sociedade construída inteiramente, na sua estrutura social, pelo sistema da escravidão. Na sociedade da antiguidade tardia havia, por um lado, amplas camadas da população que viviam permanentemente no estado de escravidão, enquanto, por outro lado, em virtude do direito de guerra então vigente, mesmo a população livre se via sempre exposta ao perigo de, no caso de uma conquista de sua comunidade por um inimigo vitorioso, passar como escravos para a posse do vencedor e ser repartido entre os vitoriosos. Portanto, era indicado o esquema de libertação a fim de falar aos homens nos seus mais) profundos temores podendo contar com uma compreensão espontânea.

Tanto era assim que precisamente a previsão de libertação dos

escravos, segundo os costumes do direito grego e, em modalidade diversa, também do direito romano, só poderia ocorrer confiando-se a um deus o escravo a ser libertado e considerando-se o liberto propriedade do respectivo deus, chegando, às vezes, a tornar até o nome do deus . libertador. O regate e a libertação por Cristo receberam, assim, seu sentido atual e realista todo particular, frisando, ao mesmo tempo, o aspecto particular da liberdade na Antropologia religiosa dos cristãos.

Dentro deste contexto, torna-se também compreensível porque a

liberdade cristã não deve ser tomada de um modo puramente individualista, como se pressupõe freqüentemente na interpretação secularizada dessa liberdade. Não deve- ser entendida, tampouco, de maneira puramente "coletiva", como é o caso em algumas tentativas

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modernas socialistas de uma "teologia da revolução". Os momentos do pessoal e do social estão indissoluvelmente ligados entre si pela concepção de que cada homem por. si é imagem de Deus, mas que, na medida em que encontra sua semelhança com Deus em Cristo, o novo Adão, também reconhece a Imagem de Deus no próximo, de modo que seu amor ao próximo revive em seu amor a Deus, renovado por Cristo, e principia a ter efeitos práticos. Ninguém será remido por si só mas destina-se, como "pedra viva" (1 Pdr 2,4-5), a ser inserido na construção da "casa de Deus", do "templo de Deus, que sois vós" (1 Cor 3,17) .

Também aqui não se pode desconhecer o caráter, escatológico e

evolutivo desse "processo". O cristão não se vê posto num "estado" estático de liberdade, mas sente-s,e envolvido num processo dramático de libertação, onde satã se empenha sempre de novo e com novos métodos em reconduzí-lo à sua prisão de escravos, enquanto Deus se esforça para libertar seus filhos do cárcere de sua servidão, colocando-os na prometida "liberdade dos filhos de Deus", Não é de se admirar que esse elemento evolutivo de luta de liberdade tenha atuado também como um estímulo espiritual de libertação social e racial dos escravos, como foi alimentado pelos grandes propugnadores cristãos dos direitos humanos nos século XVIII e XIX, e levado à frente com indizíveis esforços.

O HOMEM ALEGRE FRIEDRICH. NIETZSCHE resumiu sua crítica aos cristãos de seu

tempo nas seguintes palavras de Zaratustra: "Seria preciso, entoarem melhores cânticos vara eu crer no seu

Salvador; seria necessário que seus discípulos tivessem mais aparência de redimidos"! (Assim Falava Zaratustra, 75,98, "Dos compassivos").

Com esta crítica queria exprimir que a expressão fisionômica da real

atitude mental dos cristãos não corresponde de forma alguma ao quadro teológico ideal, que a doutrina cristã traçou para o homem libertado, remido e renascido, e que o quadro prático da vida cristã não espe1ha a imagem de Deus.

Está fora de dúvida que esta crítica de NIETZSCHE tem fundamento.

Na realização da imagem cristã do homem, no decurso da história da Igreja, perderam-se ou desfiguraram-se muitos traços originais da essência, que originalmente pertenciam à imagem cristã do homem e hoje

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só aparecem esporadicamente, numa forma rudimentar, ou apenas ainda em zonas periféricas da vida cristã, mas não mais são reconhecíveis à primeira vista como elementos característicos do cristão.

Entre essas características está a alegria cristã - chara - que se

manifesta no júbilo - agaliasia. Na Igreja convencional, penetrou muitas vezes um rígido tom solene, uma seriedade freqüentemente rabugenta, como atitude fundamental: Ao contrário, nos testemunhos do Novo Testamento, aparece a alegria como característica distintiva do cristão. Assim, lê-se, com sempre novas variantes, nos Atos dos Apóstolos, sobre as reuniões da comunidade cristã: "Louvavam a Deus com alegria e singeleza, cativando a simpatia de todo o povo" (At 2,46-47); "estavam cheios de alegria, e do Espírito Santo" (At 13,52). A alegria é o resultado espontâneo da plenitude do Espírito Santo: conta entre os dons principais do Espírito Santo, ao lado da justiça, do amor, da paz e de outros (Gál 5,22).

