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7/30/2019 O Onibus Branco http://slidepdf.com/reader/full/o-onibus-branco 1/2 O ônibus branco Por Ferréz Entrei, já estava lotado, não havia notado a semelhança dos passageiros, eu estava esgotado, não sabia mais por onde correr, os dois inimigos atrás de mim não acertaram os tiros, estou intacto fora o cansaço, nem vi de onde eles saíram, vieram cobrar treta do cara errado, eu num tinha nada a ver com aquelas fitas, vou sumariar tudo isso hoje mesmo quando chegar na quebra. Olhei para o lado e vi o meu parceirinho, não acreditei, Marquinhos ali do meu lado. E aí parceiro como vai? Tamo indo, mó saudade Nal, me dá um abraço aqui. Claro, só você mesmo pra me chamar de Nal, porra mó saudade, por onde tinha andado. Ah! Desde aquele dia da pizzaria que meu anjo de guarda se distraiu eu fiquei por aqui, to nesse ônibus, junto com outros, olha lá o China, já tá tentando abrir a porta, o motorista fica que fica louco. Pode crê! Oh! China... E aí Ferréz. Meu, como vai você cara? Tô indo, essa porra desse motorista num abre a porta, eu vou zuar ele. Meu, mas você e o Marquinhos no mesmo ônibus, aí já é coincidência demais. Nada é coincidência Ferréz, como tá indo meu irmão lá, e o meu velho e minha mãe? Tão bem, eles ficaram bem triste né, mas tão indo, o Chininha tá lá, andando de moto como sempre, ele anda muito com o Dentinho. Fala uma coisa pra ele, véio. Fala o que China? Fala que num compensa, num compensou pra mim, eu tô com saudade, abraça eles pra mim. Pode deixar, esse ônibus tá indo pra onde? É bom você num sabê. Mas Marquinhos... Ferréz se liga quem tá lá no banco da frente. Quem? O Wilhiam. Porra num acredito, chama ele aqui, fomos todos criados juntos, num acredito que ele tá aqui também. Só tem um problema, ele num pode passar prá essa parte do ônibus, ele tem que ficar lá na frente, cê sabe né ele aprontou um pouco. Num tô entendendo Marquinhos, como assim? Bom, lá com ele tá o Rodriguinho, o Táta, o Dunga, o Edinho. Pucha, tá todo mundo aqui, o Rodriguinho eu tenho que ver, ele foi um dia depois que tomamos refrigerante e comemos mó churrascada em frente a padaria, queria perguntar pra ele se... Nada disso Ferréz, agente num pode falar com eles, mas o ônibus tá lotado de amigo nosso até lá na frente, vai reparando...

O Onibus Branco

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7/30/2019 O Onibus Branco

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O ônibus brancoPor Ferréz

Entrei, já estava lotado, não havia notado a semelhança dos passageiros, eu estavaesgotado, não sabia mais por onde correr, os dois inimigos atrás de mim não acertaram ostiros, estou intacto fora o cansaço, nem vi de onde eles saíram, vieram cobrar treta do caraerrado, eu num tinha nada a ver com aquelas fitas, vou sumariar tudo isso hoje mesmoquando chegar na quebra.

Olhei para o lado e vi o meu parceirinho, não acreditei, Marquinhos ali do meu lado.― E aí parceiro como vai?― Tamo indo, mó saudade Nal, me dá um abraço aqui.

― Claro, só você mesmo pra me chamar de Nal, porra mó saudade, por onde tinhaandado.

― Ah! Desde aquele dia da pizzaria que meu anjo de guarda se distraiu eu fiquei poraqui, to nesse ônibus, junto com outros, olha lá o China, já tá tentando abrir a porta, omotorista fica que fica louco.

― Pode crê! Oh! China...― E aí Ferréz.―Meu, como vai você cara?― Tô indo, essa porra desse motorista num abre a porta, eu vou zuar ele.―Meu, mas você e o Marquinhos no mesmo ônibus, aí já é coincidência demais.― Nada é coincidência Ferréz, como tá indo meu irmão lá, e o meu velho e minha

mãe?― Tão bem, eles ficaram bem triste né, mas tão indo, o Chininha tá lá, andando de

moto como sempre, ele anda muito com o Dentinho.― Fala uma coisa pra ele, véio.― Fala o que China? ― Fala que num compensa, num compensou pra mim, eu tô

com saudade, abraça eles pra mim.― Pode deixar, esse ônibus tá indo pra onde?― É bom você num sabê.―Mas Marquinhos...― Ferréz se liga quem tá lá no banco da frente.―

Quem?― O Wilhiam.― Porra num acredito, chama ele aqui, fomos todos criados juntos, num acredito que

ele tá aqui também.― Só tem um problema, ele num pode passar prá essa parte do ônibus, ele tem que

ficar lá na frente, cê sabe né ele aprontou um pouco.― Num tô entendendo Marquinhos, como assim?― Bom, lá com ele tá o Rodriguinho, o Táta, o Dunga, o Edinho.― Pucha, tá todo mundo aqui, o Rodriguinho eu tenho que ver, ele foi um dia depois

que tomamos refrigerante e comemos mó churrascada em frente a padaria, queria perguntarpra ele se...

