O Jogo como recurso pedagógico fINAL

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  • Programa de Apoio Produo de Material Didtico

    Jos Milton de Lima

    O JOGO COMO RECURSO PEDAGGICO NO CONTEXTO EDUCACIONAL

    So Paulo 2008

  • Pr-Reitoria de Graduao, Universidade Estadual Paulista, 2008.

    Lima, Jos Milton L732j O jogo como recurso pedaggico no contexto educacional / Jos Milton Lima. So Paulo : Cultura Acadmica : Universidade Estadual Paulista, Pr-Reitoria de Graduao, 2008 157p.

    ISBN 978-85-98605-48-7

    1. Jogos educacionais. I. Ttulo.

    CDD 371.337

    Ficha catalogrfica elaborada pela Coordenadoria Geral de Bibliotecas da Unesp

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    CAPA

    DIAGRAMAO / EDITORAO ELETRNICA

  • PROGRAMA DE APOIO PRODUO DE MATERIAL DIDTICO

    Considerando a importncia da produo de material didtico-pedaggico dedicado ao ensino de graduao e de ps-graduao, a Reitoria da UNESP, por meio da PrReitoria de Graduao (PROGRAD) e em parceria com a Fundao Editora UNESP (FEU), mantm o Programa de Apoio Produo de Material Didtico de Docentes da UNESP, que contempla textos de apoio s aulas, material audiovisual, homepages, softwares, material artstico e outras mdias, sob o selo CULTURA ACADMICA da Editora da UNESP, dis-ponibilizando aos alunos material didtico de qualidade com baixo custo e editado sob demanda.

    Assim, com satisfao que colocamos disposio da comu-nidade acadmica mais esta obra, O Jogo como recurso pedaggico no contexto educacional, de autoria do Prof. Dr. Jos Milton de Lima, da Faculdade de Cincias e Tecnologia do Campus de Pre-sidente Prudente, esperando que ela traga contribuio no apenas para estudantes da UNESP, mas para todos aqueles interessados no assunto abordado.

  • J disse que as grandes idias vm ao mundo mansamente, como pombas. Talvez, ento, se ouvirmos com ateno, escutaremos, em meio ao estrpito de imprios, e naes, um discreto bater de asas, o suave acordar da vida e da esperana. Alguns diro que tal esperana jaz numa nao; outros, num homem. Eu creio, ao contrrio, que ela despertada, revivificada, alimentada por milhes de indivduos solitrios, cujos atos e trabalho, diariamente, negam as fronteiras e as implicaes mais cruas da histria. Como resul-tado, brilha por um breve momento a verdade, sempre ameaada, de que cada e todo homem, sobre a base de seus prprios sofrimentos e ale-grias, constri para todos. (Albert Camus apud ALVES, 2000, p.13-14)

  • SUMRIO

    Introduo 11

    Breve Histrico do Jogo como Recurso Pedaggico 13

    Tendncias de Jogo no Contexto Educacional: razes e prticas atuais 21

    Em busca de definies e caracterizao do jogo 35

    Classificaes do Jogo na perspectiva de Wallon, Chateau, Piaget e Callois 61

    Importncia do Jogo na perspectiva da Teoria das Inteligncias Mltiplas 83

    A importncia do Jogo no desenvolvimento da criana na Perspectiva da Teoria Histrico Cultural 93

    Situaes de vivncias e anlises do Jogo como Recurso Pedaggico 131

    Consideraes Finais 141

    Referncia Bibliogrfica 149

    Sobre o autor 157

  • INTRODUO

    O texto: O jogo como recurso pedaggico no contexto educa-cional foi estruturado a partir da pesquisa O jogar e o aprender no contexto educacional: uma falsa dicotomia, desenvolvida junto ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Faculdade de Filosofia e Cincias UNESP Campus de Marlia, no ano de 2003, orien-tada pela Profa. Dra. Helena Faria de Barros. O referencial terico produzido tem sido utilizado como suporte terico em disciplinas da Graduao do Curso de Pedagogia e Educao Fsica e no Programa de Ps-Graduao em Educao da Faculdade de Cincias e Tecnolo-gia, UNESP, Campus de Presidente Prudente.

    A referida pesquisa elegeu como principal problema a dicoto-mizao entre o jogar e o aprender, instalada no contexto educacional e que promove, como conseqncia, a secundarizao do jogo como recurso pedaggico. Esse tipo de atividade tratado, nas instituies educacionais, como prescindvel ou, ento, caracteriza-se, simples-mente, como momentos de relaxamento, descanso e desgaste de energia excedente das crianas. A constatao de que o jogo uma atividade depreciada no contexto educacional no resultante de uma mera especulao ou uma hiptese desprovida de fundamento; verificamos esse dado nos diferentes trabalhos que realizamos como docente em Cursos de Graduao, na coordenao de cursos e projetos de Extenso, palestras ministradas nas escolas, encontros e reunies cientficas. Os professores, em geral, alegam, reiteradamente, que os processos de formao inicial ou continuada no os muniram de suporte terico para a utilizao do jogo como recurso pedaggico ou, ento, que as escolas no proporcionam condies materiais, es-paciais e temporais adequadas para a insero do jogo como atividade pedaggica.

    Deduzimos que s ocorreriam avanos na superao da dico-tomia entre o jogar e o aprender, quando o professor se apropriasse de um conjunto de subsdios tericos e prticos que conseguisse convenc-lo e sensibiliz-lo sobre a importncia dessa atividade, na aprendizagem e no desenvolvimento da criana. Para comprovar tal hiptese, propusemos e efetuamos aes de formao continuada e de parceria com professores da rede pblica e particular de ensino. Cabe

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    ressaltar que participaram dessas aes professores que se mostraram preocupados em aprofundar seus conhecimentos sobre a temtica. O compromisso assumido era de cooperao, respeito mtuo, aprimora-mento profissional, e no foi estabelecida nenhuma norma, obrigando a continuidade do incio at o final do processo.

    Os temas abordados nos cursos no foram definidos de ante-mo, mas propostos de acordo com as necessidades percebidas e in-teresses manifestados pelos educadores, alm de tambm considerar o prprio encadeamento do tema. A utilizao do jogo como recurso pedaggico, isto , o contato com a realidade foi mediado pelos professores, e as informaes, os dados coletados e analisados foram fundamentais para que pudssemos acompanhar de maneira mais di-reta o fluxo dos acontecimentos relacionados ao problema estudado, favorecendo o surgimento e a validao de suposies, no decorrer do processo. O pressuposto bsico que norteou essa tendncia de que o conhecimento pode ser assimilado e re-elaborado num processo de reflexo - ao - reflexo.

    A metodologia adotada na pesquisa caracteriza-se como qualitativa, configurando a sua abordagem numa pesquisa-ao. Optamos por essa tendncia, amparado nas justificativas de Thiollent (1988, p. 74-75), para quem esta orientao metodolgica oferece condies para que o pesquisador e outros participantes esclaream problemas da prtica educativa relacionados temtica em estudo, tomem conscincia, definam objetivos e produzam conhecimentos que contribuam para a transformao e para o aprimoramento das situaes estudadas. As experincias e os conhecimentos produzidos, ainda, podem servir de referncia para outras situaes relacionadas temtica pesquisada.

    Esta pesquisa elegeu, portanto, como principal objetivo, con-tribuir para a superao da falsa dicotomia entre o jogar e o aprender e estudou e analisou diferentes aspectos do jogo como recurso pe-daggico. A fundamentao terica e os apontamentos apresentados, no texto produzido, configura-se como tentativa de contribuir para avanos na formao inicial e continuada de professores, oferecendo suporte terico e pistas sobre o emprego do jogo como recurso peda-ggico.

  • BREVE HISTRICO DO JOGO COMO RECURSO PE-DAGGICO

    Ao realizar esta breve anlise histrica do jogo, tomando como referncia, entre outros, os estudos de Aris (1981), Brougre (1998), Huizinga (1990), De Masi (2000) percebemos que sempre existiram, nos diferentes perodos histricos, posies favorveis e contrrias ao jogo.

    A origem das primeiras reflexes sobre a importncia do jogo muito remota. Plato1, segundo Almeida (1998, p. 19-20), condenava, na Grcia, as atividades que exacerbavam a competio e o resulta-do. O filsofo defendia o jogo como um meio de aprendizagem mais prazeroso e significativo, de maneira que, inclusive, os contedos das disciplinas poderiam ser assimilados por meio de atividades ldicas. A Matemtica, por exemplo, na sua fase elementar, deveria ser estudada, de acordo com a viso de Plato, na forma de atividades ldicas extra-das de problemas concretos, de questes da vida e dos negcios.

    Aristteles2, na interpretao de Brougre (1998, p. 28), afirmava ser o jogo um meio de relaxamento, divertimento, descanso e resgate de energias para as atividades humanas srias. Apesar do trabalho ser considerado a atividade mais importante, o jogo era um meio de recu-perao para as atividades produtivas.

    Os romanos, influenciados pelos etruscos, concebiam o jogo como atividade carregada de sentidos; transformavam-no, por um lado, num espetculo, numa simulao do real, que arrebatava multides; por outro, era visto como um valioso meio de exercitao de conheci-mentos, habilidades e atitudes, isento de provocar conseqncias para a realidade. (BROUGRE, 1998, 36-39).

    Na Idade Mdia, Aris (1981) aponta duas posies conflitantes: uma tendncia de formao disciplinadora, que defendia a mortifi-cao do corpo e, portanto, condenava o jogo, considerando-o como atividade delituosa, comparvel embriaguez e prostituio. Uma

    1 PLATO. Les lois - Cap. I e VII. Tome XI e XII, Collection des Universits de France, Paris - Les Belles Letres, 1951.

    2 ARISTTELES. Poltica, VIII, 3, 1337b34, 138 a1, trad. Fr., Paris, Vrin, 1959, p. 557.

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    outra viso, assumida pelo conjunto da sociedade, que concebia o jogo como atividade de grande relevncia cultural, pois envolvia e promovia uma intensa comunicao e interao social entre todos os membros da comunidade, sem distino de classe, gnero ou idade.

    A viso antropocntrica do Renascimento, a partir do sculo XIV, influenciou para que o jogo, gradativamente, fosse retirado da reprovao oficial e incorporado ao processo formao de crianas e jovens. Seguindo essa orientao, as escolas jesutas do sculo XVI, fundadas por Igncio de Loyola, preconizavam a importncia do jogo e dos exerccios, na formao dos seus alunos.

    Nos sculos XVII e XVIII, ocorre uma intensificao da divul-gao, criao e utilizao do jogo como meio de ensino-aprendizagem de contedos das diversas reas do conhecimento e como um recurso adequado para o desenvolvimento das potencialidades inatas da criana. Mesmo assim, afirma Aris (1981), moralistas da poca continuavam enxergando o jogo como secundrio e dispensvel, no contexto educa-cional.

