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O nascimento da República e os jabutis em cima das árvores (3) Continuação da edição anterior Patrocínio percebeu que a política que até então empreendera – que tirava o centro da República para se concentrar na resistência aos ex-senhores de escravos – não era viável. Ou, é possível que tenha pensado: não era mais viável. Se foi isso, ele estava errado em pensar que alguma vez fosse viável tal política. Simplesmente ela não correspondia ao conjunto de necessidades do país naquele momento. Mas, seja lá qual tenha sido o pensamento de Patrocínio, o resultado prático foi o mesmo: sua reintegração ao movimento republicano em junho de 1889 CARLOS LOPES Nos parece que um contemporâneo de Patrocínio e Silva Jardim - Rui Barbosa, na época redator-chefe do "Diário de Notícias", jornal publicado no Rio de Janeiro – disse o mais importante sobre a Guarda Negra: " Esta invenção teve o seu berço na polícia, recebeu

O Nascimento Da República e Os Jabutis Em Cima Das Árvores

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História, política, economia

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O nascimento da Repblica e os jabutis em cima das rvores (3)Continuao da edio anterior

Patrocnio percebeu que a poltica que at ento empreendera que tirava o centro da Repblica para se concentrar na resistncia aos ex-senhores de escravos no era vivel. Ou, possvel que tenha pensado: no era mais vivel. Se foi isso, ele estava errado em pensar que alguma vez fosse vivel tal poltica. Simplesmente ela no correspondia ao conjunto de necessidades do pas naquele momento. Mas, seja l qual tenha sido o pensamento de Patrocnio, o resultado prtico foi o mesmo: sua reintegrao ao movimento republicano em junho de 1889CARLOS LOPESNos parece que um contemporneo de Patrocnio e Silva Jardim - Rui Barbosa, na poca redator-chefe do "Dirio de Notcias", jornal publicado no Rio de Janeiro disse o mais importante sobre a Guarda Negra:

"Esta inveno teve o seu bero na polcia, recebeu o enxoval do Tesouro, a beno do presidente do conselho e a santificao batismal da regncia[isto , da Princesa Isabel, que era a regente]. Nasceu adulta no mal e sequiosa de sangue, em que banhou as suas primeiras armas, na capital do imprio, aos 30 de dezembro de 1888. Da em diante cada um dos seus movimentos, no interior, tem sido um crime, e todos eles perpetrados sob o nome da serenssima princesa, como tributo de gratido s suas virtudes, como aviso aos adversrios do princpio que sua alteza representa"(Rui Barbosa, "Trono e Mazorca", Dirio de Notcias, 20/04/1889, primeira pgina; o texto desse artigo que consta das Obras Completas de Rui, Vol. 16, tomo 2, p. 75, foi ligeiramente modificado, em questes de linguagem e estilo; preferimos aqui manter o original, tal como os leitores da poca puderam ter acesso - exceto, claro, pela ortografia).

Rui, nesse artigo, descreve a ao da Guarda Negra para impedir o republicano Nilo Peanha de falar em Laje do Muria, no Estado do Rio:

"A cumplicidade policial assegura-lhe, por toda a parte, a mais absoluta impunidade. Os telegramas de ontem, acerca das ocorrncias do dia 17 na Laje do Muria, revelam novas circunstncias, de significao cada vez mais odiosa. O cidado Antonio Pereira, ferido por um tiro, foi, ainda em cima, submetido priso, subjugado a um tronco, torturado no decurso da noite, durante a qual se ouviram partir da cadeia gritos lancinantes. O tribuno popular, ferido ele mesmo, evitou o assassnio, com que o ameaavam a fora e os libertos, sob a direo do comandante do destacamento, deixando o arraial, cujos pontos de sada estavam guarnecidos pelos malfeitores e pela polcia. () Que diremos ns de um regmen, que organiza guardas pretorianas contra as instituies liberais, e entrega os direitos populares escopeta dos bandidos? No ser afugentar da monarquia para a repblica todos os espritos liberais e todos os conservadores esclarecidos, aliando o trono mazorca?" (Rui, loc. cit.).

