O Mundo Dos Bens 20 Anos Depois

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 13, n. 28, p. 17-32, jul./dez. 2007

    O mundo dos bens, vinte anos depois

    O MUNDO DOS BENS, VINTE ANOS DEPOIS*

    Mary DouglasUniversity College London Reino Unido

    * Conferncia em Birbeck em 13 de novembro de 1999, para o Warwick Luxury Project, convocadapor Maxine Berg.

    Mary Douglas e Ruben George Oliven em Londres, em setembro de 2005,por ocasio da entrega do presente artigo

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    Mary Douglas

    Resumo: A partir do anncio da reedio de seu livro O Mundo dos Bens, publicadooriginalmente em 1979, a autora faz uma reflexo do contexto intelectual em que suaobra foi fundamentada. Ela discute as bases da importncia do estudo do consumopara a economia e para a antropologia, salientando que isso pode contribuir paraalcanar o projeto de totalidade dos fenmenos sociais, na perspectiva de MarcelMauss autor que teve grande influncia para O Mundo dos Bens. O artigo aindamostra trabalhos e debates clssicos sobre o tema das trocas que contriburam paraas reflexes desenvolvidas no livro. retomado o argumento de que a pobreza deveser entendida como um processo de excluso de informao e, nesse sentido, a autoraexpe porque o estudo sobre o consumo de grande valia para a antropologia.

    Palavras-chave: antropologia, consumo, ddiva, economia.

    Abstract: Taking into account the announcement of the re-edition of her book TheWorld of Goods, originally published in 1979, the author develops a reflection on theintellectual context in which her work was created. She discusses the bases of theimportance of Consumption Studies for Economics and Anthropology, suggestingthat they help to attain the project of totality in the study of social phenomena,following the notion of Marcel Mauss an author who exerted a great influence inthe The World of Goods. The article also analyses classical works and discussionsabout exchanges that contributed to the reflections developed in the book. She resumesher central point, that is, that poverty must be understood as a process concerning theexclusion of information. In this sense, she presents the reasons the study onconsumption is of great value for Anthropology.

    Keywords: Anthropology, consumption, Economics, gift.

    Foi uma verdadeira surpresa quando, recentemente, meus editores de Lon-dres decidiram republicar O Mundo dos Bens (Douglas; Isherwood, 1979). Atonde eu sabia, o livro estava completamente morto, submerso sem deixar vestgios.

    Embora eu tenha estudado para o livro e o escrito (com a ajuda de BaronIsherwood) com um esprito de animao, eu estava enormemente nervosaquando ele foi lanado e, logo em seguida, cheia de desgosto como eu podiater perpetrado algo to obsoleto? Eu estava em Nova Iorque naquela poca, eRichard Sennett, o diretor do Instituto de Humanidades, fez o que podia paraque eu tivesse um pouco de discusso. Ele organizou dois seminrios para mim,um com o instituto, e o outro com economistas da New York University queestavam inteiramente confusos e s queriam saber como o livro os ajudaria amedir o comportamento econmico. Ele tambm conseguiu com que eu falasse

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    em particular sobre o livro com um membro do instituto, o falecido Vassily Leontiev,ganhador do Prmio Nobel. Esse foi todo o debate que tive, e os resenhadores,que eu lembro, ficaram (como eu j previa) confusos, entediados ou hostis.

    Antropologia econmica

    O tema central do livro que pobreza no pode ser definida pela ausnciade riqueza. O livro tentava fazer uma aliana entre a antropologia e a cinciaeconmica, sugerindo uma definio de rede social de pobreza. O ponto devista do antroplogo de que as coisas cuja posse significa riqueza no sonecessrias por elas mesmas, mas pelas relaes sociais que elas sustentam. Apobreza culturalmente definida, no por um inventrio de objetos, mas por umpadro de excluses, geralmente bastante sistemticas.

