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MARLI TEREZINHA WALKER
O IMAGINÁRIO DA TERRA EM PÁTRIA SEM-TERRA: INFERNO E PARAÍSO NA POÉTICA DO MST
Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Instituto de Linguagens – IL
Cuiabá 2008
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MARLI TEREZINHA WALKER
O IMAGINÁRIO DA TERRA EM PÁTRIA SEM-TERRA: INFERNO E PARAÍSO NA POÉTICA DO MST
Dissertação apresentada ao programa de Mestrado em Estudos de Linguagem do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem.
Área de concentração: Estudos Literários e Culturais
Orientador: Prof°. Mário Cezar Silva Leite
Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Instituto de Linguagens – IL
Cuiabá 2008
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Marli Terezinha Walker
O IMAGINÁRIO DA TERRA EM PÁTRIA SEM-TERRA: INFERNO E PARAÍSO NA POÉTICA DO MST
Dissertação apresentada à defesa no Curso de Mestrado em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso.
Banca Examinadora:
_______________________________________ Prof. Dr. Mário Cezar Silva Leite – IL/UFMT
Presidente da Banca/ Orientador
_______________________________________ Profa. Dra. Franceli Melo– IL/UFMT
_______________________________________ Prof. Dr. Paulo Nolasco – FL/UFG
_______________________________________ Profa. Dr. Célia Maria Domingues da Rocha Reis – suplente – IL/UFMT
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A Deus, fonte de toda criação.
Parafraseando Adriane Rocha, a estas pessoas minha gratidão por me ajudarem
a bordar com fios de felicidade minha história.
Juca Laura Guido
Viviane Paulo Sesar
Presença de amor e amizade.
Luzia Rosana
Walnice
Presença de generosidade e do modelo a seguir.
Mário Cezar
Presença de confiança, serenidade e orientação segura.
Meus pais
Presença de terra firme, chão fecundo de amor e doação.
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Mapa de anatomia: o olho
O Olho é uma espécie de globo, é um pequeno planeta com pinturas do lado de fora. Muitas pinturas: azuis, verdes, amarelas. É um globo brilhante: parece cristal, é como um aquário com plantas finamente desenhadas: algas, sargaços, miniaturas marinhas, areias, rochas, naufrágios e peixes de ouro.
Mas por dentro há outras pinturas, que não se vêem: umas são imagens do mundo, outras são inventadas.
O Olho é um teatro por dentro. E às vezes, sejam atores, sejam cenas, e às vezes, sejam imagens, sejam ausências, formam, no Olho, lágrimas.
(Cecília Meireles)
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
(Manoel de Barros)
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WALKER, Marli Terezinha. O imaginário da terra em Pátria Sem-Terra: inferno e paraíso na poética do MST. Dissertação de Mestrado em Estudos de Linguagem. Orientador: Mário Cezar Silva Leite. Cuiabá, Universidade Federal de Mato Grosso, 2008.
RESUMO
Esta dissertação investiga em que medida a temática da terra, expressa na poética de Adriane Rocha, ultrapassa o conjunto de ações culturais do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Brasil revelando um imaginário de matizes universais. Para tal, volta-se o olhar sobre o processo de constituição do MST, perfazendo o percurso histórico da formação do Movimento como grupo social irmanado em torno da luta pela reforma agrária no Brasil. No intuito de compreender essa construção reporta-se o olhar, também, para a história da ocupação das terras no Brasil. O desfecho desse processo caracteriza, contemporaneamente, a questão da exclusão social do homem do campo pelo latifúndio. Busca-se, então, além do arcabouço teórico e crítico sobre questões relacionadas à cultura, identidade, memória e literatura, uma leitura/literatura específica produzida pelos intelectuais e pensadores ligados ao MST. O referencial teórico sobre a Literatura comprometida com as questões sociais do país é revisitado, recaindo maior atenção sobre o processo expressivo do sujeito-de-enunciação lírico e a forma como se dá o deslocamento da temática do pólo-objeto para o pólo-sujeito. Essa discussão é colocada em relevo por trazer à tona um eu lírico que observa e ao mesmo tempo participa das enunciações expressas na lírica de Adriane Rocha. A análise dos poemas “Bandeira do MST”, “Acorda, pátria amada!” , “Aos sem-terra” , “Sem-terra” , “500 Anos amor maligno” , “500 Anos amor maligno II” , “Antes que racionais, animais” , “Futuro ameaçado”, “Terra e vida, terra é vida” , “Um novo Brasil é possível” , e “Esperança” da obra Pátria Sem-Terra, publicada no ano de 2004 pela Unemat Editora, Estado de Mato Grosso, permite entrever o eu lírico ultrapassar os limites internos da luta e da história do MST e alcançar proporções universais. Palavras-chave: Terra, Poesia, Imaginário.
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WALKER, Marli Terezinha. The Land Imaginary in Pátria Sem-Terra: hell and paradise in MST poetical. Master Thesis in Studies of Language. Supervisor: Mário Cezar Leite. Cuiabá, Universidade do Estado de Mato Grosso, 2008.
ABSTRACT
The actual research investigates in what measure the theme of the land, expressed in Adriane Rocha’s poetical goes beyond the set of cultural actions of the MST (Movement of the Ploughmen With no Land in Brazil) showing an imaginary of universal pattern. In order to get that, we observe the constitution process of MST, considering the historical way of the movement formation as a social group that is created around the fight for land ownership reformation in Brazil. In order to understand this construction, we also pay attention to the history of land ownership in Brazil. The end of this process characterizes, in contemporary days, the problem of the social exclusion of simple countrymen by the rich one (rich farmers who have a big land part). We search, beyond the critical theories about subjects connected to culture, identity, memory and literature, a specific reading/literature produced by intellectual and thinker people linked to MST. The theories about the literature that worries about social subjects in Brazil is revisited and pays more attention to the expressive process of the lyrical discourse subject and the way how the thematic goes from the object-pole to the subject-pole. This discussion is given emphasis because brings to the border one lyrical person who observes and, at the same time, takes part of discourses expressed into Adriane Rocha’s lyrical. The analysis of the poems: “Bandeira do MST” (MST Flag), “Acorda, pátria amada!” (Wake up, lovely motherland!), “ Aos sem-terra” (To Without Land People); “Sem-terra” (Without Land People), “500 anos amor maligno” (500 years malign love), “500 anos amor maligno II” (500 years malign love II), “ Antes que racionais, animais” (Before rational being, animals), “Futuro ameaçado” (Threaten Future), “Terra e vida, terra é vida” (Land and life, land is life), “Um novo Brasil é possível” (One new Brazil is possible), e “Esperança” (Hope) compiled into the work Pátria Sem-Terra published by UNEMAT Publishing , Mato Grosso State, in 2004. This work allows us to see the EU LIRICO trespass the internal limits of MST fights and history and reach universal proportions. Keywords: Land – Poesy – Imaginary
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SUMÁRIO Dedicatória................................................................................................................... ii Agradecimento ............................................................................................................ iii Epígrafe ...................................................................................................................... iv RESUMO .................................................................................................................... v ABSTRACT ............................................................................................................... vi INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 08 I – TERRA E HUMANIDADE: UMA HISTÓRIA DE (DES)ENCONTROS...... 16
1. Mistérios da Terra .......................................................................................... 16
1.1 Imagens do Paraíso ..........................................................................................19
1.2 O Paraíso decaído..............................................................................................24
1.3 Eco-espiritualidade: o Paraíso possível.............................................................26
2. Da colonização portuguesa ao assentamento: Estatuto do latifúndio.............28
2.1 Reforma agrária: a colonização tardia................................................................36
3. Memória e identidade: trajetos em construção................................................40
3.1 Mito, religiosidade e mística: caminhos de transcendência................................48
I I – A TRAJETÓRIA ESTÉTICA NA EXPERIÊNCIA CRIADORA DE
ADRIANE ROCHA ................................................................................................. 57
1. Literatura e função social ................................................................................ 57
2. Literatura e função ideológica ......................................................................... 62
3. Pátria Sem-Terra: Literatura e função total ................................................ 64
3.1 Geração de 30: poética do desengano ........................................................... 67
3.2 Arte engajada: poética do compromisso ....................................................... 71
4. Adriane Rocha e a poética da terra – uma trajetória de afetos ................. 73
4.1 O sujeito-de-enunciação lírico enuncia a trajetória ....................................... 76
I I I – O IMAGINÁRIO DA TERRA EM PÁTRIA SEM-TERRA ........................ 82
1. Ser Humano e Ser Terra – o abraço imaginado ............................................82
1.2 Regimes diurno e noturno: a luta antitética e o retorno eufêmico .....................94
1.3 Poética do Imaginário: analogias e similitudes entre o lírico e místico..............96
2. Do inferno ao paraíso: a imaginação simbólica assenta esperanças...............99 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 123 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 126 Anexo A – Poemas/corpus ....................................................................................... 131 Anexo B – Carta/poema de Adriane Rocha .............................................................. 142 Anexo C – Conversa com o militante Noir Castelo Júnior ....................................... 148
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INTRODUÇÃO
A análise proposta consiste em observar em que medida os poemas selecionados
de Pátria sem-terra1, única publicação da poeta militante Adriane Rocha, permitem
entrever a relação mística estabelecida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra do Brasil entre o ser terra e o ser homem. O MST é constituído por um novo
sujeito social, o Sem Terra2, que se manifesta por meio da luta pela reforma agrária e
por mudanças sociais no Brasil e tem como estrutura de base a idéia de coletividade. Na
organização do Movimento, cartilhas, cadernos de formação, manifestos, encontros
regionais e nacionais direcionam e determinam as práticas da militância. Dentre as
diretrizes consideradas importantes na constituição da identidade individual e coletiva, a
mística, que compõe o conjunto de atos culturais vivenciados pelo grupo, caracteriza-se
como um dos elementos fundamentais. O resgate e a preservação da memória da
trajetória histórica do grupo constituem o suporte para a elaboração da identidade
individual e coletiva do sujeito sem-terra caracterizando, contemporaneamente, aquilo
que os intelectuais do Movimento denominam de nova história do MST.
Conforme ensina Caldart, essa nova história foi construída em torno de duas
dimensões nascentes do primeiro eixo de preocupação do MST em relação à cultura e
que se tornaram marcas fortes na mística do movimento, presentes desde o seu
nascimento até hoje: “os símbolos da luta e o resgate da memória de lutas anteriores”
(2004, p. 35). A construção identitária, individual e coletiva, costura-se por meio de um
fio seletivo que vai eleger os elementos constitutivos de significado para a memória do
Movimento amarrando, assim, os conceitos de Cultura, Memória e Identidade.
Para observar essa construção será mantido um diálogo constante entre a literatura
produzida pelos pensadores do Movimento Ademar Bogo (2001, 2005), João Pedro
Stédile (2005) e Mitsue Morissawa (2001) que, assim como Roseli Caldart (2004),
debruçaram-se sobre os aspectos que constituem a formação do MST, e as reflexões de
Alfredo Bosi (1992), Homi Bhabha (1998), Stuart Hall (2000), Gilbert Durand (2002),
1 ROCHA, Adriane. Pátria Sem-Terra. Cáceres, MT: Unemat Editora, 2004. 71p. Os poemas selecionados encontram-se no anexo A. 2 O MST nunca utilizou em seu nome nem o hífen, nem o s, o que historicamente acabou produzindo um nome próprio, Sem Terra, que é também sinal de uma identidade construída com autonomia. O uso social do nome já alterou a norma referente à flexão de número, sendo hoje já consagrada a expressão os sem-terra (CALDART, 2004, p. 20 e 21. Grifo da autora).
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Ecléa Bosi (2003) Ulpiano Meneses (2004) e Renato Ortiz (2005) sobre cultura,
memória, desenraizamento e identidade.
Esse primeiro capítulo do trabalho perfaz, então, as pegadas da marcha histórica do
Movimento, considerando os símbolos já consagrados, o modo como foram elaborados
e como são mantidos e cultuados por meio da mística celebrada em todos os momentos
considerados decisivos na trajetória do povo Sem Terra. Para compreender essa marcha,
no entanto, é preciso remontar o período de ocupação do território brasileiro com a
intenção de verificar como se efetivou a distribuição das terras no Brasil. A travessia
desse percurso se justifica por implicar diretamente no desfecho das questões agrárias
contemporâneas, geradas ao longo de mais de quinhentos anos de história.
Assim, a terra constitui-se como tema arquetipal que ajuda a entender, a partir da
reflexão de Eliane Domingues (2007) sobre a religiosidade dos movimentos sociais no
campo, em que proporção a mística do MST se diferencia da prática religiosa
convencional. Os estudos de Mircea Eliade (1992, 2006) e Gilbert Durand (1988, 2002)
sobre símbolo, mito e ritual permitem associar o tempo e o espaço da manifestação
mística do MST ao “momento mítico da repetição do ato cosmogônico, o momento
concreto, no qual aconteceu a construção do mundo” (ELIADE, 1992, p. 28-29. Grifo
meu), reportando o imaginário da terra em Pátria Sem-Terra para uma história de
(des)encontros entre terra e humanidade.
Desse modo, considerando que a existência de uma terra paradisíaca povoou o
imaginário da humanidade durante os mais diversos períodos da história, o auxílio de
Franco Júnior (1998), Sérgio Buarque de Holanda (1996), Delumeau (1992, 1996,
2003) e Leonardo Boff (2000) torna-se relevante para entender em que proporção o
tema da luta pela terra ultrapassa as funções social e ideológica das enunciações líricas
de Adriane Rocha, deslizando o sentido do texto literário para os mitos do Paraíso
Perdido e do Eterno Retorno.
Partindo dessa proposição, o segundo capítulo do trabalho traz para o texto um
arcabouço teórico e crítico que ajuda a demarcar a trajetória estética na experiência
criadora de Adriane Rocha. A partir das reflexões de Fábio Lucas (1985), Antonio
Candido (1970, 2000, 2003, 2004, 2005), Alfredo Bosi (1992, 2000, 2001, 2003, 2006 ),
Roberto Schwarz (2000) e Luís Bueno (2007), observa-se como a literatura brasileira
manifesta textos originados de compromissos sociais, políticos e ideológicos dos
escritores. A partir da Geração de 30, esse tipo especial de lírica promove uma
aproximação entre literatura e sociedade, passando à Geração de 45 a mesma direção de
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objetividade que, conforme acentua Bosi, “ fizeram do texto um testemunho crítico da
realidade social, moral e política do país” (2006, p. 468).
Nesse sentido, discute-se, então, as funções social, ideológica e total da literatura
apontadas por Candido (2003), numa perspectiva que busca estabelecer os critérios de
análise como procedimento adequado à natureza do texto/corpus do trabalho. Essa
discussão traz à tona a mesclagem das funções da literatura presente na criação de
Adriane Rocha. À medida em que se observa a obra ultrapassar as fronteiras das
funções social e ideológica, dimensiona-se, por meio da função total, a situação
conflitiva em que se coloca o MST na luta pelo direito a terra aos desejos humanos
universais de retornar ao Paraíso Perdido. Esse processo se revela quando os elementos
técnicos da forma, pelos quais o poeta elabora sua obra, conduzem-no para além de suas
próprias crenças e, por um mecanismo semelhante ao do sonho, abre-se-lhe o
imaginário, campo através do qual ele manifesta o infinito de possibilidades da
linguagem poética.
Os símbolos reiterados pela imaginação criadora de Adriane Rocha situam as
enunciações do sujeito lírico tanto no campo do objeto que é enunciado quanto no
campo do sujeito que enuncia e é, também, objeto. Essa característica distingue a
produção literária da autora daquela já produzida no Brasil sobre a temática
essencialmente voltada para a relação homem-terra e os conflitos originados dessa
relação no decorrer da história da colonização até nossos dias.
Para dar suporte a essa discussão, chama-se ao texto a pesquisadora alemã Käte
Hamburguer, que postula em A lógica da criação literária (1986), uma “teoria da
enunciação” para analisar o gênero lírico. Conforme explica a autora, a estrutura sujeito-
objeto, na criação lírica, desloca-se do pólo-objeto para o pólo-sujeito, pois os
conteúdos que de algum modo se relacionam com o objeto não são dirigidos por ele,
apenas manifestam associações de sentido, significando que “as enunciações são
atraídas do pólo-objeto para o pólo-sujeito” e “é justamente este processo que produz a
forma de arte lírica, resultado “de uma ordem entre os enunciados pelo sentido que o eu
lírico a eles quer imprimir” (HAMBURGER, 1986, p. 179).
Esse diálogo se estenderá, no terceiro capítulo, aos estudos de Maria Zaira Turchi
que propõe em sua Literatura e Antropologia do Imaginário (2003) a leitura do gênero
lírico a partir da teoria do enunciado elaborada por Hamburger. Os trabalhos de Turchi
confirmam que o lírico, na criação literária, tem seu lugar junto ao sistema de
enunciação da linguagem, pois “a força vivencial do sujeito da enunciação lírica, do eu-
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lírico, pode existir somente como um real e nunca como um fictício” , concorda Turchi
(2003, p. 61).
Nessa perspectiva, em conformidade com as proposições de Turchi, o trajeto
antropológico do mito vem juntar-se aos dois eixos norteadores do pensamento de
Gilbert Durand para complementar a investigação das relações entre imaginário e
literatura, no terceiro capítulo deste trabalho. Para isso, será necessário recorrer,
paralelamente, aos estudos de Bachelard, para quem “o imaginário é o dinamismo
criador, a potência poética das imagens, enfim, a potência da palavra humana que
emerge do inconsciente coletivo” (apud TURCHI, 2003, p. 21).
Assim, as forças social e mítica que emanam da linguagem criadora de Adriane
Rocha, considerando o campo vivencial em que o sujeito-de-enunciação lírico está
inserido, conduzem a análise para o trajeto dAs estruturas antropológicas do imaginário
(2002) proposto por Gilbert Durand. Essas estruturas constituem-se em aparato teórico
para delimitar, a partir do método de convergência, os dois grandes eixos dos trajetos
antropológicos dos símbolos, o regime diurno e o noturno das imagens.
Com base no método elaborado por Durand, será possível, então, verificar como o
sujeito-de-enunciação lírico de Pátria Sem-Terra manifesta a dimensão poética do
símbolo que representa o desejo de um sujeito coletivo, também, a partir das dimensões
cósmica e onírica. Essas duas dimensões do símbolo, unificadas à primeira, isto é, à
linguagem poética, revelam um universo simbólico carregado de sentidos produzidos
pelas imagens que o sujeito-de-enunciação lírico enuncia, permitindo verificar as
constelações recorrentes derivadas de um mesmo tema arquetipal.
A terra e o sem-terra, pólo-objeto das enunciações, revestem-se de significados que
transitam para o pólo-sujeito, o eu lírico, que, por sua vez, transcende simbolicamente o
seu mundo. Por isso, ensina Durand, a inspiração simbólica pretende ser o despertar do
espírito para além da letra sob pena de morrer, assegurando como virtude essencial do
símbolo a característica de manter, “no seio do mistério pessoal, a presença mesma da
transcendência” (1988, p. 34).
Para compreender a força poética do símbolo e a manifestação de transcendência
que dele emana, Durand também dialoga com o mestre Bachelard, lembrando que para
o filósofo “a água, a terra, o fogo e o ar e todos os seus derivados poéticos são o lugar
mais comum desse império onde o imaginário vem se enxertar diretamente na sensação”
(DURAND, 1988, p. 69). Desta maneira, segue Durand, “a cosmologia não é do
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domínio da ciência, mas da poética filosófica: ela não é a visão do mundo, mas
expressão do homem, do sujeito humano no mundo” (DURAND, 1988, p. 69).
Sobre esse aspecto também Bosi entende “que o imaginário decorra da coexistência
de corpo e natureza; que ele mergulhe raízes no subsolo do Inconsciente” , conforme “a
hipótese central de um Gaston Bachelard, para quem é preciso descer aos modos da
Substância – a terra, o ar, a água, o fogo - , para aferrar o eixo natural de um quadro ou
de um símbolo poético” (BOSI, 2000, p. 24). Assim, se o símbolo nos revela um
mundo, “a simbólica fenomenológica explicita esse mundo que – de maneira antípoda
ao mundo da ciência – é eticamente primordial, dirigente de todas as descobertas
científicas do mundo” (BOSI, 2000, p. 24).
Em introdução à sua Leitura de Poesia, o crítico e historiador da literatura
brasileiro se reporta à experiência poético-filosófica de Gaston Bachelard que elabora
uma forma de perceber as imagens do poema capaz de abraçar corpo e historicidade,
matéria e significação, pois “na aliança de imagem e sentimento” como “ato fundante da
poesia, [...] chama para o campo da significação a imagem e o som, o corpo humano e a
matéria do cosmos” (BOSI, 2001, p. 42). O autor observa ainda que “a fantasia artística
é imaginação formal combinada com a imaginação material” , que “desdobra ao nosso
olhar atributos próprios da matéria viva, inconsciente, corpórea” (BOSI, 2001, p. 43).
Por isso, ao falar sobre a imagem, o escritor chama a atenção para a sensação visual,
pois o ser vivo tem, a partir do olho, as formas do sol, do céu, do mar e,
consequentemente, o perfil, a dimensão, a cor. Essa sensação permite entender a
imagem como “um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter,
juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós” (BOSI, 2001, p. 43).
Na reflexão do próprio Bachelard, “para a consciência que se exprime, o primeiro
bem é uma imagem, e os grandes valores dessa imagem estão em sua própria
expressão” (2003, p. 63). De maneira similar, também Paz (2006, p. 38) entende que a
imagem, enquanto figura real ou irreal que evocamos ou produzimos com a imaginação
possui um valor psicológico, uma vez que, nesse sentido, as imagens são produtos
imaginários. Por isso, Durand retoma Bachelard para dizer que “o homem dispõe
inteiramente de dois e não de apenas um meio de transformar o mundo”; a objetividade
da ciência e a subjetivação da poesia e é essa última que, “através do poema, do mito, da
religião, acomoda o mundo ao ideal humano, à felicidade ética da espécie humana”
(apud DURAND, 1988, p. 66).
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Assim, a proposição que motiva esta análise apóia-se, também, na concepção
turchiana “de que mito e literatura relacionam-se como criações da humanidade que
atualizam, através de imagens, os arquétipos presentes no inconsciente coletivo” (2003,
p. 55-56). Como acentua Turchi, a analogia e a similitude, princípios que sustentam as
estruturas místicas do regime noturno, conduzem o lírico à intimidade dos seres e das
coisas e, por isso “a poesia, para penetrar a alma do mundo, dobra-se, multiplica-se,
encadeia-se, como no regime noturno místico, pelos caminhos da similitude e da
analogia” (2003, p. 59).
A partir da fenomenologia do fazer lírico, a análise proposta considera os
diferentes componentes do texto tanto como valores sociais quanto estruturas
lingüísticas. Os valores sociais não existem independentemente da linguagem, e a
estrutura lingüística do poema reside na organização das enunciações de um sujeito-de-
enunciação lírico. Desse modo, os valores sociais e estéticos convergem para o que
observou Benedito Nunes comentando Heidegger: “o poético extrai a sua capacidade
reveladora inesgotável do ser que solicita o pensamento, apelando para o dizer da
linguagem” (1992, p. 262).
Conduzida desse modo, a leitura dos poemas de Adriane Rocha traz à tona um
sujeito-de-enunciação lírico que enuncia o ser social e cósmico, irredutíveis entre si.
Nesse sentido, Gilbert Durand faz suas as palavras do mestre Bachelard para dizer que
“a fenomenologia do imaginário é, uma escola da ingenuidade que nos permite
ultrapassar todos os obstáculos do compromisso biográfico do poeta ou leitor, e colher o
símbolo em carne e osso, pois, não se lê poesia pensando em outra coisa” (1988, p. 67).
E, confluindo à colocação anterior de Bosi, diz ainda: “o leitor ingênuo, esse
fenomenólogo sem o saber, não é mais do que o lugar da ressonância poética, lugar que
é receptáculo fecundo, pois a imagem é semente e nos faz criar aquilo que vemos”
(DURAND, 2000, p. 67).
Dessa maneira, conclui Durand, se a razão e a ciência apenas unem os homens às
coisas, o que vai unir “os homens entre si, no nível da humildade das felicidades e penas
cotidianas da espécie humana, é essa representação afetiva, porque vivida, que constitui
o império das imagens” (1988, p. 106). E é então, nessa perspectiva,
que a antropologia do imaginário pode se constituir, antropologia que não tem apenas a finalidade de ser uma coleção de imagens, de metáforas e de temas poéticos. Mas que também deve ter a ambição de mostrar o quadro compositório das esperanças e temores da espécie
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humana, a fim de que cada um nele se reconheça e se revigore (DURAND, 1988, p. 106).
Por isso, acentua Durand, é preciso “saber fazer humildemente como Gaston
Bachelard: pedir esse suplemento da alma, essa autodefesa [...] ao devaneio que vela em
nossa noite” (1988, p. 107). Também Bosi, ao falar sobre o devaneio, apresenta-o como
“um pensamento vagabundo que se engendra no vão, no vazio, no nada”. E
complementa, “devanear é comprazer-se que o espírito erre à toa e povoe de fantasmas
um espaço ainda sem contornos. É o maginá do caboclo, sinônimo às vezes de cismar,
desde que sobrevenha a notação de estranheza e de receio” (BOSI, 2000, p. 27).
Configura-se, assim, a proposta metodológica que dará suporte à análise da seleção
dos poemas/corpus deste estudo. Considerando tanto as apreensões do domínio sócio-
histórico quanto do imaginário promovido por esse domínio, a leitura vai convergir para
as três dimensões do símbolo; a cósmica, a onírica e a poética. A observação da
dimensão cósmica do símbolo permitirá verificar em que medida os enunciados da lírica
rocheana deixam de ser expressão exclusiva do meio social/vivencial do sujeito-de-
enunciação lírico para ganhar dimensões universais. Esse universalismo reside na
dimensão onírica do símbolo, que remete as constelações imaginárias para o mito do
Eterno Retorno, da incessante caminhada humana em busca do Paraíso Perdido. A
dimensão poética do símbolo, isto é, a linguagem criadora, organiza o sentido dos
enunciados a partir do mitema “terra” , desvelando a imaginação literária que “vem de
algum modo associar-se a todas as felicidades de imagens, chamando o sujeito para as
alegrias imaginárias” (BACHELARD, 2003, p. 70). Se, conforme ensina Bachelard, a
imagem só pode ser estudada pela imagem, sonhando-se as imagens tal como elas se
acumulam no devaneio, então ela só poderá ser interpretada por meio do mito, que
como “ instrumento fundado também na essência metafórica da linguagem, [...] tem
menos poder de ferir as suscetibilidades do objeto pesquisado do que qualquer teoria
mais científica e racionalizante” (MARQUES, 2007, p. 208). Nesse sentido, a proposta
de análise conflui também para a leitura do lírico proposta por Hamburger de que “o
intérprete do poema responde à intenção do eu lírico: assim como este manifesta através
do contexto a sua intenção de ser compreendido como eu lírico, este contexto por sua
vez orienta a nossa experiência estética e interpretativa” (1986, p. 193). Dizendo a
mesma coisa em outras palavras: sem deixar de levar em conta as forças sociais e
ideológicas que alimentam o imaginário do sujeito-de-enunciação lírico vivencial, será
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preciso considerar em sua devida conta, também, a forma de ordenação criativa de
Pátria Sem-Terra que conduz, naturalmente, a elaboração de imagens simbólicas que
vêm amoldar-se a princípios de valor universal.
Amalgamando-se a esta proposta, os anexos, ao final do trabalho, apresentam,
além dos poemas/corpus deste estudo, a transcrição de uma conversa com o militante
sem-terra Noir Castelo Júnior, professor e líder comunitário do pré-assentamento Zumbi
dos Palmares II e, em destaque, uma carta/poema redigida por Adriane Rocha. A poeta
militante do MST apresenta a si e ao Movimento ao longo de seis páginas,
manifestando, à sua maneira, o sentimento que irmana os sem-terra em torno da luta
pelo direito de retornar à Terra, bem comum de toda humanidade.
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I – TERRA E HUMANIDADE: UMA HISTÓRIA DE (DES)ENCONTROS
Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que
haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa.
(Pero Vaz de Caminha)
1. Mistérios da Terra
Para os integrantes do MST, a persistência na luta pelo direito a terra, por longos e
longos anos, não se explica apenas pela esfera racional, mas também por uma mística
que leva a lutar por algo mais que objetivos imediatos e dá força e sentido para a luta.
Ao falar sobre essa mística, Ademar Bogo3 dialoga com Leonardo Boff4, que explica
essa vivência como algo cultivado por todos os integrantes do movimento em todos os
momentos da sua trajetória e vivido pelo sem-terra como uma espécie de “mistério,
mysterion em grego, que provém de múein, que quer dizer perceber o escondido, o não
comunicado de uma realidade ou de uma intenção...” (BOGO, 2005, p. 38). Quando
esse mistério se manifesta, a imaginação adquire uma dimensão material, seja como
objeto físico, som, melodia ou corpo humano, manifestando a linguagem do sujeito que
se encontra no tempo histórico edificando com as mãos o que dizem os sentimentos.
Desse modo, os símbolos elaborados pelo MST representam algo que vai além da
manifestação material, inscrevendo-se numa perspectiva que estabelece relações com a
mística do Movimento.
Ao falar sobre os símbolos construídos pelo MST, Morissawa observa que a cruz
da Encruzilhada Natalino5, símbolo circunstancial, ou a Bandeira e o Hino do
3 Coordenador nacional de formação do MST, escritor e compositor do Hino do Movimento dos Sem-Terra� 4 Teólogo da libertação, escritor, professor e conferencista nos mais diferentes auditórios do Brasil e do estrangeiro, assessor de movimentos sociais de cunho popular libertador, como o Movimento dos Sem Terra e as comunidades eclesiais de base (CEB's), entre outros. Leonardo Boff faz “parte da Igreja que se envolveu diretamente com os sem-terra, aquela nascida do movimento da Teologia da Libertação, cujos vínculos sociais são também e marcadamente com os lutadores do povo” (CALDART, 2004, p. 46). 5 O acampamento na Encruzilhada Natalino, Estado do Rio Grande do Sul, é referência na história do MST por representar um marco de resistência dos sem terra no sul do país. Em 1980, quase três anos
18
Movimento, símbolos permanentes, representam, sobretudo, “signos da unidade em
torno de um ideal” (2001, p. 209). Conforme a autora, a ciência ou arte do mistério ou o
tratado sobre coisas divinas ou espirituais ou, ainda, segundo o dicionário Aurélio, a
“ firme crença numa doutrina religiosa, filosófica, etc.”, no contexto dos sem-terra, é um
ato cultural em que suas lutas e esperanças são representadas. Desta maneira, na
“Encruzilhada Natalino, a cruz simbolizava em si mesma a fé cristã que unia os sem-
terra num momento crucial de sua luta. [...] Fé, esperança, dor e ânimo político estavam
reunidos naquela cruz” (MORISSAWA, 2001, p. 209).
Caldart, ao falar sobre a simbologia do movimento, observa que,
Do chapéu de palha das primeiras ocupações de terra ao boné vermelho das marchas pelo Brasil, os Sem Terra se fazem identificar por formas determinadas de luta, [...]. Ao mesmo tempo em que mantêm o jeito próprio dos pobres do campo, os sem-terra do MST vão construindo um jeito diferente, que se transforma, se pensa e se recompõe a cada passo da trajetória que lhes afirma como trabalhadores da terra, e como sujeitos da luta de classes. Os sem-terra de boné vermelho carregam em si os sem-terra do chapéu de palha, embora já não sejam mais os mesmos (2004, p. 44).
A bandeira vermelha do MST traz em seu centro um círculo branco sobreposto
com o mapa do Brasil, na cor verde, em que se destaca, em primeiro plano, a imagem de
um casal, cujo homem empunha um facão. Esse símbolo, a bandeira, é um dos
elementos permanentes da mística, assim como hinos e músicas que são cantados nos
momentos em que a mística se manifesta de forma mais intensa. A letra do Hino do
Movimento dos Sem Terra foi resultado de um concurso realizado em vários estados,
cujo vencedor foi Ademar Bogo. A música foi composta pelo professor da Escola de
Belas Artes da Universidade de São Paulo, Willy Correia de Oliveira e “a primeira
apresentação foi feita pelo Coralusp” (MORISSAWA, 2001, p. 210). Conforme o autor
do Hino, “a imaginação deverá adquirir uma encarnação material, seja como objeto
físico, som, melodia, corpo humano, etc.” (BOGO, 2000, p.84).
Desde as suas primeiras ocupações, os símbolos de representação da luta estão
presentes em todas as instâncias do Movimento. Nas invasões, nos acampamentos, nos
assentamentos, nas marchas pelas rodovias, nos jejuns e greves de fome, na ocupação de
depois da expulsão da reserva Nonoai, 600 famílias acamparam no local, reunindo cerca de 3 mil pessoas em barracos que se estendiam por quase 2 quilômetros à beira da estrada (MORISSAWA, 2001, p. 125).
19
prédios públicos, nas vigílias e nas manifestações em grandes cidades. No dizer de um
integrante do Movimento, o resumo do que o sem-terra entende por mística:
Nas lutas sociais existem momentos de repressão que parecem ser o fim de tudo. Mas, aos poucos, como se uma energia misteriosa tocasse cada um, lentamente as coisas vão se colocando novamente e a luta recomeça com maior força. Essa energia que nos anima a seguir em frente é que chamamos de ‘mistério’ ou de ‘mística’ . Sempre que algo se move em direção a um ser humano para torná-lo mais humano, aí está se manifestando a mística. (MORISSAWA, 2001, p. 209)
Além da bandeira, do hino e do boné vermelho, outros símbolos como o facão, a
foice, a enxada e os frutos do trabalho representam a resistência e a identidade dos sem-
terra, constituindo o conjunto de símbolos do MST. Combinando palavra e conceito à
condição de vida que se estrutura através das relações entre as pessoas e as coisas no
mundo material, entre idéias e utopia no mundo ideal, “surge o que se caracteriza como
mistério ou o inexplicável, porém entendível e compreensível, que se apresenta como
identidade desta organização de um povo também em construção” (BOGO, 2000, p.
38).
Relembrando as críticas sofridas no passado em relação à mística do Movimento,
Bogo reitera a condição de unidade que o sem-terra atribui aos aspectos físico-material
e o espiritual, integrando essa dupla realidade. No entender do autor, há os que ainda
tentam tratar essa relação de forma separada, ou material, ou ideal. No entanto, para
Bogo “não basta estudar e compreender a realidade, é preciso compreendê-la no intuito
de transformá-la. Desse modo, todos os aspectos ideais fazem parte da realidade, devem
estar em condições de serem transformados” (2000, p. 40). Assim, a partir dessa
concepção, o sem-terra não se entende como sujeito puramente idealista. Julgando
compreender adequadamente os aspectos ideais da realidade, o Movimento se organizou
mantendo o respeito a determinadas aspirações e posições ideológicas. Por isso, quando
as críticas apontaram que a mística do MST caracterizava a organização como um
movimento religioso, o povo sem-terra contra-argumentou reafirmando a idéia de que o
ser humano não se constitui apenas de matéria, pois “tanto as necessidades materiais
quanto as necessidades ideais, constituem a consciência social da pessoa” (BOGO,
2000, p. 40).
A mística do MST surgiu de três fontes ou, jorro d’água, como prefere Bogo; a
vertente da natureza contemplativa da vida camponesa, a vertente musical e a vertente
20
da devoção. Para compreender essa mística, no entanto, é preciso refazer o caminho
histórico que constituiu o Movimento. Nas palavras de João Pedro Stedile, “o debate
político em torno da necessidade de soluções para o problema agrário é historicamente
muito recente” (2005, p. 12). Embora, por outro lado, diz o autor, a demanda por
reforma agrária sempre foi um tema presente na história do Brasil. Segundo Morissawa
(2000, p. 120), a história do Movimento remonta o período das Ligas Camponesas
aniquiladas pelos militares em 1964. O Movimento é considerado, então, continuidade
dessas Ligas, pois o MST, tal como elas, constitui-se um movimento independente,
nascido no próprio interior das lutas que se travavam pela terra e porque defende uma
reforma agrária capaz de restituir o encontro do ser com a terra.
Nessa perspectiva, o reencontro do ser humano com o ser terra coloca os ideais do
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Brasil no percurso do imaginário em torno
da terra que acompanha a humanidade desde os mais remotos tempos. A busca pelo
paraíso perdido configura-se como o desejo original de retornar à terra das bem-
aventuranças, elo primordial rompido pela queda humana.
1.1 Imagens do Paraíso
O tema do paraíso terrestre sempre povoou o imaginário da humanidade nos
mais diversos períodos históricos. A crença na existência de um paraíso terreal
permeia textos, artísticos ou não, das mais variadas procedências e épocas. Um
interessante exemplo do mito da terra ideal onde se vivia entre rios de vinho e leite,
colinas de queijo e leitões assados que ostentavam uma faca espetada no lombo é
apresentado por Hilário Franco Júnior em Cocanha: várias faces de uma utopia
(1998). A versão brasileira da Cocanha, mais especificamente um folheto de cordel de
meados de século XX, remonta à versão francesa medieval e às versões holandesas
modernas. No dizer de Franco Júnior,
a Cocanha é um mosaico mítico formado por dezenas de peças de diversas procedências. Fragmentos manipulados de forma própria conforme a época e o local de cada versão. [...] Ela buscava superar, no plano do imagináiro, a pricipal dificuldade daquelas pessoas: a carestia alimentar. Por esta razão, o que tinha sido um traço dentre outros da Cocanha medieval, tornou-se elemento central, quase exclusivo da Cocanha moderna: a abundância (1998, p. 14).
