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1 O Papel da Hipercultura na Atividade de Consultoria: um Estudo com Consultores na Região Metropolitana do Recife Autoria: Flávia Andreza de Souza, Anderson Magalhães Lula, Ana Lúcia Neves de Moura, Bruno Campello de Souza RESUMO O campo da consultoria tem prosperado vertiginosamente nas últimas décadas motivado pelas situações de incerteza e instabilidade do ambiente. Paralelamente, a tecnologia da informação coloca as pessoas diante de novas formas de processamento das informações e de interação com o mundo (hipercultura). Investiga-se o papel da hipercultura na atividade de consultoria, a partir da perspectiva da Teoria da Mediação Cognitiva. Trata-se de estudo quantitativo, com a aplicação de questionários a 95 consultores. Os resultados indicam que consultores mais hiperculturais obtém mais clientes de alto perfil, fecham maior número de contratos e percebem a atividade de consultoria associada a aspectos pragmáticos.

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O Papel da Hipercultura na Atividade de Consultoria: um Estudo com Consultores na Região Metropolitana do Recife

Autoria: Flávia Andreza de Souza, Anderson Magalhães Lula, Ana Lúcia Neves de Moura,

Bruno Campello de Souza

RESUMO O campo da consultoria tem prosperado vertiginosamente nas últimas décadas motivado pelas situações de incerteza e instabilidade do ambiente. Paralelamente, a tecnologia da informação coloca as pessoas diante de novas formas de processamento das informações e de interação com o mundo (hipercultura). Investiga-se o papel da hipercultura na atividade de consultoria, a partir da perspectiva da Teoria da Mediação Cognitiva. Trata-se de estudo quantitativo, com a aplicação de questionários a 95 consultores. Os resultados indicam que consultores mais hiperculturais obtém mais clientes de alto perfil, fecham maior número de contratos e percebem a atividade de consultoria associada a aspectos pragmáticos.

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O Papel da Hipercultura na Atividade de Consultoria: um Estudo com Consultores na Região Metropolitana do Recife 1 Introdução

A atividade de consultoria surgiu no final do século XIX atrelada ao crescimento tanto do tamanho como da complexidade das organizações industriais na Inglaterra e nos Estados Unidos. A consultoria tornou-se, então, um dos negócios mais prósperos e atrativos do mercado, na medida em que cresciam as organizações, a complexidade dos negócios e a instabilidade do ambiente. É a partir do final dos anos 80 e início dos anos 90 que a consultoria organizacional desponta e se consolida como um dos setores mais dinâmicos do período (DONADONE, 2003).

Outro fenômeno que ganhou destaque nas últimas décadas, fruto do impacto da introdução de novas tecnologias e dos conceitos e mudanças socioculturais decorrentes, é a Revolução Digital. Com esta emergiu uma nova geração, que se diferencia da geração anterior em termos de agir e pensar: novas formas de comunicação e de vínculos sociais; aumento do acesso à informação; aprendizagem via múltiplas interações; grande curiosidade e desejo de exploração e investigação. O surgimento da tecnologia da informação, a interatividade, a conectividade e o modelo de hipertexto dela decorrentes, colocaram o ser humano diante de novas formas de pensamento e interação com o mundo (SOUZA, 2000, 2004).

Souza (2000, 2004) denomina esse contexto de hipercultura e constata que o advento da hipercultura trouxe implicações para o desenvolvimento e funcionamento dos processos cognitivos dos indivíduos, tais como novos padrões de funcionamento mental, moldados a partir da lógica e dinâmica operacional dos dispositivos computacionais, novas formas de interação social e níveis mais elevados do desempenho cognitivo.

Esses resultados confirmam as previsões científicas estabelecidas a partir da Teoria da Mediação Cognitiva (TMC), desenvolvida por Souza (2000, 2004), que defende que a capacidade cognitiva do ser humano resulta do processamento cerebral associado ao processamento realizado por estruturas extracerebrais (objetos, artefatos, grupos sociais etc.) que fornecem capacidade de processamento adicional ao cérebro, através da mediação com lógicas internas que fazem a ponte com os mecanismos externos. Essa interação com os mecanismos externos gera mudanças internas e duradouras que não só permanecem na ausência dos mecanismos externos originais, como são utilizadas em contextos diferentes aumentando a capacidade cognitiva do indivíduo, ou seja, expandindo quantitativa e qualitativamente o alcance da mente humana. Para o autor, a inserção no ambiente hipercultural implica no aumento das chances de sucesso social e profissional do indivíduo.

Assim, considerando que a atividade de consultoria vem se destacando como uma das mais importantes no contexto organizacional e que os consultores são, como afirma Lima (2008, p.109), “os conselheiros organizacionais e auxiliares, catalisadores ou administradores dos processos de mudanças que permeiam o mundo organizacional contemporâneo”, atuando sobre os efeitos dos impactos da Era Digital nas organizações, ao mesmo tempo em que vivenciam esses impactos na vida pessoal e profissional, compreender como a hipercultura impacta na atividade do consultor é uma questão relevante a ser pesquisada. Ressalta-se ainda, o fato de que, apesar da sua crescente importância no direcionamento das organizações nas últimas décadas, a consultoria é ainda pouco estudada pela academia (ARGYRIS, 1970; GONÇALVES, 1991; MATTOS; FEITOSA, 2004; MOURA, 2005).

É objetivo deste estudo, portanto, investigar o papel da hipercultura na atividade de consultoria, sob a ótica da TMC. O artigo está estruturado da seguinte forma: esta seção introdutória; a seção dois, que descreve a evolução da atividade de consultoria; a seção três, que discorre sobre a TMC e sobre o fenômeno da hipercultura; a seção quatro, que apresenta o

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método; a seção cinco, com os resultados e discussão; e a sexta e última seção, que traz as considerações finais. 2 Consultoria organizacional: evolução e caracterização

O campo da consultoria organizacional tem prosperado de forma crescente desde os anos 80, quando à época, motivadas pela implementação de ferramentas gerenciais inspiradas nas práticas de gestão japonesas, as consultorias se voltaram para a interpretação e implementação dessas práticas nas empresas (DONADONE, 2003).

