288
UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS O papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais: o caráter identitário da discussão sobre o AO90 em Portugal Silvia Valencich Frota Orientador: Prof. Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos de Literatura e de Cultura, especialidade de Cultura e Comunicação 2016

O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

O papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais:

o caráter identitário da discussão sobre o AO90 em Portugal

Silvia Valencich Frota

Orientador: Prof. Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos de Literatura e de Cultura,

especialidade de Cultura e Comunicação

2016

Page 2: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 3: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

O papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais:

o caráter identitário da discussão sobre o AO90 em Portugal

Silvia Valencich Frota

Orientador: Prof. Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos de Literatura e de Cultura,

especialidade de Cultura e Comunicação

Júri:

Presidente: Doutora Maria Cristina de Castro Maia de Sousa Pimentel, Professora Catedrática e

Membro do Conselho Científico, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Vogais:

- Doutor Fernando Ramallo Fernández, Professor Titular, Facultade de Filoloxia e Tradución da

Universidade de Vigo – Espanha:

- Doutora Marta Susana Filipe Alexandre, Professora Adjunta Convidada, Escola Superior de

Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Leiria;

- Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia, Professor Associado com Agregação, Faculdade de

Letras da Universidade de Lisboa.

- Doutora Maria Teresa Barbieri de Ataíde Malafaia, Professora Associada, Faculdade de Letras

da Universidade de Lisboa.

- Doutor Manuel Amador Frias Martins, Professor Auxiliar com Agregação, Faculdade de

Letras da Universidade de Lisboa.

2016

Page 4: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 5: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

iii

Indicação de direitos de cópia

A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e a Universidade de Lisboa têm

licença não exclusiva para arquivar e tornar acessível, nomeadamente através do seu

repositório institucional, esta tese, no todo ou em parte, em suporte digital, para acesso

mundial. A Faculdade de Letras da Universidade Lisboa e a Universidade de Lisboa estão

autorizadas a arquivar e, sem alterar o conteúdo, converter a tese ou dissertação entregue para

qualquer formato de ficheiro, meio ou suporte, nomeadamente através da sua digitalização,

para efeitos de preservação e acesso.

Page 6: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

iv

Page 7: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

v

Aos meus pais

Page 8: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

vi

Page 9: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

vii

Resumo

A língua, ainda hoje, figura como um importante e recorrente elemento de

identificação e, em especial, de identificação com uma certa identidade nacional. Neste

estudo, procura-se refletir sobre os diferentes modos como a relação entre língua e identidade

nacional é construída no âmbito do debate sobre a adoção do Acordo Ortográfico de Língua

Portuguesa, de 1990. Tal acordo, assinado por diferentes países, todos membros da CPLP

(Comunidade de Países de Língua Portuguesa), propõe, entre outros objetivos, a promoção da

unificação da grafia do português nos diversos países que o têm como língua oficial. Com

essa preocupação em mente, são analisados artigos de opinião sobre o acordo ortográfico,

publicados pelos jornais portugueses, em 2012.

O enquadramento teórico-metodológico adotado é o da análise do discurso, em sua

vertente crítica, entrelaçado com os princípios da linguística sistêmico-funcional. As

identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas numa perspectiva não essencialista,

que se fundamenta nos diferentes processos de contrução discursiva nos quais a língua

desempenha um papel relevante.

Parte-se de uma breve retrospectiva do desenvolvimento dos nacionalismos na Europa,

centrada no papel da língua, para, a seguir, identificar-se o contexto português, naquilo que

interessa a este estudo. Passando-se à análise propriamente dita, identifica-se e analisa-se um

conjunto de representações associadas à ideia de pátria, nação, soberania, povo, cultura,

identidade e matriz, que são, neste estudo, caracterizados como “marcadores identitários”.

Também as relações estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais e

supranacionais são levadas em conta, num esforço de identificação de simetrias e assimetrias,

de movimentos de aproximação ou afastamento e de afirmação de força ou fraqueza, que, em

alguma medida, representam tentativas de caracterização de um “eu” e de um “outro”, sempre

marcadas por relações de poder.

Palavras-Chave: identidade nacional, cultura nacional, língua nacional, acordo

ortográfico, análise do discurso.

