33
III Semana de Ciência Política Universidade Federal de São Carlos 27 a 29 de abril de 2015 O OUTRO OCIDENTE: A IBÉRIA NO PENSAMENTO POLÍTICO DE RAYMUNDO FAORO Milton Andreza dos Reis 1 Introdução: Referências à Ibéria aparecem em “Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro”, 1958, antes mesmo de qualquer citação ao Brasil 2 . Logo na primeira página, desta obra fundamental do nosso pensamento social, Raymundo Faoro (1925/2003), apresenta os ibéricos sob o signo de Marte: Deus da guerra, amante de Vênus e pai de Cupido, como oriundos de uma cultura específica, cunhada em uma região geográfica dotada de singularidades históricas fundamentais para a compreensão da formação do patronato político brasileiro: a península ibérica. Para nosso autor a própria formação da sociedade brasileira está radicalmente ligada à história da “Origem do Estado Português”. Seguindo de perto uma tradição intelectual que valoriza a colonização como estrutura fundamental para explicar a gênese do Brasil 3 . E, que neste movimento recorre a uma visão transnacional, pautada em uma razão geográfica da história 4 . Neste artigo, exploramos Raymundo Faoro, nos perguntando: qual a sua interpretação da importância da herança colonial ibérica em nossa 1 : UNESP/Araraquara: Pós Graduação, Doutorado em Ciências Sociais. Bolsista Capes/CNPq. 2 Faoro, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo. Ed. Globo, 1958. 3 Alonso, Angela. Ideias em Movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil- Império. São Paulo, Ed. Paz e Terra, 2002. 4 Alencastro, Luiz Felipe. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo. Ed. Companhia das Letras, 2000.

O OUTRO OCIDENTE: A IBÉRIA NO PENSAMENTO … · Sua posição estratégica atrai povos não romanos, os ... Seu último remanescente Abd ar-Rahmãn (731/788), fugiu para Sevilha

Embed Size (px)

Citation preview

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

O OUTRO OCIDENTE: A IBÉRIA NO PENSAMENTO POLÍTICO

DE RAYMUNDO FAORO

Milton Andreza dos Reis1

Introdução:

Referências à Ibéria aparecem em “Os Donos do Poder: formação do patronato

político brasileiro”, 1958, antes mesmo de qualquer citação ao Brasil2. Logo na primeira

página, desta obra fundamental do nosso pensamento social, Raymundo Faoro

(1925/2003), apresenta os ibéricos sob o signo de Marte: Deus da guerra, amante de

Vênus e pai de Cupido, como oriundos de uma cultura específica, cunhada em uma região

geográfica dotada de singularidades históricas fundamentais para a compreensão da

formação do patronato político brasileiro: a península ibérica.

Para nosso autor a própria formação da sociedade brasileira está radicalmente

ligada à história da “Origem do Estado Português”. Seguindo de perto uma tradição

intelectual que valoriza a colonização como estrutura fundamental para explicar a gênese

do Brasil3. E, que neste movimento recorre a uma visão transnacional, pautada em uma

razão geográfica da história4. Neste artigo, exploramos Raymundo Faoro, nos

perguntando: qual a sua interpretação da importância da herança colonial ibérica em nossa

1 : UNESP/Araraquara: Pós Graduação, Doutorado em Ciências Sociais. Bolsista Capes/CNPq. 2 Faoro, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro,

Porto Alegre, São Paulo. Ed. Globo, 1958. 3 Alonso, Angela. Ideias em Movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil- Império. São Paulo, Ed.

Paz e Terra, 2002. 4Alencastro, Luiz Felipe. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo. Ed.

Companhia das Letras, 2000.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

formação? À medida que registramos: quais as principais estruturas políticas e sociais?

Importantes em sua avaliação, que nos foram legadas.

Por meio de uma analise que entende o seu texto como porta de entrada para a

compreensão do seu pensamento social. Assumimos como pressuposto a dialética

marxista de que nenhuma grande constelação de ideias pode ser compreendida sem levar

em conta os problemas que tentou responder e sem atacar as formas em que foi

formulada5.

De tal modo que nenhum autor pode ser totalmente analisado circunscrito apenas

a um contexto determinado ou a uma única influência teórica. Todo texto reproduz e está

inserido em uma rede de produção simbólica6. Assim, a própria força dos clássicos está

justamente em extrapolar o contexto em que foi criado. Na sua capacidade de ainda

apresentar interpretações ou mesmo lançar luz orientadora, para o esclarecimento de

problemas sociológicos que não foram estabelecidos concretamente no momento em que

o trabalho foi publicado7. Raymundo Faoro não se esgota nele mesmo. Muito menos em

seu próprio contexto.

Interessa nos como a representação da Ibéria é construída, abordada e avaliada em

um trabalho especifico: a primeira edição de “Os Donos do Poder: formação do patronato

político brasileiro”, de 1958, publicado pela editora Globo: Rio de Janeiro - Porto Alegre

– São Paulo. Um livro de capa vermelha, fundo preto, com o título em branco, de pouca

repercussão quando surgiu, mas que na década de 1970, foi totalmente redescoberto,

diante da necessidade de se pensar a Ditadura Militar (1964-1988)8.

5 Lukács, Georg. Teoria do Romance. Tradução de Alfredo Margarido. Lisboa. Ed. Presença, 1962.

6 Bourdieu, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo. Ed. Perspectiva. 1974.

7Koselleck, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro.

Ed. Contraponto/PUC, Rio, 2006. 8 Guimarães, Juarez. Raymundo Faoro e o Brasil. São Paulo. Ed. Perseu Abramo. 2009.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

Texto que se comparado com a sua reedição de 1975, em que foi acrescido de

mais um volume, de revisões e notas, reserva um caráter ensaísta muito mais explicito.

Uma narrativa concisa em que longos contextos são sintetizados e abordados por meio de

um pensamento que movimenta repertórios da história, da sociologia, da antropologia,

das ciências políticas e da geografia livremente.

Uma ação criativa em que as ciências sociais não têm um limite claro, delimitado

de suas fronteiras9. Diferente, dos dois volumes de 1975, no qual o autor parece estar

imbuído de certa pressão intelectual, imposta pelo contexto, em ter que deixar claro

sistematicamente as suas opções teóricas: o ainda pouco difundido Max Weber

(1864/1920) e suas ideias políticas: principalmente, o seu liberalismo, descrente das

classes políticas, mas que só enxergava na democracia e no fortalecimento da sociedade

civil, com novos atores, a possibilidade de reorganização das prioridades do Estado

Nacional, então, considerado ator fundamental para a construção de uma sociedade que

pudesse superar o atraso. No limite: para Raymundo Faoro, o problema não era Estado,

mas sim a forma como historicamente ele estava organizado.

Um breve histórico: a Ibéria entre duas civilizações.

Foram os romanos que introduziram uma organização sócio-administrativa aos

povos autóctones da península ibérica. O que por sua vez, devido ao próprio sistema de

colonização, não significava uma coesão cultural profunda, evidente, nos diversos grupos

linguísticos que coexistiam nos territórios romanos subordinados ao latim10. A dominação

romana pautava-se estritamente na obediência civil e na cobrança de impostos, em

9 Adorno, Theodor W. O Ensaio como Forma. Sociologia. São Paulo. Ed. Ática, 1994. 10 Basseto, B. F. Elementos de Filologia românica. São Paulo. Ed. Edusp. 2001

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

contrapartida cediam liberdades: como a de culto e às vezes, até mesmo, a de controle

político das cidades. A romanização era um processo lento, mesmo, assim, quando as

imigrações bárbaras começaram a forçar definitivamente o crepúsculo do Império, o

território já estava por completo romano e latinizado, administrado, no século IV, pelo

Imperador Diocleciano (224/313) em cinco províncias: Gallaecia, Tarraconensis,

Carthaginensis, Lusitania e Baetica.

Mapa I: península ibérica: romana e latina11. Mapa II: reinos: suevos, betica e visigodos12.