Contudo, foi na década de 90 que as empresas de consultoria, principalmente aquelas ligadas à consultoria organizacional, despontaram como um dos setores mais dinâmicos do período. Fatores como o desenvolvimento da área da tecnologia da informação e as mudanças organizacionais associadas aos redesenhos organizacionais (reengenharia, downsizing) contribuíram para o aumento da demanda por conselhos estratégicos e, consequentemente, para o crescimento das consultorias, para a ampliação da sua área de atuação e para a consolidação da consultoria como um grande setor de negócios (DONADONE, 2005).

A globalização certamente também é um dos motivos propulsores do aumento da demanda por conselhos estratégicos, na medida em que contribuiu para a expansão da atuação das organizações além das suas fronteiras originais, para a emergência de novos competidores e, consequentemente, para o aumento das situações de incertezas e da instabilidade do ambiente em que atuam (WOOD JR.; PAULA, 2004). O crescimento e a consolidação do negócio de consultoria estão associados a duas questões desse contexto: complexidade e incerteza. A primeira cria confusão, a segunda cria medo e ambos criam uma demanda crescente para o conselho externo (WOOLDRIDGE, 1997).

Portanto, todo esse cenário contribuiu para que a necessidade de novos conhecimentos e de inovações fosse imperativo para as empresas consolidarem suas vantagens competitivas e se colocarem em um processo de melhoria contínua sustentada, aumentando, por sua vez, a demanda de consultoria e garantindo a prosperidade desse campo (OLIVEIRA, 2003).

Diante dessa demanda, as consultorias, na sua atividade de dar suporte à tomada de decisão e dar apoio aos processos de mudança e de solução de problemas, ampliaram sua base de atuação abrangendo serviços nas áreas de processo, logística, planejamento estratégico, gestão de pessoas, finanças, tecnologia e informação, pesquisa de mercado, entre outras. Essa demanda por soluções leva Moura (2005, p. 19) a concluir que “[...] provavelmente, as organizações já não dão conta de suas atividades sem a presença, ainda que eventual, da consultoria organizacional”.

Wooldridge (1997) aponta como um dos sinais dessa expansão prodigiosa da atividade de consultoria o seu “apetite” em recrutar novos consultores, informando que em 1996 quase um terço daqueles que concluíram curso de MBA ingressaram na consultoria. O autor esclarece que se trata de um caso notável considerando que a consultoria é uma atividade relativamente nova, ainda não regulamentada e não obrigatória, a exemplo de outras áreas tais como contabilidade e direito.

Contudo, a competição e a complexidade inerentes a esse cenário e a demanda por soluções não só geram trabalho para os consultores, mas os levam a se aprofundar e aperfeiçoar suas competências aumentando a sua capacidade de desenvolvimento de soluções criativas para os variados problemas apresentados nas empresas.

Kubr (1986) alerta que os indivíduos que ingressarem na atividade de consultoria devem ter em mente que o objeto dessa profissão – a prática da administração – está em constante mudança e que o consultor, portanto, deve estar aberto para a ideia de educação permanente, de contínuo aprendizado. Junta-se à questão da mudança constante o fato da atividade do consultor não envolver assuntos de rotinas e procedimentos estabelecidos, de forma que a própria prática contribui para o desenvolvimento do profissional.

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O consultor, por definição, é aquele que dá conselhos, para tanto, está implícito que ele deve saber mais sobre o assunto que está tratando, saber pesquisar e achar respostas para os problemas, saber pensar sobre o assunto, relacionando fatos, criando novas teses e desenvolvendo novas e melhores formas de se fazer as mesmas coisas que os outros fazem (BASTOS, 1999). Desse modo, na busca de novas soluções para os problemas organizacionais, os consultores se veem inseridos em um processo de autodesenvolvimento, ao procurarem diversas formas de aprendizagem: estudos de casos, leitura de periódicos, orientação com consultores seniores, participação em cursos e seminários (KUBR, 1986).

No momento de contratar uma consultoria o seu nome e a sua reputação são fatores importantes e uma referência inicial, contudo, isso não representa muito se não vier associada à experiência e à competência do seu corpo técnico em resolver problemas semelhantes ao apresentado pelo cliente. Enquanto a consultoria pode suprir a sustentação necessária ao trabalho e desenvolvimento do consultor, é este que efetivamente detém o conhecimento e a experiência. A vantagem competitiva do consultor vai depender da sua especialidade, experiência, competência e estilo de atuação (OLIVEIRA, 2003). A expertise do consultor figura, inclusive, entre os principais fatores que contribuem para a construção de uma relação de confiança entre o cliente e o consultor (MAISTER; GREEN; GALFORD, 2000).

Argyris (1970, p. 143), em seu livro Intervention Theory and Method, afirma que a teoria e o método de intervenção constituem um campo de desafio intelectual e de estímulo profissional. O autor esclarece que as motivações de um interveniente deveriam estar direcionadas para “ajudar a si próprio e aos outros a estarem abertos, a aprender, e aumentar em si e nos outros a consciência e a competência”. Portanto, a atividade de consultoria requer do consultor uma constante atualização, reciclagem e pesquisa sobre técnicas gerenciais, assim como uma atenção às questões ligadas à evolução, tendências e experiências relatadas em consultoria (GONÇALVES, 1991), além de competências e habilidades interpessoais (ARGYRIS, 1970; BASTOS, 1999; BLOCK, 1991; MAISTER; GREEN; GALFORD, 2000; OLIVEIRA, 2003).

Essa atividade caracteriza-se assim, por proporcionar ao consultor um ambiente dinâmico e desafiador, que o incentiva a buscar pelo conhecimento, levando-o a recorrer com frequência e intensidade a fontes diversas de saber e a interagir, consequentemente, com mecanismos e instrumentos que o auxiliem no seu trabalho.