    No final nos anos 1970, quando o livro foi planejado, eu j estava fazendoantropologia h 30 anos e havia contribudo com a antropologia econmicaatravs de meu prprio trabalho de campo no Congo Belga. No final dos anos1940, quando eu era estudante, antropologia econmica era um interessefocal. Ele forneceu um modelo unitrio da sociedade reproduzindo a si mesmanum grande ciclo de doaes recprocas. De certa forma, o ensaio de Maussparecia ir lado a lado com A Riqueza das Naes, de Adam Smith, e de OCapital, de Karl Marx, j que tambm apresenta uma viso total da economiae da sociedade interagindo. Mas o Ensaio Sobre a Ddiva (publicado em1923) se destaca: por um lado, ele sobre o que eram ento chamadas econo-mias primitivas, ou seja, economias sem dinheiro, e por outro, ele contrastaexplicitamente as economias sem dinheiro, onde a ddiva o principal mtodode distribuio, com economias monetarizadas, que so o territrio da cinciaeconmica. Mauss aceita o hiato entre a antropologia e a economia, no tentaconstruir uma ponte entre ambas, e, ao contrrio, tende a idealizar o caso primi-tivo. Conseqentemente seu grande livro no parecia ter qualquer relevnciapara a economia moderna.

    Nas dcadas que seguiram, muito mudou na cincia econmica e h maislugar para contabilizar o ensaio de Mauss entre as outras teorias econmicasque relacionam as energias que produzem os bens com as energias que deman-dam os bens. No um exagero v-lo como uma contribuio s velhas discus-ses sobre a lei de Say. Say encarava a vida econmica como um processocircular e respondia aos temores de que a produo excessiva nunca seriaabsorvida por compradores, argumentando que o processo de produo em si

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    gerava uma entrada de dinheiro extra que seria gasta no produto, de forma queo suprimento produz sua prpria demanda. Mauss, por sua vez, est demons-trando o processo menos contra-intuitivo pelo qual a demanda produz seu pr-prio suprimento. Em outras palavras, os processos que economistas separampara propsitos de anlise, Mauss trata como um sistema unitrio interativo.So todos, sistemas sociais inteiros cujo funcionamento tentamos descrever.Ns estamos preocupados com inteiros, com sistemas na sua totalidade. []pesquisa dos fenmenos sociais totais. (Mauss, 1969, p. 77-78).1

    Evans-Pritchard (1969, p. vii), em sua introduo primeira traduo parao ingls, afirmou:

    Total a palavra-chave do Ensaio. As trocas de sociedades arcaicas que eleexamina so movimentos ou atividades sociais totais. Elas so ao mesmo tempofenmenos econmicos, jurdicos, morais, estticos, religiosos, mitolgicos escio-morfolgicos.

    Mauss mostra como as grandes correntes de ddiva ligam todos na comu-nidade num ciclo de trocas de longo prazo. As ddivas mantm um padroparticular de relaes sociais e o padro de relaes gera os padres de traba-lho que produzem os materiais para as ddivas. Em economias no-monetriasa quantificao era difcil, outro motivo para a idia ser estranha prtica dacincia econmica.

    Sob qualquer ngulo, tanto se o foco na demanda, criando o suprimento,quanto no suprimento, criando sua prpria demanda, o rabo da cobra est fir-memente dentro da boca da cobra, como Piero Sraffa (1972) afirma. Talvezesta seja uma coisa curiosa a se querer fazer, mas se o circuito da economia foiartificialmente quebrado a favor de se calcular o suprimento e a demanda, bom junt-las novamente em algum momento. Naqueles dias, quem fazia tra-balho de campo em antropologia sempre buscava relacionar o padro total dedemanda aos padres de produo dentro de um esquema sociolgico. Eu con-

    1 Publicado primeiramente em 1923-1924, em LAnne Sociologique; republicado em 1950, emSociologie et Anthropologie, Presses Universitaires de France. Edies em ingls: The Gift, Formsand Functions of Exchange in Archaic Societies, traduzida por Ian Cunnison, Routledge & KeganPaul, 1969; The Gift, The Form and Reason For Exchange in Archaic Societies, traduzida por W.D. Halls, Routledge, 1990.