Os apóstolos apresentam-se a si mesmos aos membros de suas

comunidades como "auxiliares de vossa alegria" (2 Cor 1 ,24). Sobretudo o evangelho de JOÃO está inteiramente repassado por este tom da alegria. Em suas palavras de despedida, Jesus promete a seus discípulos: "Disse-vos estas coisas, para que a minha alegria fique em vós e a vossa alegria seja completa" (J o 15,11). "Vossa tristeza há de transformar-se em alegria" (J o 16,20). "Ninguém vos tirará a vossa alegria" (.To 16,22). Essa alegria era o estado de espírito fundamental das reuniões comunitárias e manifestava-se muitas vezes num júbilo efusivo - agaliasis. As cartas do apóstolo PAULO não mostram o esforço de dar vida a uma comunidade por demais rija e solene e animar a sua seriedade por meio da alegria - chara -, antes, pelo contrário, o seu empenho para refrear a explosão de alegria, muitas vezes em forma de um "júbilo" caótico, mantendo-os numa linha de certo modo ordenada.

Essa alegria tem um caráter especificamente cristão. Funda-se no

reconhecimento de que o poder do mal já foi fundamentalmente quebrado pela força de Cristo - "Vi satanás cair do céu como um relâmpago" (Lc 10,18); que a morte, o demônio e os maus espíritos não têm mais nenhum direito sobre o homem; que o homem não está mais entregue à desgraça, à condenação e ao aniquilamento; que já foi iniciada a grande reviravolta para o novo ser; que o "primogênito entre os mortos"

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já se fez presente, e já agem na humanidade as forças do perdão, da reconciliação, da ressurreição e da transfiguração.

Mais do que em qualquer outra parte, conservou-se esse elemento

da alegria do cristão, de maneira bem acentuada, na liturgia da Igreja ortodoxa oriental. Sobretudo a liturgia pascal está repassada desta alegria em face da Ressurreição que se irradia, da conseqüente realização do reino de Deus e da já iniciada renovação do homem, exprimindo-se a sua alegria nos hinos pascais muitas vezes de uma forma quase extática. Nesses hinos de júbilo acha-se sintetizada a experiência dos grandes carismáticos, santos e místicos da Igreja oriental durante mais de um milênio. Mais tarde, as características dessa alegria carismática mostram-Se sempre de novo, sobretudo nos movimentos cristãos da Igreja pentecostal, radicalmente extáticos. Também nos movimentos de despertar dos pietistas são encontrados sempre de novo explosões de alegria carismática. Assim, um sacerdote de Württemberg, de nome PREGIZER, tornou a fundar, no séc. XVIII, o "cristianismo alegre". O cristão é o "homem alegre", que sabe que o demônio e a morte já não lhe podem fazer mal e que Cristo, o "homem perfeito", tornou a dar-lhe a perfeita alegria do novo Adão. Essa alegria causa a libertação para a realização do amor ativo.

"Quem achou no Senhor a salvação E se alegra como deve, Sente também a obrigação de levar outros ao Senhor". (PREGIZER) Nessa "alegria" residem as raízes do humor especificamente cristão,

que se caracteriza pelo fato de que, em meio aos conflitos da vida, está em condições de superar todos os sofrimentos e todas as provações, por meio da consideração da vitória futura. Numa situação em que outros só percebem a amargura e o desespero da vida, ele vê a futura superação do sofrimento já operada por Cristo e a transformação da tristeza em alegria. No humor cristão a alegria se une com a "liberdade do cristão", que não se· deixa atrapalhar e provocar pela cruz e sofrimento, mas que na cruz e no sofrimento já entrevê os sinais escatológicos do triunfo e da alegria. Quando se fala do humor cristão, em nossos dias, invoca-se muitas vezes a KIERRKEGAARD. Seu humor, porém, está por demais submetido à tortura intelectual e à amargura dialética, para esgotar a plenitude da alegria

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cristã. No "Halleluja" dos autênticos spirituals dos negros encontra-se mais dessa alegria do que nas numerosas páginas de KIERKEGAARD sobre o humor.

O HOMEM CARISMÁTICO Sempre que se descreve no Novo Testamento a realidade viva da

vida comunitária cristã, o cristão é apresentado como o homem carismático, como o homem cheio das forças do Espírito Santo, o homem através do qual se realizam os dons do Espírito Santo. Ora, existe algum nexo entre a compreensão do Espírito Santo e os enunciados sobre o homem como imagem de Deus e sobre Cristo como o segundo Adão, fundador da nova humanidade? Não nos deparamos aqui com uma concepção inteiramente nova, autônoma e sem ligação com as demais idéias fundamentais, para a noção cristã do homem?

Seria o caso de mencionar aqui que a efusão do Espírito Santo já se

encontra nas promessas de salvação do Antigo Testamento, que dizem respeito à expectativa do reino de Deus e à espera do futuro Messias, o Filho do Homem. Já na expectativa escatológica do judaísmo tardio o Espírito Santo desempenha um papel decisivo: o Reino de Deus é esperado como futuro reino maravilhoso, no qual o Espírito de Deus encherá os homens e transformará por suas forças maravilhosas toda a vida humana; Espírito Santo, Reino de Deus e inaugurador do Reino são coisas inseparáveis, são elementos da mesma esfera da salvação.