21
As mudanças de enfoque e de ênfase que as narrativas sobre a Cocanha
sofreram durante os séculos são atribuídas pelo autor ao fato de que, “no limite, toda
criação artística, literária e científica é um diálogo com criações anteriores, um
rearranjo de peças pré-existentes” (FRANCO JÚNIOR, 1998, p. 16). No entanto, no
caso de temas de fundo mítico, essa tendência se acentua. Daí se explica o fato de a
Cocanha ter expressado, ao longo de pelo menos setecentos anos, os sonhos coletivos
de diferentes segmentos sociais. São Saruê foi o nome dado à Cocanha brasileira,
introduzida no nordeste, provavelmente, pelos relatos orais de invasores holandeses e
franceses. A transcrição das estrofes 11, 16 e 17 do folheto de cordel expressa bem as
imagens dessa terra paradisíaca:
Uma barra de ouro puro
servindo de placa, eu vi
com as letras de brilhante,
chegando mais perto eu li
dizendo: “ São Saruê”
é este lugar aqui.
As pedras de São Saruê
são de queijo e rapadura
as cacimbas são de café
já coado e com quentura,
de tudo assim por diante
existe grande fartura.
Galinha põe todo dia
em vez de ovo é capão
o trigo em vez de semente
bota cachadas de pão,
manteiga lá, cai das nuvens
fazendo ruma no chão.
Reportando-se ao imaginário sobre a existência de uma terra paradisíaca, Sérgio
Buarque de Holanda traz à tona, em prefácio à segunda edição de sua Visão do
paraíso: os motivos edêmicos no descobrimento e colonização do Brasil, um curioso
relato sobre “a teoria de que estava na América o Paraíso, e mais precisamente no
Brasil” (HOLANDA, 1996, p. xxi). O autor analisa minuciosamente vários escritos
produzidos no período das grandes navegações e revela a crença imperativa, à época,
na existência de um paraíso terreno. Em muitos textos compilados pelo pesquisador, o
Brasil é comparado ao Paraíso da terra em que Deus, como no jardim do Éden, pôs o
primeiro pai Adão. Essas imagens enlaçam os escritos perscrutados pelo autor à
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historia literária do ufanismo brasileiro verificado, por exemplo, nos versos de
Gonçalves Dias, produção em que o paisagismo e o canto do índio expressam “a ânsia
romântica de voltar às perdidas origens” (BOSI, 2006, p. 109). As imagens de um
imenso país verdejante, florido e fértil, o colorido, a bondade dos ares, a simplicidade e
inocência das gentes, sugeriam ao europeu a imagem de um paraíso terrestre. Ainda
sobre a Visão do paraíso, vale lembrar outra interessante passagem que dá conta de
uma idéia considerada simplista pelo autor, mas que acaba ocasionando a descoberta
das “grandes aluviões auríferas de Cuiabá e Mato Grosso, das mais avultadas que
registra a história das minas no Brasil” (HOLANDA, 1996, p. 102). No dizer do
crítico, em busca das míticas serras do Peru onde, segundo numerosos testemunhos,
despejavam-se muitas riquezas no lago que ia alimentar o São Francisco e outros rios,
as explorações rumo ao oeste acabaram conduzindo os europeus até as minas mato-
grossenses. Outro exemplo alusivo ao imaginário de motivos edênicos é descrito a
partir da carta de Nóbrega, destinada à sede do governo-geral, em agosto de 1549:
É muito sã e de bons ares, de tal maneira que, com ser a gente muita e ter muito trabalho, e haver mudado os mantimentos com que se criaram, adoecem muito poucos, se adoecem logo saram. É terra muito fresca, de inverno temperado, e o calor do verão não se sente muito. Tem muitas furtas e de diversas maneiras, e muito boas, e que têm pouca inveja às de Portugal. Os montes parecem formosos jardins e hortas, e certamente eu nunca vi tapeçaria de Flandres tão formosa, nos quais andam animais de muitas diversas maneiras, dos quais Plínio nem escreveu nem soube. Tem muitas ervas de diverso olor e muito diferentes das de Espanha, e certamente bem diversas e formosas criaturas (HOLANDA, 1996, p. 244).
Desse modo, o tema paradisíaco permeia, desde cedo, o imaginário acerca da
terra brasileira. Ainda em 1502, Américo Vespúcio, considerado por Holanda narrador
mais sóbrio e objetivo do que Colombo, já contribuía para a formação do imaginário
edênico que se constituiu em torno da nova terra. Em carta redigida pelo navegador
italiano encontram-se passagens que retratam “a abundância e o viço das plantas e
flores nas matas, o suave aroma que delas emana, e ainda o sabor das frutas e raízes,
chegam a sugerir ao florentino a impressão da vizinhança do Paraíso Terreal”
(HOLANDA, 1996, p. 247).
Modernamente, também Jean Delumeau debruçou-se sobre o tema do paraíso
terrestre. Ao longo dos volumes Uma história do paraíso: o jardim das delícias (1992),
Mil anos de felicidade: uma história do paraíso (1997) e O que sobrou do paraíso
23
(2003) o autor aborda, respectivamente, o que chama de três grandes temas: a nostalgia
do paraíso terrestre; a espera de um reino de felicidade realizado nesta terra e que
duraria um milênio; e, por fim, a esperança de uma alegria perfeita e sem declínio na luz
divina do além cristão. A propósito do tema da existência terrestre do paraíso, é o
primeiro volume da trilogia que dá conta da constituição do imaginário ocidental em
torno da realidade corpórea do paraíso.
Quanto à realidade histórica desse paraíso terrestre, a discussão em torno da sua
existência física parece ter encontrado nas palavras de Santo Agostinho o esteio para
sua confirmação. Enquanto alguns viam o lugar como uma realidade corpórea, outros
acreditavam apenas em uma realidade espiritual e, ainda, outros, em uma realidade
simultaneamente corpórea e espiritual. Agostinho resume em confissão que a terceira
opinião tem o seu favor. Nas palavras do bispo de Hispona: “agora Deus permitiu que
ao contemplar estes textos mais de perto, calcule, não sem razão, parece-me, que posso
também mostrar que eles foram escritos no sentido próprio e não no sentido alegórico”
(DELUMEAU, 1996, p. 27). Assim, por gerações e gerações da civilização ocidental,
essas palavras de Agostinho configuraram-se declarações infalíveis, contribuindo para
formar e moldar as convicções coletivas em torno da existência do paraíso na terra.
Embora boa parte dos escritos de navegadores e cronistas viajantes situasse o paraíso
terrestre para os lados do Oriente, ainda no século XVIII, um certo Pedro de Rates
Hanequim, que viveu durante mais de vinte anos no Brasil, afirmou estar o paraíso em
terras brasileiras, dizendo
que a árvore da ciência do bem e do mal ali subsistia e que o Amazonas e o São Francisco são dois dos quatro rios paradisíacos. Adão tinha sido criado por Deus na América, de onde tinha passado a pé enxuto para Jerusalém, tendo-se o mar aberto para ele como para os Hebreus ao fugir do Egito. Quanto ao Dilúvio, não tinha atingido o Brasil (DELUMEAU, 1996, p. 71).
A palavra “Brasil” , segundo Delumeau, ao contrário do que se acreditou durante
muito tempo, não provém da planta tintorial que dá um corante vermelho, o famoso
pau-brasil, “mas de um vocábulo irlandês, Hy Bressail ou O Brazil, que significa Ilha
Afortunada” (DELUMEAU, 1996, p. 128). Desse modo, essa designação contribuiu
para que se espalhasse pelo mundo a idéia de que o Paraíso poderia estar na América.
O jardim das delícias, onde viveram por breve instante Adão e Eva, configura-se
como um tema que alimenta o imaginário da humanidade por cerca de três milênios.
24
Judeus e cristãos nunca puseram em dúvida o caráter histórico da narrativa do Gênesis
(2, 8-17) que descreve o jardim maravilhoso que Deus tinha feito surgir no Éden. A
imagem desse jardim celeste será reelaborada incessantemente pela imaginação poética
no decorrer dos tempos, estabelecendo paralelos e ligações, também, entre o jardim
sagrado da bíblia e os das outras religiões e civilizações. No dizer de Delumeau,
numerosas civilizações acreditaram num paraíso primordial onde haviam reinado a perfeição, a liberdade, a paz, a felicidade, a abundância, a ausência de coacção, de tensões e de conflitos. Os homens entendiam-se e viviam em harmonia com os animais. Comunicavam sem esforço com o mundo divino. Daí a profunda nostalgia na consciência coletiva – a do paraíso perdido mas não esquecido – o poderoso desejo de o reencontrar (1992, p. 12).
Desse modo, o imaginário da humanidade amalgama-se a toda uma plêiade de
poetas latinos e cristãos que nos séculos IV, V e VI evocavam o paraíso terrestre
associando-o aos dados do Gênesis bíblico.
Em conclusão ao terceiro volume, a pergunta de Delumeau, “Terei escrito, em
três volumes, uma história dos paraísos perdidos?” (2003, p. 507), revela, até certo
ponto, a impossibilidade de considerar o assunto estanque, bem como a angústia
humana diante da crença utópica na existência desse lugar. Essa dúvida de Delumeau
fundamenta-se no constante esgotamento do estoque de imagens traduzindo visões do
paraíso frente ao momento em que se publicava a Enciclopédia. O nascimento do
evolucionismo tomava à humanidade o direito de imaginar o paraíso corpóreo, como se
fizera durante tanto tempo. Por isso, no período da Renascença, a arte passa a ser o
lugar de sobrevivência das imagens de um tempo em que “o sobrenatural e o real
concreto da terra estiveram imbricados um no outro: o sobrenatural invadia o
cotidiano; inversamente, o mobiliário terrestre encontrava vasto espaço no mundo
celeste” (DELUMEAU, 1996, p. 507). A revolução científica dos novos tempos
condenou o paraíso à mesma categoria de todas as utopias, definindo o paraíso como
um não-lugar. Conforme conclusão do autor, a palavra paraíso designa não um lugar,
mas um futuro além da morte ou, mais precisamente, além da ressurreição. Assim, a
humanidade deve aceitar o vazio das representações relativas ao paraíso espiritual,
compensado pela esperança utópica de uma realização das bem-aventuranças do
mundo por vir. No entanto, essas bem-aventuranças também não passam de utopias,
25
configurando um estreito laço com a utopia do paraíso. Desse modo, consola o autor, o
que resta à humanidade é a espera pela realização da profecia de Jesus que tornará
realidade os sonhos descritos por Mateus e Lucas no livro sagrado de que os que
choram serão consolados e os que têm fome e sede de justiça serão saciados. No dizer
do historiador, “o paraíso será a atualização desses sonhos loucos sem a presença dos
quais a vida na terra se transforma em inferno” (DELUMEAU, 1996, p. 508).
1.2 O paraíso decaído
A evolução no pensamento ocidental provocada pela nova astronomia, iniciada por
Copérnico, Kepler e Galileu, constantemente aprofundada até nossos dias, ocasionou
modificações profundas em torno do imaginário sobre o tema paradisíaco. Apesar de a
humanidade ainda sonhar com o jardim das delícias, encontra-se diante de uma dupla
evidência: “a do estilhaçamento do paraíso, porém, ao mesmo tempo, a da persistência
de uma esperança ligada a essa palavra” (DELUMEAU, 2003, p. 479). Por um lado, o
século XIX enfatizou, por meio de escritores inovadores, a vida dos eleitos no universo
paradisíaco e, por outro, a neo-escolática católica e protestante combateu essa
concepção. Assim, afastando o imaginário acerca da realidade do paraíso das certezas
clássicas, teólogos protestantes do século XX recusaram-se a manter as imagens e
noções paradisíacas que alimentaram a fé cristã ao longo dos séculos. Essa recusa
remete a questão do paraíso terreno para a idéia da corrupção do mundo e da natureza,
em conseqüência do Pecado e da Queda, deitando raízes nas Sagradas Escrituras.
Assim, por culpa do primeiro homem, não somente a espécie humana, mas toda a
criação geme e padece até hoje.
Sobre essa depravação do mundo, Holanda considera a própria instabilidade da
criação como hipótese para justificar as mudanças. Para o autor, essa depravação ou,
degradação teria origem na “privação da virtude que nele infundira o Senhor, em sua
glória primeira e virginal” (1996, p. 189). A transcrição a seguir revela a confluência
entre concepções históricas e doutrinas cristãs relativas ao declínio e à catástrofe
cósmica:
A visão clássica da história, que admitia essa decadência progressiva, fazendo preceder a Idade do Ouro à da Prata, do Bronze e do Ferro, que sucessivamente, e nessa ordem, se substituem uma à outra, entrosava-se sem dificuldade [...] na doutrina cristã da Queda e
26
fornecia mesmo uma ampla estrutura para a teoria de um mundo que se deteriora cada vez mais em todas as suas partes. Ao lado disso, as Idéias ou Formas de Platão acham por onde inserir-se nas doutrinas relativas à catástrofe cósmica, pois confrontado com as normas ideais existentes em algum lugar, deste ou daquele modo, o nosso mundo, em constante declínio, será uma espécie de cópia esmaecida e degradada. A concepção de mal como privatio, de acordo com Santo Agostinho, que se funda, de fato, em Aristóteles, e ainda as noções aristotélicas sobre a oposição entre elementos contrários [...] são eminentemente adaptáveis às mesmas doutrinas (HOLANDA, 1996, p. 189).
Desse modo, a humanidade passa a conviver com uma melancolia pessimista do
peregrino errante destituído da possibilidade de encontrar assento num espaço
paradisíaco. No entanto, a fantasia em torno desse lugar sagrado circunscreveu-se em
todo um universo poético limitando, de certo modo, o imaginário humano a uma
continuidade apenas fictícia e fabulada do paraíso. Nesse sentido, Delumeau lembra
que o Romantismo, cultivando a melancolia da morte, representa uma etapa importante
na história ocidental por remeter ao luto e à eterna descoberta da morte, conformando
homens e mulheres a essa nova condição de vazio diante da bem-aventurança terrestre.
Instaurava-se, desse modo, “essa religião da saudade que hoje, na França, por exemplo,
celebra-se de fato no dia de Todos os Santos, que se tornou para os crentes e os
descrentes a festa dos mortos que amamos e o momento privilegiado da memória
familiar” (DELUMEAU, 2003, p. 497). No Brasil, país reconhecidamente cristão, essa
homenagem aos mortos acontece no dia dos Finados, feriado permanente no calendário
cristão brasileiro.
Essa inovação com relação aos mortos manifesta o advento de um período em que
o espaço cristão se destituía da iconografia paradisíaca milenar e por meio de um novo
impulso, mais afetivo e menos descritivo, instituía a comemoração dos entes queridos
desaparecidos. Diante desse quadro acerca do esvaziamento do imaginário sobre o
paraíso, cabe retomar, então, a questão formulada por Delumeau: “O que sobrou do
paraíso?” e respondê-la conforme sua própria conclusão: “a fé cristã continua a
responder: graças à ressurreição do Salvador, um dia todos nós nos daremos as mãos e
nossos olhos verão a felicidade” (2003, p. 508).
No entanto, cabe aqui uma outra questão sobre o possível conforto que essa fé
cristã estaria oferecendo à civilização moderna em relação à vida bem-aventurada na
terra, constantemente ameaçada pelas ações históricas do próprio homem. Estaria essa
fé dando conta de irmanar homens e mulheres em torno da preservação do imaginário
27
do paraíso e, mais urgente, haveria uma explicação para a depravação/degradação da
Terra? A resposta vem do Teólogo e professor de Ética e Filosofia da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro, Leonardo Boff. Para o seguidor da Teologia da Libertação,
a reversão do atual estado de degradação em que a terra e a humanidade se encontram
só será possível mediante um novo paradigma, que pede “uma nova linguagem, um
novo imaginário, uma nova política, uma nova pedagogia, uma nova ética, uma nova
descoberta do sagrado e um novo processo de individuação (espiritualidade)” (BOFF,
2000, p. 168). Esse processo implica a retomada da dignidade violada e perdida, que
pode significar a cura da Terra e o reencontro do caminho para o Sagrado. No entanto,
para retornar a esse caminho perdido, a humanidade dependeria de uma condição sine
qua non para reconciliar-se com a Terra.
1.3 Eco-espir itualidade: o paraíso possível
A condição apontada por Boff para retornar aos caminhos rumo à construção do
paraíso terreno consiste na
elaboração de uma verdadeira espiritualidade que consiga re-ligar todas as nossas experiências e nos ajude a firmar uma nova aliança com o criado e o Criador. Essa espiritualidade não será fruto das disquisições e belos achados de algum pensador, mas o resultado do espírito de toda uma época ou até de várias gerações. A natureza da espiritualidade impõe, portanto, humildade e despretensão quando falamos dela e queremos ajudar no seu surgimento (2000, p. 285).
A reflexão do autor baseia-se num raciocínio, aparentemente, bastante simples. Ao
falar sobre as mudanças na estrutura do pensamento ocidental causadas pelo progresso
da ciência, Boff cita como exemplo as revoluções ocorridas nas ciências físicas. As
revoluções, diz o teólogo, ocorrem como resposta a fenômenos novos que não podem
mais ser entendidos, explicados e enquadrados na compreensão até então vigente da
ciência. Então, por mais conservador que seja um cientista, deverá abandonar algumas
estruturas de compreensão já postas e projetar outras, novas, configurando novos
fenômenos. Caso isso não ocorra, o fenômeno permanecerá como problema. No
entanto, se um fenômeno surgir e não houver para ele explicação nem solução por meio
da compreensão tradicional, então se impõe a revolução.
28
Do mesmo modo, extrapolando do campo da ciência para qualquer outro da
história humana, verifica-se a mesma lógica da necessidade de mudança de paradigma
quando um novo fenômeno emerge e solicita novas resoluções. Se o fenômeno
permanecer como problema, isto é, se não houver mudança na estrutura mental,
imposição de todo fenômeno, então, pela própria natureza e em nenhum momento pela
autoridade humana, ocorrerá a revolução. Porém, adverte o autor, “somente triunfará
aquela revolução que é resposta à necessidade imperiosa de mudanças sem as quais os
problemas persistem, as crises se aprofundam e as pessoas perdem a esperança e o
sentido de vida” (BOFF, 2000, p. 287). Por isso, a espiritualidade é o campo, por
excelência, da criatividade, do não controlado pela instituição ou pela comunidade
religiosa, razão pela qual as religiões institucionalizadas sempre temeram os homens
espirituais e místicos. No entanto, essa espiritualidade somente será revolucionária em
relação à retomada da construção do paraíso terreno se a humanidade lembrar-se que o
universo e a Terra não são resultado de sua criatividade nem fruto de sua vontade.
Assim, a revolução eco-espiritual consiste na redescoberta da humanidade sobre seu
lugar junto com outras espécies e não fora ou acima delas. Por fim, essa revolução cria
uma nova consciência, uma nova visão do universo e uma redefinição do ser humano no
cosmos e de suas práticas em relação a ele. Desse modo, explica Boff, “depois de
séculos de confronto com a natureza e de isolamento da comunidade planetária, o ser
humano está encontrando o seu caminho de volta para a sua casa comum, a grande, boa
e fecunda Terra” (BOFF, 2000, p. 167). Sendo a Terra um bem comum de todos é tarefa
também de todos empreender o desafio pedagógico dos tempos modernos e fazer a
revolução que funda a nova cosmologia, pois,
não podemos nos entender como seres separados da Terra; nem podemos permanecer na visão clássica que entende a Terra como um planeta inerte, um amontoado de solo e de água penetrados pelos 100 elementos que compõem todos os seres. Somos filhos e filhas da Terra, somos a própria Terra que se torna autoconsciente, a Terra que caminha, como dizia o grande poeta mestiço argentino Atahulpa Yupanqui, a Terra que pensa, a Terra que ama e a Terra que celebra o mistério do universo (BOFF, 2000, p. 185).
Uma vez reencontrado esse caminho, a humanidade poderá não apenas vislumbrar
essas imagens, mas também usufruir novamente do paraíso terreal. A mesma ecologia
que ensina a ver a unidade no processo cósmico ajuda também a entender questões
como esta: a energia primordial do momento do big-bang é a mesma que permitiu “o
29
surgimento das flores, do arco-íris, dos colibris, da música de Vivaldi, da força profética
de Lutrher King ou de dom Helder Câmara ou da mística libertadora do bispo Desmond
Tutu e dom Pedro Casaldáliga” (BOFF, 2000, p. 73). Desse modo, abre-se para a
humanidade o imaginário do paraíso possível, aquele que poderá ser reconstruído sobre
os escombros da unidade cósmica.
Assim, a partir da breve exposição sobre o imaginário humano acerca da existência
de um paraíso terrestre, da depredação desse paraíso e da sua conseqüente
transformação e perda, cabe, então, diante da perspectiva de um paraíso possível,
considerar a história da Terra e sua distribuição no contexto brasileiro.
2. Da colonização portuguesa ao assentamento: Estatuto do latifúndio
Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos.
(Pero Vaz de Caminha)
Sem a pretensão de reelaborar amiúde a história da distribuição da terra no Brasil
e, concomitantemente, o processo de formação do MST, a retrospectiva que segue
sintetiza os fatos histórico-culturais determinantes à compreensão dos símbolos e da
mística desenvolvidos pelo grupo. Essa mística revela, entre outros aspectos, a
reelaboração das imagens do paraíso terreno mediante a revisão das posições do próprio
ser humano em relação ao ser Terra.
Ainda no ano de 1964, no dia 30 de novembro, “o Marechal Castelo Branco, [...]
promulgou a Lei n° 4.504, conhecida como Estatuto da Terra e que se constitui,
efetivamente, como a primeira lei brasileira de reforma agrária” (STEDILE6, 2005,
p.145). Esse Estatuto, embora gerado no seio da ditadura militar, representa o resultado
de um longo processo de luta de camponeses e de cidadãos comprometidos com a
reforma agrária. Ao falar sobre a questão agrária no Brasil, o autor lembra que em 1844,
Joaquim Nabuco já defendia a necessidade de reforma agrária, porém, a República
Velha foi apenas uma forma de as oligarquias manterem seus privilégios e o monopólio
da terra. Os debates sobre a questão são retomados após a II Guerra Mundial, quando,
6 João Pedro Stédile participa, desde 1979, das atividades da luta pela reforma agrária. É um dos fundadores do MST e, atualmente, membro da sua direção nacional. É autor de diversos livros sobre a questão agrária.
30
“em 1946, o então senador Luiz Carlos Prestes apresentou, em nome da bancada do
PCB7, a primeira lei de reforma agrária ampla” (STEDILE, 2005, p. 146). Essa lei seria
arquivada após a cassação dos parlamentares do partido. A proposta apresentada, em
1954, pela bancada do PTB8, também não prosperou e tampouco vingou, em setembro
de 1963, o projeto de lei de reforma agrária proposto pelo então deputado federal
Leonel Brizola, com a colaboração de Paulo Schilling. Nesse período, que abrange os
anos de 1946 até 1964, todas as tentativas de buscar uma solução legal para a pressão
exercida pelos movimentos camponeses não alcançaram êxito. No entanto, é nesse
espaço de tempo que ocorre a criação de movimentos camponeses, articulados em
âmbito nacional e com consciência de classe em si e, finalmente, em 1963, a partir da
“criação dos sindicatos rurais que até então eram proibidos” (STEDILE, 2005, p. 147).
A questão é retomada em âmbito de legislação, por meio do Estatuto da Terra, em 1964.
Com o golpe Militar que destituiu Goulard, assume o governo o marechal Humberto Castelo Branco e em novembro do mesmo ano, edita o Estatuto da Terra. Considerando-se a época e as circunstâncias políticas de uma ditadura militar, o Estatuto da Terra foi considerado uma legislação progressista [...] (STEDILE, 2005, p. 147).
Entretanto, continua Stedile, a promessa de redemocratização foi esquecida e a
ditadura tornou-se mais violenta com seus opositores. Sobre a década seguinte, 1970,
Morissawa observa que representa, na história do Movimento, o período em que “se
estimulou a mecanização e modernização da lavoura, como parte da política agrária
introduzida no Brasil pela ditadura militar” num claro incentivo à “agricultura
capitalista” (2001, p. 120). Como conseqüência dessa política, Stedile lembra que o
Estatuto da Terra foi relegado ao esquecimento e foi retomado apenas por servir como
“ instrumento jurídico institucional tanto para a venda de terras públicas para grandes
empresas quanto para ampliação de projetos oficiais de colonização dirigidos aos
camponeses sem terra do Sul e do Nordeste” (2005, p. 151). Nesse contexto, vale
lembrar que, entre esses estados,
[...] o estado do Paraná foi marcado pela expulsão dos camponeses de suas terras numa escala nunca antes vista no Brasil. No prazo de dez anos, foram cerca de 100 mil pequenos proprietários rurais. Parceiros,
7 Partido Comunista Brasileiro, fundado em 1922. 8 Partido Trabalhista Brasileiro, fundado em 1945, por Getúlio Vargas.
31
posseiros e arrendatários já sofriam um processo de expulsão devido à mecanização da agricultura. Para piorar a situação, a construção da Hidrelétrica Binacional de Itaipu levou à desapropriação de mais de 12 mil famílias de oito municípios do extremo oeste do estado (MORISSAWA, 2001, p. 121).
Desencadeia-se, então, o processo migratório para as fronteiras agrícolas, onde o
governo federal implantou projetos de colonização e a população agrícola das regiões
Sul, Sudeste e Nordeste foi incentivada a migrar para essas fronteiras. Desse modo, “os
assalariados do campo, os arrendatários e parceiros foram sendo expulsos dos
latifúndios” migrando, “principalmente, para Rondônia, Pará e Mato Grosso”
(MORISSAWA, 2001, p. 120). Para esse fim, foram abertas novas e extensas rodovias
em direção a Oeste; a BR-364, ligando Brasília – Cuiabá – Porto Velho, posteriormente
a Transamazônica, ligando Teresina a Itaituba e, finalmente, a Cuiabá – Santarém.
Atendendo aos interesses do projeto militar de colonização, essas rodovias foram
construídas para levar “os contingentes de sem-terra e, ao mesmo tempo, possibilitar o
deslocamento de mão-de-obra barata para a exploração da madeira, de minérios e
demais recursos naturais da Amazônia. Como dizia o general Médici, vamos levar gente
sem terra para uma terra sem gente” (STEDILE, 2005, p. 152).
Pelas rodovias do progresso, o povo sem-terra é transportado para regiões
desconhecidas e distantes daquelas em que nasceram e aprenderam a lida com a terra.
Esse processo promovido pelo capitalismo inicia o longo percurso de desenraizamento
do agricultor e o Estatuto da Terra, “que fora concebido no marco de uma política de
reforma agrária destinada a impulsionar o desenvolvimento do capitalismo, tem seu uso
limitado à privatização de terras públicas e programas de colonização” (STEDILE,
2005, p. 152).
Aos migrantes que atendiam ao chamado da Marcha para Oeste9 buscando a
inclusão social por meio da terra, restaram os assentamentos que podem ser
identificados como o lugar dos esquecidos. Picoli observa que essa política fomentou,
durante o período da ditadura, “a organização do modelo particular de distribuição de
terras, via empresas de especulação imobiliária, [...] sendo identificadas grandes áreas e
9 Sobre a Marcha para o Oeste, Hilda Gomes Dutra Magalhães diz, em sua História da literatura de Mato Grosso (2001, p.277) que, se nos primeiros tempos da colonização a povoação da Amazônia era uma forma de a coroa Portuguesa afirmar sua soberania sobre esse território e suas riquezas naturais, no século XX a preocupação com a Amazônia adveio, de um lado, também da necessidade de afirmação da soberania do Governo Brasileiro sobre a Amazônia (...) e, de outro lado, de questões de natureza econômica, considerando que a partir dos anos 50 o país implementava uma política de exportação sustentada na expansão das atividades agro-industriais no espaço amazônico.
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distribuídas aos filhotes da ditadura” . Empresas como a “Colonizadora Sinop S. A., de
Sinop, e a Colonizadora Indeco de Alta Floresta, ambas com mais de 400.000 hectares
disponíveis” (PICOLI, 2005, p. 24), são exemplos de grandes projetos que fortalecem
na Amazônia a prática do latifúndio.
Sobre a colonização do norte de Mato Grosso, Regina Beatriz Guimarães Neto
observa, em A lenda do ouro verde: política de colonização no Brasil contemporâneo
(2002) que muitos homens e mulheres, mais precisamente aqueles que já haviam feito
escola10 no Paraná, na década de 50, colocaram-se em marcha, novamente, rumo às
terras da Amazônia. No entender da escritora, “a obra da empresa colonizadora elevava-
se como um clarão na imensa floresta, onde o ruído dos machados, abatendo as grandes
árvores, trazia ao lugar o gemido da impotência da natureza perante o absurdo dos
homens” (GUIMARÃES NETO, 2002, p. 71). A autora lembra que não somente
paranaenses se deslocaram para a região, pois muitos outros passaram também pela
escola do Mato Grosso do Sul, conforme depoimento de Zé Antônio: “Eu fui para
Dourados e de lá vim para Alta Floresta, esperando acontecer aqui o que num consegui
lá” (GUIMARÃES, 2002, p. 75). Nessa travessia em busca da nova terra, o que os
colonos encontravam, no entanto, eram duras adversidades. Trabalhavam na labuta
diária enquanto a colonização ganhava reconhecimento e nome. A transcrição de um
trecho do depoimento da família de Zé Antônio resume bem a reação dos colonos recém
chegados ao sertão11 mato-grossense:
Eu cheguei e comecei a enfrentar o mato com a família inteira. A gente quando chegou aqui, não tinha estrada. Nós entrou aqui e só tinha nós e uma família lá na estrada da central. Não tinha nada, não tinha nenhuma família de colono. Mais eu nem pensei, dinheiro ninguém tinha, mais a firma dava apoio se a gente precisasse, mais não deu nada, não, toquemo em frente! Não achei nada difícil, meus filho tudo tem coragem, eu também tenho. Um dia chegamo, um dia armamo o barraco e...[Intervenção da mulher do colono] – Eu mais as moça acabamo de fechar o barraco. Não achamo nada difícil. A gente acabou de fechar e eles foram derrubar esses mato, derrubaram tudo no braço (GUIMARÃES, 2002, p. 77).
10 O termo é usado no sentido de identificar os colonos que já haviam vivido a experiência da migração no sul do país. 11 Lylia Galleti, em sua tese sobre sertão, fronteira e identidade nas representações sobre Mato Grosso, discute em que medida o termo sertão foi usado para classificar, geograficamente, amplas regiões como espaços vazios de civilização e atrasadas na marcha histórica. Tese de doutorado: NOS CONFINS DA CIVILIZAÇÃO: sertão, fronteira e identidade nas representações sobre Mato Grosso. [2000].
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Cabe lembrar, neste ponto do olhar retrospectivo, que toda a história da colonização
brasileira remete a questões diretamente associadas à temática da terra. O Brasil é
tomado como região agrária pelos colonizadores europeus, que não têm em vista o
fortalecimento da colônia e dos povos nativos. O que conta é apenas o progresso do
conquistador por meio de práticas de colonização exploratória. Sérgio Buarque De
Holanda diz, em Raízes do Brasil, tratar-se do princípio “que, desde os tempos mais
remotos da colonização, norteara a produção de riqueza no país” , e que “não cessou de
valer um só momento para a produção agrária” (1995, p. 52). A relação de poder em
torno da posse da terra não é, portanto, um fenômeno recente em território brasileiro.
No decorrer de toda a história da colonização, a questão agrária é a base de conflitos
sociais que se agravam na medida em que novos horizontes são vislumbrados por
grandes grupos colonizadores.
Flávio Aguiar, ao apresentar a sua obra Com palmos medida, sob o olhar da
representação literária, observa que nos primeiros tempos da República “as guerras
desencadeadas pelas lutas entre facções da classe dominante – os senhores da terra –
ganham destaque sobretudo na narrativa” (1999, p.13). O autor apresenta uma antologia
temática na qual a literatura brasileira manifesta em que medida prosadores e poetas
representaram e expressaram a ocupação da terra no Brasil. Observando pelo viés da
História, pode-se dizer que a conquista, a fixação e a exclusão identificadas pelo autor
como eixos determinadores dos trajetos e escolhas dos textos da antologia, constituem-
se como eixos seletivos naturais. A ordem cronológica das publicações, observada na
coletânea, permite vislumbrar a evolução de um processo que promoveu o contingente
de “rejeitados, deserdados, expulsos, exilados, por assim dizer, em sua própria terra”
(AGUIAR, 1999, p. 10).
Nesse mesmo sentido, Nicolau Sevcenko apresenta um estudo pormenorizado
sobre os escritores Euclides da Cunha e Lima Barreto, cujas obras permitem entrever as
tensões históricas cruciais do período que retratam. Segundo o autor, as obras dos dois
escritores distinguem-se “pela transparência com que resumem nas propostas e
respostas estéticas os conflitos mais agônicos que marcaram a sociedade brasileira nessa
fase” (2003, p. 32). Euclides da Cunha traz à tona, em Os sertões, uma das lutas
messiânicas pelo direito a terra mais significativas da história brasileira.
Apresentando um contexto semelhante, também a Guerra do Contestado foi
conduzida por um líder messiânico e, assim como Canudos - a terra prometida,
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envolveu milhares de camponeses pobres que acabaram sendo derrotados pela repressão
de tropas federais. Os líderes dessas lutas; Antônio Conselheiro, em Canudos, Bahia, e o
Monge José Maria, na região do litígio entre o Paraná e Santa Catarina, colocavam-se
como intermediários na comunicação de Deus com o povo. Por esse motivo “alguns
autores chamam as revoltas camponesas do período de lutas messiânicas”
(MORISSAWA, 2001, p. 86).
A origem dessas lutas e de todo o problema da má distribuição de terras no Brasil
remonta ao período do descobrimento. A América já tinha donos havia muito tempo e,
como os indígenas não soubessem o que significava “ser dono”, não faziam idéia de que
a terra viria a ser propriedade privada dos colonizadores. Habituados a dividir tudo o
que era produzido, caçado, pescado e coletado não geravam excedentes de produção,
não conheciam a palavra “comércio” . No entender de Morissawa “a luta pela terra no
Brasil nasceu naquele mesmo instante em que os portugueses perceberam que estavam
numa terra sem cercas, onde encontravam tudo muito disponível” (2001, p. 57). A partir
de então, instaurado o primeiro caso de invasão, os habitantes da terra que não
conseguiram fugir rumo ao interior do território brasileiro foram feitos escravos dos
colonizadores. A coroa portuguesa, por seu turno, assim que sentiu ameaçada a
soberania sobre a Colônia, dividiu as terras em capitanias hereditárias e cada uma delas
foi entregue como concessão a nobres portugueses, em troca do pagamento de impostos
à coroa. Esse é um aspecto para o qual Morissawa chama a atenção: “as terras do nosso
país não foram dadas a esses nobres. Elas continuaram pertencendo à Coroa portuguesa
até 1822 e depois ao Império brasileiro até 1850” (2001, p. 57). Desse modo, a terra não
podia ser vendida, no entanto, os donatários das capitanias podiam dividi-las em
sesmarias para as pessoas que quisessem produzir nela. Assim se chega ao ponto crucial
do trato com a terra no Brasil. Tanta terra para explorar e nenhuma mão-de-obra para
realizar o trabalho. Desse modo, a escravização de indígenas ocorreu por pelo menos
cem anos quando, por interferência dos padres jesuítas, passaram a trabalhar apenas
para as missões em troca da proteção que recebiam dos padres. “Quando não estavam
abrigados em missões, os índios preferiam lutar até a morte a entregar-se à escravidão.
Os exemplos mais conhecidos da resistência indígena são a Confederação dos Tamoios
e a Guerra dos Bárbaros” (MORISSAWA, 2001, p. 59). Diante desse quadro, a
substituição do escravo indígena pela mão-de-obra escrava africana se apresentava ao
colono estabelecido no Brasil como a alternativa mais adequada. Um povo que já era
cativo na África não apresentava resistência ao trabalho escravo. Mesmo assim, quando
35
chegavam ao Brasil, eram acorrentados e levados para os engenhos, onde ficavam
vigiados pelos feitores. O comércio de escravos se tornou tão lucrativo para os
traficantes que alguns deles ficaram mais ricos que os próprios latifundiários a que
serviam, chegando a atuar como agiotas, emprestando dinheiro aos fazendeiros da
Colônia. Sobre esse período a autora lembra que,
No Brasil do século XVII, ainda exclusivamente açucareiro, dominavam os senhores de engenho. Na mesma situação social, estavam os grandes comerciantes, que importavam e exportavam mercadorias e traziam escravos da África para serem vendidos no Brasil. Abaixo dessa camada mais rica ficava a multidão de homens livres pobres: pequenos agricultores, carpinteiros, sapateiros, alfaiates, pequenos comerciantes. Esmagados sob esse edifício social estavam os escravos, que, em algumas regiões, chegavam a ser a maioria da população (MORISSAWA, 2001, p. 61).
Também Roberto Schwarz12 reporta-se a esse período, embora sem pretender
escrever uma história do Brasil, expõe, dentre outras, uma pertinente reflexão sobre a
questão escravagista e suas implicações no contexto nacional. Ao falar sobre a
emancipação política do Brasil, o autor lembra o flagrante caráter conservador que
orientou as elites frente às mudanças que se impunham ao período oitocentista. Diante
da iminência liberal que pautava a consciência do século, a norma e a infração
configuraram o comportamento da elite brasileira da época. Nas palavras do crítico, “o
tráfico de africanos continuou a ser um excelente negócio, o mais lucrativo sob o sol”
(SCHWARZ, 2000, p. 37), evidenciando os modos atrasados de produzir em detrimento
à concepção do ideário moderno que se pretendia instaurar no país. Nesse mesmo
contexto, diz ainda:
Mesma coisa para o ciclo do café, decisivo e longo, cuja prosperidade assentava sobre a escravidão e, mais adiante, sobre o trabalho semiforçado, com o qual chegaria a nosso tempo. Assim, a ligação do país à ordem revolucionada do capital e das liberdades civis não só não mudava os modos atrasados de produzir, como os confirmava e promovia na prática, fundando neles uma evolução com pressupostos modernos, o que naturalmente mostrava o progresso por um flanco inesperado (SCHWARZ, 2000, p. 37).
