O Papel Das Viúvas Nos Negócios de Família Raquel Mendes Pinto Chequer

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    SETECENTISTACuritiba, 26 a 28 de novembro de 2003

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    O papel das vivas nos negcios de famlia1

    Raquel Mendes Pinto Chequer

    FAPAM/PUCMINAS

    O discurso misgino foi imposto s elites com o objetivo de reforar os papis de

    cada gnero dentro da Amrica Portuguesa. Enquanto o homem representaria a fronteira

    entre a casa e a rua, responsabilizando-se pelo sustento material de sua prole, a mulher

    deveria ficar responsvel pelas atividades nitidamente domsticas: cuidados com a casa,

    famlia, procriao. Porm, havia possibilidades de mulheres agirem ocupando papis

    outros. Se por um lado, atravs do exerccio da maternidade a mulher poderia exercer,

    dentro do seu lar um poder e uma autoridade dos quais ela raramente dispunha,2por outro,

    administrando os esplios elas poderiam ter maior participao na vida pblica de sua

    comunidade.

    Em um artigo elaborado pela historiadora Rachel Soihet foram apontadas algumas

    questes, de natureza terica, nascidas no interior dos estudos de gnero. Entendeu a autora

    que os embatespresentes no campo da Histria das Mulheres tm procurado estabelecer

    quais eram os espaos passveis de ocupao pelo poder feminino, bem como apontar em

    qual a instncia o historiador encontrar com mais nitidez subsdios para o estudo da

    condio feminina no passado.

    1Este estudo parte de minha dissertao de mestrado, defendida em novembro de 2002, no programa de

    ps-graduao do Departamento de Histria da Universidade Federal de Minas Gerais, sob a orientao da

    Prof.D Jnia Ferreira Furtado2DEL Priore, Mary. Ao sul do corpo: condio feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colnia. 2ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1995. p.18.

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    Assim, Raquel Soihet percebeu que para alguns estudiosos as pesquisas

    deveriam se centrar na esfera poltica, no sentido tradicional do termo, ou seja, o que se

    relaciona ao campo de atuao do Estado, das vivncias coletivas. Por outro lado, percebeu

    tambm que, na viso de outros historiadores, s ultrapassando o domnio do poltico seria

    possvel entender os lugares do poder feminino no passado. Este ltimo grupo tem

    privilegiado o ambiente privado e a vida cotidiana das mulheres nos estudos que realizam.3

    Em se tratando da mulher viva na Capitania de Minas Gerais, nos anos

    setecentos, parece bastante intricado, para no dizer arriscado, definir qual era o verdadeiro

    espao de sua atuao, dentro dos conceitos tradicionais de definio das esferas pblicas e

    privadas. De acordo com tais conceitos, entende-se por instncia pblica o espao passvel

    de controle pelo o Estado, portanto, o que se relaciona com o poltico, com o poder de

    organizar e gerenciar aquilo que coletivo. Em completa oposio, o conceito de esfera

    privada se relaciona com o individual, portanto, com o lugar de vivncias particulares.

    Enquanto o pblico/poltico seria o espao de dependncia, em que a ausncia de

    autonomia seria imperativa, o espao privado seria demarcado pela possibilidade de agir

    com mais liberdade. Portanto, segundo tal concepo, faria parte da esfera pblica o

    conjunto jurdico ou consuetudinrio dos direitos e obrigaes que organizam a

    coletividade, bem como os laos que tecem e que fazem a opinio pblica. A famlia e

    3SOIHET, Rachel. Histria das Mulheres e Relaes de Gnero. Disponvel em:

    http://sites.uol.com.br/nec.uf/Niteri: Ncleo de Estudos Contemporneos/Universidade Federal Fluminense.Acesso em 11 de abril de 2002.

