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O homem que colecionava dedicatórias
Algumas pessoas colecionam selos, lágrimas, tampas de garrafa, sonhos, maços de cigarro
ou discos. Já conheci até quem colecionasse embalagens de pasta de dente. Eu coleciono livros. Ou
melhor, dedicatórias em livros. Sempre fui fascinado pelas frases que as pessoas escrevem quando
dão um livro de presente. Deve ser porque não conheci meu pai direito… Explico: o velho morreu
quando eu tinha três anos. Deixou-me, no entanto, um exemplar de a Ilha do Tesouro, de Robert
Louis Stevenson, com uma dedicatória que dizia: “Para meu filho, Pietro, um livro que marcou
minha infância. Um dia você será um homem e então desbravaremos os 7 mares juntos. Com amor,
seu pai”.
Um ataque cardíaco o matou pouco depois e, obviamente, nunca desbravamos os sete mares.
Na verdade, nunca saí do Brasil, apesar de ter viajado bastante pelo país rodando sebos e lojas de
artigos usados atrás de dedicatórias interessantes para minha coleção. Detalhe tragicômico:
tampouco aprendi a nadar, o que me impediria de desbravar qualquer riacho, quanto mais os sete
mares.
Criei um modo peculiar de catalogar meus livros: separo-os por temas de dedicatórias.
Dedicatórias de amor estão nas primeiras prateleiras; depois, vêm as de amizade, as de parentes e as
de autores famosos. Geralmente as pessoas não entendem o que um volume de Paulo Coelho tem a
ver com um do Mia Couto ou outro do John Fante; muitos até ficam bravos e chocados com o fato
de eu ter, em minha coleção, obras tão ruins quanto Carta entre amigos, do Gabriel Chalita, e O
primeiro terço – talvez o pior livro da geração beat, escrito pelo anti-herói Neal Cassady. (Cassady,
na verdade, foi mais bem-sucedido como "muso" de seus contemporâneos, inspirando obras de
Bukowski, Allen Ginsberg e Jack Kerouack). Mas a mim pouco importa se são livros geniais ou
medíocres – são as dedicatórias que me deixam apaixonado. Vejam só: em um livro considerado
por todos literariamente nulo como Homens são de Marte e as mulheres são de Vênus, eu achei uma
das dedicatórias mais interessantes que já vi:
“Querida Leitãozinho, comprei este livro para você com a esperança de que entenda como
os homens são seres realmente desprezíveis e absolutamente diferentes de nós, mulheres. Espero
que, lendo um livro bobo como este, você perceba que não há nada mais natural do que uma
mulher se apaixonar por outra mulher. Não é pecado, mesmo que seus pais a façam pensar assim.
Nosso amor é a coisa mais linda que existe; não há motivo para escondê-lo.
Beijos, meu leitãozinho rosa. Da sua pianista.
15/03/2001.
Quem seriam essas mulheres? Teria a “Leitãozinho” (não riam, nenhum apelido romântico
escapa do ridículo, vocês bem sabem) se convencido de que os homens são realmente os seres mais
desprezíveis da face da Terra? Teria a “pianista” conseguido convencer a sua amante a desencanar
dos mandamentos dos pais?
Essas dedicatórias sem nome deixavam-me ainda mais intrigado. Quando a dedicatória
vinha com um nome completo, muitas vezes eu procurava pela pessoa numa busca pela internet ou
na lista telefônica. Cheguei a ter uma coleção de mais de dez livros com dedicatórias de uma mesma
família. E uma outra, quase tão grande, de um casal que vivera um romance entre os anos 60 e 80.
Acompanhei pelos livros o namoro hippie construído com Eros e Civilização, do Marcusse. e A
Erva do Diabo, de Castañeda. O casamento celebrado com uma bela edição de Macunaíma, de
Mário de Andrade, em formato grande, capa dura e ilustrada. Separaram-se na época das eleições
presidenciais de 1989; o marido aparentemente tinha “encaretado” e a mulher, fiel aos velhos ideais,
se decepcionara com ele. O sujeito deu para a esposa um livro da fase parnasiana (e ruim) de
Manuel Bandeira com uma dedicatória seca:“As mais belas poesias que um salário medíocre pode
comprar. Beijo.”
E ela o presenteou com “El libro de los abrazos”, do Eduardo Galeano, precedido da
dramática frase:
“Um livro para abraçar o menino que queria mudar o mundo e tentar despertá-lo dentro
desse homem cinza que deixa a falta de dinheiro lhe tirar o sono e os sonhos. Abraços.”
Passei tanto tempo me debruçando sobre as dedicatórias que o óbvio aconteceu: me
apaixonei por uma delas. Era, talvez, a coisa mais triste que já lera na vida. Uma dedicatória que
uma garota escrevera para si mesma. Aquilo me pareceu a coisa mais solitária do mundo. Uma
pessoa se autopresentear, num Natal fracassado, e escrever uma dedicatória tão...
“Não chore, menina – as coisas ainda vão melhorar.
Não desista, menina – você tem talento, um dia eles vão ver.