12 Em Um mestre na periferia do capitalismo:Machado de Assis (2000), o autor elabora sua reflexão para pensar os procedimentos literários em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) a partir do conceito de “volubilidade” . Essa discussão será retomada no próximo capítulo para ilustrar a originalidade da forma e suas implicações no fazer literário.
36
Desse modo, o ideário liberal, necessário para a organização do novo Estado e das
elites, representa tanto o progresso como a permanência do modelo arcaico na relação
proprietário e empregado. Esse rol de acontecimentos vai elaborando a história de
ambos os lados. Os excluídos do processo modernizador, por sua vez, passaram a
formar quilombos onde se refugiavam não só escravos foragidos, como também índios,
pobres e prostitutas. O quilombo dos Palmares foi considerado o maior do Brasil,
caracterizando-se pela junção de quilombos que chegou a reunir perto de vinte mil
habitantes. Zumbi, o mais famoso rei de Palmares, “manteve-se no comando da luta de
resistência por cerca de dezesseis anos, vencendo diversas incursões feitas na tentativa
de vencer a resistência de Palmares. Zumbi foi morto quando o reduto foi arrasado por
mercenários sob o comando do bandeirante Domingos Jorge Velho” (MORISSAWA,
2001, p. 65).
Em meados do século XIX, a pressão internacional para se acabar com a
escravidão aumentou e muitos escravos continuavam a fugir para os quilombos. O
processo de abolição durou 38 anos, iniciando com a lei do fim do tráfico, em 1850,
seguida da Lei do Ventre Livre, em 1871 e da Lei do Sexagenário, em 1885. Quando,
em 1888, é assinada a Lei Áurea, os escravos formavam um imenso contingente de
despossuídos, cuja maioria só sabia trabalhar na terra, mas não contava com um metro
de chão para plantar e sobreviver. Para que os ex-escravos, os brasileiros pobres, os
posseiros e imigrantes não pudessem se tornar proprietários e continuassem a se prestar
a trabalhos assalariados nos latifúndios, a Coroa estabeleceu uma lei restringindo o
direito de posse da terra. Nesse contexto, “A Lei das Terras significou o casamento do
capital com a propriedade da terra. Com isso, a terra foi transformada em uma
mercadoria à qual somente os ricos poderiam ter acesso” (MORISSAWA, 2001, p. 71).
Os imigrantes europeus, grande parte deles camponeses sem terra, começavam a
chegar em grande número a partir de 1870. Iniciava-se, assim, um novo modelo de
escravidão que mantinha os colonos pobres reféns dos fazendeiros que cobravam, após
a colheita, o que haviam gasto na passagem de vinda dos imigrantes, as dívidas do
armazém e o aluguel da moradia. Desse modo, a ocupação da terra no Brasil revela uma
história em que o povo, quer fosse o nativo brasileiro, o traficado africano ou o
aventureiro europeu, esteve sempre à margem do processo de inclusão social por meio
da terra.
Também Bosi, em sua Dialética da Colonização, resume o processo de
colonização no Brasil de forma incisiva: “Novas terras, novos bens abrem-se à cobiça
37
dos invasores” (BOSI, 1992, p. 20). E em seguida cita a visão marxista sobre o processo
colonizador. Segundo o crítico, Marx via nesse processo uma prática que “não se esgota
no seu efeito modernizante de eventual propulsor do capitalismo mundial; quando
estimulado, aciona ou reinventa regimes arcaicos de trabalho, começando pelo
extermínio ou a escravidão dos nativos nas áreas de maior interesse econômico” (BOSI,
1992, p. 21).
2.1 Reforma agrár ia: a colonização tardia
A reprodução do sistema colonizador, que efetiva práticas do passado
exterminador e excluidor dos povos originários e posseiros, reelabora, no processo de
colonização interna, séculos depois do descobrimento, a história de exclusão social e
cultural do homem do campo. A esse respeito, Stedile lembra as proposições elaboradas
no 3° Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, que aconteceu de 21 a 25 de maio
de 1979, em Brasília:
1- que o Movimento sindical de Trabalhadores Rurais tome posição contra o processo de colonização atualmente em curso; 2- que os erros e desvios desta colonização como alternativa oficial para não fazer a Reforma Agrária sejam analisados e amplamente denunciados, especialmente a expulsão de colonos e posseiros e sua transformação em mão-de-obra barata e escrava; 3- que a colonização seja realizada somente por órgãos oficiais com a participação do Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais e não por colonizadoras particulares; 4- que o Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais exija a realização de uma colonização voltada para a criação massiva de unidades de produção tamanho familiar em benefício dos trabalhadores rurais (STEDILE, 2005, p. 164).
Sobre essa questão, Picoli explica que, ao mesmo tempo em que o poder oficial
distribuiu terras aos grupos organizados, também promoveu assentamentos via
INCRA13 a pequenos agricultores, para desenvolver a idéia de um governo bom e
prestativo, e “com essa tática foi possível implantar os projetos das elites agrárias” .
Conforme afirma o autor, “a união entre o Estado e o Capital é histórica e, por meio da
ditadura, se incumbe de desenvolver a estratégia de ocupação” (2005, p.23).
13 O INCRA, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, é uma autarquia federal criada pelo Decreto n°. 1.110, de 9 de julho de 1970 com a missão prioritária de realizar a Reforma Agrária, manter o cadastro nacional de imóveis rurais e administrar as terras públicas da União.
38
Vale lembrar, nesse ponto da reflexão, a pergunta formulada por Morissawa: “Que
perspectivas restaram aos sem-terra?” (2001, p. 122), e responder conforme Stedile:
“Quando a ditadura militar começa a dar sinais de crise a partir de 1976, durante o
governo do General Ernesto Geisel e, posteriormente no governo do General João
Figueiredo, invoca-se o Estatuto da Terra para realizar desapropriações” (2005, p. 152)
em áreas onde os conflitos sociais se mostravam mais iminentes e evitar, assim, reações
mais vigorosas dos camponeses. No entanto, esse artifício não funcionou, e o que
ocorreu “no período de 1979-1983 foi a eclosão de muitas lutas de posseiros da
Amazônia e o ressurgimento da luta massiva pela terra em quase todo o território
nacional” (STÉDILE, 2005, p. 152).
Assim, do interior desse processo político e dos anseios dos trabalhadores que
esperavam pelo efetivo cumprimento dos propósitos do Estatuto da Terra, começa o
“período de gestação do MST, que durou quatro anos e alguns meses até o nascimento
em 1984” (MORISSAWA, 2001, p. 123). Dentre os marcos significativos da história da
constituição do Movimento, a autora destaca o episódio de ocupação da Fazenda
Macali, em Ronda Alta, no Rio Grande do Sul, ocorrido em 7 de setembro de 1979. E
acrescenta que, “muitas outras lutas, nesse estado e em todo o país, foram gerando
lideranças e incrementando a consciência da necessidade de ampliação das conquistas
em busca de um objetivo mais alto: a reforma agrária” (MORISSAWA, 2001, p. 124).
No início de dezembro do mesmo ano, algumas “ famílias que não haviam conseguido
assentamento em lutas anteriores resolveram acampar num local chamado Encruzilhada
Natalino, entroncamento das estradas que levavam a Ronda Alta, Sarandi e Passo
Fundo” (MORISSAWA, 2001, p. 125). O assentamento passa, então, a representar um
espaço de resistência para
Parceiros, meeiros, assalariados e filhos de pequenos agricultores [...]. Era um lugar estratégico, próximo a Annoni, da Macali e da Brilhante. Cerca de sete meses depois, já eram 600 famílias, reunindo cerca de 3 mil pessoas em barracos que se estendiam por quase dois quilômetros à beira da estrada. Boa parte delas já tinha experiência das coisas do movimento. Apesar da precariedade das condições do acampamento, trataram de se organizar em grupos, setores e comissões, e de eleger uma coordenação. Dessa luta nasceu o Boletim Sem Terra, o primeiro órgão de comunicação do Movimento, e uma secretaria administrativa em Porto Alegre para buscar solidariedade. A Brigada Militar cercava o local, tentando intimidar e desanimar os sem-terra de sua luta. O governo enviou representantes e até o bispo de Passo Fundo para cooptá-los, oferecendo empregos. Mas
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desistiu. Os sem-terra da Encruzilhada estavam firmes na decisão de persistir (MORISSAWA, 2001, p. 125).
Quando, em 1985, o presidente do INCRA José Gomes da Silva pede demissão por
perceber que o novo governo – José Sarney -, não tinha reais compromissos com a
reforma agrária, o Estatuto da Terra ainda não havia sido olhado pelas autoridades
políticas como um verdadeiro Plano de Reforma Agrária. Em 1987, com a Constituinte,
acontecem avanços em “algumas questões sociais, mas no tema da reforma agrária
representou um retrocesso em relação ao Estatuto da Terra” (STEDILE, 2005, p. 153).
Sobre a nova constituição observa ainda o autor que ela insere mudanças fundamentais
na classificação das propriedades, mas não suplanta todos os artigos do Estatuto da
Terra.
Desta maneira, diante do constante adiamento de uma regulamentação definitiva
para as questões relativas à ocupação das terras, foi necessário, nas palavras de Stedile,
“criar uma lei complementar destinada a normatizar a aplicação dos novos princípios
constitucionais à reforma agrária” e promulgou-se, então, em 1993, a “Lei Agrária/93”
(2005, p. 154). Entretanto, a normatização prevista nessa lei não simplificou o processo
de desapropriação; ao contrário, criou mecanismos que facilitaram a contestação
jurídica pelo latifúndio, evitando que os processos de desapropriação sejam rápidos e
eficazes.
Segundo Morissawa, a atuação do MST em terras mato-grossenses “começou de
fato em agosto de 1995, quando fez a primeira ocupação com 1.000 famílias, na
Fazenda Aliança, em Pedra Preta” (2001, p. 192). Por ocasião da audiência com o então
governador Dante de Oliveira, os sem-terra reivindicaram a desapropriação imediata da
fazenda, segurança contra os jagunços, remédios e alimentação. Nos anos de 1997 e
1998, mais duas ocupações acontecem sedimentando as ações do movimento no Estado:
Em março de 1997, cerca de 1.000 famílias ocuparam uma área em São José do Povo, e outras 1.500 fizeram o mesmo em área próxima a Cáceres. Em outubro de 1998, 700 famílias ocuparam o latifúndio Urutau, em Mirassol d’Oeste e São José dos Quatro Marcos. (MORISSAWA, 2001, p. 192).
Laudemir Zart, ao falar sobre os fenômenos históricos da luta pela terra em Mato
Grosso, diz que A Encruzilhada Natalino simboliza o marco instaurador da resistência e
da luta pela terra pós-64 e, no contexto local, pode-se dizer que representa, também, o
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ingresso de Mato Grosso na história do MST. A transferência de 203 famílias do
acampamento na Encruzilhada Natalino para o estado de Mato Grosso,
“especificamente para o Projeto de Assentamento – Lucas do Rio Verde – localizado na
BR 163, rodovia Cuiabá-Santarém” (ZART, 2005, p. 143), inaugura a relação do
movimento com o sertão mato-grossense.
Dessa maneira, a história revela que os “desdobramentos do golpe militar de 1964
[...] geraram uma nova correlação de forças políticas, aliando militares, latifundiários,
burguesia nacional e capital estrangeiro, [...] que impôs pela força sua hegemonia
política e seu projeto de desenvolvimento” (STEDILE, 2005, p. 154). Nesse sentido, diz
ainda o autor, o MST se constitui um Movimento organizado que compreende a
democratização do acesso a terra, como a solução para resolver os problemas da
pobreza e da desigualdade social. Como conclusão ao período histórico que envolve
anos de luta pelo direito a terra e promove, em seu desenrolar, o surgimento e
consolidação do MST, o autor conclui:
Cá estamos, até hoje. Na prática, apesar do Estatuto da Terra, da nova Constituição e da subseqüente Lei Agrária, o processo de concentração da propriedade da terra no Brasil continua crescendo. Ao longo desses 40 anos, apesar da incessante luta dos movimentos camponeses, a propriedade da terra está cada vez mais concentrada em mãos de menos gente, empurrando para muito longe a perspectiva de um processo histórico de democratização do acesso a terra. O Brasil se mantém como um dos países de maior concentração da propriedade de terra. [...]. Mas a história vai sendo escrita conforme a caminhada do povo (STEDILE, 2005, p. 154 e 155).
Ao falar sobre O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, o antropólogo
Darcy Ribeiro diz que o “caráter intencional do empreendimento faz do Brasil, ainda
hoje, menos uma sociedade do que uma feitoria” (2003, p. 212). O fato é atribuído a
uma estrutura que toma as condições de sobrevivência e de progresso nos moldes
colonizadores. Para o autor, “a estratificação social gerada historicamente tem também
como característica a racionalidade resultante de sua montagem como negócio que a uns
privilegia e enobrece, fazendo-os donos da vida, e aos demais subjuga e degrada, como
objeto de enriquecimento alheio” (RIBEIRO, 2003, p. 212).
O escritor declara ainda, ao falar sobre a questão agrária para o Jornal Sem Terra,
em março de 1997, que “O Movimento Sem Terra é umas das coisas mais importantes
que já aconteceram no Brasil. E muitos de nós guardamos no coração uma grande
41
esperança neles, para obrigar o Brasil a levar a questão agrária a sério” (apud
CALDART, 2004, p. 50). Na reflexão de Caldart, “trata-se de um movimento social que
foi se constituindo historicamente também pela força de seus gestos, pela postura de
seus militantes e pela riqueza de seus símbolos” (2004, p. 53). Assim, o retrospecto
histórico revela a preocupação do Movimento em cultivar a memória e, por meio da
mística, melhor compreender sua base social e construir os valores e a postura de cada
integrante do MST, constituindo a consciência coletiva do sujeito social Sem Terra.
3. Memória e identidade: trajetos em construção
Eis que a terra – cujas entranhas próximas, nos “ sete palmos do chão” a todos um dia nos abrigará, não esquece – mostra e dá aos homens a sua “ bondade” .
(Carlos Rodrigues Brandão)
Observando o surgimento e a trajetória dos sem-terra, é possível dimensionar,
então, a preocupação de lideranças e intelectuais como Pedro Stedile, Ademar Bogo,
Mitsui Morissawa e Roseli Caldart em preservar a memória do Movimento e constituir,
por meio dela e das demais manifestações culturais, a consciência do sujeito social sem-
terra. Essa consciência enraíza outra vez o sem-terra que resgata a memória histórica
por meio da mística vivenciada como ato cultural elaborado no interior das práticas
militantes.
Segundo Caldart, “do ponto de vista da formação do sem-terra como sujeito
político e sociocultural é possível identificar momentos distintos” (2004, p. 116), dentre
os quais o ato de ocupação da terra é apenas o primeiro, que se desdobrará em outras
ocupações como a revisão das tradições, dos costumes, da visão de mundo, produzindo
e reproduzindo cultura. “Os barracos de lona preta, com sua disposição espacial, têm
chamado a atenção da sociedade de maneira continuada para um conflito social que se
escancara na ocupação, e se desdobra nessa outra forma de luta” (CALDART, 2004, p.
176).
Para Bogo, a cultura “representa a produção material e espiritual da existência, a
produção da consciência e a formulação de objetivos que poderão ser alcançados pela
sucessão de várias gerações” (2000, p.14). Nesse processo de assimilação da herança
cultural, produzida e repassada aos seres individuais e sociais, haverá alterações
permanentes, pois
42
cada geração acrescenta nesta interligação de gerações, suas próprias características, formando sua identidade, sempre com responsabilidade de preparar o ambiente onde viverão as gerações posteriores. [...] Assim se sucedem os inventos, as descobertas científicas, as formulações metodológicas, as práticas e teorias organizativas com seus princípios e valores. Assim forjam-se os arquitetos da existência, os poetas e seresteiros, que buscam subir os mais altos degraus na escada que levam à felicidade (BOGO, 2000, p. 14).
Desta forma, a construção da cultura do sujeito social Sem Terra acontece no
interior do movimento em todos os momentos vivenciados pelo grupo. Ao falar sobre
essa cultura, Bogo a define como “algo concreto que se move como uma força invisível
no ambiente onde se produz a existência de um determinado grupo social e influi
profundamente em seu comportamento” (2000, p. 20). Nesse sentido, diz ainda, será
difícil arrancar as experiências e aprendizados históricos que se fixam no conhecimento
humano como sinais que não se apagam, nem mesmo com a eliminação do corpo físico.
Convém lembrar, diz o autor, que embora o Brasil esteja completando 500 anos, tem
menos de 50 anos de vida predominantemente urbana. Até então, a maioria dos
brasileiros vivia no campo e produzia sua existência ligada a terra. Por isso, ao falar da
terra e da agricultura, toca-se “no imaginário ainda latente de conhecimentos produzidos
pelos avós deste povo, que mesmo atualmente urbanizados, foram feitos de terra e
carregam o cheiro dela para onde forem” (BOGO, 2000, p. 22).
Desse modo, a cultura que Bogo denomina cultura com aroma de sertão, mantém-
se no imaginário do sem-terra durante todos os momentos da militância e é vivenciada
como ato cultural, por meio da mística e da simbologia, dos sentimentos e da palavra
falada vinculada sempre à ação concreta. Caldart observa que, no acampamento, a
herança cultural se costura no sentido de reconstituir nas “ famílias que mal se conhecem
e que, na maioria das vezes, portam costumes e heranças culturais tão diversas entre si”
(2004, p. 176), uma nova história de vida comum que se reconhece
em sentimentos compartilhados de medo, de dor, de fome, de frio, mas também de convívios fraternos e de pequenas alegrias nascidas da esperança de uma vida melhor, que aos poucos lhe identifica como grupo: o acampamento como espaço social de formação identitária de uma coletividade em luta, e que se descobre com uma nova perspectiva de futuro (CALDART, 2004, p. 176).
43
Conforme reflexão de Bosi, “cultura supõe uma consciência grupal operosa e
operante que desentranha da vida presente os planos para o futuro” (1992, p. 16).
Também para Bogo, a cultura, “mesmo que perversa e desestruturante, ainda é o
resultado da existência de um grupo social” (2000, p. 14). A idéia dessa construção
coletiva da cultura implica o direito de acrescentar aspectos que o grupo considerar
necessários ao novo momento histórico ou retirar aqueles que deixam de fazer sentido
frente a novas perspectivas. Se, conforme Bosi, “no coração de cada homem do povo
convivem uma resignação fundamental e uma esperança sempre renascente” , de
maneira similar, a mística do MST manifesta a presença de “caracteres constantes de
nossa cultura popular: materialismo, animismo, visão cíclica da existência (ou
reversibilidade). Fica implícito no termo popular que essa cultura é” , como a cultura
dos sem-terra, “grupal, supra-individual” (BOSI, 1992, p. 326).
Ao falar sobre Cultura Brasileira e Identidade Nacional Renato Ortiz analisa a
questão da cultura popular a partir da concepção do Centro Popular de Cultura (CPC), e
da União Nacional dos Estudantes (UNE), desenvolvida entre os anos de 1962 a 1964.
Para tanto, traz à tona a reflexão de Ferreira Gullar “que compreende a cultura popular
como a tomada de consciência da realidade brasileira” (apud ORTIZ, 2005, p. 72). Esse
conceito vai confundir-se com a idéia de conscientização, subvertendo o antigo
significado que assimilava a tradição à categoria de cultura popular. As observações de
Ortiz sobre o sentido que o termo vai assumir no contexto histórico analisado pelo
autor, também no contexto do MST se reveste de uma conotação que “significa
sobretudo função política dirigida em relação ao povo” , pois não se trata de uma
concepção de mundo das classes subalternas, trata-se de “projeto político que utiliza a
cultura como elemento de sua realização” (ORTIZ, 2005, p. 72). Em conclusão ao seu
estudo, o autor diz que as manifestações culturais de grupos sociais podem ser
analisadas observando-se de que maneira as relações de poder penetram o domínio da
esfera da cultura. Embora as expressões culturais não se apresentem na sua concretude
imediata como projeto político, deverão ser observados os interesses desses grupos, pois
eles determinam o “sentido da reelaboração simbólica desta ou daquela manifestação”
(ORTIZ, 2005, p. 142).
Nesse mesmo sentido, pode-se reelaborar, também, a reflexão de Stuart Hall sobre
As Culturas Nacionais Como Comunidades Imaginadas, transportando para o fenômeno
da migração interna e o conseqüente “sentimento de perda subjetiva” , a idéia de nação
como “comunidade simbólica” (2000, p. 58). Essa idéia, geradora de um sentimento de
44
identidade e lealdade, torna-se uma fonte poderosa de significados para as identidades
culturais modernas. Assim, também no contexto interno, a idéia de nação como
comunidade imaginada, organizadora das ações e concepções, passa a produzir os
sentidos sobre os quais um determinado grupo se identifica e constrói, a partir desse
sentimento, sua identidade. Nessa perspectiva, o esforço do povo sem-terra em irmanar-
se numa nação que os identifica enquanto grupo coeso e distinto no interior da nação
nacional caracteriza o Movimento a partir dos mesmos elementos que constituem uma
cultura nacional como comunidade imaginada, isto é, observa-se a congregação das
mesmas características: “as memórias do passado; o desejo por viver em conjunto; a
perpetuação da herança” (HALL, 2000, p. 58).
Na reflexão de Bogo, quando o “Sem Terra deixa de ser categoria social para
tornar-se nome próprio, quando identifica um grupo social que decidiu ser sujeito para
mudar sua condição social” , esse novo sujeito produz o “encontro do ser homem com o
ser terra” (2000, p. 24). Esse encontro entre dois corpos físicos materiais que possuem
características e identidades irá resgatar reciprocamente a história das duas existências.
Assim, no entender do sem-terra, terra e ser humano se reencontram para reconstruir
uma mesma história de desconstrução em que “parte da terra e parte dos seres humanos
são jogados no berço da exclusão para chorarem a dor da falta de cuidado e de respeito”
(BOGO, 2000, p. 25). Essa recuperação histórica ou, memória histórica, continua Bogo,
“é a experiência feita por determinado grupo social que se organizou para produzir
coletivamente sua existência” e, diz ainda, “da mesma forma que lembramos dos heróis
revolucionários, recordamos nossos avós que viveram da produção, ligados a terra, e
juntos produziram conhecimentos que vamos passando lentamente como um carro de
boi que se arrasta à procura do futuro” (2000, p. 21).
Segundo Caldart, quando o Movimento passou a incorporar os assentados e suas
áreas como parte de sua base social e de sua organização, o MST passou também a
pesquisar na história e em suas experiências subsídios que pudessem ajudar no processo
de organização dos assentamentos. É nesse contexto, acentua a autora, que se fortalece
no Movimento a discussão sobre a organização da “vida social em uma área que se
coloque como espécie de retaguarda econômica e política da luta pela Reforma Agrária
no Brasil” (2004, p. 188).
Assim, a memória representa para o Movimento a ponte que vem do passado,
conduz com sabedoria rumo à construção do futuro, e preserva viva a memória que
ensina a saber pertencer-se para poder entregar-se. Essa sabedoria “muitas vezes
45
enterrada nas covas do esquecimento, [...] alimenta as raízes existenciais de um povo”
(BOGO, 2000, p. 27). Essa memória é, também, a existência já produzida com todas as
suas dimensões e se manifesta nas práticas e ações vividas no presente, pois, nas
palavras do autor,
[...] há memória nos restos de raças que ainda sobrevivem, e que lutaram em todas as gerações para manterem-se vivas e que os livros de história não deixam ver para que não apareçam nas cicatrizes do tempo, os nomes e os dizeres dos lutadores incansáveis, pela igualdade entre os seres humanos. Há memória para os camponeses nas fases da lua, [...]. Há também memória no trabalho artesanal dos velhos camponeses das gerações passadas, [...]. Há memória na culinária das etnias, [...]. Há memória nas fotografias em preto e branco onde aparecem os jardins, os pomares das velhas casas de madeira ou de barro, onde enormes famílias reunidas até a quarta geração faziam suas confraternizações. [...] Nos livros também há memória, contadas pelas mãos hábeis de escritores verdadeiramente humanos, que se empenharam em contar detalhes daquilo que o pensamento não conseguiria guardar [...]. Nas lembranças há memória. Nos contos, fábulas, lendas. Na vida dos lutadores do povo entregue inteirinha na construção de um sonho, [...]. Há memória na crença traduzida de geração em geração. [...] nos menores detalhes há memórias que fizeram parte da construção da existência de nossos antepassados e que dormem em alguma dobra do embrulho que traz a história. Até nas nossas mãos têm sabedoria e memória, mas cabe a nós ter consciência da importância desse passado para sabermos como olhar corretamente para o futuro. Quando vamos para a terra, essa memória nos acompanha e é com ela que principiamos a organização de um novo momento histórico, procurando produzir nossa existência (BOGO, 2000, p. 28 e 29).
Para o sem-terra, a memória histórica representa, portanto, “a possibilidade de
retorno para onde ficaram pedaços de suas raízes” , é “o caminho de volta para
compensar o êxodo criminoso que ocorreu no Brasil a partir da década de 60 [...], pois
há terra que ainda é possível cultivar com conhecimentos guardados na memória”
(BOGO, 2000, p. 16).
Ecléa Bosi, ao falar sobre o processo de migração, cultura e desenraizamento, diz
que as múltiplas raízes do migrante se partem quando ele “perde a paisagem natal, a
roça, as águas, as matas, a caça, a lenha, os animais, a casa, os vizinhos, as festas, a sua
maneira de vestir, o entoado nativo de falar, de viver, de louvar da Deus” (2004, p. 20).
No entender da autora, “a palavra homem deriva de húmus, chão fértil, cultivável” , por
isso a luta contra o desenraizamento se manifesta no sentido de reconstruir a unidade
Ser-Terra. Desta maneira, entende a autora que “a luta contra o desenraizamento está
presente nos movimentos operários e camponeses” como a manifestação do “medo do
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desemprego e da migração”, como reação às “multinacionais ou contra as monoculturas;
pela autogestão na indústria ou pela reforma agrária” (BOSI, 2004, p. 20) e como o
desejo de voltar para onde ficaram as raízes originais.
Na observação de Bogo, ao manifestar a consciência dessa condição, o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra engendra um esforço coletivo permanente em
religar as raízes que já foram arrancadas e procurar o que pode renascer nessa terra de
erosão. Para o autor, o reencontro do homem com a terra promove a reconstrução das
duas existências, pois quando o ser homem decide “se abraçar a terra, para extrair de
seu corpo o perfume que move a dignidade do povo em marcha”, está lutando em defesa
da própria vida e da vida do ser terra.
Sobre esse aspecto, Leonardo Boff também lembra, em sua Ecologia: grito da
terra, grito dos oprimidos (2000), a estreita ligação entre o ser humano e a terra:
[...] o ser humano não está apenas sobre a Terra. Não é um peregrino errante, um passageiro vindo de outras partes e pertencendo a outros mundos. Não. Ele é filho e filha da Terra. Ele é a própria Terra em sua expressão de consciência, de liberdade e de amor. Nunca mais sairá da consciência humana de que somos terra (adam-adamá do relato bíblico da criação) e de que o nosso destino está indissociavelmente ligado ao destino da Terra e do cosmos onde se insere a Terra. (BOFF, 2000, p. 33).
Do mesmo modo, também a reflexão de Alfredo Bosi sobre o sentido das palavras
colo-cultus-cultura revela como o cultivo da terra e o culto à terra organizam as
vivências socioculturais do reencontro do ser humano com a terra. Essa reorganização
permite ao homem elaborar o presente por meio do passado que o constitui, então, em
ser histórico. Para o autor,
A possibilidade de enraizar no passado a experiência atual de um grupo se perfaz pelas mediações simbólicas. É o gesto, o canto, a dança, o rito, a oração, a fala que evoca, a fala que invoca. No mundo arcaico tudo isso é fundamentalmente religião, vínculo do presente com o outrora-tornado-agora, laço da comunidade com as forças que a criaram em outro tempo e que sustêm a sua identidade. A esfera do culto, com sua constante reatualização das origens e dos ancestrais, afirma-se como um outro universal das sociedades humanas juntamente com a luta pelos meios materiais de vida e as conseqüentes relações de poder implícitas, literal e metaforicamente, na forma ativa da palavra colo (BOSI, 1992, p. 15).
47
No entanto, segundo o crítico, “convém amarrar os dois significados” da palavra
cultus, “que mostra o ser humano preso à terra e nela abrindo covas que o alimentam
vivo e abrigam morto":
cultus (1): o que foi trabalhado sobre a terra; cultivado;
cultus (2): o que se trabalha sob a terra; culto; enterro dos mortos; ritual feito em
honra dos antepassados (BOSI, 1992, p. 14 e 15). Em ambas as dimensões apresentadas
por Bosi se reconhece a base sobre a qual se faz o sujeito Sem Terra.
Para Caldart, “trata-se da categoria de enraizamento projetivo que é possível
construir a partir da reflexão produzida por Simone Weil na década de 40 sobre a
condição operária, e de como foi retrabalhada por Alfredo Bosi em uma análise sobre a
questão da cultura no MST” (2004, p. 97). Nas palavras de Weil, em A condição
operária e outros estudos sobre a opressão (1979):
O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. É uma das muitas difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Participação natural, isto é, que vem automaticamente do lugar, do nascimento, da profissão, do ambiente. Cada ser humano precisa ter múltiplas raízes. Precisa receber quase que a totalidade de sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermédio dos meios de que faz parte naturalmente (WEIL, 1979, p. 347).
Assim, Caldart conclui com a leitura de Weil que, ao mesmo tempo em que a
mística se constitui pela “raiz do sentimento que é simbolizado e cultivado” a partir de
“valores que sustentam uma determinada concepção de humanidade”, ela também
“evoca a materialização (geralmente simbólica) desse sentimento" (2004, p. 210). Essa
evocação se manifesta “na beleza da ambientação dos encontros, nas celebrações, na
animação proporcionada pelo canto, pela poesia, pela dança, pelas encenações de
vivências que devem ser perpetuadas na memória” e que, por sua vez, enraízam o sem-
terra à terra que ele defende e pela qual aprendeu a lutar por meio de “gestos fortes,
pelas homenagens solenes que se prestam a combatentes do povo” (CALDART, 2004,
p. 211). Dessa maneira, a mística, que mantém entrelaçados e enraizados todos os sem-
terra de todos os tempos, manifesta-se nos “símbolos do Movimento, seus instrumentos
de trabalho e de resistência, seus gritos de ordem, sua agitação, sua arte” .
48
Também Regina Beatriz Guimarães Neto observa que o processo de migração dos
colonos do sul do país para as terras da Amazônia suscitou, nesses homens e mulheres,
uma explicação que extrapola o entendimento comum. No entender de Guimarães,
“para essa população pobre, que muito pouco controle pode ter sobre seu futuro,
vivendo sob os reveses da sorte, amparando-se em Deus ou apelando ao destino, os
acontecimentos que rondam sua vida surgem repletos de sinais místicos” (2002, p. 68).
Assim, os colonos suportavam tudo, pois estavam embalados pelo sentimento de uma
resistência que acreditavam não mais possuir. A força dessas pessoas emanava da fé,
pois “acreditavam no sucesso da colonização. O próprio tempo da chegada passava por
uma espécie de fetiche: é o tempo que não se conta; amanhã ele apareceria nos frutos do
trabalho” . (GUIMARÃES, 2002, p. 68). Desse modo, a lembrança dos tempos difíceis
começa a se perder e o que importa é apenas aquela parte da memória que levanta os
marcos apologéticos. O processo identificador da nova terra, nesses casos, não
considera o sofrimento passado, pois a história presente é a do triunfo. Esse aspecto da
memória seletiva na construção identitária de um determinado grupo é discutido por
Ulpiano Meneses, em seu texto Cultura brasileira e arqueologia (2004). Ao falar sobre
identidade cultural o autor observa que a busca de uma identidade se alimenta do ritmo,
que é repetição. Para Meneses,
O suporte fundamental da identidade é a memória, mecanismo de retenção de informação, conhecimento, experiência, quer em nível individual, quer social e, por isso mesmo, é eixo de atribuições, que articula, categoriza aspectos multiformes da realidade dando-lhes lógica e inteligibilidade (2004, p. 183).
Nesse sentido, a incessante busca do MST em construir, por meio das
manifestações culturais, da mística e da preservação da memória a identidade do sujeito
Sem Terra, revela “que é em virtude das definições que existem indivíduo e sociedade.
[...] O processo de identificação é um processo de construção de imagem; por isso
terreno propício de manipulações” (MENESES, 2004, p. 182). Se, conforme as
reflexões elaboradas pelos intelectuais do movimento, a construção coletiva de sua
identidade implica acrescentar ou retirar aspectos da herança cultural que os integrantes
do grupo consideram necessários ou não, então o resgate da memória sofre um processo
seletivo. Segundo Meneses, essa seleção é uma das características que o conceito de
memória nos leva a considerar, pois nem tudo ela registra, e, do que registra, nem tudo
49
aflora à consciência. Uma outra característica da memória é que ela pode ser induzida
ou até forjada e, “nas sociedades simples, o estudo dos ritos de retorno às origens e dos
mitos de fundação, por exemplo, permite compreender em profundidade os mecanismos
de defesa de uma determinada configuração sociocultural” (MENESES, 2004, p. 184).
3.1 M ito, religiosidade e mística: caminhos de transcendência
A afirmação de Meneses remete à reflexão elaborada por Mircea Eliade sobre O
mito do eterno retorno (1992) em que o historiador de religiões examina os conceitos
fundamentais das sociedades arcaicas. Para o autor, a diferença básica entre o homem
arcaico e o moderno consiste na valorização cada vez maior que este último atribui aos
acontecimentos históricos. A reflexão dos dois autores permite verificar a oscilação dos
conceitos em torno da consciência do tempo histórico na constituição de certos grupos
sociais modernos. No caso do MST, percebe-se a busca constante da preservação da
memória como elemento de identificação e que justifica as atitudes e posturas presentes,
isto é, o esforço na construção do sujeito sem-terra histórico. Por outro lado, observa-se,
também, o cultivo de símbolos e de momentos de vivência mística em que os
sentimentos emanam como uma espécie de “revolta contra o tempo concreto e histórico,
sua nostalgia por uma volta aos tempos míticos do começo das coisas (ELIADE, 1992,
p. 7). Esse comportamento do grupo permite entrever que o desejo do homem arcaico
em ordenar o tempo concreto e histórico por meio de arquétipos permanece no
imaginário de sociedades modernas, deixando transparecer a sobrevivência de uma certa
valorização metafísica da existência humana.
Para Eliade, o símbolo, o mito e o ritual expressam a necessidade de afirmação
coerente sobre a realidade final das coisas, constituindo um sistema que pode ser visto
como aquele que compõe a metafísica. Objetos e atos tornam-se reais e adquirem um
determinado valor “porque participam, de uma forma ou de outra, de uma realidade que
os transcende” (ELIADE, 1992, p. 17-18). Nesse sentido, a elaboração dos símbolos do
MST, já comentada no início do capítulo, remete o problema da existência humana e da
história para o horizonte da espiritualidade arcaica e, conseqüentemente, para uma
leitura metafísica.
Assim, ao mesmo tempo em que os intelectuais e pensadores do MST demonstram
a preocupação na organização da memória histórica do movimento, também revelam a
condição metafísica da sua existência. Quando, na Encruzilhada Natalino, os sem-terra
50
demarcaram o território da fazenda invadida com uma cruz, símbolo da fé cristã,
reeditaram, modernamente, a atitude de descobridores e colonizadores na tomada de
posse das regiões recém-descobertas. Conforme lembra Eliade, esse gesto corresponde a
um modelo mítico que reporta para a ordenação do caos, pois, “quando se toma posse
de um território – isto é, quando começa sua exploração -, são realizados rituais que
repetem de maneira simbólica o ato da Criação: a área não-cultivada é primeiro
cosmicizada, antes de ser habitada” (ELIADE, 1992, p. 21).
Do mesmo modo que os conquistadores portugueses e espanhóis tomaram posse
dos territórios que descobriram e conquistaram levantando neles uma cruz, repetindo
assim, em nome de Jesus Cristo, o ato da criação, e os conquistadores ingleses o fizeram
em nome do rei da Inglaterra, também o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do
Brasil repetiu o gesto levantando uma cruz no primeiro grande evento de invasão e
tomada de posse de um território em sua história. Ocupado com a finalidade de ser
habitado ou utilizado como lugar para se viver, esse território deve ser transformado,
antes de mais nada, do caos para o Cosmo por meio de um ritual.
Dessa maneira, a cruz da Encruzilhada Natalino não representou apenas a união do
grupo em torno da fé católica, como observou Morissawa, referindo-se à mística do
Movimento, mas, também e principalmente, a repetição de um gesto “que representa
apenas a cópia do ato primordial da criação do mundo” (ELIADE, 1992, p. 22). A
consagração do espaço conquistado ou invadido coincide com o momento mítico do
princípio da criação. Nas invasões da história recente do Movimento, a cruz dá lugar à
bandeira do MST, símbolo permanente da mística que identifica o grupo social como
sociedade organizada no interior da nação nacional. A repetição desse gesto, no
entender de Eliade, garante a realidade e a durabilidade de uma construção, “não apenas
pela transformação do espaço profano em espaço transcendental, (o Centro), mas
também pela transformação do tempo concreto em tempo mítico” , ou seja, “ele se
desenvolve não só num espaço consagrado [...], mas também num tempo sagrado, era
uma vez (in illo tempore, ab orige), quando o ritual foi celebrado pela primeira vez por
um deus, um ancestral, ou um herói” (1992, p. 29).
