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O LABIRINTO, O MINOTAURO E O FIO DE ARIADNE - os encarcerados e a cidadania, além do mito Introdução: Uma política libertária que afirme-se como tal, por suas consequências práticas, na produção das condições de emancipação dos sujeitos diante das condições heterônomas que lhes submetem, encontrará na vida prisional um desafio incontrastável, quando não uma prova eliminatória. Sim porque é precisamente nos marcos das chamadas "instituições totais" que as sociedades contemporâneas preservam suas pretensões mais acabadas de controle e dominação. Tais espaços de segregação e obscuridade sintetizam, sempre, o estranhamento mais radical diante do fenômeno humano a que nos permitimos. Sequer a figura dos crimes contra a pessoa, em si mesmo, no que ela oferece de negação estúpida do outro, equipara-se à lógica perversa que emerge naturalmente do cárcere. Por isso, o discurso em favor da vida digna para todos, os compromissos persistentes contra a desigualdade social e as injustiças e os próprios apelos civilizatórios voltados contra a violência, devem se traduzir em políticas públicas capazes de alterar, de fato, a situação daqueles homens e mulheres que, sob a guarda e a tutela do Estado, encontram-se excluídos da própria idéia de direito. Nos limites das responsabilidades governamentais em uma unidade da federação, é possível revolucionar rapidamente a instituição prisional se tivermos coragem para tanto e, sobretudo, uma política definida. É preciso ver os internos e condenados, primeiramente, como sujeitos portadores de direitos, reconhecendo o fenômeno da cidadania ali onde ele tem sido tradicional e solenemente ignorado. Ato contínuo a esta disposição elementar, é preciso saber, em cada detalhe, dos mecanismos concretos pelos quais a instituição prisional se afirma destruindo a autonomia dos indivíduos e negando-lhes a condição de humanidade que caracteriza a condição dos seres livres. Nosso olhar sobre o sistema prisional deve recusar a distância que acompanha a tradição burocrática, distância que separa as normas das pessoas. Nossos princípios - que funcionam, para todos os efeitos, como substrato epistemológico - devem inspirar a elaboração política estrito senso para uma intervenção reformadora urgente. Dizendo assim, quero destacar que os princípios não se equivalem à política. Que, isolados, significam pouco mais que intenções. São os princípios, entretanto, que podem fundamentar uma linha política racional. Pois bem, a plataforma atual dos Direitos Humanos oferece à elaboração política contemporânea a mais avançada das pretensões legitimadoras. Particularmente no que se refere à vida prisional, além das normas mais conhecidas do Direito Internacional como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e a Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, dispomos, ainda, das Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Reclusos. O Brasil é signatário de todos estes documentos fundamentais do Direito Internacional o que, em boa parte das vezes, tem significado tão somente um enorme constrangimento para aqueles que procuram encontrar qualquer coerência entre eles e as políticas públicas efetivamente em vigor. Particularmente no que diz respeito às nossas prisões, sabe-se desde há muito que, em nosso país, experimentamos a realidade de um sistema absolutamente fora da lei. As normas e praxes admitidas por nossas administrações prisionais contrariam abertamente os protocolos internacionais, a Lei de Execução Penal e a própria Constituição Brasileira. O surpreendente, diante desta característica, além das responsabilidades evidentes dos executivos, é a inoperância quando não a cumplicidade da esmagadora maioria dos assim chamados "operadores do direito". Em nosso estado, por exemplo, a maioria dos promotores e juizes convivem tranquilamente com o abuso das "Revistas Íntimas" , odiosa prática que consiste em exigir dos familiares dos reclusos,

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Direitos humanos, Marcos Rolim

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O LABIRINTO, O MINOTAURO E O FIO DE ARIADNE

- os encarcerados e a cidadania, além do mitoIntrodução:

