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X SEL – Seminário de Estudos Literários
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
O NACIONALISMO NO ROMANCE DOIS IRMÃOS, DE MILTON HATOUM
Katrym Aline Bordinhão dos Santos (Mestranda – UFPR/PR – CAPES)
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo refletir acerca das diversas conceituações que cercam o termo nacionalismo, tendo em vista que se trata de um tema passível de diversas abordagens. Para isso, nos utilizaremos de teóricos como Benedict Anderson e Hugo Achugar, além de outros que trabalham com o tema. Partindo dessas reflexões conceituais, e de suas aproximações, observaremos como o nacionalismo se apresenta no romance do amazonense Milton Hatoum, Dois Irmãos, e influencia diretamente a vida social dos personagens principais. PALAVRAS-CHAVE: Nacionalismo; Milton Hatoum; Dois Irmãos.
1. Introdução
Este trabalho tem como objetivo refletir acerca de abordagens sobre o tema da nação e da
nacionalidade, e, para isso, nos utilizaremos de teóricos do âmbito da literatura comparada, assim
como outros que se apresentarem como importantes na abordagem do tema.
Após a breve explanação acerca do nacionalismo e correntes por ele suscitadas,
refletiremos sobre o assunto e a questão do trato à nação no romance brasileiro Dois Irmãos, do
amazonense Milton Hatoum, que nos retrata a história de uma família que traz à tona o tema da
nação em diversos momentos.
Assim, espera-se que a ligação entre a literatura e o tema nacional se mostrem, levando
em conta, principalmente, as posições defendidas pelos teóricos abordados nesse trabalho, numa
forma de demonstrar o modo com que o escritor citado lida com a questão do nacional.
ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”
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2. Nacionalismo
Decidimos citar as teorias sobre nacionalismo tendo como critério de ordem o ano de
lançamento das obras em questão, a título de organização dentro do texto, já que muitas vezes
essas teorias se aproximarão ou se diferenciarão por conta justamente da época de publicação,
concordando com o exposto por Candido quando compara o nacionalismo a “uma espécie de ímã
atraindo limalhas diferentes conforme a hora” (1995, p. 304).
Ernest Renan explicita uma das grandes confusões que podem ser feitas quando se
propõe a falar sobre o nacionalismo quando explica que “raça é confundida com nação” 1 (1990, p. 8,
tradução nossa). Assim, essa é uma das primeiras considerações que serão levadas em conta na
análise em questão, que passará agora ao tratamento conceitual do tema.
Achugar reflete acerca de alguns cenários de nação ao mesmo tempo em que reflete
sobre mudanças que colaborariam para uma injeção de realidade nesses conceitos. De acordo com
ele, se nos baseássemos em Renan e Duara, “o elemento básico sobre o qual se constrói tanto o
discurso da nação como o discurso sobre a nação [...] é a posse de um patrimônio comum resultante
da negociação em torno do esquecimento realizado, ou disposto a ser realizado, por uma
determinada comunidade” (ACHUGAR, 2006, p.158), desse modo, selecionando o que poderia ou
não ser definido como uma nação, o que funcionaria como a criação de um discurso específico.
Achugar lembra também que ainda em muitos locais o conceito de nação caminha
perigosamente perto da noção de homogeneidade e que “a primeira tradição a ser repensada é a do
cenário da nação como um, único e homogêneo” (ACHUGAR, 2006, p.156). O teórico conclui
afirmando que o debate atual sobre o tema aborda os direitos dos diferentes sujeitos sociais no que
diz respeito àquilo que deve ser esquecido e ao que deve ser lembrado, o que seria um
questionamento acerca da validade desses esquecimentos e de quem os seleciona. O teórico
salienta que
[...] toda memória, toda recuperação e representação da memória implica uma avaliação do passado. [...] O que não se percebe é [...] que as formações nacionais não se esgotam no econômico, e que as múltiplas histórias [...] e as múltiplas memórias são um elemento central da categoria ‘nação’ (ACHUGAR, 2006, p.197).
1 “race is confused with nation” (RENAN, p. 8).
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Percebemos aqui o questionamento, novamente, daquilo que se considera nação, por
conta da inconsistência diante da responsabilidade dessas avaliações feitas acerca do que configura
uma nação como tal.