    O movimento romntico e a mudana de representao de criana foram fatores que nos sculos XVIII e XIX, segundo Brougre (1998), reforaram a valorizao do jogo como atividade indispensvel na educao infantil. Essa viso positiva do jogo transforma-o, no final do sculo XIX, num objeto de investigao das Cincias, de modo que vrios estudos so produzidos sobre o tema.

    Em contrapartida, Huizinga (1990), analisando o elemento ldico na cultura contempornea, constatou que a presena do jogo nos diferentes processos culturais entrou em decadncia no sculo XVIII, poca em que florescia plenamente. Com a sedimentao do modo de produo burgus, as conquistas da Revoluo Industrial, o domnio da tecnologia e a mudana de concepo de vida, fundada, agora, no utilitarismo, no individualismo, na eficincia prosaica e no ideal burgus de bem-estar, alteraram substancialmente a organizao social. Trabalho e produo passam a ser o ideal da poca, e logo depois o seu dolo. Toda a Europa vestiu roupa de trabalho. Assim, as dominantes da civilizao passaram a ser a conscincia social, as aspiraes educacionais e o critrio cientfico. O elemento ldico, o autntico jogo, segundo o autor, foi gradativamente desaparecendo, at chegarmos ao estgio em que nos encontramos na civilizao atual, no qual, mesmo onde ele parece ainda estar presente trata-se de um falso

  • | 15BREVE HISTRICO DO JOGO COMO RECURSO PEDAGGICO

    jogo, de modo tal que se torna cada vez mais difcil dizer onde acaba o jogo e comea o no-jogo. (HUIZINGA, 1990, p. 212-229).

    Na sociedade industrial, o jogo, como um meio socializador e integrador, torna-se desaconselhvel e necessita ser domado e adaptado ao novo modelo de sociedade que se estruturava. Os pedagogos, os mdicos e os nacionalistas elegem e apontam outras justificativas que atrelam o jogo produo, ao lucro e ao privado. Novas representaes so exigidas para a permanncia e existncia dos jogos. Aris (1981) destaca uma primeira justificativa de cunho nacionalista, que indicava o jogo como um meio de exerccio e preparao do indivduo para a guerra e para a defesa da ptria. Uma outra viso, de cunho biolgico, defendia a importncia do jogo como um meio para a sade e a prepara-o do indivduo como mo-de-obra para a produo industrial que se alastrava. Por fim, uma ltima justificativa, fundamentada em tendn-cias mais antigas, propunha o jogo como um meio para a aprendizagem de contedos escolares. Os jogos livres, importantes por si mesmos e resultantes dos mais diversos processos culturais, so substitudos por outras formas modernas de interpretao e aplicao.

    Os jogos turbulentos e violentos, suspeitos da tradio antiga, deram lugar ginstica e ao treinamento militar; o carter coletivo e a participao comum dos membros da sociedade so substitudos por imposies que os restringem aos grupos especficos, considerando a idade, o gnero e a classe social.

    Bettelheim (1988, p. 157) afirma que separao da criana e do adulto, no mundo do jogo, esteve relacionada s mudanas estruturais que ocorreram na sociedade e isto foi uma grande perda, pois, quando compartilhavam de um mesmo tipo de atividade significativa para ambos, estreitavam os seus vnculos, observavam-se e aprendiam um com o outro.

    At no final do sculo XVIII, segundo Aris (1981, p. 94), no se gastava tanto tempo do dia com o trabalho, nem este tinha a impor-tncia e o valor existencial que lhe atribumos h pouco mais de dois sculos. Os jogos e os divertimentos eram valorizados em si mesmos e se constituam num dos principais meios de que a sociedade dispunha para estreitar seus vnculos coletivos e para se sentir unida. O mundo refletia o comunitrio e o jogo correspondia a esse valor bsico. Todas as formas de jogos esportes, jogos de salo, jogos de azar ocupavam um lugar importantssimo na sociedade pr-industrial e, segundo o au-

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    tor, arrebatavam pessoas de todas as idades e condies sociais. De Masi (2000, p. 23) compartilha da viso de Huizinga e Aris

    e concorda que a separao entre trabalho, estudo e jogo uma atitude clara e artificial na sociedade industrial, que supervalorizou o trabalho e secundarizou outras atividades igualmente significativas para o homem. O autor explica que a sociedade ps-industrial criou novas condies, aliceradas em novas fontes energticas, nas novas divises de trabalho e de poder, que permitem s pessoas no gastarem tanto tempo mais com o trabalho. O trabalho-labuta, com conotao de sacrifcio, dever e obrigao, nitidamente separado do tempo livre e do estudo, passa por uma mudana radical e se mistura cada vez mais com o estudo e com o jogo, dando origem a um novo fenmeno, denominado pelo autor de cio criativo. A espcie humana, segundo De Masi (2000, p. 16), passou, na sua trajetria histrica, da atividade fsica para a intelectual, da atividade intelectual de tipo repetitivo atividade inte-lectual criativa, que tem como principal caracterstica a coincidncia e a conciliao entre o trabalho, o jogo e o estudo. As exigncias da sociedade ps-industrial requerem, portanto, que no se ensine apenas o trabalho, agora de carter prazeroso e estimulante, mas que os indi-vduos sejam preparados tambm para o no trabalho, ou seja, para as atividades ligadas ao tempo livre.

    Pedagogos, por sua vez, ao analisarem a utilizao do jogo no contexto educacional, retratam tambm posicionamentos divergentes. O alemo Frederico Frebel (1782-1852), criador do Kindergarten (Jardim da Infncia) e o primeiro pedagogo a sistematizar uma proposta pedaggica para a educao infantil, concebia o jogo e os brinquedos como elementos centrais da sua teoria educativa. O jogo, nessa fase, segundo o autor, a atividade mais pura e espiritual da criana, a representao auto-ativa do seu eu interior. Para Frebel3, a atividade ldica:

    D alegria, liberdade, satisfao, repouso interno e externo, paz com o mundo. Uma criana que brinca integralmente, por determinao de sua prpria ativi-dade, perseverando at que a fadiga fsica a impea,

    3 EBY, F. Histria da Educao Moderna. Teoria, Organizao e Prticas Educacionais. Porto Alegre: Globo, 1970.

  • | 17BREVE HISTRICO DO JOGO COMO RECURSO PEDAGGICO

    ser certamente um homem completo e determinado, capaz de auto-sacrifcio para a promoo do bem estar de si mesmo e dos outros [...]. O brinquedo espontneo da criana revela a vida interior futura do homem. Os brinquedos da infncia so germes de toda a vida posterior (apud ANGOTTI, 1994, p. 18-19).

    Edouard Claparde (1873-1940), a exemplo de Frebel, reco-nheceu o jogo como um recurso pedaggico privilegiado. O pedagogo destaca que para a criana o jogo o trabalho, o bem, o dever, o ideal da vida. a nica atmosfera na qual seu ser psicolgico pode respirar e, conseqentemente, pode agir4. A infncia o tempo de aprendizagem, de desenvolvimento das diferentes funes motoras, psicolgicas e psquicas, das potencialidades que emergem e esto latentes na criana. Ela se torna grande pelo jogo. A superioridade de uma espcie retra-tada pelo seu tempo de infncia; aquelas mais evoludas tm um tempo mais extenso de infncia.

    Com efeito, quanto mais longa a infncia, maior o perodo de plasticidade durante o qual o animal brin-ca, joga, imita, experimenta, isto , multiplica suas possibilidades de ao e enriquece com o fruto de sua experincia individual o fraqussimo capital que lhe foi transmitido como herana. (CLAPARDE5, apud CHATEAU, 1987, p. 14-15).

    Instrui Claparde6 (apud BROUGRE, 1998, p. 88-89) que o educador no pode ter pressa em transformar a criana em adulto; deve, ao contrrio, nas situaes de jogo, deixar desabrochar e educar as manifestaes naturais das crianas.

    Freinet (1960), diferentemente de Frebel e Claparde, discorda do jogo como principal fundamento do trabalho pedaggico e redi-mensiona a idia de trabalho escolar. Para ele, a pedagogia do jogo impe atividades superficiais criana, isto , de fora para dentro. O

    4 Psicologie de lEnfant, 1.I, p. 179.

    5 Ibid., p. 166

    6 CLAPARDE, E. Lcole sur mesure (1920), Paris-Neuchtel, Delachaux et Niestl, 1953, p.82.

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    trabalho escolar, na viso do pedagogo, deve tornar-se to significativo que a criana passe a encar-lo como um jogo, carregado de prazer e satisfao. O jogo no substitui o trabalho nem o ltimo pode dispensar as caractersticas gerais do primeiro. O pedagogo condenava, portanto, o jogo como recurso didtico e apontava o trabalho-jogo como a forma ideal para promover a aprendizagem das crianas.

    Estudiosos mais recentes questionam a tendncia atual de efi-cincia e especializao excessiva dos brinquedos educativos. Leif & Brunelle (1978) posicionam-se contrrios associao de jogo e estu-do, concebendo-os como plos irreconciliveis. A imposio didtica, para os autores, retira o prazer, a liberdade de escolhas e opes; por outro lado, o prazer e a espontaneidade dificultam a assimilao e a apropriao dos contedos.

    Brougre (1998), por sua vez, defende que possvel a conci-liao entre o jogar e o aprender, no contexto educacional, desde que sejam respeitadas as caractersticas do jogo como atividade espontnea, no produtiva e incerta.

    Este estudo adota a posio de Brougre, porm, ressalta que no possvel uma adeso total dos diferentes sujeitos do contexto educacional incorporao do jogo como recurso pedaggico, pois a deciso de incorpor-lo como tal est permeada no apenas por op-es de natureza pedaggica, mas tambm poltica. Donmoyer7 (apud COSTA,1991, p. 26) afirma que a incorporao do jogo como estra-tgia educacional exige deciso e escolha, num contexto de conflito de valores e perspectivas, uma vez que a participao nesse tipo de atividade ocorre em razo da satisfao intrnseca geral e no por causa de objetivos extrnsecos; envolve um engajamento ativo, espontneo e voluntrio dos participantes.

    Destacamos, portanto, que as opes pedaggicas e polticas so decisivas para a sensibilizao e a incorporao do jogo como recurso pedaggico, pois se referem a um conjunto de conhecimentos que pos-sibilita ao professor decifrar o seu papel social, as repercusses da sua atuao na aprendizagem e no desenvolvimento dos alunos e, tambm,

    7 DONMOYER, R. The politics of play: Ideological and Organizational constraints on the inclusion of play experiences in the School Curriculum. Journal of Research and Development in Education, Georgia, 14 (3): 11-18, 1981.

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    no questionamento ou reafirmao dos valores sociais dominantes no contexto histrico no qual est inserido. O jogo concebido como atividade de natureza histrica e social incorpora diferentes aspectos da cultura: conhecimentos, valores, habilidades e atitudes, portanto, a sua utilizao como recurso pedaggico requer do educador um posiciona-mento frente s suas possibilidades e limitaes.