Uma política libertária que afirme-se como tal, por suas consequências práticas, na produção das condições de emancipação dos sujeitos diante das condições heterônomas que lhes submetem, encontrará na vida prisional um desafio incontrastável, quando não uma prova eliminatória. Sim porque é precisamente nos marcos das chamadas "instituições totais" que as sociedades contemporâneas preservam suas pretensões mais acabadas de controle e dominação. Tais espaços de segregação e obscuridade sintetizam, sempre, o estranhamento mais radical diante do fenômeno humano a que nos permitimos. Sequer a figura dos crimes contra a pessoa, em si mesmo, no que ela oferece de negação estúpida do outro, equipara-se à lógica perversa que emerge naturalmente do cárcere. Por isso, o discurso em favor da vida digna para todos, os compromissos persistentes contra a desigualdade social e as injustiças e os próprios apelos civilizatórios voltados contra a violência, devem se traduzir em políticas públicas capazes de alterar, de fato, a situação daqueles homens e mulheres que, sob a guarda e a tutela do Estado, encontram-se excluídos da própria idéia de direito.Nos limites das responsabilidades governamentais em uma unidade da federação, é possível revolucionar rapidamente a instituição prisional se tivermos coragem para tanto e, sobretudo, uma política definida. É preciso ver os internos e condenados, primeiramente, como sujeitos portadores de direitos, reconhecendo o fenômeno da cidadania ali onde ele tem sido tradicional e solenemente ignorado. Ato contínuo a esta disposição elementar, é preciso saber, em cada detalhe, dos mecanismos concretos pelos quais a instituição prisional se afirma destruindo a autonomia dos indivíduos e negando-lhes a condição de humanidade que caracteriza a condição dos seres livres. Nosso olhar sobre o sistema prisional deve recusar a distância que acompanha a tradição burocrática, distância que separa as normas das pessoas. Nossos princípios - que funcionam, para todos os efeitos, como substrato epistemológico - devem inspirar a elaboração política estrito senso para uma intervenção reformadora urgente. Dizendo assim, quero destacar que os princípios não se equivalem à política. Que, isolados, significam pouco mais que intenções. São os princípios, entretanto, que podem fundamentar uma linha política racional. Pois bem, a plataforma atual dos Direitos Humanos oferece à elaboração política contemporânea a mais avançada das pretensões legitimadoras. Particularmente no que se refere à vida prisional, além das normas mais conhecidas do Direito Internacional como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e a Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, dispomos, ainda, das Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Reclusos.