Para nosso autor as intensas guerras em seu território moldaram o ethos ibérico13.

Acerca da península ibérica aponta o campo de batalha como espaço privilegiado de

cultura política e discussão das questões territoriais em que “primeiro, os bárbaros do

Norte; depois, os mouros assentaram no seu solo as praças de combate. Duas civilizações

11 Adaptação Mapa: http: bachiller. sabuco.com/historia/images/Fases%20colonizaci%C3%B3n.jpg. 12 Adaptação Mapa: http: bachiller. sabuco.com/historia/images/Fases%20colonizaci%C3%B3n.jpg. 13 Weber, Max. A Ética protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo. Martins Fontes, 2000.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

– uma do Ocidente remoto, outra do Oriente Próximo – pelejaram dentro de suas

fronteiras pela hegemonia da Europa” (Faoro: 1958, 3).

A destruição do Império Romano no final do século IV impulsiona dois séculos

de migrações a península ibérica. Sua posição estratégica atrai povos não romanos, os

vândalos germânicos orientais, asdingos e silingos, além dos suevos, povos germânicos

ocidentais e dos alanos de origem indo iraniana, a migrarem para a região. Suevos e

asdingos fixam na região da Gallacecia, os alanos na Lusitania, e os sílingos na Betica.

Posteriormente, os visigodos, originários do sul da Escandinávia, adentraram ao território

conquistando os sílingos na Bética e expulsando alanos e asdingos para a Vandalusia14.

Em um espaço onde a espada era linguagem universal, estes reinos germânicos:

suevos e visigodos, não destruíram a tradição romana. Pelo contrário, foram romanizados

pelo cristianismo, subordinando, por exemplo, seus dialetos e costumes cotidianos,

mantendo uma forma de governo em que seus territórios eram divididos entre delegados

administradores, submetidos diretamente a um poder central. A tradição e a violência

eram as bases destas sociedades militarmente organizadas, no qual um líder: o Rei

soberano, hierarquicamente, estava no topo de uma pirâmide social, composta por outros

senhores territoriais, abaixo, o clero e um quadro administrativo especializado, que

formavam uma aristocracia feudal, acima dos servos domésticos ligados à vassalagem,

dos artífices, comerciantes, citadinos e camponeses15.

Como destaca Raymundo Faoro, não foram os bárbaros germânicos que

arrastaram a península ibérica a descentralização feudal, mas, sim a expansão árabe

islâmica. No século VI, o califa Abu Bakr (573/634) impulsionou a criação de um

território árabe de caráter profundamente religioso e militarizado. Um Império teocrático

14Duby, Georges. Atlas Historique Mundial. France. Ed. Larousse. 2014. 15 Veyne, Paul. Do Império Romano ao Ano Mil. História da Vida Privada. Vol. 1. São Paulo. Ed.

Companhia de Bolso, 2012.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

em que o comandante militar era também o governador civil, chefe religioso maior e juiz

supremo, por meio de uma autoridade estruturada no respeito a uma rígida tradição

familiar religiosa. O Mapa III demonstra como a expansão do islã foi rápida e eficiente.

Introduzindo novas técnicas de combate, particularmente, o uso de canhões e maquinas

de guerra, superiores as defesa cristãs medievais, bizantinas e persas, os árabes e berberes

em menos de um século dominaram toda a Península Arábica, o Norte da África e a

Península Ibérica16.

Mapa III: a expansão do islã17.

A expansão árabe foi favorecida pelos enfrentamentos entre cristãos e judeos no

Oriente Próximo. Contudo, foi certamente a sua forma especifica de dominação, baseada

mais na coexistência pacifica e certa tolerância religiosa, do que no controle efetivo do

território ou na necessidade de arabização, que possibilitaram o enraizamento de sua

conquista. Neste caso, para os árabes, diferente dos romanos: não importa a transformação

16 Martins, Oliveira, História da Civilização Ibérica, Lisboa, Guimarães Editores, 1994. 17 Adaptação do Mapa: bachiller. sabuco.com/historia/images/Fases%20colonizaci%C3%B3n.jpg.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

cultural dos povos conquistados, mas, sim a manutenção da prosperidade das relações

interculturais que já existiam.

Se, por sua vez, a romanização era um processo profundamente territorialista: os

romanos se fixavam em suas províncias estabelecendo laços de parentesco, - reproduzida

por meio da família a cultura romana ia se desenvolvendo, o projeto civilizacional sendo

colocado em prática, - formando cidadãos fundamentais para a manutenção de um

Império, que desde a sua origem tinha como escol garantir e expandir suas fronteiras.

A arabização tinha a mobilidade por essência. Também, se fixavam, mas eram

muito mais moveis do que os europeus cristianizados que conquistaram. Desprezam os

limites feudais, seus gigantes e grotescos castelos de pedra bruta que não suportavam um

tiro certeiro de um bom canhão calibrado, entendiam como seu território não apenas um

espaço limitado por fronteiras físicas ou jurídicas, seu lugar era qualquer lugar onde

pudessem livremente cultuar o islã.

O Corão era o livro fundamental desta nova religião, mas foi sobre a Hadith:

relatos da vida de Maomé e de seus primeiros seguidores, que se baseavam os rígidos

códigos cotidianos de conduta do mulçumano. Da união entre o Corão e a Hadith, a

Sharia, conjunto de leis mulçumanas eram os pilares deste Estado teocrático e militar:

dividido em Emirados e Califados, administrados por uma elite ligada por laços de

parentesco, composto por grupos étnicos diferentes, especialmente, na península arábica

e no norte da África, como por exemplo, os povos berberes18.

Na segunda metade do século VII a disputa pelo controle de um território tão vasto

praticamente extinguiu a dinastia Omíada que governa o Império Árabe a partir de

Damasco. Seu último remanescente Abd ar-Rahmãn (731/788), fugiu para Sevilha e

18 Cogni, Barbara Maria. Cristãos e Mulçumanos na Península Ibérica. São Paulo. Ed. ANPUH. 2012

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

depois para Córdoba fundando ali um Califado. Neste momento a península ibérica,

torna-se um importante polo de radiação do poder muçulmano. De todo o território,

apenas o norte não sofreu, diretamente, sua influência cultural e controle político.

Ainda sob o comando de Abd ar Rahmãn a expansão para o norte da Europa era

um projeto plausível para os mulçumanos. Foram impedidos pelos persistentes católicos:

que entre as montanhas astúrias, conseguiram manter sua organização política e religiosa

distante da influência moura; a resistência dos primeiros Estados renascentistas da Europa

Ocidental: os francos de Carlos Martel (686/741); e pelas constantes invasões normandas:

que no contexto inauguravam uma nova rota de acesso e combate ao território via mares

ao norte do Oceano Atlântico19.

No seu conjunto estas ações fustigaram as superiores técnicas árabes de combate.

Com seus exércitos enfraquecidos, o Califado foi dividido em Reinos Taífas,

subordinados a Córdoba20. Durante praticamente seis séculos a cultura árabe floresceu na

península ibérica. Em um contexto, que como nos informa o Mapa IV: o território era um

verdadeiro ambiente de múltiplas identidades culturais, que conviviam sob a organização

de formas diferentes de sociabilidade, leis e códigos de conduta, no qual, geralmente,

imperava uma relativa independência religiosa21.

19 Chejne, Anwar G. História de Espanha Muçulmana. Madrid. Ed. Cátedra, 1993. 20 20 Antonio Cebrian, Juan. Aventura de La Reconquista. Espanha. Ed. Esfera de los Libros, 2013. 21 Lannes, Suellen Borges. A Formação do Império Arabe-Islâmico: História e Interpretações. Rio de

Janeiro. Tese de Doutorado apresentada a UFRJ. 2013.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

Mapa IV: mulçumanos e cristãos na península ibérica22.

