2
Fala Negra 87 O MOVIMENTO HIP HOP: MANIFESTO DE INSATISFAÇÃO SOCIAL DO JOVEM NEGRO Ao ser convidado para a cooperar com a Revista Pal- mares escrevendo um artigo sobre o Movimento Hip Hop, indaguei-me sobre a melhor forma de contribuir com infor- mações relevantes para a pu- blicação, o que é difícil, já que vários estudiosos analisaram este conjunto de manifesta- ções político-culturais. Deci- di então discorrer a respeito do conhecimento que recebi, exercendo o cargo de editor da revista Agito Geral, publi- cação surgida em 1995, que dedicou grande espaço para o Hip Hop, fazendo um para- lelo com a sua atualidade. A experiência na Agito foi um tempo em que obtive ricos contatos com vários persona- gens que protagonizaram o auge da visibilidade do mo- vimento, especialmente da manifestação musical, o Rap. Conheci Nelson Triunfo, o “guru” do Hip Hop. Viajei com a dupla Thaide e DJ Hum, falei com os Racionais, Ra- ppin Hood, os grafiteiros “Os Gêmeos” e breakers do nível dos “Jabaquara Breakers” ou Marcelinho, e participantes da Posse Hausa, entre muitos outros não tão conhecidos, porém não menos importan- tes. Inclusive, me desculpem se estiver enganado, Agito Geral foi à primeira revista a trazer a palavra de Elaine Nu- nes de Andrade - uma mulher negra, vale ressaltar, na épo- ca mestre em educação na Universidade de São Paulo- USP, cuja tese de mestrado que a titulou foi justamente o resgate histórico do Hip Hop. À Elaine, com toda a justiça, credito o que sei sobre este fenômeno cultural e político, a base deste texto. Foi através destes conta- tos que conheci a história do movimento e consegui enten- der o porque desta identifica- ção com os jovens negros das periferias urbanas. Sem esta bagagem, fica muito difícil compreender esta expressão que não é somente mais uma cópia daquilo que os afro- americanos produzem. Tem muito do trajeto dos africanos escravizados em terras ame- ricanas, e mais ainda com as necessidades de expressão da juventude negra. O movimento Hip Hop, foi gradativamente se construin- do, em um processo iniciado no final dos anos 60 e princí- pio da década de 70. Quando os elementos de expressão artística foram incorporan- do-se uns aos outros, eles já tinham caráter contesta- dor. Por exemplo, o Break (a dança), enriqueceu-se com a participação dos jovens de origem hispânica residentes nos EUA, contrários a Guer- ra do Vietnã. Em suas perfor- mances imitavam os helicóp- teros da guerra e os soldados feridos ou mutilados que vol- tavam da guerra. Para estes jovens, o Break era uma for- ma de protesto, que mesmo não modificando as decisões dos políticos, os ajudava a expressar toda a sua contra- riedade. O Grafite não fugiu a re- gra. Grafitar em letras enor- mes, fugindo da estética da arte tradicional, era para aqueles jovens dos guetos nova-iorquinos, vivendo em quase total exclusão social, oportunidade de romper pa- drões e ser diferentes. De- senhar em lugares proibi- dos; trens do metrô, estabe- lecimentos comerciais, edifí- cios públicos, etc, garantiam toda a adrenalina, aventura e agitação que buscavam. Marco Dipreto Foto:Roberto Esteves

O MOVIMENTO HIP HOP: MANIFESTO DE INSATISFAÇÃO SOCIAL … · auge da visibilidade do mo-vimento, especialmente da manifestação musical, o Rap. ... trazer a palavra de Elaine Nu-nes

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O MOVIMENTO HIP HOP: MANIFESTO DE INSATISFAÇÃO SOCIAL … · auge da visibilidade do mo-vimento, especialmente da manifestação musical, o Rap. ... trazer a palavra de Elaine Nu-nes

Fala Negra

87

O MOVIMENTO HIP HOP:MANIFESTO DE INSATISFAÇÃO SOCIAL DO JOVEM NEGRO

Ao ser convidado para a cooperar com a Revista Pal-mares escrevendo um artigo sobre o Movimento Hip Hop, indaguei-me sobre a melhor forma de contribuir com infor-mações relevantes para a pu-blicação, o que é difícil, já que vários estudiosos analisaram este conjunto de manifesta-ções político-culturais. Deci-di então discorrer a respeito do conhecimento que recebi, exercendo o cargo de editor da revista Agito Geral, publi-cação surgida em 1995, que dedicou grande espaço para o Hip Hop, fazendo um para-lelo com a sua atualidade.