    Os conflitos e contradies perpassam no apenas a deciso do educador de incorporar essa atividade, no contexto educacional, mas se expressam, de forma mais intensa, quando os sujeitos se predispem a jogar e colocar em evidncia, no mundo ldico, a oposio e a comple-mentaridade das suas diferentes experincias e concepes, em busca de um relacionamento humano e cultural, num determinado contexto histrico.

    A capacidade de leitura do educador, isto , de desvelar o que est por trs do jogo, no pode ficar reduzida s observao do aspecto positivo do jogo, isto , da influncia desse tipo de atividade para o desenvolvimento das diferentes competncias humanas, mas um mtodo relevante para a avaliao, entre outros aspectos, sobre o tipo de cultura que a gerao mais velha est oferecendo gerao mais nova. A interpretao dos contedos dos jogos revela que tipo de conhecimentos, valores, atitudes, comportamentos estamos impondo s crianas, quais so os elementos de que elas esto se apropriando e incorporando nas situaes ldicas. O jogo um importante recurso que permite criana a assimilao e a sua insero na cultura, na vida social e no mundo.

    Benjamin (1984, p. 70) adverte que as crianas no so nenhum Robinson Crusoe e no constituem nenhum grupo ou comunidade isolada, mas representam uma parte do povo, da sua cultura e da classe que provm. Os seus jogos no testemunham uma vida autnoma, independente e especial, mas retratam, na verdade, um mudo e estreito dilogo simblico entre as crianas e o seu povo.

    Assim como o mundo da percepo infantil est mar-cado pelos vestgios da gerao mais velha, com os quais a criana se defronta, assim tambm ocorre com seus jogos. impossvel constru-los em um mbito da fantasia, no pas ferico de uma infncia ou de uma arte puras. O brinquedo mesmo quando no imita os instru-mentos dos adultos, confronto, na verdade no tanto

  • 20 | O JOGO COMO RECURSO PEDAGGICO...

    da criana com os adultos, mas destes com as crianas. Pois de quem a criana recebe primeiramente seus brinquedos se no deles? E embora reste criana uma certa liberdade em aceitar ou recusar as coisas, muito dos mais antigos brinquedos (bola, arco, roda de penas, papagaio) tero sido de certa forma impostos criana como objetos de culto, os quais s mais tarde, graas fora de imaginao da criana, transformaram-se em brinquedos. (BENJAMIN, 1984, p. 72).

    Conclumos esta breve anlise, ressaltando o posicionamento de Brougre de que no existe o jogo por si mesmo, mas ele uma interpretao humana e provisria de determinadas situaes e atitudes como tal. Quanto mais o educador conhecer sobre esse tipo de ativi-dade, mais ele pode compreender o que acontece no interior do jogo, permitindo-lhe certa interferncia e influncia. A compreenso do jogo na sua essncia, a elucidao da sua importncia no contexto educacio-nal e as possibilidades de interferncia so plos que se interpenetram e se complementam, oferecendo subsdios para a incorporao do jogo como recurso pedaggico.

  • TENDNCIAS DE JOGO NO CONTEXTO EDUCACIO-NAL: RAZES E PRTICAS ATUAIS

    O jogo concebido e utilizado no contexto educacional para o atendimento de diferentes metodologias e finalidades. O estudo das vertentes permite a compreenso de concepes que sustentam ou negam o jogo como recurso pedaggico. Para a anlise das tendncias pedaggicas de jogo, no contexto educacional, tomamos como refe-rncia bsica o texto do eixo Brincar, publicado pelo MEC Minis-trio de Educao e Cultura, no ano de 1998, na verso preliminar do Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil (RCNEI). Esse material foi divulgado e distribudo para anlise e sugestes e resultou na verso final do RCNEI (BRASIL, 1998a).

    A partir do incio do sculo XIX, estudiosos assumiram o jogo como objeto de investigao cientfica e elaboraram pesquisas que procuraram compreender e explicar a importncia desse tipo de tividade, na vida dos homens e dos animais. Segundo o Documento (BRASIL, 1998b), vrias dessas teorias, somadas quelas elaboradas antes desse marco histrico, continuam influenciando as tendncias e concepes atuais do jogo.

    Teoria da Recapitulao da Espcie

    A proposta por Granville Stanley Hall8 uma teoria de carter cientfico, elaborada no sculo XIX, que se props explicar e justificar o jogo como atividade de natureza biolgica ou hereditria. Denomi-nada teoria da recapitulao da espcie, sofreu influncia da teoria de Darwin9. Essa tendncia terica considera o jogo como uma forma de preparao instintiva, um pr-exerccio para a vida adulta, baseada

    8 HALL, G. S. Adolescence, 2 vol., New York-Londres: D. Appleton, 1904.

    9 Charles Darwin (1809-1882), naturalista ingls, defendeu a idia de que a evoluo dos seres vivos era dirigida pela seleo natural das espcies. Numa de suas concluses, o bilogo aponta que, em cada gerao, sobrevivem os mais aptos e os seus descendentes herdam as caractersticas que permitam a sobrevivncia e a adaptao no meio natural (AMABIS & MARTHO, 1997, p. 552).

  • 22 | O JOGO COMO RECURSO PEDAGGICO...

    na imitao de comportamentos. A vida do indivduo comparada vida da humanidade e

    ambas tm uma infncia, uma maturidade e uma velhice. O jogo, na viso dessa teoria, seria uma recapitulao das atividades primitivas, permitiria criana resgatar as experincias dos sculos passados e chegar ao estgio de civilizao que caracteriza a sociedade onde nasceu. Essa vertente aplicada aos jogos infantis admite a seguinte interpretao, na viso de Chateau (1987, p. 31): os jogos de caa, depois de ter tido seu grande momento entre 6 e 9 anos, cedem lugar pouco a pouco aos jogos sociais, como a humanidade passou de uma civilizao caadora a uma civilizao fundada nos Estados organiza-dos. Para Brougre (1998, p. 82),

    uma espcie de repercusso do natural sobre o cultu-ral. A criana assimila naturalmente a histria cultural da humanidade, naturalizada pela circunstncia. O patrimnio cultural no inato, mas assimilado em um processo espontneo de maturao e segundo uma ordem que, grosso modo, a da histria.

    De acordo com Stanley Hall10 (apud BROUGRE, 1998), o jogo cumpre um papel essencial no desenvolvimento da criana, ao permitir que esta possa recapitular as experincias das geraes passadas, reviv-las e, desse modo, preparar-se para o futuro. As repercusses dessa tendncia levam a uma valorizao do jogo e das atividades espontneas das crianas at o final da segunda infncia. a exaltao da espontaneidade e da natureza infantil at um determi-nado momento e a imposio exclusiva das obrigaes sociais para a etapa posterior.

    Teoria do jogo como pr-exerccio

    Um outro modelo terico de cunho biolgico, tambm influen-ciado pela teoria darwiniana, concebe a criana como uma transio

    10 HALL, G. Stanley. Adolescence, 2 vol., New York-Londres: D. Appleton, 1904.

  • | 23TENDNCIAS DE JOGO NO CONTEXTO EDUCACIONAL...

    entre o animal e o homem. O estudo Os jogos dos animais, de Karl Groos11, parte do pressuposto de que

    o elemento animal especfico que se encontra no ho-mem a vida dos instintos (...) necessrio, portanto, um conhecimento exato do mundo animal, em que os instintos so mais puros para compreender quanto so poderosos no homem os instintos hereditrios (...). A razo dos jogos da juventude que alguns instintos particularmente importantes para a conservao da espcie j se manifestam numa poca em que o animal no precisa ainda seriamente deles. Enquanto opostos ao srio exerccio posterior, esses jogos so um pr-exerccio e um treinamento dos instintos em questo. Sua manifestao precoce extremamente til e remete ao princpio da seleo natural. Dado que os instintos herdados podem desse modo ser estimulados poste-riormente pela experincia individual, no precisam ser muito desenvolvidos quando do nascimento. (apud BROUGRE, 1998, p. 86-87).

    Podemos inferir das teses de Groos (apud ELKONIN 1998, p. 84-85), elaboradas no primeiro quarto do sculo XX, que a espcie humana possui um longo perodo de infncia e, quanto mais avanada a sociedade, mais duradouro esse perodo. A subsistncia dos filhos garantida pelos seus pais, que asseguram um tempo na infncia para que a criana se prepare e desenvolva competncias necessrias para a sua atuao na sociedade. As capacidades humanas no se desen-volvem diretamente de reaes inatas, mas so resultantes de dois processos: a nsia impulsiva para a atividade e o af, tambm, inato, para a imitao dos costumes e das aptides da gerao mais velha. Tais processos primrios se apresentam nos jogos, segundo Groos, e impulsionam o desenvolvimento de novos hbitos, reaes e adapta-es sobre uma base congnita, sem visar a uma finalidade exterior. A aprendizagem e o desenvolvimento, portanto, manifestam-se, avan-am e se estruturam por meio do jogo, cuja principal caracterstica

    11 GROOS, K. GROOS, K. Les jeux des animaux, [1895], tr. fr., Paris: Alcan, 1902.

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    no objetivar um resultado ou uma finalidade exterior. Groos (apud ELKONIN, 1998, p. 86) afirma que (...) podemos dizer perfeitamen- afirma que (...) podemos dizer perfeitamen-te, empregando uma forma um tanto paradoxal, que no brincamos porque somos crianas, mas que nos dada a infncia justamente para que possamos brincar.

    O mrito da teoria de pr-exerccio de Groos, conclui Elkonin (1998, p. 85), est no fato de ter exposto o problema do jogo e, com sua teoria do exerccio prvio, elevou-o categoria das atividades mais essenciais em todo o desenvolvimento da infncia.

    Teoria do jogo como gasto de excesso de energia

    Spencer12, por sua vez, concebe o jogo como um tipo de ativi-dade suprflua, na qual o animal pode consumir energias no gastas em atividades srias. Destaca o autor que

    as espcies animais inferiores possuem a caracterstica geral de que consomem todas as suas energias em funes de importncia vital. Andam sempre buscando comida, fugindo dos seus inimigos, construindo ninhos e proporcionando teto e sustento sua prole. Mas medida que subimos na escala animal para tipos superiores, que possuem qualidades mais eficientes ou virtuais, e mais variadas tambm, vemos que no empregam o tempo todo nem toda a sua energia em satisfazer suas neces-sidades diretas. Uma alimentao melhor, conseqncia de sua organizao superior, proporciona-lhes por vezes um excesso de energia... Dessa maneira, o problema que se apresenta entre os animais mais desenvolvidos que a energia requerida em alguns casos excede com freqncia as necessidades imediatas; e o excesso de energia resultante permite freqentemente, de uma ou outra forma, recuperar durante o repouso o seu consu-mo e adequ-la alta eficincia ou virtualidade (apud

    12 SPENCER, H. SPENCER, H. Fundamentos de la psicologia. So Petersburgo, 1897, p. 13-14.

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    ELKONIN, 1998, p. 15).