Feitas tais observações, passemos a abordar a questão através de Benedict Anderson,
que em seu Comunidades Imaginadas (2008), num primeiro momento, se dispõe a conceituar algo
que admite ser de difícil abordagem, uma vez que concorda com Hugh Seton-Watson, quando
observa com pesar que “[...] não é possível elaborar nenhuma ‘definição cientifica’ de nação, mas o
fenômeno existiu e continua a existir’” (2008, p. 29).
Mesmo a partir disso, delimita a nação como comunidade imaginária e explicita o porquê
dessa denominação, aproximando-a de questões como o não conhecimento de todos os membros
que fazem parte de uma mesma comunidade, mas que mantêm um elo de comunhão; reitera que
mesmo a menor possui limites, e justifica o termo “imaginada” também por conta de “ser sempre
concebida como uma profunda camaradagem ocidental” (ANDERSON, 2008, p. 34).
A partir dessas primeiras considerações Anderson esmiúça algumas das características
que acredita serem causadoras ou mesmo mantenedoras dos conceitos de nação e nacionalismo,
como os grupos dinásticos e aristocráticos, o capitalismo, o idioma, a tecnologia de imprensa, o
romance e o jornal.
Anderson esclarece também que “a condição nacional [nation-ness] é o valor de maior
legitimidade universal na vida política de nossos tempos” (ANDERSON, 2008, p. 28), uma vez que
“a ideia de um organismo sociológico atravessando cronologicamente um tempo vazio e homogêneo
é uma analogia exata da ideia de nação, que também é concebida como uma comunidade sólida
percorrendo constantemente a história, seja em sentido ascendente ou descendente” (ANDERSON,
2008, p. 56).
A partir disso, nos questionamos acerca daquilo que podemos entender como
nacionalidade e os mecanismos utilizados para se trazer o tema à tona, e quais os reais objetivos
que se buscam quando ela é suscitada.
E diante dessas questões nos deparamos com uma definição do que para Anderson é o
“caráter do nacionalismo oficial”, que se baseia numa “estratégia de antecipação adotada por grupos
dominantes ameaçados de marginalização ou exclusão de uma nascente comunidade imaginada em
termos nacionais” (ANDERSON, 2008, p.150), e que exploraremos mais adiante na abordagem
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romanesca do assunto, mas que já pode ser considerada como uma das maneiras que a atual
heterogeneidade social encontra para sobreviver nas sociedades que pensam em nação como algo
homogêneo, como lembrado por Achugar.
Já que tocamos na questão da narrativa, se mostra importante citar Home Bhabha, que
organiza uma obra em que destaca as relações da nação com a narrativa e que já no início
esclarece um ponto fundamental: “nações, assim como as narrativas, perdem suas origens nos
mitos de tempo e somente realizam plenamente seus horizontes no olhar da memória” (1990, p. 1),
o que se aproxima da questão debatida inicialmente com relação às escolhas que configuram o que
é memória e até que ponto elas realmente funcionam como identificadoras da nação como tal.
Novamente o autor nos lembra o exposto por Achugar quando diz que “a ‘localização’ da
cultura nacional não é nem unificada nem unitária em relação a ela mesma, nem deve ser vista
simplesmente como ‘outra’ em relação ao que está fora ou além dela” 2 (BHABHA, 1990, p. 4,
tradução nossa), já que trata do tema problemático da heterogeneidade que se atribui à nação.
Também Antonio Candido se refere em um de seus ensaios aos inúmeros momentos e
concepções atribuídas ao nacionalismo na história brasileira, tanto no que diz respeito à sociedade
em geral quanto ao campo cultural, onde ele situa a literatura. Ele expõe os perigos e divergências
que cercam o tema, chegando a uma conclusão acerca dessa situação durante o século XX: “a
palavra ‘nacionalismo’ apresentou pelo menos duas faces, opostas e complementares: a exaltação
patrioteira, que hoje parece disfarce ideológico, e o contrapeso de uma visão amarga, mas real”
(1995, p.296).
Essa afirmação de Candido se baseia nos diversos significados atribuídos às palavras
durante os períodos históricos brasileiros, quando se deixava de lado o caráter brasileiro de
escravos, quando apenas se queria identificar o país com características que advinham de países
europeus, a glorificação exacerbada de elementos escolhidos para serem considerados como
representantes oficiais do país, as situações de xenofobia que podiam ser geradas através dele,
entre outras.