O Brasil é signatário de todos estes documentos fundamentais do Direito Internacional o que, em boa parte das vezes, tem significado tão somente um enorme constrangimento para aqueles que procuram encontrar qualquer coerência entre eles e as políticas públicas efetivamente em vigor. Particularmente no que diz respeito às nossas prisões, sabe-se desde há muito que, em nosso país, experimentamos a realidade de um sistema absolutamente fora da lei. As normas e praxes admitidas por nossas administrações prisionais contrariam abertamente os protocolos internacionais, a Lei de Execução Penal e a própria Constituição Brasileira. O surpreendente, diante desta característica, além das responsabilidades evidentes dos executivos, é a inoperância quando não a cumplicidade da esmagadora maioria dos assim chamados "operadores do direito". Em nosso estado, por exemplo, a maioria dos promotores e juizes convivem tranquilamente com o abuso das "Revistas Íntimas" , odiosa prática que consiste em exigir dos familiares dos reclusos, quando das visitas aos estabelecimentos prisionais, que se desnudem completamente, que realizem flexões, que exibam seus órgãos genitais, etc. Até há pouco tempo, a Revista Íntima era aplicada em nosso estado também sobre as crianças. Atualmente, não se exige mais que meninas de 6, 7 ou 8 anos exibam suas vaginas ou façam flexões, mas segue-se exigindo das crianças que se desnudem para que suas roupas possam ser minuciosamente examinadas. O imperativo da "segurança", assim, e todo o discurso ideológico que o legitima socialmente, sobrepõe-se à Lei e ao próprio bom senso assegurando a humilhação de milhares de seres humanos em nome da Razão do Estado. Que existam outras formas, absolutamente simples, de se preservar a segurança prisional que dispensem medidas ilegais e vexatórias como esta - de resto reconhecidas internacionalmente - pouco importa. Afinal, estamos a tratar com pobres e, para estes, não costuma ser habitual que o Estado brasileiro lhes reconheça a condição de cidadãos. O mesmo poderia ser observado no exame de um conjunto de outros procedimentos bastante usuais. Tome-se, por exemplo, o direito constitucional (inciso XII do artigo V, C.F.) da inviolabilidade do sigilo de correspondência. Hoje, normalmente, ele não vale para os reclusos ou para quem quer que lhes dirija uma carta. As correspondências endereçadas aos internos de nosso sistema prisional e aquelas por eles escritas são violadas e lidas por agentes prisionais especialmente destacados para este fim. A lista de abusos nas prisões, em verdade, é infinita e o resultado, deveríamos sabê-lo, atenta não apenas contra os direitos e garantias individuais daqueles que foram condenados à pena privativa de liberdade, mas aos interesses maiores da própria sociedade posto que nossas prisões há muito transformaram-se em um dos mais importantes fatores no complexo processo da criminogênese. Estas Garantias e Regras Mínimas para a Vida Prisional estabelecem uma política pública para a reforma do sistema prisional nos limites possíveis das ações de um governo estadual . As orientações dispostas no texto subvertem a lógica das instituições totais inovando em inúmeros procedimentos administrativos e estabelecendo uma legalidade prisional de natureza democrática. Como se poderá perceber, grande parte dos

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esforços necessários para o reordenamento proposto não implicarão em investimentos financeiros estando, antes, na dependência da vontade política do governo e seus agentes. 

O labirinto ou "a prisão como paradoxo": 