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    sidero isso ainda o ideal para a antropologia econmica. Mas ns tnhamos, emprimeiro lugar, que tratar dos problemas conforme eles surgiam, e no final osantroplogos foram vencidos naquele objetivo pelos economistas.

    Os primeiros passos foram Economics of the New Zealand Maori (1959),de Raymond Firth, seguindo por A Primitive Polynesian Economy (1939), quedemonstraram que a anlise econmica formal poderia ser aplicada a umaeconomia no-monetarizada.

    Isso foi importante e necessrio. Audrey Richards, em Land Labour andDiet in Northern Rhodesia (1939), analisou os efeitos, numa sociedade devilas, da migrao do trabalho para o cinturo do cobre, os efeitos nos padresde casamento e um foco nas dificuldades das mulheres vivendo em vilassemidesertas. Evans-Pritchard, em Os Nuer (1940), foi quem chegou maisperto de realizar o programa de Mauss ao mostrar como trocas de gado e trocasde mulheres formavam um s sistema recproco. Moses Finley (1973) fez umaanlise da troca de ddivas dos laos entre chefes e sditos na Grcia antiga.

    Esses foram nossos professores. Essa foi a base da minha prpria pesqui-sa de campo no (ento) Congo Belga. Eu estava especialmente interessada emtransaes intergeracionais (Douglas, 1963). As novas fileiras de pesquisado-res de campo africanos reportaram os tristes efeitos da monetarizao e acondio dos migrantes trabalhadores.2 Atravs da influncia de Franz Steiner,os escritos de Bohannon (1955) sobre a economia Tiv foram bem sucedidos emmostrar a circulao de mulheres, escravos e preciosidades num esquema bemcoerente com produo domstica, casamento e hierarquia militar. Quase namesma poca um modelo de comunicao da circulao de mulheres e bensfoi a espinha dorsal da teoria elementar do parentesco, de Lvi-Strauss (1949).Entretanto, Lvi-Strauss negligenciou o lado econmico da equao e no foio nico antroplogo a fazer tal coisa e por vrias outras razes a visototalizante de Mauss foi logo perdida.

    Uma razo para o declnio na antropologia econmica era seu pensamentoevolucionrio implcito. A ddiva veio primeiro, cedo, e era elementar, primitiva; odinheiro veio depois, com a civilizao, mas do ponto de vista anterior o dinheiro

    2 O Rhodes Livingstone Institute de Lusaka ficava na regio influenciada pelas minas de cobre doNorte da Rodsia, o que inevitavelmente chamou a ateno de antroplogos liderados com MaxGluckman para esse tipo de anlise econmica.

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    significava runa, ele dissolveu os laos primordiais de parentes e vizinhos e dete-riorou a base moral da comunidade. A tese forneceu uma plataforma fcil parauma antropologia marxista da explorao colonial, que era necessria e prestesa chegar, mas inevitavelmente quebrou o paradigma estabelecido por Mauss ecortou a tentativa de tornar aplicveis as categorias econmicas. O debate quese seguiu entre os antroplogos dividiu-se a servio de diferentes pautas.

    A primeira grande mudana foi uma forte controvrsia em relao a se aanlise econmica era, de alguma forma, possvel de ser usada em economiasno-monetrias. Raymond Firth liderava os chamados formalistas, que acre-ditavam que o caminho para o maior entendimento era atravs da aplicao edesenvolvimento dos conceitos formais da cincia econmica. Dalton (ver, porexemplo, Economic Anthropology and Development, 1971) liderava os cha-mados substantivistas, que acreditavam que a maior parte da substncia davida econmica estava caindo pelas rachaduras da teoria econmica formal.Eu mesma concordava com tal crtica, mas estava otimista em relao aenfrent-la, estendendo o conceito de cincia econmica. Os formalistas luta-vam na retaguarda em favor da disciplina intelectual e os substantivistas favo-reciam a descrio sem disciplina. Enquanto isso, no centro de todo calor efria, a antropologia econmica ainda permanecia no-sistematizada e, emboraa disputa fosse violenta, ela foi se tornando bastante escolstica e remota.Assim, muitos trabalhos excelentes sobre comportamento econmico estavamsendo publicados por antroplogos, suplicando por uma sntese. Mas os jovenseconomistas de hoje no esto cientes das coisas boas que foram feitas e estoocupados reinventando a roda.