A experiência na Agito foi um tempo em que obtive ricos contatos com vários persona-gens que protagonizaram o auge da visibilidade do mo-vimento, especialmente da manifestação musical, o Rap. Conheci Nelson Triunfo, o “guru” do Hip Hop. Viajei com a dupla Thaide e DJ Hum, falei com os Racionais, Ra-ppin Hood, os grafiteiros “Os Gêmeos” e breakers do nível dos “Jabaquara Breakers” ou Marcelinho, e participantes da Posse Hausa, entre muitos outros não tão conhecidos,

porém não menos importan-tes. Inclusive, me desculpem se estiver enganado, Agito Geral foi à primeira revista a trazer a palavra de Elaine Nu-nes de Andrade - uma mulher negra, vale ressaltar, na épo-ca mestre em educação na Universidade de São Paulo-USP, cuja tese de mestrado que a titulou foi justamente o resgate histórico do Hip Hop. À Elaine, com toda a justiça, credito o que sei sobre este fenômeno cultural e político, a base deste texto.

Foi através destes conta-tos que conheci a história do movimento e consegui enten-der o porque desta identifica-ção com os jovens negros das periferias urbanas. Sem esta bagagem, fica muito difícil compreender esta expressão que não é somente mais uma cópia daquilo que os afro-americanos produzem. Tem muito do trajeto dos africanos escravizados em terras ame-ricanas, e mais ainda com as necessidades de expressão da juventude negra.

O movimento Hip Hop, foi gradativamente se construin-do, em um processo iniciado no final dos anos 60 e princí-

pio da década de 70. Quando os elementos de expressão artística foram incorporan-do-se uns aos outros, eles já tinham caráter contesta-dor. Por exemplo, o Break (a dança), enriqueceu-se com a participação dos jovens de origem hispânica residentes nos EUA, contrários a Guer-ra do Vietnã. Em suas perfor-mances imitavam os helicóp-teros da guerra e os soldados feridos ou mutilados que vol-tavam da guerra. Para estes jovens, o Break era uma for-ma de protesto, que mesmo não modificando as decisões dos políticos, os ajudava a expressar toda a sua contra-riedade.

O Grafite não fugiu a re-gra. Grafitar em letras enor-mes, fugindo da estética da arte tradicional, era para aqueles jovens dos guetos nova-iorquinos, vivendo em quase total exclusão social, oportunidade de romper pa-drões e ser diferentes. De-senhar em lugares proibi-dos; trens do metrô, estabe-lecimentos comerciais, edifí-cios públicos, etc, garantiam toda a adrenalina, aventura e agitação que buscavam.

Marco Dipreto

Foto:Roberto Esteves

Page 2: O MOVIMENTO HIP HOP: MANIFESTO DE INSATISFAÇÃO SOCIAL … · auge da visibilidade do mo-vimento, especialmente da manifestação musical, o Rap. ... trazer a palavra de Elaine Nu-nes

Fala Negra

88

Quanto ao Rap, o mais importante dos três elemen-tos artísticos do Hip Hop, re-trata através de um discurso ora ofensivo, ora informativo, todo o seu conteúdo contes-tatório. Ele tem uma história que se difere dos outros dois elementos, o Break e o Grafi-te. Foi introduzido nos guetos de Nova Iorque por um DJ (abreviação de disc jockey) jamaicano chamado Kool Herc, que impulsionou a cria-tividade dos jovens dos gue-tos, especialmente os jovens negros, com os quais ele ti-nha mais contato justamente por ser negro.