Essa comparação remete para uma questão colocada no início do capítulo. Quando
o MST foi interpretado como um movimento religioso por conta da sua mística, a
reação de Bogo se deu no sentido de reiterar a necessidade em alimentar o vazio
material e espiritual dos camponeses em luta sem que, no entanto, essa manifestação se
estabelecesse por meio de um grande homem, um herói, ou um líder espiritual. A
51
maneira como o Movimento entende essa prática acontece de forma diversa daquela
observada nas lutas messiânicas, como foi o caso de Canudos e do Contestado. Nessas
revoltas, a religiosidade do povo era direcionada por um líder carismático que, enquanto
homem em posição espiritual e intelectual superior aos demais camponeses,
representava o elo com o Pai. “No MST, embora tenham existido e existam líderes que
se destacam, não existe esta figura do grande homem, do Um”, diz Eliane Domingues14
ao comentar a dimensão religiosa presente na luta pela terra. No resumo da autora:
Em Canudos e no Contestado, Antônio Conselheiro e José Maria vêm ao encontro deste anseio do “pai” . Eles representam o que Freud (1939/1996c) define como grande homem: aquele especificamente dotado de características que são valorizadas, não físicas, mas espirituais, psíquicas e intelectuais. O grande homem não é aquele que se destaca em uma determinada área, mas alguém que comete um grande feito. Por isso, chefes militares, governantes e conquistadores são os que mais recebem este qualificativo. No entanto, mais do que uma definição única do que seria grande homem ou de quais seriam suas características, o que mais interessa a Freud são os meios que lhe permitem exercer influência sobre os demais. Estes meios são dois: a personalidade e a idéia que sustenta (DOMINGUES, 2007).
O MST constitui-se um movimento organizado com programas e estratégias
bastante elaboradas, além do que e principalmente, não centralizada na figura de um
líder, do Um, como os movimentos messiânicos que antecederam o Movimento. Então,
observa Domingues, se Freud, assim como Marx, “atribui à religião uma origem social
e subjetiva” , sendo a primeira “representada pela cultura que impõe sofrimento e uma
série de restrições à satisfação das pulsões; e a subjetiva – que ele (Freud) privilegia –
tem como base o "sentimento de impotência humana" e a "nostalgia do pai", é possível,
em desacordo com as proposições de ambos os pensadores,
atribuir à religião um papel significativo no processo de fortalecimento das ações coletivas, principalmente quando o MST estava se constituindo e construindo um espaço de “desalienação” dos sujeitos que viriam a integrar o movimento. Isto não invalidaria as
14A autora apresenta sua reflexão sobre a religiosidade dos movimentos sociais no campo no artigo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Contestado e Canudos: algumas reflexões sobre a religiosidade. Disponível em www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos08/artigo03.pdf . Acessado em 16/12/07.
52
proposições destes últimos autores sobre as origens social e subjetiva da religião, mas mostra que o mundo real deve constantemente inquietar as teorias com suas contradições e que ainda há muito que se pesquisar (DOMINGUES, 2007).
Assim, verificando as características da expressão religiosa no interior desses
movimentos, é necessário distinguir, definitivamente, a concepção de credo religioso,
isto é, religiões instituídas no meio social histórico, da mística do MST. Sobre essa
questão, um fenômeno bastante elucidativo foi verificado em visita ao pré-assentamento
Zumbi dos Palmares II, situado entre os municípios de Sinop e Cláudia, no norte de
Mato Grosso. A coexistência de espaços destinados ao culto religioso tradicional e aos
rituais místicos específicos do Movimento evidencia a distinção que o sem-terra
estabelece entre religião e mística. Logo na entrada do terreno, dois barracos chamam a
atenção pelas placas que ostentam na fachada: Assembléia de Deus e Congregação
Cristã no Brasil. Mais acima, em lugar de destaque, tremula a Bandeira do MST,
símbolo maior do Movimento, num mastro erguido ao lado da escola e do barracão
onde acontece a mística, durante as assembléias semanais do grupo.
A convivência pacífica das manifestações religiosas, conforme explica o militante,
professor e líder comunitário de Zumbi dos Palmares II15, caracteriza o perfil do
Movimento: “O MST é aberto e democrático a qualquer religião, da umbanda ao crente,
aqui dentro pode ser praticado qualquer religião, qualquer uma, se organizou pode fazer
seu culto. Nós somos uma comunidade que respeita todas as religiões” . A mística, no
entanto, nada tem de sentimento religioso. Conforme afirma Noir Castelo Júnior, trata-
se da emoção de cada integrante do Movimento em dedicar a vida pela luta, pela causa
como um todo, pelo resgate da dignidade de cada indivíduo: “Cada reunião nossa nós
fizemos a mística [...] para que a gente não esqueça das coisas do nosso povo, da
história” , diz o militante.
Pode-se inferir, então, ao observar a configuração da mística do MST no contexto
social do grupo, que a ausência de um Pai, de um Uno, é substituída, na mística, pelo
sentimento de confiança nos propósitos do grupo que mantém aceso o ideal de uma
construção coletiva em nome da luta pela reforma agrária no Brasil. Se, por um lado, os
rituais da mística lembram as características apontadas por Mircea Eliade sobre a
repetição de gestos simbólicos como arquétipos da espiritualidade arcaica ainda
15 No anexo C, o teor da conversa com Noir Castelo Júnior, ocorrida no dia 12 de janeiro de 2008.
53
presentes em algumas sociedades modernas; por outro, não se pode atribuir à mística do
Movimento as concepções sobre religião tomadas a Marx e Freud e pensadas por Eliane
Domingues para entender a religiosidade dos movimentos sociais no campo. A autora
conclui com Stédile que, embora a prática da Teologia da Libertação tenha
proporcionado “a mudança de perspectiva da espera da terra nos céus, para a
organização da luta pela terra e conscientização dos camponeses” (DOMINGUES,
2007), ainda assim ela não poderá ser considerada conforme aquela religiosidade
alienante apontada por Freud. Antes disso, trata-se de pensá-la como uma religião
“detentora também de um potencial subversivo, de crítica e questionamento, que pode
fortalecer a ação de indivíduos ou grupos contra a ideologia dominante” , conclui a
autora.
Isso posto, convém observar que a mística do MST é um dos elementos culturais
que caracteriza o grupo como uma organização social no interior da nação, com
símbolos próprios de identificação. Essa caracterização implica redimensionar o tempo
nas narrativas modernas que localizam o povo ou a nação como sujeito e, ao mesmo
tempo, objeto de narrativas sociais e literárias. As fontes simbólicas e afetivas da
identidade cultural modificam o espaço horizontal do povo-nação, pois esse espaço
presume um tempo fixo, homogêneo da representação da nação. Sobre esse aspecto vale
lembrar a observação de Homi Bhabha (1998), que ao citar a leitura feita por Houston
Baker para interpretar e falar sobre o Negro no Renascimento do Harlem, diz que as
narrativas nacionais representam as visões de mundo de senhor e escravo. Essa postura,
segundo o autor, só pode ser tomada como comum a todos por não manifestar as
particularidades de nenhum. Ora, pensando nas imensas distâncias existentes entre as
colchas de retalhos que compõem o imaginário dos indivíduos sociais e a
horizontalidade que as narrativas históricas pretendem, é possível questionar a narrativa
horizontal e linear que supõe um sujeito-ideal capaz de negar uma série de identidades
individuais, de classe e de gênero em favor de uma suposta linearidade.
O aspecto pedagógico que domina o historicismo deve movimentar-se, então, em
direção ao caráter performativo que introduz na narrativa o entre-lugar, o enquanto isso,
pois a idéia de nação implica uma série de divisões no interior dela mesma. Nesse
sentido, o performativo tensiona as zonas de controle e de renúncia, de força e de
dependência, de exclusão e de participação, e, ainda, de recordação e de esquecimento.
No caso dessa última tensão, o esquecimento necessário para a configuração de uma
nação hegemônica e coletiva conviveria com a memória enraizadora que constitui os
54
sujeitos enquanto indivíduos no interior da nação. Esse enraizamento elaborado no
contexto cultural do grupo social Sem-terra, no interior da nação, escapa à narrativa
horizontal da nação imaginada como sincronia de símbolos representativos de todos os
indivíduos, de todo um povo coeso e irmanado em torno dos mesmos sentimentos.
Assim, sem se anular como sujeito, o sujeito dividido em objeto e sujeito não será
mais parte de um povo “contido naquele discurso nacional da teleologia do progresso,
do anonimato de indivíduos, da horizontalidade espacial da comunidade, do tempo
homogêneo das narrativas sociais” (BHABHA, 1998, p. 212). O tempo performativo
revela a zona de instabilidade oculta em que o povo se movimenta no sentido de
aprender a conhecer-se para melhor pertencer-se. Esse movimento se dá no interior da
nação, identificada à impossibilidade de congregar o presente pleno e a visibilidade de
um passado universal consensual. A suposta solidez sociológica da narrativa da coesão
nacional dá lugar ao enquanto isso que converte em signo ambivalente o tempo e o
espaço, introduzindo no “presente enunciativo da nação um tempo diferencial e iterativo
de reinscrição” (BHABHA, 1998, p. 225). O fator que introduz no presente enunciativo
da nação esse tempo diferencial e iterativo de reinscrição consiste na vontade de um
povo em ser uma nação. Essa vontade elabora-se na condição de esquecer ou, ser
obrigado a esquecer a violência envolvida no estabelecimento dos escritos da nação,
como uma espécie de subtração original, constituindo o começo da moderna narrativa
de nação.
As reflexões expostas pelo autor e a reelaboração empreendida a partir do exemplo
do MST na constituição da nação nacional, da nação como grupo específico inserido na
nação maior, apontam para o performativo do tempo e do espaço na configuração da
idéia de nação moderna e suas implicações identitárias. A vontade em constituir uma
nação, o povo-como-um, uma coletividade coesa irmanada em torno de seus símbolos,
introduz na narrativa o entre-lugar que pensa as margens enquanto geradoras de
histórias dentro da História elaborando a narrativa das identidades individuais e
coletivas, performativas. Esquecendo e lembrando, o povo-nação reelabora a narrativa
nacional instaurando um tempo oscilante, produzindo uma estrutura simbólica da nação
nacional apenas como comunidade imaginada.
Nessa perspectiva, a concepção de entre-lugar traz à tona a reflexão elaborada
por Hugo Achugar em seu Planetas sem boca (2006), mais precisamente no ensaio
Espaços incertos, efêmeros: reflexões de um planeta sem boca. Ao abordar a questão da
latino-americanidade como o lugar de ser perifericamente Outro, o autor discute em que
55
medida o sujeito da enunciação manifesta seu discurso balbuciante. O balbucio
consistiria na articulação de uma resposta à qualificação desse sujeito como deslocado,
como alguém que fala do lugar de desprezo e do não-valor. A resposta surgiria, então,
como discurso elaborado por “aqueles que falam da periferia ou desse lugar que alguns
entendem como espaço de carência” (ACHUGAR, 2006, p. 14). Essa resposta se
constituiria como a produção de valor a partir da periferia que, entre o real e o
imaginado, a circunstância e o desejo, torna-se a expressão daquilo que é imaginado
como lugar de enunciação. Sendo um “ lugar de enunciação é, ao mesmo tempo, um
lugar concreto, verdadeiro, e um lugar teórico ou desejado” , acentua Achugar, pois
“todo discurso é sempre formulado a partir de um lugar que é verdadeiro e imaginado,
concreto e desejado, histórico e ficcional” (2006, p.19).
Pensando com o autor, entende-se, então, que tomando o poder da periferia,
do Outro, da margem, do marginal e do marginalizado na produção de valor o MST,
como nação imaginada no interior da nação nacional, produz e consagra o seu discurso,
isto é, seus valores. Desse modo, ao falar de “ lugar” , fala-se de uma posição construída
e simbólica, uma vez que, no entender de Achugar, “todos os lugares são construções
metafóricas, mas enquanto algumas não necessitam ser justificadas, outras o necessitam,
pois são como planetas sem boca” (2006, p. 22).
Assim, o patrimônio simbólico construído pelo MST manifesta, em certa medida,
a ambigüidade característica dos conceitos, tanto de identidade quanto de memória. No
entanto, observa-se nas manifestações culturais do Movimento, a preocupação no
aprofundamento da consciência histórica que, segundo Meneses, consiste não apenas
em informar-se das coisas outrora acontecidas, mas perceber o universo social como
algo submetido a um processo ininterrupto e direcionado de formação e reorganização.
Nessa perspectiva, a partir do que Meneses chama de plataforma de referência, a mística
do MST constitui-se como um dos referenciais do movimento em que a memória
“ funciona como instrumento biológico-cultural de identidade, conservação e
desenvolvimento, que torna legível o fluxo dos acontecimentos” (2004, p. 85).
Também Gilbert Durand, ao falar sobre memória e imaginário, diz em sua obra As
estruturas antropológicas do imaginário, mais especificamente no Livro Terceiro –
Elementos para uma fantástica transcendental, que “a ordem da vontade, do vital que
se opõe à inércia e ao automatismo, é justamente o poder de parar, o poder de encarar,
em contraponto do destino, outros possíveis, diferentes dos que são automaticamente
encadeados pelo determinismo material” (2002, p. 400). Esse processo, confluente aos
56
aspectos observados no desenvolvimento da mística do MST e à idéia exposta por
Meneses sobre a plataforma de referência constituinte da memória e, por conseqüência,
da identidade de um determinado grupo social, no caso o Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra do Brasil, converge para o que Durand aponta sobre as características da
memória e do imaginário:
Longe de estar ao lado do tempo, a memória, como o imaginário, ergue-se contra as faces do tempo e assegura ao ser, contra a dissolução do devir, a continuidade da consciência e a possibilidade de regressar, de regredir, para além das necessidades do destino. É essa saudade enraizada no mais fundo do nosso ser que motiva todas as nossas representações e aproveita todas as férias da temporalidade para fazer crescer em nós, com a ajuda das imagens das pequenas experiências mortas, a própria figura da nossa esperança essencial (DURAND, 2002, p. 403).
Assim, a memória não é mera intuição do tempo, antes escapa a ele no triunfo de
um tempo reencontrado. Esse aspecto da memória, que permite voltar ao passado,
autorizando em parte a reparação dos ultrajes do tempo, pertence ao domínio do
fantástico. No caso da mística do MST, ato cultural em que se manifesta, também, a arte
produzida por seus integrantes, a memória organiza esteticamente a recordação. Por isso
Durand faz suas as palavras de Gusdorf ao dizer que “o tempo do homem é a
possibilidade de contar o seu passado e de premeditar o seu futuro, como também a de
romancear a sua atualidade” (DURAND, 2002, p. 401).
Desse modo, a partir do breve levantamento histórico da constituição do MST, dos
aspectos apontados pela literatura específica do grupo, produzida por seus pensadores, e
dos conceitos de cultura, identidade, memória e imaginário discutidos pelos autores e
críticos citados, é possível compreender e afirmar que a mística do Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra apresenta, assim como a memória, o caráter fundamental do
imaginário que é ser eufemismo e, por isso mesmo, antidestino que se ergue contra o
tempo. Nesse contexto, a leitura da produção poética da sem-terra Adriane Rocha
permite entrever a criação artística que revela o grande museu imaginário da arte em
honra do homem. O poder de melhoria do mundo que há no homem, lembra Durand,
emerge em sua criação, na “transformação do mundo da morte e das coisas no da
assimilação à verdade e à vida” (2002, p. 404-405). Por isso, reconhecendo à
imaginação, em todas as suas manifestações religiosas e místicas, literárias e estéticas,
esse poder de erguer suas obras contra o imediatismo de uma vivência puramente
57
material, a arte tem o “papel de domesticar o tempo e a morte e de assegurar no tempo,
aos indivíduos e à sociedade, a perenidade e a esperança” (DURAND, 2002, p. 405).
58
I I – A TRAJETÓRIA ESTÉTICA NA EXPERIÊNCIA CRIADORA DE
ADRIANE ROCHA
Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender os olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.
(Pero Vaz de Caminha)
1. Literatura e função social
A poesia produzida por Adriane Rocha constitui-se uma manifestação da arte que
por sua vez é tida como uma espécie de revolução simbólica da realidade, característica
de toda obra literária. No entanto, ao problematizar a questão da função social da
literatura, Geraldo Maia (2007) observa, em artigo sobre Literatura de Classes16, que a
inclinação em reduzir a literatura ao seu caráter meramente literário, desprovido de
qualquer praticidade, resiste até hoje e “a tendência dominante ainda é a da literatura
que se mantem no vácuo, acima das lutas de classe” . Entretanto, segue o poeta, por
outro lado permanece “o caráter transgressor, rebelde, desafiador e revolucionário da
literatura que exprime em seu bojo as grandes demandas das revoluções” . Nesse
contexto, é necessário considerar que as classes revolucionárias de agora não vêem mais
nas condições de vida da sociedade burguesa os seus referencias, pois essas classes
organizam-se em movimentos, grupos, associações, espaços, cooperativas, ongs e
sindicatos, ou seja, esses grupos construíram, ou constroem, a sua própria identidade.
Desse modo, os referenciais desses grupos são “a aldeia, o quilombo, a terra-mãe-áfrica,
a caatinga, a favela, a feira, o lixão, o assentamento, a invasão” (MAIA, 2007).
Também nas metáforas de Bogo, as manifestações revolucionárias dos poetas,
escritores, contadores de fábulas, músicos que “dormem dentro de nós” , revelam o novo
sujeito social que não sente “medo de expor na galeria de arte da história este quadro, e
ter consciência de que é possível melhorá-lo, agora que temos mais consciência da
importância da nossa existência” (BOGO, 2000, p. 46).
16 Literatura e luta de classes, artigo publicado na revista eletrônica Cronópios – Literatura e arte no plural, em 05/05/2007. Geraldo Maia é poeta, ator e diretor teatral. Disponível em: attp � ���������� ��� ��� ���� ���� � ������������ � !�"#��$��%!&� '� ���� $�����(�� )�*,+�-/.�+0��123"��3��$�)� 4"��5.�-���.�6���+�.�.�7�80+�+,�:9�6�;/�
59
A reflexão elaborada por Candido (2000) sobre os fatores que acentuam a
participação do artista nos valores sociais comuns ou peculiares a uma sociedade dada,
constituem processos complementares que equilibram a socialização do homem e, na
mesma medida, da arte. A dialética entre os fatores que o crítico chama de integração e
diferenciação, determinados pelas forças sociais condicionantes, estabelece, conforme a
ocasião de produção da obra e da necessidade de sua produção, a sua caracterização ou
não como um bem coletivo. No entanto, lembra o autor, a função social se faz presente
na obra alheia à vontade e à consciência de autores e receptores, pois essa função já se
constitui como tal pelo fato de a linguagem ser o instrumento natural da produção
literária legitimando, por isso, sua função social enquanto veículo transmissor de certa
visão de mundo. Vale dizer, então, que a função social “decorre da própria obra, da sua
inserção no universo de valores culturais e do seu caráter de expressão, coroada pela
comunicação” (CANDIDO, 2003, p. 46).
Roland Barthes, pensando nos detalhes da linguagem e da literatura que constituem
o próprio ser da literatura, também lembra que ela é feita com linguagem, ou seja, “com
uma matéria que já é significante no momento em que a literatura dela se apodera”
(2003, p. 170). Desse modo, o que se consome não é a idéia de literatura, mas um
significado a mais que dela se colhe. Por isso, para significar, é necessário que a
literatura deslize para o sistema da linguagem, alcançando, assim, o fim comum às duas:
comunicar. Funda-se, então, a incessante troca entre os dois sistemas: “vejam minhas
palavras, sou linguagem; vejam meu sentido, sou literatura” (BARTHES, 2003, p. 171).
Retornando a Candido, entende-se com o autor que será o grau de sublimação
expresso na obra o elemento que determina a diferença entre a arte “expressão da
sociedade” e a arte “social, isto é, interessada em problemas sociais” (2000, p.23. Grifo
do autor). O crítico apresenta, então, a distinção entre o que considera dois tipos de arte:
arte de agregação e arte de segregação, veiculado-os aos dois fatores expostos acima, a
integração e a diferenciação. No caso da arte literária, o autor diz não ser possível
estabelecer distinção entre ambos os tipos uma vez que se complementam conforme a
dialética entre a expressão grupal e a característica individual do artista e explica que
ambas as referências tiveram a virtude de mostrar que a arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção de mundo, ou reforçando neles o sentimento de valores sociais. Isto decorre da própria natureza da obra e independe do grau de
60
consciência que possam ter a respeito os artistas e os receptores de arte (CANDIDO, 2000, pp. 20-21).
Sobre esse aspecto, o crítico observa também que a arte, sistema simbólico de
comunicação inter-humana, manifesta influências concretas exercidas pelos fatores
socioculturais. Embora seja “difícil discriminá-los, na sua quantidade e variedade, [...]
pode-se dizer que os mais decisivos se ligam à estrutura social, aos valores e ideologias,
às técnicas de comunicação” (CANDIDO, 2000, p. 21). Assim, a sublimação que
direciona a ação criadora do artista segundo estes ou aqueles fatores, conforme se
manifestem em maior ou menor grau de consciência, determina a função social da
literatura. Se a primeira, a arte de agregação, inspira-se principalmente na experiência
coletiva e visa a meios comunicativos acessíveis, procurando incorporar-se a um
sistema simbólico vigente, partindo do já estabelecido como forma de expressão de
determinada sociedade, e a segunda, a arte de segregação, “se preocupa em renovar o
sistema simbólico, criar novos recursos expressivos e, para isto, dirige-se a um número,
ao menos inicialmente, reduzido de receptores, que se destacam, enquanto tais, da
sociedade”, então, afirma Candido (2003, p. 23), os dois tipos de arte se complementam.
A agregação e a segregação ocorrem em toda obra em dimensão variável conforme
o jogo dialético entre a expressão grupal e as características singulares do artista. No
entanto, se um aspecto predominar sobre o outro, a distinção ainda pode ser mantida,
uma vez que a reflexão do crítico foi proposta com o pensamento em dois fatores muito
gerais e importantes: a integração e a diferenciação. No caso da integração esses fatores
tendem a acentuar no indivíduo ou no grupo a participação nos valores comuns da
sociedade, ou, ao contrário, no caso da diferenciação tendem a acentuar as
peculiaridades, as diferenças existentes em uns e outros. Segundo o autor, “são
processos complementares, de que depende a socialização do homem; a arte,
igualmente, só pode sobreviver equilibrando, à sua maneira, as duas tendências
referidas” (CANDIDO, 2003, p. 23).
Em outro texto, falando sobre O direito à literatura, Cândido chama a atenção
para a similaridade entre os níveis social e ideológico da literatura que deixam entrever,
imediatamente, as concepções de um determinado autor. Para o crítico, nos casos em
que essa intenção assumir características de propaganda, ideologia, crença ou adesão
será literatura social, pois estará tratando “de uma realidade tão política e humanitária
quanto a dos direitos humanos, que partem de uma análise do universo social e
61
procuram retificar as suas iniqüidades” (2004, p. 180). Citando como exemplo a poesia
abolicionista de Castro Alves, o autor adverte que ela atua não apenas pela eficiência de
sua organização formal e pela qualidade do sentimento que exprime, mas também pela
natureza de sua posição política e humanitária. Desse modo, a literatura empenhada
resulta de produções nas quais o autor deseja assumir uma determinada posição face aos
problemas. Essa posição pode ser ética, religiosa, política ou simplesmente humanística.
Ao falar sobre O caráter social da ficção do Brasil (1987), Fábio Lucas chama a
atenção para a maneira como o texto literário, a partir do romance nordestino, traz à
tona o quadro social na agricultura da época. O autor remonta essa tradição nordestina
para o ano de 1890, quando Rodolfo Teófilo publica A fome, romance no qual o relato
dos sofrimentos de uma família sertaneja desvela-se como protesto contra “o descaso do
Governo em relação às populações abandonadas” (LUCAS, 1987, p. 46). O crítico
enumera, então, obras que, desde Luzia-Homem (1903), romance considerado precursor
da saga nordestina, trazem a vida no campo como elemento predominante até o período
da repressão pós-64. Esses romances manifestam o caráter social na medida em que
retratam “a disparidade social do País, [...] a atuação simultânea das forças telúricas e
das instituições humanas para o esmagamento do homem e para tornar mais
pronunciado o desnível entre as classes” (LUCAS, 1987, p. 46). Romances como A
bagaceira (1928) e O boqueirão (1935) de José Américo, seguidos pela obra pessimista
de José Lins do Rego, de quem Lucas destaca o romance O moleque Ricardo (1935),
por julgá-lo “o depoimento mais eloqüente do autor a respeito da questão social” (1987,
p. 37), são lembrados pela economia do discurso que pesa tanto quanto as circunstâncias
sociais pesam sobre as consciências.
Da produção de Jorge Amado o crítico destaca o romance Terras do sem fim
(1942) por ilustrar “bem a luta pelo domínio da terra movida pela cobiça e escrita com
sangue” (1987, p. 50), pois a opressão dos humildes aparece através da epopéia dos
coronéis do cacau. O romance Irmão Joazeiro (1960), de Francisco Julião, é posto em
relevo por não apresentar “traços demagógicos exagerados ou socialistas, como em
tantas outras obras de inspiração” , observa Lucas (1987, p. 53). A relação
patrão/empregado, fragmentada em vários episódios, confere unidade à obra,
funcionando como uma personagem do romance. Nas palavras de Lucas:
A luta é para ter terra onde plantar e morar, mas uma luta impotente e passiva. [...] O dono das terras aproveita-se destas e do esforço dos camponeses. Estes, contudo, é que revelam amor à terra e ao cultivo
62
do solo. [...] O latifúndio, a essa época, tem nova política: quer as terras para a atividade pecuária, pouco se importando com o infortúnio dos camponeses. [...] Pode-se dizer que não tem propriamente personagem central: conta a vida de várias famílias, onde a relação dominante é patrão/empregado (1987, p. 53-54).
Outra obra de valor literário inegável que traz como tema a exploração humana no
campo é Selva Trágica (1959), de Hernâni Donato. Ambientado no sudeste de Mato
Grosso17, o romance trata das “dantescas condições de trabalho da região” ,
constituindo-se “um dos mais altos momentos da novelística de conteúdo social no
Brasil (LUCAS, 1987, p. 53-54). A relação entre os ervateiros e a Companhia que
detinha o monopólio sobre a exploração dos ervais e, na mesma proporção, sobre os
empregados é contada em histórias de amor paralelas, episódios de fuga e conseqüente
caçada humana.
Sobre o ciclo nordestino, Lucas avalia as obras de Graciliano Ramos como as mais
importantes do romancista no conjunto de sua obra, “pelo seu acabamento, pelas
qualidades literárias e pela implantação de um estilo” (1987, p. 56). São Bernardo
(1934) e Vidas secas (1938) são reconhecidos exemplos de romances que colocam a
descoberto quadros sociais que promovem a marginalização e a miséria material e
humana.
Nessa perspectiva, inscrevendo-se nesse mesmo tema que desvela a relação do
homem com a terra, a criação poética de Adriane Rocha manifesta uma função social
que comporta o papel que a obra exerce no estabelecimento de relações sociais, na
satisfação de necessidades espirituais e materiais. Conforme considerações de Candido,
trata-se de uma poética que deixa transparecer a conservação ou alteração de uma certa
ordem na sociedade revelando, por meio do grau de sublimação expresso em sua obra,
uma arte interessada nos problemas sociais de seu povo e, por isso, social. No entanto,
ao tomar como tema gerador a Terra, a poeta não expressa apenas as mazelas do povo
sem-terra, mas também a degradação da Terra e, por conseqüência, da humanidade.
Essa característica da estética rocheana conduz a sua obra para a função total da
literatura, como será visto mais adiante.
2. Literatura e função ideológica
17 Vale lembrar que à época da publicação do romance, o Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul ainda se constituíam como um único Estado da Federação.
63
Considerando-se a ideologia um nível de significação ou um sistema de
representações, ela manifesta, então, um discurso que não pode ser confundido com
uma função mediadora. Essa observação de Fábio Lucas revela a preocupação do crítico
em desmascarar o falso conceito de ideologia, que a aproxima, na literatura, ao
conteúdo, modismo dos que trataram, com entusiasmo ou desprezo, da literatura
engajada. Complementando a reflexão, Lucas dialoga com o pensador argentino Eliseo
Verón que adverte: “Na análise de textos, a ideologia não tem nada a ver
necessariamente com o que se designou na velha tradição lingüística por conteúdo”
(apud LUCAS, 1985, p.16). Por isso, a oscilação entre ideologia e visão de mundo leva
à revisão de conceitos já estabelecidos, mas não de todo estabilizados.
Reportando-se ao conceito marxista, Lucas lembra que as ideologias “não têm
histórias, não evoluem; são, ao contrário, os homens que, desenvolvendo sua produção e
seu comércio material, transformam, ao mesmo tempo, seu pensamento e seus
produtos” (1985, p. 13). Vale considerar, então, a advertência de Louis Althusser e de
seus discípulos: “há uma distinção radical entre a teoria (saber rigoroso) e a ideologia
(consciência deformada): o pensamento do jovem Marx ainda se apresenta como
demasiadamente ideológico” (apud LUCAS, 1985, p. 13), portanto, deformado. É
Lucien Goldmann quem Lucas traz ao texto para tentar distinguir em categorias as
ideologias e as visões de mundo. Para o pensador, a distinção entre ambas consistiria no
“caráter parcial e, por isso mesmo, deformador das primeiras e total das segundas”
(apud LUCAS, 1985, p. 13). Também Michel Bernardi é convocado pelo autor para
relatar o modo como usa essas duas categorias. Diferente de Goldmann, Bernardi
entende que “a ideologia é, pela própria definição, consciente, enquanto a visão de
mundo pode ser implícita, imagem obscura ou confusa na consciência” (apud LUCAS,
1985, p. 13-14). E, por último, a proposição do crítico português Eduardo Prado
Coelho:
A ideologia oscila assim entre dois extremos: uma excessiva proximidade do real (uma alusão ao real imediato) e um desconhecimento efetivo desse real. Na medida em que, dominada pelas pressões do próprio real, ela só vê nele aquilo que está interessada em lá ver, a sua alusão ao real é ilusão (apud LUCAS, 1985, p. 14).
64
Desse modo, a discussão acerca de ideologia remete o analista da obra literária
para um emaranhado de concepções muitas vezes incompatíveis entre si. Sem pretender
esgotar a questão, importa reconhecer que todo texto literário carrega em si uma trama
de segmentos herdados, quer sejam eles da sabedoria geral, de concepções políticas, de
crenças religiosas ou posições filosóficas, quer sejam chamados ideologia ou visão de
mundo, quer se constituam em ação consciente ou inconsciente do artista, imprimem na
obra a função ideológica.
De toda forma, a função ideológica, imbricada na função social, manifesta certos
desígnios voluntários do artista em revelar uma concepção ideológica específica. Do
mesmo modo, também o leitor de determinado grupo social pode desejar que a obra lhe
mostre, expresse ou represente, certos aspectos da realidade. Sendo assim, essa função
se revela mais aparente na obra literária nos casos em que o artista visa a exprimir suas
convicções políticas, religiosas ou filosóficas, como na função social. No entanto, a
função ideológica é considerada por Candido a menos importante uma vez que o
desígnio consciente do artista em formular uma determinada idéia poderá configurar-se
como ilusão, desmentida pela estrutura objetiva do que escreveu. Por isso, essa função
ou, o desígnio consciente, voluntário, tanto da criação quanto da recepção, “é
importante para o destino da obra e para sua apreciação crítica, mas de modo algum é o
âmago de seu significado” (CANDIDO, 2000, p. 46).
Para Bosi a ideologia “é uma percepção historicamente determinada da vida” que
“passa a distribuir valores e a esconjurar antivalores, junto à consciência dos grupos
sociais” (2000, p. 138). Quando no sistema poético se defrontam os tempos “corpóreo,
inconsciente, ciclóide, ondulatório, figural, da frase concreta; e o tempo quebrado de
histórias sociais” , é possível vislumbrar, no nível da consciência histórica do poeta
moderno, o desejo indestrutível “que pulsa na imagem e no som” (BOSI, 2000, p. 138-
139). Por isso,
Já não bastam à palavra poética as mediações naturais da imagem e do som; entra na linha de frente do texto o sistema ideológico de conotações que vai escolher ou descartar imagens, e trabalhar as imagens escolhidas com uma coerência de perspectiva que só uma cultura coesa e interiorizada pode alcançar (BOSI, 2000, p. 138).
Esse sistema ideológico de conotações parece ser o responsável pela linha
oscilante entre as funções ideológica e social. Ora, se existem valores dominantes em
cada formação social, então haverá também uma conotação própria para estas ou
65
aquelas imagens, de acordo com as perspectivas, esperanças, medos, frustrações e
inquietações de cada cultura.
Também a reflexão de Maia (2007) tende a considerar a conotação própria que
cada grupo revolucionário imprime em sua arte como uma característica da função
ideológica. Empenhando-se em preservar a originalidade de suas culturas, seus idiomas,
sua arte, sua literatura e sua poesia os mais variados grupos sociais se dizem e se
reconhecem numa perspectiva ideológica peculiar. Essa coerência de perspectiva das
imagens somente poderá manifestar-se em culturas coesas e interiorizadas como acorre
nos guetos, nas praças, nas periferias, nas aldeias, nos lugarejos distantes, nos
acampamentos, nos assentamentos, nas invasões de terras e de prédios. Trata-se,
portanto, da literatura de cordel, da poesia de rua, do rap, dos escritores e poetas
marginalizados, “a grande maioria excluída que mesmo assim faz arte, faz poesia, faz
literatura, mas uma literatura revolucionária porque transformadora, anunciadora,
reinventora da revolução alinhada com a ancestralidade original, autóctone” .
Retomando Lucas, conclui-se com o crítico que a obra de Adriane Rocha
desempenha a função ideológica na medida em que manifesta o sistema de
representações de um grupo social coeso e historicamente situado. Desse modo, a
função ideológica pode identificar o texto literário como “uma das formas com que o
homem percebe o mundo e representa a realidade de modo coerente, isto é, racional,
ajustando-se a ela quanto às posições que toma e ao papel que desempenha na
sociedade” (LUCAS, 1985, p. 85).
3. Pátria Sem-Terra: Literatura e função total
Por função total entende-se a capacidade da obra em desligar-se de fatores que a
prendem a um momento e lugar determinados, manifestando a “elaboração de um
sistema simbólico que transmite certa visão de mundo por meio de instrumentos
expressivos adequados” (CANDIDO, 2003, p. 45). Assim, segundo a observação do
crítico, essa função manifesta, na poética de Adriane Rocha, elementos constitutivos de
análise na medida em que tematiza a Terra, tema da mais acentuada intemporalidade.
Toda obra literária pressupõe a ordenação do caos, promovida pelo arranjo especial de
palavras que fazem surgir um novo sentido. Quando a obra impressiona por conta da
ordenação articulada de quem a produziu, o seu conteúdo atuará por causa da forma,
66
e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe e que sugere. O caos originário, isto é, o material bruto a partir do qual o produtor escolheu a forma, se torna ordem; por isso, o meu caos interior também se ordena e a mensagem pode atuar. (CANDIDO, 2004, p. 178).
Desse modo, é necessário que a forma ordene adequadamente o conteúdo para que
a literatura promova a capacidade do receptor de ver e sentir. Por isso, a função total da
literatura satisfaz necessidades básicas do ser humano, porque “ocorre humanização e
enriquecimento, da personalidade e do grupo, por meio de conhecimento oriundo da
expressão submetida a uma ordem redentora da confusão” (CANDIDO, 2005, p. 180).
Assim, toda produção alheia ao plano estético, que é o decisivo, manifestará falhas e
prejuízos à verdadeira produção literária. Visto, então, que intenção e conteúdo não
bastam, é válido dizer que apenas as funções social e ideológica, destituídas de forma,
não se constituem, ainda, literatura. É preciso que a função total, isto é, a função da
eficácia estética, conduza à eficácia humana, pois a força humanizadora da literatura
consiste na própria literatura, em sua capacidade de criar formas pertinentes aos
conhecimentos, concepções, ideologias e sentimentos que se pretende transmitir.
Um exemplo claro sobre essa eficácia estética é apresentada por Candido (1970, p.
77) em seu texto Dialética da malandragem em que a forma e o conteúdo “contribuem
para atingir essencialmente os leitores” . Reportando-se ao romance Memórias de um
sargento de milícias (1854), de Antônio Manuel de Almeida, o crítico elabora uma
análise minuciosa do plano de estilo da obra e lhe confere relevo por entender que o
“desvinculamento das Memórias em relação à ideologia das classes dominantes do seu
tempo, tão presente na retórica liberal e no estilo florido dos beletristas” , alcança, nesse
romance de costumes, “uma libertação que funciona como se a neutralidade moral
correspondesse a uma neutralidade social, misturando as pretensões das ideologias no
balaio da irreverência populesca” (CANDIDO, 1970, p. 87).
Em recente produção crítica sobre o romance realista Memórias póstumas de Brás
Cubas (1881), também Roberto Schwarz debruçou-se sobre a originalidade da forma e
suas implicações no fazer literário do mestre Machado de Assis. Para o autor, “a
ambivalência ideológica das elites brasileiras, um verdadeiro destino” (SCHWARZ,
2000, p.42), caracteriza na obra o conceito de volubilidade proposto pelo crítico. A
dialética entre algum tipo de desrespeito justificado sempre pela satisfação do amor
próprio, torna onipresentes no universo narrativo a norma e a infração, manifestando
67
uma incerteza de base que, longe de caracterizar uma falha, revela um procedimento
artístico de primeira força, atribuindo a objetividade da forma a uma ambivalência
ideológica inerente ao Brasil de seu tempo. Nas palavras do autor, “a volubilidade de
Brás Cubas é um mecanismo narrativo em que está implicada uma problemática
nacional. Esta acompanha os passos do livro, que têm nela o seu contexto imediato,
ainda quando não é explicitada ou mesmo visada” (SCHWARZ, 2000, p. 47).