Por fim, o teórico dá uma importante função para o nacionalismo situando-o como um
modo de termos “consciência da nossa diferença e critério para definir nossa identidade” (CANDIDO,
2 “ The ‘location’ of national culture is neither unified nor unitary in relation to itself, nor must it be seen simply as ‘other’ in relation to what is outside or beyond it” (BHABHA, 1990, p. 3)
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1995, p. 305), o que para nós surge como uma definição diferenciada do tema e que se afasta do
ufanismo e do preconceito, que serão tratados também pela próxima teórica que iremos trabalhar.
Tendo em vista novamente a questão da heterogeneidade lembramos de Leyla Perrone-
Moisés, que reúne alguns de seus textos acerca do nacionalismo, assim como da cultura e da
identidade – conceitos que, de acordo com ela, estão sendo utilizados de maneira muito abrangente
– no volume chamado Vira e Mexe Nacionalismo: Paradoxos do Nacionalismo Literário (2007), no
qual percebemos algumas aproximações com as observações aqui abordadas.
Perrone-Moisés, assim como Achugar, comenta sobre o caráter homogêneo que se espera
do nacionalismo e que, em sua opinião, constitui um de seus três paradoxos, sobre os quais ela
discorre em seu texto: “desejar uma pureza originária e sem contaminações, [...] a afirmação
nacionalista, [...] [que] acaba por reforçar o localismo [...] e o desejo de uma identificação coletiva,
quando a identidade tende sempre para o uno (2007, p. 89-90). Veremos esses paradoxos
exemplificados diretamente em situação vivida pelos personagens no romance em questão.
Em um de seus textos explora especificamente o caráter negativo que o nacionalismo
pode adquirir: “o nacionalismo é justificado quando se trata de defender um território e os direitos de
seus cidadãos, mas perigoso quando leva à xenofobia, guerras e massacres, o que, afinal e
infelizmente, é apenas o ponto extremo da sua lógica” (PERRONE-MOISÉS, 2007, p.10), situação
que ainda não havíamos explorado em nossa abordagem teórica, e que se mostra como uma das
vertentes em que o nacionalismo pode desembocar.
Diante de todas essas observações acerca do tema nacionalismo e nação, nos deparamos
com diversas opiniões e conclusões, de modo que em primeiro lugar é preciso tomar cuidado com o
conceito de nacionalismo que se utiliza, uma vez que, como lembrado por Perrone-Moisés, tal
conceito atualmente serve para designar tudo.
Assim, aqui trabalharemos principalmente com o nacionalismo funcionando como uma
espécie de marcador da relação estabelecida entre o indivíduo e a comunidade social a que se
submete, ou submeteu, e quais os tipos de consequências que advêm dessa situação vivida dentro
da “comunidade imaginária” a que pertenceu.
Consideramos como importante esse número de teorias elencado por conta da
necessidade de esmiuçar o tratamento dado ao estudo do nacionalismo literário, justamente por
conta dessa banalidade com que muitas vezes é tratado.
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Na análise propriamente dita do texto literário em questão vamos nos focar nos
pensamentos acima citados, considerando que são os que se aproximam mais das situações de
cunho nacional vividas pelos personagens do romance Dois Irmãos.
Levaremos em conta, também, que “a ficção se infiltra contínua e silenciosa na realidade,
criando aquela admirável confiança da comunidade no anonimato que constitui a marca registrada
das nações modernas” (ANDERSON, 2008, p. 68-69), o que, a nosso ver, se exemplifica na trama
de Dois Irmãos.
3. Questões nacionais em Dois Irmãos
Iniciemos nossa abordagem citando Perrone-Moisés: “as obras literárias esclarecem, tanto
ou mais do que os discursos políticos, como são construídos os conceitos de nação e de identidade
nacional” (2007, p.18). Partindo dessa observação, que nos esclarece um dos principais objetivos do
trabalho, partamos para a reflexão dos conceitos diretamente na obra literária.
Ao tratarmos o nacionalismo em Dois Irmãos nos deparamos com a questão abordada de
diferentes formas, que podem ser percebidas logo numa primeira leitura da obra, já que se trata da
história de uma família de imigrantes do Líbano, que interpola um caso de imigração que pode ser
encarada como mal sucedida, acolhe e cria uma órfã e vivencia uma mudança de regime político
dentro do país, entre outras.
O fato que talvez mais chame a atenção para a questão do nacionalismo na obra diz
respeito ao envio de Yaqub para o Líbano, que é tratado de forma misteriosa, atribuído em certo
momento a Halim e em outro a Zana, e que causa profundas consequências na vida do menino.