A comunidade cristã de Jerusalém entendeu a irrupção dos

fenômenos carismáticos em seu meio, ocasionados por certo pela promessa de Jesus sobre a vinda do Espírito Santo, como cumprimento da promessa escatológica dos antigos profetas. Característica é a narrativa dos Atos dos Apóstolos a respeito dos acontecimentos de Pentecostes. Sobre os participantes da reunião dos discípulos de Jesus no cenáculo desce o Espírito Santo sob a forma de línguas de fogo, acompanhadas do ruído de um vento impetuoso, de modo que a população acorreu. Os sinais da excitação extática, que aparecerem entre os discípulos no cenáculo são interpretados pelos assistentes, embaixo, na rua, como sintomas de embriaguez. PEDRO, porém com um discurso apologético, dirige-se ao povo e diz: "Homens da Judéia .. seja-vos isto conhecido. " Estes homens não estão embriagados, como pensais. .. Mas cumpre-se

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aqui o que foi predito pelo profeta JOEL: Acontecerá nos últimos dias - diz Deus -, derramarei o meu Espírito sobre toda carne, e vossos filhos e vossas filhas profetizarão; vossos jovens terão visões, e vossos anciãos terão sonhos. Sobre meus servos e sobre minhas servas derramarei naqueles dias, o meu Espírito e profetizarão. Farei prodígios em cima, no' céu e milagres embaixo, na terra... e acontecerá que todo aquele que invoca;' o nome do Senhor será salvo (At 2,14-21; cf. 11 3,1-5). A efusão dos dons do Espírito Santo na comunidade, que se deu de maneira tão admirável naquele dia de Pentecostes, é aqui interpretada como realização da promessa de JOEL, como sinal da anunciada vinda dos fins dos tempos, com suas forças maravilhosas.

O aspecto antropológico dos dons do Espírito é extraordinariamente

múltiplo, abrangendo um amplo espectro de variegadas irradiações do Espírito. Esses dons não se realizam somente na esfera do intelecto, mas também, enquanto enunciados de força, manifestam-se no domínio de todas as esferas da vida humana e em todos os domínios da personalidade, sendo que evidentemente predominam, à primeira vista, os fenômenos irracionais, extáticos, com muitas irrupções no âmbito parapsicológico. A incontrolabilidade e espontaneidade dos dons do Espírito representavam notoriamente um elemento altamente inquietante nas comunidades cristãs primitivas.

Assim, já em PAULO encontramos imediatamente misturadas

tendências inteiramente opostas. De um lado, encontra-se nele a preocupação de abrir livre acesso à irrupção do Espírito Santo: "Não existingais o Espírito! Não desprezeis as profecias"! (1 Tes 5,19). Mas, essa tendência levou evidentemente a uma intensificação dos elementos extáticos e irracionais dentro da comunidade, favorecendo·, assim, as oportunidades de irromperem cenas tumultuosas e atitudes orgiásticas. Por isso, sobressai com mais força a tendência, contrária: a intenção de pôr em primeiro plano as manifestações raciais, depreciando e relegando as irracionais para um segundo plano, reprimindo-as, se possível, por completo.

N a Primeira Carta aos Coríntios (12,7-11), temos, por exemplo, uma

enumeração dos dons do Espírito em ordem de categorias, que principia com o dom da palavra da sabedoria e da gnose, terminando com o dom das línguas. Da mesma forma, aparece, em PAULO, quase que predominantemente, a tendência de submeter os dons do Espírito ao

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controle e exame de consciência: "Examinai tudo e retende o que for bom!" (1 Tes 5,21). Um tal conselho pressupõe já uma atitude crítica com relação aos dons do Espírito. Se, mais adiante, se diz aos profetas da comunidade que não devem profetizar todos ao mesmo tempo, nas reuniões, e se admoesta aos extáticos cantores de hinos para que não cantem todos ao mesmo tempo, mas só um depois do outro, PAULO segue o mesmo princípio de um controle pelo intelecto e pela vontade. "Os espíritos dos profetas estão subordinados aos profetas" (l Cor 14,32). Esta sentença afirma, em princípio, exatamente o inverso da admoestação: "Não extingais o Espírito!" Mais claro ainda é esse retorno a um controle consciente e voluntário das manifestações do Espírito, num outro domínio: No culto judaico das sinagogas, só se permitia às mulheres uma assistência silenciosa; mas nas reuniões das comunidades cristãs elas passaram a fazer uso da liberdade do Espírito, aparecendo na comunidade como carismáticas (profetas, videntes, mestras, possuidoras do dom das línguas). PAULO lhes proíbe totalmente que falem: "Mulier taceat in ecclesia" (na igreja a mulher deve calar), procurando reintroduzir o antigo princípio da sinagoga.

A submissão dos carismas ao controle da consciência e da vontade

já significa uma efetiva tendência de racionalização de todo o campo carismático. Não é de se admirar que já desde o final do primeiro século se assista a um rápido processo de eliminação dos carismáticos livres e da livre atuação dos dons do Espírito dentro da comunidade. Em lugar dos carismáticos, surgem os selecionados para os vários ofícios eclesiásticos: bispos, presbíteros, diáconos.