Sobre a questão da forma, também Bosi observa que a conotação e a ordem de
valor manifestadas nas obras literárias constituem aspectos simultâneos de análise que,
junto com os aspectos propriamente estéticos, estabelecem o sentido da obra, pois “a
organização da superfície física é a matéria significante do poema com todos os seus
jogos de figuras e retornos, é o conjunto dos procedimentos” e, como complemento, “a
outra superfície é a que se nos dará quando apreendemos o sentido pleno do texto” , pois
a organização da superfície física não é ainda sentido (BOSI, 2000 p. 42-43). Desse
modo, a reflexão do autor conflui para o que Candido aponta como procedimento
adequado à análise:
Só a consideração simultânea das três funções permite compreender de maneira equilibrada a obra literária, seja a dos povos civilizados, seja, sobretudo, a dos grupos iletrados. Se naquela os aspectos propriamente estéticos sobressaem de maneira a realçar a função total, nesta a função social avança pra primeiro plano, tornando-a ininteligível se não for levada na devida conta (CANDIDO, 2000, p. 47).
Está explícita na obra de Adriane Rocha a simultaneidade das funções apontadas
pelos críticos como elementos determinadores da literariedade18 de uma determinada
obra. Se, por um lado, a sua produção remete para a função social da literatura por
trazer à tona elementos que manifestam a concepção crítica da artista diante dos
problemas vivenciados pelo seu povo; por outro, traduzem sentimentos e conhecimentos
específicos de um grupo social dado e, por isso cumprem uma função ideológica sem,
no entanto, comprometer a função total que toda literatura deve manifestar.
Inscrevendo-se dialeticamente entre os fatores de integração e diferenciação, isto é,
18 José Luís Jobin adverte que em cada período histórico podemos observar uma certa ordem, a partir da qual se estabelecem, com maior ou menor rigidez, as fronteiras do literário. Disponível em E-Dicionário de Termos Literários, coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, <>=�?:?�@BA C�C�DEDED4F GIHKJ�=LF�M�N/OPF%@�?QC#R�S�?�O%TU HKR�JKJKV�S/WXR�Y[Z]\�C#Z2^KC�_�Z/Z�`,F
68
movimentando-se adequadamente entre as funções social e ideológica, a poesia de
Adriane Rocha alcança, na felicidade da forma e na universalidade da temática, a
função total. Essa dialética emana na realização estética que faz convergir à intenção
voluntária da poeta o conteúdo organizado na superfície física, legitimando, pelos níveis
de sublimação alcançados na obra, a sua validade literária. Assim, a temática da Terra,
força motriz da poética de Adriane Rocha, quer seja analisada do particular para o
universal ou, ao contrário, do universal para o particular, manifesta, além da dimensão
puramente social e ideológica, a intemporalidade e a universalidade do tema,
desprendendo-o de tempos e espaços dados. Essa característica conduz a análise da obra
para além das fronteiras sociais e ideológicas sem, no entanto, comprometer essa ou
aquela função da literatura.
3.1 Geração de 30: poética do desengano
A moderna poesia brasileira registra poetas engajados que escreveram os
primeiros versos desse tipo especial de lírica originada dos compromissos sociais,
políticos e religiosos dos escritores. Na segunda fase modernista, na década de 1930,
houve uma aproximação intensa entre literatura e sociedade, sobretudo na prosa,
conforme observações de Flávio Aguiar, Nicolau Sevcenko e Fábio Lucas já pontuadas
anteriormente. Nesse período os intelectuais de esquerda passam a denunciar os
problemas sociais em seu fazer artístico e a distinção entre projeto estético e ideológico
estabeleceu uma nova poética modernista.
Sobre esse período, Luís Bueno (2007)19 chama a atenção para a alteração de
perspectivas que pontuou uma distinção válida para a toda a América Latina. Em seu
texto Nação, nações: os modernistas e a geração de 30 o crítico observa “que a geração
dos autores que participaram da Semana de Arte Moderna se preocupava, sobretudo,
com uma revolução estética, enquanto os que estrearam nos anos 30 centravam sua
atenção nas questões ideológicas” (BUENO, 2007). Se a geração da fase heróica
conviveu, ainda, com a noção predominante de país novo, que ainda não se realizara,
mas que atribuía a si mesmo grandes possibilidades de progresso futuro, na geração
seguinte a consciência nascente de subdesenvolvimento “adia a utopia e mergulha na
19 Disponível em www.fflch.usp.brdlcvposgraduacaoeclpdfvia07via07_08pdf . Acessado em 05/01/2008.
69
incompletude do presente, esquadrinhando-o, o que é compatível com o espírito que
orientou os romancistas de 30” (BUENO, 2007). Desse modo, resume o crítico,
Se o desejo de fazer uma arte brasileira, incluindo o uso de uma linguagem mais coloquial e uma aproximação da realidade do país, é um dado de permanência do espírito de 22, durante a década de 30 a realização estética em si mesma é muito diferente – e o predomínio do romance ao invés da poesia já é evidência suficiente desse fato. A forma de atuação é também outra (BUENO, 2007).
A utopia ainda possível, na geração de 20, numa mentalidade que percebia o Brasil
como um país novo, não podia sustentar-se diante da pré-consciência de
subdesenvolvimento que emergia com a geração seguinte. Desse modo, “a arte da
década de 30 não poderá, portanto, abraçar qualquer projeto utópico e necessariamente
se colocará como algo muito diverso do que os modernistas haviam levado a cabo”
(2007). Nesse sentido, pode-se dizer que o romance de 30 vai se constituir como uma
arte pós-utópica.
Dialogando com Mário de Andrade, Bueno traz à tona a hipótese do escritor
modernista para explicar a predominância da figura do “ fracassado” no romance de
30, articulando essa idéia à formação da identidade nacional. Nessa perspectiva,
entende-se que a formação da consciência de que o país era atrasado canalizou todas
as forças do romance de 30, que reproduziu, assim, os aspectos mais injustos da
sociedade brasileira. Desse modo, o herói, que antes promovia ações para transformar
essa realidade negativa, passou a incorporar, também, algum aspecto do atraso. No
entender do autor,
ao contrário do realismo do século XIX, que havia estigmatizado a narrativa em primeira pessoa, muitas vezes o romance de 30 priorizou-a, com duplo efeito: primeiro, o de conferir veracidade maior ao documento, já que assim ele aparece construído como depoimento de quem viveu aquele fracasso; segundo, o de sublinhar o caráter definitivo das derrotas narradas, já que para ninguém o impasse pode ser tão profundo, ou mais sem saída a situação, do que para aquele a quem não é dada uma perspectiva mais ampla ou distanciada do problema (BUENO, 2007).
É nesse ponto da reflexão que Bueno introduz a segunda questão proposta por
Mário de Andrade para se pensar a geração de 30: a ausência de projetos totalizadores.
Se, por um lado, a produção artística da geração de 20 buscava “uma identidade
70
nacional que articulada, integrada, tanto na obra de Mário de Andrade quanto na de
Oswald de Andrade” (BUENO, 2007), estabelecia o compromisso do grupo; por outro,
o comportamento dos escritores de 30 não manifestou nenhuma visão unificadora de
Brasil, pois cada romancista se ocupou de mergulhar num aspecto específico do
presente. Essa característica da geração de 30 revela uma “visão geral do país após uma
leitura extensiva desses romances – e mesmo a maneira pela qual Mário de Andrade
percebeu a importância da figura do fracassado demonstra isso” (BUENO, 2007).
Assim, o interesse por essa figura constituiu-se como uma das maiores conquistas para a
ficção brasileira que viria a seguir: a incorporação das figuras marginais. Desse modo, o
resultado desse procedimento anti-escola, voluntário ou não nos romancistas de 30,
“produz uma vigorosa força de oposição a uma visão total – totalitária mesmo – de
Brasil proposta por Getúlio Vargas” (BUENO, 2007). Vale transcrever a conclusão a
que chega o crítico acerca da distinção proposta para se pensar as duas gerações
modernistas:
É um contraste significativo o que se cria entre a visão do país como um conjunto de realidades locais que merece ser conhecido nas suas particularidades e o modelo oficial de unidade nacional, cuja tendência seria a de apagar as diferenças para se obter um conceito uno de nação. A boa recepção ao romance regionalista, por exemplo, mesmo considerando as acanhadas dimensões de nosso público leitor àquela altura, foi uma demonstração clara da distância de um projeto oficial unificador em relação à visão que ia se tornando a mais viável para os próprios brasileiros, que queriam simplesmente saber da vida nos engenhos, do drama da seca, da região amazônica, das plantações de cacau e café, da realidade dos pampas [...] (BUENO, 2007).
Essa reflexão de Bueno remete para as concepções de Hall, sobre a constituição
das comunidades imaginadas, e de Bhabha, sobre a pretensa coesão nacional que
manteve na horizontalidade as narrativas sobre nação, já pontuadas no capítulo anterior.
Para este, o caráter performativo introduz nas modernas narrativas nacionais o entre-
lugar, o enquanto isso, colocando em relevo as identidades de grupos inseridos na
nação maior, e, para aquele, a identidade dos grupos se constrói em torno de
sentimentos, ações e concepções comuns à comunidade. Assim, pode-se dizer com
Bueno que a poética de 45 estabelece a nova direção que as pressões históricas impõem
à poesia: a direção da objetividade. Ao refletir sobre a questão, Bosi observa que essa
nova direção pode ser entendida em dois sentidos:
71
a) Procura de mensagens (motivos, temas...) que façam do texto um testemunho crítico da realidade social, moral e política;
b) Procura de códigos que, rejeitando a tradição do verso, façam do poema um objeto de linguagem integrável, se possível, na estrutura perceptiva das comunicações de massa, medula da vida contemporânea (BOSI, 2006, p. 468).
Sobre a incorporação de figuras marginais à lírica brasileira, João Cabral de Melo
Neto destaca-se no cenário literário como um poeta com acentuada “tendência de
apertar em versos breves e numa sintaxe incisiva o horizonte da vivência nordestina”
(BOSI, 2006, p. 471). O poema “Morte e vida severina” (1956), de João Cabral, conta
a trajetória de um homem do Agreste que sai em direção ao “ litoral e topa em cada
parada com a morte, presença anônima e coletiva, até que no último pouso lhe chega a
nova do nascimento de um menino, signo de que algo resiste à constante negação da
existência” (BOSI, 2006, p. 471). A literatura de João Cabral de Melo Neto nasce na
mesma esteira dos poetas amadurecidos durante a II Gerra Mundial. Essa lírica
participante se mostrará sempre associada, de uma ou outra forma, às tensões sociais.
Nessa mesma via, seguindo as pegadas estéticas de uma literatura brasileira
cujos poetas, a partir dos terceiro e quarto decênios do século XX manifestaram uma
arte engajada, compromissada com as questões sociais, também os poetas e cantadores
do MST expressam em sua poesia as mazelas e contrastes que as questões em torno da
posse da terra provocaram no Brasil. Desta maneira, as manifestações culturais dos
sem-terra constituem-se, na história do MST, como fator que “ identifica o caminho
vivenciado pelo trabalhador sem-terra que chega à firmeza da afirmação sou Sem
Terra, sou do MST!” (CALDART, 2004, pp. 163-164). Essa identificação se
manifesta, também, por meio da poesia produzida pelos integrantes do movimento,
compondo o conjunto de símbolos que constituem a mística do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil.
3.2 Arte engajada: poética do compromisso
A poesia e a música estão presentes em quase todas as atividades do Movimento
e há um respeito muito grande para com as composições musicais, principalmente
72
para a primeira geração que criou o MST a partir dos anos oitenta. As músicas são
compostas por letras que descrevem, geralmente, a lógica sujeito, tempo e espaço,
localizando onde, quando e por que aconteceu determinado fato. São músicas “para
ouvir, pois contam alguma tragédia ou estabelecem uma relação íntima entre o ser
humano e a divindade ou ainda mantém viva a memória regional ligada às festas ou à
religião” (BOGO, 2005, p.105). Essa característica das composições em destacar o
sujeito, localizando-o no tempo e no espaço onde se dá o acontecimento, pode ser
vista “claramente nas músicas cantadas por Tonico e Tinoco, Chico Mineiro, e o
Menino da Porteira, ou a Triste Partida de Patativa do Assaré, cantada por
Gonzagão” (BOGO, 2005, p. 105).
Em âmbito nacional, dentre os artistas ligados ao Movimento, o poeta, cantor e
compositor Zé Pinto20 manifesta em seu fazer poético o compromisso assumido com a
causa do povo Sem Terra. Frei Beto ([s.d]) observa, ao apresentar o poeta, violeiro e
cantador, na contracapa do volume de poemas O amanhã é bem mais que outro dia, que
na caminhada dos Sem Terra pela reforma agrária Zé Pinto expressa com muita beleza e
arte as aspirações mais profundas da nossa gente. Também Stédile, na mesma
apresentação, refere-se ao poeta como a expressão típica da cultura popular cultuada no
movimento Sem Terra. Para o autor, trata-se de uma arte que brotou nos corações e
mentes, debaixo das lonas, nas caminhadas, nas ocupações, nas lutas em geral do nosso
povo do interior. No poema “Patativizando” o eu lírico dialoga com outro poeta
nordestino, Patativa do Assaré, deixando entrever na expressão lírica o sentimento de
compromisso com as causas do povo que a arte engajada manifesta:
Patativa disse adeus Olhou pro céu e voou Assaré foi testemunha Até Mandacaru chorou Nas asas da poesia, Viajou noites e dias Pra encontrar nosso Senhor Era assim meu companheiro Menos cansaço e mais dor
20 Zé Pinto nasceu em Minas Gerais. Sua família emigrou, quando ele era criança, para Rondônia, no norte do Brasil. Seu trabalho artístico em acampamentos e assentamentos se iniciou aos 13 anos. Um dos coordenadores do primeiro CD do MST, Arte em Movimento, no qual assina nove canções. Participou também do Primeiro Festival Nacional de Canções da Reforma Agrária, do qual originou-se o segundo CD do MST. Produtor do CD de músicas infantis do MST para o qual contribui com 11 canções. Uma Prosa Sobre Nós é seu CD individual. Autor dos livros de poesia, como Poesia que brota da luta (esgotado). Fez trabalhos de divulgação da cultura do MST, em Portugal e na Alemanha, Bélgica e Espanha (Disponível em http://www.landlles-voices.org/vieira/contibutors.phtml?ng=p#Pinto, acessado em 28/12/07).
73
Fazer poemas de arma, Pra fazer arma de flor Num país tão seresteiro, De viola e de pandeiro, Nunca se viu tanta angústia Num poeta sertanejo Denunciando as tramóias De um projeto traiçoeiro Que vê beleza na fome Desse povo brasileiro!
Zé Pinto rende homenagem a Patativa, poeta cordelista do município nordestino
de Assaré que escreveu, entre muitos outros poemas, “A triste partida” , que foi
musicada e gravada por Luiz Gonzaga. Ao falar sobre a poesia de Patativa no Jornal
da Poesia21, José Nêumanne observa que não há que se exigir desse poeta “perícias de
esgrimista da linguagem nem habilidades de pesquisador da semântica. Sua poesia
serve a sua gente: descreve sua vida, ou seja, seu convívio com a paisagem ou com
outros viventes” . De cunho épico, a poesia de Patativa narra a proeza dos valentes
retirantes nordestinos, lembrando a repetição cíclica do êxodo bíblico.
Em Mato Grosso, a poeta Marilza Ribeiro dedicou-se a denunciar por meio de
seus versos “o processo de dominação que reina nos latifúndios mato-grossenses e que
é responsável por uma história de sangue e medo” (MAGALHÃES, 2001, p. 230).
Tematizando essa realidade, a poeta empresta seu fazer literário aos que não têm vez
nem voz, incluindo, também, os menores abandonados, os trabalhadores braçais e as
mulheres. No dizer da pesquisadora Célia Maria Domingues da Rocha Reis, estudiosa
da obra de Marilza Ribeiro, a expressão da poeta nunca é a de uma individualidade.
Prevalece sempre o coletivo por meio “da representação de tipos mais primitivos da
terra, ao homem que as condições sócio-econômicas regionais geraram, o pescador, a
ceramista, a redeira, o posseiro e tipos mais modernos, [...] desprovidos de identidade,
transeuntes anônimos, andarilhos” (REIS, 2005, p. 35).
Nessa mesma esteira, outro poeta mato-grossense, Dom Pedro Casaldáliga, viu
na poesia sua melhor expressão de fé e de reação contestadora. Homem religioso que
em acordo com a proposta da Teologia da Libertação, da qual é seguidor, denuncia em
versos situações que ilustram os desmandos cometidos contra os menos favorecidos em
nome do avanço dos projetos políticos de colonização, o bispo-poeta nos fala em sua
obra de posseiros e indígenas, elementos que estão no fim da cadeia do Poder na região.
21 Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/jneumanne4.htlm., acessado em 10/11/07.
74
Conforme a crítica já apontou, “Dom Pedro Casaldáliga prega o retorno à Amazônia dos
indígenas, o paraíso que antecedia a chegada dos descobridores” (MAGALHÃES, 2001,
p.162).
4. Adriane Rocha e a poética da terra – uma trajetória de afetos
Também em Mato Grosso, a produção poética da sem-terra Adriane Rocha
manifesta uma consciência histórica e estética em conformidade com aquilo que Bogo
aponta como a revolução que “pretende libertar a linguagem para que haja um franco
diálogo entre os objetos, espécies e cores nesta integração da vida com o planeta”
(2000, p. 81). Em apresentação à obra da poeta, o também poeta, crítico e ensaísta
Isaac Ramos define a visão ecológica e social de Pátria Sem-Terra como a matiz
poética mais expressiva de Adriane Rocha22. Nas palavras do autor, trata-se de “uma
poeta pronta, que sai do acampamento Antonio Conselheiro, na cidade de Tangará da
Serra-MT, como militante, declamadora e, agora, partirá para as páginas literárias do
nosso Mato Grosso” (ROCHA, 2004, p.13-14). Ideologicamente definida, a
linguagem da Pátria Sem-Terra, de Adriane Rocha, insere-se, nos espaços que
compreendem a mística do Movimento, como elemento constitutivo da cultura
elaborada pelo MST, revelando a trajetória do povo sem-terra imaginada pela
consciência criadora. O sujeito-de-enunciação lírico expressa o desejo do sujeito
coletivo marcado pela história de luta e movimenta-se na construção rumo à
linguagem própria, voz do sujeito social Sem Terra. Nesse contexto,
A voz do corpo é semelhante à voz que sai da garganta. A voz dos pássaros é a mesma que a voz dos poetas. A voz das árvores é a mesma que a voz das crianças. A voz das cores é a mesma que a voz da luta, da resistência e da transformação, [...]. Todos os objetos se comunicam entre si ou com o ser humano. (BOGO, 2000, p. 81).
Essa linguagem ajuda o sem-terra a perceber as coisas que existem e como
existem instituindo, junto com os demais símbolos do Movimento, um diálogo franco,
sincero e democrático com todos os tipos de vida. É nesse contexto que a poeta
Adriane Rocha representa a voz do sujeito histórico, atuante, condutor da história, 22 Pátria Sem-Terra (2004) divide-se em três partes, ou blocos: I – Pátria Sem-Terra, II – Pensamentos e III – Intimidades. Os poemas analisados fazem parte do bloco I.
75
engajado e comprometido com os ideais do Movimento que seguem a mesma esteira
da eco-espiritualidade. A poeta-militante atuou “no setor de juventude e cultura,
espalhando arte e saber e também no coletivo de gênero resgatando a beleza e o
direito de ser mulher” 23.
Natural de Três Passos, Rio Grande do Sul, Adriane Rocha mudou-se com a
família para a cidade mato-grossense de Tangará da Serra, no ano de 1993. Mãe de duas
filhas, a poeta se define como “sonhadora e persistente” . Seu envolvimento com o MST
passa pela figura do pai que “aderiu ao movimento” contra a vontade da filha. Ela não
compreendia ainda os propósitos daquela luta, apenas era contrária à adesão do pai ao
Movimento. Adriane Rocha conta, em relato poético, o episódio que marcou a aventura
da família nos primeiros contatos com a realidade vivida pelos sem-terra:
Foi triste aquela fria madrugada de outubro, as estrelas gritavam com mais intensidade, o vento dedilhava uma suave canção e nos negros braços da noite vultos aglomeravam-se em pontos estratégicos. Mulheres, homens e crianças como formigas, cada qual exibindo seu troféu no alto de suas cabeças, enxada, foice e facão vinham nas mãos, os corações não cabiam nos peitos inflados, os olhos disputavam um lugarzinho em um caminhão. O medo misturava-se com a possibilidade da vitória compartilhada. E partiram em precisão, amontoados, cada qual na sua fé, na sua crença invocavam o Pai maior. O sereno lambia os rostos cansados marcados por um passado felino, amargo e excludente. Na força do sonho coletivo viravam a página de um novo roteiro. Com a rebeldia que pulsava em veias valentes, da vida fizeram palco e protagonizaram a própria história que cheirava vida, que tinha cor de terra e gosto de pão. E eu fiquei chorando. (Grifo meu).
Depois de quatro dias concentrados na BR 358, em Nova Olímpia, “uma carreta
desgovernada invadiu o acampamento e levou consigo cinco sementes de esperança que
estavam lá, como as demais, querendo chão para germinar e gerar dignidade”. Diante do
ocorrido, Adriane Rocha vai ao encontro do pai e pede a ele para desistir do sonho. Seu
pai, segurando-lhe o rosto entre as mãos e olhando-a nos olhos, diz: “ filha, eu vou ficar
por nós e pelos cinco que se foram. [...] E ele ficou sorrindo” . Depois disso, quando
recebia as visitas do pai, Adriane ouvia dele informações muito diferentes daquelas
23 Todas as informações sobre a poeta foram obtidas via conversas telefônicas e em carta-poema (Anexo B), datada de 12 de dezembro de 2006.
76
transmitidas pela mídia. Decide, então, conhecer o acampamento de perto e
compreende, como ela mesma diz, que “somos sujeitos da própria história, que a
liberdade está na construção da nova sociedade” , e torna-se “uma lutadora do povo,
herdeira de exemplos, idéias, sonhos e ideais de muitos que na luta tombaram”. Depois
de algum tempo no assentamento, a poeta sente necessidade em retomar seus estudos,
mas a militância em tempo integral impossibilitava a realização deste outro sonho.
Assim, consciente da sua condição coletiva, devolve “a terra ao MST e ao INCRA para
que o lote pudesse exercer sua função social, pois o objetivo da reforma agrária é
fecundar a mãe que está no cio e tirar de seu ventre a vida” . Outra família ocupou a área
destinada anteriormente à família da poeta. Adriane Rocha segue, então, para Campo
Novo do Parecis, onde retorna aos bancos escolares para formar-se professora, pois a
poeta acredita na educação como
processo permanente de construção de uma nova sociedade, [...], porque humaniza, transforma, socializa, é geradora de conflitos e quando educa crítica e democraticamente eleva a pessoa humana ao auto-conhecimento arrancando-a das cercas do latifúndio da ignorância, conduzindo-a à libertação, é por isso que quero estar em sala de aula.
É desta maneira que a consciência histórica revela o compromisso com o coletivo e
a relação que o sem-terra estabelece com a terra. Nesse sentido, a terra não é somente
terra, é o resgate da dignidade, da certeza de que o mundo imaginado pode ser
construído coletivamente. A imagem da terra, no imaginário do sem-terra, passa,
necessariamente, por sua história de luta e resistência presentificada por meio da mística
vivenciada em todos os encontros, manifestações, acampamentos e assentamentos.
Nesse contexto, os símbolos construídos no decorrer do processo de constituição do
MST manifestam, na esfera material, a construção da consciência do novo sujeito
social. Assim, articulando o grito do oprimido com o grito da Terra, a poesia de
Adriane Rocha abre passagem para um universo estético que manifesta as funções
social, ideológica e total da literatura, em busca do possível retorno ao paraíso perdido.
Para entender essas funções da literatura sem perder de vista sua integridade estética é
preciso, a partir da distinção entre as três, movimentar a leitura no sentido de considerar
cada função em sua devida conta.
4.1 O sujeito-de-enunciação lír ico enuncia a trajetória
77
A dialética das funções postulada por Cândido entre os “três pontos de vista,
levando em conta o quadro sociocultural em que as manifestações literárias se situam,
mas procurando captá-las na integridade de seu significado” (2000, p. 51), confluem
para a dimensão poética da linguagem, mais especificamente para a teoria do enunciado
proposta por Käte Hamburger. Desse modo, a consideração simultânea das funções
social, ideológica e total da literatura, permite observar o movimento que o sujeito-de-
enunciação lírico engendra para expressar os enunciados coletivos e individuais,
ordenando o caos e revelando o paraíso possível por meio de imagens poéticas.
Käte Hamburger postula que “o sistema de enunciação da linguagem é o
correspondente verbal do próprio sistema da realidade”, pois o que se enuncia “é o
campo da experiência ou da vivência do sujeito-de-enunciação” (1986, p. 168). Cabe
observar, então, que a posição da criação literária como arte verbal justifica-se pelo fato
de a relação entre criação literária e realidade ser reconduzida à relação de criação
literária e enunciação da realidade. Entende-se, desse modo, que o muito discutido eu
lírico é um sujeito-de-enunciação, pois o experimentamos como um enunciado de um
sujeito-de-enunciação e “ isto já é justificado do ponto de vista básico-estrutural pelo
fato de que experimentamos um poema de modo completamente diferente do que a
literatura ficcional, narrativa ou dramática” (HAMBURGER, 1986, p. 168).
Também Maria Zaira Turchi, em sua Literatura e antropologia do imaginário
(2003), reporta-se ao modo como a pesquisadora alemã trata a relação dos gêneros
literários. “O lugar do lírico na criação literária está no sistema de enunciação da
linguagem, na relação lírica sujeito-objeto” , concorda Turchi (2003, p. 60). Ao falar
sobre os elos da similitude que amalgamam o lírico e o místico, a autora dialoga
também com Gilbert Durand, que “dedicando-se à interpretação cultural de linguagens
simbólicas concretas, formula uma teoria geral do imaginário, qualificada por ele
mesmo como estruturalismo figurativo”24 (TURCHI, 2003, p. 25).
Retornando à teoria do enunciado proposta por Hamburger, vale lembrar que ela
foi formulada com o pensamento voltado para a questão da “tensão conceitual criação
literária e realidade que, explícita ou implicitamente, sempre serve de base às
considerações da Teoria Literária” (HAMBURGER, 1986, p.1). Essa tensão conceitual
consiste na concepção de que a criação literária é coisa diferente da realidade, mas
24 Essa discussão será retomada e aprofundada no capítulo seguinte.
78
também significa o aparentemente contrário, ou seja, que a realidade é o material da
criação literária.
A partir da comparação da linguagem da poesia com a linguagem da não-poesia, a
pesquisadora alemã encontra o meio indicado para a pesquisa da estrutura da poesia
como fenômeno global. Por isso, para buscar uma lógica da criação literária, é preciso
pensar nos fundamentos da Teoria da Linguagem, isto é, considerar a estrutura da
linguagem, que a autora designa como o sistema enunciador da linguagem. O conceito
de enunciado requer um sentido terminológico específico, pois o sujeito desse
enunciado não tem nada em comum com o sujeito lógico e com o sujeito gramatical. O
sujeito da criação literária, sujeito-de-enunciação, não pertence nem à Lógica, nem à
Psicologia, nem à Teoria do Conhecimento, mas sim à Teoria da Linguagem.
Entretanto,
na Teoria da Linguagem o problema do enunciado ainda não se tornou objeto de estudo. Isso se deve aparentemente ao fato de que ela dirigiu sua atenção somente para dois lados: para a linguagem como formação gramático-linguística e para a linguagem como enunciação, ou seja, como discurso (HAMBURGER, 1986, p. 19).
Também a Teoria da Comunicação difere da Teoria da Enunciação, porque esta
manifesta uma teoria da estrutura, sobretudo da estrutura oculta da linguagem, enquanto
aquela concerne à situação da linguagem falada. O eu-emissor da comunicação
diferencia-se do sujeito-de-enunciação da linguagem, pois presume sempre um tu
receptor, enquanto o sujeito-de-enunciação remete ao objeto, isto é, o conteúdo da
enunciação, às enunciações de um sujeito-de-enunciação, constituindo-se a enunciação
de um sujeito sobre o objeto. Desse modo, se o único caso no âmbito da linguagem para
o qual a fórmula de enunciação não é válida é a narração do gênero narrativo, entende-
se que é “ justamente esta exceção que consolida [...] a validez da fórmula da enunciação
em todo domínio restante da linguagem, do qual também faz parte a criação lírica”
(HAMBURGER, 1986, p. 20).
Para explicar essa proposição, a autora parte do exame minucioso das definições de
Aristóteles sobre a noção de poiesis, usada pelo filósofo como mimesis, sendo as duas
noções idênticas para ele. Também os termos poiein e poiesis, isto é, fazer, produzir,
podem ser traduzidos por imitatio no sentido de imitação. Por isso, ao elaborar o
conceito de teoria do enunciado, a autora observa que, para Aristóteles, o termo
“mimesis é muito menos decisivo no sentido de imitação, matiz de significado nele
79
contido, do que no sentido fundamental de representação, de fazer” (HAMBURGER,
1986, p. 3). Entretanto, convém lembrar que não será o tipo de enunciado nem a
modalidade da sentença que determinará “a intensidade da subjetividade ou
objetividade, mas a atitude do sujeito-de-enunciação. O que constitui o gênero lírico
enquanto tal é “a intenção manifestada do sujeito-de-enunciação de um ser lírico, ou
seja, pelo contexto em que encontramos o poema” (HAMBURGER, 1986, p. 174).
Assim, segue Hamburguer, se Hegel chegou à definição do fenômeno específico da
criação literária como “aquela arte toda especial em que a Arte começa a se dissolver”
(1986, p. x), não chegou, no entanto, às últimas conseqüências da proposição. Desse
modo, entende-se que as várias teorias antigas e recentes da criação literária não
chegaram a resultados totalmente satisfatórios, pois a relação da Arte Literária com o
sistema lingüístico geral não foi assimilado com suficiente clareza ou não se tiraram
dela todas as conseqüências. Então, ao formular o conceito de teoria do enunciado a
partir da teoria lingüística, a autora descobre o seu valor metodológico e afirma que “a
lógica da criação literária é a sua fenomenologia” , pois “não designa outra coisa além
dos fenômenos em si” (HAMBURGER, 1986, p. viii). Ao citar Schlegel, a autora
reconhece que essa descoberta não é nova, pois o autor já havia formulado o
pensamento claro de que o meio da poesia é o mesmo através do qual o espírito humano
chega à consciência de si e organiza seus devaneios, ou seja, é a língua.
Nesse sentido, a imaginação criadora de Adriane Rocha revela um sujeito-de-
enunciação lírico que não toma a Terra e o sem-terra apenas como objeto a ser
tematizado pela expressão poética. De maneira diferente daquela geralmente observada
na Literatura, quando retrata as classes marginalizadas, na criação poética rocheana o
sujeito-de-enunciação lírico é também objeto que passa a agir culturalmente. Assim, se
por vezes observa-se uma proporção maior dos elementos que realçam as funções social
e ideológica do texto; por outras, o aspecto estético evidencia em igual
proporcionalidade a função total. O sentido pleno do texto é revelado pela análise
simultânea desses aspectos, pois as imagens recorrentes nos poemas manifestam a
mediação simbólica elaborada pelo eu poético ao trazer à tona o imaginário que é
expressão do sujeito sem-terra e, ao mesmo tempo, a angústia de todo ser humano
diante da destruição da Terra.
80
O poema “Bandeira do MST” (p. 33)25, exemplifica a formulação de Hamburguer
de que “os objetos são pretextos para palavras” , porque o objeto, no caso do poema, a
bandeira do movimento, “motivou o poema, ou melhor, a enunciação lírica” .
Tua beleza é encantadora, É sinônimo de paz, liberdade... Do meu sofrimento, é doutora. Então busco contigo a dignidade Quando meu punho se ergue para segurar-te, Meu sangue ferve nas veias, Nunca deixarei de exaltar-te, Nem que a morte me venha...
Nestas duas estrofes, o pólo-objeto das enunciações feitas nos versos é nítido: a
bandeira. Embora seja enunciada com menor precisão nos quatro primeiros versos, na
enunciação seguinte está mais próxima do pólo-objeto. O sujeito-de-enunciação lírico
menciona o símbolo do Movimento de maneira concreta, empunhando-o. A referência
ao estado emocional e afetivo provocado pela presença do objeto remete ao sentimento
existente na imaginação criadora. Embora as primeiras enunciações alusivas à bandeira
sejam menos precisas, o pólo-objeto das enunciações retirou-se deste para o pólo-sujeito
que organiza os enunciados regidos pelo sentido. O título ilumina, pela menção do
objeto, a relação significativa dos enunciados do poema, constituindo no lírico uma
função mais essencial que no gênero ficcional.
O exemplo apresentado, no entanto, não permite a afirmação de que o poeta “tenha
expresso pela enunciação do poema uma experiência própria, ou então que ele não se
referiu a si mesmo” uma vez que “não existe critério exato, nem lógico, nem estético,
nem interior, nem exterior, que nos permita a identificação ou não do sujeito-de-
enunciação lírico com o poeta” (HAMBURGER, 1986, p. 196). Assim, conforme o
conceito de teoria do enunciado proposto pela autora, entende-se a forma do poema
enquanto enunciação que experimentamos como espaço de experiência do sujeito-de-
enunciação, o que a torna suscetível a ser vivida como enunciado da realidade.
Cabe verificar, então, o conceito de vivência em relação à natureza do eu lírico e
com referência ao conceito de lirismo vivencial, criado pela ciência literária alemã. Nas
palavras da autora, o conceito de vivência deve ser compreendido psicológica e
biograficamente, considerando que se trata de um “conceito legítimo de epistemologia
25 Adriane Rocha, Pátria Sem-Terra (2004). As referências aos poemas serão seguidas com indicação do número da página entre parênteses.
81
alemã, principalmente empregado por Hursserl como a noção de todos os processos da
consciência (de percepção, imaginação, conhecimento, etc.)” (HAMBURGER, 1986, p.
198). Assim, as experiências da consciência, equiparando consciência à vivência,
especificamente “como um termo que expressa a intencionalidade da consciência, como
consciência de algo” , legitimam o emprego da noção de vivência para a enunciação
lírica e entende-se com isso
que não importa o gênero da “vivência” : vale para o poema-objeto, (circunstancial), poema-idéia, poema político, tanto quanto para o poema de emoção, enfim pra toda a lírica. A vivência pode ser “ fictícia” no sentido de invencionada, mas o sujeito vivencial e com ele o sujeito-de-enunciação, o eu lírico, pode existir somente como um real e nunca fictício (HAMBURGER, 1986, p. 199).
Desta maneira, a razão por que a transformação realizada pelo sujeito-de-
enunciação lírico com o material artístico, isto é, a linguagem, difere da literatura
ficcional, consiste no fato de que transforma a realidade objetiva em subjetiva vivencial,
permanecendo como realidade. A literatura ficcional permanece mimese da realidade
porque não é enunciado, mas imitação, uma vez que a realidade da vida humana é o seu
material. Nesse contexto, um poema lírico é uma estrutura aberta, pois está aberto a
interpretações, enquanto a obra ficcional constitui-se uma estrutura fechada.
Conclui-se, com Hamburger, que apenas experimentamos um fenômeno lírico
verdadeiro onde vivemos um eu lírico verdadeiro, isto é, “um sujeito-de-enunciação
lírico verdadeiro, indiferentemente de sua apresentação na forma de ‘eu’ ou não” (1986,
p. 208). Essa circunstância vivencial determina o lirismo em sua natureza central
autóctone e é também responsável pela sua delicada situação no domínio enunciativo
geral da linguagem. Embora delicada, a teoria manifesta um princípio que é
determinável em todos os casos, pois é o “procedimento da enunciação para com o
pólo-objeto” , que nos faz experimentar “o poema lírico como o campo vivencial e
unicamente o campo vivencial do sujeito-de-enunciação” , diz Hamburger (1986, p.
208).
Desta maneira, Pátria Sem-Terra manifesta um sujeito-de-enunciação lírico que
expressa o desejo de um eu coletivo marcado pela história de luta e, sobretudo, pela
esperança de construir, produzir, criar um novo quadro pintado com uma linguagem
própria, que manifesta a voz do sujeito social Sem Terra. Essa voz revela uma
consciência ideologicamente marcada que vai constituir, junto com outras
82
manifestações culturais do MST, a mística do movimento. Para Bogo, a linguagem
desempenha “um papel cada vez mais importante” na formação da consciência
histórica, estética e ecológica do sujeito sem-terra, “porque ajuda a perceber as coisas
que existem, e a forma como existem”, possibilitando “a instalação de um diálogo
franco, sincero e democrático com todos os tipos de vida” (2000, p. 81). As enunciações
líricas de Adriane Rocha assumem, assim, uma expressão poética que permite entrever,
a um só tempo, um objeto-sujeito que tanto observa como exprime a si mesmo e ao
coletivo quando manifesta a temática da Terra e da luta dos sem-terra pela reforma
agrária. É o olhar interno, surgido do interior do movimento que constitui a expressão
poética da autora como um olhar diferente daqueles que já representaram e
expressaram, na literatura brasileira, as questões da luta pela posse da terra no Brasil.
83
I I I – O IMAGINÁRIO DA TERRA EM PÁTRIA SEM-TERRA
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e
temperados, como os de Entre Doiro e Moinho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.