O rei encarregou Dédalo de construir uma morada para o Minotauro; um lugar onde o monstro ficasse afastado da vista dos seres humanos. O criativo arquiteto concebeu, então, um Labirinto, uma construção cheia de curvas irregulares que desorientavam os olhos e os pés de quem nele penetrasse. Os incontáveis corredores multiplicavam-se uns dentro dos outros como o caminho tortuoso do rio Meandro, da Frígia. Em todos os sentidos, nosso sistema prisional é imenso. Em números absolutos, o Brasil encarcera a quarta maior população no mundo - aproximadamente 180 mil presos (apenas EUA, China e Rússia possuem massas carcerárias maiores, cada um deles com mais de um milhão de presos). Os encarcerados no Brasil estão distribuídos em 512 prisões, mas milhares deles estão em delegacias de polícia. A violação dos Direitos Humanos dos presos é uma constante e vincula-se a um conjunto de causas. Entre elas, uma das mais importantes é, sem dúvida, a idéia de que o abuso sobre as vítimas - presos e, por isso, criminosos - não merece a atenção pública.Os presídios encontram-se superlotados. No RS, estado onde o Sistema Prisional mantém vantagens comparativas diante de outras unidades da Federação ( o fato de não termos condenados em delegacias, por exemplo) temos uma população carcerária em torno dos 12.500 presos. O total de vagas em nossos presídios não ultrapassa 7.500. O déficit de 5 mil vagas é, entretanto, ilusório. Há dois motivos que "desarrumam" qualquer número sobre superlotação prisional no Brasil. Primeiro, o fato de que os critérios para se considerar a existência de uma vaga nunca são os critérios legais. Assim, por exemplo, a LEP estabelece que a dimensão mínima das celas individuais seja de 6 metros quadrados. Ora, com a exceção do Presídio de Alta Segurança de Charqueadas (PASC), os presos gaúchos não cumprem pena em celas individuais. Assim, em uma cela onde devería-se contar uma vaga, os dados oficiais contam 4 ou mais. Por outro lado, há no RS cerca de 30 mil mandados de prisão para serem cumpridos pela polícia. Se apenas 1/3 deles forem válidos e fossem cumpridos, triplicaríamos o déficit estimado oficialmente. Muito antes disto, de qualquer forma, o sistema teria entrado em colapso total. O fato é que os esforços para abertura de novas vagas e/ou concessão de benefícios de progressão de regime são rapidamente ultrapassados pela demanda por novos encarceramentos que vem crescendo ano a ano. Qualquer levantamento estatístico realizado no Brasil demonstrará à exaustão os termos deste processo que conduz o próprio sistema à inviabilidade. O déficit nacional - segundo os dados oficiais - era, em 1997, de 96.010 vagas. ( 1 ) Entre 1995 e 1997, este déficit cresceu em 27%, enquanto a capacidade total dos presídios cresceu apenas 8%. Em 1994, o Ministério da Justiça estimou em 274 mil o número de mandados de prisão não cumpridos no Brasil. Para piorar o quadro, desde a edição da Lei 8.072/90 - Lei dos Crimes Hediondos - tornaram-se frequentes os apelos da opinião pública para o agravamento das penas não faltando, naturalmente, parlamentares dispostos a tipificar novas condutas e "hediondizar" outros crimes. Cada fato traumatizante divulgado pela mídia dá origem a novos projetos de lei que, valorizado a hipótese repressiva, pretendem "endurecer" a lei penal. Os que acreditam neste tipo de "solução" jamais atentaram para o fato elementar de que nenhuma das condutas tipificadas como "hediondas" em 1990 experimentou qualquer redução. Na verdade, os resultados daquela lei se reduziram ao incremento da superpopulação carcerária na medida em que se dificultou sobremaneira a concessão dos benefícios da progressão de regime. Evandro Lins e Silva, Ex-ministro da Justiça e Ex-ministro do STF, bem o percebe, acrescentando:"Nenhum desses pregoeiros da repressão jamais se alistou entre os que estão pensando na prevenção dos delitos, no atendimento aos menores abandonados, na criação de condições sócio-econômicas que impeçam a geração de novos delinquentes. Consciente ou inconscientemente estão contribuindo para incutir na população a falsa noção de que a cadeia, quanto mais tenebrosa, mais eficiente para o combate à criminalidade." (2)Não por outro motivo, há, atualmente, um consenso universal que regula as políticas sugeridas no âmbito das Nações Unidas no sentido de que se adote, fundamentalmente, penas alternativas para o controle da criminalidade em substituição à pena de prisão, destinada esta, ultima ratio, como verdadeira medida de segurança para a segregação de indivíduos capazes de praticar delitos que coloquem em risco a vida e a integridade dos demais. Em obra recente, o professor Francisco de Assis Toledo, Ministro do Superior Tribunal de Justiça, um dos co-autores do Código Penal -parte geral e da Lei de Execução , assinalou:"Em grave equívoco incorrem, frequentemente, a opinião pública, os responsáveis pela administração e o próprio legislador, quando supõem que, com a edição de novas leis penais, mais abrangentes ou mais severas, será possível resolver-se o problema da criminalidade crescente. Esta concepção do direito penal é falsa porque o toma como uma espécie de panacéia que logo se revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras da estatística criminal, apesar do delírio legiferante de nossos dias. Não percebem os que pretendem combater o crime com a só edição de leis que desconsideram o fenômeno criminal como efeito de muitas causas e penetram em um círculo vicioso invencível, no qual a própria lei penal passa, frequentemente, a operar ou como fator criminógeno ou como intolerável meio de opressão." ( 3 ) Na mesma linha, o mestre penalista Heleno Fragoso escreveu em comentário feito à atual parte geral do Código Penal: "Como instituição total, a prisão necessariamente deforma a personalidade ajustando-se à subcultura prisional. O problema da prisão é a própria prisão...Aos efeitos comuns a todas as prisões, somam-se os que são comuns nas nossas: superpopulação, ociosidade, promiscuidade." (4) Inúmeros autores têm sublinhado esta função deformadora da própria instituição que, por óbvio, estende sua influência perversa sobre todos aqueles que convivem com ela, incluindo-se aí o próprio corpo funcional. Desde