Continua decisiva a questão: qual é a relação entre as

manifestações do Espírito Santo e a idéia fundamental da Antropologia cristã, a compreensão do homem como imago Dei, e com o pensamento básico da compreensão de Cristo, da Encarnação?

No evangelho de João, encontra-se uma resposta para esta questão.

Aí o próprio Jesus promete, em seu discurso de despedida, a vinda do Espírito Santo, que será enviado aos discípulos como consolador e advogado¸ "Paráclito" - quando o Filho retomar ao Pai. Portanto, o Espírito Santo entra em lugar do Cristo, que volta ao Pai. Por isso, depois da Ascensão de Cristo, o Espírito Santo é a forma segundo a qual Deus continua presente à sua comunidade com seu poder maravilhoso. Para o crente dos primeiros tempos da Igreja, essa idéia não constituía nenhum

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problema teológico mais grave. Para ele, o Espírito Santo, que se demonstrava em carismas no meio da comunidade de um modo tão evidente e maravilhoso, é o Espírito de Deus, o Espírito do Senhor Jesus Cristo, que já se mostra em seu corpo, a; comunidade dos crentes, ou seja, no meio do velho éon, como o maravilhoso elemento vital do novo éon. Com grandiosa magnificência, PAULO expôs essa identificação: "O Senhor é o Espírito, e onde há o Espírito do Senhor, aí há liberdade. Ora, em todos nós se reflete a claridade do Senhor com rosto descoberto, e somos transformados na mesma imagem, de claridade em claridade, como pelo Espírito do Senhor" (2 Cor 3,17-18).

O Espírito Santo, como espírito de liberdade, ficou sendo o

fermento da história da Igreja durante todos os séculos; todas as grandes reformas e numerosas Igrejas novas e fundações de seitas encontram-se sob o signo de novas irrupções carismáticas e foram provocadas por pessoas carismáticas. As grandes criações da história eclesiástica provieram de carismáticos, que surgiram, em todas as épocas. A história da Igreja e dos hereges é, em princípio, como já bem viu GOTTFRIED ARNOLD, uma história dos carismáticos cristãos e das constantes irrupções dos dons do Espírito Santo.

O HOMEM PERFEITO Somente com hesitação é que abordamos o último aspecto da

imagem cristã do homem, que tem importância neste contexto, isto é, a idéia do homem perfeito. Abordamos aqui uma área que só é acessível às mais profundas experiências espirituais, fechando-se de todo a uma apreensão puramente conceitua1. Por outro lado, a alusão ao homem perfeito encontra-se tão freqüentemente no Novo Testamento e desempenhou um papel tão proeminente na história da espiritualidade cristã, que se torna impossível simplesmente contornar esse aspecto ou até silenciá-Ia.

Na evangelho de MATEUS, Jesus dirige a seus discípulos a exigência:

"Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito" (Mt 5,48). Esta exigência, estabelecendo o próprio Deus corno medida da perfeição do homem, soa assustadoramente, visto que parece muito superior a todo ser humano, ultrapassando de longe a medida do que se pode exigir de um homem. Se não se parte de antemão da suposição de tratar-se aí de

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um exagero poético ou de um modo de falar religioso exagerado, 'entendendo, antes, esse conselho num sentido literal, e próprio, como uma exigência endereçada a homens iguais a nós, então essa exigência só nos pode apavorar. Ora, evidentemente, essa exigência deve ser tomada no sentido literal, pois vem sempre repetida nos escritos dos Apóstolos, como, por exemplo, em PAULO (2 Tim 3,17): "Um homem de Deus deve ser perfeito", e em TIAGO (1,4: "...para serdes perfeitos 'e íntegros").

Nas cartas dos Apóstolos, a perfeição divina não é apresentada

expressamente como medida da perfeição que se exige do homem, mas, mesmo aí, essa medida é pressuposta: a exigência apostólica não fica atrás da de Jesus.

Um esclarecimento do sentido dessa expressão só poderá ser

conseguido - se é que o possa -, a partir da idéia do homem como imagem de Deus e da concepção de Cristo como o "novo Adão" e restaurador da imagem de Deus. A perfeição do homem é a perfeição com que ele reflete a imagem de Deus. É verdade que, por sua rebelião contra Deus seu afastamento voluntário do seu protótipo, ele desfez essa semelhança, mas em Cristo ele recuperou a perfeição da semelhança com Deus.

A Igreja antiga estava muito mais próxima dessa teologia da imagem

- que pode apresentar camadas ainda muito mais profundas do que aqui se possa sugerir - que nós atualmente: ORÍGENES, o grande mestre da escola catequética de Alexandria, exprimiu-o de forma insuperável no comentário de uma passagem de EZEQUIÊL. O profeta fala, numa ocorrência única na Sagrada Escritura, de uma reduplicação do conceito "homem-homem da casa de Israel" (14,4). ORíGENES interpreta este emprego duplo da palavra "homem" como uma indicação do aperfeiçoamento na história da salvação: nós todos nascemos como homem, mas nem todos somos homens-homens ... "Só quando somos bons e piedosos, duplicamos o nome homem, de modo que em nós não mais vive simplesmente o homem, mas, juntamente, o homem-homem... Se o homem existe apenas exteriormente, havendo no seu interior uma cobra, ele não é homem-homem, e sim, apenas. um homem. Se, porém, o homem interior corresponde sempre à imagem daquele que o criou, nasce o autêntico homem, e unem-se os dois homens, o homem exterior e o inferior, formando harmonicamente o homem-homem" (Homilia sobre Ezequiel, 3,8).