(Pero Vaz de Caminha)
1. Ser Humano e Ser Terra – o abraço imaginado
No contexto do MST, todos os símbolos criados para identificar o grupo e
preservar a história de um período significativo da vida de pessoas que entregaram seu
esforço e sua vida para edificar idéias imaginadas, não se constituem apenas símbolos,
pois desempenham uma função altamente questionadora da ordem e apontam para o
futuro. A relação mística estabelecida pelo imaginário poético de Adriane Rocha entre a
imagem da terra e o sujeito coletivo sem-terra reitera símbolos do Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra que reconciliam o ser humano e o ser terra. A partir das
dimensões dos símbolos, constituídos e consolidados no decorrer do processo de
formação do Movimento, o sem-terra realiza uma celebração mística que mistura sujeito
e objeto, humanidade e terra. Essa fusão se manifesta na vivência simultânea das três
dimensões simbólicas; a cósmica, a onírica e a poética. Assim, se por meio da vivência
simbólica, a mística dos sem-terra exprime o mistério que funde o sujeito e os sentidos
numa composição que, para Bachelard, constitui o realismo do imaginário, então o
sentido secreto da representação mística vivenciada pelo grupo constitui-se como
epifania. Por isso, a Bandeira e o Hino do Movimento, embora se manifestem como
objetos sensíveis, conduzem também para algo além do sentido imediato. Durante a
realização da mística, esses símbolos reconduzem a um significado que “é inacessível, é
epifania, ou seja, aparição do indizível, pelo e no significante” (DURAND, 1988, p. 14-
15). Desse modo, o sentimento que emana durante a mística do Movimento, transpõe a
celebração do grupo em torno dos símbolos para a área predileta do simbolismo:
o não sensível em todas as suas formas – inconsciente, metafísica, sobrenatural e supra-real. Essas coisas ausentes ou impossíveis de se perceber por definição acabarão sendo, de maneira privilegiada, os próprios assuntos da metafísica, da arte, da religião, da magia: causa
84
primeira, fim último, finalidade sem fim, alma, espírito, deuses etc. (DURAND, 1988, p. 15).
Assim, entende-se com Durand que a mística do Movimento dos Trabalhadores
Rurais do Brasil constitui-se uma manifestação que, “não podendo figurar a infigurável
transcendência” , elabora na imagem simbólica a “ transfiguração de uma representação
concreta através de um sentido para sempre abstrato” (1988, p. 15). Desse modo, ensina
Bogo, o chamamento para a construção coletiva do futuro, confere à imaginação um
caráter “ intuitivo e se alimenta da sensibilidade” existente “nas relações sociais e
humanas, fazendo-nos acreditar que cada revolucionário é um artista da revolução”
(2000, p. 85). Na letra do hino, o chamado para a luta já configura o triunfo no futuro
construído pela coletividade:
Hino do Movimento dos Sem-Terra
Vem, teçamos a nossa liberdade Braços fortes que rasgam o chão Sob a sombra da nossa valentia Desfraldemos a nossa rebeldia
E plantemos nossa terra como irmãos!
Vem, lutemos Punho erguido
Nossa força nos leva a edificar Nossa pátria Livre e forte
Construída pelo poder popular
Braço erguido ditemos nossa história Sufocando com força os opressores
Hasteemos a bandeira colorida Despertemos essa pátria adormecida
O amanhã pertence a nós trabalhadores
Nossa força resgatada pela chama De esperança no triunfo que virá
Forjaremos desta luta com certeza Pátria livre, operária camponesa
Nossa estrela enfim triunfará.
O punho erguido no presente forja o triunfo que ainda é futuro, é o cultivo do
sonho, é a mística, é o mistério entendido pelo MST “não como algo distante, ao
contrário, está presente em cada lutador, que sente esta vontade indomável de continuar
andando como que a buscar algo que ainda não vê, mas sente que existe ali mais
adiante” (BOGO, 2005, p. 38). Assim, vivida na aventura coletiva, “a mística não é algo
85
abstrato” , como lembra João Pedro Stédile (apud BOGO, 2005, p. 38), ela “só tem
sentido se faz parte da vida” .
O poema “Bandeira do MST” (p.33), já citado para exemplificar como as
enunciações em torno do pólo-objeto migram em direção ao pólo-sujeito, manifesta um
sujeito lírico que realiza um tributo à bandeira, personificando um dos símbolos
permanentes do movimento ao cantar os sentimentos que evoca.
Quando meu punho se ergue para segurar-te, Meu sangue ferve nas veias, Nunca deixarei de exaltar-te, Nem que a morte me venha...
Observa-se, na primeira estrofe do soneto, que entra na linha de frente do poema o
sistema ideológico de conotações que escolhe as imagens sob a perspectiva de uma
cultura coesa e interiorizada. A palavra poética vai buscar nas mediações simbólicas a
reiteração das imagens manifestas no Hino do Movimento. O punho erguido do hino
encontra no eu do poema o punho do sujeito-de-enunciação lírico vivencial que é
também o sujeito do ato cultural de erguer e segurar a bandeira. Chevalier observa que a
verticalidade “é sempre símbolo forte de ascensão e de progresso”, conferindo “ao
advento da dimensão vertical o valor de um estado definido da tomada de posse de
consciência” (1995, p. 946). Assim, se no hino existe um chamado para a luta, no
poema o chamamento é atendido e a ação se passa em tempo presente. Esse gesto
estabelece nas enunciações do poema a condição coletiva vivida pelo eu lírico, sujeito
coletivo que sente o sangue ferver nas veias. A exaltação ao símbolo será cantada para
sempre, por um tempo indeterminado,
Nunca deixarei de exaltar-te,
que marca o início do terceiro verso, manifestando o compromisso ininterrupto com a
luta, pois
Nem que a morte me venha,
o desejo de construção de uma Pátria livre, operária camponesa, será adiado para um
tempo futuro, como sugere o hino. A esperança no triunfo que virá, cantada no hino,
manifesta um desejo ainda imaginado, distante, que vai encontrar nas mãos do sujeito
lírico, o devir transformando em presente no imaginário poético. A consciência de que
86
com as próprias mãos toma posse do tempo, instaura no poema o tempo-estado, e
transforma a determinação do sujeito lírico em triunfo antecipado.
A esperança está em minhas mãos.
O verbo estar condiciona o tempo em estado permanente e autoriza o eu lírico a
transformar o devir em tempo presente, constante. Se a bandeira é amada, bela e forte, é
essa mesma condição de estado, o ser agora, que antecipa no poema a nação já
transformada.
Pois, és amada, és bela, és forte e, com certeza, Vamos transformar o Brasil em nação.
Chevalier ensina que a bandeira é símbolo de proteção, concedida ou implorada e
aquele que porta a bandeira ergue-a acima de sua cabeça, lançando “um apelo ao céu,
cria um elo entre o alto e o baixo, o celeste e o divino” (1995, p. 118). No mesmo
dicionário, o verbete estandarte remete ao complemento do sentido que o símbolo
adquire por representar uma organização social ou um grupo: “Toda sociedade
organizada tem suas insígnias – totens, pendões, bandeiras, estandartes – que são
sempre colocadas num topo (haste, tenda, fachada, teto, palácio)” (CHEVALIER, 1995,
p. 402). Também Cirlot fala sobre este símbolo, a bandeira, lembrando que ele deriva
historicamente da insígnia totêmica. O fato de que esteja colocada no alto de um mastro
ou de uma asta é menos significativo em sua constituição de símbolo do que a vontade
de situar a projeção anímica acima do nível normal. É deste fato que “deriva o
simbolismo geral da bandeira, como signo de vitória e auto-afirmação” (1984, p. 114).
Noir Castelo Júnior, militante, líder comunitário e professor do pré-assentamento
Zumbi dos Palmares II, exprime, em poucas palavras, a relação mística que o sem-terra
estabelece com esse símbolo: “tô pra matar ou pra morrer por esse símbolo do
Movimento, que sem ele hoje eu não seria ninguém”. Esse sentimento desvela a
manifestação de transcendência que o culto ao símbolo produz nos integrantes do
Movimento.
Também no poema “Acorda, pátria amada!” (p. 22-23), o sujeito-de-enunciação
lírico personifica um outro símbolo, o Hino Nacional Brasileiro, ao estabelecer com ele
uma espécie de monólogo. O símbolo é o meio pelo qual o sujeito lírico estabelece a
relação com a pátria para clamar e lamentar a ausência, o silêncio e a morte da Terra, a
87
Mãe Gentil. O primeiro verso anuncia, entre aspas, a retomada de um espaço nacional,
as margens de um rio que testemunharam um outro grito, num outro tempo. Agora, o
sujeito lírico enuncia um brado sobre o qual ainda não brilharam os raios da liberdade e
da igualdade:
“Nas margens plácidas”
O teu povo heróico ainda ergue o brado Pelo fervor do sol da liberdade
E pergunta pelo sol que não brilhou:
Que igualdade conseguimos conquistar?
O que resplandece no presente são imagens sombrias, distantes daquele “sonho
intenso” 26 cantado outrora:
O sonho de amor e esperança
Não passa de um sonho que se ausenta Em cada filho teu que se cansa
Diante da espessa nuvem cinzenta Que encobriu teu céu formoso de outrora,
A imagem do cruzeiro só resplandece E este finca nas covas as vítimas que à terra desce.
O cruzeiro de agora não resplandece num “céu risonho e límpido” , pois mostra aos
filhos e filhas da Mão Gentil apenas a parte que lhes cabe da pátria transformada em
latifúndio. Nas duas estrofes seguintes, o eu lírico manifesta a admiração e a decepção
diante das mudanças que a História impôs aos anseios “dos filhos desse solo” :
Da tua beleza e da tua grandeza Não se tem dúvidas,
Mas o teu futuro é duvidoso Posto que tua soberania é um engodo.
Se das Américas és a mais bela
Desperta deste repouso profundo E não permita que te façam de elo
Com o intuito de chegar ao Novo mundo.
“Gigante pela própria natureza” , a pátria recusa aos “ filhos deste solo” o “berço
esplêndido” , o “florão da América” . Agora, iluminada “ao sol do Novo Mundo”, a
26 As expressões que aparecem entre aspas na análise do poema “Acorda pátria amada!” são referências ao Hino Nacional Brasileiro.
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pátria mobiliza uma imagem de soberania mesclada de engodo que o sujeito-de-
enunciação lírico lamenta em seu canto:
Nem flores, nem campos, nem bosques
Nem amanhã, bem próximo, Nem vidas, nem amores
“No teu seio” só rumores, De uma nação que vive horrores
Nesse segmento do poema, os três últimos versos trazem rimas consoantes que
reforçam a distância semântica entre os significantes amores, rumores, horrores. Essa
distância entre os sentidos parece tornar “a paz no futuro” ainda mais remota,
acentuando a ausência da Mãe gentil:
Terra adorada Mãe gentil, de amor tão forte
Teus filhos e filhas, por ti Choram a própria morte
Filhos e filhas lamentam que, para eles, “o lábaro” não seja símbolo de “glória no
passado”. No entanto, o eu lírico insiste no desejo de construir uma pátria livre,
convocando a Pátria Amada, no primeiro e no último verso da estrofe, a despertar para
a construção desse sonho:
Acorda, Pátria Amada!
E verás que teus filhos e filhas Desejam ter uma pátria livre
Mobilizada, socializada, sonhos mil... Acorda, Pátria Amada!
Os construtores da pátria livre serão os filhos e filhas que “não fogem à luta” , que
se irmanam em torno de sonhos mil. O sujeito lírico não idolatra a pátria, não repete
refrão à mãe gentil dos filhos deste solo. Apenas manifesta a consciência de que “o
verde-louro desta flâmula” não acolhe a todos os seus filhos. Assim, o eu lírico, a partir
de um símbolo nacional, reelabora uma espécie de símbolo às avessas, uma cobrança,
um acerto de contas entre o presente e o passado, confrontando os tempos. O futuro do
hino é o agora, o presente desvelado pelo sujeito-se-enuncição lírico que reclama pela
imagem da pátria anunciada no passado.
Ao falar sobre a imagem, Durand observa que a consciência dispõe em diferentes
graus a adequação total ou a inadequação de um signo eternamente privado do
89
significado. Para ilustrar esse pensamento, o autor explica que esse signo longínquo
nada mais é do que o símbolo e distingue “dois tipos de signos: os signos arbitrários,
puramente indicativos que remetem a uma realidade significada, se não presente pelo
menos sempre representável, e os signos alegóricos, que remetem a uma realidade
significada dificilmente apresentável” (DURAND, 2002, p. 13). No caso destes últimos,
devem configurar concretamente uma parte da realidade que significam. Embora a
propriedade do símbolo seja manifestar um sentido, do qual é portador, quando essa
manifestação se constituir numa “representação que faz aparecer um sentido secreto é a
epifania de um mistério” (DURAND, 2002, p. 15). Desse modo, quando o sujeito-de-
enunciação lírico funde os tempos do hino e do poema, confrontando-os, o signo que
representa a nação passa a manifestar, além do sentido que porta, um sentido secreto
que é trazido à tona pela consciência criadora. É então que, por meio do símbolo
nacional, o sujeito lírico epifaniza o mistério, transcendendo a simbolização da imagem
anterior. A transfiguração da Pátria Amada é elaborada na instância poética que “parece
tirar do passado e da memória o direito à existência; não de um passado cronológico
puro – o dos tempos já mortos - , mas de um passado presente cujas dimensões míticas
se atualizam no modo de ser [...] do inconsciente” , ensina Bosi (2000, p. 131-132).
Assim, as imagens de Pátria Sem-Terra manifestam as três dimensões do símbolo,
apontadas por Durand. A dimensão cósmica do símbolo retira toda a sua figuração do
mundo visível que nos rodeia, enquanto a onírica se enraíza nas lembranças, nos gestos
que emergem em nossos sonhos e constituem a massa concreta de nossa biografia mais
íntima. A dimensão poética, por sua vez, “apela para a linguagem, e a linguagem mais
impetuosa, portanto, mais concreta” (DURAND, 1988, p. 16). Essas três dimensões,
presentes na constituição dos símbolos dos trabalhadores do Movimento Sem Terra
reiteram o desejo da construção de um sujeito coletivo em torno de um mesmo objetivo,
pois esse “conjunto de todos os símbolos sobre um tema esclarece os símbolos, uns
através dos outros,” e “acrescenta-lhes um poder simbólico suplementar” (DURAND,
1988, p.17). Nesse sentido, diz ainda o autor que
A redundância dos gestos constitui a classe dos símbolos rituais: o muçulmano, que na hora da prece, se prostra em direção ao Oriente, o padre cristão que abençoa o pão e o vinho, o soldado que presta homenagem à bandeira, o dançarino, o ator que interpreta um combate ou uma cena de amor confere, como seus gestos, uma atitude significativa a seus corpos ou aos objetos que manipulam (DURAND, 1988, p. 17).
90
Também Bosi observa a aliança entre imagem e sentimento, corpo e historicidade,
matéria e significação como ato fundante da poesia. Essa aliança constitui-se como
causa real que o sujeito-de-enunciação lírico imagina e enuncia para manter juntas a
realidade do objeto em si e a sua presença em nós (2001, p.42). O poema “Aos Sem
Terra” (p. 17) que abre a obra de Adriane Rocha, abre-se também à sensação visual
como a trajetória, a caminhada do povo sem-terra em busca do reencontro com a Terra.
O verbo inicial, Somos, seguido pelo substantivo, povo, e este modificado pelo termo
caminhante..., manifesta a consciência coletiva que se põe em movimento na seqüência
do poema.
Somos povo caminhante…
E seguiremos:
No segundo verso, a ação que complementa a apresentação da identidade coletiva
do primeiro, E seguiremos:, anuncia também um nós, um povo, um grupo social que vai
seguir pela trilha traçada na página e imagina o caminhar, o vaivém do sem-terra que
segue rumo ao devir imaginado. Esse vaivém manifesta uma serialidade de ações
descontínuas que se mostram diferentes entre si. No entanto, segundo Cirlot (1984, p.
521), o serial se constitui, também, “pela unificação do relativamente diverso” . Assim, a
ordenação de uma série no tempo ou espaço equivale à determinação ou constituição de
um processo. Observa-se no poema que, embora o traçado do caminho oscile da direita
para a esquerda e da esquerda para direita e a trajetória imaginada conjugue “realidades
opostas, indiferentes entre si” , é a unidade da imagem que irá operar a “reconciliação,
que não implica redução nem transmutação da singularidade de cada termo” (PAZ,
2006, p. 38):
Andando, Sorrindo, Cantando, Sentindo, Chorando, Caindo, Querendo, Levantando, Defendendo, Mudando, Resistindo, Lutando, Perdendo,
91
Ganhando, Sofrendo, Sonhando, Dizendo, Acreditando, Vivendo, Amando, Vencendo!
Os versos Sorrindo,/ Cantando,/ Sentindo,/ Chorando,/ Caindo, revelam uma
pluralidade de imagens que desafia o princípio da contradição e promove a identidade
dos contrários na totalidade da imagem, pois as ações contínuas de sorrir, cantar, sentir,
chorar e cair, no contexto da luta pela terra, isto é, no campo vivencial em que o sujeito-
de-enunciação lírico está inserido, manifesta a totalidade de sentimentos e vivências do
povo em marcha.
Os versos seguintes encadeiam uma seqüência semântica univalente; Querendo,/
Levantando,/ Defendendo,/ Mudando,/ Resistindo,/ Lutando,/ e conduzem a marcha
para a esquerda, para o lado oposto ao que se sucediam as imagens antitéticas. Essas
imagens, ao mesmo tempo em que unificam e reforçam o paralelismo semântico,
também conduzem o traçado do caminho para o rumo esquerdo. O sujeito lírico, ao
assumir a condição de povo que caminha contra a ordem estabelecida, isto é, em direção
contrária à direita que se apresentava antitética, agora, no compasso do antidestino,
opõe-se às trilhas incertas e elabora no poema o ritmo seguro do caminhar para o devir
imaginado.
Quando Gaston Bachelard propõe o estudo da imaginação a partir do “problema
psicológico das qualidades imaginadas” postula que, “ ao invés de buscar a qualidade
no todo do objeto, será preciso buscá-la na adesão total do sujeito que se envolve a
fundo naquilo que imagina” (2003, p. 62-63). Essa qualidade propõe-se como uma
acumulação de valores uma vez que a felicidade de imaginar prolonga a felicidade de
sentir e deve nos seduzir por todos os nossos sentidos, mobilizando-nos para além do
que está manifestadamente envolvido. Por isso a expressão do autor: “No reino da
imaginação, sem polivalência não há valor” . Essa polivalência manifesta “o segredo das
correspondências que nos convidam à vida múltipla, à vida metafórica. As sensações
não são muito mais do que as causas ocasionadas das imagens isoladas.” Assim, se a
“causa real do fluxo de imagens é na verdade a causa imaginada precisamos
considerar, ao lado dos dados imediatos da sensação, as contribuições imediatas da
imaginação” (BACHELARD, 2003, p. 63).
92
Quando o sujeito-de-enunciação lírico, ao final da seqüência de imagens
recorrentes de resistência, no movimento para a esquerda, introduz um único verso que
remete novamente àquela seqüência antitética inicial, Sofrendo, justamente no ponto em
que a disposição gráfica do poema converterá a marcha novamente para a direita,
desencadeia uma série de versos que expressam a acumulação de valores uniformes.
Depois das imagens ambíguas da trilha inicial, o sujeito-de-enunciação lírico instaura
uma direção final segura que torna polivalentes as metáforas gráfica e semântica. As
reticências do primeiro verso que sugeriam um caminhar constante, incerto,
interminável, Somos povo caminhante..., são substituídas pelo sinal exclamativo no
final do poema estabelecendo a correspondência entre a imagem concreta do caminho e
a imaginação do sujeito-de-enunciação lírico que determina o triunfo: Sonhando,/
Dizendo,/ Acreditando,/ Vivendo,/ Amando,/ Vencendo!.
O poema organiza o sentido amalgamando forma e conteúdo numa perspectiva
que funciona como instância reguladora da caminhada do povo sem-terra. O tempo
verbal condiciona a trajetória a um tempo em andamento. O passado é reconduzido ao
presente na continuidade das ações que ditam um ritmo contínuo, incessante de marcha
e de luta. As rimas soantes perfazem todo o movimento e emprestam um andamento
contínuo ao ininterrupto caminhar. O vaivém é compassado por esse ritmo e por esse
tempo que mantém em conformidade sentimentos, ações e reações. Embora as imagens
se apresentem divergentes entre si no decorrer da construção, convergem, em sua
totalidade, ao tempo e ao ritmo que se delineia rumo à certeza da vitória no futuro.
Para Bosi, o ser vivo capta, a partir do olho, as formas materiais sensíveis e essa
sensação visual permite elaborar, no ato de ver, tanto a aparência das coisas quanto a
relação entre nós e essa aparência. Esse processo desencadeado pela sensação visual
“tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua
existência em nós” (BOSI, 2000, p. 19).
As imagens elaboradas no poema manifestam o anseio do eu poético em fazer
confluir, na imaginação criadora, aquilo que se parece com a caminhada histórica do
sem-terra, isto é, a disposição gráfica do poema, com a relação que a aparência do
caminho físico e todas as imagens manifestas nele representam na trajetória do povo em
marcha, constituindo o realismo do imaginário. A reflexão elaborada por Bosi sobre a
imagem mental ou inscrita a partir dos verbos aparecer e parecer ilustra a dupla relação
que a imagem entretém com o visível. Pois “o objeto dá-se” , diz o autor, “aparece, abre-
se (latim: apparet) à visão, entrega-se a nós enquanto aparência: esta é a imago
93
primordial que temos dele” . Depois, “com a reprodução da aparência, esta se parece
com o que nos pareceu. Da aparência à parecença: momentos contíguos que a
linguagem mantém próximos” (BOSI, 2000, p. 20). Também Octávio Paz (2006, p. 46)
entende que ao percebermos um objeto qualquer, este se nos apresenta como uma
pluralidade de qualidades, sensações e significados que se unificam, instantaneamente,
no momento da percepção. Essa operação unificadora da imagem acontece por meio do
sentido, pois
o sentido não é só o fundamento da linguagem como também de toda a expressão da realidade. Nossa experiência da pluralidade e da ambigüidade do real parece que se redime no sentido. À semelhança da percepção ordinária, a imagem poética reproduz a pluralidade da realidade e, ao mesmo tempo, outorga-lhe unidade (PAZ, 2006, p. 46).
Quando a imaginação põe em nós a mais atenta das sensibilidades, percebemos que
as qualidades representam em nós mais devires que estados e a imaginação tantaliza o
sonhador que pretende fixá-la. Por isso, quando se observa a imagem gráfica do poema
“Aos sem terra” (p.17), e se considera a aliança entre imagem concreta, imaginação e
sentimento, percebe-se o eu lírico tonalizado, isto é, aberto ao jogo de imagens
ritmanalisadas pelo impulso e pela vibração, abarcando ou reconciliando os significados
contrários ou díspares sem suprimi-los. Assim, lembra Bachelard, “entramos
naturalmente no universo das imagens, ou melhor, tornamo-nos o sujeito tonalizado do
verbo imaginar” (2003, p. 69). Quando essas imagens fundem juntos o sujeito e o
objeto, então a qualidade será encarada como uma tonalização completa do sujeito. Por
outro lado, a vibração produzida pela imagem poética pode produzir efeitos mais leves,
pois, “a imagem literária, triunfo do espírito da sutileza, pode também determinar ritmos
mais leves, ritmos que são apenas leves, como o frêmito dessa árvore íntima que é, em
nós, a árvore da linguagem” (BACHELARD, 2003, p. 70). Alcança-se, assim, o simples
encanto da imagem comentada, da imagem que adquire seu sentido e sua vida nas
metáforas.
Nessa perspectiva, o imaginário da terra, na Pátria Sem Terra de Adriane Rocha,
amalgama ao matiz social e ideológico um viés condutor da trajetória que busca
acomodar o homem ao ideal humano, à felicidade ética da espécie. Ao engendrar, por
meio da dimensão poética do símbolo, o caminho de volta do desterro cósmico, o
sujeito-de-enunciação lírico enuncia a luta antitética, predominante no regime diurno
94
das imagens e, por outro lado, o retorno eufêmico, representado no regime noturno.
Desta forma, a imaginação realiza o equilíbrio de um regime no outro, atribuindo “ao
imaginário, em qualquer de suas manifestações, o poder metafísico de se erguer contra a
morte” (TURCHI, 2003, p.32).
Essa característica da imaginação criadora de Adriane Rocha reporta a análise da
obra para a perspectiva de leitura proposta por Gilbert Durand. O autor propõe uma
Poética do Imaginário que interpreta a recorrência dos símbolos e imagens como
projeções inconscientes dos arquétipos em que se configuram as profundezas do
inconsciente coletivo. Discípulo do filósofo Gaston Bachelard, para quem a teoria da
imaginação centra-se nos elementos primordiais da cosmogonia Terra, Água, Ar e Fogo,
e da teoria do inconsciente coletivo elaborada pelos trabalhos de psicanálise de Jung,
Durand postula uma leitura arquetípica da imaginação criadora, aplicável no campo da
estética e da crítica literárias. Para o autor, o ser humano produz, na sua atuação
sociológica e cultural e, por conseguinte, na sua criação artística e literária, uma
inquestionável faculdade simbolizadora que pode tanto partir da cultura como do natural
psicológico, pois o essencial da representação e do símbolo encontra-se entre esses dois
marcos irreversíveis. Por isso, a Poética do Imaginário postulada pelo autor, remete a
análise para o “trajeto antropológico, ou seja, a incessante troca que existe ao nível do
imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que
emanam do meio cósmico e social” (DURAND, 2002, p. 41).
1.2 Regimes diurno e noturno: a luta antitética e o retorno eufêmico
Maria Zaira Turchi, ao estudar como se dá o processo de remitologização no século
XX, preconiza, a partir dos estudos de Gilbert Durand, uma abordagem da hemenêutica
simbólica com vistas a investigar a especificidade de cada gênero literário. Para realizar
tal tarefa, a autora adota a perspectiva antropológica que focaliza o imaginário como
tensão coesiva entre as forças subjetivas e biográficas e as sociais.
No entender da autora, cada geração recoloca as fronteiras do conhecimento e da
descoberta sob o enfoque de eterna dúvida, permitindo afirmar que “o prazer da
descoberta não é tanto o produto final – é a aventura humana” (TURCHI, 2003, p. 13).
Assim, para analisar a posição do símbolo e do imaginário nos tempos modernos é
preciso considerar que a questão ainda se coloca, por vezes, entre o valor da
argumentação conceitual da razão e a vocação e o poder do pensamento simbólico. Esse
95
reconhecimento, no entanto, não se caracteriza como um confronto direto entre
mentalidade científica e imaginário, pois o conflito entre as forças científicas e as
ressurgências simbólicas já não se delineiam em balizas antagônicas. A autora dialoga
com Durand para pensar a questão da alegada mentalidade científica e técnica do final
do milênio que parece ser “uma ilusão supersticiosa mantida pela pedagogia escolar e
universitária do Ocidente, mas que não corresponde absolutamente ao balanço profundo
da alma ocidental e contemporânea média” (DURAND apud TURQUI, 2003, p. 17).
A partir dessa perspectiva, as bases norteadoras da Literatura e antropologia do
imaginário (2003), de Turchi, alicerçam-se nas pesquisas de Gilbert Durand, discípulo
de Bachelard, Eliade e Jung, entre outros. Os trabalhos do autor resultam numa “teoria
sobre as estruturas antropológicas do imaginário constituindo-se em aparato teórico para
alicerçar estudos que tratam das relações entre o imaginário e a literatura.
Aplicando essa teoria aos gêneros literários em suas especificidades, Turchi
promove, por sua vez, a associação da crítica do imaginário ao estudo dos gêneros. No
segundo capítulo de sua obra, cujo subtítulo anuncia os Elos de similitude: lírico e
místico, a autora investiga de que maneira a “analogia e a similitude compõem-se nos
princípios estruturais do regime noturno místico e, no paralelo estabelecido, em
categorias modais do gênero lírico” (2003, p. 57-58). Para tanto, segue Turchi,
Nada mais lógico [...] do que basear a classificação dos gêneros literários, não mais exclusivamente na racionalidade produtora da lógica e do conhecimento subjetivo e objetivo do mundo, mas nas estruturas simbólicas que priorizam o imagético, nunca gratuito, anterior à própria razão, que guarda todos os mistérios do mundo no estuário do inconsciente coletivo (2003, p. 46).
Nessa perspectiva, é preciso considerar que as formas da poesia moderna levam às
últimas conseqüências a estrutura lírica sujeito-objeto, que se apresenta, “por
excelência, concentrada – forma rigidamente contida, pura significação”, complementa
Turchi (2003, p. 61).
No entanto, para compreender a estrutura do gênero lírico a partir da Poética do
Imaginário, faz-se necessário, primeiro, entender as estruturas do imaginário a partir dos
regimes diurno e noturno das imagens. A composição bibartida desses dois regimes,
procedentes de três posições reflexológicas, dão origem a três estruturas que podem ser
96
avaliadas como uma autêntica fisiologia do imaginário, pois estabelecem os princípios
gerais, constituindo as bases para a identificação de cada regime.
Como já foi dito acima, o regime diurno é constituído por signos de luta, de força
e de coragem, elementos fundamentais que dinamizam a imaginação simbólica desse
regime. Caracterizado “pela antítese, que opõe luz e sombra, e se compõe de conjuntos
de imagens opostas” (DURAND, 2002, p. 67), constitui-se como um regime
predominantemente masculino. O regime noturno, por sua vez, é o da antífrase,
essencialmente feminino, e nele ocorre a eufemização das imagens negativas do regime
diurno. Devido à ambivalência da energia libidinal, o regime diurno aparece como uma
figura masculina e paterna, violenta e ao mesmo tempo ascética, ao passo que no
noturno as “ imagens da morte, da carne e da noite” (DURAND, 2006, p. 197) são
valorizadas positivamente, e a libido se torna feminina e materna.
Conforme resume Turchi, Durand concebe as três dominantes reflexas “como
matrizes nas quais as representações simbólicas vão naturalmente se integrar” , e atribui
aos “grandes gestos reflexológicos o ponto de partida de seu método – concomitância
entre os gestos do corpo, os centros nervosos e as representações simbólicas” (2003, p.
26). Assim, os dois regimes são classificados a partir das três dominantes de
representações simbólicas que são agrupadas da seguinte forma:
O diurno, estruturado pela dominante postural, concerne à tecnologia das armas, à sociologia do soberano mago e guerreiro, aos rituais da elevação e da purificação. O noturno subdivide-se em dominante digestiva e cíclica: a primeira assume as técnicas do recipiente e do habitat, os valores alimentícios e digestivos e a sociologia matriarcal; a segunda agrupa as técnicas do ciclo, do calendário agrícola, os símbolos do retorno, os mitos e os dramas astrobiológicos (TURCHI, 2003, p. 27).
A estrutura mística do simbolismo da inversão do regime noturno é definida por
Durand como o gosto pela união e pela secreta intimidade, cuja representação é a figura
da taça, que simboliza a descida íntima. No entanto, a imaginação noturna não leva
somente à quietude da descida e da intimidade simbolizada pela taça, pois esse regime
leva também à dramatização cíclica, em que se organiza o mito do eterno retorno,
representado pelo denário e pelo pau. O dinamismo do ciclo, do retorno e das divisões
circulares do tempo é promovido pelo denário, enquanto o pau representa a promessa da
conquista, da vitória sobre o tempo. Portanto, se de um lado aparecem os arquétipos e
97
símbolos do retorno através dos esquemas rítmicos do ciclo, de outro os arquétipos e
símbolos messiânicos e históricos promovem a confiança no resultado final. Assim, por
meio desses arquétipos em que predomina a estrutura progressista, o tempo já não é
vencido pela segurança do retorno e da repetição, mas por uma conquista que domina o
devir. Essas estruturas místicas que visam à unificação, à realização da coerência dos
contrários, neutralizam o medo diante das imagens nefastas e terrificantes. É então que,
por essa alquimia da união coerente dos contrários, dá-se a eufemização da imagem na
simbolização do regime noturno místico. Durand vê a alquimia não apenas como um
regresso ao útero, como descida íntima, mas também como um processo de aceleração
do tempo para melhor dominá-lo, pois, conforme ensina o filósofo, “há um estreito
parentesco progressista entre a exaltação épica, ambição messiânica e o sonho
dimiúrgico dos alquimistas” (2002, p. 354).
1.3 Poética do Imaginário: analogias e similitudes entre o lír ico e místico
Os estudos de Maira Zaira Turchi associam o gênero lírico aos princípios que
sustentam as estruturas místicas do regime noturno das imagens. No entender da autora,
Os movimentos de dobrar-se sobre si mesmo, duplicar-se, refletir-se, encadear-se são próprios desse regime do imaginário que procura penetrar na intimidade quente do mundo, eufemizando os contrastes. Assim, os gestos de atar, ligar, prender, aproximar, constitutivos do regime noturno místico, dizem respeito à experiência de multiciplidade de significados dos seres, entre os quais a analogia pressente e explora semelhança de relações (TURCHI, 2003, p. 59).
Partindo do princípio de que a lógica da analogia leva à compreensão do universo
e que “o processo analógico está na base do simbolismo, é preciso indagar” , adverte
Turchi (2003, p. 57-58), “de que modo a analogia e a similitude constituem-se nos
princípios estruturais do regime noturno místico e, no paralelo estabelecido, em
categorias modais do gênero lírico” . Para esclarecer a questão, a autora chama ao texto
as diferentes configurações da similitude postuladas por Michel Foucault: “a
convenientia, a aemulatio, a analogia e a sympathia” (TURCHI, 2003, p. 58). A ligação
por vizinhança, algum laço de parentesco, ainda que obscuro, a idéia de conveniência, o
sopro das influências, das paixões, que atrai as coisas semelhantes e assimila as
próximas, constituem a primeira forma de similitude, que de círculo em círculo vão se
98
ligando como anéis uns aos outros. A segunda forma de similitude, a aemulatio, cria
uma espécie de anel de emulação, uma cadeia, em forma de círculos, mas que não estão
presos às leis do lugar, podendo agir à distância. A analogia, que se sobrepõe as duas
primeiras, é a terceira forma de similitude, e remete a ajustamentos, nexos, junturas,
assegurando o confronto das semelhanças no espaço. Essa forma cuida das relações
mais sutis das semelhanças, pois, localizada num espaço de irradiação, envolve o
homem por todos os lados, e o homem, por seu turno, é o ponto de apoio a partir do
qual as analogias se proliferam. A quarta forma de semelhança consiste no jogo das
simpatias que agem espontaneamente, caracterizando-se pelo poder de assimilar, de
igualar as coisas, de anular ou fazer perder a identidade inicial, transformando-as. Desse
modo, a analogia e a similitude constituem os princípios que balizam as estruturas
místicas do regime noturno. A eufemização dos contrastes se dá por meio dos
“movimentos de dobrar-se sobre si mesmo, duplicar-se, refletir-se, encadear-se”
procurando “penetrar na intimidade quente do mundo” (TURCHI, 2003, p. 59).
Entende-se, assim, que o elo de viscosidade possibilita, pelo processo da similitude, em
âmbito geral, e da analogia, em particular, estabelecer ligações com objetos ou figuras
separadas por meio de gestos como atar, ligar, prender, aproximar, constitutivos do
regime noturno místico. Essa estrutura aglutinante, diz Turchi, “conduz ao eufemismo, à
inversão dos valores, fazendo o negativo reconstituir-se em positivo” (2003, p. 59).
Como conclusão ao estudo desse regime, a autora acentua que o princípio básico das
estruturas místicas e do gênero lírico é a analogia. Daí o seu poder de atribuir ao mundo
um ritmo universal por meio do redobramento das imagens, dos encaixamentos, dos
acordes de repetição, sinais da redundância essencial na estrutura mística. É a atitude
repetidora da consciência, promotora da recorrência e da redundância que leva ao ritmo
e à rima, diferenciando o lírico dos outros gêneros.
A autora observa, então, que a diferença do lírico dos demais gêneros literários
consiste no movimento de significação que amarra o lírico ao inconsciente reflexo do
corpo vivo, uma vez que é no processo interno
mais íntimo que o ego vai buscar o nascimento ou a gênese de uma significação, com a força da linguagem primeira, do verbo. O lírico é a emoção do pensamento que compreende e significa um novo sentido, em palavras ainda quentes do mistério da ação interior, despojadas de outras camadas materiais. No lírico, a consciência quer realizar o duplo movimento de revelar o mundo, revelando-se a si própria como reveladora do mundo (TURCHI, 2003, p. 60).
99
Nessa perspectiva, os estudos da autora sobre os gêneros literários pelo viés da
Poética do Imaginário, vinculam suas proposições sobre o gênero lírico aos trabalhos da
alemã Käte Hamburger, que propõe uma leitura dos gêneros literários a partir do
sistema de enunciação da linguagem, conforme reflexão já pontuada no capítulo
anterior. Turchi dialoga com Hamburger para pensar a definição do eu-lírico “como um
sujeito, no sentido pessoal do conceito, e também como sujeito da enunciação, podendo
abarcar, deste modo, as manifestações mais modernas da poesia” (TURCHI, 2003, p.
60). No entender da autora, a ligação entre as duas teorias se estabelece porque a noção
de sujeito-de-enunciação lírico pode ser pensada “em paralelo com o realismo sensorial
das representações ou vivacidade das imagens – característica do regime noturno
místico” (TURCHI, 2003, p. 61).
A obra de Adriane Rocha mobiliza signos de força, de coragem e de luta,
pertencentes ao regime diurno das imagens. Ao mesmo tempo, a recorrência das
imagens que buscam uma incessante trajetória de retorno, introduzem os símbolos que
pertencem ao regime noturno. Dessa forma, observa-se, por um lado, o sujeito-de-
enunciação lírico conduzindo a imaginação criadora em clima de tensão e
complementaridade entre os dois regimes. Entre ascensão e queda, altura e
profundidade, exposição e interioridade, entre o gláudio e a taça o movimento do sujeito
poético em tecer uma lírica que expressa os sentidos e configurações simbólicas
elaboradas no ambiente cultural e histórico do MST, vai restituindo homens e mulheres
sem-terra ao espaço que justifica sua luta. Por outro lado, esta lírica expressa um desejo
inconsciente que move a humanidade em busca do paraíso terreal e permite entrever,
nas imagens elaboradas, o mito do Paraíso Perdido e do Eterno Retorno. A recorrência
dessas imagens remete a poesia de Adriane Rocha para a estrutura mística do regime
noturno das imagens. Assim, transitando entre os dois regimes, ou inscrevendo-se mais
diretamente às estruturas místicas próprias do gênero lírico, as imagens conferem ao
fazer literário da poeta sem-terra a concretude do sonho humano em encontrar as bem-
aventuranças terrestres, conferindo à luta dos sem-terra proporções universais, uma vez
que a humanidade inteira, indistintamente, carrega em si o anseio de retornar ao Paraíso
Perdido.
