O Outro, O Mesmo

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O OUTRO, O MESMO____________

JORGE LUIS BORGES

Este livro: O Outro, o Mesmo parte integrante da coleo:

JORGE LUIS BORGESOBRAS COMPLETAS VOLUME II1952-1972 Ttulo do original em espanhol: Jorge Luis Borges - Obras Completas Copyright 1998 by Maria Kodama Copyright 1999 das tradues by Editora Globo S.A. 1 Reimpresso-9/99 2 Reimpresso-12/00 Edio baseada em Jorge Luis Borges - Obras Completas, publicada por Emec Editores S.A., 1989, Barcelona - Espanha. Coordenao editorial: Carlos V. Frias Capa: Joseph Ubach / Emec Editores Ilustrao: Alberto Ciupiak Coordenao editorial da edio brasileira: Eliana S Assessoria editorial: Jorge Schwartz Reviso das tradues: Jorge Schwartz e Maria Carolina de Araujo Preparao de originais: Maria Carolina de Araujo Reviso de textos: Mrcia Menin Projeto grfico: Alves e Miranda Editorial Ltda. Fotolitos: AM Produes Grficas Ltda. Agradecimentos a Adria Frizzi, Ana Gimnez, Christopher E Laferl, Edgardo Krebs, lida Lois, Eliot Weinberger, Enrique Fierro, Francisco Achcar, Haroldo de Campos, Ida Vitale, Jos Antnio Arantes e Maite Celada Direitos mundiais em lngua portuguesa, para o Brasil, cedidos EDITORA GLOBO S.A. Avenida Jaguar, 1485 CEP 05346-902 - Tel.: 3767-7000, So Paulo, SP

e-mail: [email protected] Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edio pode ser utilizada ou reproduzida - em qualquer meio ou forma, seja mecnico ou eletrnico, fotocpia, gravao etc. - nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorizao da editora. Impresso e acabamento: Grfica Crculo CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte - Cmara Brasileira do Livro, SP Borges, Jorge Luis, 1899-1986. Obras completas de Jorge Luis Borges, volume 2 / Jorge Luis Borges. - So Paulo : Globo, 2000. Ttulo original: Obras completas Jorge Luis Borges. Vrios tradutores. v. 1. 1923-1949 / v. 2.1952-1972 ISBN 85-250-2877-0 (v. 1) ISBN 85-250-2878-9 (v. 2) 1. Fico argentina 1. Ttulo. CDD-ar863.4 ndices para catlogo sistemtico 1. Fico : Sculo 20 : Literatura argentina ar863.4 1. Sculo 20 : Fico : Literatura argentina ar863.4

O OUTRO, O MESMO El Otro, El Mismo Traduo de Leonor Scliar-Cabral

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O O u tr o , O M esm o

PRLOGO

Dentre os muitos livros de versos que minha resignao, meu descuido e s vezes minha paixo foram rabiscando, O Outro, O Mesmo o que prefiro. A esto o "Outro poema dos dons", o "Poema conjectural", "Uma rosa e Milton" e "Junn", que, se a parcialidade no me engana, no me desonram. A esto tambm meus hbitos: Buenos Aires, o culto aos ancestrais, a germanstica, a contradio do tempo que passa e da identidade que perdura, meu estupor de que o tempo, nossa substncia, possa ser compartilhado. Este livro no outra coisa seno uma compilao. Os poemas foram sendo escritos para diversos moods e momentos, no para justificar um volume. Disso decorrem as previsveis monotonias, a repetio de palavras e talvez de linhas inteiras. Em seu cenculo da rua Victoria, o escritor chamemo-lo assim Alberto Hidalgo assinalou meu costume de escrever a mesma pgina duas vezes com variaes mnimas. Lamento ter-lhe respondido que ele no era menos binrio, com a ressalva, porm, de que, em seu caso particular, a primeira verso era de outro. Tais eram as deplorveis maneiras daquela poca, que muitos olham com nostalgia. Todos queramos ser heris de episdios triviais. A observao de Hidalgo era justa: "Alexander Selkirk" no difere notoriamente de "Odissia, livro vigsimo terceiro", "O punhal" prefigura a milonga que intitulei "Uma faca no Norte" e talvez a narrativa "O encontro". O estranho, o que jamais entenderei, que minhas segundas verses, como ecos apagados e involuntrios, costumam ser inferiores s primeiras. Em Lubbock, na fronteira do deserto, uma moa alta me perguntou se, ao escrever "O Golem", eu no havia intentado uma variao de "As runas circulares"; respondi-lhe que tivera de atravessar todo o continente para receber essa revelao, que era verdadeira. Ambas as composies, alm disso, tm suas diferenas; o sonhador sonhado est em uma, a relao da divindade com o homem e talvez a do poeta com a obra, na que depois redigi. As lnguas dos homens so tradies que carregam algo de fatal. Os experimentos individuais so, de fato, mnimos, salvo quando o inovador se resigna a lavrar um espcime de museu, um jogo destinado discusso dos historiadores da literatura ou ao mero escndalo, como o Finnegans Wake ou as Soledades. Atraiu-me s vezes a tentao de traduzir para o espanhol a msica do ingls ou do alemo; se tivesse executado essa aventura quase impossvel, eu seria um grande poeta, como aquele Garcilaso que nos deu a msica da Itlia, ou como aquele annimo sevilhano que nos deu a de Roma, ou como Daro, que nos deu a da Frana. No passei de um rascunho urdido com palavras de poucas slabas, que sensatamente destru.

curiosa a sorte do escritor. No incio barroco, vaidosamente barroco, e depois de alguns anos pode conseguir, se os astros forem favorveis, no a simplicidade, que no nada, mas a modesta e secreta complexidade. Menos que as escolas, educou-me uma biblioteca a de meu pai ; apesar das vicissitudes do tempo e das geografias, creio no ter lido em vo aqueles queridos volumes. No "Poema conjectural", verificar-se- a influncia dos monlogos dramticos de Robert Browning; em outros, a de Lugones e, assim o espero, a de Whitman. Ao rever estas pginas, senti-me mais prximo do simbolismo que das seitas ulteriores que sua corrupo engendrou e que agora o negam. Pater escreveu que todas as artes propendem condio da msica, talvez porque nela o fundo a forma, j que uma melodia no pode referenciar como o podem as linhas gerais de um conto. A poesia, admitido esse ditame, seria uma arte hbrida: a sujeio de um sistema abstrato de smbolos, a linguagem, a fins musicais. Os dicionrios tm a culpa desse conceito errneo. Costuma-se esquecer que so repertrios artificiosos, muito posteriores s lnguas que ordenam. A raiz da linguagem irracional e de carter mgico. O dinamarqus que articulava o nome de Thor e o saxo que articulava o nome de Thunor no sabiam se essas palavras significavam o deus do trovo ou o estrpito que sucede ao relmpago. A poesia quer voltar a essa antiga magia. Sem leis prefixadas, opera de modo vacilante e ousado, como se caminhasse na escurido. Xadrez misterioso a poesia, cujo tabuleiro e cujas peas mudam como em um sonho e sobre o qual me inclinarei depois de morto.

J. L. B.

INSNIADe ferro, de encurvadas vigas de enorme ferro tem de ser a noite, para que no a rebentem e a desenrazem as muitas coisas que meus abarrotados olhos viram, as duras coisas que insuportavelmente a povoam. Meu corpo fatigou os nveis, as temperaturas, as luzes: em vages de extensos trilhos, em um banquete de homens que se detestam, no fio rompido dos subrbios, em uma quinta quente de esttuas midas, na noite repleta onde abundam o cavalo e o homem. O universo desta noite contm a vastido do esquecimento e a preciso da febre. Quero em vo distrair-me do corpo e do desvelar de um espelho incessante que o prodigalize e que o espreite e da casa que repete seus ptios e do mundo que segue at um despedaado subrbio de becos onde o vento se cansa e de barro torpe. Em vo espero as desintegraes e os smbolos que precedem o sonho. Segue a histria universal: os rumos minuciosos da morte nas cries dentrias, a circulao de meu sangue e dos planetas. (Odiei a gua crapulosa de um charco, detestei, ao entardecer, o canto do pssaro.) As fatigadas lguas incessantes do subrbio do Sul, lguas de pampa lixeira e obscena, lguas de execrao no querem abandonar a memria. Lotes pantanosos, ranchos amontoados como ces, charcos de prata ftida: sou a detestvel sentinela dessas colocaes imveis.

Arame, terraplenos, papis mortos, sobras de Buenos Aires. Creio esta noite na terrvel imortalidade: nenhum homem morreu no tempo, nem mulher, nenhum morto, porque esta inevitvel realidade de ferro e de barro tem de atravessar a indiferena de quantos estejam adormecidos ou mortos ainda que se ocultem na corrupo e nos sculos e conden-los viglia espantosa. Toscas nuvens cor de borra de vinho infamaro o cu; h de amanhecer em minhas plpebras apertadas. Adrogu, 1936.

TWO ENGLISH POEMS1To Beatriz Bibiloni Webster de Bullrich

I

The useless dawn finds me in a deserted streetcorner; I have outlived the night. Nights are proud waves: darkblue topheavy waves laden with all hues of deep spoil, laden with things unlikely and desirable. Nights have a habit of mysterious gifts and refusals, of things half given away, half withheld, of joys with a dark hemisphere. Nights act that way, I tell you. The surge, that night, left me the customary shreds and odd1

DOIS POEMAS INGLESES A Beatriz Bibiloni Webster de Bullrich I

A intil alvorada me encontra em uma esquina deserta; sobrevivi noite. / As noites so ondas orgulhosas: ondas de pesada crista azul-escura cheias de tons de esplios fundos, cheias de coisas improvveis e desejveis. / As noites tm o hbito de misteriosas ddivas e recusas, de coisas meio dadas, meio retidas, de alegrias com escuro hemisfrio. As noites procedem assim, creia-me. / A vaga, nessa noite, deixou-me os pedaos e as sobras avulsas de costume: uns amigos odiados para bater papo, msica para sonhos e o fumegar de cinzas amargas. Coisas sem uso para meu corao faminto. / A grande onda trouxe voc. / Palavras, quaisquer palavras, seu riso; e voc, de uma to preguiosa e incessante beleza. Conversamos e se esqueceu das palavras. / Os estilhaos da alvorada me encontram em uma rua deserta de minha cidade. / Seu perfil que se desvia, os sons que compem seu nome, a cadncia de seu riso: ilustres brinquedos que voc me deixou. / Revolvo-os na alvorada, perco-os, encontro-os; revelo-os aos poucos ces erradios e s poucas estrelas erradias da alvorada. / Sua preciosa vida obscura... / Tenho de alcan-la, de algum modo: guardo esses ilustres brinquedos que voc me deixou, quero seu olhar oculto, seu sorriso real esse sorriso solitrio e zombeteiro que seu frio espelho conhece.