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    suas relaes cotidianas, tais como os laos de amizade e a convivncia domstica,

    caracterizariam a esfera privada.4

    Muitos estudiosos acreditam que nas vilas mineiras do sculo dezoito, o espao

    pblico foi majoritariamente ocupado pelos homens. As mulheres brancas, ao tempo em

    que viviam na companhia do esposo, recolhiam-se instncia privada para cumprir seu

    papel de esposa honrada e me zelosa, tal qual a imagem da mulher virtuosa construda pela

    Igreja Catlica e assimilada pela cultura lusa. Senhoras se ocupavam das obrigaes

    relacionadas com os cuidados da famlia, pois, ultrapassar a fronteira que limitava o

    domnio pblico e o domnio privado, e que neste caso se traduzia nos limites do ambiente

    domstico, no era ao compatvel com a nobreza destas damas. Se por vezes o ambiente

    externo, ou seja, o lado de fora da casa, foi tambm ocupado pelo gnero feminino, o foi

    principalmente pelas mulheres pobres, africanas ou forras que saiam s ruas em busca de

    sobrevivncia.

    De fato, qualquer esforo empreendido com o trabalho deveria ser realizado pelos

    escravos e a senhora branca do Brasil Colnia muitas vezes preferiu ocultar o desgaste

    provocado pela rotina diria com a administrao da sua casa. Desta forma, a imagem da

    mulher ociosa pode ter sido transmitida a alguns estudiosos, especialmente aos viajantes.

    Mas, isso no impede que hoje vejamos a participao feminina no universo familiar

    colonial como de grande importncia para a perpetuao do seu grupo.5

    4PERROT, Michelle.Mulheres Pblicas. So Paulo: Fundao Editora da UNESP, 1998. p. 8.5Ainda que no acarretem diretamente ganhos monetrios, vrios estudiosos tm afirmado que as tarefas

    domsticas merecem ser consideradas, seno produtivas, ao menos reprodutivas. A historiadora inglesaBrbara Hill, por exemplo, afirma ser essencial a funo que as donas de casa desempenham na economia,

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    Ainda que precisassem recorrer a figura masculina para fazer intermediao, em

    uma ocasio excepcional as mulheres ocuparam os espaos ditos pblicos. Vrias vivas

    tiveram que recorrer Justia para exigir vantagens. A maioria delas se relacionava com

    questes de ordem econmica e diziam respeito ao reconhecimento dos direitos que os

    maridos possuam em vida. Na verdade estas mulheres queriam que o Estado as

    reconhecesse como extenso do antigo chefe de famlia, enquanto pessoa jurdica, com toda

    a amplitude que o termo representa.

    Em outras palavras, o que muitas senhoras ansiavam era por desfrutar de todos os

    direitos advindos do falecimento do esposo, alm das obrigaes legais. Como

    conseqncia, em diversas situaes as mulheres saam da esfera dita privada para se

    debaterem com questes que as colocavam frente esfera pblica da sociedade.

    Muitas mulheres buscaram o auxlio do Estado para o recebimento de salrios de

    seus esposos que ficaram pendentes. Freqentemente, tambm, o rei de Portugal passava

    documento de confirmao de sesmarias s vivas. Assim, o Estado conferia s mes,

    chefes de famlia, o direito de seguirem na gerncia do seu lar, resguardando-se

    economicamente. Quando as autoridades ratificavam o direito destas senhoras de

    prosseguir no comando de grandes extenses de terra, algumas inclusive com minerao,

    abriam a possibilidade de atuarem como empreendedoras dos negcios familiares. Dona

    uma vez que sua contribuio consiste no apenas no trabalho em si de servir o lar, mas tambm de

    consumidoras, pois elas abastecem o lar. Por outro lado, segundo a mesma autora, os produtos e servios

    decorrentes das atividades destas mulheres, so de grande importncia para a reproduo e manuteno dafora de trabalho. Ver da autora o artigo: O trabalho domstico trabalho de mulher: tecnologia e a mudana

    no papel da dona de casa. In: Revista Vria Histria, Belo Horizonte: Depto. de Histria da FAFICH/

    UFMG, n 14 , set.1995. pp.34-48.