Este capítulo árabe: evidente até os dias atuais, na arquitetura, no idioma e nos

hábitos alimentares de algumas regiões e cidades, assim, como a invasões normandas:

importantes no contexto das descobertas oceânicas são momentos da história ibérica,

totalmente, negligenciados por Raymundo Faoro. Entre as duas civilizações, lhe preocupa

a ocidental e católica. Não por acaso, é a Reconquista (século VIII), o que diretamente

lhe interessa. Pois, foi no interior desses enfrentamentos de fé que teve origem o Estado

Português23.

As origens do Estado português: com as mãos sujas de sangue.

22 Adaptação do Mapa: bachiller. sabuco.com/historia/images/Fases%20colonizaci%C3%B3n.jpg. 23 Saraiva, José Hermano. História Concisa de Portugal. Portugal. Ed. Sintra. 1999.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

Para Raymundo Faoro a herança colonial ibérica nos diz quem não somos. Sem

dúvida, o que poderíamos ter-nos tornado. E, porque, infelizmente, não nos tornamos algo

diferente do que somos. Uma história trágica, narrada em estilo romântico. De um senso

estético profundamente machadiano, irônico e sutil, em que o dilema do nosso atraso não

possui apenas uma dimensão estritamente econômica, mas, também, cultural24. Um

enredo no qual a Ibéria do século VIII passa a existir como um território geográfico

estratégico, de tradições culturais importantes, ponte entre mundos diferentes, mas,

convulsionada por conflitos de ordem múltipla e variada: por exemplo, por conta da peste,

do cristianismo e suas cruzadas, a presença moura, mas, sobretudo, por conta das guerras

de suserania e vassalagem entre os Reinos Cristãos.

Esses combates transformavam constantemente o tamanho dos territórios dos

senhores feudais, que sujeitos a tempos de paz e de guerra, mal conseguiam estruturar

suas fronteiras e suas linhagens hereditárias e já eram arrastados novamente em mais uma

aventura. Neste espaço social: condes e marqueses governavam seus territórios

cristianizados, mas nutriam um profundo sentimento de autonomia. Reuniam-se em

tempos de guerra. Celebravam festas, dias santos e casamentos. Mas, se necessário,

combatiam entre si, cristãos, em nome da soberania. Nas palavras de Raymundo Faoro,

na Ibéria: “bem cedo à espada impôs sua proeminência, valorizando a organização

militar das tropas mais que a posse do território fértil. O feudalismo cedeu lugar, ainda

mal assentado, a poder maior, centralizador e de natureza militar” (Faoro: 1958, 3).

Os primeiros Estados renascentistas cristãos da península formaram-se a partir de

três núcleos específicos: o asturiano, o pirenaico e o catalão25. Localizados no norte o

asturiano: nunca esteve totalmente sobre o domínio árabe e dele originou o Reino de

Oviedo, de Galiza e depois de Leão, e o Condado de Castela. Dos pirenaicos:

estabelecidos no noroeste, saíram os Reinos de Pamplona, Aragão, Navarra, Sobrarge e

24 Faoro, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. Rio de Janeiro. Ed. Globo, 1974.

25 Garcia, Nilsa Arian. Breve Histórico da Península Ibérica. Revista Phillologos. Ano 15. N° 45. Rio de

Janeiro: CIFEFIL, Set/Dez:2009.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

Ribargoza, que também conseguiram manter uma distância relativa à presença

mulçumana, mas, que por sua vez, durante muito tempo, foram duramente assediados

pelas invasões nórdicas. E o catalão: de influencia franca, da qual tem origem o Condado

de Barcelona.

Mapa V: reinos católicos na Reconquista (século VIII) 26.

A Reconquista (século VIII) alimentava o coração do cavaleiro e deixava solitário

o da donzela. Momento em que as artes renasceram patrocinadas pelo mecenato e

proteção da Igreja Católica Apostólica Romana foi igualmente um período em que no

campo da diplomacia, a busca pela centralização enquanto um ideal de Estado aparecia

no cerne das ações políticas dos reinos cristãos, enfatizado por Raymundo Faoro, que

deixa implícito o discurso de que esse designo não impossibilitou a construção de uma

experiência social, pautada na coexistência de organizações políticas e culturais oriundas

26 Adaptação do Mapa: bachiller. sabuco.com/historia/images/Fases%20colonizaci%C3%B3n.jpg.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

de grupos étnicos diferentes, que ao longo da história da península, contribuíram não

apenas para a apurada razão geográfica do espaço político de atuação da Coroa

Portuguesa, mas, também, para a expansão dos negócios do Rei.

Mapa VI: Condado de Portucale27. Mapa VII: Reino de Portugal28.

No mapa VI podemos visualizar o ducado Portucale, ainda sob a direção dos

reinos de Leão e Castela, e parte do território ocupado por árabes que só iriam ser

retirados no século XV, na guerra de Granada (1482-1492). No mapa ao lado, entretanto,

podemos observar o reino de Portugal com suas fronteiras definidas. Ou seja, o Estado

Português se constitui fruto, dos esforços de guerra de D. Afonso VI (1072-1109), rei de

Leão e Castela, que a partir do século XII, utilizando um exercito recrutado em todas as

regiões da Europa e não apenas nos reinos da península, inicia uma série de ataques aos

27Adaptação do Mapa: bachiller. sabuco.com/historia/images/Fases%20colonizaci%C3%B3n.jpg. 28Adaptação do Mapa: bachiller. sabuco.com/historia/images/Fases%20colonizaci%C3%B3n.jpg.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

árabes taífas, há tempos, acuados entre a espada longa e pesada dos reinos cristãos e a

adaga, leve e curva, dos demais califados árabes do outro lado do Mediterrâneo.

Para garantir o sucesso da sua apostólica missão os códigos feudais foram se

afrouxando e os soldados agora se agrupavam em milícias remuneradas e os senhores

territoriais já não eram os únicos a fornecer cavaleiros. O Rei a partir de ações de

capitação de fundos por meio de impostos e tributos cobrados junto a seus vassalos,

também, mantinha negócios particulares e neles estabelecia seus aliados distribuindo

favores, auxiliado por uma tradição política e administrativa, perpetrada pelos romanos,

absorvida pelos godos e mantida pelo clero, no qual: “governavam o reino como a própria

casa, não distinguindo o tesouro pessoal do patrimônio público. Seu poder gravitava em

torno do patrimônio, em torno deste gravitavam ele próprio, seus súditos e os interesses

econômicos da nação” (Faoro: 1958 11).

Para executar suas intenções D. Afonso VI, contou com o apoio de dois franceses:

os primos, D. Henrique de Borgonha (1066/1112) e D. Raimundo de Borgonha

(1070/1107), que após vitoriosos serviços prestados, receberam como recompensa as

mãos de suas filhas, Teresa (1093/1112) e Urraca (1079/1126), de Leão e Castela, mais

os territórios do Condado Portucale e da Galícia, respectivamente, bem como outras

áreas castelhanas reconquistadas.

O Condado Portucale, tornou-se, no entanto, independente na primeira metade do

século XII, sob a regência do filho de D. Henrique de Borgonha, o rei Afonso Henriques

de Borgonha (1109/1185), inaugurando, assim, a primeira dinastia portuguesa: afonsina.

A separação não ocorreu pacificamente, mas imbuídos não apenas da vontade verdadeira

de expulsar os árabes, como também de manter sua soberania, os monarcas portugueses,

continuaram o processo de lutas. Agora, em duas frentes uma contra os mouros e outra

contra os castelhanos.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

Apesar das guerras e da peste, enquanto na Europa Ocidental, no campo, as

intensas transformações enraizavam cada vez mais o feudalismo e uma religiosidade

ortodoxa, porém, critica, em conflito direto com novas formas de cristianismo, e nas

cidades, o renascimento já inaugurava a época das catedrais, em Portugal, a soberania do

Rei, atendia com fervor os chamados da Igreja, mas não se submetia a ela totalmente.