II Com que posso det-la? / Ofereo-lhe ruas decadas, ocasos desesperados, a lua dos subrbios maltrapilhos. / Ofereo-lhe o amargor de um homem que por longo e longo tempo contemplou a lua solitria. / Ofereo-lhe meus ancestrais, meus mortos, os espectros que os vivos honraram em mrmore: o pai de meu pai morto na fronteira de Buenos Aires, duas balas nos pulmes, barbudo e morto, envolto por soldados em uma pele de vaca; o av de minha me apenas vinte e quatro anos a comandar um ataque de trezentos homens no Peru, hoje espectros sobre cavalos extintos. / Ofereo-lhe qualquer intuio que meus livros tenham, qualquer hombridade ou humor de minha vida. / Ofereo-lhe a lealdade de um homem que jamais foi leal. / Ofereo-lhe esse meu cerne que de algum modo preservei o corao central que no lida com palavras, no comercia com sonhos e no foi tocado pelo tempo, pela alegria, pelas adversidades. / Ofereo-lhe a lembrana de uma rosa amarela vista no ocaso, anos antes de voc nascer. / Ofereo-lhe explicaes de si mesma, teorias de si mesma, novidades autnticas e surpreendentes acerca de si mesma. / Posso lhe dar minha solido, minha treva, a fome de meu corao; estou tentando alicila com incerteza, com perigo, com derrota. (Traduo de Jos Antnio Arantes.)

ends: some hated friends to chat with, music for dreams, and the smoking of bitter ashes. The things my hungry heart has no use for. The big wave brought you. Words, any words, your laughter; and you so lazily and incessantly beautiful. We talked and you have forgotten the words. The shattering dawn finds me in a deserted street of my city. Your profile turned away, the sounds that go to make your name, the lilt of your laughter: these are illustrious toys you have left me. I turn them over in the dawn, I lose them, I find them; I tell them to the few stray dogs and to the few stray stars of the dawn. Your dark rich life... I must get at you, somehow: I put away those illustrious toys you have left me, I want your hidden look, your real smile that lonely, mocking smile your cool mirror knows.

II

What can I hold you with? I offer you lean streets, desperate sunsets, the moon of the ragged suburbs. I offer you the bitterness of a man who has looked long and long at the lonely moon. I offer you my ancestors, my dead men, the ghosts that living men have honoured in marble: my fathers father killed in the frontier of Buenos Aires, two bullets through his lungs, bearded and dead, wrapped by his soldiers in the hide of a cow; my mothers grandfather just twentyfour heading a charge of three hundred men in Peru, now ghosts on vanished horses. I offer you whatever insight my books may hold, whatever manliness or humour my life. I offer you the loyalty of a man who has never been loyal. I offer you that kernel of myself that I have saved, somehow the central heart that deals not in words, traffics not with dreams and is untouched by time, by joy, by adversities. I offer you the memory of a yellow rose seen at sunset, years before you were born.

I offer you explanations of yourself, theories about yourself, authentic and surprising news of yourself. I can give you my loneliness, my darkness, the hunger of my heart; I am trying to bribe you with uncertainty, with danger, with defeat.

1934

A NOITE CCLICAA Sylvina Bullrich

Sabiam-no os rduos alunos de Pitgoras: As estrelas e os homens voltam ciclicamente; Os tomos fatais repetiro a urgente Afrodite de ouro e os tebanos e as goras. Em idades futuras oprimir o centauro O corao do lpita ao solpede casco; Quando Roma for p, na infinda noite, com asco Gemer, no palcio ftido, o minotauro. Toda a noite em mincias insone h de volver. A mo que isto redige renascer do igual Ventre. Frreas armadas erguero o abissal. (David Hume de Edimburgo o mesmo quis dizer.) No sei se voltaremos em um ciclo segundo, Como voltam as cifras de uma frao peridica; Sei, porm, que uma obscura rotao pitagrica Noite aps noite deixa-me em um lugar do mundo. Que pertence aos bairros. Uma esquina esquecida Que pode ser do norte, do sul, talvez do oeste, Que apresenta, porm, sempre uma taipa celeste, A figueira sombria e uma vereda rompida. A est Buenos Aires. O tempo, presenteando Com ouro ou amor os homens, a mim apenas deixa Esta rosa apagada ou esta intil madeixa De ruas que ecoam nomes mortos, evocando Em meu sangue: Laprida, Cabrera, Soler, Surez... Nomes em que retumbam (j secretas) as dianas, Repblicas, cavalos garbosos, as campanas Das felizes vitrias, as mortes militares. As praas demarcadas na noite sem senhor

So os profundos ptios de um rido palcio E suas ruas unnimes que engendram o espao, Corredores de sonho e de confuso temor. Volta a noite cncava que decifra Anaxgoras; Volta-me carne humana a eternidade constante E a lembrana, o projeto? de um poema incessante: "Sabiam-no os rduos alunos de Pitgoras..."

1940

DO INFERNO E DO CUO Inferno de Deus no necessita o resplendor do fogo. Quando o Juzo Universal retumbar nas trombetas, a terra tornar pblicas as vsceras, do p ressuscitarem as naes para acatar a Boca inapelvel, os olhos no vero os nove crculos da montanha invertida; nem os plidos prados e seus asfdelos perenes onde a sombra do arqueiro ento persegue, eternamente, a sombra gil da cora; nem a loba de fogo que no nfimo pavimento do inferno muulmano anterior a Ado e aos castigos; nem violentos metais e nem sequer mesmo a visvel treva de John Milton. No pesar odiado labirinto de triplo ferro e fogo doloroso sobre as almas atnitas dos rprobos. Nem o fundo dos anos tambm guarda um remoto jardim. Deus no requer, para alegrar os mritos do justo, orbes de luz, concntricas teorias de tronos, potestades, querubins, nem o espelho ilusrio de uma msica nem as profundidades de uma rosa nem o fulgor aziago de um somente de Seus tigres, tampouco o delicado de um ocaso amarelo no deserto, nem o sabor natal, antigo da gua. Em Sua misericrdia, nem jardins nem luz de uma esperana ou de lembrana. No cristal de um sonho eu vislumbrei o Cu e o Inferno todo prometidos: ao retumbar o Juzo nas trombetas ltimas e o planeta milenrio for esquecido e bruscas j cessarem Tempo! tuas efmeras pirmides,

teu colorido e linhas do passado definiro na treva um rosto imvel, adormecido, fiel, inaltervel (o da amada talvez, qui o teu) e a contemplao desse incorruptvel rosto contguo, intacto e incessante h de ser, para os rprobos, Inferno, porm para os eleitos, Paraso. 1942

POEMA CONJECTURALO doutor Francisco Laprida, assassinado no dia 22 de setembro de 1829 pelos guerrilheiros de Aldao, pensa antes de morrer:

Zunem as balas na ltima tarde. H vento frio e cinzas no vento, dispersam-se o dia e a batalha disforme, e dos outros a vitria. Vencem os brbaros, vencem gachos. Eu, que estudei a fundo as leis e os cnones, eu, Francisco Narciso de Laprida, cuja voz declarou a independncia destas cruis provncias, derrotado, de sangue e de suor manchado o rosto, sem temor ou esperana, j perdido, eu fujo at o Sul, por bairros ltimos. Tal como o capito do Purgatrio que, a p fugindo e ensangentando o cho, foi cegado e tombado pela morte onde um escuro rio perde o nome, assim hei de cair. Hoje o fim. A noite lateral dos vagos pntanos me espreita e me demora. Escuto os cascos de minha quente morte que me busca com ginetes, com belfos e com lanas. Eu que almejei ser outro, ser um homem de sentenas, de livros, de ditames, a cu aberto jazerei nos charcos; porm me endeusa o peito inexplicvel um jbilo secreto. Por fim me vejo com meu destino sul-americano. A esta ruinosa tarde me levava o labirinto mltiplo de passos que meus dias teceram desde um dia da infncia. Mas por fim eu descobri a recndita chave de meus anos, o fado de Francisco de Laprida,

a letra que faltava, esta perfeita forma que soube Deus desde o princpio. No espelho desta noite que me alcano o insuspeitado rosto eterno. O crculo se fecha. Eu aguardo que assim seja. Pisam meus ps a sombra j das lanas que me buscam. O escrnio desta morte, os ginetes, as crinas, os cavalos me circundam... E j o primeiro golpe, j o duro ferro que me racha o peito, a ntima facada na garganta. 1943

POEMA DO QUARTO ELEMENTO

O deus a quem um homem descendente de Atreu Prendeu em uma praia que o bochorno lacera Converteu-se em drago, em leo, numa pantera, Em rvore e em gua. Porque a gua Proteu. a nuvem, a imemorvel nuvem, a glria Do entardecer que afunda os subrbios abrasado; o Maelstrm que tecem os vrtices gelados, E a lgrima intil que dou a tua memria. Foi, nas cosmogonias, a origem em segredo Da terra que alimenta, do fogo que devora, Dos deuses que governam o poente e a aurora. (Assim o afirmam Sneca e Tales de Mileto.) O mar e a movente montanha que destri A embarcao de ferro so s tuas anforas, E o tempo irreversvel que nos foge e nos di, gua, nada mais do que uma de tuas metforas. Sob ventos destruidores, tu foste o labirinto Sem paredes, janelas, cujo caminho gris To longe desviou o idolatrado Ulisses, A Morte inexorvel e o Acaso indistinto. Brilhas tal como as lminas cruis dos alfanjes, De monstros, pesadelos, sonho, tu s hospedagem. Somam-te maravilhas as humanas linguagens E tua fuga se chama ora Eufrates, ora Ganges. (Afirmam que sagrada a gua do derradeiro, Mas, como os mares pactos obscuros conspiraram E o planeta poroso, tambm verdadeiro Afirmar que no Ganges todos j se banharam.) De Quincey, em tumultuadas madrugadas, sonhou Que se empedrou teu mar de rostos e de naes; Aplacaste o desejo de muitas geraes,

E a carne de meu pai e de Cristo em ti lavou-se. gua, eu te suplico. Por este sonolento Enlace de numricas letras que te digo, Recorda-te de Borges, teu nadador e amigo. No faltes a meus lbios no ltimo momento.