    Os pais so responsveis e obrigados a garantir, por meio do trabalho, o sustento das crianas. Estas, por sua vez, no precisam gastar as suas energias em esforos com atividades bsicas, podendo assim consumi-las em outras atividades que no fazem parte do mun-do do trabalho. Os pais so impelidos, principalmente nas sociedades civilizadas, a assegurarem um perodo de tempo cada vez maior para que as crianas amaduream e se preparem para as atividades de tra-balho. Mesmo quando as crianas so obrigadas a desempenhar algu-mas funes, tendo em vista contribuir para sua prpria subsistncia, o maior peso dessa tarefa compete aos pais. H, portanto, uma sobra de energia que gasta em atividades ociosas, que se convencionou chamar de jogos.

    Na viso de Spencer13, destaca Elkonin (1998, p. 15), o jogo uma inverso artificial da energia que, por no ter aplicao em atividades utilitrias, fica to disponvel para a ao, que procura sada em atividades suprfluas. Torna-se uma necessidade, tendo em vista a superabundncia de energia no esgotada nas atividades habituais, e, por outro lado, transforma-se em indispensvel, tambm, nos momentos em que j no se suportam as ocupaes teis e srias, realizando assim atividades de naturezas diferentes, entre outras, de distrao e relaxamento.

    Apesar de antigas, vises e explicaes, como as de Stanley Hall, Groos e Spencer, continuam influenciando e norteando, at hoje, a brincadeira e o jogo nos contextos educacionais, porm, com outras configuraes.

    Tendncias atuais de jogo no contexto educacional

    Uma primeira tendncia que se encontra com freqncia, nas instituies educacionais, denominada Ausncia e proibio da brincadeira; nessa perspectiva, o jogo tratado como obstculo para a aprendizagem, pois desconcentra e dispersa a criana. A escola, ten-

    13 SPENCER, H. SPENCER, H. Fundamentos de la psicologia. So Petersburgo, 1897, p. 415.

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    do em vista a sua funo de ensinar, no oferece condies espaciais, temporais, nem materiais adequados para que as crianas participem dos jogos. Permeia o medo de que tais atividades comprometam o en-sinar e acentuem nas crianas a preguia e a negligncia. O professor trata a atividade ldica como prejudicial e no permite a sua incluso, no interior das escolas. (BRASIL, 1998b, p. 8).

    Uma outra viso concebe o jogo como Instrumento didtico; nessa perspectiva, a brincadeira tratada como um meio preparatrio para a aprendizagem e domnio de contedos escolares das diferentes reas. A interveno do educador diretiva e sua meta desenvolver nas crianas habilidades escolares especficas e noes previamente definidas, preparatrias para aprendizagens de contedos. Materiais, objetos, brinquedos pedaggicos, jogos didticos e auto-instrutivos so oferecidos para o desenvolvimento da coordenao motora, noo espao-temporal, domnio de formas, dimenses, cores, letras, formas e nmeros. Quando os objetivos instrucionais so priorizados pelos educadores, ressalta o Documento, as contribuies mais significati-vas do brincar acabam secundarizadas. Conclui, ressaltando que no pode ser considerada como jogo ou brincadeira uma atividade cujos temas, papis, meios, objetivos, aes das crianas so definidos a priori, pelo educador, para atingir determinadas finalidades. (BRA-SIL, 1998b, p. 8-9).

    A brincadeira dentro da sala de aula, segundo Brougre (apud WAJSKOP 1995, p. 83), no pode ser utilizada como um meio de seduo para prender a ateno das crianas nos contedos; caso seja utilizada dessa forma, deixa de ser brincadeira e passa a ser uma outra atividade, controlada, orientada e com finalidades explcitas. Propostas que usam o jogo como engodo falseiam a realidade, so formas alienantes que visam a alcanar resultados pedaggicos. A brincadeira didatizada oculta o objetivo de ensino e torna a aprendi-zagem involuntria e imperceptvel. Uma prtica educativa, que se pauta na aprendizagem significativa, explicita o objetivo didtico para a criana e a motiva a alcan-lo de maneira voluntria e intencional, no precisando de subterfgios para se efetivar.

    Wajskop (1995, p. 109) alerta que a funo assumida pelas instituies educacionais de preparar a criana para as etapas de ensino posteriores, por meio de exerccios repetitivos de prontido ou utilizando a brincadeira como recurso didtico, contrria exis-

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    tncia do brincar como prxis social infantil, pois seus objetivos no coadunam com a espontaneidade e a liberdade, valores presentes na atividade ldica infantil.

    As posies dos autores citadas e do Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil (RCNEI) apontam para a sutileza da utilizao da brincadeira como recurso pedaggico no contexto educacional e alertam para o cuidado que o educador deve ter para no descaracterizar nem o jogo nem o trabalho escolar, mas utilizar ambos como recursos pedaggicos, garantindo as especificidades desses dois tipos de atividades. possvel, portanto, trabalhar o jogo dentro da sala de aula? Defendemos que sim, e o prprio RCNEI (BRASIL, 1998a) apresenta pistas, ao indicar que o trabalho pedag-gico, na Educao Infantil, precisa contemplar atividades diretivas e dirigidas pelos professores, e os momentos no diretivos, que devem ser transformados em espaos de construo da autonomia, de exerc-cio de imaginao, de criao, reelaborao da realidade e tomada de conscincia de si e do mundo.

    Apesar de a aprendizagem e o jogo serem atividades de natu-rezas diferentes, defendemos que elas podem ser utilizadas de forma complementar, colaborando na superao da falsa dicotomia que se instalou na escola, onde o jogar e o aprender so atividades no conciliveis. Essa tendncia predominante, que dicotomiza o jogar e o aprender, trata os momentos de aprendizagem com uma certa seriedade e os torna diretivos, na maioria das vezes; as atividades l-dicas so tomadas como momentos de descarga de energia excedente, de recreio, de descontrao e acontecem, com freqncia, quando no se tem mais nada para fazer.

    Entendemos que os professores, ao secundarizarem o jogo, esto deixando de explorar uma atividade que considerada, por Vygotsky (1991) e Leontiev (1988), como principal no perodo pr-escolar.

    Pesquisadores e estudiosos do jogo concordam que, quanto mais informaes e conhecimentos a criana dominar, mais rico seu repertrio, nas atividades ldicas. A riqueza e a fecundidade na dra-matizao de temas, na escolha de papis, na utilizao de objetos, na organizao do espao, na durao das atividades, segundo Wajskop (1995), esto estreitamente ligadas qualidade das informaes, vi-venciada nas outras reas, destaque para o trabalho pedaggico com a Literatura Infantil, a Arte, a Histria, a Cincias, a Matemtica e

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    a Geografia. Por outro lado, afirma Venguer (1986) que, quando a criana brinca, ela desenvolve vrias competncias, entre outras, o pensamento, a vontade, a memria, a concentrao, a imaginao, a personalidade, que a preparam para a realizao de atividades produ-tivas e para o mundo do trabalho.

    A proposta de utilizar de forma complementar o jogo e as tare-fas escolares exige do professor, por meio do processo de formao e de estudo, uma mudana de concepo, que o leve a aceitar a criana como um ser interativo, imaginativo, ativo e ldico e descubra o po-tencial de desenvolvimento que est por trs das brincadeiras e dos jogos.

    Uma outra vertente presente no contexto educacional interpre-ta o jogo como Atividade recreativa, isto , ocasio que permite o relaxamento, o gasto do excesso de energia que ficou acumulada, em razo das atividades passivas desenvolvidas na sala de aula. Os jogos e as brincadeiras servem de momentos de descanso das atividades srias, um meio de recuperao fsica e psicolgica, preparando as crianas para novas etapas do trabalho escolar. A brincadeira e o jogo so tratados como atividades de menor valor, pois contribuem no de-senvolvimento do movimento e do corpo (BRASIL, 1998b, p. 9). Essa viso, que concebe de forma assimtrica as atividades do corpo e da mente, ao longo da histria da civilizao ocidental, equivocadamente privilegiou as operaes mentais, tratando-as como mais elevadas, em razo de uma suposta funo cortical superior, secundarizando as aes feitas com o corpo, concebidas como menos importantes, j que se utilizavam de uma funo cortical inferior. Apesar de es-colas e educadores ainda persistirem nas suas prticas pedaggicas fundamentadas nesse engano, podemos afirmar que consenso que o funcionamento do sistema motor extremamente complexo, interage com o sistema perceptivo e exige uma coordenao diferenciada e integrada de uma imensa variedade de componentes neurais e mus-culares.

    O Jogo simblico (BRASIL, 1998b, p. 9-10) uma outra verso que est presente nas prticas escolares. Nessa perspectiva, as brincadeiras e os jogos so propostos como meios para o equilbrio e a recuperao psicolgica. Esses momentos so catrticos e servem para que a criana possa extravasar emoes reprimidas, frustraes e sentimentos traumticos causados por situaes do cotidiano. As situaes ldicas so oferecidas, nos espaos internos ou externos da

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    instituio educacional, competindo aos professores o oferecimento de materiais adequados e tempo para que a criana, nessas situaes, possa se restabelecer, renovar-se e se equilibrar frente s agresses e imposies do meio.

    Uma outra tendncia, designada de Laissez-faire14, norteia uma importante parcela de prticas educativas, na esfera dos jogos. Essa viso concebe as atividades ldicas de origem biolgica ou na-tural e o seu aparecimento se d em razo da maturao das crianas. Os adultos no atrapalham, no impedem, contudo, no interferem, no influenciam e no enriquecem tais atividades: apenas observam e garantem tempo e espao para que elas aconteam. Observa-se esse tipo de tendncia, tanto na Educao Infantil, como nas sries iniciais do Ensino Fundamental, em que os espaos privilegiados so os par-ques, salas, quadras, ptios, gramados e caixas de areia. As crianas reproduzem nos seus jogos apenas aquilo que instigado pelo espao e pelo material colocado sua disposio ou, ento, as atividades que aprenderam de maneira informal, na rua, em casa ou pela influncia da mdia. Os professores no exercem qualquer tipo de interferncia, por considerarem o jogo como atividade de natureza biolgica e no como resultante da aprendizagem social. (BRASIL, 1998b, p. 10).

    O Referencial Curricular, eixo Brincar, defende uma concep-o de jogo infantil que se constitui numa atividade interna da criana, baseada no desenvolvimento da imaginao e da interpretao da re-alidade, sem ser iluso ou mentira. A brincadeira vista como um ce-nrio no qual a criana, a partir do seu nvel de desenvolvimento, atua com significados e imagens, reelaborando conhecimentos, valores e sentimentos. Quando brinca ou joga, destaca o Documento, a criana transforma objetos, animais, pessoas, lugares, coordena diferentes experincias, atravs da memria e da imaginao. O momento de brincar pode ser visto como um laboratrio, um espao de experimen-tao, no qual a criana pode ensaiar, errar, sem a presso do mundo adulto. A criana, por meio da linguagem simblica, utiliza-se de objetos, insere-se no mundo da cultura, constri seu pensamento, lida com seus sentimentos e amplia suas relaes sociais. Considerando as especificidades afetivas, emocionais, sociais e cognitivas das crianas

    14 Essa expresso francesa costuma denominar prticas educativas espontanestas, que deixam a criana fazer o que bem deseja, sem orientao didtica nenhuma.