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Foucault (5), pelo menos, sabemos que a "esfera do penitenciário" articula-se com relativa independência constituindo uma série de sentenças extra judiciais sobre os internos que agravam a execução da pena até o limite do indescritível. Estamos a tratar, então, de um mundo à parte onde as próprias coordenadas espaço- temporais são outras. Muito frequentemente, os cidadãos comuns imaginam a experiência do cárcere a partir das noções de espaço e tempo que formatam sua própria experiência existencial. Não se dão conta de que a situação dos seres humanos em liberdade ao final deste século implica a vertigem de testemunhar, tendenciamente, a eliminação das distâncias, processo ainda mais sensível diante das possibilidades abertas pela revolução informática. Vale dizer: nossa experiência de vida nos assegura, progressivamente, espaços de ação cada vez maiores enquanto nosso tempo é, por isso mesmo, cada vez mais rarefeito. O ser humano encarcerado, por contraste, é aquele que não dispõe de nenhum espaço e que goza de um tempo infinito. Por conta desta radical diferença, um ano transcorrido dentro de uma prisão significa, concretamente, muito mais do que um ano fora dela. Por esta mesma razão, é preciso que se trate das providências pela Reforma do Sistema Prisional com um sentido de urgência, compreendida esta urgência de uma forma muito mais impositiva do que estaríamos inclinados a aceitar. Se a questão fundamental, então, exige a luta por um "Direito Penal Mínimo", como tratar os presídios concretamente no Brasil se carecemos, precisamente, de qualquer orientação política nacional coerente com aquele objetivo? É preciso perceber, inicialmente, que os presídios - por conta de todas as limitações estruturais que possuem e, fundamentalmente, pela ausência de políticas públicas de conteúdo humanista capazes de orientar administrações prisionais de outro tipo - constituem um espaço de obscuridade onde se "administra" à margem da Lei. Por conta desta característica, encontram-se absolutamente fora de qualquer controle público. São labirintos de obediência fingida onde se processa o sequestro institucional da dignidade. Os presídios constituem uma esfera determinada, orientada por regras, valores e praxes específicas que precisam ser reconhecidas e identificadas. Tais regras , valores e praxes não guardam, rigorosamente, nenhuma relação de pertinência com o conteúdo da sentença judicial condenatória ou com os propalados objetivos da "ressocialização" dos condenados. Antes disto e verdadeiramente, as regras, valores e praxes operantes no sistema constituem os marcos da vida prisional como que em contraste - e muitas vezes em flagrante oposição - às normas, virtudes e condutas valorizadas socialmente entre os cidadãos. Afirma-se, então, os termos do paradoxo prisional: como é possível conceber a reintegração à sociedade, eliminando a sociabilidade do preso? Como é possível prepará-lo para a vida em liberdade, se suprimimos, na prisão, a possibilidade da ação livre? 

O Minotauro ou "o Estado devorador":