Patrocnio no foi "organizador" desse bando de arruaceiros anti-republicanos. Mas que teve a iluso de que a Guarda Negra, debaixo da sombra da monarquia, pudesse se transformar no primeiro partido negro do pas, no existe dvida alguma. As provas so os artigos de seu jornal, "Cidade do Rio", alguns, no poucos, de sua prpria lavra, se assim podemos nos expressar.

A nota sobre a fundao da Guarda foi um desses artigos redigidos pelo prprio Jos do Patrocnio, publicado na edio de 10 de julho de 1888 de "Cidade do Rio":

"Ontem noite (...) os pretos libertos Hygino, Manoel Antonio, Jason, Aprgio, Gaspar e Thecrito reuniram-se em casa de Emlio Roude, o infatigvel abolicionista de todas as tiranias, de todos os preconceitos, de todas as ingratides, e acordaram fundar uma associao que, com o ttulo de Guarda Negra da Redentora, se dedicasse em corpo e alma e em todos os terrenos defesa do reinado da excelsa senhora que os fez cidados.

"Esses homens agradecidos tomaram as seguintes deliberaes, que o meu amigo Roude me facilita, pedindo ao mesmo tempo as publique e coadjuve a realizao de to belo pensamento. Como nunca neguei nada a esse bom amigo, acedo gostosamente ao seu pedido.

"Ficou assentado:

"1 Criar uma associao, com o fim de opor resistncia material qualquer movimento revolucionrio que hostilize a instituio que acabou de libertar o pas".

Depois de transcrever outras deliberaes, de carter organizativo, Patrocnio comenta:

" com verdadeira satisfao que escrevo estas linhas. Sinto neste momento uma alegria indescritvel, porque vejo que no nosso pas h gratido; que por baixo da pele bronzeada dos libertos corre um sangue saturado de agradecimento, e enfim que, se os fazendeiros despeitados compram almas para apont-las contra a Redentora, os escravos que Ela transformou em cidados rodearo o seu trono e sabero morrer em sua defesa" (cf. "Chronica de hontem", in Cidade do Rio, 10/07/1888).

JORNALISMO

Pior ainda foi como o jornal de Patrocnio noticiou a batalha do dia 30 de dezembro de 1888:

"O modo como os republicanos de 14 de maio [isto , os senhores de escravos contrariados pela Abolio] esto dirigindo a propaganda contra as instituies vigentes tem provocado em toda a parte do pas a maior indignao. Desnaturado o sagrado ideal da Repblica, servem-se dele como a arma de vingana contra a monarquia, os que no queriam e no querem ainda agora conformar-se com a igualdade de todos os brasileiros" (cf. "O Dia de Hontem", in "Cidade do Rio", 31/12/1888).

Silva Jardim no era, evidentemente, um "republicano de 14 de maio" - pelo contrrio, como Jlio de Castilhos e Raul Pompeia, era um dos muitos jovens que despertara politicamente sob a influncia de Luiz Gama. Ao filiar-se no Clube Republicano de Santos, declarara que os republicanos tinham que ter "uma cor acentuadamente abolicionista" (apesar de fluminense, Silva Jardim morava em Santos com a esposa, sobrinha-neta de Jos Bonifcio).

Patrocnio sabia disso, mas o texto escracha os "oradores da repblica escravista". Segue-se uma bajulao da princesa Isabel ("Me dos Cativos", etc.) e uma defesa da "Guarda Negra da Redentora", que, segundo o jornal, " um verdadeiro partido poltico, to respeitvel como qualquer outro".

Depois de transcrever uma nota do "chefe-geral" da Guarda Negra, Clarindo de Almeida, negando a participao de seus chefiados na invaso do prdio da Sociedade Francesa, diz o texto:

"Apesar da absteno da Guarda Negra, foi impossvel conter, ontem, a exploso de clera popular que desde muito fumega do carter e do brio nacional, contra essa propaganda que insulta duas vezes a ptria, rebaixando-lhe o ideal americano e uma raa que pelos seus sentimentos generosos conseguiu fazer-se amar ao ponto de sermos ns um povo quase sem preconceitos de cor".