Muito pelo contrario, enquanto bastião fiel da fé adquire o direito do padroado, que lhe

possibilitava em seus territórios contralar as ações da Igreja, neste período, especialmente,

de sua força disciplinadora que de tempos em tempos se abatia sobre seus súditos, de

ascendia judia29.

Sob o reinado de D. Afonso I, Portugal se transforma em uma potência

mercantilista. Explorando, mesmo destruídas após anos de campanhas, as antigas vias

romanas e as modernas rotas terrestres criadas e pavimentadas pelos árabes,

comercializando, com aqueles que chegavam pelos mares do norte e os sagazes

navegadores italianos: genoveses e venezianos do Mediterrâneo.

Com a peste praticamente criando uma barreira intransponível, pela França, aos

territórios do Norte da Europa ou mesmo aos locais sagrados de peregrinação, no Reino

de Castela, Portugal adquire o status de porta de entrada e saída da península,

desenvolvendo um papel fundamental de entreposto de mercadorias30. Neste universo a

cultura urbana emerge tornando cidades como Lisboa em ambientes complexos. De

reminiscências: mouriscas e vigilância: católica. Mas, também, de boêmia, onde, poetas,

pintores, marinheiros, camponeses, mercadores, escravos, toda uma gama de pessoas

diferentes agora citadinos misturavam-se. Posteriormente, todos iriam dividir o convés

de algum navio em carrera, ao se envolverem na expansão ultramarina. Antes de

conquistar o mar o comercio já corria nas veias da península ibérica há muito tempo.

29 Oliveira, Fernando. História de Portugal. Portugal/Lisboa. Ed. Roma, 1999. 30Boxer. Charles R. O Império Colonial Português (1415-1825). Portugal. Ed. 70, 1969.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

Num paralelo, se na Europa Ocidental os que se dedicavam a esta atividade eram

vistos com desconfiança e ainda nem si quer imaginavam o papel importe que jogariam

na história contemporânea, em Portugal, a burguesia, também ainda não tinha

desenvolvido totalmente o seu espírito capitalista, mas a aristocracia dos centros urbanos

já entendia que as atividades que executavam eram diferentes as dos seus antepassados,

senhores territoriais preocupados estritamente em manter e fazer guerra, distantes do Rei,

dos centros urbanos e dos negócios.

Para Raymundo Faoro esta consciência da natureza comercial e patrimonial do

Estado Português se constrói durante a dinastia Afonsina, antes mesmo das ações

corajosas do Mestre de Avis: “a tradição monárquico-patriarcal portuguesa impediu,

quando da ascensão das cidades, que o comércio fruísse da maior parcela de poder

político. O rei desenvolveu sua economia com o tráfico, e mercê de seu poder e de sua

riqueza, regulou, incentivou e dominou a classe comercial. Evitou-se, dessa sorte, o

estado de coisas das cidades italianas, onde a facção comercial assumiu a liderança e o

controle dos negócios do Estado. O regime patrimonial foi um capítulo da luta do centro,

encarnado no príncipe, contra os barões. Os comerciantes, detentores da riqueza

mobiliaria, uniram-se ao soberano”. (Faoro: 1958, 11).

A “revolução de Avis” inicia uma nova etapa da constituição do Estado Português.

Ainda sob as repercussões das leis das sesmarias que obrigava o cultivo de gêneros

fundamentais para a subsistência do Reino e impedia a migração de camponeses para os

centros urbanos, D Fernando I (1345/1383) último rei da dinastia afonsina morre em 1383

sem deixar herdeiros, trazendo a tona novamente às antigas pretensões de dominação de

Castela e revivendo o pesadelo do fim da soberania.

Com o trono vago a aristocracia se divide. De um lado a territorial: ligada a

tradição medieval e a produção de bens primários, que defendiam a permanência da

Rainha Leonor Teles (1350/1386) ou as posições de D João I de Castela (1358/1390),

casado com Beatriz Teles (1373/1412), única filha de D. Fernando I. Do outro a

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

aristocracia comercial: ligada aqueles muitos que executavam ofícios ligados à burocracia

do Estado, ao comercio, aos citadinos e aos camponeses, contrários a uma possível

dominação espanhola e perda do prestigio português.

Em seus feitos para chegar ao poder não faltou coragem ao irmão bastardo de D.

Fernando I. Literalmente sujando as mãos de sangue, ao estilo medieval, D. João (1357-

1443), Mestre da Ordem, na cidade interiorana, mas rota comercial importante, de Avis,

assassina seus adversários diretos, aliados da apregoada Rainha e com a ajuda de milícias,

resiste em Lisboa ao cerco de Castela, trava batalhas na fronteira, enquanto reestrutura a

organização administrativa do território, anexando e expropriando sob a regra da

vingança, tomando para si e também para seus aliados à medida que reforçava a

importância do quadro administrativo legal do Estado, que transformava em leis as suas

deliberações e acordos, a centralização se completa.

Raymundo Faoro registra que apesar de se assentar em fundamentos tradicionais,

a sociedade portuguesa que emerge possuía em seu interior uma forçar motriz específica,

movida por interesses particulares, que acabaria mudando a própria lógica do poder

patrimonial. Assim, vencida a sucessão e com a capital transferida para o Tejo, Portugal,

assumi sua vocação comercial e passa a ser governado por um Rei, soberano de um

Estado, que se organiza racionalmente sob códigos claros de leis juridicamente

estabelecidas. Lançando a mão Max Weber entende que: “a codificação do direito foi a

mais veemente expressão de soberania, que se impôs ao País e ao próprio Rei, definindo

seus poderes. O direito medieval, de rasgos feudais, consuetudinário e tradicionalista,

cedeu lugar ao direito canônico e, finalmente, ao direito romano. A influência dos

juristas que moldaram o caráter do estamento burocrático foi decisiva nessa opção”

(Faoro: 1958, 12).

Gerada pelo estamento burocrático - um grupo social de funcionários da Coroa

educados moralmente na cultura do Absolutismo e que por definição weberiana se

distinguia de uma classe, por nutrir certo distanciamento à lógica do estritamente material,

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

intrínseca a sociedade social competitiva – essa transformação iria se manifestar, quando

a Coroa se lançasse a aventura ultramarina, momento em que se tornariam, cada vez mais,

peças fundamentais da manutenção e execução das vontades do Rei. Para Raymundo

Faoro, o estamento socialmente se diferenciava ao reforçar a importância do Estado, nele

conseguindo imprimir a sua própria lógica, desta forma, a economia racional, entregue

as próprias leis, com a calculabilidade das operações, é frustrada no nascedouro. Esse

pecado original da formação portuguesa ainda atua em suas influências, vivas e fortes

no Brasil do século XX” (Faoro: 1958, 12).

A herança colonial ibérica: uma visão negativa da formação social do Brasil.

A tese da transnacionalidade da formação social do Brasil: a ideia de que não

nascemos aqui, mas sim na Europa e que somos continuidade do processo civilizacional

do Ocidente, em Raymundo Faoro dialoga com uma tradição intelectual brasileira que

especialmente a partir do Segundo Reinado (1840-1989), começou a pensar o Brasil,

passando a limpo criticamente o papel que o legado português poderia desempenhar

naquela situação, um momento em que as democracias e o capitalismo industrial eram

uma realidade em boa parte da Europa e dos Estados Unidos e entre nós ainda apenas

projetos isolados ou iniciativas que se frustravam.

Nesta tradição o Brasil é o avesso de si mesmo. Não se ressaltava uma

interpretação centrada em símbolos e momentos decisivos da história31. Tão pouco, um

passado nacional que conseguisse estabelecer fundações sólidas, distintivas ao despertar

de um futuro que se esperava ser grandioso como o território. No caminho oposto, os

primeiros cientistas sociais brasileiros, membros em boa parte da geração de 1870,

31 Reis, José Carlos. As Identidades do Brasil: De Varnhagem a FHC. Rio de Janeiro. Ed. FGV, 1999.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

estavam preocupados em compreender as alternativas e possibilidades de

aprofundamento das mudanças inauguradas no contexto aberto com a Independência

(1822) do País em relação à metrópole.

