O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Traduo de Leonor Scliar-Cabral

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    JORGE LUIS BORGESOBRAS COMPLETASVOLUME II1952-1972Ttulo do original em espanhol: Jorge Luis Borges - Obras Completas Copyright 1998

    by Maria Kodama Copyright 1999 das tradues by Editora Globo S.A.1 Reimpresso-9/99 2 Reimpresso-12/00Edio baseada em Jorge Luis Borges - Obras Completas, publicada por Emec Editores

    S.A., 1989, Barcelona - Espanha.Coordenao editorial: Carlos V. FriasCoordenao editorial da edio brasileira: Eliana SAssessoria editorial: Jorge SchwartzReviso das tradues: Jorge Schwartz e Maria Carolina de AraujoPreparao de originais: Maria Carolina de AraujoReviso de textos: Mrcia MeninProjeto grfico: Alves e Miranda Editorial Ltda.

    Fotolitos: AM Produes Grficas Ltda.Agradecimentos a Adria Frizzi, Ana Gimnez, Christopher E Laferl,Edgardo Krebs,lida Lois, Eliot Weinberger, Enrique Fierro, Francisco Achcar,Haroldo de Campos, Ida

    Vitale, Jos Antnio Arantes e Maite CeladaDireitos mundiais em lngua portuguesa, para oBrasil, cedidos EDITORA GLOBO S.A.

    Avenida Jaguar, 1485CEP 05346-902 - Tel.: 3767-7000, So Paulo, SPe-mail: [email protected] e acabamento: Grfica Crculo CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte - Cmara

    Brasileira do Livro, SPBorges, Jorge Luis, 1899-1986.Obras completas de Jorge Luis Borges, volume 2 / Jorge Luis Borges. - So Paulo :

    Globo, 2000.Ttulo original: Obras completas Jorge Luis Borges. Vrios tradutores.v. 1. 1923-1949 / v. 2.1952-1972 ISBN 85-250-2877-0 (v. 1) ISBN 85-250-2878-9 (v. 2

    1. Fico argentina 1. Ttulo.CDD-ar863.4ndices para catlogo sistemtico 1. Fico : Sculo 20 : Literatura argentina ar863.4

    1. Sculo 20 : Fico : Literatura argentina ar863.4O OUTRO, O MESMO

    El Otro, El MismoTraduo de Leonor Scliar-Cabral

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    ndice

    Prlogo

    InsniaTwo english poemsA noite cclicaDo inferno e do cuPoema conjecturalPoema do quarto elementoA um poeta menor da antologiaPgina para recordar o coronel Surez, vencedor em JunnMateus 25,30

    Uma bssolaUma chave em SalnicaUm poeta do sculo XIIIUm soldado de UrbinaLimitesBaltasar GracinUm saxo (449 a.D.)O GolemO tango

    O outroUma rosa e MiltonLeitoresJoo 1,14O despertarA quem j no jovemAlexander SelkirkOdisseia, livro vigsimo terceiroEleSarmientoA um poeta menor de 1899TexasComposio escrita em um exemplar da Gesta de BeowulfHengist cyningFragmentoA uma espada em York MinsterA um poeta saxoSnorri Sturluson (1179-1241)A Carlos XII

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    Emanuel SwedenborgJonathan Edwards (1703-1785)EmersonEdgar Allan PoeCamden, 1892Paris, 1856Rafael Cansinos-AssnsOs enigmasO instanteAo vinhoSoneto do vinho1964A fomeO forasteiroA quem me est lendoO alquimista

    AlgumEvernessEwigkeitdipo e o enigmaSpinozaEspanhaElegiaAdam Cast ForthA uma moeda

    Outro poema dos donsOde escrita em 1966O sonoJunnUm soldado de Lee (1862)O marManh de 1649A um poeta saxoBuenos Aires

    Buenos AiresAo filhoOs compadritos mortos

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    Prlogo

    Dentre os muitos livros de versos que minha resignao, meu descuido e s vezesminhaixo foram rabiscando,O Outro, O Mesmo o que prefiro. A esto o "Outropoema dos

    dons", o "Poema conjectural", "Uma rosa e Milton" e "Junn", que, se aparcialidade nome engana, no me desonram. A esto tambm meus hbitos: BuenosAires, o culto aosancestrais, a germanstica, a contradio do tempo que passa e daidentidade que perdurameu estupor de que o tempo, nossa substncia, possa sercompartilhado.

    Este livro no outra coisa seno uma compilao. Os poemas foram sendoescritosara diversosmoods e momentos, no para justificar um volume. Disso decorremasrevisveis monotonias, a repetio de palavras e talvez de linhas inteiras. Em seu cencu

    da rua Victoria, o escritor chamemo-lo assim Alberto Hidalgo assinalou meucostumde escrever a mesma pgina duas vezes com variaes mnimas. Lamento ter-lherespondid

    que ele no era menos binrio, com a ressalva, porm, de que, em seu casoparticular, arimeira verso era de outro. Tais eram as deplorveis maneiras daquelapoca, que muito

    olham com nostalgia. Todos queramos ser heris de episdios triviais.A observao de Hidalgo era justa: "Alexander Selkirk" no difere notoriamente de

    "Odisseia, livro vigsimo terceiro", "O punhal" prefigura a milonga que intitulei "Uma facno Norte" e talvez a narrativa "O encontro". O estranho, o que jamais entenderei, queminhas segundas verses, como ecos apagados e involuntrios, costumam serinferiores srimeiras. Em Lubbock, na fronteira do deserto, uma moa alta meperguntou se, ao

    escrever "O Golem", eu no havia intentado uma variao de "As runas circulares";

    respondi-lhe que tivera de atravessar todo o continente para receber essarevelao, queera verdadeira. Ambas as composies, alm disso, tm suas diferenas; osonhadorsonhado est em uma, a relao da divindade com o homem e talvez a do poetacom a obrana que depois redigi.

    As lnguas dos homens so tradies que carregam algo de fatal. Os experimentosindividuais so, de fato, mnimos, salvo quando o inovador se resigna a lavrar umespcimde museu, um jogo destinado discusso dos historiadores da literatura ou aomeroescndalo, como oFinnegans Wake ou asSoledades.Atraiu-me s vezes a tentaodetraduzir para o espanhol a msica do ingls ou do alemo; se tivesse executado essaaventura quase impossvel, eu seria um grande poeta, como aquele Garcilaso que nos deu msica da Itlia, ou como aquele annimo sevilhano que nos deu a de Roma, ou comoDaro, que nos deu a da Frana. No passei de um rascunho urdido com palavras depoucslabas, que sensatamente destru.

    curiosa a sorte do escritor. No incio barroco, vaidosamente barroco, e depoisdealguns anos pode conseguir, se os astros forem favorveis, no a simplicidade, que nonada, mas a modesta e secreta complexidade.

    Menos que as escolas, educou-me uma biblioteca a de meu pai ; apesar dasvicissitudes do tempo e das geografias, creio no ter lido em vo aqueles queridosvolume

    o "Poema conjectural", verificar-se- a influncia dos monlogos dramticosde Robert

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    rowning; em outros, a de Lugones e, assim o espero, a de Whitman. Ao reverestas pginasenti-me mais prximo do simbolismo que das seitas ulteriores que suacorrupoengendrou e que agora o negam.

    Pater escreveu que todas as artes propendem condio da msica, talvez porquenelao fundo a forma, j que uma melodia no pode referenciar como o podem as linhasgeraide um conto. A poesia, admitido esse ditame, seria uma arte hbrida: a sujeio deumsistema abstrato de smbolos, a linguagem, a fins musicais. Os dicionrios tm a culpadesse conceito errneo. Costuma-se esquecer que so repertrios artificiosos, muitoosteriores s lnguas que ordenam. A raiz da linguagem irracional e de cartermgico

    O dinamarqus que articulava o nome de Thor e o saxo que articulava o nomede Thunorno sabiam se essas palavras significavam o deus do trovo ou o estrpito quesucede aorelmpago. A poesia quer voltar a essa antiga magia. Sem leis prefixadas,opera de modovacilante e ousado, como se caminhasse na escurido. Xadrez misterioso apoesia, cujotabuleiro e cujas peas mudam como em um sonho e sobre o qual meinclinarei depois demorto.

    J. L. B.

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    Insnia

    De ferro,de encurvadas vigas de enorme ferro tem de ser a noite,

    para que no a rebentem e a desenrazemas muitas coisas que meus abarrotados olhos viram,

    as duras coisas que insuportavelmente a povoam.

    Meu corpo fatigou os nveis, as temperaturas, as luzes:em vages de extensos trilhos,em um banquete de homens que se detestam,no fio rompido dos subrbios,em uma quinta quente de esttuas midas,na noite repleta onde abundam o cavalo e o homem.

    O universo desta noite contm a vastidodo esquecimento e a preciso da febre.

    Quero em vo distrair-me do corpoe do desvelar de um espelho incessanteque o prodigalize e que o espreitee da casa que repete seus ptiose do mundo que segue at um despedaado subrbiode becos onde o vento se cansa e de barro torpe.

    Em vo esperoas desintegraes e os smbolos que precedem o sonho.

    Segue a histria universal:os rumos minuciosos da morte nas cries dentrias,a circulao de meu sangue e dos planetas.

    (Odiei a gua crapulosa de um charco,detestei, ao entardecer, o canto do pssaro.)

    As fatigadas lguas incessantes do subrbio do Sul,lguas de pampa lixeira e obscena, lguas de execraono querem abandonar a memria.

    Lotes pantanosos, ranchos amontoados como ces, charcos de prata ftida:sou a detestvel sentinela dessas colocaes imveis.Arame, terraplenos, papis mortos, sobras de Buenos Aires.

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    Creio esta noite na terrvel imortalidade:nenhum homem morreu no tempo, nem mulher, nenhum morto,

    porque esta inevitvel realidade de ferro e de barrotem de atravessar a indiferena de quantos estejam adormecidos ou mortos

    ainda que se ocultem na corrupo e nos sculos e conden-los viglia espantosa.

    Toscas nuvens cor de borra de vinho infamaro o cu;h de amanhecer em minhas plpebras apertadas.

    Adrogu, 1936.