Tamanho é o mistério que cerca essa permanência de cinco anos no Líbano, que, durante
um jantar, Talib, vizinho da família, ao questionar Yaqub da passagem pelo país, dá início a um
diálogo que revela diversas situações que podem ser refletidas à luz das teorias acerca do
nacionalismo, se o considerarmos, principalmente, como “apego de um grupo a seu território e a
seus valores” (PERRONE-MOISÉS, 2007, p. 35). Vejamos:
“Não sentes saudades do Líbano?” Yaqub ficou pálido e demorou a responder. Não respondeu, perguntou: “Que Líbano? ” [...] “Por enquanto só há um Líbano”, repondeu Talib. “Quer dizer, há muitos, e aqui dentro cabe um”. Ele apontou para o coração. [...]
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“Não morei no Líbano, seu Talib.” [...] “Me mandaram para uma aldeia no sul, e o tempo que passei lá, esqueci. É isso mesmo, já esqueci quase tudo: a aldeia, as pessoas, o nome da aldeia e o nome dos parentes. Só não esqueci a língua...” (HATOUM, 2006, p. 88-89).
Nesse trecho podemos perceber como Yaqub faz questão de ignorar sua passagem pelo
Líbano, esclarecendo que apenas não esqueceu a língua. Lembremos de Anderson, que defende
que o fato de as colônias compartilharem, entre outras coisas, a língua da metrópole, foi o que lhes
fez criar as noções iniciais de imagens nacionais (2008, p. 268), e, aqui, podemos depreender que
Yaqub interpretou a pergunta de Talib como uma referência ao nacionalismo local que o menino
podia ter absorvido pelo Líbano.
Daí o porquê da negativa quanto a todos os outros símbolos que, ao menos para Yaqub,
pudessem representar a nacionalidade libanesa, como o nome da aldeia em que permaneceu e dos
moradores, e essas pessoas, como exposto por Anderson (2008, p. 32), têm em mente uma imagem
viva da comunhão entre membros das mesmas nações. Ou seja, de acordo com o teórico essas
pessoas que lá viviam conjuntamente acreditavam que seus vizinhos compartilhavam das mesmas
visões do local, o que novamente nos remete à figura de Talib tentando retirar impressões de Yaqub
que lhes fossem comuns.
Encontramos uma possível justificativa para o tom da resposta de Yaqub nas palavras de
Achugar, quando este se refere ao que chama de esquecimento escolhido:
O que significa o esquecimento escolhido? Evidentemente não parece querer dizer simplesmente o esquecimento, mas o “enterro” e a consequente edificação do monumento. Ou seja, a fixação no espaço e no tempo, de um fato passado para que não seja esquecido/ignorado/silenciado e, ao mesmo tempo, poder continuar em frente sem que a constante lamentação impeça a ação futura (ACHUGAR, 2006, p. 164).
Assim, podemos entender que essa ignorância voluntária da situação serviu como um
modo para que Yaqub superasse esse momento para continuar com sua vida em sua terra natal,
sem deixar que os acontecimentos passados – raízes que pudesse ter desenvolvido com a terra de
que não gosta de lembrar – o atrapalhassem.
Compare-se essa situação com a postura que Halim assume com relação a seu passado,
vivido no mesmo local para onde Yaqub havia sido enviado, que não cria obstáculos com esse
momento, já que conta suas histórias para Nael de modo detalhado. Podemos pensar na
possibilidade de o envio de um dos meninos ser um modo de separá-los, resolvendo as brigas
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fraternas, e expor um deles à situação vivida por Halim em sua terra natal, que lhe transformou no
homem que é, o que poderia colaborar para restaurar a paz entre os meninos.
Utilizando mais uma vez Achugar, nos aprofundamos ainda mais nas observações acerca
do intuito de contar sua própria história: “aquele que conta tem que escolher quando começa e
quando termina sua história. Há uma espécie de lógica, de lógica discursiva que torna impossível
deixar fugir a escolha/seleção e, portanto, o silêncio ou o esquecimento” (ACHUGAR ,2006, p.159).
Nesse ponto, entendemos a motivação de Yaqub em não relatar suas experiências no país
estrangeiro, que não foi capaz de configurar uma história em sua vida, por motivos que não são
explorados no livro, mas assumem um tom negativo, talvez justamente por conta dessa omissão
voluntária.