O Rap é uma música de origem negra, faz parte do re-pertório da “Black Music”. Sua forma de expressão, deriva do hábito de alguns povos da África Ocidental de cantar falando. Alguns deles foram seqüestrados para tornar-se escravos no Caribe, daí a ori-gem jamaicana. Nos Estados Unidos, na época em que lá vigorava a escravidão, os es-cravos das plantações de al-godão, muitos deles “griots”, cantavam falando. No Brasil por volta dos séculos 18/19, negros que trabalhavam nas ruas de Salvador, Bahia, fa-ziam um canto falado recla-mando da atitude opressiva da política escravista. Havia o puxador (uma espécie de MC) e os outros repetiam o canto em refrão. Daí decorre o estilo repentista da cultura nordestina. Nos EUA a rima se sofisticou, mas sua carac-terística básica foi, e ainda é, uma manifestação de origem do povo negro.

No Brasil o Hip Hop chegou no início da década de 80, mais especificamente na cidade de São Paulo. Por intermédio dos bailes voltados para a juventude negra, rea-

lizados pelas equipes como Chic Show, por exemplo, dos discos importados vendidos na famosa Galeria 24 de Maio (na verdade Grande Galeria) e do impulso dado por figuras como Nelson Triunfo, Thaide e DJ Hum e os Racionais, en-tre outros.

O período de ascensão do Hip Hop, 15 anos depois, trás ao movimento uma nova dinâmica. Ele encontra-se es-truturado socialmente em gru-pos específicos de estudos e formação política de adeptos da cultura Hip Hop. Desde de 1989 existia o Movimento Hip Hop Organizado - MH2O, que incentivou a criação das “posses”, das quais posso destacar a Posse Hausa, do município de São Bernardo do Campo, que continua ativa e atuante.

Ainda na metade da dé-cada de 90, o Hip Hop ob-teve um patamar de lingua-gem para chegar aos jovens de periferia, notadamente o jovem negro, e os rappers passaram a ser respeitados como sujeitos políticos em al-guns focos educativos, muito pela contribuição do músico Toninho Crespo, que estru-turou no município de São Paulo oficinas culturais e de educação, que depois tive-ram continuidade com a com-petência de Sueli Chan (na época importante membro do Movimento Negro Unificado – MNU), na cidade de Diade-ma, que como São Bernardo, faz parte da Grande São Pau-lo, região abrangendo várias outras cidades próximas a capital paulista.

Após este relato, para fina-lizar, penso ser oportuno fazer uma breve comparação dos anos 90, auge da visibilidade do MHH, com os anos 2000.

Percebo no MHH um enor-

me crescimento e uma mu-dança na abordagem de al-guns temas. Quando falo de crescimento cito o surgimento e a solidificação de diversos grupos, ou posses, buscando fazer do movimento e da cul-tura Hip Hop um exemplo de ação transformadora e pro-motora de igualdade. Todos eles apresentam como eixo norteador à juventude negra. Isso pode ser a partida para inserção, ou ao menos o inte-resse, nos partidos políticos e da luta pelo controle da pro-dução da cultura que é pro-tagonizada pelo jovem pobre, em especial o jovem negro.

Não podemos esquecer que desde de seu início o Mo-vimento Hip Hop é um movi-mento considerado uma con-tra cultura do mundo, um aler-ta, de reinvidicação, já que é feito por pessoas em situação de exploração. O que explica que mesmo com o passar do tempo, o tema violência se faz presente, porque o tema continua atual. Jovens ne-gras e jovens negros continu-am sofrendo vários tipos de violências.

Política, políticos e vio-lência ganham um destaque especial na medida que o MHH usa das questões como forma de obter políticas públi-cas que garantam o direito de viver e não o direito de morrer de forma diferenciada. Exem-plo disso foi à modificação da discussão da temática racial nas escolas, muito por influ-ência do Rap na construção da identidade das crianças e jovens que cresceram ouvin-do Rap, dançando Break e fazendo Grafite, e na contes-tação contra as imagens pe-jorativas produzidas por va-lores de uma sociedade que tentava, e ainda tenta, detur-par a cultura negra brasileira.