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    Two english poems1

    To Beatriz Bibiloni Webster de Bullrich

    I

    The useless dawn finds me in a deserted streetcorner; I have outlived the night.Nights are proud waves: darkblue topheavy waves laden with all hues of deep spoil, ladeith things unlikely and desirable.Nights have a habit of mysterious gifts and refusals, of things half given away, half

    ithheld, of joys with a dark hemisphere. Nights act that way, I tell you.The surge, that night, left me the customary shreds and odd ends: some hated friends to ch

    ith, music for dreams, and the smoking of bitter ashes. The things my hungry heart has no usefor.

    The big wave brought you.

    Words, any words, your laughter; and you so lazily and incessantly beautiful. We talked anyou have forgotten the words.

    The shattering dawn finds me in a deserted street of my city.Your profile turned away, the sounds that go to make your name, the lilt of your laughter:

    these are illustrious toys you have left me.I turn them over in the dawn, I lose them, I find them; I tell them to the few stray dogs and

    to the few stray stars of the dawn.Your dark rich life...I must get at you, somehow: I put away those illustrious toys you have left me, I want your

    hidden look, your real smile that lonely, mocking smile your cool mirror knows.

    II

    What can I hold you with?I offer you lean streets, desperate sunsets, the moon of the ragged suburbs.I offer you the bitterness of a man who has looked long and long at the lonely moon.I offer you my ancestors, my dead men, the ghosts that living men have honoured in marbl

    my fathers father killed in the frontier of Buenos Aires, two bullets through his lungs, beardeand dead, wrapped by his soldiers in the hide of a cow; my mothers grandfather justtwentyfour heading a charge of three hundred men in Peru, now ghosts on vanished horses

    I offer you whatever insight my books may hold, whatever manliness or humour my life.I offer you the loyalty of a man who has never been loyal.I offer you that kernel of myself that I have saved, somehow the central heart that deals

    not in words, traffics not with dreams and is untouched by time, by joy, by adversities.I offer you the memory of a yellow rose seen at sunset, years before you were born.I offer you explanations of yourself, theories about yourself, authentic and surprising news

    of yourself.I can give you my loneliness, my darkness, the hunger of my heart; I am trying to bribe you

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    ith uncertainty, with danger, with defeat.

    1934

    ___________________1 Dois poemas ingleses

    A Beatriz Bibiloni Webster de Bullrich

    I

    A intil alvorada me encontra em uma esquina deserta; sobrevivi noite. As noiteso ondas orgulhosas: ondas de pesada crista azul-escura cheias de tons de espliosfundos, cheias de coisas improvveis e desejveis. As noites tm o hbito demisteriosas ddivas e recusas, de coisas meio dadas, meio retidas, de alegrias comescuro hemisfrio. As noites procedem assim, creia-me. A vaga, nessa noite, deixou-m

    os pedaos e as sobras avulsas de costume: uns amigos odiados para bater papo,msica para sonhos e o fumegar de cinzas amargas. Coisas sem uso para meu corafaminto. A grande onda trouxe voc. Palavras, quaisquer palavras, seu riso; e voc, duma to preguiosa e incessante beleza. Conversamos e se esqueceu das palavras. Osestilhaos da alvorada me encontram em uma rua deserta de minha cidade. Seu perfique se desvia, os sons que compem seu nome, a cadncia de seu riso: ilustresbrinquedos que voc me deixou. Revolvo-os na alvorada, perco-os, encontro-os;revelo-os aos poucos ces erradios e s poucas estrelas erradias da alvorada. Sua

    preciosa vida obscura... Tenho de alcan-la, de algum modo: guardo esses ilustres

    brinquedos que voc me deixou, quero seu olhar oculto, seu sorriso real esse sorrissolitrio e zombeteiro que seu frio espelho conhece.

    II

    Com que posso det-la? Ofereo-lhe ruas decadas, ocasos desesperados, a lua dosubrbios maltrapilhos. Ofereo-lhe o amargor de um homem que por longo e longotempo contemplou a lua solitria. Ofereo-lhe meus ancestrais, meus mortos, osespectros que os vivos honraram em mrmore: o pai de meu pai morto na fronteira de

    Buenos Aires, duas balas nos pulmes, barbudo e morto, envolto por soldados em uma

    pele de vaca; o av de minha me apenas vinte e quatro anos a comandar umataque de trezentos homens no Peru, hoje espectros sobre cavalos extintos. Ofereo-lhqualquer intuio que meus livros tenham, qualquer hombridade ou humor de minhavida. / Ofereo-lhe a lealdade de um homem que jamais foi leal. / Ofereo-lhe esse mecerne que de algum modo preservei o corao central que no lida com palavras,no comercia com sonhos e no foi tocado pelo tempo, pela alegria, pelasadversidades. Ofereo-lhe a lembrana de uma rosa amarela vista no ocaso, anosantes de voc nascer. Ofereo-lhe explicaes de si mesma, teorias de si mesma,novidades autnticas e surpreendentes acerca de si mesma. / Posso lhe dar minha

    solido, minha treva, a fome de meu corao; estou tentando alici-la com incerteza,

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    com perigo, com derrota.(Traduo de Jos Antnio Arantes.)

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    A noite cclica

    A Sylvina Bullrich

    Sabiam-no os rduos alunos de Pitgoras:As estrelas e os homens voltam ciclicamente;

    Os tomos fatais repetiro a urgenteAfrodite de ouro e os tebanos e as goras.

    Em idades futuras oprimir o centauroO corao do lpita ao solpede casco;Quando Roma for p, na infinda noite, com ascoGemer, no palcio ftido, o minotauro.

    Toda a noite em mincias insone h de volver.

    A mo que isto redige renascer do igualVentre. Frreas armadas erguero o abissal.(David Hume de Edimburgo o mesmo quis dizer.)

    No sei se voltaremos em um ciclo segundo,Como voltam as cifras de uma frao peridica;Sei, porm, que uma obscura rotao pitagrica

    Noite aps noite deixa-me em um lugar do mundo.

    Que pertence aos bairros. Uma esquina esquecidaQue pode ser do norte, do sul, talvez do oeste,Que apresenta, porm, sempre uma taipa celeste,A figueira sombria e uma vereda rompida.

    A est Buenos Aires. O tempo, presenteandoCom ouro ou amor os homens, a mim apenas deixaEsta rosa apagada ou esta intil madeixaDe ruas que ecoam nomes mortos, evocando

    Em meu sangue: Laprida, Cabrera, Soler, Surez...Nomes em que retumbam (j secretas) as dianas,Repblicas, cavalos garbosos, as campanasDas felizes vitrias, as mortes militares.

    As praas demarcadas na noite sem senhorSo os profundos ptios de um rido palcioE suas ruas unnimes que engendram o espao,Corredores de sonho e de confuso temor.

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    Volta a noite cncava que decifra Anaxgoras;Volta-me carne humana a eternidade constanteE a lembrana, o projeto? de um poema incessante:"Sabiam-no os rduos alunos de Pitgoras..."

    1940

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    Do inferno e do cu

    O Inferno de Deus no necessitao resplendor do fogo. Quando o JuzoUniversal retumbar nas trombetas,a terra tornar pblicas as vsceras,

    do p ressuscitarem as naespara acatar a Boca inapelvel,os olhos no vero os nove crculosda montanha invertida; nem os plidos

    prados e seus asfdelos perenesonde a sombra do arqueiro ento persegue,eternamente, a sombra gil da cora;nem a loba de fogo que no nfimo

    pavimento do inferno muulmano

    anterior a Ado e aos castigos;nem violentos metais e nem sequermesmo a visvel treva de John Milton.

    No pesar odiado labirintode triplo ferro e fogo dolorososobre as almas atnitas dos rprobos.

    Nem o fundo dos anos tambm guardaum remoto jardim. Deus no requer,

    para alegrar os mritos do justo,orbes de luz, concntricas teoriasde tronos, potestades, querubins,nem o espelho ilusrio de uma msicanem as profundidades de uma rosanem o fulgor aziago de um somentede Seus tigres, tampouco o delicadode um ocaso amarelo no deserto,nem o sabor natal, antigo da gua.Em Sua misericrdia, nem jardinsnem luz de uma esperana ou de lembrana.

    No cristal de um sonho eu vislumbreio Cu e o Inferno todo prometidos:ao retumbar o Juzo nas trombetasltimas e o planeta milenriofor esquecido e bruscas j cessarem Tempo! tuas efmeras pirmides,teu colorido e linhas do passado

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    definiro na treva um rosto imvel,adormecido, fiel, inaltervel(o da amada talvez, qui o teu)e a contemplao desse incorruptvelrosto contguo, intacto e incessanteh de ser, para os rprobos, Inferno,

    porm para os eleitos, Paraso.

    1942

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    Poema conjectural

    O doutor Francisco Laprida, assassinadono dia 22 de setembro de 1829 pelos

    guerrilheiros de Aldao,pensa antes de morrer:

    Zunem as balas na ltima tarde.H vento frio e cinzas no vento,dispersam-se o dia e a batalhadisforme, e dos outros a vitria.Vencem os brbaros, vencem gachos.Eu, que estudei a fundo as leis e os cnones,eu, Francisco Narciso de Laprida,

    cuja voz declarou a independnciadestas cruis provncias, derrotado,de sangue e de suor manchado o rosto,sem temor ou esperana, j perdido,eu fujo at o Sul, por bairros ltimos.Tal como o capito do Purgatrioque, a p fugindo e ensangentando o cho,foi cegado e tombado pela morteonde um escuro rio perde o nome,

    assim hei de cair. Hoje o fim.A noite lateral dos vagos pntanosme espreita e me demora. Escuto os cascosde minha quente morte que me buscacom ginetes, com belfos e com lanas.

    Eu que almejei ser outro, ser um homemde sentenas, de livros, de ditames,a cu aberto jazerei nos charcos;

    porm me endeusa o peito inexplicvelum jbilo secreto. Por fim me vejocom meu destino sul-americano.A esta ruinosa tarde me levavao labirinto mltiplo de passosque meus dias teceram desde um diada infncia. Mas por fim eu descobria recndita chave de meus anos,o fado de Francisco de Laprida,a letra que faltava, esta perfeita

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    forma que soube Deus desde o princpio.No espelho desta noite que me alcanoo insuspeitado rosto eterno. O crculose fecha. Eu aguardo que assim seja.