― Nada disso Ferréz, agente num pode falar com eles, mas o ônibus tá lotado deamigo nosso até lá na frente, vai reparando...

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  ― Pode crê! Olha o Peixe lá, eita mano firmeza, olha o Boca de Lata que legal, putzo Rattão tinha que tá aqui, os parceiros dele tão de monte aqui também, mas como tá todomundo junto assim se...

― Ó barato é esse Nal, desculpa agora é Ferréz né?― Pode chamar de Nal mesmo, nóis num tem essa.

― Então manda um abraço lá pra minha irmã Fabiana, pra Ana Lucia e pra Mimi, dizpra minha mãe se cuidar que eu amo ela de montão, e vê se lembra disso eu vou voltar,quando você tiver a maior alegria da sua vida, o resto dos parceiros não podem falar comvocê, eles sempre escolhem um pra falar, então é isso, agora chegou sua hora de descerirmão, já deram o sinal.

―Mas eu queria te dizer que...― Desce Nal, eu sei que você sente minha falta, nós sentimos a sua também, mas

esse ônibus por enquanto não tem destino pra você, tchau Nal.

Desci, andei por uma rua escura muito tempo, até achar uma claridade, parei e me deiconta de que a maior alegria da minha vida vai ser quando meu filho nascer, fechei os olhos

e abracei todos meus amigos que se foram.Cheguei em casa e ainda não consegui parar de chora, pois sei que o ônibus vai continuartendo novos passageiros, sempre, sempre, sempre.

 ______________________________________________________ Ferréz, nome literário de Reginaldo Ferreira da Silva, é uma homenagem a dois grandes heróis popularesbrasileiros: Virgulino Ferreira, o Lampião (FERRE) e Zumbi dos Palmares (Z).  Filho de uma empregada doméstica eum motorista, nasceu em 1975, em São Paulo. Autodidata ferrenho e leitor voraz de tudo que encontrava nasbibliotecas púbicas, sebos e bancas de jornal, Ferréz começou a escrever antes dos dez anos de idade, mas só em 1997lançou seu primeiro livro, um volume de poesia intitulado Fortaleza da desilusão, edição independente patrocinada pelaempresa Ética Manpower, onde trabalhava. Antes disso, sem nunca se separar dos livros, exerceu vários ofícios. Entre

trabalhos fixos e temporários em uma padaria, vendendo vassouras ou camisetas, como balconista de lanchonete,arquivista ou lixando paredes na Av. Paulista, continua a ser um freqüentador assíduo das bibliotecas públicas ondepega emprestado livros de autores que influenciariam sua prosa: Dostoievski, Herman Hesse e Gorky. A notoriedade,contudo, só viria em 2000 com o lançamento de Capão pecado (Labortexto), romance ambientado na periferia paulista,mais especificamente no Capão Redondo, comunidade da Zona Sul da capital onde Ferréz cresceu e continuamorando mesmo depois de ter sido reconhecido como uma das maiores revelações da literatura brasileira das últimasdécadas. Em seu segundo romance,  Manual prático do ódio (Objetiva, 2003),  aperfeiçoa suas habilidades narrativas,unindo experiência, observação e imaginação em um novo mergulho no cotidiano violento da periferia paulista.Projeta-se com estas primeiras obras, que logo se seguiriam de Verde esmeralda (Objetiva, 2005), uma voz radical querelata diretamente do gueto o verdadeiro “negro drama” dos moradores da periferia. Ligado ao movimento hip hop,em 1999 funda o 1DASUL, movimento cultural que atua nos bairros da periferia. O nome alude à idéia de que osparticipantes do movimento são todos iguais, são todos “um” lutando pelo mesmo ideal de inclusão e dignidade naZona Sul. Criado no gueto, investiu incansavelmente em sua vocação, mas percebeu logo que a caminhada não podia

ser solitária. Resolveu resgatar outras vozes que tivessem o mesmo berço humilde e se expressassem através daliteratura marginal-mente. Tornou-se, então, criador, organizador e editor do projeto Caros Amigos /Literatura Marginal ,revista que reúne textos e desenhos de moradores das periferias de cidades brasileiras (No 1 em 2 001, No 2 em 2002 eNo 3 em 2004). Mais recentemente, este esforço assumiu uma dimensão ainda maior, e Ferréz organizou o volumeLiteratura marginal: talentos da escrita periférica  (Agir, 2005). Criador e guerreiro, dedica-se hoje exclusivamente à literaturae à luta por transformar em realidade sua utopia de um mundo mais justo e menos desigual. A paixão de narrarfunciona como uma possibilidade de salvação. Para Ferréz, a salvação está em levar os livros para a periferia e aperiferia para os livros. Os textos presentes nesta edição, publicadas ao longo do ano de 2002 na revista Caros Amigos ,são uma boa introdução para a leitura de seus romances. Neles encontramos a violência e a tristeza, a exploraçãobárbara dos mais pobres pelos mais ricos, a morte e a luta contra o sistema.

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