O Minotauro era um monstro terrível, uma criatura híbrida; da cabeça até os ombros tinha a forma de touro, enquanto o resto do corpo apresentava a forma humana. Foi escondido no interior do Labirinto e, como alimento, recebia, periodicamente, sete rapazes e sete donzelas como reparação oferecida pelos atenienses ao rei Minos de Creta que tivera seu filho, Andrógeo, assassinado numa emboscada nas montanhas da Ática. Teseu, o jovem ateniense filho do rei Egeu, ofereceu-se como voluntário para se entregar aos emissários de Minos.Na administração das prisões, o Estado incorpora a demanda punitiva produzida socialmente voltando-se, concretamente, para os internos e condenados com uma estrutura alicerçada na violência, amparada pelo medo e reprodutora da desconfiança. Os casos de espancamentos e tortura - alguns dos quais tornados públicos pelo trabalho de pessoas ou entidades comprometidas com os Direitos Humanos - são, apenas, a face mais eloquente de um massacre cotidiano aceito e legitimado, via de regra, pelas próprias autoridades públicas. (6)Quando um tribunal condena um indivíduo à prisão, impõe-lhe uma sanção extremamente penosa. As condições de reclusão não deveriam agravar um sofrimento que já é inerente à própria sanção. A Penal Reform International (PRI) , uma das mais importantes ONGs do mundo, consultora das Nações Unidas, assinala muito apropriadamente que:"Elevado número de estudos, empreendidos no domínio da investigação criminológica, têm demonstrado que as privações e o sofrimento inerentes à vida na prisão concorrem para acentuar a adesão à delinquência, bem como aumentar a rejeição dos valores sociais geralmente reconhecidos. Isto significa que embora os reclusos possam ser privados do seu direito à autodeterminação por efeito da prisão, devem, na medida do possível, poder se beneficiar da oportunidade de exercerem a autodeterminação e a responsabilidade pessoal. O sofrimento causado pela prisão deve, no interesse da justiça e por considerações de ordem prática, ser limitado apenas ao que inevitavelmente decorrer da reclusão. E, mesmo este, deve ser objeto de um acompanhamento e de uma reavaliação permanentes de forma a que possa ser atenuado." (7)Se os presídios podem ser equiparados ao labirinto da mitologia grega, onde o Rei Minos recebia, anualmente, seu tributo de sangue, poderíamos afirmar que o Estado cumpre aqui a função da temível criatura - metade homem, metade touro. Primeiro, assegura que os presos experimentem o cárcere como privação absoluta. Amontoados como restos em corredores úmidos e fedorentos, os presos gaúchos, em regra, experimentam a pena em galerias; onde estão, às vezes, mais de uma centena deles. Entenda-se: o regime prisional efetivo no Brasil - absolutamente ilegal - é o da "prisão coletiva" onde estão todos os tipos de delinquentes separados não pela gravidade dos crimes pelos quais foram condenados, mas, normalmente, pelos laços de pertencimento, fidelidade ou submissão a grupos organizados no mundo do crime, na medida da rivalidade existente entre eles. Depois de trancafiá-los assim, expondo os mais frágeis a todo o tipo de violência física ou sexual, o Estado encarrega-se de submeter-lhes a uma noção de disciplina totalmente heterônoma procurando alcançar