RETOMADA

Convenhamos que difcil condenar o jovem Silva Jardim (que, alis, jamais seria velho: tinha 30 anos quando desapareceu, na cratera do Vesvio, em Npoles) por denunciar Jos do Patrocnio...

Tanto isso verdade que Patrocnio mudou a sua posio, antes da Proclamao da Repblica, reconciliando-se com seus companheiros republicanos. A partir de maio de 1889, com a queda do gabinete Joo Alfredo e a sua substituio pelo visconde de Ouro Preto, Jos do Patrocnio retoma a campanha republicana.

Quando, em 14 julho de 1889, a Guarda Negra foi usada para outro ataque violento aos republicanos - que comemoravam o dia da queda da Bastilha - no centro do Rio, naquela que era ento a principal via da capital, a rua do Ouvidor, Patrocnio escreve "Aos homens de cor", classificando o acontecido como "cena de barbrie". Diz ele:

"Os acontecimentos de ontem demonstram que os nossos irmos esto sendo criminosamente explorados. S a mais infame especulao podia conseguir que partisse de homens de cor a perturbao de uma festa que tinha por fim honrar a memria da Revoluo, que teve como um dos seus dogmas a libertao dos cativos e a igualdade poltica da raa negra.

"Como se pode explicar a revolta da Guarda Negra contra homenagens aos que primeiro levantaram a questo da liberdade dos cativos negros, quando ela est pronta a morrer pela princesa s porque esta assinou a lei de 13 de maio?"No salta aos olhos que uma perigosa influncia est desnaturando criminosamente os fins da instituio, e convertendo-a no mais perigoso dos instrumentos, porque ser destinado a servir indistintamente aos dois partidos e a sustentar todos os atentados do governo, pelo mais condenvel dos meios - a supresso da liberdade de tribuna, de imprensa e de reunio?"

E acrescenta:

"Ao signatrio destas linhas deram a responsabilidade dos primeiros abusos de liberdade por parte da Guarda Negra. (...) Eu nunca aconselhei a violncia..." (cf. Cidade do Rio, 15/07/1889, primeira pgina).

DISPUTA

Sobre seu apoio ao gabinete do Partido Conservador chefiado pelo conselheiro Joo Alfredo, Patrocnio dir, quando da sua queda: "no se tratava da sorte de um gabinete, mas da dignidade de um reinado" (cf. Cidade do Rio, 01/06/1889).

Essa uma questo importante: entre o 13 de Maio e a queda de Joo Alfredo (o gabinete ficou inviabilizado a 4 de maio de 1889 e o poltico pernambucano saiu do governo no dia 7 de junho), toda a formulao de Patrocnio que o objetivo central da luta barrar a reao dos fazendeiros, ex-senhores de escravos, contra a Abolio, inclusive barrar as propostas de indenizao pelos escravos "perdidos".

Da a sua ideia de uma aliana com a monarquia, atravs da princesa Isabel e seu futuro terceiro reinado. Obviamente, isso implicava em adiar a Repblica.

Para Silva Jardim, Lopes Trovo e a maioria dos republicanos, pelo contrrio, a Repblica que poderia ser a garantia contra qualquer reao ou compensao escravista.

Porm, Patrocnio criticava nos republicanos e especificamente em Silva Jardim - exatamente a sua aproximao com os fazendeiros, a antiga base da monarquia. Para Silva Jardim, pelo contrrio, passar Repblica era o principal. Ele via os fazendeiros como uma espcie de reserva dos republicanos.

A questo histrica que o Imprio, acuado pelo movimento abolicionista, se chocara com sua prpria base e a destrura, com a Abolio.