Podemos perceber por trás da pergunta de Talib, também, que há um “caráter oficial” do
nacionalismo, defendido por Anderson e abordado aqui anteriormente, no sentido de que podemos
considerar que foi essa a maneira – demonstrar o orgulho que sentia pela sua terra natal – que ele
encontrou para antecipar uma possível discriminação que podia sentir com relação a seu país.
Assim, ele já identifica esse local como algo que é passível de se manter vivo no coração, o que,
diante do descaso de Yaqub, precisa ser reiterado – daí sua alusão ao coração na frente de todos.
O que também nos remete à definição de nação citada por Ernest Renan ligada a um rico
legado de memórias em comum que determinado grupo pertencente a uma nação possui (1990,
p.19), citada anteriormente, já que por trás da pergunta de Talib há essa intenção da partilha de
boas lembranças, um modo de estabelecer um assunto que seria do interesse geral, por conta de
ser essa – a nacionalidade – uma das características que os aproximava naquele momento.
Aproximando, assim, os dois teóricos, Renan e Anderson, na abordagem da questão do
compartilhamento de sentimentos pelos membros pertencentes a uma nação, que no caso aqui
explicitado demonstra que esse fato, além de existir, pode ser considerado como consciente por
parte desses membros.
A língua é a única característica que Yaqub assume não ter esquecido e tal situação
exemplifica o exposto por Renan, quando relata que “a língua encoraja as pessoas a se unirem, mas
não as força a fazer isso3” (BHABHA, 1990, p.16, tradução nossa), uma vez que mesmo tendo
incorporado a língua à sua vida (sendo até mesmo motivo de riso por conta de seu sotaque, o que
3 “Language invites people to unite, but it does not force them to do so” (RENAN, p. 16)
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nos faz lembrar a fala de Perrone-Moisés sobre o caráter negativo do nacionalismo), não
estabeleceu nenhum tipo de aproximação com os seus falantes, desconcertando a possível
aproximação com o país que a apreensão da língua podia refletir na formação de sua vida.
Percebe-se que há uma preocupação de Zana no que diz respeito justamente a essa
formação de Yaqub vivendo nas montanhas do sul do Líbano, que pode ser afirmada através de
suas palavras quando da partida do filho: “Meu filho vai voltar um matuto, um pastor, um ra’í. Vai
esquecer o português e não vai pisar em escola porque não tem escola lá na aldeia da tua família”
(HATOUM, 2006, p.12). Diante disso podemos indagar o porquê de Zana achar que o menino
voltaria assim, uma vez que ela havia saído do Líbano com seis anos e não poderia ao certo ter
essa opinião formada àquela idade.
Isso nos motiva a retomar a história de Halim, em suas constantes conversas com Nael,
sobre a reação dos vizinhos quando do seu pedido de casamento à Zana: “As cristãs maronitas de
Manaus, velhas e moças, não aceitavam a ideia de ver Zana casar-se com um muçulmano [...].
Diziam [...] que ele era um mascate, um teque-teque qualquer, um rude, um maometano das
montanhas do sul do Líbano” (HATOUM, 2006, p. 40).
Vemos, então, que a má fama dos habitantes do sul do Líbano era corrente entre as
“informadas” de Manaus, o que podemos considerar como uma espécie de preconceito, motivado
por informações compartilhadas por essas mulheres acerca do caráter de pessoas originárias do
local. Até mesmo a religião serve de motivo para a negativa diante do rapaz, que, aliás,
compartilhava a nacionalidade da pretendida noiva.
O papel da religião, inclusive, é abordado de modo peculiar, uma vez que como Zana é
católica, e justamente por conta do falatório acerca da religião de Halim, ela coloca como condição
que o casamento se dê na igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, o que ocorre, e Halim
surpreende a todos com a voluptuosidade do beijo na noiva ao fim da cerimônia e que, segundo ele,
foi um modo de calar a todos.
Vejamos que nesse ponto podemos pensar na possibilidade de Halim deixar de lado sua
religião, assumindo a de Zana por conta do casamento e mesmo para evitar os falatórios. Tal fato
não acontece, pois ele não prossegue acompanhando a mulher nas rezas, para as quais ela
encontra companhia na pessoa de Domingas.