Em uma análise sem miopias, entretanto, esses trabalhos não deixavam de anotar

o papel importante que o Estado brasileiro, estruturado como força disseminadora da

modernização, ainda poderia desempenhar, principalmente, diante uma sociedade civil

ainda incipiente, analfabeta e presa a tradicionais formas de ação social. Frente a esta

realidade a única solução liberal possível era a da reforma.

A da reconstrução do Estado no qual partir dele a estratificação social pudesse

ocorrer produzindo liberdades e garantindo direitos. Afastando o indivíduo da orbita do

Estado, que por sua vez, juridicamente, seria o verdadeiro fiador destas liberdades

políticas e sociais, em um ambiente no qual a lógica racional dos interesses, buscando

ações objetivas para a concretização da sua individualização, encontraria na sociedade

competitiva, e não mais no Estado, o ambiente da sua realização32.

No Segundo Reinado (1840-1989), as condições históricas especificas não eram

nenhum pouco favoráveis ao projeto reformista. Acusados de querer impor instituições

europeias a força da pena, como outros, em si, aponta Gildo Marçal Brandão era:

“preocupado com as formas, a confiança no poder da palavra escrita, a crença em que

a boa lei produziria uma boa sociedade, a ideia segundo a qual os problemas do País

são fundamentalmente políticos e institucionais, e só serão resolvidos por meio de

reformas políticas, a insistência em que na ausência destas, reformas econômicas e

sociais não seriam possíveis ou não se sustentariam” (Brandão: 2007,50).

32 Cardoso, Fernando Henrique. Pensadores que Inventaram o Brasil. São Paulo. Ed. Companhia das

Letras, 2013.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

A crítica da geração de 1870 a herança colonial ibérica foi absorvida e radicalizada

por Raymundo Faoro. Não por acaso, muitos dos trabalhos produzidos por essa geração

foram utilizados como fonte de reflexão e dados. Principalmente, sobre a Ibéria,

imaginada um território que possuía limites fronteiriços e características próprias, mas

que não era um espaço vazio, plano, sem vida, representável graficamente apenas. Longe

disso, seu o ensaísmo nos remete a uma visão em que o território é um ambiente de cultura

e história. E se somos fruto da colonização portuguesa, certamente um pouco desta

herança ibérica: romana, cristã, árabe e renascentista, está em nós.

Em “Os Donos do Poder” (1958) este legado era a nossa prisão. O nosso atraso,

sobretudo, por que tinha em seu núcleo um Estado centralizado, administrado por um

estamento que tornara a burocracia o principal mediador da vida social.

Utilizando, não apenas a sua proximidade com o Estado para perpetuar o seu

status-quo, juridicamente, mas também influenciando a própria racionalização da

sociedade civil, pois quando não podiam ou não conseguiam diretamente impregnar a

esfera pública de interesses privados, nas atividades que desempenhavam para o Estado,

na maioria das vezes, convocavam seus familiares mais próximos para a tarefa.

Se a família não podia ou simplesmente não queria se envolver, privilegiavam

aqueles que poderiam dividir os lucros ou pagar uma justa quantia pelo privilégio do

negócio. Impondo impõe não apenas os seus interesses, mas também a sua própria moral

a lógica do Estado tornando-se autônomos da sociedade civil: “tal poder minoritário

autônomo, sem controle nem firmes limitações da vontade popular, exerce, por meio do

funcionário, do militar e do clérigo, o patronato político, que influi e conduz os

movimentos sociais. Em Portugal e no Brasil como se verá, o comando lhe é assegurado

pela regulação material da economia, regulação conquistada pelo regime patrimonial e

perpetuada no Capitalismo estatal” (Faoro, 1958, 44).

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

Ao dominar o Estado e controlar a vida social o estamento patrimonial burocrático

enraíza valores éticos, estéticos e religiosos que congelam as possibilidades de

transformação da cultura ibérica. O barraco reverberava o passado de conquistas e sua

opulência reluzia tanto ouro que cegava. Provocando uma estupefação constante diante

do magnífico excesso de suas formas.

A “decadente” atmosfera barroca, porém, não impede o capitalismo estatal de

florescer. Citando, Caio Prado Júnior (1907-1990), Raymundo Faoro aponta que os

interesses da Coroa Portuguesa, neste contexto, não são outros senão o acúmulo de

capital. O que por sua vez nos condenava a moderna condição de empresa agrícola,

católica, subordinada ao pacto colonial33.

O catolicismo, o absolutismo, o fiscalismo e as conquistas ultramarinas

normatização a criatividade portuguesa, influenciando na própria capacidade da Coroa

em resolver questões fundamentais para a sobrevivência do Império, o que tornava cada

vez mais, a teimosia a principal característica do português. Esta quando associada à

bravura ou a razão lhes proporcionaram vitorias e lucros, mas quando simplesmente

refletia uma ortodoxia fanática, lhes renderam derrotas e perdas.

A incrível historia do processo de construção do Estado Português Ultramarino é

abordada por Raymundo Faoro apenas superficialmente. A genialidade criativa dos

portugueses: na construção náutica e astronômica, as condições intelectuais e filosóficas

engendradas na missão de adentrar a um oceano inóspito e enfrentar os imprevistos do

inédito: em nome da evangelização e da ambição, não são destacados em nenhum

33 Prado Jr, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: colônia (1942). 10ª ed. São Paulo. Ed.

Brasiliense. 2000.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

momento. Explorando os equívocos, a imagem negativa da herança colonial ibérica se

reforça ainda mais.

A chegada dos portugueses ao Brasil foi uma etapa do processo de articulação

mundial do Império Colonial Ultramarino Português. Ocorrida em um período de inflexão

dos negócios do Rei na carreira da Índia, - onde já não detinha totalmente o monopólio

dos mercados de escravos da África e do transporte de mercadorias entre portos da Índia

e do Oriente, por conta da presença cada vez maior e mais violenta de holandeses

protestantes e ingleses anglicanos -, e da já flagrante falta de competência para a

exploração de novos horizontes comerciais, no contexto a “descoberta” não foi recebida

com muito entusiasmo. Em particular, porque que diferente dos espanhóis que chegaram

ao Caribe e se defrontaram com culturas complexas, ouro e prata, os primeiros relatos,

apesar de mencionar uma natureza exuberante e a pureza do gentil, não citavam nenhuma

tipo de riqueza comercial imediatamente explorável no Brasil.

Ao iniciar sua análise a respeito da formação da sociedade brasileira, observa que

apesar das normas jurídicas estabelecidas para o povoamento e segurança, a lei de terras

das sesmarias, estivessem ancoradas sob uma lógica pretensamente feudal, o fim,

estritamente comercial para qual eram destinadas, alterava totalmente a sua própria

essência34. Neste sentido, apesar de feudal o regime de terras na colônia atendia a um

interesse moldado pela lógica do capital. Executada diretamente pelo Rei, a distribuição

de terras no Brasil, era a tradução direta da solução a crise de desabastecimento causada

pela baixa produção dos campos cultiváveis, em Portugal, enfrentada por D. Fernando I,

que obrigava camponeses e jornaleiros a permanecerem nos campos, em detrimento das

cidades, trabalhando em suas terras, sob penas dracônias ou perda efetiva das mesmas,

que seriam realocadas exclusivamente aqueles que nelas tivessem a intenção de laborar e

pagar impostos.

34 Marx, Karl. O Capital: o processo de produção do capital. Tradução de Regis Barbosa e Flavio R.

Kothe. São Paulo. Ed. Abril Cultural, 1982.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

Para Raymundo Faoro não existe feudalismo brasileiro35. E nem mesmo a

colonização portuguesa pode ser comparada a norte americana a partir da ideia de que

entre nós, em virtude da distância as vontades do Rei não foram colocadas em prática, a

exemplo da colonização de povoamento inglesa 36. Isto porque se nos Estados Unidos a

metrópole se manteve distante do processo de colonização, deliberadamente, no Brasil,

mesmo distante, estava muito presente.