Do ponto de vista poltico, isso se manifestou atravs da queda de Joo Alfredo e das dificuldades para conseguir quem chefiasse um novo gabinete sucessivamente, o imperador, que voltara da Europa, fracassou ao convidar o conselheiro Manuel Correia, depois o visconde de Cruzeiro, e, depois, o visconde de Vieira da Silva, todos do Partido Conservador.

Convidou, ento, um membro do Partido Liberal, o famoso Conselheiro Saraiva mas este, um monarquista histrico, disse ao imperador que preparasse o pas para a Repblica. Segundo o relato de Saraiva, o imperador perguntou: "e minha filha?", ao que ele respondeu: "O reinado de vossa filha no deste mundo" (cf. Heitor Lyra, "Histria da Queda do Imprio", Tomo I, Companhia Editora Nacional, So Paulo, 1964, p. 343).

Assim, quase por eliminao, o gabinete ficou para o liberal Afonso Celso o visconde de Ouro Preto - que ficou na Histria como o poltico mais obtuso que o Imprio teve frente de um gabinete, incapaz de perceber o que estava acontecendo ou mesmo o que j tinha acontecido, como mostram as suas memrias.

Entretanto, quando o gabinete Joo Alfredo caiu, Patrocnio percebeu que a poltica que at ento empreendera que tirava o centro da Repblica para se concentrar na resistncia aos ex-senhores de escravos no era vivel. Ou, possvel que tenha pensado: no eramaisvivel. Se foi isso, ele estava errado em pensar que alguma vez fosse vivel tal poltica. Simplesmente ela no correspondia ao conjunto de necessidades do pas naquele momento. Mas, seja l qual tenha sido o pensamento de Patrocnio no entraremos aqui, por desnecessrio e por falta de espao, em seus escritos e pronunciamentos posteriores o resultado prtico foi o mesmo: sua reintegrao ao movimento republicano em junho de 1889.

Assim, no dia 11 de junho de 1889, ele escreveu:

"Mas, entre Isabel, a Redentora, e o nosso corao, est a nossa Ptria, que maior que ela e que ns outro. Entre os interesses pessoais da princesa e a nossa dedicao, esto os interesses sagrados da liberdade nacional. Nunca prometemos sacrificar esta por amor daquela. (...) No prometemos nunca apoio cego e obstinado; no prometemos o futuro da nao brasileira, que no nosso, em holocausto ao dia 13 de maio" (Cidade do Rio, "Notcias de Isabel, a Redemptora", 11/06/1889, primeira pgina).

Assim terminava a disputa entre duas polticas, dentro dos republicanos. Ainda haveria outra: aquela entre os "evolucionistas", liderados por Quintino Bocaiva, e os "revolucionaristas", liderados por Silva Jardim, que atravessa 1889, at 15 de novembro, apesar da vitria de Bocaiva no Congresso Republicano de maio daquele ano.

Mas Patrocnio no seria e no foi - um "republicano de ltima hora". E no guardaria ressentimentos em relao Silva Jardim os dois estariam juntos na Proclamao da Repblica. Depois, seria de Patrocnio o obiturio mais famoso de Silva Jardim:

"Bela sepultura o vulco, extraordinrio destino o do grande brasileiro; at para morrer converteu-se em lava".

Continua na prxima edioO nascimento da Repblica e os jabutis em cima das rvores (4)Continuao da edio anterior

H certas questes historiogrficas, no Brasil, que parecem beirar a maluquice o que uma consequncia da intensa luta ideolgica, que sempre houve, cada vez mais intensa, sobre a Histria do BrasilCARLOS LOPESPassemos a outra descoberta do sr. Laurentino Gomes:

"O padre Diogo Antnio Feij, ministro da Justia e depois regente do Imprio, promoveu uma profunda reforma nas Foras Armadas. O Exrcito foi praticamente dissolvido. Em seu lugar organizou-se a Guarda Nacional, sob controle civil, inspirada nas milcias de cidados da Revoluo Francesa. A ptria em armas zelaria pela prpria segurana"(cf. Laurentino Gomes, "1889", Ed. Globo, 2013 p. 84).