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Numa exegese ousada, emprega-se aqui o conceito de homem-homem para desenvolver toda a teologia da imagem de Deus: o "homem" é o homem decaído, o rebelde, que desviou o seu objetivo de Deus, seu protótipo, em cujo coração se aninhou a "serpente". Somente o homem-homem no qual a perfeita imagem de Deus está renovada, é o homem perfeito em que se recompôs a perfeita harmonia do homem "interior", a saber, da imagem de Deus, e a do homem "exterior". Nisso sempre é pressuposta a Encarnação, a descida de Deus na carne, o ato salvador da Redenção e a boa-nova de Cristo, o "primogênito entre os mortos", o "último Adão".

Na mesma direção da teologia da imagem de Deus situa-se a não

menos ousada idéia de "divinização" do homem. A teologia posterior à Reforma, por temor à mística, riscou inteiramente do seu vocabulário esse conceito ousado, originário do uso da experiência mística. Dever-se-ia, porém, ter em mente que a poção de divinização, atrás da qual Se encontra uma correspondente experiência"'espiritual, constituiu nos primeiros 500 anos da Igreja cristã um conceito central da doutrina cristã da Redenção, num tempo em que ainda se encontravam entre os grandes teólogos uma série de autênticos místicos.

ATANÁSIO, o famoso bispo de Alexandria, criou a fórmula básica

para a teologia da divinização: “Deus se fez homem, para que nós nos tornemos deuses". Com isso, ele não introduzia um conceito estranho na sotereologia cristã, mas apenas condensava numa fórmula o que enchia o pensamento e a experiência de muitos Padres da Igreja primitiva.

A idéia da divinização do homem foi também desenvolvida pelos

Padres da Igreja com base na exegese de um texto bíblico, graças à palavra do SI. 81,6: "Eu disse: 'sois deuses e todos filhos do Altíssimo'."

Já no evangelho de João, essas palavras desempenham um papel

decisivo na composição da imagem joanina do homem e na auto-exposição messiânica do próprio Jesus. João conta como Jesus, numa discussão com os judeus, no pórtico de Salomão (J o 10,34), parte do que afirma o SI 81,6, justamente no instante em que os judeus lhe objetam, por causa de sua afirmação "Eu e o Pai somos um", que ele quer fazer-se a si mesmo Deus, e desejam, por castigo, apedrejá-lo devido a essa blasfêmia. Respondeu-lhes, então, Jesus:

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"Não está escrito na vossa Lei: 'Eu disse, vós sois deuses?' Se a Lei chama deuses àqueles a quem a palavra de Deus foi dirigida (e a Escritura não pode ser abolida), como acusais de blasfemo aquele a quem o Pai santificou e enviou ao mundo, só porque disse: 'Sou o Filho de Deus'?". Portanto, Jesus não condena de modo algum, ao citar a passagem do Salmo, a designação dos homens como "deuses", mas frisa expressamente o valor dessa sentença. Se Deus denomina "deuses" aqueles a quem a palavra de Deus é dirigida, então, essa designação é adequada, eles são realmente "deuses". Por isso, cita a palavra do Salmo, para justificar também a sua própria afirmação: "Sou o Filho de Deus". Nos Padres da Igreja antiga, essas palavras ditas aos homens, segundo as quais eles seriam deuses, tornaram-se a base da sua Antropologia teológica. O, aperfeiçoamento do homem realizado por Cristo é idêntico a sua divinização. Nela completa-se a sentença salvadora que Deus dirige aos homens: "Sois deuses" (dei estis).

CLEMENTE DE ALEXANDRIA escreve sobre, o aperfeiçoamento do

verdadeiro gnóstico: "O mesmo acontece também em nós, para quem o Senhor se tornou o protótipo: pelo batismo somos iluminados, pela iluminação adquirimos a filiação, pela filiação nos aperfeiçoamos, pela perfeição obtemos a imortalidade. Eu disse: vós sois deuses e filhos do Altíssimo".

O mesmo CLEMENTE DE ALEXANDRIA escreve numa outra

passagem: "A gnose conduz a um alvo infinito e perfeito, ensinando-nos previamente que tipo de vida nos deverá ser concedida pela vontade de Deus em comunidade com os deuses', depois que formos libertados de toda punição e castigo que temos de sofrer para a disciplina salvadora, devido às nossas transgressões. Depois dessa libertação ser-nos-ão concedidos as homenagens e o prêmio de honra, porque nos tornamos perfeitos, isto é, porque terá cessado entre nós a purificação e mesmo porque terá terminado também todo outro serviço. Então, quando nos tivermos tornado puros de coração, teremos, na proximidade do Senhor, a restauração pela visão eterna; e receberão o nome de 'deuses' aqueles que terão o primeiro lugar abaixo do Redentor, sentados no trono com ele".