3 A Teoria da Mediação Cognitiva, a hipercultura e seus impactos na consultoria

A Teoria da Mediação Cognitiva foi concebida por Souza (2000, 2004) e tenta explicar os impactos da inserção das novas tecnologias da informação e da comunicação na sociedade e as mudanças na cognição humana decorrentes desse processo. Essa teoria está fundamentada em seis pressupostos básicos: a espécie humana depende de sua capacidade de adquirir, armazenar e aplicar conhecimento; a cognição humana resulta do processamento de informações; o cérebro humano é um recurso computacional finito, limitado e, em última análise, insatisfatório; qualquer sistema físico organizado tem capacidade de processar informações; na interação entre indivíduo e objeto existe a assimilação, na qual padrões e invariantes operatórios do segundo são internalizados na mente do primeiro sob a forma de novas lógicas, e a cada assimilação há uma acomodação com potencial de reestruturar o intelecto de modo a construir uma estrutura de potencial crescente; os seres humanos complementam o processamento cerebral de maneira externa, com o apoio de algum tipo de cognição extracerebral.

A TMC propõe que a cognição humana seja compreendida não apenas considerando a relação entre o individuo cognoscente e o objeto cognoscível e suas características, mas também considerando o ambiente no qual essa relação ocorre e que modela e condiciona a relação entre ambos (mediação). Nesse ambiente, no qual indivíduo e objeto estão inseridos,

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existem estruturas capazes de fornecer conteúdos e processar informações (processos mediativos) que auxiliarão o indivíduo para uma apreensão dos atributos e propriedades desse objeto (SOUZA, 2000).

O ambiente, portanto, atua como um terceiro agente que interage com o sujeito e o objeto, servindo de ‘ponte’. Contudo, para que ocorra a mediação cognitiva (Figura 1) o indivíduo tem que ter dentro de si conhecimentos e habilidades (mecanismos internos) que o permitam acessar e usar os mecanismos externos disponíveis no ambiente. Esses mecanismos externos, por sua vez, só representarão uma vantagem cognitiva na medida em que apoiam a interação com o objeto cognoscível (SOUZA, 2000, 2004).

Figura 1: Esquema da mediação cognitiva Fonte: Souza (2000, p. 33)

Sobre mediação Souza (2004, p. 63) esclarece que esta é “um componente ativo que age

como um verdadeiro dispositivo computacional, realizando diversas operações lógicas sobre os dados e informações associadas a um determinado objeto e situação”.

Pesquisas na área da Psicologia Cognitiva apresentam resultados que ilustram a existência de instâncias de processamento extracerebral de informações por meio de mecanismos sociais e culturais de mediação, assim como pela utilização de artefatos físicos – instrumentos, ferramentas e outros elementos do ambiente que reduzem tanto a quantidade e complexidade das operações mentais que precisam realizar, como minimiza o esforço e a probabilidade de erro. Essa ideia apoia-se no conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal de Vygotsky (1984 apud SOUZA, 2004) que entende que objetos, instrumentos e práticas sociais contribuem para o desenvolvimento cognitivo. Esses artefatos carregam dentro de si inteligência, ou seja, uma capacidade de processamento, mas que, com o tempo, essa inteligência passa a ser percebida pelas pessoas como inteligência do usuário (PEA, 1993 apud SOUZA, 2000).

Mesmo com a limitação da capacidade do cérebro, o ser humano vem assegurando o sucesso e a sobrevivência da sua espécie, através da produção, gerenciamento e aplicação do conhecimento, levando Souza (2000) a deduzir que alguma forma de ampliação da capacidade cognitiva foi desenvolvida e que essa expansão ocorre por meio do processamento extracerebral de informações. A superação das limitações cognitivas do ser humano mostra-se, então, como um processo evolucionário, no que as habilidades internas fruto do contato

Processos Mediativos Fornecimento de pressupostos que dão sentido a “ill defined problems”; Compressão de dados; Filtragem de ruído; Correção de erros; Processamento auxiliar (memória, operações lógicas).

CA

RA

CT

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ÍST

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S E

PR

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DA

DE

S

Mecanismos Internos de Mediação

Acesso aos canais ou mecanismos externos de mediação; Codificação e decodificação de representações; Buffers de entrada e saída.

Processamento Interno Estruturas controladoras internas realizadoras de operações lógicas

Sujeito Cognoscente Ambiente Objeto Cognoscível

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com mecanismos externos de mediação parecem ser úteis ou aplicáveis a outras situações (SOUZA, 2000).

A cada etapa da evolução cognitiva constata-se não apenas uma sofisticação e complexidade crescentes dos mecanismos internos e externos da mediação, mas também dos tipos de processamento extracerebral que esses mecanismos permitem. Verifica-se, consequentemente, a expansão quantitativa e qualitativa no alcance da mente humana. Há, na realidade, uma internalização parcial dos mecanismos externos, o que faz com que as habilidades permaneçam aumentadas mesmo na ausência dos mecanismos externos, pois esses são incorporadas no indivíduo como se fossem extensões da sua mente (SOUZA, 2000).

Nesse sentido a TMC não só compartilha o pensamento de Vergnaud (1997 apud SOUZA, 2004), de que a capacidade cognitiva abrange o conhecimento técnico-científico, conhecimento informal e aspectos relacionados à linguagem e à comunicação, sociabilidade e competência afetiva, mas também amplia o conceito de mente como sendo o produto do funcionamento dessa rede cognitiva (SOUZA, 2004).

A Teoria da Mediação Cognitiva propõe, portanto, que a capacidade cognitiva do ser humano resulta do processamento cerebral associado ao processamento realizado por estruturas extracerebrais (objetos, artefatos, grupos sociais etc.) que atuam como próteses cognitivas. Essa interação com os mecanismos externos gera mudanças internas e duradouras que não só permanecem na ausência dos mecanismos externos originais, como são utilizadas em contextos diferentes aumentando a capacidade cognitiva do indivíduo (SOUZA, 2004).

Analisando a evolução das formas de mediação cognitiva (Quadro 1), a mediação psicofísica seria a sua forma mais básica, resultante das características fisiológicas do sistema nervoso central do sujeito e físico-química dos objetos. Os mecanismos externos resumem-se a eventos físicos, químicos e biológicos e os internos a esquemas sensório-motores.

A mediação social, por sua vez, é construída a partir da relação entre os indivíduos, na qual os membros de um grupo agregam, indiretamente, as capacidades perceptivas dos demais membros. Há um compartilhamento – consciente ou não – das percepções e memórias dos membros do grupo.

Na mediação cultural, a partir do compartilhamento da cultura de grupos maiores e duradouros, chega-se a uma superestrutura extracerebral que é capaz de realizar operações de percepção, memória, categorização e aprendizagem.