A ideia do Padre Feij influenciado pelas milcias da Revoluo Francesa to fantstica que talvez seja uma tentativa de homicdio por matar as pessoas de rir.

No que Feij fosse um tolo ou ignorasse as revolues do seu tempo (nasceu em 1784), como mostram as edies do jornal que publicou em So Paulo, "O Justiceiro" (h uma coleo na Hemeroteca Digital Brasileira).

Mas a sua grande preocupao, como ministro da Justia e como regente, no era democratizar a defesa nacional e muito menos atravs da Guarda Nacional.

J em 1835, logo depois de assumir a Regncia, Feij estava to dedicado a reprimir as revoltas que se alastravam pelo pas talvez seja mais preciso dizer, desesperado que resolveu pedir a interveno inglesa e francesa,e mesmo portuguesa(ou seja, da antiga metrpole da qual o Brasil se separara havia pouco), contra a "cabanagem", no Par.

Esse pedido era inteiramente ilegal, como o prprio Feij disse aos embaixadores estrangeiros.

O documento que transcrevemos abaixo o relatrio do embaixador ingls no Brasil ao seu chefe, o ministro do Foreign Office em Londres o notrio Henry Temple, visconde Palmerston - sobre a audincia com Feij:

"De: Henry Stephen Fox, Ministro de Sua Majestade Britnica no Rio de Janeiro

"Para: Lorde Palmerston

"Data: 17 de dezembro de 1835

"Local: Rio de Janeiro

"Despacho n 61

"Secreto e Confidencial

"Excelncia

"H alguns dias, eu e Monsieur Pontois, ministro francs na Corte do Brasil, fomos convidados pelo Regente Feij para uma conferncia particular, quando Sua Excelncia nos fez a seguinte comunicao confidencial:

"Ele disse que o Governo brasileiro estima que possa reunir no Par, por volta do ms de abril prximo, uma fora de 3.000 homens, compreendendo 2.000 soldados regulares; que ele calcula que essa fora seja suficiente para retomar a cidade do Par e vizinhanas; mas que, no obstante, para tornar o xito mais seguro e para privar os rebeldes de qualquer esperana de resistncia, ele desejaque a Inglaterra, a Frana e Portugal faam reunir no Par, aproximadamente no mesmo perodo, e como se fosse por acaso, uma esquadra de navios de guerra, transportando uma tropa de cerca de 1.000 soldados regulares, aptos para servio em terra, quer dizer, cerca de 300 a 400 de cada nao. Ele prope que esta fora deveria ficar de prontido para cooperar com as tropas brasileiras, a pedido e discrio das autoridades civis e militares brasileiras no comando e que seriam mais particularmente empregadas na ocupao temporria dos postos do Maraj, Camet e outros lugares nos arredores da cidade do Par; tal cooperao, ele julga, seria suficientemente justificada, ao que parece, pelo interesse geral da humanidade e civilizao, como tambm pelos motivos particulares de proteger nossos respectivos conterrneos e de coloc-los novamente de posse de suas residncias e propriedades sem que fosse de conhecimento pblico que as medidas foram usadas a pedido do Governo brasileiro."Monsieur Pontois e eu concordamos imediatamente e declaramos ao Regente que estvamos prontos para transmitir seu comunicado a nossos respectivos governos, mas que no espervamos que qualquer resultado sucedesse a no ser que o comunicado fosse feito por escrito (o que poderia ser feito de maneira igualmente confidencial) para que pudssemos informar nossos Governos exatamente sobre a extenso da cooperao que Sua Excelncia desejava obter, seus limites e objetivos expressos; e ainda, para justificar essa cooperao, caso se concretizasse e fosse contestada por qualquer parte no Brasil. O Regente nos respondeu que, como a Constituio do Imprio proibia taxativamente a admisso de tropas estrangeiras no territrio brasileiro sem o consentimento da Assembleia Geral (o que no poderia ser alcanado agora em tempo hbil), ele estava impossibilitado de colocar sua proposta por escrito e que, alm disso, seria desonroso para o Governo tornar oficialmente conhecido que eram incapazes, sem ajuda estrangeira, de dominar um punhado de rebeldes desgraados e que, portanto, ele somente poderia solicitar que comunicssemos aos nossos Governos o que ocorreu nessa entrevista, como o assunto de uma conversa confidencial com o Regente, deixando ao encargo dos nossos Governos enviar aos comandantes de suas respectivas foras navais aquelas instrues que achassem convenientes sobre o posto em questo.