Muitas vezes, antes da própria população: “a administração metropolitana,

apressada e sôfrega em recolher tributos e quintos, instala-se com amplos tentáculos na

colônia. As peças do Estado português atravessam o oceano, firmando-se no litoral e nos

sertões. Despreza-se a realidade americana, as peculiaridades locais são esmagadas: a

disciplina da ordem pública portuguesa, prestigiada pelos batalhões, foi transplantada,

como carapaça sem as medidas do corpo. O Estado sobrepôs-se à sociedade amputando

todos os membros desta que não pudessem ser dominados” (Faoro: 1958, 78). De cima

para baixo, a administração da colônia acontecia no ritmo dos interesses do capitalismo

de Estado. Em nome desta lógica os atores que empreendiam a colonização, como

bandeirantes e entrantes, eram manipulados, reconhecidos apenas como executores da

vontade do Rei, que por meio da cooptação violenta ou aduladora, exercia sua autoridade,

arregimentando a todos, arbitrando os conflitos, fazendo valer a sua soberania, na letra e

na força.

Na letra era o fiscalismo português, toda a lenta e pesada máquina administrativa

portuguesa, que exercia a função de centralizar os interesses privados em nome do Estado.

Um complexo quadro administrativo regulava a colônia. Primeiro as capitanias,

submetidas à carta de donação do Rei. Depois os governos gerais, estavam sob a

vigilância do Conselho Ultramarino: organizador administrativo e fazendário da colônia.

Para questões religiosas e militares de Cristo a Mesa de Consciência e Ordens, era o

35 Duarte, Nestor. A Ordem Privada e a Organização Política Nacional: contribuição à sociologia

política brasileira (1936). São Paulo, Ed. Nacional, 1966. 36Freire, Gilberto. Casa- Grande & Senzala. Formação da família brasileira sob o regime da economia

patriarcal (1933). 49ª edição, São Paulo. Ed. Global, 2004.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

principal órgão responsável. Cada um destes dois órgãos eram intercortado de outras

inúmeras estruturas. Por sua vez, em uma sociedade em que dominar os meios era mais

importante que ter plenas garantias sobre a ação final e que o poder era representado por

conselheiros, governadores, capitães e burocratas, não eram poucos os conflitos entre

estamento, classe comerciaria ou lucrativa e classes senhorias.

Para Raymundo Faoro, os traços gerais da administração portuguesa no Brasil,

demonstravam o quanto Estado centralizado e capitalismo estavam unidos. Por exemplo,

diante de questões conflituosas era comum o Rei tomar o partido da classe comerciaria

mais próxima da burocracia patrimonial do que as classes senhoriais. Em virtude desta

situação: “a colônia conheceu forte conflito social, latente e aberto, entre os senhores

territoriais, cuja concepção de vida se aproximava do espírito feudal, liberal e

descentralizador, e a classe mercantil. Era a hostilidade entre a classe proprietária,

assim convertida pela prosperidade da lavoura, e a classe lucrativa. Com o apoio dado

a esta pela administração real, aquela foi contida, atada, imobilizada” (Faoro: 1958,

110).

A Independência do Brasil (1822) iria inverter esse quadro. Entretanto as alianças

continuariam as mesmas, de um lado no “partido” português, a classe comerciaria junto

com a antiga burocracia portuguesa e do outro no “partido” brasileiro, enriquecido pelos

ideais liberais trazidos na bagagem de sua casta educada na Europa, os senhores rurais e

parcela da população urbana. O conflito destes dois “partidos” marcaria a história do

Brasil, subjulgando, agora no espaço da ciência histórica, a contribuição que os embates

entre senhores e dominados, negros, índios e mulatos, tiveram em nossa cultura política37.

A transmigração da Coroa (1808) e a profunda alteração do status do Brasil, que

colônia na periferia do Império, transforma-se em metrópole, polo disseminador de

comando, acirram ainda mais a disputa entre o “partido” brasileiro e o “partido”

37 Faoro, Raymundo. A Aventura Liberal Numa Ordem Patrimonialista. São Paulo. Revista da USP,

São Paulo, N.14, Pg. 14/29, Jan/Abr. 1993.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

português. As posturas se tornam politicamente complexas e radicalizadas,

subterraneamente, os senhores territoriais, agora convivas da corte, já não querem mais

simplesmente o controle de suas possessões locais, mas aspiram por territórios maiores,

federações, confederações e pátrias próprias, distintas, distantes do poder centralizador

do Estado. Na outra ponta as classes lucrativas, não querem mais perder a possibilidade

de continuarem a expandir seus negócios, agora abertos ao mundo devido à crise do pacto

colonial provocada com abertura dos portos38.

Para Raymundo Faoro, durante a Independência D. Pedro I (1789/1834) assume

um tom conciliador entre os dois “partidos”, insistindo na unidade territorial como um

fator fundamental para o desenvolvimento da Nação. Entretanto, mesmo que tivesse,

durante algum tempo, conseguido acalmar os ânimos, não durou muito para que

novamente adeptos da centralização monárquica, fossem bombardeados politicamente,

por entusiastas federalista, em um período em que o liberalismo e suas vertentes era o

grande fermento da cultura política brasileira. Contexto em que a vida urbana tinha se

transformado profundamente atingindo ares mínimos de cosmopolitismo. Com os portos

abertos, chegam viajantes do mundo todo, convidados ou por conta própria, contribuindo

para as primeiras impressões do Brasil39.

A abdicação de D. Pedro I (1831) foi um dos momentos mais marcantes da força

política deste liberalismo autóctone que pretendia estruturar a sociedade brasileira de

baixo para cima. Entretanto, não conseguindo decisivamente encarar as questões sociais

intrincadas aos seus interesses estritamente econômicos, voltar atrás, se torna na cultura

política do contexto, uma pratica corriqueira. As rebeliões da regência parecem fortalecer

38 Jancsó, István, Pimenta, João Paulo. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da

emergência de uma identidade nacional brasileira) In. Mota, Carlos Guilherme (org). Viagem

Incompleta: a experiência brasileira (1500-2000): formação: histórias. São Paulo. Ed. Senac, 1999. 39 Souza, Antonio Candido de Mello. Formação da Literatura Brasileira. São Paulo, Ed. Itatiaia, 1959.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

esta tendência, em que a política deixa de ser orientada por valores públicos e passa a se

impregna de interesses particulares. Nesta, conservadores tornam-se liberais, e estes por

sua vez, tornam-se conversadores, que por vezes se necessário, regressavam a se tornar

liberais, mais radicais ainda se a situação solicitar.

Raymundo Faoro nos indica que a centralização do poder disperso com a Regência

(1831-1840), acontece antes mesmo da própria campanha pela maioridade e o retorno do

Imperador D. Pedro II (1825/1891). Obra dos regressistas conversadores, outrora liberais,

o parlamentarismo torna-se o sistema organizador da política interna, centraliza e impõe

novamente o Rei como representação de um país grande e sem divisões. Submetida as

rebeliões regionais, com perdões e promoções ao Exército, novamente as classes

comerciarias retornam a cena política. São elas quem vão interiorizar a centralização.

As eleições impõe uma rotina política. Os partidos impregnados pela lógica do

estamento transformam-se na antessala do poder. Um local onde sentados poderiam

esperar remuneradamente a sua vez de dirigirem eles próprios a Nação.

Os cargos públicos se multiplicam e com ele o tamanho do Estado e a sua presença

na vida cotidiana da sociedade, produzindo em seus súditos “um perigoso complexo

psicológico, que há muitos séculos inibe o povo brasileiro. Habitua-se a tudo esperar do

governo, com a solução das dificuldades grandes e pequenas, confiando que ele fará

milagres nas horas de agonia extrema” (Faoro:1958,194).