    Pisam meus ps a sombra j das lanasque me buscam. O escrnio desta morte,os ginetes, as crinas, os cavalosme circundam... E j o primeiro golpe,

    j o duro ferro que me racha o peito,a ntima facada na garganta.

    1943

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    Poema do quarto elemento

    O deus a quem um homem descendente de AtreuPrendeu em uma praia que o bochorno laceraConverteu-se em drago, em leo, numa pantera,Em rvore e em gua. Porque a gua Proteu.

    a nuvem, a imemorvel nuvem, a glriaDo entardecer que afunda os subrbios abrasado; o Maelstrm que tecem os vrtices gelados,E a lgrima intil que dou a tua memria.

    Foi, nas cosmogonias, a origem em segredoDa terra que alimenta, do fogo que devora,Dos deuses que governam o poente e a aurora.

    (Assim o afirmam Sneca e Tales de Mileto.)

    O mar e a movente montanha que destriA embarcao de ferro so s tuas anforas,E o tempo irreversvel que nos foge e nos di,gua, nada mais do que uma de tuas metforas.

    Sob ventos destruidores, tu foste o labirintoSem paredes, janelas, cujo caminho gris

    To longe desviou o idolatrado Ulisses,A Morte inexorvel e o Acaso indistinto.

    Brilhas tal como as lminas cruis dos alfanjes,De monstros, pesadelos, sonho, tu s hospedagem.Somam-te maravilhas as humanas linguagensE tua fuga se chama ora Eufrates, ora Ganges.

    (Afirmam que sagrada a gua do derradeiro,Mas, como os mares pactos obscuros conspiraramE o planeta poroso, tambm verdadeiroAfirmar que no Ganges todos j se banharam.)

    De Quincey, em tumultuadas madrugadas, sonhouQue se empedrou teu mar de rostos e de naes;Aplacaste o desejo de muitas geraes,E a carne de meu pai e de Cristo em ti lavou-se.

    gua, eu te suplico. Por este sonolento

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    Enlace de numricas letras que te digo,Recorda-te de Borges, teu nadador e amigo.

    No faltes a meus lbios no ltimo momento.

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    A um poeta menor da antologia

    A memria dos dias onde estdos que na terra foram teus, tecendodor e alegria e foram para ti o universo?

    O rio numervel desses anosj os perdeu; tu s uma palavra em um ndice.

    Deram a outros glria interminvel os deuses,inscries e exergos e monumentos e pontuais historiadores;de ti ns s sabemos, obscuro amigo,que ouviste o rouxinol, uma tarde.

    Por entre os asfdelos da sombra, tua v sombra

    pensar que os deuses foram avaros.

    Porm os dias so uma rede de triviais misrias,e haver melhor sorte que a cinzade que est feito o olvido?

    Os deuses sobre outros atirarama inexorvel luz da glria, que observa as entranhas e enumera as gretas,da glria, que acaba por murchar a rosa que venera;

    foram contigo mais piedosos, irmo.

    No xtase de um entardecer que no ser uma noite,ouves a voz do rouxinol de Tecrito.

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    Pgina para recordar o Coronel Surez, vencedor em Jun

    Que importam as penrias, o desterro,a humilhao de envelhecer, a sombra crescentedo ditador sobre a ptria, a casa no Barrio del Altoque venderam seus irmos enquanto guerreava, os dias inteis

    (os dias que se espera esquecer, os dias que se sabe que se ho de esquecer),sim, teve sua grande hora, a cavalo,no visvel pampa de Junn como em um cenrio para o futuro,como se o anfiteatro de montanhas fosse o futuro.

    Que importa o tempo sucessivo se nelehouve uma plenitude, um xtase, uma tarde.

    Serviu treze anos nas guerras da Amrica. Por fim a sorte o levou ao Estado Oriental, ao

    campos do Ro Negro.Nos entardeceres pensariaque para ele havia florescido essa rosa:na batalha rubra de Junn, o instante infinitoem que as lanas se tocaram, a ordem que moveu a batalha,a derrota inicial, e entre os fragores(no menos brusca para ele que para a tropa)sua voz gritando aos peruanos que arremeteram,a luz, o mpeto e a fatalidade do ataque,

    o furioso labirinto dos exrcitos,a batalha das lanas na qual no retumbou um s tiro,ogodoque atravessou com o ferro,a vitria, a felicidade, a fadiga, um princpio de sono,e gente que morria nos pntanos,e Bolvar que pronunciava palavras sem dvida histricase o sol j ocidental e o recuperado sabor da gua e do vinho,e aquele morto sem rosto porque o pisoteou e apagou a batalha...

    Seu bisneto escreve estes versos e uma tcita vozdesde o antigo do sangue lhe chega:

    Que importa minha batalha de Junn se uma gloriosa memria,uma data que se aprende para um exame ou um lugar no atlas.A batalha eterna e pode prescindir da pompade visveis exrcitos com clarins;Junn so dois civis que em uma esquina maldizem um tirano,ou um homem obscuro que morre no crcere.

    1953

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    24/97

    Mateus 25, 30

    A primeira ponte da Constitucin e a meus psFragor de trens que teciam labirintos de ferro.Fumo e silvos escalavam a noite,Que de repente foi o Juzo Universal. Desde o invisvel horizonte

    E desde o centro de meu ser, uma voz infinitaDisse estas coisas (estas coisas, no estas palavras,Que so minha pobre traduo temporal de uma nica palavra):

    Estrelas, po, bibliotecas orientais e ocidentais,Naipes, tabuleiros de xadrez, galerias, clarabias e pores,Um corpo humano para andar pela terra,Unhas que crescem na noite, na morte,Sombra que esquece, atarefados espelhos que multiplicam,Declives da msica, a mais dcil das formas do tempo,

    Fronteiras do Brasil e do Uruguai, cavalos e manhs,Um peso de bronze e um exemplar da Saga de Grettir,lgebra e fogo, o ataque de Junn em teu sangue,Dias mais populosos que Balzac, o aroma da madressilva,Amor e vspera de amor e lembranas intolerveis,O sonho como um tesouro enterrado, o dadivoso acasoE a memria, que o homem no olha sem vertigem,Tudo isso te foi dado, e tambm O antigo alimento dos heris:A falsidade, a derrota, a humilhao.

    Em vo te prodigalizamos o oceano,Em vo o sol, que viram os maravilhados olhos de Whitman;Gastaste os anos e te gastaram,E, contudo, no escreveste o poema.

    1953

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Uma bssula

    A Esther Zemborain de Torres

    Todas as coisas so palavras lidasNa lngua em que Algo ou Algum, noite e dia,

    Escreve essa infinita algaraviaQue a histria do mundo.

    Em sua corrida Passam Cartago e Roma, minha vidaQue no entendo, eu, tu, ele, a agonia:Ser enigma, acaso, criptografiaE as vozes de Babel desentendidas.

    Atrs do nome h o que no se cita;

    Hoje senti sua sombra que gravitaNa lcida agulha azul que circula

    Leve, obstinada, at o fim do marCom algo de relgio num sonharE algo de ave dormida que tremula.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Uma chave em Salnica

    Abravanel, Faras ou Pinedo,Expulsos da Espanha por cruelPerseguio, mantm ainda fielA chave de uma casa de Toledo.

    Livres agora de esperana e medo,Olham a chave sob o sol oblquo;

    No bronze, restam ontens, o longnquo,Cansado brilho e sofrimento quedo.

    Hoje que p sua porta, o instrumentoE cifra da dispora e do vento,Afim com essa chave do santurio

    Que algum lanou ao cu, quando a incendiouO romano com fogo temerrio,E que a divina mo no azul captou.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Um poeta do sculo XIII

    Retorna a olhar os rduos borradoresDo primeiro soneto inominado,A pgina arbitrria, misturadosTercetos e quartetos pecadores.

    Lima, com lenta pena, seus rigoresE se detm. Talvez tenham chegadoDo futuro e de seu horror sagradoRemotos rouxinis e seus rumores.

    Ter sentido que no estava sE que o arcano, o incrvel deus Apolo,Lhe havia revelado aquele arqutipo,

    Um vido cristal que apreenderiaO quanto a noite encerra ou abre o dia:Ddalo, labirinto, enigma, dipo?

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Um soldado de Urbina

    Suspeitando-se indigno de faanhaComo aquela no mar, este soldado,A srdidos ofcios resignado,Errava obscuro por sua dura Espanha.

    Para apagar ou mitigar a sanhaDo real, buscava, pois, pelo sonhadoE lhe deram um mgico passadoOs ciclos de Rolando e da Bretanha.

    Velaria, fundido o sol, o amploCampo em que dura um resplendor de cobre;Julgava-se acabado, s e pobre,

    Sem saber de qual msica era dono;Ao afundar no sonho de algum sono,J andavam nele Dom Quixote e Sancho.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Limites

    Destas ruas que afundam o poente,H uma (eu no sei qual) que percorriJ pela ltima vez, indiferente,E, sem o adivinhar, me submeti

    A Quem prefixa onipotentes normasE uma secreta e rgida medidas sombras, e aos sonhos e s formasQue destecem e tecem esta vida.

    Se para tudo h fim, um nunca maisE o ltimo adeus, o esquecido,Quem nos dir de quem, nestes umbrais,

    Despedimo-nos desapercebidos?

    Cessa a noite atravs do cristal grisE, do cimo dos livros que partidaSombra espalha pelo tampo impreciso,Uma folha que nunca ser lida.

    No Sul mais de um porto enferrujadoCom seus jarres de gesso e alvenaria

    E tunas, a meu trnsito vedadoComo se fosse uma litografia.

    Para sempre alguma porta foi cerradaPor ti. E em vo o espelho aguarda e espia;A ti parece aberta a encruzilhadaE, quadrifronte, Jano que a vigia.

    Uma h, dentre as memrias todas tuas,Que se perdeu irreparavelmente;

    No te vero baixar gua vertenteNem o branco sol nem dourada lua.

    Tua voz no voltar ao verso persaEm sua lngua de rosas e de aves,Quando no ocaso, ante a luz dispersa,Buscares por coisas inolvidveis.

    E o incessante Rdano e o lago,

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Todo esse ontem sobre o qual me inclino?To perdido estar como CartagoQue a sal e fogo apagou o latino.

    Julgo ouvir, ao alvor, rumorejarLaborioso da turba se afastando;So quem me quis amar e me olvidar;Espao e tempo e Borges me deixando.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Baltasar Gracin

    Labirintos, antteses, emblemas,Trabalhosa e fria quinquilhariaFoi para este jesuta a poesia,Reduzida por ele a estratagemas.