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Assim, podemos considerar a atitude de Halim como a manutenção de um laço que o liga
ao seu local de origem e aos seus compatriotas: a religião; manutenção essa que também fica clara
nos cumprimentos que dirige a Yaqub quando regressa do Líbano: “e depois os quatro beijos no
rosto, o abraço demorado, as saudações em árabe” (HATOUM, 2006, p. 11), que, provavelmente, se
destacavam no porto lotado diante da chegada dos pracinhas brasileiros.
A desconfiança de Zana sobre os modos que o menino pode adquirir são comprovadas na
chegada de Yaqub, já que Halim “na viagem de volta a Manaus, fez um longo sermão sobre
educação doméstica: que não se deve mijar na rua, nem comer como uma anta, nem cuspir no
chão” (HATOUM, 2006, p. 12). Essas reações podem ter sua origem no isolamento que o menino
vivia nas montanhas, como é exposto mais adiante, e, portanto, podem não ter relação com o local
em si, mas acabam assumindo esse caráter por conta das palavras de preocupação de Zana.
De qualquer forma, esses episódios relatam um momento do que pode ser visto como um
discreto preconceito mesmo entre indivíduos que compartilham a mesma nacionalidade, no caso de
Zana e dos moradores do sul do Líbano, já que ela é natural da cidade turística de Biblos.
O que nos explicita os limites sensíveis entre o nacionalismo e o preconceito que ele pode
gerar, como exposto por Leyla Perrone-Moisés: “reforçando o localismo, o provincianismo, e até o
fechamento do mundo” (2007, p. 90), assim como exemplifica os três paradoxos propostos por
Perrone-Moisés, a que nos referimos no início do trabalho.
Somos apresentados na trama, também, a uma miscigenação de nacionalidades, que o
livro apresenta como comum em Manaus, uma vez que
Hatoum extrai sua matéria, constituída por uma teia cultural variada e típica, em que se relacionam imigrantes, estrangeiros e nativos, que estabelecem relações de identidade e de estranhamento com um mundo diverso, no qual um difuso sentido de perda está sempre presente (SILVA, 2008, p. 8)
por conta, inclusive, de a cidade ser portuária. Essa diversidade é representada, entre outros modos,
através do restaurante de Galib, que “foi um ponto de encontro de imigrantes libaneses, sírios e
judeus marroquinos [...]. Falavam português, misturado com árabe, francês e espanhol (HATOUM,
2006, p. 36).
A questão do idioma na configuração da criação do nacionalismo é abordada
incisivamente por Anderson, que explica que
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A revolução lexicográfica na Europa, porém, criou e aos poucos difundiu a convicção de que as línguas [...] eram, por assim dizer, propriedades pessoais de grupos muito específicos – seus leitores e falantes diários – e, ademais, que esses grupos, imaginados como comunidades, tinham o direito de ocupar uma posição autônoma dentro de uma confraria de iguais. (ANDERSON, 2008, p. 128).
Tal situação é perceptível na abordagem que se dá a esse tema na passagem em que se
descrevem os frequentadores do armazém de Halim, justificando que eram de diversos locais por
conta de falarem diferentes idiomas.
Ao tratarmos a figura do pai de Zana, Galib, percebemos o amor que devota ao país natal
na decisão que toma após o casamento de Zana, retornando para uma visita que culmina na sua
morte. Assim que decide, “já sonhava com o Mediterrâneo, com o país do mar e das montanhas.
Sonhava com os Cedros, seu lugar” (HATOUM, 2006, p. 42).
Percebemos nessas lembranças um caráter de identificação com as características que
definiam o país para Galib, que, mesmo inconscientemente, demonstra a enorme diferença com o
Brasil, principalmente Manaus. A utilização da expressão “seu lugar” deixa clara a sensação que o
libanês tinha de não pertencer ao Brasil, demonstrando o apego que devotava ao país de origem.
Essa situação é afirmada na constatação de Halim: “‘Voltar para a terra natal e morrer’,
suspirou Halim. ‘Melhor permanecer, ficar quieto no canto em que escolhemos viver.’” (HATOUM,
2006, p. 43). Na fala do patriarca percebemos claramente a ideia da escolha de um local para viver,
atribuindo um valor a esse local justamente por conta de ter sido escolhido, e que substitui a terra
natal, que não deve ser retomada.
Há aqui uma representação contrária ao sentimento de Galib – saudoso de sua pátria –,
um desapego ao local de origem, conformando-se com o local escolhido, o que poderíamos avaliar
como uma característica contrária ao nacionalismo que havíamos considerado em outro momento
como presente em Halim por conta de suas constantes lembranças da terra natal.