"Monsieur Pontois e eu prometemos ao Regente, portanto, que faramos o comunicado aos nossos Governos na forma confidencial que ele desejava, mas no lhe oferecemos qualquer certeza, at onde valesse nossas opinies, de ser atendido seu pedido de cooperao. O Regente declarou, em resposta a uma pergunta minha, que nem os ministros brasileiros residentes na Inglaterra e na Frana, nem o Marqus de Barbacena, agora encarregado de uma misso especial na Inglaterra, seriam informados do comunicado que ele acabava de nos dar em confidncia.

"O acima exposto o contedo da conversa com o Regente, do qual eu e M. Pontois concordamos em fazer um sumrio depois que se conclusse a entrevista. O mnimo que posso fazer, claro, transmitir o comunicado a Vossa Excelncia, mas no creio que haja a menor probabilidade de o Governo de Sua Majestade ou de o Governo Francs aquiescerem aos desejos do Regente, ou consentirem em comandar uma operao militar com base em um pedido to informal e vagamente feito. A proposta do Regente , como ele mesmo admitiu, uma violao direta das leis e da Constituio do pas e seria, claro, imediatamente rejeitada, e a culpa da interveno no autorizada atribuda aos poderes estrangeiros se achasse conveniente faz-lo.

"Devo observar, tambm, que no creio que haja a menor probabilidade de que o Governo brasileiro consiga, agora ou no futuro, reunir diante do Par uma fora regular to grande como a que o Regente propunha contar.

"O ministro portugus no foi convidado pelo Regente para a mesma conferncia comigo e com o ministro francs, porm, quero crer que uma comunicao semelhante j lhe tenha sido feita, ou est prestes a s-lo, em separado. Empregar no Par os ingleses ou franceses, junto com uma fora portuguesa, tornaria ainda mais questionvel esse procedimento, considerando na peculiar ciumeira da influncia e dos propsitos que Portugal ainda nutre por este pas.

"Arrisco-me a sugerir, sem prejudicar o Regente Feij, cuja conversa comigo e com M. Pontois foi particular e confidencial, que seria prudente no mencionar esse assunto ao Marqus de Barbacena, que provavelmente estar em contato com Vossa Excelncia sobre outras questes."(cf. David Cleary (org.),"Cabanagem - Documentos Ingleses", trad. Cristine Moore Serro, SECULT/IOE, 2002, p. 188).

ORSAY - PARIS

No reproduzimos esse relatrio para mostrar que o padre Feij era entreguista mas para mostrar a que ponto chegava o desespero em 1835.

O regente, alis, no tinha o apoio da principal figura do Exrcito - e principal regente do triunvirato que antecedera Feij - general Francisco de Lima e Silva, ou de seus irmos, generais Jos Joaquim e Manuel da Fonseca de Lima e Silva, embora tenha contado com a colaborao do filho do primeiro, major Lus Alves de Lima (o futuro Duque de Caxias), na organizao da Guarda Nacional.

O outro motivo porque reproduzimos o relatrio do embaixador ingls que h certas questes historiogrficas, no Brasil, que parecem beirar a maluquice o que uma consequncia da intensa luta ideolgica, que sempre houve, cada vez mais intensa, sobre a Histria do Brasil.