Em todo o lugar, portanto, onde, no Novo Testamento, se fala da

perfeição do homem, esta vem ligada com a idéia de ter sido o homem criado à imagem de Deus, mas recebe o seu sentido total pela cristologia:

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a perfeição do homem será alcançada "em Cristo". Essa perfeição não é por isso, apenas um ideal individualista, visando o aperfeiçoamento espiritual e moral do homem isolado, mas é entendida no sentido escatológico, com vistas "ao crescimento em conjunto dos crentes, para formarem o corpo de Cristo. Em diversas passagens das cartas dos Apóstolos, 'a promessa da perfeição parece ter um tom predominantemente individualista: "Ensinamos a todos os homens em toda sabedoria, para tornar todo homem perfeito em Cristo" (Col 1,28); ou, como Paulo escreve logo em seguida, na mesma carta (Cal 2,9-10): "Pois nele (in Christo) habita corporalmente toda plenitude da divindade, e vós sais perfeitos nele, que é a cabeça de todo principado... ". Mas, mesmo essas afirmações isoladas e de aparente cunho individualista adquirem o seu sentido próprio somente a partir da idéia de que a comunidade dos crentes é o corpo de Cristo na sua formação, no seu crescimento e na sua unificação; só nesse corpo "nos tornamos homem perfeito, na medida da perfeita idade de Cristo" (Ef 4,13).

Somente essa idéia de uma perfeição dada ao homem pela criação,

por ele atraiçoada, mas recuperada por Cristo, torna compreensível uma última elevação que a história da piedade cristã registra na sua concepção do homem: a elevação da filiação divina à amizade com Deus. A amizade com Deus aparece como a forma suprema da união que se pode atingir entre Deus e o homem; nela o amor é elevado à forma mais alta de comunicação pessoal entre o modelo e a imagem.

A mais candente percepção da diferença de ordem entre a filiação

divina e a amizade com Deus foi, sem dúvida, a exposta por JOAQUIM FIORE, o profético abade da Calábria. Esse fundador do espiritualismo entendeu a história da salvação como o curso de uma sucessiva auto-realização da Trindade divina em três períodos salvíficos, aparecendo como poder formador no primeiro o Pai, no segundo o Filho e, no terceiro e último, o Espírito Santo. Em sua longa enumeração das particularidades dessa seqüência de períodos, na história da salvação, a primeira fase é a do domínio da Lei, no Antigo Testamento, como o estado da escravidão; a segunda foi a fase do Novo Testamento, o estado dos filhos; a terceira constitui o tempo do Espírito Santo, como o estado dos amigos. A amizade com Deus aparece aqui como a conclusão, o ponto culminante, no desenvolvimento da relação pessoal entre Deus e o homem. A amizade com Deus é mais que a filiação de Deus, pois pressupõe um grau mais elevado de liberdade e responsabilidade. É a última, a mais alta, a forma

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conclusiva do amoroso encontro pessoal entre Deus e o homem. Só a terceira, a última era da salvação, é a da "amizade com Deus", onde a relação entre o homem e Deus é elevada à ordem proporcionada ao estado de liberdade. Com isso, porém, já se tocou no domínio da vida espiritual e da experiência interna, situado além do que se possa expressar.

0 PROXIMO – CRISTO PRESENTE É somente fundamentando a

Antropologia cristã na imagem de Deus que se compreende a idéia revolucionária, base da ética do cristianismo, segundo a qual em todo homem, mesmo no mais degenerado, o olhar da fé enxerga Deus presente. Uma das mais impressionantes passagens do Novo Testamento, em que aparece essa nova apreciação cristã do homem, é Mt 25,31 e ss. Aí, em seu discurso sobre o juízo final, Jesus descreve a admiração dos julgados, que devem a sentença proferida sobre eles - a de herdeiros do Reino de Deus ou a de condenados - ao seu comportamento em relação ao Filho do Homem. O Filho do Homem diz aos que estão à sua direita: "Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do reino que vos está preparado desde a criação do mundo, porque tive fome e me destes de comer, tiver sede e me destes de beber, era peregrino e me acolhestes ... "

"Admirados, os justos dizem ao Filho do Homem: "Senhor, quando

foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? "Como resposta à sua admirada pergunta, ouvirão da boca do juiz universal: "Em verdade, eu vos declaro que todas as vezes que fizeste isto a um dos meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes". E coisa semelhante ouviram os condenados, como fundamento de sua sentença: "O que não fizestes a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer" (Mt 25,45).

Em íntima conexão com estas fortes palavras, encontra-se nos

Padres da Igreja antiga uma outra asserção, que não se acha nos evangelhos, mas é citada pelos Padres do segundo século como autêntica palavra do Senhor exprime de modo ainda mais impressionante a idéia fundamental da ética cristã: "Vidisti fratrem, vidisti dominum tuum" (se viste o irmão, viste t,eu Senhor). Para o cristão, o próximo é o próprio Cristo presente. Mesmo sob a roupagem da miséria; a degenerescência, do sofrimento e da profanação, ele vê a imagem do Senhor, que está presente, o qual se fez homem, padeceu, foi erguido na cruz, morreu e

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ressurgiu dos mortos, a fim de reconduzir os homens a seu reino e com eles completá-lo.