Não os ouça, menina – você pode escrever.
Não trabalhe tanto, menina – um dia a fábrica inteira vai saber que você não é só uma secretária.
Não odeie seu pai, menina – é difícil ele aceitar que o mano virou irmã.
Não sinta vergonha, menina – você não tem culpa de aquele nojento ter mexido com você; você fez
tudo que pôde para ele não tocá-la, mas ele tinha uma arma.
Não pense que você é louca, menina – um dia um príncipe encantado vai aparecer.
Não se sinta ridícula – príncipes encantados existem. Pelo menos essa ideia enche nosso coração
de esperança.
Feliz Natal, menina – sim, já é Natal. E este é o presente que você comprou para si mesma. Assim
você não estará sozinha. Você vai estar acompanhada do maravilhoso Caio Fernando Abreu e
deste Ovo Apunhalado.
Ana Paula dos Anjos, 25/12/05.”
Uma “autodedicatória”, num Natal solitário, parecia roteiro de um filme melodramático ou
letra de tango. Era realmente muito triste, e meus olhos marejaram. Eu quis conhecer aquela menina,
dizer-lhe que ela não estava sozinha. Que eu havia lido aquela dedicatória infinitamente triste e
compreendia aquele sentimento. Que eu era o maior colecionador de dedicatórias do mundo e que
nenhuma, nem mesmo a de Érico Veríssimo à Clarice Lispector, havia mexido tanto comigo. Aquilo
fora escrito havia apenas dois anos; a menina devia estar viva ainda, provavelmente em São Paulo.
Mas agora ela não tinha mais nem sua edição de O Ovo Apunhalado para acompanhá-la. Será que
ela havia se tornando uma escritora? Procurei seu nome no Google e em sites sobre novos autores,
mas não achei nenhuma Ana Paula dos Anjos. Será que ela continuava trabalhando como secretária
numa fábrica? Mas havia tantas fábricas em São Paulo, e tantas secretárias, que seria impossível
localizá-la só a partir dessa informação. Tornei-me obcecado por aquela dedicatória – decorei todas
as linhas e ainda as anotei em diversos lugares diferentes para não correr o risco de esquecê– las.
Era impressionante como poucas palavras podiam trazer tantas imagens fortes como aquelas. Havia
um emprego ruim numa fábrica, um pai que não aceitava o filho homossexual, um estupro ou
tentativa de estupro, e dois desejos clássicos: o reconhecimento como escritora e a descoberta de um
grande amor. Era um roteiro maravilhoso para um livro. Eu que havia lido muito, graças ao meu
hobby, sabia que aquela era uma boa história. Se eu tivesse mais talento poderia escrevê-la e
publicá-la. Quando eu alcançasse sucesso, a menina, que tinha um interesse literário evidente,
tomaria conhecimento e viria tirar satisfações:
— Como você teve coragem de se tornar um escritor usando a história da minha vida?
E eu explicaria que era apaixonado por ela, lhe cederia metade dos direitos autorais e
financiaria seu livro com os lucros. Viveríamos felizes; ela escrevendo e eu colecionando
dedicatórias em seus tomos.
***
Descobri aquele livro no final de 2006. Quase um ano se passou e Ana Paula dos Anjos
ainda era um mistério para mim. Tinha rodado todos os sebos de São Paulo e mais as cidades do
interior, Rio de Janeiro e Pernambuco atrás de alguma dedicatória que pudesse me dar uma pista.
Enfim, resolvi que para me livrar daquela angústia precisaria de ajuda profissional. Pode soar
ridículo, mas confesso que liguei o computador e procurei por um detetive particular. "Será que
ainda existiam detetives particulares?", pensava. Isso parecia coisa tão antiga, um clichê saído de
filmes preto-e-branco e livros baratos... Fato era que não sabia mais o que fazer. Não poderia dar
queixa na polícia sobre o desaparecimento de uma menina que eu nem conhecia. Nem sabia como
era seu rosto, mas não me importava – eu a amaria mesmo que ela fosse horrível. Cheguei a pensar
que a amaria mesmo que ela fosse um homem, mas me envergonhei desse pensamento. A pesquisa
no Google revelou centenas de escritórios de detetives particulares. Sim, eles ainda existiam. Um
deles me chamou a atenção pelo nome:
"Dos Anjos Detetives: Investigações conjugais, empresariais, flagrantes, localizações de pessoas,
entre outras. Atuamos em São Paulo e região."
Será que o próprio dono da agência era parente da Ana Paula? Bom, isso seria muita sorte!
O sobrenome dos dois era o mesmo e aquela parecia ser uma empresa menor - e, consequentemente,
mais barata – que as outras. Anotei o endereço num cartão de livraria e fui dormir. Naquela noite
tive um sonho e me lembrei dele ao acordar. Isso é raro. Costumo não dar muita atenção para meus
devaneios pouco criativos, que não passam muito de fantasias eróticas ou situações constrangedoras
nas quais apareço pelado em público. Nada digno de nota ou que escape dos clichês. Tantos livros
lidos, tantas ideias vazias. Mas nessa noite sonhei com dedicatórias. Em meio ao pó e fitas VHS, eu
reencontrara o antigo tomo de A Ilha de Tesouro que meu pai me dera, perdido num sebo gigante,
no centro de São Paulo. Aquele sebo possuía todos os livros do mundo, e cada livro continha –
numa dedicatória – um momento memorável da vida de cada ser humano que habitou nosso planeta.