2. Do inferno ao paraíso: a imaginação simbólica assenta esperanças
100
Na mão que nunca se cansa/ a Esperança, a Esperança...
(Pedro Casaldáliga)
Os poemas de Pátria Sem-Terra que trazem o simbolismo dos dois regimes são:
“Sem-terra” , “500 Anos amor maligno” , “500 Anos amor maligno II” , “Antes que
racionais, animais” , “Futuro ameaçado”, “Terra e vida, terra é vida” , “Um novo Brasil é
possível” , e “Esperança” .
No poema “Sem-terra” (p.18-19), o sujeito-de-enunciação lírico apresenta versos
que perguntam qual é a identidade dos sem-terra para então enunciar, no decorrer do
poema, a identidade coletiva desse povo. Os versos que iniciam os blocos de enunciados
Quem são eles?/, Quem são?/, Quem são esses homens e essas mulheres?/, questionam
de maneira direta e sugerem um movimento que se faz do geral para o particular. No
primeiro verso, o eu lírico pergunta de forma genérica: Quem são eles?, sem gênero
específico, eles, um sujeito coletivo, um grupo social. Depois, torna a perguntar de
maneira ainda mais genérica: Quem são?, voltando a indagação mais em direção ao
sentido sobre a condição de ser sem-terra e menos sobre quem é o sem-terra. A
enunciação interrogativa é retomada alargando e especificando a constituição do grupo
em gêneros: Quem são esses homens e essas mulheres?. A partir desse fio condutor e
identificador do sem-terra e da sua trajetória, o sujeito-de-enunciação lírico expressa
símbolos presentes nos regimes diurno e noturno das imagens ao instituir na enunciação
lírica o simbolismo da ascensão e da descida, do gláudio masculino e da taça feminina,
representantes dos dois regimes. O pólo-objeto das enunciações interrogativas
estabelece associações de sentido com o título, “Sem-terra” , apresentado como nome
próprio, genérico, razão pela qual, no decorrer do poema, permanece como ponto de
referência, como o núcleo que produz a associação de sentidos. Os versos enunciantes
que seguem a primeira proposição, Quem são eles?:
Que marcham destemidos. Sob o tapete da história
Deixando rastros na memória E nos passos a ousadia
De lutar pela vida Por mais fino que seja o fio da esperança,
Bordam a cortina do tempo Com os olhos buscam num sorriso de criança
A certeza de não andarem contra o vento
101
trazem referência aos símbolos da força, da coragem, da luta e da esperança e aparecem
logo no início das enunciações. A atitude de marchar destemidamente equivale a
marchar com coragem e ousadia na luta pela vida, contra a cortina do tempo. Assim, as
características do simbolismo presente no regime diurno das imagens vão compondo,
aos poucos, a indentidade coletiva do povo que marcha Sob o tapete da história. Esse
tapete manifesta a relação identitária estabelecida entre a consciência histórica ou,
memória histórica construída pelo Movimento com o desejo de reencontrar as raízes que
ligam o homem à terra, ao Paraíso Perdido, pois os rastros deixados na memória
impulsionam os passos da ousadia e tecem o fio da esperança. No entanto, os versos
Por mais fino que seja o fio da esperança,
Bordam a cortina do tempo
trazem elementos femininos do regime noturno da imagem, instaurando no poema o
primeiro entrelaçamento simbólico entre os dois regimes. Se o fio da esperança é fino e
delicado, as mãos que bordam a cortina do tempo deverão ser também delicadas,
femininas. O trajeto é tecido com cuidado, pois as armas ascencionais do regime diurno,
o cetro e o gláudio, embora necessárias para conduzir a marcha heróica, não são
suficientes para subverter o tempo em favor da esperança. O mitema do fio une os
destinos individuais e coletivos, entrelaçando a trajetória do sem-terra ao destino de
todo mortal, que é projetado no mito das Moiras gregas, soberanas do destino de todos
os homens. As Parcas, como eram chamadas pelos romanos, se dividiam na tarefa de
fiar, enrolar e cortar o fio da vida. Durand ensina que “o fuso ou a roca, com os quais
estas fiandeiras fiam o destino” sintetizam “os instrumentos e os produtos da tecedura e
da fiação” , que “são universalmente simbólicos de devir” (2002, p. 321). Assim, na
tarefa de bordar a cortina a tempo, estão reunidas as imagens que formam o elo de
viscosidade, pelo processo da similitude e da analogia, estabelecendo a ligação entre a
condição negativa do presente a um tempo futuro onde se desvela a promessa de vida.
Desse modo, “o futuro é presentificado, é dominado pela imaginação”, pois como
lembra Durand, “nesse dia tudo era possível... o futuro foi presente... quer dizer, houve
mais tempo, um relâmpago de eternidade” (2002, p. 353).
Os gestos de atar, ligar, prender, aproximar, constitutivos do regime noturno
místico, conduzem “ao eufemismo, à inversão dos valores, fazendo o negativo
reconstituir-se em positivo” (TURCHI, 2003, p. 59). O tempo que se colocava como
ameaça aos propósitos luta, é convertido em aliado, pois permite tecer, durante a
102
caminhada, o manto da esperança. O imaginário desliza, então, o simbolismo da
estrutura heróica do regime diurno para a performance eufemizante do regime noturno,
atribuindo ao bordado a função benéfica de unir e prender o fio do tempo ao fio da
esperança. Assim, “o fio, que é o primeiro elemento de ligação artificial” e “ já é símbolo
do destino humano” (DURAND, 2002, p. 107), tece a metáfora que se ergue contra o
destino como
A certeza de não andarem contra o vento.
O caminho é aberto em direção contrária aos ventos da História. No entanto, ao
andar contra a ordem imposta, a caminhada segue as pegadas da certeza que emana da
força e da organização que os ideais da luta do Movimento projetam ao traçar o futuro.
E esse vento imaginado não será contrário, soprará favorável ao objetivo comum, ao
desejo sagrado de retornar à Terra. Não se anda contra o vento, enuncia o sujeito-lírico,
quando se luta pela vida, pela unidade cósmica e essa conformidade alinha as aspirações
do sem-terra e da própria Terra em resgatar-se mutuamente. O movimento desses
homens e mulheres rompe a barreira dos ventos estabelecidos e alinha-se ao ritmo de
luta do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Assim, embora o sujeito-de-
enunciação lírico movimente no poema imagens que, numa atitude heróica, aumentam
hiperbolicamente o aspecto tenebroso e maléfico da face do tempo, traz também
imagens eufemizadas da trajetória indicando a presença do simbolismo materno e
acolhedor da intimidade, simbolizado pela taça. Esse simbolismo representa a cautela, a
delicadeza e o aconchego presentes no regime feminino, pois a trama do bordado requer
essas qualidades para engendrar num sorriso de criança a fiação de um tempo futuro
onde sopram os ventos favoráveis da certeza. Por isso, essa certeza está mais a frente, na
geração para quem os ventos contrários ao cotidiano de luta soprarão em harmonia,
unificando Terra e Humanidade.
No entanto, se a manifestação do cuidado em manter a marcha na direção segura,
esquivando-se dos ventos contrários, remete ao simbolismo materno, ao colo delicado e
acolhedor da intimidade, por outro lado, a imaginação poética reforça “o apelo dos
contrários que dinamizam os grandes arquétipos” (DURAND, 2002, p. 169). Assim, o
sujeito-de-enunciação lírico observa e identifica o povo sem-terra e a trajetória
imaginada, pois ser sem-terra, na expressão do sujeito-de-enunciação lírico ao responder
103
a segunda enunciação interrogativa, é tecer delicadamente o fio do destino, mas é
também entoar, falar, denunciar e clamar:
Os que entoam uma canção E nos acordes mais simples
Falam da repressão Denunciam a exploração. E clamam por dignidade.
Por meio desse canto, que é denúncia e clamor, a imaginação reencontra o
isomorfismo ar-palavra-visão, tal como foi estudado por Jung e Bachelard: “palavras
dinâmicas, fórmulas mágicas que pelo domínio da respiração e do verbo domam o
universo” (DURAND, 2002, p. 155). Os versos que complementam o terceiro
enunciado interrogativo que distingue o povo sem-terra em gênero, Quem são esses
homens e mulheres?, expressam o sentido de complementaridade que o sujeito-de-
enuciação lírico vai estabelecer entre ambos, pois esses homens e essas mulheres
constituem-se, juntos, um povo unificado em torno da mesma causa,
Que se permitem sonhar de novo
Resgatando valores assim como o orgulho De ser povo caminhante...
A distinção, seguida da unificação, realiza no poema a harmonização dos
contrários a que se refere Paz (2006, p. 41) quando lamenta o modelo polarizador do
pensamento ocidental. Homens e mulheres resgatam a dignidade da condição humana
em sua porção masculina e feminina. Essa consciência da dualidade do ser humano
expressada no enunciado interrogador manifesta, nas enunciações do poema, um outro
fazer, o fazer cultural do próprio MST, que faz deslizar o sentido das imagens para a
comunhão entre o animus e a anima. Bachelard lembra que essa síntese essencial é
“ facilmente destruída no contato com a vida cotidiana” (2006, p. 58). No entanto, a
consciência da totalidade de cada ser, composta pelas dimensões feminina e masculina,
é simbolizada no meio social do Movimento pela forma como são compostas as
lideranças, exercidas sempre por um homem e uma mulher, em todos os espaços, quer
seja no acampamento, no pré-assentamento ou no assentamento definitivo ou, ainda, nas
coordenadorias e direções de âmbito estadual e nacional. Essa fusão expressa a busca da
unidade também na organização do mundo material. Assim, conforme observa Paz
(2006, p.50), “o dizer do poeta se encarna na comunhão poética. A imagem transmuta o
homem e converte-o por sua vez em imagem, isto é, em espaço onde os contrários se
104
fundem”, pois essa transmutação harmoniza o ser consigo mesmo quando se faz
imagem, quando se faz outro. Desse modo, o poema não apenas anuncia a existência
dinâmica e necessária de seus contrários como também a sua final identidade. Daí a
unidade restauradora que passa a interrogar em enunciados seguidos por imagens que
evidenciam o fazer coletivo e movimentam homens e mulheres em busca do mesmo
alento para uma mesma luta:
Quem são esses doutores analfabetos
Que nos seus consultórios descobertos Produzem remédio para a mais
Terrível dor que consome E nessa batalha diária contra a fome
Tem na reforma agrária seu grito de socorro
As imagens promovidas pelos adjetivos antitéticos doutores analfabetos, e de um
espaço, consultórios descobertos, tido culturalmente como um ambiente bem
estruturado e equipado, indicam a condição reguladora da existência desse grupo social,
composto por homens e mulheres, doutores que produzem sua história a céu aberto,
buscando na reforma agrária a unidade cósmica e a cura para as misérias produzidas
pela História humana. O seu grito de socorro rompe os ventos impostos pelo progresso
e anuncia uma outra unificação:
Que gente é essa que quer Unir campo e cidade
Numa grande irmandade Para juntos buscar a tão sonhada liberdade
E o direito a cidadania
Campo e cidade, dois espaços distintos que essa “gente” quer unir e irmanar. O
sujeito-de-enunciação lírico revela que há um outro, uma outra gente, em outro espaço,
e o direito à cidadania é sonho de ambos, das gentes do campo e da cidade. Por isso,
pelo propósito da comunhão com o outro, a resistência aos constantes desenraizamentos
trazidos pelo progresso se justifica como qualidade:
E na arte de resistir alguém já dizia Indignar-se com injustiças É uma provocação? – Não! Para eles é uma qualidade Tão bonita quanto A solidariedade e a humildade De ver no outro o irmão.
105
Na ânsia de dizer-se como essa gente, como esse outro, o sujeito-de-enunciação
lírico chama para si o canto de indignação e denúncia. Conforme Turchi, “as
aproximações da conveniência, os ecos da emulação, os nexos da analogia são
sustentados, mantidos em duplicação pela reação de simpatia e de antipatia que pode
aproximar ou distanciar as coisas do mundo” (2003, p. 58). Assim, configurando as
imagens pelo processo da analogia e da similitude, o sujeito lírico coloca-se como ponto
irradiador das enunciações. Não é provocação “deles” indignar-se com injustiças, Para
eles é uma qualidade como A solidariedade e a humildade, pois “eles” vêem no outro o
irmão. Eles e estes, os doutores analfabetos, os do campo ou da cidade, dizem-se nesse
sujeito-de-enunciação lírico, nessa relação lírica sujeito-objeto.
Quem são estes que possuem mãos calejadas Que empunham com fervor a bandeira E identificando-se como os SEM-TERRA Assim seguem na grande fileira... Por um lugar sem guerra Enfrentam cada anoitecer Com rebeldia para mudar a trajetória Cantando a vitória Em cada amanhecer.
Os homens e mulheres com mãos calejadas que gritam por socorro, que propõem a
união entre campo e cidade, empunham com fervor, indignação e rebeldia uma bandeira
que é sua e é também de um outro. A bandeira, empunhada numa atitude heróica,
converte-se em talismã benéfico que identifica o grupo proclamando a coexistência
dinâmica e necessária dos contrários como sua final identidade.
No poema analisado, os seis versos estruturados em enunciados interrogativos
reiteram a angústia e a ansiedade com que o sujeito-de-enunciação lírico questiona uma
existência de limitações e privações. Ao reconhecer essa condição, o sujeito lírico
justifica a “rebeldia” do grupo social que se coloca em marcha à procura de um lugar
sem guerra, longe da miséria humana, numa atitude heróica, caracterizada pelo
simbolismo do regime diurno das imagens. Nos dois últimos versos, Cantando a
vitória/ Em cada amanhecer , a imagem do triunfo, recorrente em todos os poemas,
desliza o sentido dos enunciados para a regime noturno místico, para o aconchego da
taça, manifestando o desejo de Eterno Retorno para a Grande Mãe.
Os poemas “500 anos amor maligno” (p. 20) e “500 amor maligno II” (p. 21)
trazem o simbolismo da Grande Mãe, a terra acolhedora e feminina presente nas
estruturas noturnas místicas. Os títulos remetem ao período do descobrimento do Brasil,
106
estabelecendo os elos de analogia e similitude entre os enunciados dos poemas. O
sujeito-de-enunciação lírico organiza imagens carregadas de potencialidade simbólica
que remetem ao mito da Grande Mãe, o espaço primordial, pois a terra é Moça menina/
Terna morena de Face serena/ Inocente feminina /.../ Ardente, nativa, única. Essa
“redundância que se manifesta nas repetições insistentes, elucida o modo como o mito
se configura no lírico” , ensina Turchi (2003, p. 82). A Grande Mãe, também conhecida
como Gaia, personifica a Terra, a Mãe Primordial dos deuses e dos homens, doadora da
vida que estruturou o Caos. Gaia tinha tantos nomes quantas fossem as suas
representações na natureza, dentre os quais, Telus, Cibele, Deméter, e Ops são os mais
conhecidos nas mitologias. Por isso, também na mitologia a frase “mãe é uma só” pode
ser usada no sentido de que todas as Deusas são uma única, todas são manifestações da
Grande Mãe, a energia criadora que dá a vida, nutre e mantém os filhos. Durand lembra
que essa crença na divina maternidade da terra é certamente uma das mais antigas” e,
“uma vez consolidada pelos mitos agrários, é uma das mais estáveis” (2002, p. 230).
Assim, o sujeito lírico expressa a conaturalidade entre terra e vida, entre a terra e a
mulher, especialmente a mãe, por sua inesgotável capacidade de frutificar e se doar. No
entanto, embora os mitemas formadores das imagens iniciais do poema remetam ao
mito da Grande Mãe, os versos seguintes são introduzidos pela conjunção adversativa,
enunciando uma perspectiva simbolizadora de oposição:
Mas, roubaram-na a verde túnica, brutalmente a Penetraram, ainda virgem,
Sentindo vertigem, murmurou de dor
A Terra é transformada em objeto a ser explorado pelo homem, é tomada como
mercadoria que pode ser comprada e vendida, explorada até a exaustão, pois
Das entranhas arrancaram-lhe riquezas, Deixando tristeza, no ventre maior
No pior momento, dominaram-na sangrando sua veia
e a Grande Mãe, matriz da vida, sangra nas mãos dos humanos que em nome do
progresso, secam o seu ventre de mãe, pois
Sofrimento igual outra não teve
E aqueles que procuravam pelo Paraíso Perdido tomaram-na para si, fizeram dela
sua colônia e a batizaram, iniciando um longo período de exploração.
107
Primeiro resolveram chamá-la de Monte Pascoal
Em seguida Terra de Santa Cruz, hoje mãe gentil, Pátria Amada Brasil!
A pátria é então simbolizada pela imagem da mãe gentil, remetendo para o
simbolismo do casal divino céu-terra, presente na mitologia universal. “A terra é o
ventre materno donde saíram os homens” diz Durand, e por isso “o sentimento
patriótico (dever-se-ia dizer matriótico) seria apenas a intuição deste isomorfismo
matriarcal e telúrico” (2002, p. 230). Assim, o sujeito-de-enunciação lírico simboliza a
pátria como um macroorganismo vivo, pois a pátria é a Terra e, como tal, ensina Boff,
não apenas a pátria está ameaçada, mas “a própria Terra como um todo está doente e
deve era tratada e curada” (2000, p. 165). Por isso, a pátria é o cosmo de onde fala o
sujeito-de-enunciação lírico, é a terra que “se apresenta com tal dosagem de elementos,
de temperatura, de composição química da atmosfera e do mar que somente um
organismo vivo pode fazer o que ela faz. A Terra não contém vida. Ela é vida, um
superorganismo vivente, Gaia” (BOFF, 2002, p. 185).
O movimento das estruturas simbólicas que conduzem as imagens de um regime a
outro anuncia o simbolismo de um tempo nefasto. Esse simbolismo é intensifico no
poema “Amor maligno II” (p. 21) onde a insistência nos enunciados interrogativos
reaparece, promovendo elos de viscosidade entre as imagens. Os versos interrogadores
Quem te ama com tanto fervor?/, Teus filhos sem solo? Como amamentá-los?/, Se
teimam a secar tuas veias cristalinas?/, Queimando-as com o laser da
intransigência....?, distribuídos da primeira a terceira estrofes, intensificam-se na
última, que é composta por três enunciações interrogadoras:
Que te resta se bóias no desamor? Curando, com rancor, chagas cancerígenas? Como suportar este amor maligno?
A angústia e a indignação confundem-se nas enunciações do sujeito lírico que não
diz, não enuncia, apenas indaga. Diante do estado em que a Mãe foi transformada, os
versos só fazem tentar entender o comportamento dos filhos que degradam e
corrompem a Grande Mãe. Aquela Terra acolhedora, que recebera e encantara os
descobridores do Novo Mundo, convalesce em chagas. Explorada como algo inerte,
como coisa extensa e rentável, perdeu a sua condição primeva de Mãe e agoniza à
108
margem do progresso pois, sua condição materna de gerar vida está ameaçada. Mas o
sujeito lírico invoca:
- Terra adorada te olha – Volve os olhos para ti Quem te privas de pôr em teu colo
clamando pela reação da Grande Mãe, manancial de onde vem a vida, colo sagrado que
não se pode comprar nem vender, pois foi herdada dos ancestrais. Aqueles que a
profanam não agem como filhos, pois
Se em teu ventre “ laqueiam” As trompas que dá a vida
põem em risco a vida da Terra e, por conseguinte, de toda a humanidade. Por isso o
sujeito-de-enunciação lírico perfila as interrogações angustiadas diante da Mãe
agonizante, trazendo para o poema o esquema tenebroso das imagens da queda e da
morte. O mito do Paraíso Perdido é soterrado pelo mito da Queda, originário das
narrativas que falam de uma era dourada, que, entretanto, desapareceu por culpa
humana. A partir da instauração desse mito, a reentrada da humanidade no Paraíso ficou
condicionada a provas de sofrimento e de sacrifício. A Queda pode assumir também a
forma de desilusão política, religiosa ou pessoal. Os inocentes tornam-se órfãos quando
pensam que Deus está morto ou os abandonou, que o governo nem sempre é bom, que
as leis nem sempre são justas, e que os tribunais não os protegem. Os filhos órfãos,
aqueles que insistem em retornar para o seio da Grande Mãe na esperança de encontar
as bem-aventuranças, sentem-se impelidos a lutar por sua sobrevivência, que representa,
também, a sobrevivência da humanidade. Assim como “em todas as épocas, portanto,
em todas as culturas os homens imaginaram uma Grande Mãe, uma mulher materna
para a qual regressam os desejos da humanidade” (DURAND, 2002, p. 235), também os
herdeiros do progresso desejam retornar. Por isso sua luta se coloca contra os propósitos
do progresso, porque desejam proteger a Mãe dos perigos que ele representa à
sobrevivência dela e dos homens.
O poema “Antes que racionais, animais” (p. 26-27) manifesta um ritmo e um tom
que confronta a criação divina e a criação humana. O sujeito lírico introduz, a partir do
verbo existir, cinco enunciados, dos quais apenas dois são suficientes para criar, para
109
fazer existir um universo completo: há um planeta chamado Terra e nele há o homem,
único animal racional da criação:
Existe, entre tantos, um chamado Terra, Dizem que é um planeta redondo,
Existe, entre tantos, um chamado homem, Dizem que é o único animal racional.
O que não dá pra se ter certeza, Sem respeito, agridem-se...
Alguém diz, a ciência diz: dentre toda a criação, a racionalidade é característica
exclusiva do homem. No entanto, há uma dúvida nessa proposição, pois, como racionais
que são, não poderiam alterar a criação perfeita remetendo o Cosmo ao estado de Caos,
anterior à criação. A previsão desse desfecho trágico para o destino da Terra coloca em
dúvida a racionalidade humana que é enuncida pelo sujeito lírico logo no quinto verso.
A dúvida inicial vai se converter em certeza, dimensinando, no decorrer de enunciados
líricos, os defeitos e limitações da criação humana: Sem respeito, agridem-se..., e as
reticências indicam ainda um vasto simbolismo de imagens negativas colocadas em
relevo pela irresponsabilidade humana. Leonardo Boff lembra que o “ judeo-cristianismo
[...] afirma que o ser humano foi criado para ser o zelador da Terra como jardim do
Éden” (2002, p. 101), no entanto, pelo contrário, o desfecho do dominium terrae revela
a prática humana que domina e explora a Terra, justicada pela ordem divina. As
conseqüências perversas do mandato do Gênesis (1, 28), “Frutificai, disse ele, e
multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a” , resultaram num paraíso diferente daquele
para o qual a humanidade deseja retornar. Existe a ganância e eis que existe a criação
humana, o Caos, apartando e distanciando os animais racionais.
Existe, entre tantos, uma chamada ganância, Que toma conta do coração deles;
Então ficam cegos, e querem só pra si... Existe, entre tantos, um “paraíso” de máquinas,
Uma confusão de botões. Dizem que é uma revolução tecnológica.
Nessa revolução de autoria humana, o homem constrói para si um “ paraíso” de
máquinas, e Existe, entre tantas, uma chamada computador. E o homem, cego perante
sua criação, converte-se, também, em máquina. Assim, o sujeito-de-enunciação lírico
vai delineando um universo virtual, Que afasta os “ racionais” uns dos outros,
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Namorados já não passeiam de mãos dadas, Por entre jardins (“navegam” sem ao menos se verem);
Pois, já não existem jardins. Transformam tudo em uma grande selva de concreto Fica difícil entender certos paradoxos destes animais
“racionais” .
Os animais racionais criam seu mundo paradoxal em que suas criações não
suplantam os abismos entre uns e outros, pois
Para uns, sobra comida em suas mesas,
Outros milhões morrem de fome Uns tem grandes casas,
Outros milhões moram embaixo de pontes Para uns constroem-se escolas supérfluas
Para outros será reservada a cegueira do analfabetismo
Uns e outros não têm o mesmo direito de acesso aos benefícios da criação
humana. E a própria máquina expõe o abismo social que impera.
No auge da modernidade é privilégio
Para uns expor, vulgarmente, seus corpos num “Big Brother”
Outros são obrigados a prostituírem-se Para sobreviverem no que chamam sociedade.
Uns e outros têm destinos diferentes, assim como a criação humana, pois enquanto
Uns já comemoram a ciência de clonar,
A efêmera vitória da morte,
outros milhões morrem/ Numa guerra sem nome. Em uns, o sucesso, a prepotência e o
poder imperam nesse reino maquinizado,
Em uns obstina-se a busca do sucesso Exercendo-o com prepotência para manterem-se no poder.
Em outros, a esperança de que o Caos da modernidade possa outra vez se
converter em Cosmo, restabelecendo a criação divina.
Em outros a esperança acalenta o sonho Da Liberdade de viverem como irmãos,
Animais da mesma espécie.
Do Cosmo ao Caos e do Caos ao Cosmo. O movimento engendrado pelo sujeito
lírico para passar a limpo o existir das duas criaturas, Terra e Humanidade, traz a
111
imagem da Terra em sua passividade de Mãe, e a imagem dos animais racionais que
existem, mas também fazem existir um outro mundo. Esse mundo, onde as diferenças
sociais imperam, torna-se ainda mais hostil aos que acalentam o sonho de viverem
como irmãos, pois é a máquina quem dita as regras nesse espaço competitivo e
excluidor. O mito da Grande Mãe revela-se nos mitemas estruturados em feixes de
imagens que manifestam a oposição entre os esquemas do simbolismo noturno místico e
do diurno. Nos dois primeiros enunciados líricos a Terra, acolhedora e materna, traz a
imagem do círculo, do centro, do ventre materno e acolhedor, pois Dizem que é um
planeta redondo. Os demais enunciados revelam a ascendência do homem como
dominador da criação. Nesse mundo dominado pelo homem, alguns desfrutam os
privilégios trazidos pelo progresso enquanto outros são excluídos e condenados a todo
tipo de privações e misérias. O poema, criação que é, perfaz pela palavra, pelo Verbo, a
existência dos dois seres, do ser Terra e do ser Homem, ameaçados pelas ações
humanas. Ao final do poema, nos três últimos enunciados, o sentimento de temor
presente no regime diurno que se desvelou no decorrer das constelações de imagens
relativas à queda humana, dá lugar às armas representantes da luta heróica desse regime,
pois a esperança é a arma com que o sujeito-de-enunciação lírico se opõe à queda
definitiva da Terra e da espécie humana. É dessa maneira que a antítese do regime
diurno se faz sempre presente nas enunciações líricas de Adriane Rocha.
A vida no e do planeta está com o “Futuro ameaçado” (p. 31-32), anuncia o título
de outro poema. A água, elemento essencial para a sobrevivência da vida na Terra, vem
juntar-se aos movimentos da palavra criadora e a faz deslizar pelo leito do rio:
Teu nome é sinônimo de vida Por todo o universo, conhecida A lua e as estrelas contemplam sua beleza... Tua cor, sem cor! Teu gosto sem sabor! Teu cheiro, sem odor! ....doce... ...salgada... ...clara... ...cara?... ...escura? ...poluída?... ...agredida?... ...privada?... ...contaminada?... ...escassa?... ...desperdiçada?... ...ameaçada?... ...preciosa? ...Água...
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A água, espelho que refletia a lua e as estrelas reflete agora a ação humana. Ela
que fora criada pura e límpida, doce, salgada e clara, agora tem seu leito poluído e, por
isso, segue o seu curso agredida e contaminada. A “água negra é sempre, no fim das
contas, o sangue, o mistério do sangue que corre nas veias ou se escapa com a vida pela
ferida” . E esse “sangue é temível porque é o senhor da vida e da morte, [...] é o primeiro
relógio humano, é o primeiro sinal humano correlativo do drama lunar” (DURAND,
2002, p. 111). Assim, o simbolismo da água que corre, negra e refletiva, redobrando a
imagem como a sombra redobra o corpo, traz o esquema que valoriza negativamente o
negro e o escuro, opondo-se à imaginação da luz e do dia. A essa primeira parte do
regime diurno que é consagrado às trevas e projeta a angústia diante da mudança,
retratando o medo e a fuga do tempo, vem juntar-se o simbolismo formador da terceira
epifania imaginária da angústia humana, também relacionada às trevas. Forma-se,
assim, o esquema da queda do regime diurno que resume os terríveis aspectos do tempo
nefasto, moralizado pela punição. A ação do homem promoveu um desvio profundo no
curso límpido das águas e, por conseqüência, no curso da história humana. Então o eu
lírico conclui:
Estamos colhendo o que plantamos, Ou melhor, o que desmatamos...
E prevê um outro existir, criando uma expectativa árida e hostil, um mundo com
sede de vida, pois as imagens trazem uma sucessão de dúvidas e ausências como nos
versos que antecipam a Queda da criação como reflexo das ações humanas:
Talvez um dia não existam mares; Nem rios nos limites das fronteiras. Talvez um dia não existam verdes, Nem chuvas, para sorrir as flores. Talvez um dia não existam peixes, Nem lagos para os sapos fazerem suas serenatas Talvez um dia não exista verão; Nem arco-íris riscando o céu Talvez um dia não existam sementes no chão Nem mesas fartas de pão Talvez um dia não exista água. Nem vidas...
Talvez um dia, nem rios, nem chuvas, nem lagos, nem arco-íris e se as sementes
da vida não puderem germinar, então toda a vida sobre a Terra estará condenada. Diante
113
das imagens nefastas é preciso criar um outro mundo, em que o talvez e o nem dêem
lugar a outras nascentes, pois a previsão da extinção da vida do e no planeta é iminente.
Nesse segmento, os mitemas presentes nas rimas dos versos 29, 31 e 32, verão, chão e
pão, intercaladas pelos versos 30, 33 e 34, que terminam com os mitemas sintetizadores
do cosmo, céu, água e vidas, elaboram uma seqüência simbólica convergente que
manifesta, por meio da menor unidade semântica do discurso mítico, a constelação de
imagens do mito do Paraíso Perdido.
Mas talvez um dia nascentes surgirão No coração da humanidade Vertendo consciência doce e transparente E como um manancial será o sentimento De preservação, de amor, de cuidado...
Durand lembra que “as águas encontrar-se-iam no princípio e no fim dos
acontecimentos cósmicos, enquanto a terra estaria na origem e no fim de qualquer
vida” , ou, em outras palavras, “as águas seriam, assim, as mães do mundo, enquanto a
terra seria a mãe dos seres vivos e dos homens” (2002, p. 230). Na ânsia de salvar a
Grande Mãe, o sujeito-de-enunciação lírico faz existir um novo homem, que resgatará
também a Água e, por meio desse gesto, restabelecerá o equilíbrio a toda a criação,
Cicatrizando as lesões causadas Devolvendo ao longo dos rios O verde desfazendo dos leitos
A represa humana depende de suas próprias ações para criar ondas de respeito à
vida, para permitir que os cursos dos sonhos naveguem em leitos transformados, pois “a
água transporta-nos, a água adormece-nos, a água devolve-nos a uma mãe” diz Durand
(2002, p. 234). Então o sujeito lírico determina: faça-se um novo universo, crie-se uma
nova postura diante da vida, e o Verbo criador faz existir correntezas de esperanças:
Que garimpos sejam extintos Que na grande represa humana Despertem ondas de respeito a vida... Que correntezas de esperanças Corram nos cursos dos sonhos Desaguando num futuro transformado
para que se possa cumprir a salvação de todas as criaturas. Terra, Água e Humanidade
são recriados no poema. Elementos naturais e criaturas racionais. Uma nova imagem
114
instaura a esperança gerada na imaginação criadora. No entanto, os danos são
inumeráveis, Água e Terra padecem sob a ação de seus filhos e filhas. Mas permanece a
esperança, pois se “Terra e vida, Terra é vida” (p. 29-30) enuncia a unidade cósmica que
manifesta a interdependência de todas as criaturas, então o sujeito lírico opõe-se com
heroísmo contra o devir. A Terra, doadora da vida, agoniza no destino trágico a que seus
filhos a submeteram. A formosura, a beleza, o encanto e os mistérios de outrora
desvelam um presente em que a Grande Mãe é convocada pelo eu lírico a levantar-se e
lutar:
Eras tão formosa, tão bela, encantadora, Misteriosa... Quando solteira, sem fronteira, cheia de vida Audaciosa... Hoje, descabelada, despida, magra, acabada Chorosa... (Porque deixaste teus filhos/as fazerem isso contigo?) Ainda tens força... Levanta-te, lute.
Formosa, bela, encantadora, misteriosa, audaciosa. Assim era a Grande Mãe em
sua imagem de Paraíso. A partir da ação humana, sua face converte-se em aspectos
nefastos, pois hoje está descabelada, despida, magra, acabada/ Chorosa... Vítima das
ações humanas realizadas em nome da ganância, a Terra é convocada pelo sujeito lírico
a lutar. Essa luta encontra ecos na força dos guerreiros que lutam em defesa dela, contra
outros filhos, monstros que a banham com o sangue dos próprios irmãos. As armas
representantes da luta nessa face heróica do regime diurno são o cetro e o gláudio que,
em sua verticalidade de cetro e agressividade de gláudio, opõem-se à queda. Assim,
solidário ao sofrimento da Grande Mãe, o sujeito lírico empresta suas armas para salvar
a Mãe que se esvai lentamente:
Sei que sofres pelo descaso de teus filhos/as, guerreiro/as. Mas, também geraste filhos/as que transformaram-se Em monstros... Sim, teus filhos/as monstros, que te desgastam e Te matam lentamente... Que banham-te com o sangue Dos próprios irmãos/ãs E os dominam, oprimem, sufocam Tiram o direito de te amar, te respeitar...
115
E como toda mãe resignada diante da inconseqüência dos filhos que a dominam,
oprimem e sufocam resta, no entanto, o amor materno que tudo perdoa. Então o sujeito-
de-enunciação lírico consola:
Tu és mãe e teu amor te dará forças para Agüentares até o dia... O dia que teus guerreiros/as, Vencerem a ganância de seus irmãos/ãs Corruptos e corruptores.
O consolo e a resistência vêm dos filhos e filhas guerreiros e guerreiras que
enfrentam a ganância e a corrupção daqueles que exaurem suas forças. Somente com a
remissão da espécie e, com ela, a vida da Terra e na Terra será possível num futuro,
Quando a solidariedade correr nas veias da Humanidade, como as águas cristalinas Que ainda correm no leito dos rios, mesmo Que estreitos. Quando trocar as armas de fogo pelas armas Da consciência, da união...quando todos/as Conseguirem, possuí-la Tocá-la, beijar-te-ão e, com as enxadas, Acariciarão tua face serena, que jamais Será maquiada com química venenosa. Quando não mais banharem-te de sangue E, sim, de lágrimas de alegria com A conquista da VITÓRIA DA VIDA.
O esquema da queda apresenta no poema imagens com o aspecto maléfico e
tenebroso de um tempo que se impõe como ameaça à vida no planeta redondo, no
espaço circular que é associado sempre ao jardim, ao fruto, ao ovo ou ao ventre, e
desloca o acento simbólico para a intimidade acolhedora da taça do regime noturno da
imagem. No entanto, a intimidade e segurança encontram-se ameaçadas pela queda, que
está ligada “à rapidez do movimento, à aceleração e às trevas” , pois “a queda resume e
condensa os aspectos temíveis do tempo, dá-nos conhecer o tempo que fulmina”
(DURAND, 2002, p. 113). O sangue que banha a Terra está repleto de sofrimento e de
terror, é o símbolo perfeito da água negra, do arquétipo das trevas, tão negativamente
valorizado pelo homem.
Por um lado, o esquema da queda apresenta imagens com o aspecto maléfico e
tenebroso de Cronos e, por outro, os esquemas ascensionais e diairéticos afirmam sua
vitória sobre o destino. Assim, aos gestos dos reflexos posturais e do esforço de
116
verticalização correspondem os símbolos ascensionais que buscam a recuperação de
uma potência perdida. É então que a antítese, própria do regime diurno, desliza a
imagem final para o regime noturno das imagens, para a eufemização, para a VITÓRIA
DA VIDA, que será uma conquista coletiva. Será a redenção da Terra e da humanidade.
Desse modo, as imagens que causavam medo são intensificadas até a antífrase no
regime noturno e o medo é desaprendido, pois a noite eufemizada promove uma
valorização positiva do luto e do túmulo, assim como a água torna-se materna, arquétipo
da descida e do retorno.
O sentimento que redime a relação Mãe/filhos e filhas é tocado pela metáfora da
água cristalina que corre, não como química venenosa nos rios que mal sobrevivem em
seus leitos, mas como lágrimas de alegria ao final de uma árdua conquista. Os três
enunciados do poema que remetem para a condição temporal transformadora da morte
anunciada em vida restauradora, são introduzidos pela indeterminação do termo quando,
dividindo o poema em três blocos nos quais predomina essa condição temporal. O longo
período de agressões a que a Terra foi submetida, requer um tempo também longo para
que as imagens negativas se convertam em positivas. A transformação enunciada é
lenta, o tempo de recuperação é imprevisível, mas o sujeito-de-enunciação lírico
acredita na vitória e movimenta sua criação no compasso da luta pela vida.
O poema “Um novo Brasil é possível” (p.28) remete para o futuro a imagem de
uma pátria melhor, restaurada, uma Pátria querida onde as agruras da luta sejam, enfim,
compensadas. Por isso a insistência do movimento lírico se perfila à insistência do
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Brasil em prosseguir na luta, porque vela
pela sobrevivência da humanidade e da Terra e a vida da humanidade na Terra.