    E assim aconteceu que, por uma diviso implcita de trabalho, os econo-mistas estudavam economias de mercado e os antroplogos estudavam econo-mias de ddiva. Embora ambos aceitassem que a linha poderia no ser clara-mente traada, eles no esperavam mais ter que falar uns com os outros. Esseera o pano de fundo frustrante de O Mundo dos Bens. Mas a principal razopara a estagnao da antropologia econmica foi que construir uma ponte en-tre a cincia econmica e a cultura era uma tarefa muito mais difcil do queparecia num primeiro momento.

    A idia de pessoa

    Eu tinha a iluso de que se ns estudssemos macroeconomia estaramosnos aproximando do modelo totalizante de sociedade de Mauss. Assim, tirei um

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    ano para estudar a teoria de consumo, que parecia ser relevante para a doaode ddivas e que naquele momento era uma preocupao terica importante.No incio, eu desconfiava que a falta de dilogo era nosso erro enquanto antro-plogos: talvez ns tivssemos uma idia muito reduzida do que a cincia eco-nmica podia fazer. A teoria da ddiva no poderia ser aplicada economiamoderna sem, antes, mudar uma noo fundamental. A idia corrente era de quea demanda do consumidor uma demanda por bens a serem consumidos pelocomprador. Simbolizado pela cestinha de compras, o consumidor deveria estarescolhendo coisas, objetos, para seu uso privado ou familiar. Na verdade, o opos-to verdade. O consumidor inerentemente um animal social, o consumidor noquer objetos para ele mesmo, mas para dividir, dar, e no s dentro da famlia.

    O maquinrio da teorizao e medio econmica foi criado para a idiade que o consumo uma atividade de indivduos. A teoria est presa nessanoo. Nos anos seguintes, continuei procurando maneiras de afirmar isso(Douglas, 1996). Eu ainda continuo tentando atacar a idia enganosa de pes-soa humana (Douglas; Ney, 1998). Recentemente, para um estudo sobre climaglobal, tive que pesquisar a atual filosofia do bem-estar, as teorias de necessi-dades bsicas, necessidades humanas, qualidade de vida, e os resultados depesquisas baseadas nelas (Rayner; Malone, 1998). Todas essas teorias assu-mem uma teoria de necessidades, comeando pelas fsicas; primeiro a necessi-dade de viver, de ter comida e gua, abrigo, etc., e ento a necessidade decompanhia e satisfao social e espiritual. O pensamento to fracamenteteorizado na sua prpria rea que tem que iniciar com biologia. absurdo. Ateoria deveria comear com seres inteligentes que tem o suficiente para viver emesmo assim conseguem matar de fome alguns de seus iguais. Pobreza umaquesto de como as pessoas tratam umas s outras, e isso precisa de umenquadramento sociolgico. Parece haver um tipo de incapacidade profissio-nal. Muito dito sobre comunicao, mas sempre sobre indivduos comunican-do: uma inabilidade de contemplar a cultura como um processo dinmico feitopor indivduos interagindo. Uma psicologia que concebe de forma totalmenteerrada a natureza da pessoa parte do fardo com o qual a teoria do consumotem tido que lidar.