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    Maria do Nascimento, foi uma das vivas agraciadas com Carta de Confirmao de

    Sesmaria, expedida por de D. Jos I em 06 de julho de 1774.6

    Quando as senhoras brancas assumiam o controle das vidas dos seus filhos e de

    todo o patrimnio familiar elas participavam de espaos que no se restringiam unicamente

    aos domnios do lar. Alm dos negcios de famlia, questes de ordem jurdica

    impulsionaram vivas para ambientes externos ao domstico. Quando assumiam a gerncia

    de propriedades do meio rural tiveram que recorrer, muitas vezes, aos canais institucionais

    do poder judicirio para exercerem com toda a plenitude o comando do seu grupo familiar.

    Rozalia Teixeira de Magalhes, viva do Capito Thom Fernandes Guimares,

    enviou ao Reino de Portugal pedido de licena para produzir aguardente em terras prximas

    a Guanhes. No seu pedido, esta senhora declarou que ela e seu marido viviam dos

    produtos de suas fazendas nos subrbios da Vila do Prncipe: plantavam seus mantimentos

    de toda qualidade e desfaziam de seus canaviais em aguardente, acar e rapaduras.

    Contudo, aps a morte do esposo, ela havia se transferido com suas filhas para a regio de

    Guanhes, carregando dvidas e uma pequena fbrica de escravos quase todos velhos.

    Informou, ainda, que havia construdo uma engenhoca de moer cana, impulsionada por bois

    e que passara a produzir rapadura e acar, com a inteno de recomear os seus negcios

    Tudo indica que a finalidade da licena para produzir aguardente seria a gerao de renda

    que possibilitasse as quitaes das dvidas e o sustento da famlia.7

    6AHU Cx 107 Doc. 037AHU cx 118. doc.11

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    A viva em questo, recorreu s autoridades metropolitanas para obter

    vantagens utilizando-se de argumentos de natureza econmica e privada. A produo de

    cana ligava-se gerao de renda. Mas, por outro lado, esta atividade econmica ao

    mesmo tempo em que poderia auxiliar a manuteno da estabilidade do grupo domstico,

    poderia evitar a decadncia dos credores do marido falecido e, indiretamente, prejuzos

    metrpole.

    O uso deste argumento parece estar ligado a inteno de querer sensibilizar as

    autoridades a partir de um ponto importante, no qual a metrpole nutria muito interesse: a

    manuteno da estabilidade econmica. Parece que, dentro dos parmetros portugueses,

    esta estabilidade poderia ser sustentada atravs da satisfao de alguns anseios da

    populao. E, ainda que algumas destas aspiraes no fossem condizentes com as regras

    pr-estabelecidas, elas puderam ser atendidas porque harmonizavam com os interesses

    colonialistas.

    Faz-se bastante apropriado apontar o argumento utilizado pela viva e tutora

    Dona Maria do Nascimento, a mesma que recebeu Carta de Sesmaria do D. Jos I, ao

    implorar ao rei que evitasse a realizao de um novo inventrio e a transferncia da

    administrao dos bens dos seus filhos de sua mo para a de outra pessoa. De acordo com

    as leis vigentes no Imprio, quando a viva contrasse segundas npcias, deveria ser

    realizado novo inventrio e outro tutor para os filhos rfos deveria ser indicado. Assim,

    como Dona Maria havia realizado um segundo casamento, esse processo estava em vias de

    ser realizado.

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    Na sua splica D. Maria alegou que era necessrio o uso absoluto da herana do

    marido para dar prosseguimento explorao de uma lavra que ela havia empreendido.