Quadro 1: A evolução das formas de mediação

Forma de Mediação

Mecanismos Externos Mecanismos Internos Processamento Extracerebral

Psicofísica Física do objeto e do

ambiente Sistemas sensoriais Percepção

Grupo social Interação em grupo Habilidades sociais Percepção e memória

Cultura Sistemas simbólicos e

artefatos Conhecimento tradicional

e/ou formal

Percepção, memória, categorização e aprendizagem

Hipercultura Tecnologia da informação Conceitos e habilidades do

domínio da TI

Percepção, memória, categorização, aprendizagem,

julgamento, elaboração e tomada de decisões

Fonte: adaptado de Souza (2000, p. 41) Como resultado da sua pesquisa Souza (2000) acrescenta a esse processo da evolução

uma nova forma de mediação: a hipercultura. O surgimento da tecnologia da informação e a

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interatividade, a conectividade e o modelo de hipertexto, dela decorrentes, colocam o ser humano diante de novas formas de pensamento e interação com o mundo. Mais do que uma “prótese cognitiva” a hipercultura implica em transformações cognitivas, morais e comportamentais que vão afetar a dinâmica dos processos mentais, influenciando, consequentemente, vários aspectos da vida do indivíduo em diversos contextos.

A partir dessa nova perspectiva do processo cognitivo humano, Souza (2004) busca explicar os impactos da Revolução Digital e as mudanças cognitivas resultantes da introdução de novas e inéditas tecnologias e conceitos e das mudanças socioculturais decorrentes, ou seja, os impactos da hipercultura.

A hipercultura constitui uma etapa adicional da evolução cognitiva humana e, associada à Era Digital, engloba as recentes habilidades, competências, conceitos, modos de agir, funcionalidades e mudanças socioculturais ligadas ao uso de computadores e da Internet. É uma transformação significativa nos mecanismos internos e externos do indivíduo, pois potencializa suas atividades intelectuais, produzindo diferenças de natureza estrutural, afetando a dinâmica dos fenômenos cognitivos, incluindo sua interação com variáveis psicológicas relacionadas, tais como motivação, emoção e comportamento (SOUZA, 2004).

Na hipercultura os mecanismos externos de mediação incluem os dispositivos computacionais e seus impactos culturais, enquanto que os mecanismos internos envolvem as competências necessárias para o uso eficaz de tais mecanismos externos. Em termos de impactos observáveis, isso significa que todas as habilidades, competências, conceitos, modos de agir, funcionalidade e mudanças culturais ligadas ao uso de computadores e da Internet constituem um conjunto de fatores que difere substancialmente daquilo que tradicionalmente se percebe como cultura (SOUZA, 2004).

A imersão na hipercultura surge do domínio do uso da Tecnologia da Informação e de suas lógicas e conceitos matemático-científicos, bem como engloba fenômenos sociais e culturais correlatos. Cada participante tem acesso à capacidade cognitiva dos demais, não apenas ao know-how. Souza (2004) acredita que uma crescente prevalência da mediação hipercultural gere impactos cognitivos significativos, entre eles:

mudanças consideráveis no desenvolvimento cognitivo, com tendência a um processo mais precoce e complexo do que no contexto cultural tradicional, estimulando o surgimento de novas estruturas lógicas;

aumento da sociabilidade e da propensão à interação com outros indivíduos, tanto no espaço virtual quanto no real;

maior nível geral de desempenho cognitivo, principalmente nas tarefas envolvendo lógica abstrata, pensamento matemático-científico e sobrecarga cognitiva;

um considerável abismo entre gerações, com os nascidos na Era Digital apresentando padrões mentais substancialmente distintos daqueles de gerações anteriores tanto em termos de modo de funcionamento quanto no que se refere ao desempenho.

Em relação a esse abismo entre gerações, Prensky (2001), ao pesquisar estudantes da geração atual com os de gerações passadas, também considera que a chegada da tecnologia digital e a rapidez da sua disseminação nas últimas décadas do século XX implicaram na mudança dos padrões de pensamento: uma ruptura (sem possibilidades de volta) na forma de pensar e de processar as informações.

O autor distingue essas gerações como nativos digitais e imigrantes digitais, fazendo uma alusão à fluência (familiaridade) dessas gerações com a linguagem digital de computadores, videogames e da Internet. Os nativos digitais seriam aqueles indivíduos que já nasceram no mundo digital. Esses estão acostumados a receber informações rápidas, gostam de trabalhar em processos paralelos e em multitarefas, preferem acesso do tipo hipertexto e atuam melhor quando conectados em rede, entre outras características. Os imigrantes digitais, por sua vez, seriam aqueles que em algum momento de suas vidas adotaram alguns ou muitos

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dos aspectos dessa nova tecnologia, embora sempre mantenham um pé no passado, ou seja, apresentam um sotaque próprio de sua geração. Estão presos assim, a práticas já incorporadas, como imprimir e-mails ou documentos para serem editados off-line, ter a Internet como uma segunda fonte de informações (e não como primeira) etc.

Lima (2008) acrescenta a essa tipologia a categoria estrangeiro, ou seja, aqueles indivíduos que tinham sua vida e seu modo de pensar e de agir estruturados quando do surgimento dos computadores pessoais. Esses são conservadores e céticos em relação a novas tecnologias e fazem uso das tecnologias que facilitam o seu trabalho, mas não das que promovem interação social.

Souza (2004, p. 31) também classifica as gerações considerando as transformações associadas à Era Digital e a idade que as pessoas tinham à época em surgiram os primeiros computadores pessoais:

Geração Pré-Digital (71 anos ou Mais): Pessoas que tinham 40 anos ou mais, ou seja, que já haviam estruturado suas vidas, seus modos de pensar e agir, quando surgiram os primeiros computadores pessoais; Geração Digital (De 40 a 70 anos): Pessoas que tinham de 20 a 39 anos de idade, ou seja, eram adultos jovens quando surgiram os primeiros computadores pessoais e experimentaram em primeira mão as mudanças decorrentes (de fato, foi essa geração que criou tal tecnologia); Geração Pós-Digital (Menos de 40 anos): Pessoas que já nasceram num mundo onde os computadores pessoais existiam ou que ainda eram adolescentes quando eles surgiram.