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    da Educao Infantil e das sries iniciais do Ensino Fundamental, as experincias oferecidas em forma de brincadeiras podem ser um privilegiado recurso para a formao da cidadania, para o desenvol-vimento psicolgico e da personalidade da criana e, tambm, como forma particular de expresso, interao e comunicao. (BRASIL, 1998b, p. 10-11).

    O jogo e a brincadeira, portanto, no so apenas uma neces-sidade da criana, mas um direito que, no Brasil, est garantido por diversos instrumentos legais, entre os quais, os Direitos Universais da Criana de 1959, a Constituio Federal de 1988, o Estatuto da Criana e do Adolescente (1989). Quando diversos instrumentos le-gais tentam preservar um direito bsico, sinal que ele no est sendo plenamente assegurado.

    Em diversas partes do mundo, surgiram associaes internacio-nais preocupadas com o problema da reduo do espao e da negao do direito de brincar criana. O IPA (Associao Internacional pelo Direito de Brincar) um exemplo de organizao no governamen-tal, fundada em 1959, na Dinamarca, que visa a defender tal direito. Constata o IPA que, apesar dos avanos cientficos nas diferentes reas Antropologia, Sociologia, Filosofia, Pedagogia e Psicologia que demonstram a importncia do brincar na aprendizagem e no desenvolvimento infantil, vem aumentando significativamente a in-diferena e a descrena dos adultos nessas atividades. Observa-se nas instituies, principalmente de Educao Infantil, uma pressa, uma preocupao exacerbada em antecipar o processo de escolarizao. Alguns pais chegam mesmo a fazer ingressar o filho, de idade inferior, em classe com grupos de crianas mais velhas, acreditando que esto ganhando tempo na formao da criana. A sobrecarga de trabalhos escolares, impostos aos alunos, principalmente na etapa final da Edu-cao Infantil, reduz e no resguarda o tempo para o ldico, posio esta que priva a criana de um meio significativo e essencial para o desenvolvimento das suas faculdades humanas.

    As crianas, segundo ARIS (1981), depois do sculo XVIII, passaram a ser segregadas e separadas do mundo adulto. Antigamente, crianas e adultos brincavam juntos, compartilhavam experincias e aprendizagens, atualmente, no preciso muito esforo para verificar que at mesmo os espaos e as oportunidades das crianas brincarem entre si esto sendo negados. No estamos propondo a infantilizao

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    do adulto ou que a nica atividade essencial na formao da criana seja o jogo ou a brincadeira, mas sim, que esses espaos de expresso e incorporao da cultura e de valores precisam ser respeitados e valo-rizados, e que conhecimentos, condies temporais, espaciais e mate-riais adequados garantam criana o direito infncia e ao brincar. O jogo e a brincadeira so apontados, portanto, como valiosos recursos pedaggicos que colaboram no desenvolvimento das mltiplas inteli-gncias e das faculdades humanas das crianas, preparando-as para a seqncia dos estudos, para as atividades de trabalho e de lazer.

    Na sociedade capitalista, os valores de produo, exacerbao da competio e do individualismo predominam frente ao ldico, espontaneidade, criatividade e cooperao. A criana no consi-derada na sua especificidade, mas sim como um projeto de adulto. As escolas e os pais tm medo de perder tempo com as atividades ldicas e as negam. Em contrapartida, sobrecarregam a criana com uma srie de obrigaes sociais, antecipando tarefas para as quais ela ainda no est preparada.

    Afirma MARCELLINO (1990, p. 60) que

    a lgica da produtividade que impera na nossa socie-dade, vinculou o ldico (coisas no srias) criana, faixa etria caracterizada pela improdutividade, mas que mesmo para ela, o ldico vem sendo negado cada vez mais precocemente. (...) A criana vista apenas como promessa, um adulto potencial, em que se deve investir, o que gera o sentimento de inutilidade da infncia. Sua nica aspirao possvel tornar-se adulto.

    Constata o IPA que ainda no prioridade, nem para as es-colas, nem para as cidades, a elaborao de planejamento adequado que assegure espaos apropriados para o brincar, de modo que cada vez mais a criana est entregue s mensagens da mdia e multim-dia. No valorizar o brincar, segundo essa Associao, significa no preparar adequadamente as crianas para enfrentarem com xito uma sociedade em constantes mudanas e que exige um novo perfil de homem: cooperativo, criativo, dinmico, verstil, comprometido com uma forma de vida mais humana, menos exclusiva e mais justa.

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    O jogo na perspectiva do Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil

    O Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil (RCNEI) prope a superao de duas tendncias hegemnicas, na Educao Infantil. A primeira, de carter assistencialista, cuja nfase do trabalho pedaggico na Educao Infantil est voltado apenas para o cuidado com a criana. Nessa perspectiva, a criana tratada como ser carente, dependente e imaturo e a educao vista como beneficncia, ato de caridade e no um direito conquistado. A segunda tendncia de antecipao de escolaridade, presente tanto na rede pblica como par-ticular de ensino, d nfase, no trabalho pedaggico, para os contedos que so trabalhados no Ensino Fundamental. Acreditam os defensores dessa viso que o domnio precoce, pela criana, de determinados contedos permite avanos na quantidade dos contedos trabalhados no Ensino Fundamental. O tempo para jogar, imaginar, construir, relacionar-se substitudo pelo cumprimento de atividades e tarefas, muitas sem qualquer significado e sentido para a criana, porm, tratadas como necessrias para transmisso e treino dos contedos a serem dominados. A maior parte do tempo destinada alfabetizao da linguagem oral, escrita e da Matemtica; no sobra muito tempo para as outras atividades e a criana sobrecarregada de tarefas, lies de casa, livros, material apostilado. A maioria dos pais compartilha e cobra das instituies esse tipo de trabalho pedaggico. Algumas escolas chegam ao cmulo de impor situaes de reforo, isto , uma carga suplementar de aulas para que possam suprir as deficincias da criana da Educao Infantil.

    O RCNEI destaca que o objetivo da Educao Infantil o de contribuir para a aprendizagem e para o desenvolvimento das ml-tiplas linguagens, formar para a cidadania e respeitar e garantir o direito da criana infncia. Est se tornando um consenso, segundo o documento, a idia de que o objetivo principal da Educao Infantil de investir no desenvolvimento integral do educando, porm, pode-se observar, na prtica, tendncias que privilegiam um ou outro aspecto do comportamento humano: fsico, cognitivo, afetivo, tico, esttico, social e emocional. (BRASIL, 1998a, p. 17-19).

    As instituies infantis devem proporcionar experincias prazerosas, diversificadas, respeitar o direito da criana de brincar e

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    oferecer condies adequadas para que ela possa desenvolver a sua personalidade, o aspecto psicolgico, a capacidade de expresso, de comunicao e de interao social.

    A responsabilidade pela formao da criana no apenas da escola, mas deve ser compartilhada pela famlia. A criana concebida como um sujeito histrico e social, que possui uma natureza singular, isto , pensa e sente o mundo de um jeito prprio e tem a sua famlia como ponto de referncia. A interao, desde o seu nascimento, com pessoas e objetos, cria necessidades e motivos, desperta na criana a curiosidade e a motiva a conhecer o mundo natural e social, os obje-tos, e a ampliar as suas relaes sociais. Ressalta o Documento que conhecimento no cpia da realidade, mas resultante de um intenso trabalho de criao, reelaborao e incorporao. (BRASIL 1998a, p. 21-33).

    A brincadeira, segundo o RCNEI, uma representao, uma atividade simblica, orientada pelo significado e pela atitude mental. um espao onde a criana pode experimentar e internalizar o mundo, sem presso e sem medo de errar. Quando brincam, as crianas recriam e repensam os acontecimentos e os valores. O jogo infantil favorece o desenvolvimento da auto-estima, permite a interiorizao de modelos dos adultos e promove a incorporao de conhecimentos em concei-tos gerais. Nesse tipo de atividade, a criana livre para escolher os parceiros de jogo, os papis que deseja representar, os materiais, os procedimentos, assim como para definir ou alterar os objetivos da atividade. As suas operaes, porm, so limitadas pelas condies, pelos papis representados e pelas regras; fatores que colaboram para o desenvolvimento moral e social das crianas.

    Ao professor cabe um papel destacado, isto , de ajudar a estruturar o espao e o tempo de brincar das crianas. Observando as brincadeiras, o educador pode compreender melhor as atividades e os comportamentos, intervir intencionalmente, oferecer material adequado, ampliar a cultura corporal e enriquecer as competncias imaginativas da criana.

    Os jogos so situaes privilegiadas, quando incentivados e valorizados no contexto educacional, que permitem s crianas a estabilizao e o enraizamento daquilo que j sabem sobre as diversas reas. Quando, numa atividade, o professor define o contedo, a forma, os meios, e a utiliza como um recurso para alcanar a aprendizagem de conceitos, tal proposta no pode ser chamada de jogo, pois as suas

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    caractersticas essenciais no foram preservadas. Defende o RCNEI (BRASIL, 1998a) que as instituies infantis devem contemplar e conciliar as atividades de trabalho escolar com o jogo infantil. Cada uma das atividades tem a sua especificidade e natureza e elas se com-plementam e colaboram no processo de desenvolvimento integral da criana.

    A anlise do RCNEI reafirma a posio assumida de que, para utilizar o jogo como recurso pedaggico, necessrio ter clareza sobre a natureza e as caractersticas dessa atividade, pois, se o educador no souber distinguir e compreender o que o jogo e qual a sua impor-tncia no desenvolvimento da criana, ele pode descaracterizar tanto o trabalho escolar quanto o jogo. Nada impede que o professor reali-ze atividades ldicas na sala de aula e, mesmo que essas atividades contemplem conhecimentos de outras reas, o que importa que as especificidades do jogo e da brincadeira sejam garantidas.

    A fundamentao terica do estudo, baseada, entre outros, nos estudos de Brougre (1998), Callois (1990), Elkonin (1998) e Huizin-ga (1990), trouxe contribuies para a compreenso e a caracterizao do jogo, no contexto educacional. Esclarece, tambm, que o jogo e o trabalho possuem caractersticas distintas, porm so conciliveis e se complementam no trabalho pedaggico, colaborando na aprendizagem e no desenvolvimento infantil.