    Na alma no houve msicas, almDe herbrio de metforas e argciasFtil e a venerao s astcias,Pelo humano e sobre-humano, o desdm.

    No o moveu Homero, a antiga voz,Nem a de prata e lua de Virglio;No viu o fatal dipo no exlio,

    Nem Cristo que na cruz morre por ns.

    s lmpidas estrelas orientaisQue na alva empalidecem seu fulgor,Apodou-as de nome pecador

    As galinhas dos campos celestiais.

    To ignorante foi do amor divinoComo do outro que em rubras bocas arde,

    Surpreendeu-o a Plida uma tardeA recitar os versos de Marino.

    Seu destino ulterior no est na histria;Liberado s mudanas de uma impuraTumba o p que ontem foi sua figura,Ascendeu a alma de Gracin em glria.

    Que sentiria ao ver-se face a faceCom os Arqutipos e os Esplendores?Talvez chorasse, ao dizer-se os pendores:S sombra e erros eu sorvi rapace.

    Que sucedeu quando o Sol implacvel,A Verdade de Deus, fogo lanou?A luz de Deus, quem sabe, que o cegou

    Na metade da glria interminvel.

    Sei outra concluso. Dado a seus temas

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Minsculos, Gracin no viu a glriaE segue resolvendo na memriaLabirintos, antteses e emblemas.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Um saxo (449 a.D.)

    J se havia afundado a curva lua;Rude e ruivo o homem ao alvorecer,A duna minuciosa a desfazer-se,Pisou-a com receio a planta nua.

    Ao longe, atrs da plida baa,Viu brancas terras, montes em negrores,

    Nesse momento elementar do diaQuando Deus no criou ainda as cores.

    Era tenaz. Fizeram sua fortunaRede, arado, remos, dardo, armadura;A garra que guerreava pde dura

    Gravar com ferro porfiada runa.

    De terra pantanosa procediaA esta que roem os pesados mares;Sobre ele abobadava-se qual diaO Destino, e tambm sobre seus lares,

    Woden ou Thunor, quem engalanou,Com mo torpe, de trapos e de cravos

    E em cujo altar ao arcano ofertouSeus ces, cavalos, pssaros e escravos.

    Para cantar as glrias ou lembranas,Cunhava operosos nomes e aes;A guerra era o encontro dos vares,Era tambm o encontro de mil lanas.

    De magias, seu mundo era no mar,De lobos, realezas e do FadoQue no perdoa, e do horror sagrado

    No cerne do pinhal a latejar.

    Trazia essas palavras essenciaisDe uma lngua que o tempo exaltariaA msica de Shakespeare: noite, dia,E o fogo, gua, cores e metais,

    Fome, sede, amargura, sonho, guerra,

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Morte e outros humanos tantos males;Em rduos montes e em abertos vales,Seus filhos engendraram a Inglaterra.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    O golem

    Se (como o grego afirma no Crtilo)Da coisa o nome sua ideia pura,

    Nos sons de rosa a rosa e perdura.E todo o Nilo, na palavraNilo.

    E, feito de consoantes e vogais,Nome terrvel h de haver, que a essnciaCifre de Deus e que a OnipotnciaGuarde em letras e slabas cabais.

    Ado e os astros t-lo-o achadoNo Jardim. A ferrugem do pecadoO apagou (os cabalistas contaram):

    E as geraes por vir o extraviaram.

    O artifcio dos homens, sua canduraNo tm fim. Sabemos, sim, que houve um diaEm que o povo de Deus ia em procuraDo Nome, em viglias da judiaria.

    No maneira de outras que uma vagaSombra insinuam sobre a vaga histria,

    Verde est ainda e viva a memriaDe Jud Leo, que era rabino em Praga.

    Sedento de saber o que Deus sabe,Deu-se Jud Leo a permutaesDe letras e a complexas variaesE ao fim pronunciou o Nome que a Clave,

    A Porta, o Eco, o Hspede e o Pao,Sobre um boneco que com as mos lavrouTorpemente, e os arcanos lhe ensinouDas Letras, e do Tempo e do Espao.

    As sonolentas plpebras alouO simulacro e viu formas e coresSem entender, perdidas em rumores,E temerosos gestos ensaiou.

    Gradualmente (como ns) viu-se ele

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Aprisionada na rede sonoraDo Antes, Depois, Ontem, Enquanto, Agora,Direita, Esquerda, Eu, Tu, Outros, Aqueles.

    (O cabalista que oficiou de numeAo ser enorme chamou-o de Golem;Estas verdades as refere ScholemEm um douto lugar de seu volume.)

    O rabi lhe explicava o universo"Isto meu p; isto, o teu; isto, a soga".Conseguiu, depois de anos, que o perversoVarresse bem ou mal a sinagoga.

    Talvez houvesse um erro na grafiaOu no Sacro Nome que articulou;

    Mesmo com to alta feitiaria,Falar, o aprendiz de homem no falou.

    Seus olhos, muito mais de co que de homemE muito mais de coisa que de co,O rabi seguem onde se consomemDbias sombras nas peas da priso.

    Algo anormal e tosco houve no Golem:

    O gato do rabi, a seu andar, Fugia.(Esse gato no est em ScholemMas, com o tempo, passei a adivinhar.)

    Elevando a seu Deus mos filiais,As devoes de seu Deus as copiavaOu, estpido e rindo, se dobravaEm cncavas mesuras orientais.

    O rabi o olhava com ternuraE com algum horror. Como(dizia-se)Pude gerar este penoso filhoE a inao deixei, que a cordura?

    Por que dei em somar infinitaSrie um smbolo mais? Por que meada

    Ftil, na eternidade emaranhada,Dei outra causa, efeito, outra desdita?

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Nos momentos de angstia e de luz vaga,Em seu Golem o olhar permanecia.Quem nos dir as coisas que sentiaDeus, ao observar seu rabino em Praga?

    1958

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    O tango

    Onde estaro? Pergunta-se a elegiaDe quem no vive mais, como se houvesseUma regio em que o Ontem pudesseSer o Hoje, o Ainda e o Todavia.

    Onde estar (repito) o malfeitorQue fundou nesses becos empoeiradosDe terra ou nos perdidos povoadosA seita do faco, do destemor?

    Onde estaro aqueles que passaram,Deixando epopeia um episdio,Uma fbula ao tempo e que, sem dio,

    Lucro ou paixo de amor se esfaquearam?

    Em sua lenda eu os busco, derradeiraBrasa que, a modo de uma vaga rosa,Guarda algo dessa chusma valorosaVinda dos Corrales, de Balvanera.

    Em quais escuros becos, em que ermosDo outro mundo se instalar a dura

    Sombra de quem era uma sombra escura,Muraa, essa navalha de Palermo?

    E esse Iberra fatal (de quem os santosSe apiadem) que na ponte de uma viaMatou seu irmo Nato, que deviaMais mortes que ele e assim igualou tantos?

    Uma mitologia de punhaisLentamente se anula no esquecer-se;Uma cano de gesta foi perder-seEm srdidas notcias policiais.

    H outra brasa, outra candente rosaDas cinzas que inteiros guardar;Soberbos navalhistas esto lE a adaga, com seu peso, silenciosa.

    Embora a adaga hostil, essoutra adaga,

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    O tempo, os perdessem em maldio,Hoje, ultrapassando o tempo e a aziagaMorte, os mortos no tango vivero.

    Na msica esto, e na cordagemDa teimosa guitarra trabalhosa,Que trama na milonga venturosaA festa e a inocncia da coragem.

    Gira no baldio a amarela rodaDe cavalos e lees, e ouo o ecoarDesses tangos de Greco e os de ArolasQue eu vi pelas caladas a bailar,

    Num instante que emerge hoje isolado,Sem antes nem depois, contra o olvido,

    E que tem o sabor do j perdido,Do j perdido e do recuperado.

    Nos acordes, antigas coisas gemem:O outro ptio com a entrevista parra.(Por trs dessas paredes que ainda temem,O Sul guarda um punhal e uma guitarra.)

    Essa rajada, o tango, essa diabrura,

    Os trabalhosos anos desafia;Feito de p e tempo, o homem duraMenos que a inconsequente melodia,

    Que s tempo. O tango cria um turvoPassado irreal, pouco se duvida,A lembrana incrvel de dar a vidaBrigando, numa esquina do subrbio.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    O outro

    No primeiro dos vastos e milharesHexmetros de bronze, a vista cega,Invoca o fogo arcano ou a musa e legaA ira de Aquiles em cantares.

    Sabia que outro um Deus o que fereCom raio brusco nossa faina obscura;Sculos depois diria a EscrituraQue o Esprito assopra onde quer.A cabal ferramenta a seu escolhidoD sem piedade o deus jamais nomeado:A Milton a sombra de emparedado,O desterro a Cervantes e o olvido. seu o que perdura na memria

    Do tempo secular. Nossa a escria.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Uma rosa e Milton

    Das geraes das rosas desfolhadasQue o fundo do tempo as viu se perderemQuero uma salva dos que a esquecerem,Uma entre as coisas sem signo ou marcadas

    Que j foram. O fado tem-me postoEste dom de nomear por vez primeiraEssa flor silenciosa, a derradeiraRosa que aproximou Milton ao rosto,Sem v-la. Tu, branca rosa ou vermelhaOu amarela de um jardim fanado,Deixa magicamente teu passadoImmore no verso qual centelha,Ouro, sangue ou marfim ou tenebrosa

    Como em suas mos, invisvel rosa.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Leitores

    Do fidalgo de seca e ctrea tezE de um heroico af se conjecturaQue, em vspera perptua de aventura,

    Na biblioteca se encerrou de vez.