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um controle interno equivalente à conduta de corpos dóceis. Incentiva, então, procedimentos como a delação e oferece tratamento privilegiado aos internos que revelarem-se "úteis" ao objetivo de alcançar a dominação sobre o conjunto da massa carcerária. Frequentemente, para que os internos não questionem as relações de absoluta submissão que lhe são propostas, alguns dentre eles devem ser espancados e/ou isolados disciplinarmente em celas de contenção - normalmente cubículos nojentos e escuros. As "infrações disciplinares" que autorizam o isolamento preventivo podem ser as mais irrelevantes como, por exemplo, a recusa em cruzar os braços! (8) Todos, com a exceção daqueles considerados "de confiança" pela própria administração prisional ou ainda os raros casos de detentos oriundos das camadas privilegiadas, serão sempre definidos como "vagabundos" e humilhados sistematicamente. Seus familiares são submetidos a toda a sorte de constrangimentos. Mães, esposas e crianças, devem aguardar fora dos presídios, durante horas, de pé, em fila , sob sol ou chuva, para que possam participar dos procedimentos de revista, suplício contemporâneo criado pela tecno-burocracia prisional. Muitos destes familiares deslocam-se de municípios longínquos, enfrentando imensas dificuldades financeiras. Quando chegam na triagem são informados que não poderão entrar no estabelecimento prisional porque o sapato que calçam (não raras vezes, o único que dispõem) está "fora das regras de segurança". Com esta firme determinação, está criado o mercado para ... o aluguel de chinelos! Aquelas pessoas encontrarão, então, em frente ao estabelecimento, um "bolicho" qualquer onde se alugam chinelos. Simples, não? Depois, o desnudamento, as flexões, o "arregaço" do ânus e da vagina. Práticas que se mantém inalteradas no RS e que resistem, surpreendentemente, à alternância político-partidária construída pelas últimas eleições. O Estado oferece aos presos, via de regra, uma comida de péssima qualidade. Permite, entretanto, que particulares mantenham dentro dos estabelecimentos "cantinas" para a venda aos presos de uma infinidade de produtos de consumo - de gêneros alimentícios a remédios - a preços em média três vezes superiores aos praticados pelo mercado. O Estado permite, por seu descaso histórico, que doenças infecto-contagiosas e toda a sorte de enfermidades atinjam a massa carcerária negando-lhe, entretanto, a devida assistência médica ou o acesso à medicação. Presos em estado muito grave poderão ser encaminhados à rede hospitalar pública onde, após enfrentarem muitas barreiras para serem atendidos, costumam ser acorrentados nos leitos! Periodicamente, os presídios são tomados por operações especiais destinadas à revista das celas e alojamentos. Nestas oportunidades, o pouco que os internos possuem - roupas, alimentos, aparelhos eletrônicos, documentos ou anotações de uso pessoal - são sumariamente destruídos pela "dedicação" dos revistadores. Uma reclamação ou um protesto diante de situações como esta é considerado "falta disciplinar" e punida com rigor. O mal, percebe-se, não é somente doloroso; muito frequentemente é absurdo e, por isso mesmo, inaceitável.A desumanização dos internos e condenados, todavia, cumpre uma importante "função" dentro das instituições totais. Ela oferece aos agressores a "senha" que lhes permite transitar da estranheza e da incompreensão à violência. Por isso, é comum que os agentes que operam o sistema refiram-se sempre às pessoas sob sua tutela não como pessoas, mas a partir de uma redução qualquer que as enquadre dentro de uma "categoria". Se este procedimento é, até certo ponto, inevitável quando se trata de estudar os seres humanos ele se torna perigoso no momento em que estamos tratando de uma interação entre seres humanos. Tzvetan Todorov, no clássico "Em Face do Extremo" , chama a atenção para a prática em vigor nos campos de concentração do desnudamento das vítimas antes das sessões de espancamento ou nas câmaras de gás dizendo:" A transformação das pessoas em não-pessoas, em seres animados, mas não humanos, nem sempre é fácil. Apesar dos princípios ideológicos, diante de um indivíduo concreto pode-se ter dificuldades em superar uma resistência interior. Uma série de técnicas de despersonalização entra então em ação, cuja finalidade é auxiliar o guarda a esquecer a humanidade do outro. (...) Os seres humanos não ficam nus em grupo, não se deslocam nus; privá-los de suas vestes é aproximá-los dos animais. E os guardas comprovam que toda a identificação com as vítimas se torna impossível logo que não vêem mais do que corpos nus; as vestes são uma marca de humanidade". ( 9 )O fio de Ariadne ou "uma política prisional humanista:"Quando Teseu desembarcou em Creta e se apresentou a Minos, sua beleza e sua juventude encantaram a bela filha do rei, Ariadne. Ela declarou-lhe seu amor e lhe entregou um novelo com um longo fio, cuja ponta ele deveria prender à entrada do labirinto, desenrolando-o à medida que fosse adentrando .

FONTE: http://www.rolim.com.br/2006/index.php?option=com_content&task=view&id=478&Itemid=12