    Piaget (1971) concebe o jogo e a aprendizagem tambm como atividades de naturezas diferentes. Para o autor, o jogo, nos diferentes nveis de desenvolvimento, um tipo de atividade que se caracteriza pela predominncia da assimilao sobre a acomodao. Nas atividades ldicas, a criana livre para escolher o contedo, a forma, os meios, os objetivos e o tempo que gastar na sua realizao. Quando, porm, algum fator externo pressiona a criana a um esforo adaptativo, ocor-re a mudana da natureza da atividade, essa deixa de ser jogo e ocorre o equilbrio entre a acomodao e a assimilao, transformando-se numa situao de trabalho ou de adaptao. Nas situaes de aprendi-zagens, a criana deve se submeter s exigncias da realidade; o jogo, entretanto, um mecanismo que ela utiliza para submeter a realidade s suas possibilidades de assimilao. Portanto, apesar de serem ati-vidades de naturezas diferentes, elas no se excluem e, na perspectiva desse autor, cada uma tem o seu valor e sua importncia.

  • EM BUSCA DE DEFINIES E CARACTERIZAO DO JOGO

    Neste tpico, estabelecemos uma conceituao de jogo, suas caractersticas e justificativas, que revelam a importncia desse tipo de atividade no contexto escolar. Tais objetivos, apesar de complexos, so de fundamental importncia, pois permitem identificar os limites e as possibilidades do jogo como recurso pedaggico.

    Esclarecemos, inicialmente, que, ao propor o jogo como re-curso pedaggico, assumimos a posio de que a educao escolar, na sociedade contempornea, cumpre papel essencial no processo de formao das geraes mais novas. A espcie humana, segundo Leontiev (1978), diferentemente de outras espcies, no fixa bio-logicamente as aquisies sociais historicamente construdas nem consegue transmiti-las por herana gentica; depende da mediao que se d, principalmente, na transmisso pela gerao mais antiga da produo cultural conquistada gerao mais nova. A criana, gradativamente, considerando a qualidade das interferncias, amplia os seus conhecimentos e desenvolve capacidades, que possibilitam a tomada de conscincia de si e do mundo.

    So vrias as instncias mediadoras que determinam a prepa-rao da criana para a vida social, destaque para a famlia, os meios de comunicao, a igreja, a escola e outros grupos sociais. A escola, para cumprir o seu papel, conta com pessoas especializadas, que se apropriam de determinadas atividades consideradas essenciais para impulsionar o processo de humanizao da criana. Neste estudo, defendemos que o jogo uma dessas atividades bsicas, que deve ser utilizada pelo professor como contedo e meio para a estruturao de aprendizagens e para o desenvolvimento global infantil.

    A tentativa de compreender e desvelar a natureza do jogo, mesmo que de forma provisria, um primeiro passo que possibilita relacion-lo com o processo de ensino-aprendizagem e delimitar a sua possvel influncia como recurso pedaggico, no desenvolvimen-to das faculdades humanas da criana.

    O vocbulo jogo visto como polissmico, carregado de sen-tidos, muitos dos quais no conciliveis e at mesmo contraditrios com a proposta deste estudo, que entend-lo em seu potencial edu-

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    cativo. Revela-se bastante complexa a tarefa de compreender por que um conjunto de sentidos se configura como jogo, tendo em vista a diversidade de posicionamentos. Entretanto, considerando o objetivo do estudo, no possvel dela eximir-se ou buscar subterfgios.

    O termo jogo no abstrato; vrios autores, por no concorda-rem em sua aparente evidncia, elaboraram anlises e justificativas, de acordo com o contexto em que desenvolveram os seus estudos. Inicialmente, possvel afirmar que no h um nico conceito cient-fico estabelecido e definitivo sobre o vocbulo.

    A anlise histrica, o levantamento de teorias e de propostas que visam a explicar o jogo ou compreend-lo como elemento da cultura um caminho frtil para a sua conceituao. No se trata de impor um ponto de vista, mas de compreender diferentes interpretaes do jogo, para eleger proposies que mais se aproximam deste estudo. Conceituar e caracterizar o jogo torna-se, portanto, um percurso to importante, como classific-lo, compreender a gnese, a evoluo e a sua importncia como recurso pedaggico.

    Ao consultar o dicionrio Aurlio (FERREIRA, 1999), perce-bemos que o jogo um vocbulo de origem latina ludus (jogo, escola) que, posteriormente, foi substitudo por jocus (gracejo, zombaria). Dentre os significados encontrados, destacamos, num primeiro grupo, as seguintes definies: o jogo como atividade fsica ou mental, organizada por um sistema de regras que definem perda ou ganho; brinquedo, passatempo, divertimento. Um conjunto de regras que devem ser observadas quando se joga. Maneira de jogar, uma aposta ou vcio.

    Num outro grupo de significados, o jogo interpretado como uma srie de coisas que forma um todo ou uma coleo. Uma con-jugao harmoniosa de peas mecnicas, com o fim de movimentar um maquinismo. O conjunto orgnico, num espetculo teatral, das marcaes dos atores, dilogos, jogos de luzes, movimentaes de cenrios, divises em cenas, atos e intervalos, ritmo, atmosfera, jogo de cena, jogo dramtico. Refere-se, tambm, a uma folga excessiva num determinado mecanismo.

    Ainda de forma metafrica, o termo empregado para caracteri-zar atitudes e comportamentos, entre outros: abrir o jogo - demonstrar uma atitude de franqueza. Esconder o jogo - no deixar transparecer as verdadeiras intenes de um comportamento, uma atitude. Fazer

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    o jogo de - colaborar com o(s) objetivo(s) de, atuando com dissimu-lao ou sem conscincia do que faz. Ter jogo de cintura - ter muito jeito, muita habilidade, para sair de situaes difceis. Jogar limpo - capacidade de aceitar com serenidade e elegncia situao difcil ou adversa. Jogo da bolsa - especulao em operaes de compra e venda (ttulos e mercadorias), que no obriga entrega do objeto negociado, resolvendo-se apenas com o pagamento da diferena dos preos de cada transao.

    O conceito jogo, conforme o exposto, expressa vrias de-signaes, tanto em sentido direto como em sentido metafrico, o que de certa forma confirma a hiptese levantada das caractersticas polissmicas do termo e a exigncia em se buscar um caminho para a configurao do objeto de estudo.

    Para delimitar a sua conceituao, sero consideradas as con-cepes de trs estudiosos do tema: Huizinga (1990), Callois (1990) e Brougre (1998), que trilham percursos diferentes, na tentativa de definir o fenmeno.

    Huizinga (1990) aponta uma nica definio sobre o jogo e descreve as suas principais caractersticas. Callois (1990), por sua vez, separa os enunciados em dois conjuntos, um de sentido estrito e outro de sentido figurado e, valendo-se das anlises dos significados, procura desvelar as suas evidncias e seus traos comuns. Por ltimo, Brougre (1998) faz um percurso diferente dos anteriores, ao discordar da possibilidade de uma nica definio e tambm da viabilidade da busca de traos comuns entre as diferentes significaes. Para o autor, a compreenso dos significados depende da explorao da linguagem e de seu funcionamento dentro de contextos histricos especficos.

    Huizinga (1990) aborda o jogo humano como resultante da cul-tura, um fenmeno social, considerando essa forma de jogo como a mais elevada. Esclarece, inicialmente, que o jogo no uma inveno do homem, mas antecede a cultura, que pressupe a existncia da so-ciedade humana. Ao observar os animais, pode-se constatar que eles tambm realizam jogos; os cachorros, por exemplo, fazem todo um ritual, eles se convidam para jogar, divertem-se, respeitam as regras e no buscam resultados enquanto jogam. Os animais no esperaram que os homens os ensinassem a jogar.

    Para o autor, existem no jogo aspectos que no so passveis de serem explicados logicamente, mas pode-se afirmar que, na sua

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    essncia, o jogo apresenta algo que no material e ultrapassa os limites do reflexo psicolgico ou da determinao biolgica. A sociedade humana, conclui Huizinga (1990, p.3), no acrescentou nenhuma caracterstica fundamental ao jogo, porm diversificou-o ao longo da sua histria.

    O jogo uma atividade que se situa numa esfera superior aos processos estritamente biolgicos de alimentao, reproduo e autoconservao. O que o torna importante para o indivduo e para a sociedade o sentido que encerra, isto , a sua capacidade de dar beleza, ornamentar e ampliar a existncia humana (HUIZINGA, 1990, p.12).

    A essncia do jogar, segundo o autor, est no divertimento, na fascinao, na distrao, na excitao, na tenso, na alegria e no arrebatamento que o jogo provoca. Existe no jogo um significado que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido ao. Huizinga (1990, p.10-16) aponta, entre outros, os seguintes aspectos como fundamentais para caracterizar o jogo: uma atividade livre e, se for sujeito a ordens, deixa de ser jogo e passa a ser tarefa. O jogo no se situa na vida comum, no est ligado satisfao imediata das necessidades ou dos desejos, mas interrompe esse mecanismo. A satisfao que causa est relacionada com a prpria atividade; por-tanto, no pode ser imposto por deveres fsicos e morais e somente se liga s noes de obrigao e dever moral, quando relacionado ao culto e ao ritual.

    Ainda, para o autor, os animais e as crianas brincam porque gostam; para o adulto, no entanto, o jogo no uma atividade impres-cindvel, transforma-se em necessidade pelo prazer que proporciona. O jogo uma evaso da vida real e se distingue da vida comum pelo lugar e durao que ocupa. Os espaos ldicos so temporrios e criados no cerne do mundo habitual. Ligado ao fator tempo, o jogo transforma-se em tradio, pela repetio, e transmitido de gerao a gerao, preservando a sua magia. Sua prtica acontece dentro de certa ordem e, se o respeito a essa ordem for rompido, ocorre, segundo Huizinga (1990, p. 10-15), a destruio do mundo do jogo. Um elemento que est sempre presente no jogo a tenso; ela lhe d um carter de incerteza, de dvida; quanto mais acirrada for a competio, mais acentuada ser a tenso. O jogo permite a formao de grupos, por meio de segredos e disfarces, os quais diferenciam os

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    participantes do restante do mundo. So estas caractersticas que, segundo Huizinga (1990), devem

    ser observadas numa determinada situao, para caracteriz-la como ldica. Apesar das dificuldades em conceituar o jogo, o autor prope uma definio, sintetizando as principais caractersticas do fenmeno.

    O jogo uma atividade ou ocupao voluntria, exercida dentro de certos limites de tempo e espao, segundo regras livremente consentidas, mas absoluta-mente obrigatrias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tenso e alegria e de uma conscincia de ser diferente da vida cotidiana. (HUIZINGA, 1990, p. 33)

    Para o autor, o elemento ldico esteve presente, desde o incio da civilizao, nos mais diferentes povos, desempenhando um papel extremamente importante, criando cultura e permitindo ao homem desenvolver, em toda a sua plenitude, as necessidades humanas inatas de ritmo, harmonia, mudana, alternncia, contraste e clmax. (HUI-ZINGA, 1990, p.84-85).