Portanto, é esperado que as diferentes gerações de profissionais atuem de formas distintas e apresentem resultados distintos, de acordo com a sua interação e familiaridade com a linguagem digital.

Os indivíduos das gerações mais recentes, particularmente da Geração Pós-Digital, demonstram um maior acesso, experiência e domínio das tecnologias da informação e, consequentemente, apresentam uma maior inserção na hipercultura. Essa mesma geração, diferentemente da Geração Pré-digital, que mostra igual tendência no uso de imagens mentais e verbais, expressa uma preferência por imagens mentais, típicas das tecnologias digitais

Os profissionais imersos no pensamento hipercultural tendem a possuir características diferentes dos demais, o que resulta em distinção na forma de atuação e nos resultados. Espera-se que o pensamento hipercultural caracterize-se por:

uma lógica matemático-científica; representações visuais; formas elaboradas de classificação e ordenamento; estratégias eficazes para identificar o essencial e desprezar o resto e algoritmos eficientes para ‘varrer’ ou ‘folhear’ grandes conjuntos de informações e conhecimentos (Souza, 2004, p. 86).

Além disso, os hiperculturais tendem a maximizar a utilização das informações e do conhecimento (eficiência cognitiva); tendem a se avaliar de uma melhor forma com relação à própria competência profissional; demonstram elevada satisfação profissional; e revelam significativa sensação de realização profissional. “A Hipercultura envolve uma forma inovadora de funcionamento individual e coletivo, estando ligada a novas formas de interação social e a um novo meio de produção, sendo a boa inserção nela um fator essencial para o sucesso social e profissional” (SOUZA, 2004, p. 242).

No caso em estudo, que analisa os consultores, pelo fato desses profissionais estarem constantemente envolvidos em processos de desenvolvimento e atualização, espera-se não só uma concentração de profissionais hiperculturais, mas também uma forma diferente de interação no ambiente organizacional, em função de sua imersão nessa hipercultura.

Lima (2008), que pesquisou a relação entre a hipercultura de consultores organizacionais brasileiros e diversos aspectos que afetam a sua vida profissional, traz entre os resultados que os consultores mais hiperculturais eram mais jovens, atuavam numa

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diversidade maior de área e apresentavam um elevado nível de atualização. Esses resultados corroboram a tipologia apresentada por Prensky e a Teoria da Mediação Cognitiva. 4 Método

O estudo utilizou métodos quantitativos, com o objetivo de investigar o papel da hipercultura na atividade de consultoria, à luz da Teoria da Mediação Cognitiva. A pesquisa foi realizada com 95 consultores da Região Metropolitana do Recife. A amostra foi por conveniência e o critério estabelecido para sua definição levou em consideração os seguintes aspectos: o respondente deveria se identificar como consultor, possuir curso superior e ter exercido a atividade de consultoria nos últimos 24 meses.

O instrumento de pesquisa utilizado foi um questionário de pesquisa contendo 122 itens (distribuídos em 30 perguntas), com questões referentes ao perfil dos entrevistados, sua relação com o uso de softwares e hardwares, sua forma de atualização profissional, sua forma de obtenção de notícias e de conteúdos para fins profissionais e sua atuação nas atividades de consultoria organizacional.

Os dados obtidos com a aplicação dos questionários foram submetidos a análises quantitativas via técnicas estatísticas descritivas e inferenciais e expressos por meio de tabelas e gráficos. Para o tratamento estatístico dos dados foi utilizado o software Statsoft Statistica 8.0. Foram considerados os resultados estatisticamente significativos (p≤0.05) e marginalmente significativos (p≤0.10). A pesquisa foi realizada entre os meses de maio e junho de 2010.

Para aferir o comportamento hipercultural foi criado um indicador considerando o uso de hardware, software e web (com base na literatura sobre as características da geração hipercultural). Para medir o desempenho dos consultores, foram considerados como indicadores (observando-se os últimos 24 meses de atuação): o número de contratos; o número de clientes de alto perfil; o número de contratos por clientes; o ganho mensal com consultoria; e os resultados da consultoria.

5 Resultados e Discussão

Nesta seção serão apresentados os resultados da pesquisa, estabelecendo-se um diálogo entre os achados no estudo quantitativo e a literatura estudada.

5.1 Perfil sociodemográfico dos consultores

Dos consultores entrevistados, 57,9% (n=55) são do sexo masculino e 42,1% (n=40) do sexo feminino. Os respondentes apresentaram a seguinte distribuição de faixa etária: 9,5% tinham até 30 anos, 29,5% tinham entre 31 e 40 anos, 26,3% tinham entre 41 e 50 anos, 26,3% tinham entre 51 e 60 anos e 8,4 % com mais de 60 anos. A média da idade foi de 44,7 anos (DP=10,64), variando individualmente de 26 a 68 anos. Cerca de 60% eram casados, 18,9% solteiros, 13,7% desquitados, 4,2% em união informal e 3,2% viúvos. A renda mensal média foi de R$ 7.905,00 (DP=R$ 3.965,47), com 21,1% ganhando até R$ 4.000,00; 29,4% ganhando de R$ 4.001,00 até R$ 8.000,00; 33,7% ganhando de R$ 8.001,00 até R$ 12.000,00; e 15,4% ganhando mais de R$12.000,00.

A maioria dos consultores era graduada em Administração (40,0%) e Psicologia (12,6%) e tinha alguma forma de pós-graduação (88,4%), com destaque para a especialização (47,4%), seguida do mestrado (36,8%). Apenas 4,2% possuíam doutorado. Em relação ao domínio de línguas, utilizando uma escala de 1 (nenhum) a 5 (excelente), em média, os participantes declararam um domínio do inglês acima do “razoável” (3,35), sendo esse o idioma que mais dominavam. O domínio de todas as demais línguas ficou abaixo do conceito “razoável”. Cerca de 57,9% dos consultores publicaram ao menos um artigo científico, sendo a maioria em evento (33,7%) ou periódico nacionais (30,5%).

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5.2 A hipercultura e seus impactos na consultoria a) Grau de hipercultura

Para medir o grau de hipercultura dos consultores, considerou-se neste estudo a frequência com que esses faziam uso de hardware, software e web.