Para privar a esposa das brigas com o irmão, Yaqub afirma que numa próxima visita à
família ficaria num hotel, ao que a mãe imediatamente rebate: “Nosso filho quer se esconder com a
mulher... Quer ser um estranho na terra dele...” (HATOUM, 2006, p.152), o que revela uma reação
da mãe que caracterizaria uma espécie de desligamento do que o ligava à terra, tornando-o um
estrangeiro em seu próprio lugar, e aqui vemos que, para Zana, o sentimento de pertencer a um
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lugar estava diretamente ligado à sua permanência nele, parecida com a opinião de Halim, citada
anteriormente.
A relação estabelecida com a visão de outros países também aparece representada no
cartão postal que Omar envia ao irmão e à cunhada quando foge para os Estados Unidos com o
dinheiro deles:
Louisiana é a América em estado bruto e mesmo brutal, e o Mississippi é o Amazonas desta paragem. Por que não dão uma voltinha por aqui? Mesmo selvagem, Louisiana é mais civilizadas que vocês dois juntos. Se vierem, tratem de pintar o cabelo de loiro, assim vão ser superiores em tudo [...] E tu podes enriquecer muito, aqui na América (HATOUM, 2006, p. 92).
Obviamente entendemos que muitas das observações feitas por Omar advêm do intuito de
insultar os parentes, mas é justamente através do modo com que se utiliza para esse fim que revela
que essa é também a visão que eles compartilham acerca dos Estados Unidos, vista como uma
nação mais adiantada. Isso é demonstrado através do modo como compara até mesmo a cidade
mais rústica com a civilização brasileira, revelando uma possível situação vivenciada diante do
tratamento que recebeu, e que pode ter feito com que entendesse que o local de onde vinha era
selvagem e que os loiros eram melhor tratados.
Essa relação com o estrangeiro, além do preconceito que analisamos com relação a Halim,
aparece de modo diverso na apresentação de Rochiram “um indiano que falava devagar,
sussurrando em inglês e espanhol as frases que pensava dizer em português” (HATOUM, 2006, p.
168), que apareceu como amigo de Omar e aos poucos foi ganhando a confiança da casa.
A variedade de línguas utilizadas pelo estrangeiro é justificada: “Ele vivia em trânsito,
construindo hotéis em vários continentes. Era como se morasse em pátrias provisórias. O que
enraizava em cada lugar eram os negócios” (HATOUM, 2006, p. 168). Diante disso, podemos
considerar Rochiram um sem pátria? E que por conta disso, não estabeleceria nenhum sentimento
nacionalista com essas pátrias pelas quais havia passado?
Essas considerações podem ser afirmadas se levarmos em conta que o nacionalismo,
entre outras coisas, figura como símbolo do apego ao local de origem. Perceba-se que o narrador,
ciente de que seus leitores esperam que quem transite por vários lugares estabeleça ao menos
algum tipo de relação com cada um deles, esclarece que as raízes que Rochiram estabelecia eram
os negócios, excluindo qualquer tipo de situação envolvendo sentimentos com os locais que se
pudesse esperar, confirmando, assim, a nossa possibilidade de considerá-lo um sem pátria.
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A identidade de Rochiram se apresenta como a de um enganador, responsável pela
decadência da família, que culminou com o afastamento definitivo dos gêmeos, e mesmo de Omar
do resto da família, que chegou até a perder a casa por sua causa. Vemos que essa variedade de
línguas por ele faladas e o fato de ser considerado estrangeiro funcionaram como uma espécie de
estratégia para obter a confiança da família, demonstrando o caráter de valor que era dedicado a
estrangeiros, como no caso da visão dos Estados Unidos por Omar.
Novamente percebemos aqui uma atitude contrária demonstrada em situação parecida
ocorrida na trama, caso de Halim à época de seu casamento, com relação ao preconceito com
pessoas de outros países. O fato é que aqui Rochiram é tido como banqueiro inglês e, talvez por
conta justamente disso, é que a ele tenha sido demonstrado um respeito não compartilhado por
estrangeiros de outros países.
Tratada a questão de pré-julgamentos acerca das pessoas de nacionalidades diferentes
abordadas na trama percebemos também o papel desempenhado pelos momentos históricos na
vida dos personagens, servindo muitas vezes de marcador temporal, como quando se explica que
Yaqub foi para o Líbano um ano antes da Segunda Guerra Mundial e que quando retornou o porto
estava repleto de pracinhas brasileiros.