    Na civilizao antiga, o jogo tinha um carter primrio e fazia parte de todos os processos culturais; podia-se visualiz-lo na guerra, no conhecimento, na arte, na msica, na poesia, na filosofia, no di-reito, na religio. A cultura, em suas formas primitivas, era como que jogada. Mesmo as atividades que supriam as necessidades bsicas do indivduo, por exemplo, a caa e a colheita, assumiam formas l-dicas nas sociedades arcaicas. (HUIZINGA, 1990, p. 54). A partir do sculo XVIII, com a sedimentao do modo de produo capitalista, essas formas de jogo foram se rarefazendo, sendo substitudas pelo esporte, que incorporou os valores e representaes do novo modo de vida que se instalou, voltado para o trabalho, para o privado, para a exacerbao da produo e da competio.

    Callois (1990) reconhece a valiosa contribuio de Huizinga ao conceituar o jogo, constatar as suas caractersticas e conceb-lo como fenmeno social presente nos diversos processos culturais; todavia, tece crticas ao autor de Homo Ludens, por no ter elaborado uma classificao dos jogos.

    Ele prprio considera que os jogos so de mltiplos tipos, so encontrados nos mais diversos lugares e em nmero elevado. Partindo

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    do pressuposto de que o jogo um elemento primordial no desen-volvimento da civilizao e de que o vocbulo no se refere apenas ao conjunto de atividades especficas que nomeia, Callois (1990, p. 9-13) analisa os sentidos estritos e derivados, visando a descobrir o que eles tm de instrutivo e no que contribuem para a compreenso do termo. Apesar da grande diversidade, preocupou-se em verificar uma evidncia comum na palavra jogo.

    Descreve Callois que o jogo, no sentido estrito, evoca, por igual, as idias de facilidade, risco ou habilidade. Convida os interessados a um clima de descontrao, diverso, alegria, distrao. Ope-se ao carter srio da vida, do trabalho, da produo e da obrigao. considerado, em razo disso, uma atividade frvola. O jogo no busca, segundo o autor, nenhum bem, nenhum valor, nenhuma obra. Mesmo as loterias, as apostas, os jogos a dinheiro no produzem riqueza; ape-nas a movimentam. uma atividade eminentemente gratuita e este o aspecto que o torna desacreditado. Tal fator, alis, bastante para-doxal, pois, enquanto aplicados estudiosos, historiadores, psiclogos, procuram demonstrar a presena do jogo nas mais altas manifestaes culturais e sua importncia para o desenvolvimento global dos in-divduos, outros, todavia, enxergam-no como uma atividade menor, secundria, descartvel e prescindvel.

    O vocbulo jogo utilizado tambm para designar [...] a to-talidade das imagens, smbolos ou instrumentos necessrios a essa mesma atividade ou a um funcionamento de um complexo. Quando se fala em jogo de xadrez, refere-se igualmente ao conjunto de peas necessrias para jog-lo. Um elemento a menos ou a mais pode dese-quilibrar toda a atividade. Da mesma forma, pode-se dizer de um jogo de velas: um conjunto de peas de uma embarcao ou carro. Essas noes transmitem a idia de totalidade fechada, completa, imutvel de incio, concebida para funcionar sem outra interveno exterior que no seja a energia que lhe d movimento [...]. O vocbulo, por outro lado, designa um estilo ou uma caracterstica original de um msico, comediante ou intrprete, que, mesmo estando preso ao texto ou partitura, permanece livre para a sua prpria manifestao. Constata Callois (1990, p. 10-11), desse grupo de significados, que o vocbulo jogo combina, em si, as idias de limite, liberdade e inveno.

    Os sentidos de fazer um bom jogo, jogar com trunfo, mostrar ou esconder o jogo esto vinculados aos jogos que envolvem os ele-mentos sorte e destreza. As expresses jogar forte, jogar a carreira,

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    pr a vida em jogo pressupem a avaliao de situaes de risco, uma comparao entre os recursos disponveis e os resultados possveis. Muitas situaes associadas ao risco so dominadas pelo acaso, sem qualquer possibilidade de controle por parte do jogador. A fortuna ou a desgraa depende, segundo Callois (1990, p. 11), de uma cartada favorvel ou desastrada. O termo expressa, portanto, a idia de risco, perigo, perda ou ganho, a dependncia do sucesso sorte e habili-dade.

    A palavra jogo transmite tambm uma idia de amplitude, faci-lidade de movimentos, uma certa liberdade, porm no excessiva. O jogo de uma engrenagem, de uma roda expressa um grau de liberdade, programada, calculada, que, em excesso, prejudica ou mesmo enlou-quece o funcionamento do mecanismo. (CALLOIS, 1990, p. 12).

    Todo jogo, segundo o autor, um sistema de regras que define o que e o que no jogo, o permitido e o proibido. Normas, quando violadas, maculam, interferem e at mesmo interrompem o jogo. O nico fator que obriga um participante a se submeter regra a sua vontade de jogar: no h nenhum tipo de sano externa ou oficial que possa impor-lhe tal situao. A ordem estvel, estabelecida por restries e aceita voluntariamente, pode ser rompida e ento regressa pura e simplesmente ao estado inicial, natural e comum. Os sentidos expressos pelo termo sugerem que o jogo foi incorporando aos seus significados a evoluo da sociedade humana, cuja anarquia natural dos primrdios foi substituda pelo universo regrado e controlado da civilizao. (CALLOIS, 1990, p. 12).

    Callois concorda com Huizinga quanto ao importante papel do jogo como meio de expresso e de produo cultural, nos diferentes domnios do conhecimento, da arte, do direito, da poltica, da esttica e da guerra. Os jogos de competio conduziram ao desporto; os jo-gos de imitao e de iluso prefiguram as religies e os espetculos. A influncia do jogo na cultura e desta no jogo evidente e no deixa de ser impressionante. As repercusses do jogo alcanam, igualmente, o aspecto individual e, segundo o autor, no so menores; estudos psicolgicos reconhecem a contribuio significativa do jogo no desenvolvimento e na auto-afirmao da personalidade.

    Jogos de fora, de destreza, de clculo so exerccios e diverso. Tornam o corpo mais vigoroso, mais dcil e mais resistente, a vista mais aguda, o tato mais sutil,

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    o esprito mais metdico e mais engenhoso. Cada jogo refora e estimula qualquer capacidade fsica ou inte-lectual. Atravs do prazer e da obstinao, torna fcil o que antes era difcil e extenuante. (CALLOIS, 1990, p. 15-16).

    O jogo, para Callois (1990, p. 16), no uma aprendizagem para o trabalho, nem prepara para uma profisso definida. O menino que brinca de papis ou imita um avio, uma locomotiva ou um carro, no se prepara de forma alguma para tornar-se um piloto, um condutor ou um mecnico; nem a menina que brinca de casinha se transformar numa cozinheira. No muda nada lanar mais forte um disco de metal, ou atirar incessantemente uma bola com uma raquete, porm, talvez seja vantajoso ter msculos potentes e reflexos rpidos. O aspecto marcante do jogo que ele introduz o indivduo na vida, aumentando-lhe a competncia para superar os obstculos e as dificuldades.

    O sujeito nas situaes ldicas empenha-se em ganhar, utiliza plenamente todos os seus recursos e se submete s normas contrata-das. As situaes de disputa exigem cortesia, confiana e respeito. A derrota, o azar, a fatalidade devem sem aceitos sem clera e sem desespero. Quem no aprende a perder, a se controlar e a dominar os seus impulsos e sentimentos, cai logo no descrdito. O jogador que no permanece atento, que perde a concentrao ou no domina a sua ansiedade pode pr tudo a perder. No jogo, nada est definitivamente perdido e outras oportunidades surgem, permitindo ao jogador a su-perao dos entraves e a sua recuperao. Ganhar e perder so faces de uma mesma moeda: se hoje a vitria reluz, o amanh pode trazer a derrota. princpio do jogo aprender a aceitar a derrota como um contratempo e a vitria sem vaidade. Saber vencer to importante como saber perder. O jogo, segundo Callois (1990, p. 16-17), uma escola de aprendizagem ativa e rdua e um terreno frtil para traba-lhar certos costumes e valores sociais, e praticar atos de civilizao, fazendo recuar a mesquinhez, a cobia e o dio.

    O jogo mobiliza as diversas vantagens que cada pes-soa pode ter recebido do acaso, o seu melhor zelo, a implacvel e inalienvel sorte, a audcia de arriscar e a prudncia de calcular, a capacidade de conjugar estas diferentes espcies de jogo, que tambm o e em termos superiores, de uma mais ampla complexidade,

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    visto ser a arte de associar de forma til s foras indi-ferentemente dispostas. (CALLOIS 1990, p. 16-17).

    O jogo no uma atividade primria, pois quem est com fome no tem nimo para jogar. O jogo supe tempo livre e cio. Na verdade, ningum obrigado a comear ou a permanecer jogando. Por sustentar-se no prazer que desperta, a participao na situao fica merc do tdio, da satisfao ou da modificao do estado de humor. Diferente do trabalho e da cincia, que esto preocupados com a produo e com a capitalizao dos seus resultados, tendo em vista a transformao do mundo, o jogo no visa a produzir nada e, at mesmo, constitui a sua essncia a anulao dos prprios resultados. O jogador escolhe as suas prprias dificuldades, isola-as no contexto ldico e as conseqncias, igualmente ideais, so a satisfao ou a decepo. (CALLOIS, 1990, p. 16-17).

    Conclui o autor que o jogo se fundamenta essencialmente no prazer do indivduo em superar obstculos arbitrrios, quase fictcios, feitos sua medida e por ele aceitos. A realidade, por sua vez, no apresenta essa configurao. So essas caractersticas que retratam, segundo o autor, o principal defeito do jogo e so, por outro lado, essenciais, pois sem elas o jogo ficaria tambm desprovido da sua fecundidade.(CALLOIS, 1990, p. 18).

    Ao apresentar as variadas e ricas acepes sobre o jogo, Callois (1990) amplia a anlise de Huizinga e aponta que no existe o jogo em si, mas so as disposies psicolgicas do indivduo que outorgam sentido e significado a esse tipo de atividade.

    Tomando como base os traos destacados, o autor aponta as seguintes pistas que podem levar definio de uma situao como jogo:

    Livre: uma vez que, se o jogador fosse a ela obrigado, o jogo perderia de imediato a sua natureza de diverso atraente e alegre;

    Delimitada: circunscrita a limites de espao e de tempo, rigorosa e previamente estabelecidos;

    Incerta, pois o seu desenrolar no pode ser determi-nado nem o resultado previamente definido, e ainda necessrio a existncia de um espao de criao ao jogador;

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    Improdutiva: no gera nem bens, nem riqueza, nem elementos novos de nenhuma espcie; e salvo altera-o de propriedade no interior do crculo de jogadores, conduz a uma situao idntica do incio da partida;

    Regulamentada: sujeito a convenes que suspendem as leis normais e que instauram momentaneamente uma legislao nova, a nica que conta;

    Fictcia: acompanhada de uma conscincia especfica de uma realidade outra, ou de franca irrealidade em relao vida normal. (CALLOIS, 1990, p. 29-30).