    Minha idia central de que a cincia econmica deveria levar em consi-derao a funo comunicativa dos bens como bsica (Douglas, 1987). Issonecessitaria de algumas afirmaes fortes. Ou se esquece a biologia, ou ela usada de forma inteligente. Se uma pessoa nasce como um ser comunicativo, enasce dependente dos outros, ns certamente devemos assumir que algum po-

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    der comunicativo inerente parte do equipamento nativo. Eu aplaudo o depar-tamento psiquitrico da Universidade de Edinburgo, Colwyn Trevarthen, e co-legas escandinavos, que adotam noes biolgicas evolucionrias: a criananasce dependente de outros humanos; ela tem a vontade de controlar o seuambiente, e assim fortemente interessada em controlar os humanos suavolta. Ela dotada da experincia de seu prprio corpo e, assim, da sua expe-rincia de lateralidade ela entende transaes de dois lados, como bater pal-mas, e de sua posio de p numa dimenso vertical ela entende balano esimetria. Assim, h um interesse primordial na reciprocidade. Nessa aborda-gem terica, as necessidades sociais vm ao mesmo tempo ou antes do confor-to fsico, porque elas so as maneiras de conseguir comida, etc. impressio-nante ainda no dia e poca de hoje ler psicologia do desenvolvimento que ensi-na que as habilidades sociais vm posteriormente no desenvolvimento infantil.Ao invs de uma tabela de necessidades bsicas que comea com as fsicas etermina com as sociais e simblicas, o oposto funcionaria melhor.

    Custo do tempo

    Para comear, eu costumava perguntar a economistas amigos o que elespensavam que seria til para um antroplogo estudar no campo de estudosdeles. O nico conselho que fez sentido era de que ns poderamos fazer algopara explicar custo do tempo.3 Esse conselho levou a dois tipos de interesse.Por um lado, os custos do tempo em momentos diferentes no dia e semana, eano constituem uma base rica para comparaes econmicas. Por outrolado, muito da teoria do consumo acabou sendo sobre no consumir, sobrerazes para guardar para o futuro. O interesse no tempo me levou teoria deFriedman (1957) de consumo permanente. Ele possua evidncias para mostrarque famlias rurais poupavam mais do que trabalhadores assalariados. Isso,com o apoio de outros casos, sugeriu que entradas regulares de dinheiro, garan-tidas durante um perodo de vida, afastavam incentivos para poupar. Unidadesdomsticas com ganhos irregulares tentam manter o fluxo de consumo estvel.Implicitamente elas precisam poupar para dias chuvosos que podem chegar, no

    3 No original, time-cost-discounting. (N. de T.).

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    porque elas queriam manter seus prprios padres de consumo, mas por causadas presses da vida social que demandam delas vrios tipos de compromissos.

    Essa teorizao sobre consumo generosamente abre a porta para a antro-pologia porque sugere que os padres de consumo so estabelecidos por pres-ses e expectativas de outras pessoas, e que, assim, tem pouco a ver comdesejos e necessidades individuais. Deveria existir escopo o suficiente paraargumentar tal coisa com evidncia antropolgica, mas nunca ouvi falar depesquisa comparativa de antroplogos sobre poupana ou sobre a hiptese deconsumo permanente.

    O antroplogo deve ficar feliz pelo trabalho de Elinor Ostrom (1990) so-bre os comuns, e pelo sucesso de Robert Putnam (2001) em aumentar ointeresse no capital social. Ele mostrou que comparaes de bem-estar indi-vidual nunca fornecero mais do que uma frao da histria se no lembraremdo apoio que o indivduo ganha da comunidade. Os economistas no aceitarampositivamente num primeiro momento o conceito de capital social, talvez por-que o que se seguiu imediatamente foi uma defesa no-crtica de valores co-munitrios. Paradoxalmente, e entre parnteses, os comunitrios que eu co-nheo odiariam ser membros de qualquer comunidade real. Uma comunidadefaz demandas duras em relao a seus membros, monitora seu comportamen-to, restringe suas escolhas (tal como a escolha de comida, a escolha de casa-mento) de maneiras que seriam intolerveis para intelectuais modernos e ps-modernos. Escapar dessas foras (que so alguns dos custos de gerar confian-a e bens pblicos) produziu a nova sociedade na qual estamos tentando vivere desejar voltar no tempo no vai ajudar. A noo de capital social bagunacom as distines claras entre demanda e suprimento, capital e entrada, entre ocurto e o longo prazo. Mas desde que ningum menos que o economista ParthaDasgupta se juntou ao trabalho de edio de um livro sobre o assunto para oBanco Mundial (Dasgupta; Serageldin, 1999), sua entrada sria na cincia eco-nmica foi garantida.