Quando o ingls David Cleary, diretor no Brasil da ONG "ambientalista" norte-americanaThe Nature Conservancy (TNC) sustentada pelo Goldman Sachs, BP, ExxonMobil, Morgan Stanley, Phillips Alaska, Capital Research and Management Company, Duke Energy e outras entidades filantrpicas - publicou o relatrio do embaixador ingls, a mdia por aqui fez um escndalo. Segundo vrios elementos, Cleary havia revolucionado, com uma descoberta indita, os estudos sobre a Regncia, e, especialmente, sobre a Cabanagem, descobrindo algo completamente indito. Pretensamente, queriam mostrar como Feij era submisso e como era "ordinria" a nossa histria. O livro de Cleary foi, em seguida, traduzido e publicado pela Secretria de Cultura do Estado do Par.

No procure o leitor alguma coerncia nesse magote de entreguistas acusando Feij de... entreguista. A coerncia no nem pode ser a especialidade de quem se coloca, a rigor, contra a Histria. O ideal dessa malta que a Histria no existisse ou chegasse ao fim, desde que com os seus amos por cima do pas e da Humanidade.

A coletnea de Cleary tem coisas interessantes como a ntegra do relatrio que transcrevemos.

Porm, no existe novidade na reunio de Feij com esses embaixadores. Em 1937, Alberto Rangel revelara esse encontro, a partir de arquivos diplomticos franceses. O livro de Rangel foi publicado, portanto, 65 anos antes da publicao do livro de Leary (cf. Alberto Rangel,"No rolar do tempo opinies e testemunhos respigados no Arquivo do Orsay Paris", ed. Jos Olympio, Coleo Documentos Brasileiros, 1937).

Em 1942, Octvio Tarqunio de Sousa, baseado em Rangel, descreveu outra vez a audincia de Feij com os dois embaixadores. O trecho abaixo foi extrado da segunda edio de seu livro sobre Feij, stimo volume da"Histria dos Fundadores do Imprio do Brasil":

"Na mesma carta de 10 de dezembro de 1835 ao marqus de Barbacena, [Feij] dava notcia do que fizera, esperando ter no Par, em abril de 1836, 2.000 homens de terra e 1.000 de mar, com uma esquadrilha de 12 vasos pequenos, uma corveta e um barco de vapor, ao mesmo tempo que pedia o engajamento de 500 homens na Europa, para o mesmo fim.E to preocupado estava com as desordens no extremo Norte, que no trepidou em entabular com os ministros da Frana, da Inglaterra e de Portugal acreditados junto ao seu governo negociaes no sentido de obter a cooperao de foras navais desses pases, visando sobretudo a impressionar os rebeldes."Pontois, representante diplomtico da Frana, narrando esse episdio, em nota ao Quai dOrsay, informou que, juntamente com o ministro ingls, se dispusera a aceitar a proposta, mas com a condio do governo brasileiro fazer o pedido por escrito,ao que se negara Feij, invocando a Constituio que no permitia a admisso de tropas estrangeiras no territrio nacional sem autorizao da Assemblia Geral." (cf. op. cit., p. 259/260, grifos nossos).

O relato do embaixador francs , portanto, idntico ao do embaixador ingls. A revelao do relatrio deste ltimo, em 2002, no acrescentou novidade. O desastre somente no se consumou porque Feij, ao contrrio de outros governantes, respeitou algum limite, quando os embaixadores pediram um documento assinado, ainda que secreto (se h algo que Feij conseguia perceber era o cheiro da chantagem).

Interessante o comentrio de Octvio Tarqunio de Sousa:

"Eis at onde o arrastavam alguns dos defeitos mais constantes do seu carter e temperamento: pessimismo catastrfico, falta de confiana nos outros, impacincia que se transformava por vezes em precipitao. Sem o auxlio das foras navais estrangeiras o Par voltou pouco tempo depois tranquilidade. Por que, pois, esse apelo infeliz?"(cf. Octvio Tarqunio de Sousa,Histria dos Fundadores do Imprio do Brasil Vol. VII, Ed. Jos Olympio, Rio, 2 edio, 1957, p. 260).

MODELO

Foi em meio a esse desespero que Feij apresentou o projeto da Guarda Nacional.

Na sua bibliografia, o sr. Gomes omite Jos Honrio Rodrigues. Talvez porque seja um historiador "muito nacionalista" - ou talvez porque Jos Honrio fosse um torcedor muito fantico do Flamengo.