No Segundo Reinado (1840-1889) a obra centralizadora de D. Pedro II expunha

os limites do poder pessoal. Apoiada no poder moderador e num arcabouço jurídico

específico lhe assegurava a possibilidade de agir coercitivamente sobre as principais

estruturas da vida social. O Imperador, a partir da sua vistosa barba cunhava a figura do

Estadista esclarecido, que por sua vez, conjunto as falaciosas eleições, contribuía ainda

mais para uma visão negativa da imagem da força representativa do parlamento. Neste

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

sentido, Raymundo Faoro acaba por admitir que muitas vezes a centralização executada

pela Coroa era resultado do próprio abismo que existe entre as classes comerciarias e

territoriais e o restante da população.

Desta forma, novamente o Estado se tornava o regulador e principal agente do

desenvolvimento econômico. Os senhores de terra, por exemplo, apesar de possuírem

poderes caudilhescos, estavam limitados entre a política econômica do Estado capitalista,

a burocracia e seus agentes comerciais lucrativos. Neste ambiente, o liberalismo que

renasce em meados dos anos 1850, tem novamente como pano de fundo a dificuldade em

enfrentar as questões definitivamente cruciais para a plenitude da ideia de República,

como por exemplo, a questão da escravidão.

Conversadores passaram então a defender os princípios monárquicos: a ideia de

que somente o centralismo poderia garantir a unidade e a modernização das estruturas

sociais sem sobressaltos revolucionários. Os liberais, progressistas ou pragmáticos: agiam

a partir do principio democrático, apregoando defender as instituições, mas limitar os

poderes do Imperador, assim lutavam por uma pauta voltada para a defesa dos direitos

individuais e de reformas na estrutura da organização política. Entre os republicanos: a

reforma do Estado era lançada como a única solução possível. A monarquia deveria ser

derrubada e o Estado assumir a sua dimensão laica, abolir a escravidão e ser regido por

uma Constituição que garantisse a divisão dos poderes40.

Para Raymundo Faoro o surgimento da República (1889) não foi resultado apenas

desse renascimento cultural do liberalismo, mas também da própria monarquia brasileira

que não conseguia mais manter a lógica patrimonialista em redias curtas. Primeiro,

porque perdeu o apoio dos senhores territoriais: com sua política paulatina de substituição

da mão de obra de escravos por trabalhadores assalariados, e segundo, porque apesar de

40 Faoro, Raymundo. Existe um Pensamento Político Brasileiro? São Paulo. Ed. Ática, 1994.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

até ter tentado evitar, o próprio estamento burocrático se reinventa: em um processo de

diferenciação interna que criaria elites jurídicas e militares. A falta de consenso entre

liberais e republicanos leva ao poder o antigo monarquista Marechal Deodoro da Fonseca

(1827/1892) e com ele frustrasse novamente a possibilidade de uma organização política

e social ligada a interesses produzidos na esfera pública, que buscavam uma estruturação

da sociedade brasileira, a partir de uma lógica democrática, liberal e republicana. O novo

poder mantém a velha estrutura legada, o estamento burocrático agora reinventado veste

farda e tem um dialético próprio, fala a partir da codificação jurídica.

Na opinião de Raymundo Faoro: a imagem do Estadista, responsável carismático

da Nação, cunhada por D. Pedro II, na República (1899) foi simplesmente substituída

pela do presidente. Sem grandes alardes, festejos ou velórios. Decorre então que a “Nação

e Estado se cindem em realidades diversas, estranhas, opostas, que mutuamente se

desconhecem. Formam-se duas sociedades justapostas – uma cultivada e letrada, a

outra, primária, com estratificações sem simbolismo telúrico. Os membros do estamento

sentem-se alheios, vivendo o drama de homens sem raízes, oscilando como fantasmas,

entre a cultura de sua gente, que lhes marca o temperamento inconsciente, e a cultura

europeia, que lhes forma a camada intelectual do pensamento” (Faoro: 1958, 268). A

manutenção da herança colonial ibérica ocorre para Raymundo Faoro quase de maneira

linear. As instituições que ela nos lega são o principal motivo do nosso atraso. Da sua

visão negativa da formação social brasileira, onde os atores políticos protagonistas da

nossa história surgem como indivíduos que não conseguiram enfrentar a necessidade

fundamental de questionar o abismo entre a Nação e a sociedade. Relegando-nos a uma

intensa sensação de “ser ou não ser, ir ou não ir, a indefinição das formas e da vontade

criadora. É uma monstruosidade social, engendrada por instituições anacrônicas –

comandadas pelo estamento burocrático – as quais haurem sua longevidade do veneno,

que as alimenta e corrompe o vinho novo, incapaz assim de fermentar” (Faoro: 1958,

271).

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

Os homens fantasmas no tempo presente:

O caráter contemporâneo das opiniões, temas e conceitos, utilizados por

Raymundo Faoro, para pensar a formação social do Brasil, no oferecem uma gama de

ferramentas fundamentais para compreender o atual cenário político brasileiro. Um

momento em que a profunda revolução tecnológica que assolou a sociedade brasileira ao

longo da primeira década do século XXI parece ter apagado definitivamente a ideia de

que não estamos inseridos na sociabilidade técnica da modernidade Ocidental.

Duvida constante entre a intelectualidade brasileira na primeira metade do século

XX, hoje, acessando maquinas cada vez mais complexas. Percebendo a revolução

tecnológica atingir dimensões ficcionais. Inegavelmente, chegamos à conclusão de que

nos tornamos parte da aldeia global. Temos identidade digital e convivemos com o cyber

espaço.

Superamos a retrograda dimensão tecnológica que nos separava da experiência

técnica do mundo moderno. E, por sua vez, ao longo das três ultimas décadas ratificamos

nossos valores políticos e sociais em meio a um processo de consolidação do ordenamento

sistêmico da República e de uma economia capitalista de massas. Neoliberal na orientação

política econômica, mas, que possui singularidades marcantes, devido, especialmente, a

dimensão atuante do Estado41.

Presente como agente regulador do mercado, seja financeiro, via Banco Central,

seja do consumo interno, intervindo na lógica dos juros de produção para influenciar o

preço final da mercadoria, privatizando para aumentar a concorrência de serviços

41 Vianna, Luiz Werneck. Esquerda Brasileira e Tradição Republicana: estudos de conjuntura sobre

a era FHC- Lula. Rio de Janeiro, Ed. Revan. 2006.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

essenciais, e até mesmo atuando na regulação das liberdades de oportunidades, agindo

assistencialmente, nosso Estado, tem um perfil inspirado muito mais no liberalismo social

de Jonh Keynes (1883/1946) do que no neoliberalismo de Friedrich Hayek (1899/1992)

42. Portanto, frente aos resultados obtidos na recuperação da mais recente crise mundial

do sistema econômico, teoricamente, podemos apontar que o modelo adotado nos tornou

um pouco mais protegidos dos abalos sistêmicos da atual lógica capitalista financeira

internacional.

Tudo isso nos leva a pensar que superamos o atraso. Em particular, porque no

espaço da disputa política pelo Estado, parece que atingimos a consciência do seu

protagonismo, o modernizando, enquanto instrumento da transformação social do bem

comum e de preservação de valores éticos e públicos.

Entretanto, no âmbito da regulação dos jogos de poder e das redes da burocracia,

nunca nossas entranhas estiveram tão dolorosamente expostas, revelando a presença de

um passado que não conseguimos nos livrar. Em nosso tempo presente os homens

fantasmas estão em evidencia. Filmados e fotografados. Revelando, não apenas um

profundo desdém pela representação publica do cargo que exercem, mas, também, toda a

engrenagem das conexões existentes entre o desenvolvimento nacional capitalista e a

política em todos os seus níveis. Uma rede maquiavélica que interliga o interesse das

grandes corporações a campanhas políticas partidárias, a utilização do dinheiro público a

manutenção de mordomias e controle político parlamentar, o enriquecimento ilícito em

todas as esferas da burocracia a políticos profissionais capacitados em derrubar as

barreiras tênues entre o publico e o privado.