Page 10: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

viii

Page 11: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

ix

Abstract

Language today still figures as an important and recurrent identification element and,

in particular, identification of a certain national identity. In this study, we try to realize the

different ways the relationship between language and national identity is built in the debate on

the adoption of the Portuguese spelling agreement (Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa

de 1990). The agreement that is signed by different countries all of them members of the

CPLP (Community of Portuguese speaking countries) aims to promote the unification of

Portuguese spelling among others objectives. Considering this, opinion articles on the spelling

agreement published by the Portuguese newspaper in 2012 are analyzed.

The theoretical and methodological framework adopted is that of discourse analysis, in

its critical perspective, intertwined with the principles of systemic functional linguistics.

National identities, in this context, are understood within a non-essentialist perspective that is

based on different discursive construction processes in which language plays an important

role.

The starting point is a brief review of the development of nationalisms in Europe,

centered on the role of language. Then the Portuguese context is characterized as far as it is

considered relevant to this study. Turning to the analysis itself, a set of representations, which

are characterized as "identity markers" in this study, are identifyied and analyzed. They are

associated with the idea of homeland, nation, sovereignty, people, culture, identity and matrix.

Also the relationship between Portugal and other national and supranational entities are taken

into account in an effort to identify symmetries and asymmetries, approach or distance

movements, strength or weakness positions, which, to some extent, represent attempts to

define an "I" and an "other" and always embody power relations.

Keywords: national identity, national culture, national language, spelling agreement,

discourse analysis.

Page 12: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

x

Page 13: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

xi

Agradecimentos

Agradeço a todos aqueles que, de algum modo, contribuíram para que este projeto

chegasse ao fim: ao Manuel Frias Martins, pela primeira conversa sobre língua e identidade,

ainda antes do meu ingresso na FLUL; à Urbana Pereira, pela calorosa presença e pelos

constantes cuidados ao longo deste percurso; à Maria Krebber, pela amizade e cumplicidade,

que muito amenizaram as inseguranças, a solidão e as angústias que acompanham um projeto

como este. Por fim, e sobretudo, agradeço ao Carlos Gouveia pela orientação, pelo apoio e

pela amizade sempre.

Page 14: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

xii

Page 15: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

xiii

Índice

Introdução………………………………………………………………………. 3

PARTE I

Capítulo 1 – As identidades nacionais na Europa do século XXI ……………… 17

Capítulo 2 – Língua e identidade nacional……………………………………… 47

Capítulo 3 – A construção discursiva das identidades nacionais……………….. 77

PARTE II

Capítulo 4 – Contextualização e apresentação do corpus……………………….. 105

Capítulo 5 – Análise dos marcadores identitários………………………………. 129

Capítulo 6 – Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal 159

Capítulo 7 – Reflexão final……………………………………………………… 189

Conclusão……………………………………………………………………….. 211

Apêndice A……………………………………………………………………… 219

Apêndice B……………………………………………………………………… 223

Apêndice C……………………………………………………………………… 239

Apêndice D……………………………………………………………………… 249

Referências……………………………………………………………………… 263

Obs.: Anexos disponíveis apenas em suporte digital.

Page 16: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

xiv

Page 17: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

xv

Índice de Quadros

Quadro 4.1 – Total de artigos por jornal analisado 114

Quadro 4.2 – Total de artigos publicados por autor 115

Quadro 4.3 – Dispersão dos artigos ao longo do ano 116

Quadro 4.4 – Posição assumida face ao AO90 116

Quadro 4.5 – Síntese dos argumentos 124

Quadro 5.1 – Marcadores identitários 131

Quadro 5.2 – Marcadores identitários e contabilização de ocorrências 132

Quadro 5.3 – Pátria 132

Quadro 5.4 – Relação entre pátria e língua 134

Quadro 5.5 – Nação 135

Quadro 5.6 – Acepções de nação 136

Quadro 5.7 – Classificação de nacional/is 138

Quadro 5.8 – Povo 141

Quadro 5.9 – Classificação de povo 142

Quadro 5.10 – Cultura 145

Quadro 5.11 – Classificação dos usos da palavra cultura 145

Quadro 5.12 – Classificação de cultural/is 147

Quadro 5.13 – Identidade 149

Quadro 5.14 – Identidade: língua x ortografia 150

Quadro 5.15 – Relações de identidade 150

Quadro 5.16 – Matriz 152

Quadro 5.17 – Representações de matriz 154

Quadro 5.18 – Marcadores identitários: quadro-resumo 155

Quadro 6.1 – Situações de comparação e relações comparativas simples ou complexas 162