    Brougre (1998) distingue-se de Huizinga e Callois, primeiro, por no acreditar na possibilidade de se conseguir delimitar o jogo usando uma nica definio e, segundo, por considerar invivel a tentativa de buscar aspectos comuns nas diferentes acepes. O autor considera que o jogo uma elaborao da linguagem usada como recurso para expressar, levantar hipteses e interpretar determinadas situaes e objetos. No uma verdade natural, mas surge como representao condicionada por contextos socioculturais. Carrega, no seu cerne, contradies, cargas objetivas e simblicas nem sempre fceis de se distinguir. Serve tambm como instrumento para moldar, manipular a realidade, atendendo a necessidades e interesses espec-ficos.

    Brougre (1998, p. 21), fundamentado em Wittgenstein15, ressalta que a linguagem no pode revelar nada por si mesma. Ela dependente do seu contexto de utilizao e deve ser analisada com base nas formas de vida que lhe do sentido. Um mesmo termo pode apresentar diversas significaes, as quais podem tratar, de acordo com os seus usos e contextos, de realidades comuns ou mesmo distin-tas e irreconciliveis.

    O autor aponta como caminho para a compreenso do conceito a explorao da linguagem e de seu funcionamento. Tal procedimento permite reunir indcios e pistas que possibilitam a explicitao das representaes associadas palavra estudada. Esse caminho contri-bui, tambm, para a compreenso dos porqus do termo para designar

    15 WITTGENSTEIN, L. Remarques mles (1977), tr. fr. Mauvezin, T.E.R., 1984.

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    situaes, coisas e atividades to diferentes. O que pode, por exemplo, levar pessoas a usarem o mesmo vocbulo para tratar de atividades to distintas: um gato empurrando uma bola, pees brancos e pretos num tabuleiro, uma partida de futebol, uma criana brincando de boneca ou mesmo uma engrenagem com folga.

    O autor defende a impossibilidade de limitar o conceito jogo a uma nica definio. A tentativa de delimitao do termo seria re-futada pela experincia. No h regras especficas, em definitivo, que prescrevem o uso dessa palavra; a cada passo para defini-la, novas imprecises surgem, dificultando o estabelecimento de um sentido nico. A cada dia possvel constatar o surgimento de novas maneiras de utilizao do termo jogo. O conceito em separado, analisado de forma abstrata, sem considerar o contexto no qual est inserido, pode levar a equvocos e imprecises. No h, portanto, uma constituio definitiva, nica, sem equvocos. (BROUGRE, 1998, p. 22).

    Baseando-se em Hagge16, Brougre (1998, p. 16) afirma que as lnguas no so instrumentos de descoberta da verdade. Os indivduos e as sociedades utilizam-nas para criar enunciados que respondem s necessidades de expresso, de representao de uma circunstncia em particular. Basta apenas que certas regras de construo sejam respeitadas.

    O emprego do termo, portanto, destaca Brougre (1998, p. 14), no um ato solitrio; retrata uma categoria veiculada pela linguagem, fornecida pela sociedade e utilizada como instrumento cultural. Situaes diretas e metafricas so designadas como jogo; pode-se falar de um jogo de futebol ou de um jogo de engrenagens. At mesmo a deciso de considerar uma situao como direta ou metafrica simplista e arbitrria, tendo em vista a falta de regras para tal categorizao.

    Como ponto de partida e sem buscar uma definio mais rigorosa, Brougre (1998, p.14-16) reconhece trs situaes como jogo. Em primeiro plano, a participao de seres numa determinada situao interpretada como jogo, qualquer que seja a sua definio. Em segundo, uma estrutura com regras pr-estabelecidas que existe

    16 HAGGE, C. Lhomme de parole - Contribuition linguistique aux sciences humaines (1985), Paris, Gallimard, col. Folio, 1986, p.112.

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    independente dos jogadores, por exemplo, um jogo de futebol, de bocha, de amarelinha. Por ltimo, um conjunto de objetos que so usados para jogar, por exemplo, o tabuleiro e as peas de um jogo de xadrez ou de damas.

    Para o autor, o segundo e o terceiro nvel de expresso ofere-cem menos obstculos de percepo, todavia, o primeiro nvel bem mais complexo de se reconhecer, pois requer uma interpretao de uma dada situao. Levanta todo o problema colocado sobre o uso le-gtimo do termo, a dificuldade de configur-lo como tal. O enunciado no surge de forma abstrata, mas um expediente da lngua criado com finalidades prticas e utilizado como um recurso de expresso, numa circunstncia peculiar. O que vai, portanto, determinar se uma atividade jogo a imagem estabelecida dentro de um contexto so-ciocultural. (BROUGRE, 1998, p. 17).

    A noo de jogo no uma elaborao resultante de uma cin-cia ou de uma lngua em particular, mas se configura no uso cotidiano e social da linguagem. Pressupe interpretaes, imagens e projees sociais sobre a realidade externa. So os adultos que batizam como jogo certas atividades infantis; antes mesmo que a criana domine o termo, tais designaes so internalizadas e incorporadas. A cons-cincia de jogar pressupe uma aprendizagem lingstica resultante de contatos sociais e interlocues, que se iniciam desde os primeiros meses da existncia da criana.

    Wallon17 afirma que

    a lngua um mecanismo de socializao. A criana aprende o que pode ou no dizer em sua lngua. O mun-do que ela descobre ento dividido em categorias e os signos so por ela solidariamente organizados. Nesta medida, a lngua modela a representao. Todos levam menos em considerao o que a lngua no nomeia. O pensamento trabalha sobre e a partir da linguagem. Ela herda uma situao de fato. (apud BROUGRE, 1998, p. 17).

    Conclui Brougre (1998) que o emprego de um vocbulo no

    17 WALLON, H. Levolution psychologique de lenfant, 1968. Paris: Armand Collin, 1981, p. 58.

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    um ato isolado, solitrio, mas resultante da influncia do contexto de um grupo social para o qual o termo faz sentido. Ao invs de pro-por uma definio sobre o jogo, o autor percorre o uso do vocbulo em determinados contextos socioculturais; interpreta as diferentes conotaes reveladas pelas cincias e pelo uso do termo no cotidiano, optando pela elaborao de paradigmas18, em vez de propor teorias sobre o jogo.

    Tomando como referncias os contextos socioculturais que se estendem do sculo IV a. C. at o incio do sculo XVIII, Brougre (1998) configura o conjunto das anlises sobre o jogo, num para-digma, denominado de paradigma antigo (grifo nosso). O jogo, considerando o tratamento dado pelos estudiosos, pelas vrias reas do conhecimento e o seu uso no cotidiano, concebido de forma acessria ou negativa. Ao interpretar as diferentes representaes, o autor constata elementos que retratam o jogo como ftil, frvolo e, muitas vezes, at mesmo como algo nefasto. Nesse contexto, o jogo s tem valor se de alguma forma contribuir para o trabalho ou para o estudo, submetendo-se s atividades srias e tornando-se um meio de relaxamento, recreao ou recuperao das foras empregadas na produo e no utilitrio. Sua utilizao precisa ser limitada e contro-lada, sem excessos.

    A posio de Aristteles, segundo Brougre (1998, p. 28), enquadra-se nessa perspectiva tradicional. Assegura o filsofo19 que

    no portanto no jogo que consiste a felicidade. De fato, seria estranho que o fim do homem fosse o jogo, e que se devesse ter incmodos e dificuldades durante toda a vida a fim de poder se divertir! [...] Divertir-se para ter uma vida sria [...] eis, parece, a regra a seguir. O jogo efetivamente uma espcie de relaxamento, pelo fato de que temos necessidade de descanso. O relaxamento no , pois, um fim, visto que s ocorre graas atividade. E a vida feliz parece ser aquela que

    18 Kuhn (1994, apud MORAES, 1997, p. 31) explica que paradigma no se refere apenas a uma teoria, mas significa uma constelao de crenas, valores e tcnicas partilhadas pelos membros de uma comunidade cientfica, ou seja, uma estrutura formada por diferentes teorias e que possibilita a elaborao de novas teorias ou novas explicaes da realidade.

    19 ARISTTELES. Poltica, VIII, 3, 1337b34, 138 a1, trad. Fr., Paris, Vrin, 1959, p.557.

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    est de acordo com a virtude; ora, uma vida virtuosa no existe sem um srio esforo e no consiste em um mero jogo. (apud BROUGRE, 1998, p. 28).

    O jogo, para Aristteles, no se justifica por si s, uma ativi-dade acessria e, ao mesmo tempo, oposta ao trabalho. A felicidade no est no jogo, mas na vida virtuosa conseguida por meio do esforo diligente. O jogo, segundo o filsofo, um relaxamento, um diverti-mento que descansa e resgata o homem para as atividades srias.

    No sculo XIII, So Toms de Aquino, influenciado pela viso aristotlica, introduziu essa forma de conceber o jogo no pensamento cristo. Procuramos o repouso do esprito atravs dos jogos, seja em palavras, seja em aes. Portanto, permitido ao homem sbio e virtuoso propiciar-se esses relaxamentos algumas vezes20 (apud BROUGRE, 1998, p. 28). O jogo, para o filsofo, tinha validade na medida em que contribusse para a recuperao da energia do indiv-duo, resgatando-o para continuar enfrentando os desafios do mundo do estudo e do trabalho.

    A presena marcante dos jogos de azar e de apostas, no contex-to sociocultural dos sculos XVII e XVIII, um fator que colabora para estabelecer uma viso negativa de jogo. Entendiam os moralistas e pedagogos da poca que uma atividade que provocava desgraas, iluses, impelia o vcio e atitudes inconseqentes no podia, sem res-tries, ser incorporada ao processo educacional. Cabia, ao educador, a responsabilidade de selecionar as atividades adequadas e apropria-das, considerando os seus objetivos.

    A representao de criana que vigorava, nesse perodo his-trico, tambm contribuiu para reforar a viso negativa do jogo. A criana, concebida como um adulto em miniatura, tinha como nica alternativa a superao das mazelas da infncia. O jogo, por estar prximo e incorporar valores do mundo infantil, entre outros, a espontaneidade, a liberdade, a imaginao, a no produtividade, era visto tambm como uma atividade ftil, de menor valor. O que determinava, na poca, a qualidade ou a importncia das coisas era o referencial do mundo adulto. A viso negativa ou acessria do jogo sustentada, portanto, pelo pensamento filosfico exposto, pelo carter

    20 AQUINO, T. de. Somme thologique, II, questo 168, trad. Fr., Paris, Belin, t.5, 1852, p.461.

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    nefasto dos jogos de aposta e pela viso de criana como adulto em miniatura.

    O paradigma tradicional incorpora, na sua evoluo, uma outra tendncia que advoga o jogo como um meio de ensino. Quintilia-no21, representante dessa vertente, segundo Brougre (1998, p. 55), concebe o jogo como um recurso para seduzir a criana, visando a encoraj-la e anim-la para a aquisio de conhecimentos. O jogo no confivel, enquanto tal, pois no tem valor educativo em si mesmo; como um chamariz, porm, cumpre o seu papel, ao atrair a criana e faz-la trabalhar sem perceber.