À época da inauguração de Brasília há menções às desigualdades mesmo entre as
regiões do país: “Noites de blecaute no norte, enquanto a nova capital do país estava sendo
inaugurada. A euforia, que vinha de um Brasil tão distante, chegava a Manaus como um sopro
amornado” (HATOUM, 2006, p. 96) e que de certo modo servem como justificativas indiretas sobre a
visão de Omar sobre os Estados Unidos.
Outro importante fato histórico abordado é o golpe de 64, representado principalmente na
figura do professor Laval, que acaba preso e morto em praça pública, e nas consequências que essa
situação causa à família: “Rânia teve que fechar a loja porque a greve dos portuários terminara num
confronto com a polícia do Exército. Halim me aconselhou a não mencionar o nome de Laval fora de
casa” (HATOUM, 2006, p. 149).
4. Conclusão
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Analisando as teorias expostas nessa seleção para refletirmos acerca do conceito de
nacionalismo pudemos nos deparar com situações que divergiam, assim como pudemos perceber
pontos comuns aos estudos nacionalistas, mesmo quando trabalhados em épocas diferentes.
Vimos que uma das questões mais problemáticas acerca da definição nacionalista diz
respeito a uma busca por identificação unificada, homogênea, deixando de lado o fato de que a
sociedade é heterogênea e que essa homogeneidade pode inclusive desembocar numa criação
preconceituosa acerca do que é diferente.
Constatamos também que conceituar nação, e, consequentemente, nacionalismo, não é
algo considerado possível pela maioria dos estudiosos, sendo que alguns, inclusive, como exposto
por Perrone-Moisés, acreditam que, como as nações um dia iniciaram, um dia irão se acabar. Mas
que é possível traçar alguns acontecimentos comuns a esse tipo de organização social, como a
definição de Anderson se referindo a nações como “comunidades imaginadas”.
A partir de reflexões acerca da teoria, pudemos também perceber de que modo tais
conceitos se mostram presentes dentro da obra literária em si, utilizando situações vivenciadas por
personagens como Halim, Zana, Yaqub e Omar, que demonstram como esse tema nacionalista vem
à tona quando o foco do romance sequer é esse, como no caso de Dois Irmãos.
Os paradoxos do nacionalismo literário citados por Moisés puderam ser exemplificados
através, especificamente, da personagem Zana e suas preocupações com o futuro do filho,
baseadas num localismo, e de Talib, que acreditava compartilhar opiniões suas com Yaqub apenas
por terem passado um tempo no mesmo local. Também, através das observações de Achugar e
Renan pudemos encontrar possíveis interpretações para a reação de Yaqub à estada no Líbano.
Para finalizar utilizemos as palavras da diversas vezes aqui citada Leyla Perrone-Moisés:
“os maiores [escritores] tecem um intertexto irônico em que os elementos estrangeiros e os locais
produzem uma combinatória inédita, que engrandece tanto a literatura nacional quanto a
internacional” (2007, p. 96). Se Milton Hatoum pode ou não ser chamado de um dos maiores
escritores – além de depender da definição de maior escritor que se leve em conta, o que
absolutamente não é o intuito de nossa discussão –, não nos cabe discutir.
Mas podemos afirmar que é perceptível como Hatoum soube lidar de modo distintivo com
a relação entre uma família formada por estrangeiros dentro do Brasil – onde podemos localizar
inclusive as diferentes posições diante do nacional analisadas aqui. Esse trabalho pretendeu, de
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certo modo, destacar justamente esse trato característico ao tema do nacionalismo, que assume
tantas facetas quando apenas se teoriza acerca dele.
Referências bibliográficas
ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006.
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BHABHA, Homi. K. Nation and narration. London: Routledge, 1990.
CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
HATOUM, Milton. Dois Irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
RENAN, Ernest. What is a nation? (a lecture delivered at the Sorbonne, 11 March 1882). In: Nation and narration. London: Routledge, 1990.
SILVA, N. R. B. da. Memória e identidade – uma leitura do romance Dois Irmãos de Milton Hatoum. In: IX CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC –Tessituras, Interações, Convergências, 2008, São Paulo. Anais do XI Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada, São Paulo: ABRALIC, 2008. e-book.