    Seus empenhos, que as crnicas pontuaisNarram, e os tragicmicos desplantes,Quem as sonhou foi ele, no Cervantes:So crnicas de sonhos, nada mais.Tal, tambm, minha sorte.Existe algo Imortal e essencial que sepultei

    Nessa biblioteca do antigo, sei,Em que li a histria do fidalgo.As lentas folhas volta a criana e grave

    Sonha com vagas coisas que no sabe.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Joo 1, 14

    Os contos orientais j discorriamSobre um rei do tempo que, submetidoAo tdio e ao esplendor, ia escondidoE sozinho, e os subrbios percorria

    E se perdia entre a turba da genteDe calejadas mos, nomes banais;Agora, como aquele Emir dos Crentes,Harun, Deus quer andar entre os mortaisE nasce de uma me, tal como nascemAs linhagens que em poeira se desfazem,E lhe ser entregue este orbe inteiro,Ar, gua, po, manhs, pedras e lrios,Porm, depois, o sangue do martrio,

    O escrnio, os cravos e o madeiro.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    O despertar

    Entra a luz e ascendo torpementeDesde os sonhos ao sonho partilhadoE as coisas readquirem seu esperadoE devido lugar e no presente

    Converge assustador e vasto o vagoOntem: as seculares migraesDo pssaro e dos homens, as legiesQue o ferro destruiu, Roma e Cartago.Volta tambm a cotidiana histria:Meu rosto e voz, e meu temor e sorte.Ah! Se aquele outro despertar, a morte,Deparasse-me um tempo sem memriaDo nome meu e do que eu tenho sido!

    Ah! Se nessa manh houvesse olvido!

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    45/97

    A quem j no jovem

    J podes ver o trgico cenrioE cada coisa no lugar devido;A espada, a chama e a cinza para DidoE a moeda para Belisrio.

    Por que insistir, buscando no brumadoBronze desses hexmetros a guerra,Se aqui esto os sete palmos de terra,O brusco sangue e o fosso j escavado?Aqui te espreita o espelho sem sondagemQue sonhar e esquecer a imagemDos derradeiros dias e agonias.J se aproxima o ltimo. E a mansardaOnde tua lenta e breve tarde passa

    E a rua que vs todos os dias.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Alexander Selkirk

    Sonho que o mar, aquele mar, me encerraE do sonho sadam-me as salvasDe Deus, que santificam as frias alvasDestes ntimos campos da Inglaterra.

    Cinco anos padeci olhando eternasCoisas de solido e de infinito,Que ora so essa histria que repito,J como uma obsesso, pelas tavernas.Deus retornou-me ao mundo dos mortais,A espelhos, cifras, nomes e umbrais,E j no sou mais quem eternamenteOlhava a estepe profunda do mar.Como farei para outros avisar

    Que estou aqui salvo entre minha gente?

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Odisseia, Livro Vigsimo Terceiro

    J as espadas de ferro executaramO devido trabalho da vingana;J os dardos mais speros e a lanaO sangue do perverso prodigaram.

    A despeito de um deus, dos mares seus,Volta ao reino e rainha o intrpidoUlisses, a despeito do estrpitoDe Ares, dos ventos grises e de um deus.J no amor do compartilhado leitoDorme a insigne rainha sobre o peitoDe seu rei, onde est o homem, porm,Que nos dias e noites pelo mundoErrava proscrito, co vagabundo,

    Dizendo que seu nome era Ningum?

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    48/97

    Ele

    Os olhos de tua carne veem o lumeDo insofrvel sol, tua carne tocaP espalhado ou apertada roca;Ele a luz, o amarelo, o negrume.

    e os v. Desde olhos incessantesTe observa e so os olhos a indagarUm reflexo e so o espelho a olhar,Hidras negras e os tigres flamejantes.

    No lhe basta criar. Cada uma SuaCriatura de Seu estranho mundo:As razes porfiadas do profundoCedro e as mutaes da volvel lua.Chamavam-me Caim. Por mim o

    Eterno Sabe o sabor do fogo do inferno.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Sarmiento

    No o ofuscam o mrmore e a glria.Nossa assdua retrica no limaSua rude realidade. As aclamadasDatas de centenrios e de fastos

    No fazem com que este homem solitrioSeja menos que um homem. No antigoEco que multiplica a fama cncavaOu, como aquele ou este, um branco smboloQue podem manejar as ditaduras. ele. E testemunha ele da ptria,Quem nos v, nossa infmia e nossa glria,A luz de Maio e o horror de RosasE o outro pavor ainda e os secretos dias

    Do porvir minucioso. Ele algumQue segue odiando, amando e combatendo.Sei que naquelas alvas de setembroQue no esquecer ningum, nem podeAlgum contar, sentimos. Seu teimosoAmor quer nos salvar. E noite e diaCaminha entre os homens que lhe pagam(Porque no morreu) seu jornal de injriasOu de veneraes. Vai abstrado

    E em sua larga viso como num mgicoCristal que a um s tempo encerra as trs facesDo tempo que depois, antes, agora,Sarmiento o sonhador segue sonhando-nos.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    A um poeta menor de 1899

    Deixar um verso para a hora tristeQue nos espreita no dia morrente,Ligar teu nome a sua data dolenteDe ouro e de vaga sombra. Isto pediste.

    Com que paixo, ao declinar do dia,Trabalharias tu o estranho versoQue, at o dispersar-se do universo,A hora de estranho azul confirmaria!

    No sei se teu labor o conseguiu,Meu vago irmo maior, ou se exististe,Mas estou s e o olvido em que casteQue restitua aos dias tua sutilSombra para este j cansado alarde

    De umas palavras em que esteja a tarde.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Texas

    Aqui tambm. Aqui, tal como no outroLimite do continente, o infinitoCampo em que solitrio morre o grito;qui tambm o ndio, o lao, o potro.

    Aqui tambm o pssaro secretoQue por sobre os fragores da histriaCanta para uma tarde e sua memria;Aqui tambm o mstico alfabetoDos astros, que hoje ditam a meu clamo

    Nomes que o infatigvel labirintoDos dias no arrasta: So JacintoE essas outras Termpilas, El lamo.Aqui tambm essa desconhecida

    E ansiosa e breve coisa que a vida.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Composio escrita em um exemplar da Gesta de Beowulf

    s vezes me pergunto que razesMe movem a estudar sem esperanaDe preciso, enquanto a noite avana,Esta lngua dos speros saxes.

    J gasta pelos anos a memriaDeixa cair a em vo e repetidaPalavra e assim como minha vidaTece e destece sua cansada histria.Ser (me digo) que de um suficienteE mais secreto modo a alma sabeQue imortal e que seu vasto e graveCrculo tudo abarca onipotente.Para alm deste af e deste verso

    Me espera inesgotvel o universo.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    53/97

    Hengist Cyning

    EPITFIO DO REI

    Sob a pedra jaz o corpo de Hengist

    Que fundou nestas ilhas o primeiro reinoDa estirpe de OdinE saciou a fome das guias.

    FALA O REI

    No sei que runas ter marcado o ferro na pedraMas minhas palavras so estas:Sob os cus eu fui Hengist, o mercenrio.

    Vendi minha fora e minha coragem aos reisDas regies do ocaso que lindamCom o mar que se chamaO Guerreiro Armado com Lana,Mas a fora e a coragem no suportamQue as vendam os homensE assim, depois de ter esfaqueado no NorteOs inimigos do rei breto,Tirei-lhe a luz e a vida.

    Agrada-me o reino que ganhei com a espada;H rios para o remo e para a redeE longos veresE terra para o arado e para o rebanhoE bretes para trabalh-laE cidades de pedra que entregaremos desolao,Porque as habitam os mortos.Eu sei que a minhas costasMe tacham de traidor os bretes,Mas eu fui fiel a minha valentiaE no confiei meu destino aos outrosE nenhum homem se atreveu a trair-me.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    54/97

    Fragmento

    Uma espada,Uma espada de ferro forjada no frio da alva,Uma espada com runasQue ningum poder desdenhar nem decifrar totalmente,

    Uma espada do Bltico que ser cantada na Nortmbria,Uma espada que os poetasIgualaro ao gelo e ao fogo,Uma espada que um rei dar a outro reiE este rei a um sonho,Uma espada que ser lealAt uma hora que j sabe o Destino,Uma espada que iluminar a batalha.

    Uma espada para a moQue comandar a formosa batalha, o tecido de homens,Uma espada para a moQue avermelhar os dentes do loboE o desapiedado bico do corvo,Uma espada para a moQue prodigalizar o ouro rubro,Uma espada para a moQue dar morte serpente em seu leito de ouro,

    Uma espada para a moQue ganhar um reino e perder um reino,Uma espada para a moQue derrubar a selva de lanas.Uma espada para a mo de Beowulf.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    A uma espada em York Minster

    Em seu ferro perdura o homem forte,Hoje p de planeta, que nas guerrasDe speros mares e arrasadas terrasEsgrimiu, em vo no fim, contra a morte.

    Tambm a morte v. A esta paragem,Desde a Noruega, homem feral e lvido,Pelo pico destino veio urgido;Sua lana hoje seu nome e sua imagem.Pese ao desterro e morte prolongada,A mo atroz segue oprimindo a espadaE sou sombra na sombra ante o guerreiroCuja sombra est aqui. Eu sou um instanteE o instante cinza, nunca diamante.

    E somente o passado verdadeiro.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    56/97

    A um poeta saxo

    Tu cuja carne, hoje disperso e p,Pesou como a nossa sobre a terra,Tu cujos olhos viram o sol, essa famosa estrela,Tu que viveste no no rgido ontem

    Mas sim no incessante presente,No ltimo ponto e pice vertiginoso do tempo,Tu que em teu mosteiro foste chamadoPela antiga voz da pica,Tu que teceste as palavras,Tu que cantaste a vitria de BrunanburhE no a atribuste ao SenhorMas sim espada de teu rei,Tu que com jbilo feroz cantaste

    A humilhao do viking,O festim do corvo e da guia,Tu que na ode militar congregasteAs rituais metforas da estirpe,Tu que num tempo sem histriaViste no agora o ontemE no suor e sangue de BrunanburhUm cristal de antigas auroras,Tu que tanto amavas tua Inglaterra

    E no a nomeaste,Hoje no s outra coisa que umas palavrasQue os germanistas anotam.Hoje no s outra coisa que minha vozQuando revive tuas palavras de ferro.

    Peo a meus deuses ou soma do tempoQue meus dias meream o esquecimento,Que meu nome seja Ningum como o de Ulisses,Porm que algum verso perdure

    Na noite propcia memriaOu nas manhs dos homens.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    57/97

    Snorri Sturluson (1179-1241)

    Tu, que legaste uma mitologiaDe gelo e fogo filial memria,Tu, que fixaste a to violenta glriaDe tua estirpe pirtica e bravia,

    Sentiste, com assombro numa tardeDe espadas, tua humana carne a fremirTriste. Naquela tarde sem porvirTe foi dado saber que eras covarde.