Era uma bizarra babel de declarações de amor, ódio, separações, presentes de dia dos namorados e
tardes de autógrafos. Aquilo, para mim, era como um imenso supermercado doando comida grátis.
Autoajuda, romances policiais, biografias, histórias pornográficas – todos os volumes do mundo se
acumulavam em estantes quilométricas que pareciam ter sido pinçadas de um conto de Borges. Mas
o tempo era escasso. Batiam quinze para as seis da tarde e o sebo iria fechar em breve. Não poderia
garimpar muito ali. Anos atrás, eu havia escrito uma dedicatória emocionada, respondendo as linhas
do meu velho sobre navegar os sete mares, e doado a obra para uma escola. Resolvi folhear suas
páginas novamente:
“Pietro... Quantos anos será que você tem hoje? Que história triste a sua... Um menino
colecionando dedicatórias. Deixei a minha num livro de Caio Fernando Abreu. E a esqueci num
sebo. Uma dedicatória que escrevi para mim mesma e achei que fosse a coisa mais triste do mundo.
Mas você escreveu uma para um pai morto e passou a vida toda colecionando fragmentos da vida
alheia. E isso me parece infinitamente desolador e triste. Gostaria de te encontrar algum dia e lhe
dizer que entendo sua solidão. Quem sabe já não ficamos lado a lado em algum sebo da Augusta?
Carinho,
Ana Paula 25/12/2006”
Qual era a possibilidade de aquilo acontecer? Ela havia me encontrado! Naquele mar de
mensagens esperançosas e juras de amor, Ana Paula tinha encontrado um pedaço de mim e tatuado
nele suas impressões. Era gozado como eu me sentia menos só. Alguém captara a tristeza
mesquinha que eu sentia por ter perdido o pai. Não me importava se eu nunca iria encontrá-la, se ela
era casada ou se eu descobrisse que Ana Paula dos Anjos era a maior baranga do Brasil. Eu
precisava encontrar aquela mulher e partilhar com ela minha dor. Deixei uma nova dedicatória no
seu livro:
“Ana Paula, li suas dedicatórias, tanto no livro do Caio Fernando Abreu, quanto na Ilha do
Tesouro. Gostaria de saber o que você faz da vida hoje, se saiu da fábrica, se conseguiu se tornar
uma escritora. Seu pai aceitou seu irmão? Passei um ano inteiro atrás de você só pra descobrir que
você estava atrás de mim. Se você encontrar esse Ovo Apunhalado novamente, e reconhecê-lo
como seu companheiro naquele Natal triste de 2005, não hesite em me ligar. Mesmo que os anos já
tenham passado, mesmo que você esteja casada e mãe de três filhos. Mesmo que você seja uma
romancista rica e famosa. Deixo aqui meu endereço, telefone e e-mail. Já não coleciono
dedicatórias. Apenas abro os livros, esperançoso de que neles haja uma mensagem sua, como uma
garrafa solta no mar. Apenas um sinal que me faça continuar buscando”.
Com amor,
Pietro, 18/09/2007
***
Sonhos não mentem, achava eu. E, na manhã seguinte, acordei destinado a ir até a
Consolação atrás dos detetives. Parecia que minha vida se tornaria uma aventura noir, como os
livros de Chester Himes. Imaginava que as ruas da zona Sul se transformavam no Harlem dos anos
60 e eu estaria próximo de entrar no escritório decadente de dois detetives durões.
Nem três quarteirões andara, quando uma música muito triste martelou forte minha espinha.
Ela era soprada duma casinha simples, mas bem-conservada, que devia estar de pé há pelo menos
60 anos. A voz do rádio era grave, dramática e fora de moda. Por trás daquele portão baixo, que
revelava uma jardim meticulosamente cuidado, habitado por gordos girassóis e margaridas raras,
emanava uma canção com cheiro da minha infância, uma canção que meu avô ouvia em sua potente
vitrola, quando não assistia aos filmes de Bud Spencer e Terence Hill. Cessou o som mecânico e
uma bela voz de mulher jovem me rasgou no meio. Como se a banda ainda tocasse, aquela voz
enchia o bairro com sua melancolia, e atualizava, para os dias de hoje, uma música quase brega,
sobre como uma cadeira vazia lembrava o pai morto. A menina parecia cantar sozinha, enquanto
realizava alguma tarefa doméstica, mas era impossível enxergá-la por aquele ângulo. Apenas sua
voz reinava no espaço.
Parado diante do portãozinho azul, o tempo correndo sem que notasse – eu não conseguia
ficar triste. Só conseguia ouvi-la. Imóvel e dolorosamente apaixonado.
2008-2011