No estreito leito dos sonhos
A esperança nos conduz a caminhar Caminhar não é apenas trocar passos
Mas, é andar para o realizar É estabelecer objetivos.
É não desanimar
Assim, pautando a criação poética no mesmo sentimento de esperança que
impulsiona a caminhada, a conjunção aditiva que inicia o verso seguinte será a primeira
de cinco que conduzem a esperança do início até o final do poema, movimentado a
imaginação criadora rumo ao futuro sonhado. É preciso caminhar,
E saber a hora de esperar...
117
A espera não é utópica, a caminhada tem rumo certo, tem objetivos bem traçados e
sabe a hora de esperar, pois
No caminho que escorre a marcha
Há pedras, há pranto, espinhos...
No entanto, aos percalços enfrentados somam-se novos caminhos
E é sendo perfurados que os pés Avançam, construindo novos caminhos
Nada detém a caminhada daqueles que marcham rumo à vitória, irmanados pelo
canto coletivo
E na poeira deixam rastros da história Protagonizada pelo povo caminhante
Que entoam em uma só voz contagiante O canto da liberdade e da vitória
A esse canto vem ligar-se o grito pelo direito à vida, pela construção de uma
identidade que vem avermelhar as imagens cinzentas, desaguando em toda parte a
esperança, que traz em seu bojo as imagens de uma nova pátria
E a grande represa de humanos Deságua em ruas, praças e avenidas
Avermelhando os cinzentos céus urbanos Gritando por direitos
Estabelecendo conceitos Oportunizando a vida...
Para os problemas da nação Já tem uma saída
Tingindo os cinzentos céus urbanos de vermelho, cor do símbolo totêmico do
grupo social Sem Terra, a consciência criadora levanta aos céus a imagem da unificação
da pátria por meio da reforma agrária. No vermelho da Bandeira do MST encontra-se o
símbolo considerado universalmente princípio fundamental da vida. Chevalier ensina
que o vermelho é a expressão do mistério da vida, pois “seduz, encoraja, provoca, é o
vermelho das bandeiras, das insígnias” (1995, p. 944). Todos os povos expressam, de
alguma maneira, “o poder de fascinação da cor vermelha, que leva em si, intimamente
ligados, os dois mais profundos impulsos humanos: ação e paixão, libertação e
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opressão; isso, as bandeiras vermelhas que tremulam ao vento do nosso tempo provam!”
(CHEVALIER, 1995, p. 946). Por isso, quando Bachelard fala sobre as qualidades
imaginadas, observa que “o vermelho aproxima-se mais de avermelhar que de
vermelhidão. O vermelho imaginado ficará escuro ou pálido, conforme o peso do
onirismo das impressões imaginárias” , pois “ela tantaliza o sonhador que quer fixá-la”
(2003, p. 68). Assim, alteradas as cores da pátria e estabelecidos os novos conceitos, o
último enunciado cumpre sua missão de agregar ao poema a imagem final da criação
que o sujeito lírico enuncia desde os primeiros versos: a esperança em unificar Terra,
Pátria e liberdade
E é com a reforma agrária no chão Que começa a libertação da pátria querida.
“A pátria é quase sempre representada sob traços feminizados” , ensina Durand
(2002, p. 231), os mesmos traços que simbolizam a Grande Mãe, o seio materno, o
Paraíso acolhedor. Desse modo, a hesitação moral herdada do regime diurno será
convertida, no regime noturno do simbolismo, em metáforas que misturam terra e água
numa ambiência de alegrias e felicidades que constitui a reabilitação da feminilidade
acolhedora da pátria. As imagens que fundem água, sonho e sentimento; No estreito
leito dos sonhos/ /.../ E a grande represa de humanos/ Deságua em ruas e avenidas.,
são verificadas também no poema “Futuro ameaçado” (p. 31-32); Talvez um dia
nascentes surgirão/ No coração da humanidade/ Vertendo consciência doce e
transparente/ E como um manancial, será o sentimento /.../ Que na grande represa
humana/ Despertem ondas de respeito à vida/ Que correntezas de esperança/ Corram
nos cursos dos sonhos/ Desaguando num futuro transformado. Essa cadeia metafórica
pela qual o sujeito-de-enunciação lírico transpõe as camadas semânticas imbricando
água e vida traz para os dois poemas o isomorfismo completo dos símbolos “da Mãe
suprema, em que se confundem virtudes aquáticas e qualidades terrenas” (DURAND,
2002, p. 230). A consciência criadora manifesta, assim, o movimento e o ritmo
repetitivo “do universo simbólico à mediada que os símbolos esclarecem uma
redundância de gestos, de relações lingüísticas ou de imagens materializadas na arte”
(DURAND, 1988, p. 17).
A esperança na reabilitação da pátria em figura feminina e materna é recorrente
nos poemas de Adriane Rocha. Ela, a esperança, impõe-se como símbolo de
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transcendência para um espaço e um tempo metafísico. Esse simbolismo sintetiza todas
as imagens de inversão em que a queda, eufemizada, converte-se em descida, refreando
a iminência de um devir tenebroso. A repetição da conjunção aditiva “e” forma entre as
imagens o elo de viscosidade com que o sujeito-de-enunciação lírico aproxima,
encadeia, prende, ata e liga os enunciados até alcançar a reversão unificadora do regime
noturno místico. O fio usado para elaborar as imagens desse simbolismo é o fio da
esperança, que manifesta, na criação de Adriane Rocha, o movimento circular e rítmico
pelo qual o sujeito lírico converte o simbolismo negativo do regime diurno em
constelações de imagens positivas do regime noturno. É por isso que esse fio da
esperança, que “é tecido e destino, é o fuso que, pelo movimento circular que sugere,
vai tornar-se talismã contra o destino” (DURAND, 2002, p. 322)
O fio da esperança movimenta os esquemas que conduzem aos mitos do Eterno
Retorno e da Grande Mãe. Esse fio vai bordando, no decorrer das enunciações líricas, a
cortina do tempo, manifestando-se rumo a um espaço metafísico, para além do tempo,
agindo como “ ligação tranqüilizante, é símbolo de continuidade, sobredeterminado no
inconsciente coletivo pela técnica circular ou rítmica da sua produção” (DURAND,
2002, p. 322). Desse modo, o sujeito-de-enunciação lírico engendra o bordado que liga
e amarra os ideais do MST ao desejo inconsciente de toda humanidade de retornar ao
Paraíso Perdido, ao seio da Grande Mãe. Por isso, a esperança é o fio condutor com o
qual o sujeito poético simboliza as imagens da resistência da vida diante da morte, do
sonho coletivo de uns e outros, de homens e de mulheres do campo e da cidade, dos
filhos agressores e dos filhos órfãos de reencontrar as bem-aventuranças.
As sete estrofes do poema “Esperança” (p. 34) trazem, também, a característica
indagadora do sujeito lírico desta Pátria Sem-Terra. Questionar, procurar respostas,
esse é o processo pelo qual o sujeito-de-enunciação lírico harmoniza os contrários no
regime noturno das imagens, revertendo o tempo e a morte em esperança vitoriosa. A
vitória consiste no simbolismo do retorno que a recorrência e persistência dessa
esperança engendram como resposta a todas as indagações. Assim, embora o sujeito
lírico continue indagando, a esperança se faz fio da vida, que se faz caminho, que se faz
regaço materno e ventre acolhedor.
Que seria da noite Sem o brilho das estrelas Sem a lua com suas fases? Que seria do dia
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Sem a beleza da aurora Sem o canto dos pássaros?... Que seria dos tempos Sem suas estações Sem frio, sem calor, Sem a chuva, sem o vento? Que seria da terra Sem as sementes Sem as mãos de quem As semeiam? Que será da esperança Sem luta, sem resistência Sem povo, sem mudança?... Que será da liberdade dos povos Se não houver seres (do sul ou do norte) Sensíveis, capazes de perceber As mais simples formas de vida e ver As mais injustas formas de morte?... Que será de nós Sem audácia de reclamar Sem o desejo de vencer Sem a capacidade de sonhar Sem o direito de viver?
A imagem gráfica do caminho se funde à imagem do centro, do ventre sagrado da
Grande Mãe prenhe de vida. O útero da terra é o lugar de onde vem a vida e é para este
lugar que o fio da esperança conduz a caminhada. Seja a trajetória dos sem-terra em
busca de terra para plantar e cuidar, seja da humanidade em sua trajetória passageira e
angustiada diante da impossibilidade de vencer o tempo e a morte. Todas as estrofes do
poema são iluminadas pelo título, “Esperança” , que atribui sentidos específicos aos
enunciados.
Da primeira a terceira estrofes, a esperança traz o simbolismo que remete ao
Cosmo como obra perfeita, morada de todas as criaturas. A quarta estrofe introduz
imagens que deslizam o sentido para o sonho daqueles que desejam semear, plantar e
colher no colo íntimo e quente da Mãe Terra. No entanto, esse sonho encontra-se em
permanente ameaça diante da ação degradante do homem. É então que, na quinta
estrofe, o sujeito-de-enunciação lírico teme pela sobrevivência da esperança, pois, como
ela será conservada Sem luta, sem resistência/ Sem povo, sem mudança?... Por isso a
esperança é movimentada em sentido circular, e as duas últimas estrofes sintetizam
imagens recorrentes em toda a obra, em que vida e morte, sonho e vitória resgatam a
esperança do reencontro com a terra. Esse reencontro é instituído pela recorrência dos
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mitemas organizadores das imagens do retorno que são elaboradas a partir do fio da
esperança, mantendo a caminhada dos sem-terra em constante movimento.
A observação de Durand sobre a técnica da tecelagem e a técnica da viagem, que
“assumem uma e outra, desde a sua origem, a rica mitologia do círculo” (2003, p. 328),
desvela a construção imaginária de Adriane Rocha. Assim, por meio de uma reviravolta
completa dos valores que há na estrutura mística do regime noturno das imagens, o
sujeito-de-enunciação lírico promove a inversão restauradora: “o que é inferior toma o
lugar do superior, os primeiros tornam-se os últimos” (DURAND, 2002, p. 276).
A imaginação criadora conduz as imagens em clima de tensão, levando o sujeito-
de-enunciação lírico a manifestar os símbolos que emergem da luta pela vida,
manifestos no desejo de retornar à terra, numa postura heróica contra o tempo e a morte.
Assim, tensionando as contradições presentes no esquema da queda do simbolismo
negativo do regime diurno, o sujeito lírico chama para si o grito dos sem-terra, campo
vivencial no qual realiza, por meio da palavra instauradora “a identidade última entre o
homem e o mundo, a consciência e o ser, o ser e a existência, a crença mais antiga do
homem e a raiz da ciência e da religião, magia e poesia” (PAZ, 2006, p. 42). Essa
identidade entre o homem e o mundo se manifesta por meio do poema que nos faz
recordar o que foi esquecido, e é justamente por obra da imagem que se produz a
instantânea reconciliação entre o nome e o objeto, entre a representação e a realidade.
Essa reconciliação “seria impossível se o poeta não usasse a linguagem e se essa
linguagem, por meio da imagem, não recuperasse sua riqueza original” (PAZ, 2006, p.
47).
Nesta Pátria Sem-Terra a dimensão poética do símbolo desliza os sentidos dos
enunciados líricos para a harmonização dos contrários, revelando uma criação literária
empenhada em resgatar a Grande Mãe e assim reconciliar o ser humano e o ser terra. A
dimensão onírica traz à tona a fusão entre o mundo material e o mundo do sonho,
colocando em relevo a esperança, sentimento que mantém o povo sem-terra irmanado
em torno do desejo coletivo. O fio da esperança constitui-se o elo que interliga entre si
os enunciados que conduzem à redenção da terra e da espécie humana. Se, por um lado,
o tempo e as chances de retornar para a Grande Mãe se escoam, por outro a esperança se
impõe como fio condutor que assegura a travessia. Essa recuperação promovida pela
dimensão poética do símbolo manifesta a necessidade emergente de resgatar a Mãe
Terra como condição para salvar a humanidade. Esse espaço idealizado por contornos
míticos atualiza, na obra de Adriane Rocha, a condição errante e conflitiva de homens e
122
mulheres, com ou sem-terra, atribuindo à sua obra uma totalidade de imagens e
símbolos que se constituem em desejos humanos universais.
Assim se configura o imaginário da terra nesta poesia gerada no seio da luta pelo
direito de retornar à Grande Mãe e, com ela e nela, produzir uma nova perspectiva de
vida que reconduza a Terra à condição de Paraíso Perdido, o aconchego materno,
origem cósmica comum a toda humanidade. Desse modo, a poeta sem-terra revela em
seu fazer literário a criação feminina, o olhar e o sentimento femininos, pois como bem
lembra Durand, “eterno feminino e sentimento da natureza caminham lado a lado em
literatura” (2002, p. 233).
Entre o vivencial e o imaginário, tensionando forças subjetivas, biográficas e
sociais, a poesia de Adriane Rocha se faz o fio da esperança que circula para tecer a
cortina do tempo, eufemizando-a em taça acolhedora, fraterna e feminina. Nessa
perspectiva, Pátria Sem-Terra revela o mesmo simbolismo de transcendência vivido
pelos integrantes do MST nos momentos da mística do Movimento. Assim, retomando
as imagens do Paraíso Perdido, do Paraíso decaído e do Paraíso possível, pontuadas no
primeiro capítulo, o sujeito-de-enunciação lírico de Pátria Sem-Terra inscreve sua
poesia na esteira da arte engajada e militante cumprindo, a um só tempo, as funções
social, ideológica e total da literatura.
Forma e conteúdo convergem em sua totalidade para o princípio cósmico restaurador
que o Ocidente relegou ao esquecimento em favor da racionalidade, das idéias claras e
distintas que, no dizer de Paz, delegou “a uma espécie de ilegalidade todas as tentativas
de prender o ser por caminhos que não fossem os mesmos desses princípios. Mística e
poesia viveram assim uma vida subsidiária, clandestina e diminuída” (2006, p. 40). Esse
desenraizamento tem sido indizível e permanente e as “conseqüências desse exílio da
poesia são cada dia mais evidentes e aterradoras: o homem é um desterrado do fluir
cósmico e de si mesmo” (PAZ, 2006, p. 40).
Há um Paraíso possível sendo edificado por homens e mulheres desta Pátria Sem-
Terra que constroem sobre as ruínas da Terra e do Cosmos os novos caminhos para o
jardim terreno, pois “eco-espiritualmente a esperança [...] assegura que, apesar de todas
as ameaças de destruição que a máquina de agressão da espécie humana montou e
utiliza contra Gaia, o futuro bom e benfazejo está garantido” (BOFF, 2000, p. 306).
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CONCLUSÃO
A mística do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra se caracteriza por
princípios diferentes daqueles das religiões tradicionais que se irmanam em torno de um
Deus, um Uno. Ao contrário, ela se estabelece com base num sentimento que tem
relação exclusiva com o modo como o grupo foi constituído “e começou a ser”
(ELIADE, 2006, p. 11). Como todo grupo cultural, também o MST possui a sua grande
narrativa em que representa a origem do universo, seu lugar nesse universo e no
cosmos, o sentido da caminhada do grupo e da caminhada humana, como o presente é o
futuro do passado e qual o destino da humanidade. Seguindo a lógica do inconsciente
coletivo, essas narrativas usam a linguagem do mito e a simbólica do imaginário para
contar uma “história sagrada e, portanto, uma história verdadeira, porque sempre se
refere a realidades” (ELIADE, 2006, p. 12).
Nessa perspectiva, em similitude aos sentimentos simbolizados na mística do
Movimento, cuja celebração atualiza os acontecimentos ocorridos in illo tempore,
também o sujeito-de-enunciação lírico de Pátria Sem-Terra transcende o espaço
vivencial e reatualiza o imaginário da terra paradisíaca. Eliade ensina que “através de
sua criação os artistas antecipam o que deverá ocorrer – algumas vezes uma ou duas
gerações mais tarde – em outros setores da vida social e cultural” (2006, p. 69). Numa
atitude de recusa ao tempo profano que se apresenta hostil à construção da consciência
histórica do sujeito social sem-terra, o eu lírico desta Pátria Sem-Terra manifesta “sua
revolta contra o tempo concreto e histórico, sua nostalgia por uma volta [...] aos tempos
míticos do começo das coisas” (ELIADE, 2006, p. 7). Essa manifestação, lembra Boff,
coloca-se como o grito dos “ filhos e filhas da Terra explorados e condenados a morrer
antes do tempo” (2000, p. 168), que desafiam os ventos da História para preservar a
vida da Mãe Terra e, por extensão, de toda a humanidade.
A plena realização do Paraíso está retroprojetada no passado, na grande narrativa
primordial, cujas imagens e símbolos resistem como “planta de construção a ser
realizada pelo empreiteiro que é o ser humano, homem e mulher” , acentua Boff (2000,
p. 66). Mais do que um ser na Terra o ser humano é um ser da Terra, por isso essa
construção estabelece entre ambos a relação mais complexa e singular de todo o
cosmos. Porque todo homem e toda mulher “são a terra que pensa, que espera, que ama,
que sonha e que entrou na fase da decisão não mais instintiva mas consciente. [...] Tudo
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está relacionado com tudo em todos os pontos e em todos os momentos” (BOFF, 2000,
p. 166). Assim, em conformidade com o sentimento de Eco-espiritualidade, esta Pátria
Sem-Terra funda a era ecológica que, depois de séculos de confronto com a natureza,
conduz a humanidade no caminho de volta para a sua casa comum, a boa e fecunda
Terra, a Grande Mãe, estabelecendo com ela uma nova aliança de respeito e de
fraternidade.
Nessa perspectiva, as forças imaginárias que conduzem o sujeito-de-enunciação
lírico na edificação do Paraíso Perdido e de um tempo ideal para uma vida harmoniosa
junto à Mãe Terra, manifestam-se a partir das três dimensões do símbolo; a cósmica, a
onírica e a poética. Essas dimensões estão presentes, também, no conjunto de símbolos
observados nas manifestações culturais do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
que se constituiu no decorrer do processo de formação e consolidação do grupo social.
É nos momentos de celebração mística que o sujeito sem-terra vivencia, coletiva e
individualmente, a fusão sujeito e objeto - homem e terra. Desse modo, as três
dimensões do símbolo escalonadas por Durand constituem, pela forma como são
vivenciadas coletiva e individualmente nas manifestações culturais do MST, o realismo
do imaginário postulado por Bachelard (2003, p. 70). Nesse sentido, os poemas
analisados emanam a força poética do símbolo que, para Durand,
define melhor a liberdade humana do que qualquer especulação filosófica: esta se obstina em ver, na liberdade, uma escolha objetiva, enquanto na experiência do símbolo sentimos que a liberdade é criadora de um sentido: ela é poética de uma transcendência no seio do assunto mais engajado no evento concreto. Ela é o motor da simbólica. Ela é a Asa do Anjo (DURAND, 1988, p. 37).
O conteúdo imaginário, motivado por esta ou aquela situação na história e no
tempo, ensina Durand, coloca-se contrário à “pretensão de alguns que a todo custo
querem desmistificar o homem” (2002, p. 428). Essa concepção durandiana estabelece
diálogo com a reflexão de Paz (2006) que caracteriza a história do Ocidente como um
erro, um extravio, no duplo sentido da palavra, pois nos distanciamos de nós mesmos e
nos perdemos no mundo renegando, assim, o processo unificador promovido pelo poeta.
Também Durand percebe a objetividade, o materialismo e a explicação determinista
como uma máscara desmitificante que não passa “de um colonialismo espiritual, da
vontade de anexação, em proveito de uma civilização singular, da esperança e do
125
patrimônio da espécie humana inteira” (2002, p. 429). Assim, desmistificar o símbolo e
ao mesmo tempo remitificá-lo, exprime o desejo humano de simbolizar a transcendência
histórica, porque a desmistificação absoluta anularia os valores da vida diante da
constatação brutal da mortalidade. Por isso, é preciso discernir com clareza a
mistificação de mito: “Querer desmitificar a consciência aparece-nos como a tarefa
suprema da mistificação” constituindo a antinomia fundamental, “porque seria esforço
imaginário para reduzir o indivíduo humano a uma coisa simples, inimaginável,
perfeitamente determinada, quer dizer, incapaz de imaginação e alienada de esperança.
Ora, a poesia e o mito são inalienáveis” (DURAND, 2002, p. 429-430). Existem, pois,
sociedades sem pesquisadores científicos, mas não existem sociedades sem poetas, sem
artistas e sem valores e é essa condição que faz preponderar a dimensão de apelo e de
esperança sobre a desmistificação. É então, diz Durand, que a esperança, “sob pena do
cúmulo da morte, jamais pode ser mistificação. Ela se contenta em ser mito” (1988, p.
96), pois a mais humilde das palavras é mensageira de uma expressão que, mesmo
contra sua vontade, aureola o sentido próprio objetivo. E é esse luxo poético, essa
impossibilidade de desmitificar a consciência que se apresenta como a oportunidade do
espírito. Assim se institui a imaginação simbólica como força criadora que se “opõe ao
nada objetivo da morte, afirmando ao mesmo tempo os direitos do mito e a vocação da
subjetividade para o Ser e para a liberdade que o manifesta. De tal modo que não há
para homem honra verdadeira que não seja a dos poetas” (DURAND, 2002, p. 430).
Dessa maneira, o imaginário da terra, em Pátria Sem-Terra, reveste-se daquela
característica apontada por Eliade de antecipar pela palavra criadora o que ocorrerá com
a Terra e com a humanidade se a postura e as ações humanas diante do e no Cosmos não
se modificarem. O clamor do sujeito-de-enunciação lírico revela a iminência da
destruição do lar comum como resultado do desencontro entre Terra e Humanidade. Por
outro lado, o imaginário de Adriane Rocha desvela, também, a possibilidade de
reconstrução da relação Terra-Humanidade, recriando pela palavra poética imagens
redentoras que asseguram, por meio do reencontro do sem-terra com a Terra, a
preservação do imaginário sobre o Paraíso Perdido.
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Anexo A – Poemas/corpus BANDEIRA DO MST Tua beleza é encantadora, É sinônimo de paz, liberdade... Do meu sofrimento, é doutora. Então busco contigo a dignidade Quando meu punho se ergue para segurar-te, Meu sangue ferve nas veias, Nunca deixarei de exaltar-te, Nem que a morte me venha... Contigo perdi meu egoísmo. Somente com tua firmeza, Podemos acabar com o capitalismo. A esperança está em minhas mãos. Pois, és amada, és bela, és forte e, com certeza, Vamos transformar o Brasil em nação.
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ACORDA, PÁTRIA AMADA!
“Nas margens plácidas” O teu povo heróico ainda ergue o brado
Pelo fervor do sol da liberdade Que igualdade conseguimos conquistar?
O sonho de amor e esperança
Não passa de um sonho que se ausenta Em cada filho teu que se cansa
Diante da espessa nuvem cinzenta Que encobriu teu céu formoso de outrora,
A imagem do cruzeiro só resplandece E este finca nas covas as vítimas que à terra desce.
Da tua beleza e da tua grandeza
Não se tem dúvidas, Mas o teu futuro é duvidoso
Posto que tua soberania é um engodo.
Se das Américas és a mais bela Desperta deste repouso profundo
E não permita que te façam de elo Com o intuito de chegar ao Novo mundo.
Nem flores, nem campos, nem bosques
Nem amanhã, bem próximo, Nem vidas, nem amores
“No teu seio” só rumores, Se uma nação que vive horrores
Terra adorada
Mãe gentil, se amor tão forte Teus filhos e filhas, por ti
Choram a própria morte
Acorda, Pátria Amada! E verás que teus filhos e filhas
Desejam ter uma pátria livre Mobilizada, socializada, sonhos mil...
Acorda, Pátria Amada!
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AOS SEM TERRA
Somos povo caminhante…
E seguiremos:
Andando, Sorrindo, Cantando, Sentindo, Chorando, Caindo, Querendo, Levantando, Defendendo, Mudando, Resistindo, Lutando, Perdendo, Ganhando, Sofrendo, Sonhando, Dizendo, Acreditando, Vivendo, Amando, Vencendo!
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SEM-TERRA
Quem são eles?
Que marcham destemidos. Sob o tapete da história
Deixando rastros na memória E nos passos a ousadia
De lutar pela vida Por mais fino que seja o fio da esperança,
Bordam a cortina do tempo Com os olhos buscam num sorriso de criança
A certeza de não andarem contra o vento Quem são?
Os que entoam uma canção e nos acordes mais simples Falam da repressão
Denunciam a exploração. E clamam por dignidade.
Quem são esses homens e essas mulheres? Que se permitem sonhar de novo
Resgatando valores assim como o orgulho De ser povo caminhante...
Quem são esses doutores analfabetos Que nos seus consultórios descobertos
Produzem remédio para a mais Terrível dor que consome
E nessa batalha diária contra a fome Tem na reforma agrária seu grito de socorro
Que gente é essa que quer Unir campo e cidade
Numa grande irmandade Para juntos buscar a tão sonhada liberdade
E o direito a cidadania E na arte de resistir alguém já dizia
Indignar-se com injustiças É uma provocação? – Não! Para eles é uma qualidade
Tão bonita quanto A solidariedade e a humildade
De ver no outro o irmão. Quem são estes que possuem mãos calejadas
Que empunham com fervor a bandeira E identificando-se como os SEM-TERRA
Assim seguem na grande fileira... Por um lugar sem guerra
Enfrentam cada anoitecer Com rebeldia para mudar a trajetória
Cantando a vitória Em cada amanhecer.
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500 ANOS AMOR MALIGNO
Moça menina Terna morena
Face serena Inocente feminina
Ardente, nativa, única...
Mas, roubaram-na a verde túnica, brutalmente a Penetraram, ainda virgem,
Sentindo vertigem, murmurou de dor.
Das entranhas arrancaram-lhe riquezas, Deixando tristeza, no ventre maior
No pior momento, dominaram-na sangrando sua veia
Sofrimento igual outra não teve Primeiro resolveram chamá-la de Monte Pascoal
Em seguida Terra de Santa Cruz, hoje mãe gentil, Pátria Amada Brasil!
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AMOR MALIGNO II Quem te ama com tanto fervor? Cuidado, veja lá com quem fala, - Terra adorada te olha – Volve os olhos para ti Quem te privas de pôr em teu colo Teus filhos sem solo? Como amamentá-los? Se teimam a secar tuas veias cristalinas? Se em teu ventre “ laqueiam” As trompas que dá a vida Queimando-as com o laser da intransigência....? Que te resta se bóias no desamor? Curando, com rancor, chagas cancerígenas? Como suportar este amor maligno?
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ANTES QUE RACIONAIS, ANIMAIS
Existe, entre tantos, um chamado Terra, Dizem que é um planeta redondo,
Existe, entre tantos, um chamado homem, Dizem que é o único animal racional.
O que não dá pra se ter certeza, Sem respeito, agridem-se...
Existe, entre tantos, uma chamada ganância, Que toma conta do coração deles;
Então ficam cegos, e querem só pra si... Existe, entre tantos, um “paraíso” de máquinas,
Uma confusão de botões. Dizem que é uma revolução tecnológica.
Existe, entre tantas, uma chamada computador Que afasta os “racionais” uns dos outros
Namorados já não passeiam de mãos dadas, Por entre jardins (“navegam” sem ao menos se verem);
Pois, já não existem jardins. Transformam tudo em uma grande selva de concreto Fica difícil entender certos paradoxos destes animais
“racionais” . Para uns, sobra comida em suas mesas,
Outros milhões morrem de fome Uns tem grandes casas,
Outros milhões moram embaixo de pontes Para uns constroem-se escolas supérfluas
Para outros será reservada a cegueira do analfabetismo No auge da modernidade é privilégio
Para uns expor, vulgarmente, seus corpos num “Big Brother”
Outros são obrigados a prostituírem-se Para sobreviverem no que chamam sociedade.
Uns já comemoram a ciência de clonar, A efêmera vitória da morte,
Ao mesmo tempo em que milhões morrem Numa guerra sem nome.
Em uns obstina-se a busca do sucesso Exercendo-o com prepotência para manterem-se no poder.
Em outros a esperança acalenta o sonho Da Liberdade de viverem como irmãos,
Animais da mesma espécie.
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FUTURO AMEAÇADO Teu nome é sinônimo de vida Por todo o universo, conhecida A lua e as estrelas contemplam sua beleza... Tua cor, sem cor! Teu gosto sem sabor! Teu cheiro, sem odor! ....doce... ...salgada... ...clara... ...cara?... ...escura? ...poluída?... ...agredida?... ...privada?... ...contaminada?... ...escassa?... ...desperdiçada?... ...ameaçada?... ...preciosa? ...Água... Estamos colhendo o que plantamos, Ou melhor, o que desmatamos... Talvez um dia não existam mares; Nem rios nos limites das fronteiras. Talvez um dia não existam verdes, Nem chuvas, para sorrir as flores. Talvez um dia não existam peixes, Nem lagos para os sapos fazerem suas serenatas Talvez um dia não exista verão; Nem arco-íris riscando o céu Talvez um dia não existam sementes no chão Nem mesas fartas de pão Talvez um dia não exista água. Nem vidas... Mas talvez um dia nascentes surgirão No coração da humanidade Vertendo consciência doce e transparente E como um manancial será o sentimento De preservação, de amor, de cuidado... Cicatrizando as lesões causadas Devolvendo ao longo dos rios O verde desfazendo dos leitos Depósitos de lixo e esgoto. Devolve-la da mesma maneira que pegaram Que garimpos sejam extintos Que na grande represa humana Despertem ondas de respeito a vida... Que correntezas de esperanças Corram nos cursos dos sonhos Desaguando num futuro transformado.
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TERRA E VIDA, TERRA É VIDA Eras tão formosa, tão bela, encantadora, Misteriosa... Quando solteira, sem fronteira, cheia de vida Audaciosa... Hoje, descabelada, despida, magra, acabada Chorosa... (Porque deixaste teus filhos/as fazerem isso contigo?) Ainda tens força... Levanta-te, lute. Sei que sofres pelo descaso de teus filhos/as, guerreiro/as. Mas, também geraste filhos/as que transformaram-se Em monstros... Sim, teus filhos/as monstros, que te desgastam e Te matam lentamente... Que banham-te com o sangue Dos próprios irmãos/ãs E os dominam, oprimem, sufocam Tiram o direito de te amar, te respeitar... Tu és mãe e teu amor te dará forças para Agüentares até o dia... O dia que teus guerreiros/as, Vencerem a ganância de seus irmãos/ãs Corruptos e corruptores. Quando a solidariedade correr nas veias da Humanidade, como as águas cristalinas Que ainda correm no leito dos rios, mesmo Que estreitos. Quando trocar as armas de fogo pelas armas Da consciência, da união...quando todos/as Conseguirem, possuí-la Tocá-la, beijar-te-ão e, com as enxadas, Acariciarão tua face serena, que jamais Será maquiada com química venenosa. Quando não mais banharem-te de sangue E, sim, de lágrimas de alegria com A conquista da VITÓRIA DA VIDA.
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UM NOVO BRASIL É POSSÍVEL
No estreito leito dos sonhos
A esperança nos conduz a caminhar Caminhar não é apenas trocar passos
Mas, é andar para o realizar É estabelecer objetivos.
É não desanimar E saber a hora de esperar...
No caminho que escorre a marcha Há pedras, há pranto, espinhos... E é sendo perfurados que os pés
Avançam, construindo novos caminhos E na poeira deixam rastros da história Protagonizada pelo povo caminhante
Que entoam em uma só voz contagiante O canto da liberdade e da vitória
E a grande represa de humanos Deságua em ruas, praças e avenidas
Avermelhando os cinzentos céus urbanos Gritando por direitos
Estabelecendo conceitos Oportunizando a vida...
Para os problemas da nação Já tem uma saída
E é com a reforma agrária no chão Que começa a libertação da pátria querida.
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ESPERANÇA Que seria da noite Sem o brilho das estrelas Sem a lua com suas fases? Que seria do dia Sem a beleza da aurora Sem o canto dos pássaros?... Que seria dos tempos Sem suas estações Sem frio, sem calor, Sem a chuva, sem o vento? Que seria da terra Sem as sementes Sem as mãos de quem As semeiam? Que será da esperança Sem luta, sem resistência Sem povo, sem mudança?... Que será da liberdade dos povos Se não houver seres (do sul ou do norte) Sensíveis, capazes de perceber As mais simples formas de vida e ver As mais injustas formas de morte?... Que será de nós Sem audácia de reclamar Sem o desejo de vencer Sem a capacidade de sonhar Sem o direito de viver?
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Anexo B – Car ta/poema de Adr iane Rocha
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Anexo C – Conversa com o militante Noir Castelo Júnior Conversa com Noir Castelo Júnior, militante do MST, professor e líder comunitário do pré-assentamento Zumbi dos Palmares I I , em tarde nublada, aos 12 dias do mês de janeiro de 2008. Noir, fale um pouco sobre a invasão e ocupação desta área... como aconteceu? Aqui foi mais um acordo, né. O fazendeiro quer vender a área que não está cumprindo a função social dela, a gente entra na área e antes de fazer a ocupação dela vem a equipe do INCRA e faz a vistoria, entendeu, e avalia o que ele tem de bens aqui dentro, o que ele fez de benefícios e aí então ele é pago, né, esse benefício é pago à vista e o restante da área é pago em TDAs, né. TDA é dinheiro, são títulos do governo que aí eles levam. Quando assinou acordo com o INCRA aí a gente pode tá entrando e trabalhando. Ao entrar na área, a bandeira do MST é erguida em lugar de destaque, como vemos aqui. Fale sobre esse gesto. Toda a ocupação nossa é feito isso aí. É a nossa bandeira. Ela representa nossa união. Nós somos aqui várias pessoas. Se eu pegar um palitinho de fósforos eu quebro ele, se eu pegar cem palitinhos eu não vou conseguir quebrar, não vou ter força pra quebrar e aí que entra nosso símbolo, pela junção do povo, pela unificação do nosso povo a favor do ideal nosso. Tem pessoas que tão aqui hoje e pode vender o lote amanhã, mas tem pessoas que tão aqui, posso dizer o exemplo meu mesmo, que tô pra matar ou pra morrer por esse símbolo do Movimento, que sem ele hoje eu não seria ninguém. Você se constituiu ou ainda se constitui um novo sujeito com base nos ideais e propostas do Movimento... Pra falar bem a verdade eu era policial militar, fiz tudo de errado que um homem pode fazer, através de um companheiro que pude conhecer o MST que eu consegui resgatar minha dignidade, minha moral, e hoje tô aqui dentro, sou professor e tô cumprindo a função como militante e como homem, entendeu. Porque, talvez, daqui dez anos eu não teria coragem de olhar para meu filho e dizer pra ele que eu sou um homem, jamais eu teria essa coragem, porque realmente eu nunca fiz nada. Então houve, de fato, um resgate? Sim. Essa é a função do MST. Temos casos como o do Cigarra ali, o Cigarrinha, que o apelido dele é Cigarrinha, que ele chegou andarilho no nosso Movimento. Hoje ele é um cidadão, ele tem todos os seus documentos, parou de beber e hoje ele é um cidadão. Aqui no Zumbi existem duas igrejas. A Assembléia de Deus e a Congregação Cristã no Brasil. Como acontece a prática religiosa e qual a diferença dela em relação à mística do MST? Como o sem-terra entende e lida com a questão da religiosidade e da mística? A nossa ideologia ela não é religiosa, a nossa ideologia ela é completamente diferente, entendeu, porque todos da comunidade tem sua terra, faz sua roça, é comer aquela fruta que vocês comeram ali, entendeu, não tem nada a ver com religiosidade. O MST é aberto e democrático a qualquer religião, da umbanda ao crente, aqui dentro pode ser praticado qualquer religião, qualquer uma, se organizou... porque nós somos uma comunidade que respeita todas as religiões.
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Qual é o momento em que se realiza a mística do MST? Cada reunião nossa nós fizemos a mística. Hoje nós tivemos uma extra entre o pessoal da direção, mas toda a nossa reunião nós cantamos o nosso hino, nós temos o nosso Hino do Movimento, na escola, uma vez por semana, nós cantamos o Hino Nacional e Hino do MST. Nos nossos encontros, todo dia tem um grupo, né, dividido, para que faça uma mística diferente. O que/como é fazer uma mística? É coisas que acontecem no dia-a-dia do nosso movimento. A gente faz uma mística de ocupação de fazenda, a gente faz uma mística para que a gente não esqueça das coisas do nosso povo, da história. Tem algo a ver com homenagem? É como se fosse uma homenagem, entendeu. Nós fazemos mística do tempo de Lampião, do tempo dos escravos... Como é feita essa homenagem, por meio de encenações, cantos, poesia? É teatro, eles se sujam de massa de tomate pra fazer que é o sangue de algum companheiro, é isso aí que a gente faz, é uma forma de teatro. Enquanto tá fazendo a mística a gente tá lendo uma poesia, tá cantando, assim que funciona a mística do movimento. A emoção vem à tona nesse momento? Ela acontece com todos ou com a maioria dos integrantes? Acontece. Rapaiz... tem mística que a gente chora. Tem mística que você vê todo mundo chorando. Eu participei de uma mística em Cuiabá, há dois nos atrás, eu passei um ano e quatro meses na porta do INCRA, meu filho nasceu na porta do INCRA, literalmente falando, ele nasceu na porta do INCRA e na hora que se despediu a nossa turma, teve uma mística que um dos nossos companheiro fez que emocionou muito todos. Essa emoção é diferente da emoção religiosa? Sim, com certeza, aí vai mais pela luta, né, com a causa como um todo, saber que eu não era ninguém e agora eu sou alguém, é o resgate da dignidade. Todos os integrantes participam da mística? Todos participam, é claro que sempre tem alguém que prefere ficar no barraco, mas a grande maioria participa. Zumbi dos Palmares I I , município de Cláudia, distante 60 km de Sinop, estado de Mato Grosso.