A UM POETA MENOR DA ANTOLOGIA

A memria dos dias onde est dos que na terra foram teus, tecendo dor e alegria e foram para ti o universo? O rio numervel desses anos j os perdeu; tu s uma palavra em um ndice. Deram a outros glria interminvel os deuses, inscries e exergos e monumentos e pontuais historiadores; de ti ns s sabemos, obscuro amigo, que ouviste o rouxinol, uma tarde. Por entre os asfdelos da sombra, tua v sombra pensar que os deuses foram avaros. Porm os dias so uma rede de triviais misrias, e haver melhor sorte que a cinza de que est feito o olvido? Os deuses sobre outros atiraram a inexorvel luz da glria, que observa as entranhas e enumera as gretas, da glria, que acaba por murchar a rosa que venera; foram contigo mais piedosos, irmo. No xtase de um entardecer que no ser uma noite, ouves a voz do rouxinol de Tecrito.

PGINA PARA RECORDAR O CORONEL SUREZ, VENCEDOR EM JUNN

Que importam as penrias, o desterro, a humilhao de envelhecer, a sombra crescente do ditador sobre a ptria, a casa no Barrio del Alto que venderam seus irmos enquanto guerreava, os dias inteis (os dias que se espera esquecer, os dias que se sabe que se ho de esquecer), sim, teve sua grande hora, a cavalo, no visvel pampa de Junn como em um cenrio para o futuro, como se o anfiteatro de montanhas fosse o futuro. Que importa o tempo sucessivo se nele houve uma plenitude, um xtase, uma tarde. Serviu treze anos nas guerras da Amrica. Por fim a sorte o levou ao Estado Oriental, aos campos do Ro Negro. Nos entardeceres pensaria que para ele havia florescido essa rosa: na batalha rubra de Junn, o instante infinito em que as lanas se tocaram, a ordem que moveu a batalha, a derrota inicial, e entre os fragores (no menos brusca para ele que para a tropa) sua voz gritando aos peruanos que arremeteram, a luz, o mpeto e a fatalidade do ataque, o furioso labirinto dos exrcitos, a batalha das lanas na qual no retumbou um s tiro, o godo que atravessou com o ferro, a vitria, a felicidade, a fadiga, um princpio de sono, e gente que morria nos pntanos, e Bolvar que pronunciava palavras sem dvida histricas e o sol j ocidental e o recuperado sabor da gua e do vinho, e aquele morto sem rosto porque o pisoteou e apagou a batalha... Seu bisneto escreve estes versos e uma tcita voz desde o antigo do sangue lhe chega: Que importa minha batalha de Junn se uma gloriosa memria, uma data que se aprende para um exame ou um lugar no atlas.

A batalha eterna e pode prescindir da pompa de visveis exrcitos com clarins; Junn so dois civis que em uma esquina maldizem um tirano, ou um homem obscuro que morre no crcere. 1953

MATEUS 25, 30

A primeira ponte da Constitucin e a meus ps Fragor de trens que teciam labirintos de ferro. Fumo e silvos escalavam a noite, Que de repente foi o Juzo Universal. Desde o invisvel horizonte E desde o centro de meu ser, uma voz infinita Disse estas coisas (estas coisas, no estas palavras, Que so minha pobre traduo temporal de uma nica palavra): Estrelas, po, bibliotecas orientais e ocidentais, Naipes, tabuleiros de xadrez, galerias, clarabias e pores, Um corpo humano para andar pela terra, Unhas que crescem na noite, na morte, Sombra que esquece, atarefados espelhos que multiplicam, Declives da msica, a mais dcil das formas do tempo, Fronteiras do Brasil e do Uruguai, cavalos e manhs, Um peso de bronze e um exemplar da Saga de Grettir, lgebra e fogo, o ataque de Junn em teu sangue, Dias mais populosos que Balzac, o aroma da madressilva, Amor e vspera de amor e lembranas intolerveis, O sonho como um tesouro enterrado, o dadivoso acaso E a memria, que o homem no olha sem vertigem, Tudo isso te foi dado, e tambm O antigo alimento dos heris: A falsidade, a derrota, a humilhao. Em vo te prodigalizamos o oceano, Em vo o sol, que viram os maravilhados olhos de Whitman; Gastaste os anos e te gastaram, E, contudo, no escreveste o poema. 1953

UMA BSSULAA Esther Zemborain de Torres

Todas as coisas so palavras lidas Na lngua em que Algo ou Algum, noite e dia, Escreve essa infinita algaravia Que a histria do mundo. Em sua corrida Passam Cartago e Roma, minha vida Que no entendo, eu, tu, ele, a agonia: Ser enigma, acaso, criptografia E as vozes de Babel desentendidas. Atrs do nome h o que no se cita; Hoje senti sua sombra que gravita Na lcida agulha azul que circula Leve, obstinada, at o fim do mar Com algo de relgio num sonhar E algo de ave dormida que tremula.

UMA CHAVE NA SALNICA

Abravanel, Faras ou Pinedo, Expulsos da Espanha por cruel Perseguio, mantm ainda fiel A chave de uma casa de Toledo. Livres agora de esperana e medo, Olham a chave sob o sol oblquo; No bronze, restam ontens, o longnquo, Cansado brilho e sofrimento quedo. Hoje que p sua porta, o instrumento E cifra da dispora e do vento, Afim com essa chave do santurio Que algum lanou ao cu, quando a incendiou O romano com fogo temerrio, E que a divina mo no azul captou.

UM POETA DO SCULO XIII

Retorna a olhar os rduos borradores Do primeiro soneto inominado, A pgina arbitrria, misturados Tercetos e quartetos pecadores. Lima, com lenta pena, seus rigores E se detm. Talvez tenham chegado Do futuro e de seu horror sagrado Remotos rouxinis e seus rumores. Ter sentido que no estava s E que o arcano, o incrvel deus Apolo, Lhe havia revelado aquele arqutipo, Um vido cristal que apreenderia O quanto a noite encerra ou abre o dia: Ddalo, labirinto, enigma, dipo?

UM SOLDADO DE URBINA

Suspeitando-se indigno de faanha Como aquela no mar, este soldado, A srdidos ofcios resignado, Errava obscuro por sua dura Espanha. Para apagar ou mitigar a sanha Do real, buscava, pois, pelo sonhado E lhe deram um mgico passado Os ciclos de Rolando e da Bretanha. Velaria, fundido o sol, o amplo Campo em que dura um resplendor de cobre; Julgava-se acabado, s e pobre, Sem saber de qual msica era dono; Ao afundar no sonho de algum sono, J andavam nele Dom Quixote e Sancho.

LIMITES

Destas ruas que afundam o poente, H uma (eu no sei qual) que percorri J pela ltima vez, indiferente, E, sem o adivinhar, me submeti A Quem prefixa onipotentes normas E uma secreta e rgida medida s sombras, e aos sonhos e s formas Que destecem e tecem esta vida. Se para tudo h fim, um nunca mais E o ltimo adeus, o esquecido, Quem nos dir de quem, nestes umbrais, Despedimo-nos desapercebidos? Cessa a noite atravs do cristal gris E, do cimo dos livros que partida Sombra espalha pelo tampo impreciso, Uma folha que nunca ser lida. No Sul mais de um porto enferrujado Com seus jarres de gesso e alvenaria E tunas, a meu trnsito vedado Como se fosse uma litografia. Para sempre alguma porta foi cerrada Por ti. E em vo o espelho aguarda e espia; A ti parece aberta a encruzilhada E, quadrifronte, Jano que a vigia. Uma h, dentre as memrias todas tuas, Que se perdeu irreparavelmente; No te vero baixar gua vertente Nem o branco sol nem dourada lua. Tua voz no voltar ao verso persa Em sua lngua de rosas e de aves, Quando no ocaso, ante a luz dispersa, Buscares por coisas inolvidveis.

E o incessante Rdano e o lago, Todo esse ontem sobre o qual me inclino? To perdido estar como Cartago Que a sal e fogo apagou o latino. Julgo ouvir, ao alvor, rumorejar Laborioso da turba se afastando; So quem me quis amar e me olvidar; Espao e tempo e Borges me deixando.

BALTASAR GRACINLabirintos, antteses, emblemas, Trabalhosa e fria quinquilharia Foi para este jesuta a poesia, Reduzida por ele a estratagemas. Na alma no houve msicas, alm De herbrio de metforas e argcias Ftil e a venerao s astcias, Pelo humano e sobre-humano, o desdm. No o moveu Homero, a antiga voz, Nem a de prata e lua de Virglio; No viu o fatal dipo no exlio, Nem Cristo que na cruz morre por ns. s lmpidas estrelas orientais Que na alva empalidecem seu fulgor, Apodou-as de nome pecador As galinhas dos campos celestiais. To ignorante foi do amor divino Como do outro que em rubras bocas arde, Surpreendeu-o a Plida uma tarde A recitar os versos de Marino. Seu destino ulterior no est na histria; Liberado s mudanas de uma impura Tumba o p que ontem foi sua figura, Ascendeu a alma de Gracin em glria. Que sentiria ao ver-se face a face Com os Arqutipos e os Esplendores? Talvez chorasse, ao dizer-se os pendores: S sombra e erros eu sorvi rapace. Que sucedeu quando o Sol implacvel, A Verdade de Deus, fogo lanou? A luz de Deus, quem sabe, que o cegou Na metade da glria interminvel.