Aqui se delineia uma ética que, em suas normas, não se baseia em

distinções sociais, biológicas, psicológicas, fisiológicas, espirituais ou culturais, mas que compreende o homem, em seu fundamento mais profundo, como imagem de Deus, porém, nunca em sentido abstrato e teórico, e sim numa última identificação como o irmão, no qual se vê Cristo, o Deus humanado, o "novo homem". A ética cristã enxerga o indivíduo sempre na sua referência com o próximo, seu companheiro e igual como imagem de Deus.

Também aqui há uma das diferenças, essenciais com as outras

grandes religiões. Tanto o hinduísmo como o budismo visam em suas mais altas experiências espirituais, totalmente análogas às experiências cristãs, libertar o indivíduo de seu enredamento na dor e na morte e da causalidade de sua situação efêmera na Terra, e uni-Ia à sua origem transcendente. A ética religiosa do hinduísmo e do budismo é, em última análise uma ética individualista, mesmo quando, como é o caso do budismo mahayana, anuncia expressamente o ideal bodhisattva, o qual consiste em o homem, que tende à redenção, renuncie ao supremo grau de sua redenção, à entrada no nirvana, para antes conduzir outros na vereda da redenção.

COMUNIDADE DE CRENTES COMO CORPO DE CRISTO O que há de novo na ética do cristianismo é que a idéia da

identificação com o irmão está ligada à concepção da comunidade como corpo de Cristo. O crente não se sente individualmente como um indivíduo isolado que tenha encontrado uma nova relação espiritual e moral com Deus e seu semelhante, mas como uma "pedra viva" (1 Pdr 2, 5), ou, como diríamos hoje, como uma célula viva no corpo vivo de Cristo, que, historicamente, se apresenta como a Igreja, no corpo de Cristo, ,em que desde já são poderosas as forças do Reino de Deus e onde circula o sangue de Cristo.

Nota-se aqui, novamente, um acentuado cunho corporal, material e

até materialista. A idéia da comunidade dos crentes como o corpo real de Cristo, cuja cabeça é o próprio Cristo, isto é, o corpo em que circulam o seu espírito e sangue, constitui a base própria e única da metafísica e da ética sociais do cristianismo.

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Quão pouco essa idéia da comunidade dos crentes como o corpo de

Cristo possa ter tomada no sentido de pura comparação, e quão concreta e real é a idéia da pertença dos crentes, quais pedras vivas, ao corpo de Cristo, e verificado pelo fato de existir dentro desse organismo do corpo de Cristo uma verdadeira comunicação entre cada uma das células e os membros. Assim, ha dentro desse corpo uma intercessão de um pelos outros, como também um sofrimento vicário de um pelos outros, uma substituição dos outros, pela qual um carrega o fardo do outro, mas onde também um pode comunicar ao outro os seus dons da graça. É um organismo onde a realização do amor cristão leva a um intercâmbio especial de dons e de dores de elevação e de humilhação, de derrota e de vitória, intercâmbio este que só e possível dentro da organização de um corpo, e no qual até o sacrifício de um indivíduo pode contribuir para o desenvolvimento do todo. "O que falta às tribulações de Cristo, completo em minha carne em benefício de seu corpo, que e a Igreja (Col I, 24). Se tomamos sobre nós o sofrimento da morte de toda a humanidade, e mesmo de toda a criação, como Cristo o fez na cruz, completamos sua ação redentora e nos tornamos nós mesmos Cristos. Dessa maneira,. o indivíduo, exatamente por seu sofrimento, pode ativar e acelerar o crescimento do Corpo de Cristo e o desenvolvimento da comunidade dos crentes, para atingir o "homem perfeito".

Nessa idéia básica da comunidade dos crentes como o corpo de

Cristo, fundamentam-se todas as formas eclesiásticas, políticas e sociais da cristandade, que se desenvolveram no decurso da história da cristandade. Dessa idéia básica derivam-se também as numerosas formas secularizadas da sociedade cristã, mesmo quando hoje em dia negam sua origem cristã ou adotam uma atitude anticristã.

A interpretação do corpo humano como imagem e comparação da

comunidade política de um remo, de um Estado ou de uma cidade, já era evidentemente conhecida pelo mundo pré-cristão, como pelo atual mundo extra-cristão. Aí, porém, a imagem do corpo é sempre tomada num sentido impróprio, só a modo de simples comparação, estranhamente, porém, nunca em relação a comunidades religiosas. Inteiramente nova, portanto, é a compreensão sacramental dessa idéia como ocorre na maneira de entender por parte da comunidade dos fiéis, como o corpo de Jesus Cristo. Nessa concepção realista, a ênfase não recai apenas na interligação orgânica dos diversos orgãos desse - mesmo aí já

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teríamos o início de uma metafísica inteiramente nova da sociedade e uma ética social totalmente nova, baseada na idéia da corporação -, mas Igualmente importante também é a idéia de um crescimento progressivo" desse corpo dentro da história, mediante a contínua mc1usao de novas pedras vivas" nesse corpo.