Observou-se que quase todos os consultores usavam notebook (93,7%) e mais da metade faziam uso de computador do tipo desktop (60%). Relativamente poucos declararam usar dispositivos mais portáteis tais como smartphones (24,2%), netbooks (22,1%) e PDAs (9,5%).

A maior parte dos consultores fazia uso de editor de textos (97,9%), programa de apresentação (96,8%), planilha eletrônica (89,5%) e outros tipos de softwares eram usados por menos de um terço dos entrevistados. Os jogos eram poucos utilizados pelos consultores, 15,8% faziam uso de jogos simples e 6,3%, de jogos sofisticados.

A maioria dos consultores fazia uso da Internet para acessar e-mail (98,9%), buscas (91,6%) e leitura de notícias (86,3%). Cerca da metade dos respondentes usavam a web para acessar mídia (56,8%), participar de fóruns de discussão (52,6%), bate-papo (51,6%) e sites de relacionamento (48,4%). Foi pequeno o número de usuários de jogos on-line (6,3% usavam jogos de tiro e 4,2% usavam jogos de RPG) e de proprietários de blogs ou de websites (26,3%).

O grau de hiperculturalidade dos consultores apresentou uma distribuição gaussiana (Kolmogorov-Smirnov d=.11596, p<.20). Essa hiperculturalidade representa o uso, de maneira habitual, de hardwares, de softwares e de ferramentas da Internet, pelos consultores. Quanto mais tipos de ferramentas utilizadas, maior a hiperculturalidade.

Para fins de comparação, foram definidos cinco grandes níveis de hipercultura, abrangendo, cada um, uma porção razoável da amostra, o primeiro nível foi composto por aqueles que fazem uso de até 8 ferramentas (22,1%), o segundo que fazem entre 9 e 10 (15,8%), o terceiro entre 11 e 12 (17,9%), o quarto entre 13 e 14 (21,1%) e o último por aqueles que usam 16 ou mais ferramentas (23,2%).

Esses dados demonstram que a consultoria tem relação com o uso considerável de diferentes tecnologias digitais, entre 9 e 15 ferramentas de tecnologia digital. Entretanto, ao que tudo indica, esta atividade não tem relação com quantidades mínimas (até 8) ou demasiadas (16 ou mais) de tecnologias digitais. O uso de tais ferramentas, pelos consultores, está, em uma faixa intermediária, considerando que o intervalo de indicadores foi de 0 até 27.

b) Hipercultura x Variáveis sociodemográficas

Não foram identificadas correlações e associações entre o grau de hipercultura e as variáveis sociodemográficas, exceto a idade.

Como era esperado, houve uma correlação negativa entre a idade do consultor e o seu nível de hipercultura (Spearman R=-.35 e p<.01), de modo que os consultores com idade até 40 anos apresentaram média de hipercultura superior aos consultores com idade acima de 40 anos. Esse resultado confirma os estudos de Lima (2008), Prensky (2001) e Souza (2000, 2004), de que as gerações interagem de forma distinta com as novas tecnologias, considerando a idade que tinham quando as transformações da Era Digital foram introduzidas, ou seja, considerando sua familiaridade e imersão com a linguagem digital. c) Hipercultura x Atualização profissional

No que se refere às formas de atualização dos consultores (e à frequência com que recorriam a esses meios de atualização), observou-se que esses profissionais participavam de cursos e oficinas duas ou mais vezes por ano (77,9%). Os respondentes realizavam leitura de periódicos acadêmicos, livros técnicos, revistas profissionais e artigos em websites, todos mais de uma vez por mês.

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Esses dados reforçam a ideia de que a consultoria de forma geral constitui não só um campo de desafio intelectual e estimulo profissional (ARGYRIS, 1970), mas também fonte de aprendizagem (ARGYRIS, 1970; MOURA, 2005), levando o consultor a se envolver em um processo permanente de contínuo aprendizado (KUBR, 1986).

A Tabela 1 apresenta a correlação entre as formas de atualização e a hipercultura. Observa-se uma correlação positiva, estatisticamente significativa, nas seguintes formas de atualização: leitura de periódicos acadêmicos, revistas profissionais, artigos em website e livros técnicos. A hipercultura não apresentou correlação com a participação em cursos e eventos como forma de atualização profissional.

Tabela 1: Correlação entre as formas de atualização e a hipercultura

Formas de atualização Spearman R p

Cursos e Eventos 0.04 0.70 Artigos em Periódicos Acadêmicos 0.23 0.02 Revistas Profissionais 0.27 0.01 Artigos em Websites 0.36 <.01 Livros Técnicos 0.25 0.01

Um maior grau de hipercultura mostrou-se associado a uma maior taxa de atualização

profissional via leituras, portanto, a uma maior inclinação para uma atualização mais autônoma e pouco interesse em formas de atualização passiva. A hipercultura apresentou associação particularmente forte com a atualização via leitura de artigos em websites.

Esse comportamento é compatível com o apontado por Lima (2008), que identifica como característica dos indivíduos hiperculturais o comportamento autodidata e a inclinação a buscar na Internet informações tanto profissionais quanto pessoais. Ilustram, ainda, como a atividade de consultoria requer do consultor uma constante atualização e reciclagem (GONÇALVES, 1991) e como os consultores estão inseridos em um processo de autodesenvolvimento através de diversas formas de aprendizagem (KUBR, 1986).

d) Hipercultura x Experiência profissional

Cerca de 11,6% dos consultores dedicavam-se exclusivamente à consultoria. Os demais acumulavam essa atividade com as atividades de professor da iniciativa privada (34,7%), empresário (32,6%), profissional autônomo (24,2%), emprego privado (18,9%), estudante (14,7%), professor da rede pública (13,7%) e servidor público (10,5%).

Tal resultado pode estar indicando que são poucos os profissionais que exercem apenas a atividade de consultoria ou a tenha como sua principal atividade. Talvez por segurança financeira, talvez porque a especialidade e a experiência requeridas para que o profissional se firme como consultor (BASTOS, 1999; KUBR, 1986; OLIVEIRA, 2003) exigem que esse tenha uma atividade profissional na qual se aprimore e adquira experiência, para só então atuar como consultor.