Sei outra concluso. Dado a seus temas Minsculos, Gracin no viu a glria E segue resolvendo na memria Labirintos, antteses e emblemas.

UM SAXO (449 a.D.)

J se havia afundado a curva lua; Rude e ruivo o homem ao alvorecer, A duna minuciosa a desfazer-se, Pisou-a com receio a planta nua. Ao longe, atrs da plida baa, Viu brancas terras, montes em negrores, Nesse momento elementar do dia Quando Deus no criou ainda as cores. Era tenaz. Fizeram sua fortuna Rede, arado, remos, dardo, armadura; A garra que guerreava pde dura Gravar com ferro porfiada runa. De terra pantanosa procedia A esta que roem os pesados mares; Sobre ele abobadava-se qual dia O Destino, e tambm sobre seus lares, Woden ou Thunor, quem engalanou, Com mo torpe, de trapos e de cravos E em cujo altar ao arcano ofertou Seus ces, cavalos, pssaros e escravos. Para cantar as glrias ou lembranas, Cunhava operosos nomes e aes; A guerra era o encontro dos vares, Era tambm o encontro de mil lanas. De magias, seu mundo era no mar, De lobos, realezas e do Fado Que no perdoa, e do horror sagrado No cerne do pinhal a latejar. Trazia essas palavras essenciais De uma lngua que o tempo exaltaria

A msica de Shakespeare: noite, dia, E o fogo, gua, cores e metais, Fome, sede, amargura, sonho, guerra, Morte e outros humanos tantos males; Em rduos montes e em abertos vales, Seus filhos engendraram a Inglaterra.

O GOLEM

Se (como o grego no Crtilo di-lo) Da coisa o nome sua idia pura, Nos sons de rosa a rosa e perdura. E todo o Nilo, na palavra Nilo. E, feito de consoantes e vogais, Nome terrvel h de haver, que a essncia Cifre de Deus e que a Onipotncia Guarde em letras e slabas cabais. Ado e os astros t-lo-o achado No Jardim. A ferrugem do pecado O apagou (os cabalistas contaram): E as geraes por vir o extraviaram. O artifcio dos homens, sua candura No tm fim. Sabemos, sim, que houve um dia Em que o povo de Deus ia em procura Do Nome, em viglias da judiaria. No maneira de outras que uma vaga Sombra insinuam sobre a vaga histria, Verde est ainda e viva a memria De Jud Leo, que era rabino em Praga. Sedento de saber o que Deus sabe, Deu-se Jud Leo a permutaes De letras e a complexas variaes E ao fim pronunciou o Nome que a Clave, A Porta, o Eco, o Hspede e o Pao, Sobre um boneco que com as mos lavrou Torpemente, e os arcanos lhe ensinou Das Letras, e do Tempo e do Espao. As sonolentas plpebras alou O simulacro e viu formas e cores Sem entender, perdidas em rumores,

E temerosos gestos ensaiou. Gradualmente (como ns) viu-se ele Aprisionada na rede sonora Do Antes, Depois, Ontem, Enquanto, Agora, Direita, Esquerda, Eu, Tu, Outros, Aqueles. (O cabalista que oficiou de nume Ao ser enorme chamou-o de Golem; Estas verdades as refere Scholem Em um douto lugar de seu volume.) O rabi lhe explicava o universo "Isto meu p; isto, o teu; isto, a soga". Conseguiu, depois de anos, que o perverso Varresse bem ou mal a sinagoga. Talvez houvesse um erro na grafia Ou no Sacro Nome que articulou; Mesmo com to alta feitiaria, Falar, o aprendiz de homem no falou. Seus olhos, muito mais de co que de homem E muito mais de coisa que de co, O rabi seguem onde se consomem Dbias sombras nas peas da priso. Algo anormal e tosco houve no Golem: O gato do rabi, a seu andar, Fugia. (Esse gato no est em Scholem Mas, com o tempo, passei a adivinhar.) Elevando a seu Deus mos filiais, As devoes de seu Deus as copiava Ou, estpido e rindo, se dobrava Em cncavas mesuras orientais. O rabi o olhava com ternura E com algum horror. Como (dizia-se) Pude gerar este penoso filho E a inao deixei, que a cordura? Por que dei em somar infinita Srie um smbolo mais? Por que meada Ftil, na eternidade emaranhada, Dei outra causa, efeito, outra desdita?

Nos momentos de angstia e de luz vaga, Em seu Golem o olhar permanecia. Quem nos dir as coisas que sentia Deus, ao observar seu rabino em Praga? 1958

O TANGO

Onde estaro? Pergunta-se a elegia De quem no vive mais, como se houvesse Uma regio em que o Ontem pudesse Ser o Hoje, o Ainda e o Todavia. Onde estar (repito) o malfeitor Que fundou nesses becos empoeirados De terra ou nos perdidos povoados A seita do faco, do destemor? Onde estaro aqueles que passaram, Deixando epopia um episdio, Uma fbula ao tempo e que, sem dio, Lucro ou paixo de amor se esfaquearam? Em sua lenda eu os busco, derradeira Brasa que, a modo de uma vaga rosa, Guarda algo dessa chusma valorosa Vinda dos Corrales, de Balvanera. Em quais escuros becos, em que ermos Do outro mundo se instalar a dura Sombra de quem era uma sombra escura, Muraa, essa navalha de Palermo? E esse Iberra fatal (de quem os santos Se apiadem) que na ponte de uma via Matou seu irmo Nato, que devia Mais mortes que ele e assim igualou tantos? Uma mitologia de punhais Lentamente se anula no esquecer-se; Uma cano de gesta foi perder-se Em srdidas notcias policiais. H outra brasa, outra candente rosa Das cinzas que inteiros guardar; Soberbos navalhistas esto l

E a adaga, com seu peso, silenciosa. Embora a adaga hostil, essoutra adaga, O tempo, os perdessem em maldio, Hoje, ultrapassando o tempo e a aziaga Morte, os mortos no tango vivero. Na msica esto, e na cordagem Da teimosa guitarra trabalhosa, Que trama na milonga venturosa A festa e a inocncia da coragem. Gira no baldio a amarela roda De cavalos e lees, e ouo o ecoar Desses tangos de Greco e os de Arolas Que eu vi pelas caladas a bailar, Num instante que emerge hoje isolado, Sem antes nem depois, contra o olvido, E que tem o sabor do j perdido, Do j perdido e do recuperado. Nos acordes, antigas coisas gemem: O outro ptio com a entrevista parra. (Por trs dessas paredes que ainda temem, O Sul guarda um punhal e uma guitarra.) Essa rajada, o tango, essa diabrura, Os trabalhosos anos desafia; Feito de p e tempo, o homem dura Menos que a inconseqente melodia, Que s tempo. O tango cria um turvo Passado irreal, pouco se duvida, A lembrana incrvel de dar a vida Brigando, numa esquina do subrbio.

O OUTRO

No primeiro dos vastos e milhares Hexmetros de bronze, a vista cega, Invoca o fogo arcano ou a musa e lega A ira de Aquiles em cantares. Sabia que outro um Deus o que fere Com raio brusco nossa faina obscura; Sculos depois diria a Escritura Que o Esprito assopra onde quer. A cabal ferramenta a seu escolhido D sem piedade o deus jamais nomeado: A Milton a sombra de emparedado, O desterro a Cervantes e o olvido. seu o que perdura na memria Do tempo secular. Nossa a escria.

UMA ROSA E MILTON

Das geraes das rosas desfolhadas Que o fundo do tempo as viu se perderem Quero uma salva dos que a esquecerem, Uma entre as coisas sem signo ou marcadas Que j foram. O fado tem-me posto Este dom de nomear por vez primeira Essa flor silenciosa, a derradeira Rosa que aproximou Milton ao rosto, Sem v-la. Tu, branca rosa ou vermelha Ou amarela de um jardim fanado, Deixa magicamente teu passado Immore no verso qual centelha, Ouro, sangue ou marfim ou tenebrosa Como em suas mos, invisvel rosa.

LEITORES

Do fidalgo de seca e ctrea tez E de um herico af se conjectura Que, em vspera perptua de aventura, Na biblioteca se encerrou de vez. Seus empenhos, que as crnicas pontuais Narram, e os tragicmicos desplantes, Quem as sonhou foi ele, no Cervantes: So crnicas de sonhos, nada mais. Tal, tambm, minha sorte. Existe algo Imortal e essencial que sepultei Nessa biblioteca do antigo, sei, Em que li a histria do fidalgo. As lentas folhas volta a criana e grave Sonha com vagas coisas que no sabe.

JOO 1, 14

Os contos orientais j discorriam Sobre um rei do tempo que, submetido Ao tdio e ao esplendor, ia escondido E sozinho, e os subrbios percorria E se perdia entre a turba da gente De calejadas mos, nomes banais; Agora, como aquele Emir dos Crentes, Harun, Deus quer andar entre os mortais E nasce de uma me, tal como nascem As linhagens que em poeira se desfazem, E lhe ser entregue este orbe inteiro, Ar, gua, po, manhs, pedras e lrios, Porm, depois, o sangue do martrio, O escrnio, os cravos e o madeiro.

O DESPERTAR

Entra a luz e ascendo torpemente Desde os sonhos ao sonho partilhado E as coisas readquirem seu esperado E devido lugar e no presente Converge assustador e vasto o vago Ontem: as seculares migraes Do pssaro e dos homens, as legies Que o ferro destruiu, Roma e Cartago. Volta tambm a cotidiana histria: Meu rosto e voz, e meu temor e sorte. Ah! Se aquele outro despertar, a morte, Deparasse-me um tempo sem memria Do nome meu e do que eu tenho sido! Ah! Se nessa manh houvesse olvido!

A QUEM J NO JOVEM

J podes ver o trgico cenrio E cada coisa no lugar devido; A espada, a chama e a cinza para Dido E a moeda para Belisrio. Por que insistir, buscando no brumado Bronze desses hexmetros a guerra, Se aqui esto os sete palmos de terra, O brusco sangue e o fosso j escavado? Aqui te espreita o espelho sem sondagem Que sonhar e esquecer a imagem Dos derradeiros dias e agonias. J se aproxima o ltimo. E a mansarda Onde tua tarde passa breve e tarda E a rua que tu vs todos os dias.