Aqui reaparece, com toda a força, o aspecto escatológico da história

da salvação cristã. No fundo, não significa outra coisa senão que na comunidade dos fiéis, operam as forças renovadoras, reformadoras e regeneradoras do reino de Deus, que surgiram pela primeira vez na história universal sob a figura de Jesus Cristo e que, partindo dele, o "primogênito entre os mortos", o primeiro dos ressuscitados tac1os" ativam progressivamente seu poder renovador na humanidade, enquanto, através de um misterioso processo seletivo edificam ,com os homens a comunidade do reino de Deus, comunidade esta, que e o corpo de Cristo. Com isso, abriu-se um irresistível processo de, crescimento do reino de Deus na história, crescimento expresso numa evidência tão poderosamente simples nas numerosas parábolas de Jesus, como a do semeador (Mt 13, 4 e ss.), a do joio e do trigo (Mt 13, 24 e ss.), a do diferente destino da semente lançada (Le 8, e ss.), mas também na comparação do fermento (Mt 13, 33 e ss.).

Entretanto, precisamente nesse ponto, faz-se' sentir uma tensão

especial, que até hoje, dentro das formas históricas da Igreja cristã, não encontrou ainda sua solução e superação definitivas. Desde o começo, conflitaram na consciência da comunidade cristã duas tendências com conseqüências completamente distintas na atitude fundamental dos cristãos com relação aos demais cristãos e ao próximo em geral.

A primeira atitude está completamente dominada pela idéia da

eleição. Dentro da humanidade que se acha em contradição com ele, Deus escolhe os seus, construindo seu reino com esses escolhidos. Tal concepção salienta o caráter aristocrático do reino de Deus: este consta de uma elite de escolhidos. Essa idéia de um número restrito de eleitos vem expressa de modo quase insuperável no Apocalipse de João: o grupo central do futuro reino de Deus é formado pelos "144.000 ... que não se contaminaram com mulheres" (Apc 14, 3-4). Um número tão reduzido é objeto do imenso esforço da história da salvação! Tão pequena comunidade vai aproveitar do drama cósmico que se passa sob a forma da luta, no céu e na Terra, entre o impetuoso exército do reino de Deus e o

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reino de satã: para AGOSTINHO, a comunidade dos eleitos é numericamente limitada (certus numerus); seu número corresponde ao dos anjos decaídos, que deve ser substituído pelos homens eleitos, a fim de que o reino de Deus seja de novo numericamente completado! A Igreja é aí entendida verdadeiramente como "eletiva", como urna seleção de poucos dentre a "massa perditionis" (a massa condenada) dos muitos que nunca participarão do reino, formando o refugo da história da salvação.

Nessa concepção oculta-se um grave perigo para a comunidade;

através dessa consciência aristocrática e exclusivista de eleição torna facilmente a penetrar a autojustificação, a auto-segurança, que é a raiz do amor-próprio e, com isso, a morte do amor a Deus e ao próximo.

A outra atitude segue a direção oposta. Parte da idéia de que o

objetivo da salvação iniciada por Jesus Cristo só pode ser a renovação e o acabamento de toda a humanidade, e que o amor de Deus, como mostra o monstruoso drama da doação e sacrifício de si mesmo pelo bem do homem, é maior que a justiça, a qual desejaria a condenação eterna do culpado. De acordo com essa concepção, o infinito amor de Deus deve ter a capacidade de extinguir até a maior culpa do homem, vencendo, por amor, mesmo a rebelião contra Deus nos primeiros causadores da queda, a fim de levar a humanidade toda, e até o primeiro dos anjos decaídos, lúcifer ou satã, para o reino de Deus.

Esta segunda atitude encontra-se sempre de novo nos grandes

místicos da Igreja antiga e da Igreja do Oriente, mas tem encontrado também seus apóstolos entre muitos grandes carismáticos da cristandade ocidental. Para eles, o objetivo da Redenção é a humanidade toda; a história da salvação é, em última análise, idêntica à história da humanidade, e o corpo de Cristo, idêntico à humanidade reunida numa só comunidade. Apesar da condenação eclesiástica da doutrina da reconciliação geral, como a que ORÍGENES propôs precisamente os grandes teólogos e místicos da Igreja oriental sempre permaneceram seguidores dessa doutrina, convictos de que somente a redenção de todos, inclusive do próprio satã, se enquadra com a idéia do triunfante amor divino.

O fato de a doutrina da reconciliação geral, - “apokatástasi” - ter,

apesar de tudo, sentido sempre a oposição dos dogmas das igrejas de todas as confissões cristãs, é compreendido pela concepção pedagógica

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de que essa consideração universalista facilmente leva à crença de ser a Redenção um acontecimento inevitável, uma espécie de processo natural, ao qual não se pode com o tempo subtrair-se. Semelhante atitude conduz à perda da consciência de responsabilidade do homem perante Deus e o próximo. Se o homem não pode deixar de ser salvo, nesta ou numa vida posterior, não subsiste mais necessidade de batalhar por sua salvação. Há, portanto, na idéia da apocatástase a tentação de uma perigosa preguiça e segurança espiritual e moral.

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