Em média, os consultores tinham pouco mais de uma década de experiência nessa atividade e também como funcionário de empresa, sendo estes os dois tipos de experiência mais frequentes. A experiência como empresário foi bastante reduzida na amostra como um todo, com média inferior a dois anos.

Observou-se uma correlação negativa, estatisticamente significativa, entre ter experiência como professor e o grau de hipercultura (Spearman R=-.27, p=.01), assim, quanto menor a experiência como professor, mais hipercultural seria o consultor. Tal correlação faz sentido, considerando que a experiência tem uma correlação positiva com o idade (Spearman R=.37, p<.01), ou seja, os mais jovens têm menos experiência como professor e, por serem

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mais jovens integram a geração mais digital, daí serem mais hiperculturais.

e) Hipercultura x Versatilidade A área de atuação mais frequente na amostra foi a de Controle de Processos

(planejamento estratégico, gestão de projetos, gestão de processos, qualidade e afins), com 67,4% dos consultores atuando nessa área; 58,9% atuando em Controle de Pessoas (gestão de pessoas, coaching ou mentoring, desenvolvimento de pessoas, avaliação de desempenho e afins); 51,6% em Serviços Profissionais (tecnologia da informação, gestão do conhecimento, relações públicas, publicidade ou propaganda, jurídica, gestão de riscos, auditoria e afins); e 48,4% em Suporte à Decisão (plano de negócios, plano de marketing, pesquisa de mercado, estudo de viabilidade técnica, estudo de viabilidade econômica, controle de custos e afins). A menos frequente, com 38,9% dos consultores, foi a área de Suporte de Pessoas (remuneração, cargos e salários, recrutamento ou seleção, qualidade de vida no trabalho e afins).

A maioria dos consultores atuava em mais de uma grande área e mais da metade em três áreas ou mais (56,9%). Tal constatação, de que profissionais mais hiperculturais apresentam uma maior versatilidade, no que se refere a atuação em processos paralelos, multitarefas e áreas diversas, corroboram os achados de Lima (2008), Prensky (2001) e Souza (2000, 2004). Um indivíduo com melhores mecanismos de mediação, ou seja, dotados de hiperculturalidade consegue “fazer uso de maior quantidade e variedade de mecanismos de registro, representação e manipulação do saber, sejam eles instrumentos físicos ou grupos sociais” (SOUZA, 2004, p. 249).

Contudo, parece haver um declínio da versatilidade a partir de um nível intermediário de hipercultura, conforme Gráfico 1. Isso parece mostrar que o fato de ser hipercultural acaba tornando o consultor mais versátil. No entanto, isso não se reflete numa relação exponencial, na qual quanto mais hipercultural, mais versátil se apresenta. Parece que o a partir de um nível elevado, a versatilidade apresenta claro declínio. Outros estudos seriam necessários para aprofundar as razões que levam a este resultado.

Gráfico 1: Gráfico da relação da hipercultura x versatilidade Houve uma associação positiva e estatisticamente significativa entre a atuação na área

de suporte à decisão e o grau de hipercultura, conforme Tabela 2.

Média Média+1.00*EP Média+1.96*EP

2,67

2,87

3,12

2,55

2,23

2,67

2,87

3,12

2,55

2,23

Até 8 9-10 11-12 13-14 15 ou Mais

INDICADOR DE HIPERCULTURA

1,6

1,8

2,0

2,2

2,4

2,6

2,8

3,0

3,2

3,4

3,6

3,8

VE

RS

AT

ILID

AD

E

2,67

2,87

3,12

2,55

2,23

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Esse resultado provavelmente deve-se ao fato de que as atividades ligadas ao grupo Suporte à Decisão - plano de negócios, plano de marketing, pesquisa de mercado, estudo de viabilidade técnica, estudo de viabilidade econômica, controle de custos e afins - exigem o uso de alguns tipos de softwares mais sofisticados que nos demais grupos.

Tabela 2: Associação entre as forma de atuação profissional e o grau de hipercultura

Formas de atuação Atuam na Área Não Atuam na Área Mann-Whitney U

Média DP N Média DP N z p

Controle de Pessoas 11.6 4.20 56 12.9 4.09 39 -1.696 0.09

Suporte de Pessoas 11.6 4.15 37 12.6 4.20 58 -1.300 0.20 Suporte à Decisão 12.9 3.73 46 11.5 4.51 49 2.047 0.04 Controle de Processos 11.8 3.92 64 12.9 4.67 31 -1.448 0.15 Serviços Profissionais 12.1 4.46 49 12.3 3.92 46 -0.640 0.53

Observa-se ainda, uma associação positiva e marginalmente significativa entre a

atuação na área de “Controle de Pessoas” e o grau de hipercultura. Tal achado difere da pesquisa conduzida por Lima (2008), com consultores de todo o Brasil, que apontou essa área como não apresentando correlação com a hipercultura. O resultado deste estudo parece ser uma característica inerente à região pesquisada (Região Metropolitana do Recife).

f) Hipercultura x Desempenho dos consultores

Como informado na seção do método, o desempenho dos consultores foi observado considerando - nos últimos 24 meses de atuação - o número de contratos, o número de clientes de alto perfil, o número de contratos por cliente, o ganho mensal com consultoria e os resultados da consultoria.

Uma considerável parcela dos consultores (86,3%) avaliou positivamente, de forma geral, o resultado do seu trabalho, considerando-o como “muito bom” ou “bom”. Quanto ao número de contratos nos últimos 24 meses (média=112.83, DP=14.076, min=1 e máx=100), o número médio de contratos por cliente (média=1.94, DP=1,569, min=0.3 e máx=9.0) e o índice médio de clientes de alto perfil (média=1.22, DP=1.652, min=0 e máx=8.83) foi percebida uma distribuição na qual a maioria dos consultores apresentava valores baixos e apenas alguns apresentaram os valores mais altos (distribuição exponencial decrescente).

O faturamento com consultoria apresentou uma grande variabilidade, embora ainda com alguma tendência aos valores mais baixos serem um pouco mais prováveis do que os mais altos. O ganho médio nos últimos 24 meses ficou em R$ 98.058,95 (DP= R$ 81.347,42, min=0 e máx=R$ 367.200,00). O ganho zero refere-se a um consultor cujo trabalho era voluntário.