ALEXANDER SELKIRK

Sonho que o mar, aquele mar, me encerra E do sonho sadam-me as salvas De Deus, que santificam as frias alvas Destes ntimos campos da Inglaterra. Cinco anos padeci olhando eternas Coisas de solido e de infinito, Que ora so essa histria que repito, J como uma obsesso, pelas tavernas. Deus retornou-me ao mundo dos mortais, A espelhos, cifras, nomes e umbrais, E j no sou mais quem eternamente Olhava a estepe profunda do mar. Como farei para outros avisar Que estou aqui salvo entre minha gente?

ODISSIA, LIVRO VIGSIMO TERCEIRO

J as espadas de ferro executaram O devido trabalho da vingana; J os dardos mais speros e a lana O sangue do perverso prodigaram. A despeito de um deus, dos mares seus, Volta ao reino e rainha o intrpido Ulisses, a despeito do estrpito De Ares, dos ventos grises e de um deus. J no amor do compartilhado leito Dorme a insigne rainha sobre o peito De seu rei, onde est o homem, porm, Que nos dias e noites pelo mundo Errava proscrito, co vagabundo, Dizendo que seu nome era Ningum?

ELE

Os olhos de tua carne vem o lume Do insofrvel sol, tua carne toca P espalhado ou apertada roca; Ele a luz, o amarelo, o negrume. e os v. Desde olhos incessantes Te observa e so os olhos a indagar Um reflexo e so o espelho a olhar, Hidras negras e os tigres flamejantes. No lhe basta criar. Cada uma Sua Criatura de Seu estranho mundo: As razes porfiadas do profundo Cedro e as mutaes da volvel lua. Chamavam-me Caim. Por mim o Eterno Sabe o sabor do fogo do inferno.

SARMIENTO

No o ofuscam o mrmore e a glria. Nossa assdua retrica no lima Sua rude realidade. As aclamadas Datas de centenrios e de fastos No fazem com que este homem solitrio Seja menos que um homem. No antigo Eco que multiplica a fama cncava Ou, como aquele ou este, um branco smbolo Que podem manejar as ditaduras. ele. E testemunha ele da ptria, Quem nos v, nossa infmia e nossa glria, A luz de Maio e o horror de Rosas E o outro pavor ainda e os secretos dias Do porvir minucioso. Ele algum Que segue odiando, amando e combatendo. Sei que naquelas alvas de setembro Que no esquecer ningum, nem pode Algum contar, sentimos. Seu teimoso Amor quer nos salvar. E noite e dia Caminha entre os homens que lhe pagam (Porque no morreu) seu jornal de injrias Ou de veneraes. Vai abstrado E em sua larga viso como num mgico Cristal que a um s tempo encerra as trs faces Do tempo que depois, antes, agora, Sarmiento o sonhador segue sonhando-nos.

A UM POETA MENOR DE 1899

Deixar um verso para a hora triste Que nos espreita no dia morrente, Ligar teu nome a sua data dolente De ouro e de vaga sombra. Isto pediste. Com que paixo, ao declinar do dia, Trabalharias tu o estranho verso Que, at o dispersar-se do universo, A hora de estranho azul confirmaria! No sei se teu labor o conseguiu, Meu vago irmo maior, ou se exististe, Mas estou s e o olvido em que caste Que restitua aos dias tua sutil Sombra para este j cansado alarde De umas palavras em que esteja a tarde.

TEXAS

Aqui tambm. Aqui, tal como no outro Limite do continente, o infinito Campo em que solitrio morre o grito; Aqui tambm o ndio, o lao, o potro. Aqui tambm o pssaro secreto Que por sobre os fragores da histria Canta para uma tarde e sua memria; Aqui tambm o mstico alfabeto Dos astros, que hoje ditam a meu clamo Nomes que o infatigvel labirinto Dos dias no arrasta: So Jacinto E essas outras Termpilas, El lamo. Aqui tambm essa desconhecida E ansiosa e breve coisa que a vida.

COMPOSIO ESCRITA EM UM EXEMPLAR DA GESTA DE BEOWULF

s vezes me pergunto que razes Me movem a estudar sem esperana De preciso, enquanto a noite avana, Esta lngua dos speros saxes. J gasta pelos anos a memria Deixa cair a em vo e repetida Palavra e assim como minha vida Tece e destece sua cansada histria. Ser (me digo) que de um suficiente E mais secreto modo a alma sabe Que imortal e que seu vasto e grave Crculo tudo abarca onipotente. Para alm deste af e deste verso Me espera inesgotvel o universo.

HENGIST CYNING

EPITFIO DO REI

Sob a pedra jaz o corpo de Hengist Que fundou nestas ilhas o primeiro reino Da estirpe de Odin E saciou a fome das guias.

FALA O REI No sei que runas ter marcado o ferro na pedra Mas minhas palavras so estas: Sob os cus eu fui Hengist, o mercenrio. Vendi minha fora e minha coragem aos reis Das regies do ocaso que lindam Com o mar que se chama O Guerreiro Armado com Lana, Mas a fora e a coragem no suportam Que as vendam os homens E assim, depois de ter esfaqueado no Norte Os inimigos do rei breto, Tirei-lhe a luz e a vida. Agrada-me o reino que ganhei com a espada; H rios para o remo e para a rede E longos veres E terra para o arado e para o rebanho E bretes para trabalh-la E cidades de pedra que entregaremos desolao, Porque as habitam os mortos. Eu sei que a minhas costas Me tacham de traidor os bretes, Mas eu fui fiel a minha valentia E no confiei meu destino aos outros E nenhum homem se atreveu a trair-me.

FRAGMENTOUma espada, Uma espada de ferro forjada no frio da alva, Uma espada com runas Que ningum poder desdenhar nem decifrar totalmente, Uma espada do Bltico que ser cantada na Nortmbria, Uma espada que os poetas Igualaro ao gelo e ao fogo, Uma espada que um rei dar a outro rei E este rei a um sonho, Uma espada que ser leal At uma hora que j sabe o Destino, Uma espada que iluminar a batalha. Uma espada para a mo Que comandar a formosa batalha, o tecido de homens, Uma espada para a mo Que avermelhar os dentes do lobo E o desapiedado bico do corvo, Uma espada para a mo Que prodigalizar o ouro rubro, Uma espada para a mo Que dar morte serpente em seu leito de ouro, Uma espada para a mo Que ganhar um reino e perder um reino, Uma espada para a mo Que derrubar a selva de lanas. Uma espada para a mo de Beowulf.

A UMA ESPADA EM YORK MINSTER

Em seu ferro perdura o homem forte, Hoje p de planeta, que nas guerras De speros mares e arrasadas terras Esgrimiu, em vo no fim, contra a morte. Tambm a morte v. A esta paragem, Desde a Noruega, homem feral e lvido, Pelo pico destino veio urgido; Sua lana hoje seu nome e sua imagem. Pese ao desterro e morte prolongada, A mo atroz segue oprimindo a espada E sou sombra na sombra ante o guerreiro Cuja sombra est aqui. Eu sou um instante E o instante cinza, nunca diamante. E somente o passado verdadeiro.

A UM POETA SAXO

Tu cuja carne, hoje disperso e p, Pesou como a nossa sobre a terra, Tu cujos olhos viram o sol, essa famosa estrela, Tu que viveste no no rgido ontem Mas sim no incessante presente, No ltimo ponto e pice vertiginoso do tempo, Tu que em teu mosteiro foste chamado Pela antiga voz da pica, Tu que teceste as palavras, Tu que cantaste a vitria de Brunanburh E no a atribuste ao Senhor Mas sim espada de teu rei, Tu que com jbilo feroz cantaste A humilhao do viking, O festim do corvo e da guia, Tu que na ode militar congregaste As rituais metforas da estirpe, Tu que num tempo sem histria Viste no agora o ontem E no suor e sangue de Brunanburh Um cristal de antigas auroras, Tu que tanto amavas tua Inglaterra E no a nomeaste, Hoje no s outra coisa que umas palavras Que os germanistas anotam. Hoje no s outra coisa que minha voz Quando revive tuas palavras de ferro. Peo a meus deuses ou soma do tempo Que meus dias meream o esquecimento, Que meu nome seja Ningum como o de Ulisses, Porm que algum verso perdure Na noite propcia memria Ou nas manhs dos homens.

SNORRI STURLUSON (1179-1241)

Tu, que legaste uma mitologia De gelo e fogo filial memria, Tu, que fixaste a to violenta glria De tua estirpe pirtica e bravia, Sentiste, com assombro numa tarde De espadas, tua humana carne a fremir Triste. Naquela tarde sem porvir Te foi dado saber que eras covarde. Na noite da Islndia, a amarga e salobre Borrasca move o mar. Est cercada Tua casa. At as fezes engolida A inesquecvel desonra. Por sobre Tua plida cabea cai a espada, Tantas vezes no livro teu cada.

A CARLOS XII

Viking da vasta estepe, Carlos doze Da Sucia, que cumpriste at o fim De Norte a Sul a rdua via de Odin, Divino antecessor, a que se imps e Cujos trabalhos movem a memria Dos homens epopia, a batalha Mortal, o terror duro da metralha, A firme espada e a sangrenta glria. Soubeste que vencer ou ser vencido So faces de um Acaso indiferente, Que outro valor no h que ser valente E o mrmore, ao final, ser o olvido. Ardes glacial, mais que o deserto s s; Ningum chegou a tua alma e morto s p.

EMANUEL SWEDENBORG

Mais alto do que os outros, caminhava Aquele homem entre os homens circunspecto; Apenas os chamava por secretos Nomes os celestiais anjos. Olhava O que no vem os olhos terrenais: A ardente geometria, o cristalino Edifcio de Deus e o torvelino De imundices dos gozos infernais. Sabia ele que a Glria e o Averno Em tua alma esto e suas mitologias; Como o grego, sabia que os dias Do tempo so os espelhos do Eterno. Em rido latim foi registrando ltimas coisas sem por qu nem quando.