Novamente o estamento corroe internamente qualquer possibilidade de

racionalização da vida social a partir de uma lógica, liberal e republicana orientada pelos

interesses de uma sociedade civil complexa. A cada nova Comissão Parlamentar de

42 Merquior, José Guilherme. O Liberalismo Antigo e Moderno. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira,

1991.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

Inquérito, “Os Donos do Poder: história do patronato político brasileiro” (1958) é

atualizado enquanto obra fundamental para se compreender o Brasil, porque foi uma das

precursoras a nos apresentar apropriação privada do espaço público, como uma das

principais características da herança colonial ibérica. Presente no interior da sociabilidade

política do brasileiro moderno e manifesta na utilização maculosa da representação

publica de um cargo eletivo ou no abuso de poder da burocracia estatal, explorando a

própria apatia dos cidadãos. Da sociedade civil presa entre as simbologias de um Estado

e em contratos assistenciais elaborados para amarrá-la a trama dos interessados em poder

político e econômico.

Neste sentido, Raymundo Faoro procura na explicação de um período histórico,

que se inicia com a formação do Estado Português no século XIII, respostas para um

problema sociológico determinado: o patrimonialismo ibérico, enraizado em nossa

sociabilidade e que se consolidou como a mais forte tradição política do nosso Estado

Nação. A Ibéria nos legaria uma cultura jurídica administrativa em que o Estado,

exercendo sua autonomia frente às classes sociais, cria mecanismos para a legitimação do

seu poder.

O resultado desta sobreposição foi à construção de uma sociedade onde grupos

estrategicamente localizados próximos às estruturas do poder central, possuem direitos

reconhecidos que sustentam o seu status-quo, uma modernidade personalista que une a

todos em uma sociabilidade amistosa, mas que não consegue estimular uma consciência

social crítica das desigualdades e dos preconceitos enraizados.

Assim, se a experiência vital da modernidade derruba qualquer tipo de muro para

construir a sua própria fortaleza, ela também possui um caráter profundamente paradoxal.

Pois nos une e nos diferencia ao mesmo tempo. Diante dela somos parte do todo, mas

também somos obrigados a encarar as nossas relações concretas. Desta maneira,

acreditamos que retomar Raymundo Faoro pode contribuir não apenas para desmistificar

o interprete clássico da formação social do Brasil ou para compreendermos o quando

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

reproduzimos o Ocidente em nós, mas sim evidenciar o quanto somos diferentes e como

podemos contribuir com ele.

Referências Bibliográficas:

Adorno, Theodor W. 1994. O Ensaio como Forma. Sociologia. São Paulo. Ed. Ática.

Alencastro, Luiz Felipe. 2000. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico

Sul. São Paulo. Ed. Companhia das Letras.

Alves, Alaor Caffé. 2002. A Função Ideológica do Direito. In. Ariente, Eduardo (org).

Fronteiras do Direito Contemporâneo. São Paulo. Ed. Imprensa Oficial do Estado.

Alonso, Angela. 2002. Ideias em Movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-

Império. São Paulo, Ed. Paz e Terra.

Antonio Cebrian, Juan. 2013. Aventura de La Reconquista. Espanha. Ed. Esfera de los

Libros.

Basseto, B. F. 2001. Elementos de Filologia Românica. São Paulo. Ed. Edusp.

Bourdieu, Pierre. 1974. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo. Ed. Perspectiva.

Boxer. Charles R. 1969. O Império Colonial Português (1415-1825). Portugal. Ed. 70.

Cardoso, Fernando Henrique. 2013. Pensadores que Inventaram o Brasil. São Paulo.

Ed. Companhia das Letras.

Chejne, Anwar G. 1993. História de Espanha Muçulmana. Madrid. Ed. Cátedra.

Cogni, Barbara Maria. 2012. Cristãos e Mulçumanos na Península Ibérica. São Paulo.

Ed. ANPUH.

Duarte, Nestor. 1966. A Ordem Privada e a Organização Política Nacional:

contribuição à sociologia política brasileira (1936). São Paulo, Ed. Nacional.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

Duby, George. 2014. Atlas Historique Mundial. France. Ed. Larousse.

Faoro, Raymundo. 1958. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro.

Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo. Ed. Globo.

Faoro, Raymundo. 1974. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. Rio de Janeiro. Ed.

Globo.

Faoro, Raymundo. 1993. A Aventura Liberal Numa Ordem Patrimonialista. São Paulo.

Revista da USP, São Paulo, N.14, Pg. 14/29, Jan/Abr.

Faoro, Raymundo. 1994. Existe um Pensamento Político Brasileiro? São Paulo. Ed.

Ática.

Fragoso, João, Florentino, Manolo. 2001. O Arcaísmo como projeto. Mercado atlântico,

sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia Rio de Janeiro. Rio

de Janeiro. Ed. Civilização Brasileira.

Freire, Gilberto. 2004. Casa- Grande & Senzala. Formação da família brasileira sob o

regime da economia patriarcal (1933). 49ª edição, São Paulo. Ed. Global.

Garcia, Nilsa Arian. 2009. Breve Histórico da Península Ibérica. Revista Phillologos.

Ano 15. N° 45. Rio de Janeiro: CIFEFIL, Set/Dez.

Guimarães, Juarez. 2009. Raymundo Faoro e o Brasil. São Paulo. Ed. Perseu Abramo.

Jancsó, István, Pimenta, João Paulo. 1999. Peças de um mosaico (ou apontamentos para

o estudo da emergência de uma identidade nacional brasileira) In. Mota, Carlos

Guilherme (org). Viagem Incompleta: a experiência brasileira (1500-2000): formação:

histórias. São Paulo. Ed. SENAC.

Koselleck, Reinhart. 2006. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos

históricos. Rio de Janeiro. Ed. Contraponto/PUC, Rio.

Lannes, Suellen Borges. 2013. A Formação do Império Arabe-Islâmico: História e

Interpretações. Rio de Janeiro. Tese de Doutorado apresentada a UFRJ.

Lukács, Georg. 1962. Teoria do Romance. Tradução de Alfredo Margarido. Lisboa. Ed.

Presença.

Mapas: http: bachiller. sabuco.com/historia/images/Fases%20colonizaci%C3%B3n.jpg.

Martins, Oliveira. 1994. História da Civilização Ibérica. Lisboa, Guimarães Editores.

III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

Marx, Karl. 1982. O Capital: o processo de produção do capital. Tradução de Regis

Barbosa e Flavio R. Kothe. São Paulo. Ed. Abril Cultural.

Merquior, José Guilherme. 1991. O Liberalismo Antigo e Moderno. Rio de Janeiro, Ed.

Nova Fronteira.

Oliveira, Fernando. 1999. História de Portugal. Portugal/Lisboa. Ed. Roma.

Prado Jr, Caio. 2000. Formação do Brasil Contemporâneo: colônia (1942). 10ª ed. São

Paulo. Ed. Brasiliense.

Reis, José Carlos. 1999. As Identidades do Brasil: De Varnhagem a FHC. Rio de

Janeiro. Ed. FGV.

Saraiva, José Hermano. 1999. História Concisa de Portugal. Portugal. Ed. Sintra.

Souza, Antonio Candido de Mello. 1959. Formação da Literatura Brasileira. São

Paulo, Ed. Itatiaia.

Veyne, Paul. 2012. Do Império Romano ao Ano Mil. Duby, George. In. História da Vida

Privada. Vol. 1. São Paulo. Ed. Companhia de Bolso,.

Vianna, Luís Werneck. 1997. A Revolução Passiva: iberismo e americanismo no Brasil.

Rio de Janeiro. Ed. Revan.

Vianna, Luiz Werneck. 2006. Esquerda Brasileira e Tradição Republicana: estudos de

conjuntura sobre a era FHC- Lula. Rio de Janeiro, Ed. Revan.

Weber, Max. 2000. A Ética protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo.

Martins Fontes.