    Dasgupta j era uma boa notcia para os antroplogos por causa da mu-dana profundamente social que ele deu ao ndice de Desenvolvimento Huma-no das Naes Unidas. Depois de desenvolver meios de comparar a infra-estrutura de medies de bem-estar, ele desenvolveu um novo modelo de eco-nomia (Dasgupta, 1993). O bem-estar individual e as instituies sociais que oapiam devem ser contados como os resultados do sistema (no como bens).Isso muda o foco da pesquisa do bem-estar, do indivduo aos mecanismos soci-ais de alocao. Ele rejeita a idia de que o consumo um processo que come-

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    a com as compras e termina com o jantar na unidade domstica. Para ele, oconsumo, na verdade, produz o tipo de sociedade na qual o consumidor vive.Consumo o processo de transformar mercadorias em bem-estar. Nem osbens, nem os objetos, mas a sociedade o produto. As escolhas de consumoso em relao a quem vai comer em nossa casa, quem ser excludo, comquem nossas crianas iro brincar, ir escola, casar. So as decises maisimportantes que podemos fazer. Ento aqui estamos ns, os antroplogos, sen-do ensinados pelos economistas a ver como as mercadorias so produzidaspelas mercadorias. A cobra est colocando seu prprio rabo na boca, o crculoest fechado, e o arco totalizante comea a rodar. O projeto de Marcel Maussde circulao da ddiva est a caminho de ser realizado, no na antropologia,mas na prpria cincia econmica.

    Existem outros sinais dos tempos encorajadores. Um dos ataques real-mente interessantes idia de individualidade racional se origina do trabalhodos anos 1960 e 1970 de Tom Schelling sobre conveno (Schelling, 1960,1978). Foi uma contribuio ento nova teoria de tomada de deciso e um co-produto das fenomenologias francesa e alem e do trabalho de etnometodlogosamericanos. H um paralelo curioso aqui: os economistas haviam se sentidocapazes de ignorar a infra-estrutura de servios pblicos que apoiavam o con-sumo individual, e os socilogos e lingistas haviam ignorado o papel infra-estrutural de noes tcitas que faziam a comunicao possvel. O falante indi-vidual, assim como o consumidor individual, est agora sendo recolocado numcontexto social. Ns agora admitimos que o significado das palavras subdeterminado, mesmo pelos dicionrios, o poder das teorias subdeterminadopelos fatos, e as brechas so preenchidas por convenes nas quais a compre-enso mtua e muito da vida social tambm dependem. Uma conveno umacordo a se fazer algo de uma certa maneira sem um motivo racional do porqudeve tal coisa ser feita de tal maneira, mas com um forte desejo de todosenvolvidos de que alguma regra, seja qual for, deve ser usualmente observada.Por exemplo, dirigir pela direita, ou pela esquerda, ou fazer a feira no sbado ouna sexta-feira. Ningum se importa com qual a regra, mas porque queremuma regra, fazem uma escolha.

    As notcias inesperadamente animadoras so de que um grupo de econo-mistas franceses em Paris-Nanterre est trabalhando com Olivier Favereau numcampo que eles chamam de economia da conveno (Favereau, 1995a, 1995b), oqual traz um aparato crtico poderoso s noes de escolha racional na cinciaeconmica. O time de economistas da pesquisa Forum influenciado pelo

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    socilogo Harrison White (ver, por exemplo, Markets from Networks, 2002) deHarvard, cujo principal interesse colocar a teoria econmica num contextosociolgico. At agora, nada disto afeta o consumo at onde eu possa ver, masestou esperanosa de que ir afetar, porque esse grupo de pessoas no tem medode dar corajosos passos tericos. A moda, e porque as pessoas escolhem o queelas escolhem, certamente em grande parte uma questo de conveno.