A Tabela 3 mostra uma associação estatisticamente significativa entre o grau de hipercultura e a fração de clientes com alto perfil. Observa-se ainda, uma associação marginal entre o grau de hipercultura e o número de contratos de consultoria nos últimos 24 meses. Assim, os resultados parecem indicar que quanto maior o grau de hiperculturalidade maior a possibilidade de mais clientes de alto perfil e de número de contratos. No momento da contratação, o nome e a reputação do consultor servem de referências iniciais, entretanto precisam estar atreladas à experiência e à competência (MAISTER; GREEN; GALFORD, 2000). Nesse sentido a hiperculturalidade aumenta o potencial do consultor para se comunicar em redes sociais e se atualizar por meio de tecnologias digitais, elementos que estimulam a divulgação do seu nome e da sua reputação e colaboram para aquisição de competência e conhecimento.

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Tabela 3: Correlação entre os aspectos do desempenho com a hipercultura

Aspectos do desempenho Spearman R p Nº de Contratos em 24 Meses 0.19 0.06 Nº Médio de Contratos por Cliente 0.06 0.56 Indicador de Clientes de Alto Perfil 0.26 0.01

Avaliação do Resultado da Consultoria 0.05 0.63

Ganhos com Consultoria em 24 Meses -0.11 0.31

g) Hipercultura x entendimento sobre a atividade consultoria

Para melhor compreensão de como é entendida a atividade de consultoria, foi solicitado que os consultores indicassem, numa lista de 40 palavras, quais daquelas seriam as 5 mais importantes para a consultoria organizacional. Por meio da análise comparativa entre os consultores mais hiperculturais e menos hiperculturais, foi observado que os primeiros associaram consultoria a palavra “resultados” (p<.01) e os menos hiperculturais ressaltaram o “empoderamento” (p<.02).

Observou-se que das 40 palavras, apenas 10 foram citadas por mais de 20% dos respondentes, sendo elas: Planejamento, Comprometimento, Aprendizagem, Visão Sistêmica, Conhecimento, Confiança, Resultados, Comunicação, Relacionamento e Liderança.

Para fins de agrupamento e análise foi realizada uma análise de cluster para todas as 40 palavras, os resultados mostram que as 10 mais frequentemente citadas constituem um conjunto à parte das demais. E, após nova análise de cluster (Gráfico 2) para observar as possíveis associações entre essas 10 palavras, constatou-se que as mesmas podem ser agrupadas em quatro grandes grupos, cada um expressando um conceito, sendo eles: Conselhos (confiança, conhecimento e comunicação); Pragmatismo (planejamento, relacionamento e resultados); Gestão (liderança e comprometimento); Abertura (aprendizagem e visão sistêmica).

Gráfico 2: Cluster analysis das dez palavras mais frequentes

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No comparativo entre esses conceitos (agrupamentos) e os indicadores de desempenho, identificou-se uma correlação positiva e estatisticamente significativa entre o agrupamento Pragmatismo e o indicador número de clientes de alto perfil (r=0.32, p<.02). Assim, aqueles consultores que entendem a consultoria como uma atividade voltada para planejamento, resultados e relacionamento (neste estudo agrupadas sob o conceito de Pragmatismo) apresentaram um número maior de clientes de alto perfil.

Observou-se, ainda, que os consultores mais hiperculturais mostraram-se estatisticamente mais propensos a citarem “resultados”, estando mais ligados ao conceito Pragmatismo (Tabela 4).

Tabela 4: Associação entre a hiperculturalidade e a

compreensão do que é consultoriaConceito Hipercultura

≥ (n=52)Hipercultura ≤ (n=43)

Teste Canônico (p)

Resultados 49.1% 19.0% <.01 Pragmatismo 49.1% 21.4% 0.01

Esses resultados parecem mostrar que os hiperculturais percebem a atividade de

consultoria associada ao pragmatismo, ou seja, atribuem à consultoria um valor prático e voltado para a eficácia, envolvendo planejamento, relacionamento e resultados.

6 Considerações finais

Os resultados demonstraram que a maioria dos consultores da amostra pesquisada faz parte das gerações digital e pós-digital (SOUZA, 2000; 2004), criando uma expectativa de maior inserção na hipercultura. Tal expectativa mostrou-se real a partir da constatação de um alto grau de hiperculturalidade destes consultores. Eles afirmaram não só usar diferentes tipos de tecnologias digitais, mas fazê-lo com frequência.

A hiperculturalidade mostrou-se associada à uma maior atualização profissional, com destaque para a leitura de artigos na web como meio de atualização a que os consultores hiperculturais mais recorreram.

A pesquisa apresentou o que poderia ser denominado de “kit consultor”: a maioria deles possui notebook e usa com maior frequência editores de texto, programas de apresentação e planilhas eletrônicas, confirmando os resultados do estudo de Lima (2008).

Os efeitos da hipercultura puderam ser observados no desempenho da consultoria, considerando que os consultores que apresentaram maior grau de hiperculturalidade mostraram uma maior tendência a atrair clientes de alto perfil e a fechar um maior número de contratos. Analisando separadamente os itens que compõem o indicador de hipercultura (uso de hardware, software e web) esses mostraram correlação positiva com os seguintes indicadores de desempenho: número de contratos, clientes de alto perfil e uma boa avaliação dos resultados.

Outro aspecto observado, característico de indivíduo hipercultural, foi que os consultores mais hiperculturais mostraram mais versatilidade, trabalhando em um número maior de áreas de atuação.

Sobre a percepção da atividade de consultoria, os respondentes hiperculturais associaram, com significância, essa atividade ao conjunto de palavras que integraram (neste estudo) o conceito de Pragmatismo (planejamento, relacionamento e resultados), sugerindo que os consultores mais hiperculturais desta amostra atribuem a essa atividade um valor prático, voltado para a eficácia.

O estudo agrega novos conhecimentos sobre consultoria, tema ainda pouco explorado pela academia. Estudos futuros podem observar outros aspectos sobre a relação consultoria x

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hipercultura, tais como um comparativo mais aprofundado entre as diferentes gerações digitais e entre consultores de diferentes regiões.

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