JONATHAN EDWARDS(1703-1785)

Longe da cidade, longe do foro Clamoroso e do tempo, que mudana, Edwards, eterno j, sonha e avana sombra de copados ramos de ouro. Hoje ontem e amanh. No floresce Uma coisa de Deus no calmo ambiente Que no o exalte misteriosamente, O ouro do luar, ou quando entardece. Pensa feliz que o mundo um eterno Instrumento de ira e que o ansiado Cu foi para pouqussimos criado E quase para todos foi o inferno. No centro pontual do emaranhado H Deus, a Aranha, o outro aprisionado.

EMERSON

Este alto cavalheiro americano O denso livro de Montaigne fecha E busca outro gozo que no se deixa Por menos, a tarde que exalta o plano. At o fundo do poente descendo, At o limite que o poente matiza, Como agora, nos campos ele pisa, Para lembrarem de quem est escrevendo. Medita: Eu li os livros essenciais E outros compus que no h de apagar O obscuro olvido. A um Deus coube me doar O que dado saber a ns, mortais. Meu nome o continente anda a correr; No vivi. Outro homem queria ser.

EDGAR ALLAN POE

Pompa marmrea, negra anatomia Que ultrajam os vis vermes sepulcrais, Da morte triunfal os glaciais Smbolos congregou. No os temia. Outras sombras temia, as amorosas, As venturas comuns de toda a gente; No o cegaram o metal luzente, O mrmore da tumba, mas a rosa. Assim como no espelho, do outro lado, Solitrio entregou-se ele a seu fado Complexo de inventor de pesadelos. Do outro lado, talvez, da ignota morte, Siga erigindo textos, s e forte, Atrozes, belos e ouse escrev-los.

CAMDEN, 1892

O cheiro do caf e dos peridicos. O domingo e seu tdio. De manh E na entrevista pgina essa v Publicao de versos alegricos De um colega feliz. Branco e prostrado, O velho permanece em sua decente Habitao de pobre. Ociosamente Olha a cara no espelho fatigado. J sem assombro, ento, ele medita Que o rosto ele. A mo toca alheada A barba turva e a boca saqueada. No est longe o final. Sua boca dita: Quase no sou, porm meus versos ritmam A vida e seu esplendor. Eu fui Walt Whitman.

PARIS, 1856

longa prostrao acostumado, Antecipou a morte. Temeria Expor-se ao agitado e ofenso dia E andar por entre os homens. Derrubado, Heine pensa naquele rio em breu, O tempo, que o afasta lentamente Dessa longa penumbra e do dolente Destino de ser homem e ser judeu. Pensa nas delicadas melodias Cujo instrumento foi, porm bem sabe Que o trino no da rvore nem da ave, Seno do tempo e de seus vagos dias. Teus rouxinis no serviro de nada, Nem noites de ouro e tuas flores cantadas.

RAFAEL CANSINOS-ASSNS

A imagem daquele povo execrado, Lapidado, imortal em sua agonia, Nas escuras viglias o atraa Com um qu de horror santo e sagrado. Bebeu como quem bebe um vinho bento Os Salmos e os Cantares da Escritura E sentiu que era sua essa doura E sentiu que era seu aquele intento. Israel o chamava. Intimamente Cansinos a ouviu como o profeta Na esfera secretssima a secreta Voz do Senhor, da flmea sara ardente. Acompanhe-me sempre sua memria; As outras coisas as dir a glria.

OS ENIGMAS

Eu que agora sou quem est cantando Amanh serei o morto, o iniciado Habitante de um orbe despovoado, Mgico, sem depois, antes ou quando. Assim afirma a mstica. Indigno Me julgo, quer do Inferno, quer da Glria, Mas nada profetizo. Nossa histria, Como as de Proteu, muda formas, signos. Que errante labirinto, que brancura Cega de resplandor ser-me- a sorte, Ao entregar-me ao fim desta aventura A experincia incgnita da morte? Quero beber seu cristalino Olvido, Ser para sempre; mas jamais ter sido.

O INSTANTE

Onde as eras, o sonho derradeiro De espadas com que os trtaros sonharam, Onde as fortes paredes que arrombaram, E a rvore de Ado, e o outro Madeiro? O presente est s. S a memria Erige o tempo. Sucesso e engano So a rotina do relgio. O ano Menos vo no do que a v histria. H um abismo entre o albor e o sol que desce De agonias, de luzes, de cuidados; O rosto, ao se mirar nos desgastados Cristais da noite, no se reconhece. O hoje fugaz tnue e eterno; Nem outro Cu esperes, nem Inferno.

AO VINHO

J no bronze de Homero teu nome resplandece, Negro vinho que o mago dos homens aqueces. De mo em mo tu viajas faz centenas de anos Desde o rton dos gregos ao corno dos germanos. Na aurora tu j l estavas. s geraes Lhes deste no caminho teu fogo e teus lees. Junto quele outro rio de noites e de dias O teu corre e o aclamam amigos e alegrias, Vinho que como Eufrates patriarcal e profundo Vais fluindo ao longo da vasta histria do mundo. Em teu cristal que vive, nosso olhar com amor Viu metfora rubra do sangue do Senhor. Nas mais arrebatadas estrofes do sufi Tu s a rosa, a curva cimitarra e o rubi. Que os outros em teu Letes bebam um triste olvido; Eu busco em ti as festas do fervor compartido. Ssamo com o qual antigas noites eu abro E, nas pesadas trevas, ddiva e candelabro. Vinho do mtuo amor ou ento da rubra peleja, Algumas vezes eu te chamarei. Que assim seja.

SONETO DO VINHO

Em que reino, em que sculo, sob que silenciosa Conjuno das estrelas, em que secreto dia Que no salvou o mrmore, surgiu a valiosa E singular idia de inventar a alegria? Com outonos dourados a inventaram. O vinho Espesso e rubro flui ao longo das geraes, Como o rio do tempo, e como no rduo caminho Nos prodiga sua msica, seu fogo e seus lees. Pelas noites de jbilo ou na jornada adversa Ele exalta a alegria ou mitiga-nos o espanto, E o ditirambo novo que este dia lhe canto Outrora o decantaram o rabe e o persa. Vinho, mostra-me a arte de ver-me a prpria histria Como se esta j fosse s cinza na memria.

1964

I J no mgico o mundo. Deixaram-te. A clara lua no compartirs Nem os lentos jardins. Lua no h Que no seja espelho dos que passaram, Cristal de solido, sol de agonias. Adeus s mtuas mos e s latejantes Fontes que aproximava o amor. Restantes, A memria fiel, desertos dias. Ningum perde (tu repetes baldamente) Seno o que no tem, sem nunca ter, Mas no basta, somente, ser valente Para aprender a arte de esquecer. Um smbolo, uma rosa te desgarra E pode te matar uma guitarra.

II J no serei feliz. Mas tanto faz. H tantas outras coisas neste mundo; Um instante qualquer mais profundo, Diverso que o mar. A vida, fugaz, E embora as horas passem devagar, Obscura maravilha nos expecta, A morte, esse outro mar, essa outra seta Que do sol nos libera e do luar E do amor. A alegria que me doaste E me tiraste, que seja apagada; O que era tudo se transforme em nada. O gozo de estar triste s me baste, Este costume vo que a mim inclina Ao Sul, a certa porta, a certa esquina.

A FOME

Me atroz e antiga da incestuosa guerra, Seja apagado teu nome da face da Terra. Tu que arrojaste ao crculo do horizonte aberto A alta proa do viking, as lanas do deserto. Na alta Torre da Fome de Ugolino de Pisa Ergueste teu monumento e na estrofe concisa Que nos deixa entrever (somente entrever) os dias ltimos e, na sombra que cai, as agonias. Tu que de seus pinhais fazes com que surja o lobo E que guiaste a mo de Jean Valjean ao roubo. Uma de tuas imagens este silencioso Deus que entredevora o orbe sem ira e sem repouso, O tempo. H outra deusa do escuro e da ossama; A fome seu po nosso e a insnia sua cama. Tu que a morte de Chatterton no tico selas Entre os cdices falsos e uma lua amarela. Tu que entre o nascimento do homem e sua agonia Pedes em orao nosso po de cada dia. Tu cuja lenta espada corri as geraes E sobre os obstinados lanas ferozes lees. Me atroz e antiga da incestuosa guerra, Seja apagado teu nome da face da Terra.

O FORASTEIRO

Despachadas as cartas e o telegrama, caminha pelas ruas indefinidas e constata leves diferenas que no lhe importam e pensa em Aberdeen ou em Leyden, mais vvidas para ele que este labirinto de linhas retas, no de complexidade, aonde o leva o tempo de um homem cuja verdadeira vida est longe. Num aposento numerado se barbear depois diante de um espelho que no voltar a refleti-lo e lhe parecer que esse rosto mais inescrutvel e mais firme que a alma que o habita e que ao longo dos anos o lavra. Cruzar contigo numa rua e talvez notes que alto e gris e que observa as coisas. Uma mulher indiferente lhe oferecer a tarde e o que acontece do outro lado de uma porta. O homem pensa que esquecer seu rosto e recordar, anos depois, perto do Mar do Norte, a persiana ou a lmpada. Essa noite, seus olhos contemplaro, num retngulo de formas que foram, o ginete e sua pica plancie, porque o Far West abarca o planeta e se espelha nos sonhos dos homens que nunca nele pisaram. Na numerosa penumbra, o desconhecido se julgar em sua cidade e o surpreender sair noutra, de outra linguagem e de outro cu. Antes da agonia, o inferno e a glria nos foram dados; andam agora por esta cidade, Buenos Aires, que para o forasteiro de meu sonho

(o forasteiro que eu fui sob outros astros) uma srie de imprecisas imagens feitas para o olvido.