    Outros motivos foram alegados pela viva para pedir a manuteno dos bens em suas mos,

    mas este ltimo pareceu to peculiar e inspirador, que merece ser lembrado nos seus

    detalhes:

    (...) se faz muito considervel a multido de escravosque trs abrigados para a dita obra, com a condio de

    lhe pagar os jornais do que chegar a aproveitar a lavra

    e vendo os senhores dos escravos novos governos hode pretender embolsar os ditos jornais pelos bens do

    monte e semelhante outras muitas pessoas que para o

    mesmo servio, com a mesma condio tem vendidoferro, ao, cavadeiras, lebancas (sic) e outras mais

    ferramentas que tudo importa em muitos mil cruzados,

    acrescendo tambm que ainda aos prprios escravos

    da casa verossmil se levantem fugitivos pelos matos,

    sem que se possa remediar este dano e isto se estexperimentando em casos semelhantes.

    E mais frente, continuou assim a explanao:

    (...) Sendo porm a suplicante me conservada naadministrao se faz certo se aumentarem os bens dos

    seus filhos, pagarem-se inteiramente as dvidas sem

    incomodo, o que muito interessa ao Errio Real, porser a lavra rica e ningum mais o poder dispor paradesfrut-la.

    8

    8AHU cx. 108 doc. 01

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    Ou seja, alm da preocupao com os destinos da unidade familiar,

    considerou-se que, caso a Coroa permitisse que o patrimnio da famlia permanecesse sob o

    controle da viva, os interesses econmicos de outras pessoas estariam garantidos. Tambm

    foi alegado que a permanncia de escravos em cativeiro dependia da continuidade da obra

    de Dona Maria do Nascimento. Ora, a escravido consistia na base do sistema de

    explorao econmica que Portugal havia implantado nas terras americanas e no

    interessava nem um pouco metrpole a fuga de escravos. Mas, um outro detalhe

    importante ressaltar. Em 1774, esta senhora recebeu Carta de Confirmao de Sesmaria e

    sabia que somente ela poderia explorar a lavra que havia no terreno. Assim, ela demonstrou

    Coroa que somente pelas suas mos o Errio Rgio poderia obter lucros com minerao

    naquelas terras.9

    Estas situaes envolvendo vivas revelam, portanto, como de fato as questes

    de natureza pblica se misturavam com as de natureza privada no universo mineiro

    setecentista. Quando estas mulheres recorriam instncia pblica buscavam defender sua

    unidade domstica, ou seja, o espao inserido dentro da esfera privada. Entretanto, os

    pareceres que foram expedidos pelas autoridades de justia no tinham como nico objetivo

    satisfazer aos direitos das vivas e dos seus filhos rfos; sobretudo visavam a

    conformao da sociedade em sintonia com os interesses metropolitanos.

    As splicas continham alegaes que tentavam sensibilizar as autoridades

    apontando as vantagens que o atendimento dos pedidos acarretaria dentro do universo

    particular e pessoal da famlia. Mas, harmonizavam com estes mesmos argumentos outros

    9AHU cx. 107 doc. 03.

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    que tentavam demonstrar que a satisfao destes anseios tambm proporcionaria vantagens

    Coroa. Em outras palavras, vivas, assim como outros sditos da Amrica portuguesa

    recorriam Justia superior para conseguir benefcios particulares apostando na

    benevolncia do Rei para com os bons vassalos. Bons vassalos neste contexto, dizia

    respeito especialmente, queles indivduos virtuosos que contribuam para o efetivo

    desenvolvimento do Imprio portugus e ao mesmo tempo em que aceitavam a supremacia

    do poder do Rei de Portugal.

    Por outro lado, as vivas no tinham conscincia que, pelo menos

    simbolicamente, poderiam estar colocando em xeque os pressupostos misginos alardeados

    pelo Estado portugus e pela Igreja Catlica. Estas mulheres visavam simplesmente

    resguardar o patrimnio familiar. Mais do que romper com a dominao masculina

    existente na sociedade mineira setecentista, as senhoras queriam, na realidade, garantir a

    perpetuao do seu grupo, atuando de maneira similar aos chefes de famlia falecidos.