Mas ele omite, tambm, os historiadores monarquistas, por exemplo, Octvio Tarqunio de Sousa e sua monumental"Histria dos Fundadores do Imprio do Brasil".

Eis como Octvio Tarqunio relata a criao da Guarda Nacional:

"Impunha-se processar e castigar os que atentaram contra a ordem pblica, e para isso Feij expedia os atos necessrios. Mas era mister organizar a defesa da sociedade com a distribuio de armas aos elementos de confiana,a trs mil cidados com a qualidade de eleitor.Antecipava-se o ministro da Justia providncia julgada salvadora e que estava em discusso nas Cmaras. Essa grande providncia em breve se concretizaria na lei de 18 de agosto, que estabeleceu no Brasil a Guarda Nacional, e cujo artigo 1 dizia: As guardas nacionais so criadas para defender a Constituio, a Liberdade, Independncia e Integridade do Imprio; para manter a obedincia s leis. conservar ou restabelecer a ordem e a tranquilidade pblica; e auxiliar o Exrcito de Linha na defesa das fronteiras e costas."(Octvio Tarqunio de Sousa,Histria dos Fundadores do Imprio do Brasil Vol. VII, Ed. Jos Olympio, Rio, 2 edio, 1957, p. 166, grifo nosso).

Tarqunio observa que Evaristo da Veiga (nessa poca, prcer do "partido moderado" e principal apoiador da candidatura Feij ao cargo de regente - mas, acrescentamos ns, sempre um romntico) era entusiasmado pela ideia de uma "milcia cidad" que seria "a nao toda em armas" e - ainda nas palavras de Evaristo - "um fruto da revoluo liberal da Frana e dos Estados Unidos".

Mas no uma surpresa que Evaristo - um dos trs deputados que elaboraram a verso final do caudaloso projeto que criou a Guarda Nacional, alis, "as guardas nacionais" - tivesse esse tipo de iluso. Evaristo tambm acreditava que a monarquia no Brasil era "a repblica sem o nome de republicano". Alis, no sexto volume deHistria dos Fundadores do Imprio do Brasil, Octvio Tarqunio faz uma observao pertinente sobre Evaristo da Veiga, em relao a Feij, nessa poca:

" curioso como Evaristo, homem de tato, com altas qualidades de condutor poltico, no via os defeitos do padre paulista, a sua falta de ductilidade, a sua incapacidade para um posto em que a atitude habitual deveria ser a de rbitro das correntes de opinio, fiel de balana no jogo dos interesses opostos"(op. cit., Vol. VI, p. 164).

O problema que todas as alternativas possveis eram piores do que Feij. Portanto, compreensvel a atitude de Evaristo.

Prossegue o grande historiador, sobre a fundao da Guarda Nacional:

"O modelo mais direto dos nossos legisladores regenciais foi o francs,da poca de Lus Filipe(...). Pelos termos da lei que a instituiu, a Guarda Nacional vinha substituir as foras policiais, extintos todos os corpos de milcias, guardas municipais e ordenanas, e, ao mesmo tempo, fazer as vezes das foras regulares do exrcito e at da marinha, reduzidas ao mnimo possvel e pouco merecedoras da confiana do governo, vista dos acontecimentos recentes. Dado o processo do desenvolvimento histrico brasileiro, a Guarda Nacional no teria o carter de burguesia armada como na Frana e com o correr dos tempos seria instrumento do mandonismo da grande propriedade territorial"(op. cit., Vol. VII, p. 166, grifo nosso).

Talvez o sr. Gomes pense que Lus Filipe de Orleans o monarca da oligarquia financeira da Frana e a Revoluo Francesa so a mesma coisa, pelo fato de que ele, e seu pai, tentaram dar um golpe nos primos Bourbons (Lus XVI e o futuro Lus XVIII), apoiando formalmente a Revoluo.

Mas isso no chega a ser um pensamento. At porque o golpe no deu certo.

Continua na prxima edio