A QUEM ME EST LENDO

Tu s invulnervel. No te doaram Os numes que comandam teu destino A certeza do p? No , acaso, Teu tempo irreversvel o do rio Em cujo espelho viu o signo Herclito De que ele era fugaz? Te espera o mrmore Que no lers. J nele esto gravados As datas, a cidade e o epitfio. Sonhos do tempo so tambm os outros, No firme bronze nem depurado ouro; Proteu o universo, teu igual. Sombra, irs sombra que te aguarda Fatal quando findares tua jornada; Pensa que de algum modo s j cadver.

O ALQUIMISTA

Lento no alvor um jovem desgastado Por longa reflexo e por avaras Viglias considera ensimesmado Os insones braseiros e alquitaras. Sabe que o ouro espreita, esse Proteu, Seja qual for o acaso, como os fados; Sabe-o no arco, flecha, braos armados No p que nos caminhos dissolveu. Na obscura viso de um secreto ser Que se oculta nos astros e no lodo, Lateja outro sonho de que o todo gua, como Tales julgou ver. Outra viso ter; a de um eterno Deus que em tudo e o olhar ubquo pousa, Como explica o geomtrico Spinoza Num livro bem mais rduo que o Averno... No azul dos vastos lindes orientais Esvaem-se os planetas na alva quieta, O alquimista pensa nas secretas Leis que ligam planetas e metais. E entretanto cr tocar j incendido O ouro aquele que a Morte matar. Deus, mestre da alquimia, o inverter Em P, ningum, em nada, enfim, no olvido.

ALGUM

Um homem trabalhado pelo tempo, um homem que nem sequer espera a morte (as provas da morte so estatsticas e no h ningum que no corra o risco de ser o primeiro imortal), um homem que aprendeu a agradecer as modestas esmolas dos dias: o sonho, a rotina, o sabor da gua, uma no suspeitada etimologia, um verso latino ou saxo, a lembrana de uma mulher que o abandonou j faz tantos anos que hoje pode record-la sem amargura, um homem que no ignora que o presente j o futuro e o esquecimento, um homem que foi desleal e com quem foram desleais pode sentir de repente, ao cruzar a rua, uma misteriosa felicidade que no vem do lado da esperana mas sim de uma antiga inocncia, de sua prpria raiz ou de um deus disperso. Sabe que no deve olh-la de perto, porque h razes mais terrveis que tigres que lhe demonstraro seu dever de ser um desventurado, porm humildemente recebe essa felicidade, esse lampejo. Talvez na morte para sempre sejamos, quando o p for p, essa indecifrvel raiz, da qual para sempre crescer, equnime ou atroz, nosso solitrio cu ou inferno.

EVERNESS

S no h uma coisa. o esquecer. Deus, que salva o metal, salva a escria E cifra em Sua proftica memria As luas que j foram e as que ho de ser. Tudo est a: vises multiplicadas Que entre esses dois crepsculos do dia Tua face foi deixando e as refletia E as que ela ir deixando-as espelhadas. E tudo uma parte do diverso Cristal dessa memria, o universo; Jamais tm fim seus rduos corredores E a ti fecham-se as portas com descaso; Somente do lado oposto do ocaso Vers os Arqutipos e Esplendores.

EWIGKEIT

Torne-me boca o verso castelhano A dizer o que sempre est dizendo Desde o latim de Sneca: o horrendo Ditame de que tudo do gusano. Torne a plida cinza a homenagear A morte com seus fastos e a vitria Da rainha retrica a pisar Aqueles estandartes da vanglria. Doutro modo. O por meu barro abenoado No vou neg-lo eu como um covarde. Sei que uma coisa no h. O olvidado; Sei que na eternidade perdura e arde O precioso e o muito esperdiados: Essa lua, essa frgua e essa tarde.

DIPO E O ENIGMA

Quadrpede na aurora, alto no dia E com trs ps errando pelo vo mbito do entardecer, assim via A eterna esfinge ao inconstante irmo, O homem, e tarde um homem vaticina Decifrando aterrado, no cristal Da monstruosa imagem, o fatal Reflexo de seu destino e runa. Somos dipo e, de modo eternal, Somos, no vasto e trplice animal, O que seremos e tenhamos sido. Aniquilar-nos-ia ver a ingente Forma de nosso ser; piedosamente Deus nos depara sucesso e olvido.

SPINOZA

As mos do judeu lavram transparentes, No lusco-fusco, brunindo os cristais, E medo e frio a tarde poente. (Tardes que s tardes todas so iguais.) As mos e o espao de jacinto Que nas portas do Gueto empalidece Quase no h para o homem que assim tece Quieto os sonhos de um claro labirinto. No o turva a fama, sonhos reflexos No sonho de outro espelho convexo, Nem o amor temeroso das donzelas. Liberto da metfora e do mito, Um cristal rduo lavra: o infinito Mapa dEle que os astros e os constela.

ESPANHA

Para alm dos smbolos, para alm da pompa e da cinza dos aniversrios, para alm da aberrao do gramtico que v na histria do fidalgo que sonhava ser Dom Quixote e, por fim, o foi, no uma amizade e uma alegria mas sim um herbrio de arcasmos e de provrbios, ests, Espanha silenciosa, em ns. Espanha do biso, que morreria sob o ferro ou o rifle, nas pradarias do ocaso, em Montana, Espanha em que Ulisses fez a descida Casa de Hades, Espanha do ibero, do celta, do cartagins, e de Roma, Espanha dos speros visigodos, de estirpe escandinava, que soletraram e esqueceram a escrita de Ulfilas, pastor dos povos, Espanha do Isl, da cabala e da Noite Escura da Alma, Espanha dos inquisidores, que padeceram o destino de ser verdugos e teriam podido ser mrtires, Espanha da longa aventura que decifrou os mares e reduziu cruis imprios e que prossegue aqui, em Buenos Aires, neste entardecer do ms de julho de 1964, Espanha da outra guitarra, a dilacerada, no a humilde, a nossa, Espanha dos ptios, Espanha da piedosa pedra de catedrais e santurios, Espanha do honrado bem e da caudalosa amizade, Espanha da intil coragem, podemos professar outros amores, podemos esquecer-te como esquecemos nosso prprio passado, porque inseparavelmente ests em ns, nos ntimos hbitos do sangue, nos Acevedo e nos Surez de minha linhagem,

Espanha, me de rios e de espadas e de multiplicadas geraes, incessante e fatal.

ELEGIA

Oh! destino o de Borges, ter navegado pelos diversos mares do mundo ou pelo nico e solitrio mar de nomes diversos, ter sido uma parte de Edimburgo, de Zurique, das duas Crdobas, da Colmbia e do Texas, ter regressado, depois de mudadas geraes, s antigas terras de sua estirpe, Andaluzia, a Portugal e queles condados onde o saxo guerreou com o dans e misturaram seus sangues, ter errado pelo rubro e tranqilo labirinto de Londres, ter envelhecido em tantos espelhos, ter buscado em vo o olhar de mrmore das esttuas, ter examinado litografias, enciclopdias, atlas, ter visto as coisas que vem os homens, a morte, o torpe amanhecer, a plancie e as delicadas estrelas, e no ter visto nada ou quase nada a no ser o rosto de uma jovem de Buenos Aires, um rosto que no quer que o recorde. Oh! destino de Borges, talvez no mais estranho que o teu.

Bogot, 1963.

ADAM CAST FORTH

Houve um Jardim, ou foi s uma viso? Lento, na vaga luz, tenho indagado, Quase como um consolo, se o passado, De que era dono o agora excluso Ado, No passou de uma mgica impostura Do Deus que visionei. J impreciso Na memria o radiante Paraso, Porm sei que ele existe e que perdura, Embora no para mim. A spera terra meu castigo e a incestuosa guerra De Cains e de Abis e de sua cria. E, no entanto, muito ter amado, Ter sido ento feliz e ter tocado O vivente Jardim, por um s dia.

A UMA MOEDA

Fria e tormentosa a noite em que zarpei de Montevidu. Ao dobrar o Cerro, atirei do convs mais alto uma moeda que brilhou e afundou nas guas barrentas, uma coisa de luz que arrebataram o tempo e a treva. Tive a sensao de ter cometido um ato irrevogvel, de acrescentar histria do planeta duas sries incessantes, paralelas, talvez infinitas: meu destino, feito de soobra, de amor e de vs vicissitudes, e o daquele disco de metal que as guas dariam ao brando abismo ou aos remotos mares que ainda roem despojos do saxo e do viking. A cada instante de meu sono ou de minha viglia corresponde outro da cega moeda. s vezes senti remorso e outras, inveja de ti que ests, como ns, no tempo e em seu labirinto e que no o sabes.

OUTRO POEMA DOS DONS

Quero dar graas ao divino Labirinto dos efeitos e das causas Pela diversidade das criaturas Que formam este singular universo, Pela razo, que no cessar de sonhar Com um plano do labirinto, Pelo rosto de Helena e pela perseverana de Ulisses, Pelo amor, que nos deixa ver os outros Como os v a divindade, Pelo firme diamante e pela gua solta, Pela lgebra, palcio de precisos cristais, Pelas msticas moedas de ngelo Silsio, Por Schopenhauer, Que talvez tenha decifrado o universo, Pelo fulgor do fogo Que nenhum ser humano pode olhar sem um assombro antigo, Pela caoba, pelo cedro e pelo sndalo, Pelo po e pelo sal, Pelo mistrio da rosa Que prodigaliza cor e que no a v, Por certas vsperas e dias de 1955, Pelos duros tropeiros que na plancie Arreiam os animais e a alva, Pela manh em Montevidu, Pela arte da amizade, Pelo ltimo dia de Scrates, Pelas palavras que em um crepsculo se disseram De uma cruz a outra cruz, Por aquele sonho do Isl que abarcou Mil noites e uma noite, Por aquele outro sonho do inferno Da torre de fogo que purifica E das esferas gloriosas, Por Swedenborg, Que conversava com os anjos nas ruas de Londres, Pelos rios secretos e imemoriais Que convergem em mim, Pelo idioma que, faz sculos, falei em Nortmbria,

Pela espada e pela harpa dos saxes, Pelo mar, que um deserto resplandecente E uma cifra de coisas que no sabemos E um epitfio dos vikings, Pela msica verbal da Inglaterra, Pela msica verbal da Alemanha, Pelo ouro, que relumbra nos versos, Pelo pico inverno, Pelo nome de um livro que no li: Gesta Dei per Francos, Por Verlaine, inocente como os pssaros, Pelo prisma de cristal e pelo peso de bronze, Pelas raias do tigre, Pelas altas torres de So Francisco e da ilha de Manhattan, Pela manh no Texas, Por aquele sevilhano que redigiu a Epstola Moral E cujo nome, como ele teria preferido, ignoramos, Por Sneca e Lucano, de Crdoba, Que antes do espanhol escreveram Toda a literatura espanhola, Pelo geomtrico e bizarro xadrez, Pela tartaruga de Zeno e pelo mapa de Royce, Pelo aroma medicinal dos eucaliptos, Pela linguagem, que pode simular a sabedoria, Pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado, Pelo costume, Que nos repete e nos confirma como um espelho, Pela manh, que nos depara a iluso de um princpio, Pela noite, sua treva e sua astronomia, Pelo valor e pela felicidade dos outros, Pela ptria, sentida nos jasmins Ou numa velha espada, Por Whitman e Francisco de Assis, que j escreveram o poema, Pelo fato de que o poema inesgotvel E se confunde com a soma das criaturas E no chegar jamais ao ltimo verso E varia segundo os homens, Por Frances Haslam, que pediu perdo a seus filhos Por morrer to devagar, Pelos minutos que precedem o sono, Pelo sono e pela morte, Esses dois tesouros ocultos, Pelos ntimos dons que no enumero, Pela msica, misteriosa forma do tempo.