    Gostos

    Precisamos definitivamente ser capazes de pensar em mercadorias en-quanto produzidas por meio de mercadorias, mas ao mesmo tempo em que euescrevia este livro, a linda frase de Sraffa parecia muito enigmtica, quasemstica. Eu mostrei acima que um problema que bloqueava as possibilidades dedilogo entre a antropologia e a cincia econmica a distino entre consumoe produo. algo bastante importante para a anlise econmica, mas difcilde realizar e no funciona muito bem para a antropologia. Ddivas, por exem-plo: se elas so trocadas para manter uma relao na qual o trabalho contabilizado na troca, como cervejadas para trabalhadores de colheita, elasdevem ser contadas como produo ou como consumo? Charadas similaresso conhecidas pelos economistas que fazem a contabilidade nacional. Se algu-mas companhias fornecem cafezinho de graa para seus funcionrios, ele fazparte dos custos de produo?

    Quando eu tive uma conversa inesquecvel com o grande expert em cl-culos de entrada e sada, Leontiev, ele afirmou que havia lido O Mundo dosBens, e me pediu, da sua maneira abrupta, para lhe contar sobre as origens dogosto: De onde vm os gostos? Resmunguei algo incoerente sobre padresde trabalho estabelecendo padres de convvio de acordo com o tempo e lugar,e para minha surpresa, ele aceitou tal resposta entusiasmadamente. Ele atprops que trabalhssemos juntos por alguns anos em categorias de trabalhoque influenciam categorias de consumo. Ns agora podemos descrever a fun-o da produo, ele disse, existem quantidades macias de dados e o traba-lho foi feito, mas ns no descrevemos a funo do consumo. Entre ns, pode-ramos desenvolver uma abordagem terica gil do consumo, para completar omodelo da economia. Uma possibilidade to excitante! Eu no tinha iluses arespeito do porqu ele estava to ansioso por colaborar. Naquela poca, eu eraresponsvel por um grande fundo de pesquisa sobre cultura na Russell SageFoundation. Eu sabia que Leontiev estava ansiosamente buscando 300 mil d-

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    lares para seu instituto de pesquisa economtrica. Eu queria seguir com o gran-de homem, mas, infelizmente, o presidente da fundao no quis nem ouvirfalar dessa possibilidade.

    Um modelo de informao

    Tenho freqentemente refletido sobre qual tipo de modelo ns teramos setivssemos tentado descrever uma funo de consumo que gerasse uma fun-o de produo (o projeto de Mauss, novamente). Esse modelo teria comea-do por particionar o consumo de acordo com padres de tempo e espao dispo-nveis na organizao da produo. Em O Mundo dos Bens eu havia colocadoalgumas reflexes descrevendo os servios de consumo que as pessoas esten-dem umas s outras, aparecendo em visitas hospitalares, casamentos, funerais,os quais, todos, demandam tempo e presentes. Quanto tempo voc gasta via-jando, quanto perto do seu trabalho, trabalhando em casa, quanto tempo nocampo de golfe ou na igreja, e quanto voc ganha? O quo dispersos so osmembros da sua famlia que esperam que voc seja disponvel? Existe umaspecto importante do tempo, que eu chamei de periodicidade. Significa nonecessariamente trabalhar duro, mas estar preso a um certo espao. Com quefreqncia um processo precisa ser acompanhado, de modo que o trabalhadorno possa inici-lo e voltar mais tarde, mas precise ficar no mesmo lugar?Outro aspecto a complexidade de processos interativos no consumo, tal comoa complexidade de servir comida. A pesquisa seguinte sobre comida na RussellSage Foundation mostrou como a complexidade dos padres de consumocorresponde centralidade numa rede social.