    Na noite da Islndia, a amarga e salobreBorrasca move o mar. Est cercadaTua casa. At as fezes engolidaA inesquecvel desonra. Por sobreTua plida cabea cai a espada,

    Tantas vezes no livro teu cada.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    58/97

    A Carlos XII

    Viking da vasta estepe, Carlos dozeDa Sucia, que cumpriste at o fimDe Norte a Sul a rdua via de Odin,Divino antecessor, a que se imps e

    Cujos trabalhos movem a memriaDos homens epopeia, a batalhaMortal, o terror duro da metralha,A firme espada e a sangrenta glria.Soubeste que vencer ou ser vencidoSo faces de um Acaso indiferente,Que outro valor no h que ser valenteE o mrmore, ao final, ser o olvido.Ardes glacial, mais que o deserto s s;

    Ningum chegou a tua alma e morto s p.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    59/97

    Emanuel Swedenborg

    Mais alto do que os outros, caminhavaAquele homem entre os homens circunspecto;Apenas os chamava por secretos

    Nomes os celestiais anjos. Olhava

    O que no veem os olhos terrenais:A ardente geometria, o cristalinoEdifcio de Deus e o torvelinoDe imundices dos gozos infernais.Sabia ele que a Glria e o AvernoEm tua alma esto e suas mitologias;Como o grego, sabia que os diasDo tempo so os espelhos do Eterno.Em rido latim foi registrando

    ltimas coisas sem por que nem quando.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    60/97

    Jonathan Edwards (1703-1785)

    Longe da cidade, longe do foroClamoroso e do tempo, que mudana,Edwards, eterno j, sonha e avana sombra de copados ramos de ouro.

    Hoje ontem e amanh. No floresceUma coisa de Deus no calmo ambienteQue no o exalte misteriosamente,O ouro do luar, ou quando entardece.Pensa feliz que o mundo um eternoInstrumento de ira e que o ansiadoCu foi para pouqussimos criadoE quase para todos foi o inferno.

    No centro pontual do emaranhado

    H Deus, a Aranha, o outro aprisionado.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    61/97

    Emerson

    Este alto cavalheiro americanoO denso livro de Montaigne fechaE busca outro gozo que no se deixaPor menos, a tarde que exalta o plano.

    At o fundo do poente descendo,At o limite que o poente matiza,Como agora, nos campos ele pisa,Para lembrarem de quem est escrevendo.Medita: Eu li os livros essenciaisE outros compus que no h de apagarO obscuro olvido. A um Deus coube me doarO que dado saber a ns, mortais.Meu nome o continente anda a correr;

    No vivi. Outro homem queria ser.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    62/97

    Edgar Allan Poe

    Pompa marmrea, negra anatomiaQue ultrajam os vis vermes sepulcrais,Da morte triunfal os glaciaisSmbolos congregou. No os temia.

    Outras sombras temia, as amorosas,As venturas comuns de toda a gente;No o cegaram o metal luzente,O mrmore da tumba, mas a rosa.Assim como no espelho, do outro lado,Solitrio entregou-se ele a seu fadoComplexo de inventor de pesadelos.Do outro lado, talvez, da ignota morte,Siga erigindo textos, s e forte,

    Atrozes, belos e ouse escrev-los.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    63/97

    Camden, 1892

    O cheiro do caf e dos peridicos.O domingo e seu tdio. De manhE na entrevista pgina essa vPublicao de versos alegricos

    De um colega feliz. Branco e prostrado,O velho permanece em sua decenteHabitao de pobre. OciosamenteOlha a cara no espelho fatigado.J sem assombro, ento, ele meditaQue o rosto ele. A mo toca alheadaA barba turva e a boca saqueada.

    No est longe o final. Sua boca dita:Quase no sou, porm meus versos ritmam

    A vida e seu esplendor. Eu fui Walt Whitman.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    64/97

    Paris, 1856

    longa prostrao acostumado,Antecipou a morte. TemeriaExpor-se ao agitado e ofenso diaE andar por entre os homens. Derrubado,

    Heine pensa naquele rio em breu,O tempo, que o afasta lentamenteDessa longa penumbra e do dolenteDestino de ser homem e ser judeu.Pensa nas delicadas melodiasCujo instrumento foi, porm bem sabeQue o trino no da rvore nem da ave,Seno do tempo e de seus vagos dias.Teus rouxinis no serviro de nada,

    Nem noites de ouro e tuas flores cantadas.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    65/97

    Rafael Cansinos-Assns

    A imagem daquele povo execrado,Lapidado, imortal em sua agonia,

    Nas escuras viglias o atraaCom um qu de horror santo e sagrado.

    Bebeu como quem bebe um vinho bentoOs Salmos e os Cantares da EscrituraE sentiu que era sua essa douraE sentiu que era seu aquele intento.Israel o chamava. IntimamenteCansinos a ouviu como o profeta

    Na esfera secretssima a secretaVoz do Senhor, da flmea sara ardente.Acompanhe-me sempre sua memria;

    As outras coisas as dir a glria.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    66/97

    Os enigmas

    Eu que agora sou quem est cantandoAmanh serei o morto, o iniciadoHabitante de um orbe despovoado,Mgico, sem depois, antes ou quando.

    Assim afirma a mstica. IndignoMe julgo, quer do Inferno, quer da Glria,Mas nada profetizo. Nossa histria,Como as de Proteu, muda formas, signos.Que errante labirinto, que brancuraCega de resplandor ser-me- a sorte,Ao entregar-me ao fim desta aventuraA experincia incgnita da morte?Quero beber seu cristalino Olvido,

    Ser para sempre; mas jamais ter sido.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    67/97

    O instante

    Onde as eras, o sonho derradeiroDe espadas com que os trtaros sonharam,Onde as fortes paredes que arrombaram,E a rvore de Ado, e o outro Madeiro?

    O presente est s. S a memriaErige o tempo. Sucesso e enganoSo a rotina do relgio. O anoMenos vo no do que a v histria.H um abismo entre o albor e o sol que desceDe agonias, de luzes, de cuidados;O rosto, ao se mirar nos desgastadosCristais da noite, no se reconhece.O hoje fugaz tnue e eterno;

    Nem outro Cu esperes, nem Inferno.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    68/97

    Ao vinho

    J no bronze de Homero teu nome resplandece,Negro vinho que o mago dos homens aqueces.

    De mo em mo tu viajas faz centenas de anos

    Desde o rton dos gregos ao corno dos germanos.

    Na aurora tu j l estavas. s geraesLhes deste no caminho teu fogo e teus lees.

    Junto quele outro rio de noites e de diasO teu corre e o aclamam amigos e alegrias,

    Vinho que como Eufrates patriarcal e profundo

    Vais fluindo ao longo da vasta histria do mundo.

    Em teu cristal que vive, nosso olhar com amorViu metfora rubra do sangue do Senhor.

    Nas mais arrebatadas estrofes do sufiTu s a rosa, a curva cimitarra e o rubi.

    Que os outros em teu Letes bebam um triste olvido;

    Eu busco em ti as festas do fervor compartido.

    Ssamo com o qual antigas noites eu abroE, nas pesadas trevas, ddiva e candelabro.

    Vinho do mtuo amor ou ento da rubra peleja,Algumas vezes eu te chamarei. Que assim seja.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    69/97

    Soneto do vinho

    Em que reino, em que sculo, sob que silenciosaConjuno das estrelas, em que secreto diaQue no salvou o mrmore, surgiu a valiosaE singular ideia de inventar a alegria?

    Com outonos dourados a inventaram.O vinho Espesso e rubro flui ao longo das geraes,Como o rio do tempo, e como no rduo caminho

    Nos prodiga sua msica, seu fogo e seus lees.Pelas noites de jbilo ou na jornada adversaEle exalta a alegria ou mitiga-nos o espanto,E o ditirambo novo que este dia lhe cantoOutrora o decantaram o rabe e o persa.Vinho, mostra-me a arte de ver-me a prpria histria

    Como se esta j fosse s cinza na memria.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    1964

    I

    J no mgico o mundo. Deixaram-te.A clara lua no compartirs

    Nem os lentos jardins. Lua no hQue no seja espelho dos que passaram,Cristal de solido, sol de agonias.Adeus s mtuas mos e s latejantesFontes que aproximava o amor. Restantes,A memria fiel, desertos dias.

    Ningum perde (tu repetes baldamente)Seno o que no tem, sem nunca ter,Mas no basta, somente, ser valente

    Para aprender a arte de esquecer.Um smbolo, uma rosa te desgarraE pode te matar uma guitarra.

    II

    J no serei feliz. Mas tanto faz.H tantas outras coisas neste mundo;Um instante qualquer mais profundo,

    Diverso que o mar. A vida, fugaz,E embora as horas passem devagar,Obscura maravilha nos expecta,A morte, esse outro mar, essa outra setaQue do sol nos libera e do luarE do amor. A alegria que me doasteE me tiraste, que seja apagada;O que era tudo se transforme em nada.O gozo de estar triste s me baste,Este costume vo que a mim inclinaAo Sul, a certa porta, a certa esquina.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    A fome

    Me atroz e antiga da incestuosa guerra,Seja apagado teu nome da face da Terra.

    Tu que arrojaste ao crculo do horizonte aberto

    A alta proa do viking, as lanas do deserto.

    Na alta Torre da Fome de Ugolino de PisaErgueste teu monumento e na estrofe concisa

    Que nos deixa entrever (somente entrever) os diasltimos e, na sombra que cai, as agonias.

    Tu que de seus pinhais fazes com que surja o lobo

    E que guiaste a mo de Jean Valjean ao roubo.

    Uma de tuas imagens este silenciosoDeus que entredevora o orbe sem ira e sem repouso,

    O tempo. H outra deusa do escuro e da ossama;A fome seu po nosso e a insnia sua cama.

    Tu que a morte de Chatterton no tico selas

    Entre os cdices falsos e uma lua amarela.

    Tu que entre o nascimento do homem e sua agoniaPedes em orao nosso po de cada dia.

    Tu cuja lenta espada corri as geraesE sobre os obstinados lanas ferozes lees.