ODE ESCRITA EM 1966

Ningum a ptria. Nem sequer o ginete Que, alto na alva de uma praa deserta, Conduz um corcel de bronze pelo tempo, Nem os outros que olham desde o mrmore, Nem os que prodigaram sua blica cinza Pelos campos da Amrica Ou deixaram um verso ou uma faanha Ou a memria de uma vida cabal No justo exerccio dos dias. Ningum a ptria. Nem sequer os smbolos. Ningum a ptria. Nem sequer o tempo Carregado de batalhas, de espadas e de xodos E da lenta povoao de regies Que lindam com a aurora e o ocaso, E de rostos que vo envelhecendo Nos espelhos que se empanam E de sofridas agonias annimas Que duram at a alva E da teia de aranha da chuva Sobre negros jardins. A ptria, amigos, um ato perptuo Como o perptuo mundo. (Se o Eterno Espectador deixasse de sonhar-nos Um s instante, nos fulminaria, Branco e brusco relmpago, Seu olvido.) Ningum a ptria, mas todos devemos Ser dignos do antigo juramento Que prestaram aqueles cavaleiros De ser o que ignoravam, argentinos, De ser o que seriam pelo fato De ter jurado nesta velha casa. Somos o futuro desses vares, A justificativa daqueles mortos; Nosso dever a gloriosa carga Que a nossa sombra legam essas sombras Que devemos salvar.

Ningum a ptria, porm todos o somos. Arda em meu peito e no vosso, incessante, Esse lmpido fogo misterioso.

O SONO

Se o sono fosse (como dizem) uma Trgua, um repousar puro da mente, Por que, se te despertam bruscamente, Sentes que te roubaram uma fortuna? Por que to triste madrugar? A hora Nos despoja de um dom inconcebvel, To ntimo que s traduzvel Num sopor que a viglia em ouro doura De sonhos, que bem podem ser truncados Reflexos dos tesouros de umbra instvel, De um orbe intemporal inominvel Que o dia nos espelha deformado. Quem sers, esta noite, do outro lado Da parede do sonho indecifrado?

JUNN

Sou, mas sou tambm o outro, o que morreu, O outro de meu nome e sangue herdeiro; Sou um vago senhor, sou o escudeiro Que as lanas do deserto as abateu. Volto a Junn, que no me viu jamais, Av Borges, a teu Junn. Percebes-me, Cinza final ou sombra, ou no recebes No sonho de bronze os truncados ais? Acaso buscas em minha v mirada O pico Junn de teus soldados, A rvore que plantaste, os teus cercados E no limite a tribo saqueada. Percebo-te triste, face severa. Quem me dir quem foste e como eras.

Junn, 1966.

UM SOLDADO DE LEE (1862)

Uma bala alcanou-o na ribeira De um claro rio de nome esquecido. Cai emborcado. (A histria verdadeira E mais de um homem nele tem vivido.) O ar de ouro move ociosas as ramadas Do copado pinheiro. Uma paciente Formiga escala o rosto indiferente. Sobe o sol. Muitas coisas j mudadas E sem fim no futuro mudaro At um certo dia em que te canto A ti que, sem a ddiva do pranto, Caste como um homem morto ao cho. No h mrmore a guardar tua memria; Sete palmos de terra, tua obscura glria.

O MAR

Antes que o sonho (ou o terror) que gera Mitologias e cosmogonias, Antes que o tempo se cunhasse em dias, O mar, o sempre mar, j estava e era. Quem o mar? Quem, aquele violento E antigo ser a roer os pilares Da terra e um e tantos outros mares E abismo e resplendor e acaso e vento? Quem o observa o v por vez primeira, Sempre. E as coisas com o maravilhoso Que elementares deixam, o formoso Ocaso, a lua, o fogo da fogueira. Quem o mar, quem sou? Hei de saber O dia que agonia suceder.

MANH DE 1649

Carlos avana entre seu povo. Mira direita e esquerda. Recusou Os braos da escolta. J libertou-se Dessa necessidade da mentira, Vai hoje morte, sabe, e no ao olvido, E que um rei. Espera-o j o algoz; A manh est ali, real e atroz. Sua carne no teme. Sempre tem sido, Como bom jogador, indiferente. Na vida at as fezes amargado, Agora est s entre a armada gente. No o infama o patbulo. Os jurados No so o Jurado. Mui levemente Sada e sorri. Est acostumado.

A UM POETA SAXO

As neves da Nortmbria conheceram E o rastro de teus passos apagaram E entardeceres se multiplicaram Que entre ns, irmo cinza, feneceram. Lento, na lenta sombra, lavrarias Pelos mares metforas de espadas. E do horror cujo pinhal morada E da solido que trazem os dias. Onde buscar teu nome, onde teus traos? Essas so coisas que o antigo olvido Guarda. Eu ignoro como ter sido Quando tu foste um homem neste espao. Desterrado, os caminhos tu seguiste; S teu cantar de ferro em ti persiste.

BUENOS AIRES

Antes, eu te buscava em teus confins Que lindam com a plancie e com o prDo-sol e no gradil com seu frescor To antigo de cedros e jasmins. Na memria de Palermo tu estavas, Em sua mitologia de um passado De baralho e punhal e no dourado Bronze das desnecessrias aldravas, Com seu anel e mo. Eu te sentia Nesses ptios do Sul e na crescente Sombra que desdesenha lentamente Sua longa reta, ao declinar o dia. Agora ests em mim. s minha vaga Sorte, coisas essas que a morte apaga.

BUENOS AIRES

E a cidade, agora, como um traado Dos fracassos e ofensas que vivi; Os ocasos desde essa porta eu vi Ante esse mrmore, em vo, aguardados. O incerto ontem aqui, e o hoje distinto Aqui os banais casos me deparam De toda sorte humana; aqui armaram Meus passos o incontvel labirinto. Aqui o entardecer cinzento espera O fruto que lhe devem as manhs; Minha sombra aqui pela no menos v Sombra final ligeira ir, quimera. No nos une o amor, seno o espanto; Ser por isso que eu a quero tanto.

AO FILHO

No sou eu, so os mortos quem te gera. So meu pai, o seu pai, os de outras eras Traando um longo ddalo de amores Desde Ado nos desrticos albores De Caim e de Abel, em sua aurora Antiga que j mitologia; Sangue e medula chegam a este dia Que est por vir, em que te gero agora. Sinto sua multido. Ns, somos ns E, entre ns, ests tu e teus futuros Filhos que hs de gerar. Os nascituros E os do rubro Ado. Sou esses aps Tambm. O eterno em coisas j fixadas Do tempo, que so formas apressadas.

OS COMPADRITOS MORTOS

Prosseguem escorando a curva estreita Do Paseo de Julio, sombras vs Lutando sempre com sombras irms Ou com a fome, essa outra loba espreita. Quando o ltimo sol cor de laca Na fronteira dos bairros, dos umbrais, Voltam a seu crepsculo, fatais E mortos, a sua puta e sua faca. Perduram em apcrifas histrias, Numa forma de andar, no s vibrar De uma corda, num rosto, no assobiar, Em pobres coisas, em obscuras glrias. No ntimo do ptio, sob as parras, Quando os dedos temperam a guitarra.

O OUTRO, O MESMO (1964) Prlogo Insnia Two english poems A noite cclica Do inferno e do cu Poema conjectural Poema do quarto elemento A um poeta menor da antologia Pgina para recordar o coronel Surez, vencedor em Junn Mateus 25,30 Uma bssola Uma chave na Salnica Um poeta do sculo XIII Um soldado de Urbina Limites Baltasar Gracin Um saxo (449 a.D.) O Golem O tango O outro Uma rosa e Milton Leitores Joo 1,14 O despertar A quem j no jovem Alexander Selkirk Odissia, livro vigsimo terceiro

Ele Sarmiento A um poeta menor de 1899 Texas Composio escrita em um exemplar da Gesta de Beowulf Hengist cyning Fragmento A uma espada em York Minster A um poeta saxo Snorri Sturluson (1179-1241) A Carlos XII Emanuel Swedenborg Jonathan Edwards (1703-1785) Emerson Edgar Allan Poe Camden, 1892 Paris, 1856 Rafael Cansinos-Assns Os enigmas O instante Ao vinho Soneto do vinho 1964 A fome O forasteiro A quem me est lendo O alquimista Algum Everness Ewigkeit dipo e o enigma

Spinoza Espanha Elegia Adam cast forth A uma moeda Outro poema dos dons Ode escrita em 1966 O sono Junn Um soldado de Lee (1862) O mar Manh de1649 A um poeta saxo Buenos Aires Buenos Aires Ao filho Os compadritos mortos

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