    Nosso modelo teria tambm procurado por outras parties que criamesferas econmicas independentes. Esse tema tem sido importante na antropo-logia econmica. Ns as chamvamos esferas independentes de troca, masnos anos 1960 e 1970 no conseguamos pensar em instncias modernas quepudessem nos ajudar a fazer uma ponte com a cincia econmica. No famosocaso Tiv, itens de produo domstica formavam uma esfera separada: ovospodiam ser trocados por farinha, e frango por ferramentas, e assim por diante;no havia maneira de acumular crdito o suficiente naquela esfera para sercapaz de comprar qualquer coisa na esfera imediatamente superior armas eescravos , e na esfera mais alta de todas direitos de casamento sobre asmulheres no havia acesso para quem no tivesse mulheres na parentela das

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    quais pudesse dispor. Ns estvamos satisfeitos que tais esferas no emergiamna moderna economia de mercado, porque o dinheiro permeia tudo e penetraem todas as transaes. Ns pensamos que uma economia monetarizada nopoderia sustentar esferas de troca separadas. Naqueles dias, ns estudvamosformas primitivas de dinheiro, percebendo sua circulao limitada.

    Esferas econmicas separadas pareciam ser comparveis s sociedadesmais altamente estratificadas do nosso prprio passado: era preciso ter nascidonobre para ter a permisso de casar algum tambm nascido nobre; nem todospodiam portar armas, sair para a guerra com uma tropa de homens, e coletardespojos de valor, e o porte de armas usualmente relacionava-se com direitossobre terra. Esferas restritas de troca econmica pareciam possuir um ar deantigidade para os economistas. Mas agora que tivemos uma grande inflao,ns vimos os preos de casas subirem de tal forma que a nica maneira deentrar em tal mercado, em princpio, seria possuindo uma casa, presumivelmenteherdada. E a globalizao parece ter feito algo do mesmo tipo numa escalamaior. As esferas normais de controle industrial e investimento recentementese separaram por um golfo gigante das esferas econmicas globais envolvidasnas finanas internacionais. A diferena absoluta em valor suficiente paraimpedir qualquer um com dinheiro na mo de uma esfera inferior de penetrarna esfera acima. Deve haver um retorno disso na poltica domstica, no com-portamento eleitoral, na poltica estrangeira, de acordo com a existncia deesferas distintas de atividade. Isso deve valer a pena de ser estudado comexemplos antropolgicos em mente.

    O modelo de consumo de Leontiev que eu queria influenciar deveria levarisso em considerao. Mas acima de tudo ns teramos includo a interaoentre forma de emprego e cultura. Nosso particionamento do consumo teriaenglobado quatro tipos de vieses culturais, cada um dependendo da forma deorganizao, e cada um ditando qualidades de bens para consumo. A teoriacultural agora se desenvolveu num campo bem pesquisado no qual os tipos deatitudes morais, que uma forma de organizao requer de modo a funcionar,so vistos como emergindo em resposta aos prmios e penalidades que a orga-nizao emprega. Cultura e organizao co-produzem uma outra: outro pontono qual a cobra coloca o rabo na prpria boca.

    Para concluir, minha reclamao contra as cincias sociais em geral, nounicamente contra a cincia econmica, sua falha em olhar para fatoresmacrossociais. Ter desenhado a pessoa humana como algo isolado estragou osplanos. Por outro lado, a cincia econmica tem o modelo abstrato simplificado

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    de processos sociais que costumava aceitar. Ela est no caminho adequado pararealizar o que seria necessrio para um dilogo proveitoso com os antroplo-gos. Precisamos de uma definio de pobreza em termos de excluso da infor-mao. Provavelmente no necessitamos de uma definio de consumo, masrealmente precisamos de uma teoria informativa da circulao de pessoas e bens.

    Traduzido do ingls por Nicole Reis

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    Recebido em 16/08/2006Aprovado em 09/09/2007