    Me atroz e antiga da incestuosa guerra,Seja apagado teu nome da face da Terra.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    72/97

    O forasteiro

    Despachadas as cartas e o telegrama,caminha pelas ruas indefinidase constata leves diferenas que no lhe importame pensa em Aberdeen ou em Leyden,

    mais vvidas para ele que este labirintode linhas retas, no de complexidade,aonde o leva o tempo de um homemcuja verdadeira vida est longe.

    Num aposento numeradose barbear depois diante de um espelhoque no voltar a refleti-lo e lhe parecer que esse rosto mais inescrutvel e mais firmeque a alma que o habita

    e que ao longo dos anos o lavra.Cruzar contigo numa ruae talvez notes que alto e grise que observa as coisas.Uma mulher indiferentelhe oferecer a tarde e o que acontecedo outro lado de uma porta. O homem

    pensa que esquecer seu rosto e recordar,anos depois, perto do Mar do Norte,

    a persiana ou a lmpada.Essa noite, seus olhos contemplaro,num retngulo de formas que foram,o ginete e sua pica plancie,

    porque oFar Westabarca o planetae se espelha nos sonhos dos homensque nunca nele pisaram.

    Na numerosa penumbra, o desconhecidose julgar em sua cidadee o surpreender sair noutra,de outra linguagem e de outro cu.Antes da agonia,o inferno e a glria nos foram dados;andam agora por esta cidade, Buenos Aires,que para o forasteiro de meu sonho(o forasteiro que eu fui sob outros astros) uma srie de imprecisas imagensfeitas para o olvido.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    73/97

    A quem me est lendo

    Tu s invulnervel. No te doaramOs numes que comandam teu destinoA certeza do p? No , acaso,Teu tempo irreversvel o do rio

    Em cujo espelho viu o signo HerclitoDe que ele era fugaz? Te espera o mrmoreQue no lers. J nele esto gravadosAs datas, a cidade e o epitfio.Sonhos do tempo so tambm os outros,

    No firme bronze nem depurado ouro;Proteu o universo, teu igual.Sombra, irs sombra que te aguardaFatal quando findares tua jornada;

    Pensa que de algum modo s j cadver.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    74/97

    O alquimista

    Lento no alvor um jovem desgastadoPor longa reflexo e por avarasViglias considera ensimesmadoOs insones braseiros e alquitaras.

    Sabe que o ouro espreita, esse Proteu,Seja qual for o acaso, como os fados;Sabe-o no arco, flecha, braos armados

    No p que nos caminhos dissolveu.

    Na obscura viso de um secreto serQue se oculta nos astros e no lodo,Lateja outro sonho de que o todo

    gua, como Tales julgou ver.

    Outra viso ter; a de um eternoDeus que em tudo e o olhar ubquo pousa,Como explica o geomtrico Spinoza

    Num livro bem mais rduo que o Averno...

    No azul dos vastos lindes orientaisEsvaem-se os planetas na alva quieta,

    O alquimista pensa nas secretasLeis que ligam planetas e metais.

    E entretanto cr tocar j incendidoO ouro aquele que a Morte matar.Deus, mestre da alquimia, o inverterEm P, ningum, em nada, enfim, no olvido.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    75/97

    Algum

    Um homem trabalhado pelo tempo,um homem que nem sequer espera a morte(as provas da morte so estatsticase no h ningum que no corra o risco

    de ser o primeiro imortal),um homem que aprendeu a agradeceras modestas esmolas dos dias:o sonho, a rotina, o sabor da gua,uma no suspeitada etimologia,um verso latino ou saxo,a lembrana de uma mulher que o abandonou

    j faz tantos anosque hoje pode record-la sem amargura,

    um homem que no ignora que o presentej o futuro e o esquecimento,um homem que foi desleale com quem foram desleais

    pode sentir de repente, ao cruzar a rua,uma misteriosa felicidadeque no vem do lado da esperanamas sim de uma antiga inocncia,de sua prpria raiz ou de um deus disperso.

    Sabe que no deve olh-la de perto,porque h razes mais terrveis que tigresque lhe demonstraro seu deverde ser um desventurado,

    porm humildemente recebeessa felicidade, esse lampejo.

    Talvez na morte para sempre sejamos,quando o p for p,essa indecifrvel raiz,da qual para sempre crescer,equnime ou atroz,nosso solitrio cu ou inferno.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    76/97

    Everness

    S no h uma coisa. o esquecer.Deus, que salva o metal, salva a escriaE cifra em Sua proftica memriaAs luas que j foram e as que ho de ser.

    Tudo est a: vises multiplicadasQue entre esses dois crepsculos do diaTua face foi deixando e as refletiaE as que ela ir deixando-as espelhadas.E tudo uma parte do diversoCristal dessa memria, o universo;Jamais tm fim seus rduos corredoresE a ti fecham-se as portas com descaso;Somente do lado oposto do ocaso

    Vers os Arqutipos e Esplendores.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    77/97

    Ewigkeit

    Torne-me boca o verso castelhanoA dizer o que sempre est dizendoDesde o latim de Sneca: o horrendoDitame de que tudo do gusano.

    Torne a plida cinza a homenagearA morte com seus fastos e a vitriaDa rainha retrica a pisarAqueles estandartes da vanglria.Doutro modo. O por meu barro abenoado

    No vou neg-lo eu como um covarde.Sei que uma coisa no h. O olvidado;Sei que na eternidade perdura e ardeO precioso e o muito esperdiados:

    Essa lua, essa frgua e essa tarde.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    78/97

    dipo e o enigma

    Quadrpede na aurora, alto no diaE com trs ps errando pelo vombito do entardecer, assim viaA eterna esfinge ao inconstante irmo,

    O homem, e tarde um homem vaticinaDecifrando aterrado, no cristalDa monstruosa imagem, o fatalReflexo de seu destino e runa.Somos dipo e, de modo eternal,Somos, no vasto e trplice animal,O que seremos e tenhamos sido.Aniquilar-nos-ia ver a ingenteForma de nosso ser; piedosamente

    Deus nos depara sucesso e olvido.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    79/97

    Spinoza

    As mos do judeu lavram transparentes,No lusco-fusco, brunindo os cristais,E medo e frio a tarde poente.(Tardes que s tardes todas so iguais.)

    As mos e o espao de jacintoQue nas portas do Gueto empalideceQuase no h para o homem que assim teceQuieto os sonhos de um claro labirinto.

    No o turva a fama, sonhos reflexosNo sonho de outro espelho convexo,Nem o amor temeroso das donzelas.Liberto da metfora e do mito,Um cristal rduo lavra: o infinito

    Mapa d'Aquele que todas as suas estrelas.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    80/97

    Espanha

    Para alm dos smbolos,para alm da pompa e da cinza dos aniversrios,para alm da aberrao do gramticoque v na histria do fidalgo

    que sonhava ser Dom Quixote e, por fim, o foi,no uma amizade e uma alegriamas sim um herbrio de arcasmos e de provrbios,ests, Espanha silenciosa, em ns.Espanha do biso, que morreriasob o ferro ou o rifle,nas pradarias do ocaso, em Montana,Espanha em que Ulisses fez a descida Casa de Hades,Espanha do ibero, do celta, do cartagins, e de Roma,

    Espanha dos speros visigodos,de estirpe escandinava,que soletraram e esqueceram a escrita de Ulfilas,

    pastor dos povos,Espanha do Isl, da cabalae da Noite Escura da Alma,Espanha dos inquisidores,que padeceram o destino de ser verdugose teriam podido ser mrtires,

    Espanha da longa aventuraque decifrou os mares e reduziu cruis impriose que prossegue aqui, em Buenos Aires,neste entardecer do ms de julho de 1964,Espanha da outra guitarra, a dilacerada,no a humilde, a nossa,Espanha dos ptios,Espanha da piedosa pedra de catedrais e santurios,Espanha do honrado bem e da caudalosa amizade,Espanha da intil coragem,

    podemos professar outros amores,podemos esquecer-tecomo esquecemos nosso prprio passado,

    porque inseparavelmente ests em ns,nos ntimos hbitos do sangue,nos Acevedo e nos Surez de minha linhagem,Espanha,me de rios e de espadas e de multiplicadas geraes,incessante e fatal.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    81/97

    Elegia

    Oh! destino o de Borges,ter navegado pelos diversos mares do mundoou pelo nico e solitrio mar de nomes diversos,ter sido uma parte de Edimburgo, de Zurique, das duas Crdobas,

    da Colmbia e do Texas,ter regressado, depois de mudadas geraes,s antigas terras de sua estirpe, Andaluzia, a Portugal e queles condadosonde o saxo guerreou com o dans e misturaram seus sangues,ter errado pelo rubro e tranquilo labirinto de Londres,ter envelhecido em tantos espelhos,ter buscado em vo o olhar de mrmore das esttuas,ter examinado litografias, enciclopdias, atlas,

    ter visto as coisas que veem os homens, a morte, o torpeamanhecer, a planciee as delicadas estrelas,e no ter visto nada ou quase nadaa no ser o rosto de uma jovem de Buenos Aires,um rosto que no quer que o recorde.Oh! destino de Borges, talvez no mais estranho que o teu.

    Bogot, 1963.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    82/97

    Adam Cast Forth

    Houve um Jardim, ou foi s uma viso?Lento, na vaga luz, tenho indagado,Quase como um consolo, se o passado,De que era dono o agora excluso Ado,

    No passou de uma mgica imposturaDo Deus que visionei. J imprecisoNa memria o radiante Paraso,Porm sei que ele existe e que perdura,Embora no para mim. A spera terra meu castigo e a incestuosa guerraDe Cains e de Abeis e de sua cria.E, no entanto, muito ter amado,Ter sido ento feliz e ter tocado

    O vivente Jardim, por um s dia.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    83/97

    A uma moeda

    Fria e tormentosa a noite em que zarpei de Montevidu.Ao dobrar o Cerro,atirei do convs mais altouma moeda que brilhou e afundou nas guas barrentas,

    uma coisa de luz que arrebataram o tempo e a treva.Tive a sensao de ter cometido um ato irrevogvel,de acrescentar histria do planetaduas sries incessantes, paralelas, talvez infinitas:meu destino, feito de soobra, de amor e de vs vicissitudes,e o daquele disco de metalque as guas dariam ao brando abismoou aos remotos mares que ainda roemdespojos do saxo e do viking.

    A cada instante de meu sono ou de minha vigliacorresponde outro da cega moeda.s vezes senti remorsoe outras, invejade ti que ests, como ns, no tempo e em seu labirintoe que no o sabes.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    84/97

    Outro poema dos dons

    Quero dar graas ao divinoLabirinto dos efeitos e das causasPela diversidade das criaturasQue formam este singular universo,

    Pela razo, que no cessar de sonharCom um plano do labirinto,Pelo rosto de Helena e pela perseverana de Ulisses,Pelo amor, que nos deixa ver os outrosComo os v a divindade,Pelo firme diamante e pela gua solta,Pela lgebra, palcio de precisos cristais,Pelas msticas moedas de ngelo Silsio,Por Schopenhauer,

    Que talvez tenha decifrado o universo,Pelo fulgor do fogoQue nenhum ser humano pode olhar sem um assombro antigo,Pela caoba, pelo cedro e pelo sndalo,Pelo po e pelo sal,Pelo mistrio da rosaQue prodigaliza cor e que no a v,Por certas vsperas e dias de 1955,Pelos duros tropeiros que na plancie

    Arreiam os animais e a alva,Pela manh em Montevidu,Pela arte da amizade,Pelo ltimo dia de Scrates,Pelas palavras que em um crepsculo se disseramDe uma cruz a outra cruz,Por aquele sonho do Isl que abarcouMil noites e uma noite,Por aquele outro sonho do infernoDa torre de fogo que purificaE das esferas gloriosas,Por Swedenborg,Que conversava com os anjos nas ruas de Londres,Pelos rios secretos e imemoriaisQue convergem em mim,Pelo idioma que, faz sculos, falei em Nortmbria,Pela espada e pela harpa dos saxes,Pelo mar, que um deserto resplandecenteE uma cifra de coisas que no sabemos

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    85/97

    E um epitfio dos vikings,Pela msica verbal da Inglaterra,Pela msica verbal da Alemanha,Pelo ouro, que relumbra nos versos,Pelo pico inverno,Pelo nome de um livro que no li:Gesta Dei per Francos,Por Verlaine, inocente como os pssaros,Pelo prisma de cristal e pelo peso de bronze,Pelas raias do tigre,Pelas altas torres de So Francisco e da ilha de Manhattan,Pela manh no Texas,Por aquele sevilhano que redigiu a Epstola MoralE cujo nome, como ele teria preferido, ignoramos,Por Sneca e Lucano, de Crdoba,Que antes do espanhol escreveram

    Toda a literatura espanhola,Pelo geomtrico e bizarro xadrez,Pela tartaruga de Zeno e pelo mapa de Royce,Pelo aroma medicinal dos eucaliptos,Pela linguagem, que pode simular a sabedoria,Pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado,Pelo costume,Que nos repete e nos confirma como um espelho,Pela manh, que nos depara a iluso de um princpio,

    Pela noite, sua treva e sua astronomia,Pelo valor e pela felicidade dos outros,Pela ptria, sentida nos jasminsOu numa velha espada,Por Whitman e Francisco de Assis, que j escreveram o poema,Pelo fato de que o poema inesgotvelE se confunde com a soma das criaturasE no chegar jamais ao ltimo versoE varia segundo os homens,

    Por Frances Haslam, que pediu perdo a seus filhosPor morrer to devagar,Pelos minutos que precedem o sono,Pelo sono e pela morte,Esses dois tesouros ocultos,Pelos ntimos dons que no enumero,Pela msica, misteriosa forma do tempo.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

    86/97

    Ode escrita em 1966

    Ningum a ptria. Nem sequer o gineteQue, alto na alva de uma praa deserta,Conduz um corcel de bronze pelo tempo,

    Nem os outros que olham desde o mrmore,

    Nem os que prodigaram sua blica cinzaPelos campos da AmricaOu deixaram um verso ou uma faanhaOu a memria de uma vida cabal

    No justo exerccio dos dias.

    Ningum a ptria. Nem sequer os smbolos.Ningum a ptria. Nem sequer o tempoCarregado de batalhas, de espadas e de xodos

    E da lenta povoao de regiesQue lindam com a aurora e o ocaso,E de rostos que vo envelhecendo

    Nos espelhos que se empanamE de sofridas agonias annimasQue duram at a alvaE da teia de aranha da chuvaSobre negros jardins.

    A ptria, amigos, um ato perptuoComo o perptuo mundo. (Se o EternoEspectador deixasse de sonhar-nosUm s instante, nos fulminaria,Branco e brusco relmpago, Seu olvido.)

    Ningum a ptria, mas todos devemosSer dignos do antigo juramentoQue prestaram aqueles cavaleirosDe ser o que ignoravam, argentinos,De ser o que seriam pelo fatoDe ter jurado nesta velha casa.Somos o futuro desses vares,A justificativa daqueles mortos;

    Nosso dever a gloriosa cargaQue a nossa sombra legam essas sombrasQue devemos salvar.

    Ningum a ptria, porm todos o somos.Arda em meu peito e no vosso, incessante,Esse lmpido fogo misterioso.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    O sono

    Se o sono fosse (como dizem) umaTrgua, um repousar puro da mente,Por que, se te despertam bruscamente,Sentes que te roubaram uma fortuna?

    Por que to triste madrugar? A horaNos despoja de um dom inconcebvel,To ntimo que s traduzvel

    Num sopor que a viglia em ouro douraDe sonhos, que bem podem ser truncadosReflexos dos tesouros de umbra instvel,De um orbe intemporal inominvelQue o dia nos espelha deformado.Quem sers, esta noite, do outro lado

    Da parede do sonho indecifrado?

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Junn

    Sou, mas sou tambm o outro, o que morreu,O outro de meu nome e sangue herdeiro;Sou um vago senhor, sou o escudeiroQue as lanas do deserto as abateu.

    Volto a Junn, que no me viu jamais,Av Borges, a teu Junn. Percebes-me,Cinza final ou sombra, ou no recebes

    No sonho de bronze os truncados ais?Acaso buscas em minha v miradaO pico Junn de teus soldados,A rvore que plantaste, os teus cercadosE no limite a tribo saqueada.Percebo-te triste, face severa.

    Quem me dir quem foste e como eras.

    Junn, 1966.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Um soldado de lee (1862)

    Uma bala alcanou-o na ribeiraDe um claro rio de nome esquecido.Cai emborcado. (A histria verdadeiraE mais de um homem nele tem vivido.)

    O ar de ouro move ociosas as ramadasDo copado pinheiro. Uma pacienteFormiga escala o rosto indiferente.Sobe o sol. Muitas coisas j mudadasE sem fim no futuro mudaroAt um certo dia em que te cantoA ti que, sem a ddiva do pranto,Caste como um homem morto ao cho.

    No h mrmore a guardar tua memria;

    Sete palmos de terra, tua obscura glria.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Manh de 1649

    Carlos avana entre seu povo. Mira direita e esquerda. RecusouOs braos da escolta. J libertou-seDessa necessidade da mentira,

    Vai hoje morte, sabe, e no ao olvido,E que um rei. Espera-o j o algoz;A manh est ali, real e atroz.Sua carne no teme. Sempre tem sido,Como bom jogador, indiferente.

    Na vida at as fezes amargado,Agora est s entre a armada gente.

    No o infama o patbulo. Os juradosNo so o Jurado. Mui levemente

    Sada e sorri. Est acostumado.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    A um poeta saxo

    As neves da Nortmbria conheceramE o rastro de teus passos apagaramE entardeceres se multiplicaramQue entre ns, irmo cinza, feneceram.

    Lento, na lenta sombra, lavrariasPelos mares metforas de espadas.E do horror cujo pinhal moradaE da solido que trazem os dias.Onde buscar teu nome, onde teus traos?Essas so coisas que o antigo olvido Guarda.Eu ignoro como ter sidoQuando tu foste um homem neste espao.Desterrado, os caminhos tu seguiste;

    S teu cantar de ferro em ti persiste.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Buenos Aires

    Antes, eu te buscava em teus confinsQue lindam com a plancie e com o prDo sol e no gradil com seu frescorTo antigo de cedros e jasmins.

    Na memria de Palermo tu estavas,Em sua mitologia de um passadoDe baralho e punhal e no douradoBronze das desnecessrias aldravas,Com seu anel e mo. Eu te sentia

    Nesses ptios do Sul e na crescenteSombra que desdesenha lentamenteSua longa reta, ao declinar o dia.Agora ests em mim. s minha vaga

    Sorte, coisas essas que a morte apaga.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Buenos Aires

    E a cidade, agora, como um traadoDos fracassos e ofensas que vivi;Os ocasos desde essa porta eu viAnte esse mrmore, em vo, aguardados.

    O incerto ontem aqui, e o hoje distintoAqui os banais casos me deparamDe toda sorte humana; aqui armaramMeus passos o incontvel labirinto.Aqui o entardecer cinzento esperaO fruto que lhe devem as manhs;Minha sombra aqui pela no menos vSombra final ligeira ir, quimera.

    No nos une o amor, seno o espanto;

    Ser por isso que eu a quero tanto.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Ao filho

    No sou eu, so os mortos quem te gera.So meu pai, o seu pai, os de outras erasTraando um longo ddalo de amoresDesde Ado nos desrticos albores

    De Caim e de Abel, em sua auroraAntiga que j mitologia;Sangue e medula chegam a este diaQue est por vir, em que te gero agora.Sinto sua multido. Ns, somos nsE, entre ns, ests tu e teus futurosFilhos que hs de gerar. Os nasciturosE os do rubro Ado. Sou esses apsTambm. O eterno em coisas j fixadas

    Do tempo, que so formas apressadas.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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    Os compadritos mortos

    Prosseguem escorando a curva estreitaDo Paseo de Julio, sombras vsLutando sempre com sombras irmsOu com a fome, essa outra loba espreita.

    Quando o ltimo sol cor de lacaNa fronteira dos bairros, dos umbrais,Voltam a seu crepsculo, fataisE mortos, a sua puta e sua faca.Perduram em apcrifas histrias,

    Numa forma de andar, no s vibrarDe uma corda, num rosto, no assobiar,Em pobres coisas, em obscuras glrias.

    No ntimo do ptio, sob as parras,

    Quando os dedos temperam a guitarra.

  • 7/25/2019 O Outro, o Mesmo - Jorge Luis Borges

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