Quadro 6.2 – Relações simétricas ou assimétricas 162

Quadro 6.3 – Brasil como interveniente frequente no total de relações de comparação 163

Quadro 6.4 – Intervenientes que figuram nas relações de simetria 164

Quadro 6.5 – Brasil como interveniente frequente nas relações de simetria 164

Quadro 6.6 – Estratégias de representação do Brasil quando um dos intervenientes, ao

lado de outros países de língua portuguesa: referências explícitas e implícitas 165

Quadro 6.7 – Estratégias de representação do Brasil quando único interveniente:

referências explícitas e implícitas 166

Quadro 6.8 – Classificação das representações implícitas do Brasil quando único

interveniente 167

Quadro 6.9 – Relações simétricas: convergentes e divergentes 169

Quadro 6.10 – Relações simétricas convergentes e divergentes: Brasil e outros

intervenientes 169

Quadro 6.11 – Relações assimétricas: intervenientes 172

Quadro 6.12 – Relações assimétricas: o Brasil como interveniente 173

Quadro 6.13 – Relações assimétricas: outros intervenientes 173

Quadro 6.14 – Relações assimétricas: forças e fraquezas 174

Quadro 6.15 – Portugal no pólo forte: os PALOP como principais intervenientes 174

Quadro 6.16 – Portugal no pólo forte: Timor, Brasil e Espanha intervenientes 175

Quadro 6.17 – Relações assimétricas: quadro geral 175

Quadro 6.18 – Portugal no pólo fraco: principais intervenientes 176

Quadro 6.19 – Relações de simetria e assimetria: quadro-resumo 185

Page 18: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

xvi

Page 19: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Introdução

Page 20: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 21: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

No final do século passado, apregoaram seu fim, mas, nesta segunda década do século

XXI, os Estados-Nação – e os nacionalismos que estão em suas respectivas origens – ainda

figuram como intervenientes relevantes neste jogo de azar que cria, desenvolve e regula

mercados globais de consumo de ideias, valores, produtos, capitais e, também, de pessoas, e

que constitui uma arena internacional de atuação social em sentido amplo.

No contexto europeu, aqui equiparado ao contexto da União Europeia, os

nacionalismos se fazem presentes na manutenção da divisão política dos Estados-membros

em unidades nacionais, nos discursos de afirmação e proteção de uma língua ou de uma

cultura nacional, nas plataformas políticas defendidas principalmente pelos partidos de

extrema-direita, nas campanhas de incentivo ao turismo, nas disputas esportivas

internacionais, nos concursos televisivos como o Eurovisão, entre tantos outros casos e

situações.

Os exemplos acima corroboram, em alguma medida, a tese de que os chamados

Estados-Nação ainda são importantes intervenientes no cenário internacional, mas não

implicam afirmar que os papéis desempenhados por eles não se tenham transformado ao

longo das últimas décadas. Como regra geral, parece haver uma maior concorrência entre as

situações em que o Estado-Nação age sozinho e aquelas em que atua em concerto com outros

Estados-Nação, ou seja, cada vez mais, os Estados são chamados a atuar como membros de

uma instituição ou organização internacional, ou nesse contexto, do que a agir em nome

próprio e individual.

Essas transformações do papel dos Estados-Nação, e dos nacionalismos propriamente

ditos, está diretamente relacionada com os diferentes processos de globalização que marcaram

especialmente o século XX e que seguem se desenvolvendo na atualidade. Tais processos

extrapolam as fronteiras nacionais, mas não necessariamente prescindem da ideia de nação.

Pelo contrário, muitas vezes parecem se valer dela, quando, por exemplo, se organizam em

Page 22: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Introdução

4

torno de acordos comerciais ou tratados internacionais ou, ainda, exploram as especificidades

das diferentes e diversificadas culturas nacionais. Nesses cenários, a unidade de negociação é

a unidade nacional, embora o resultado que se busque alcançar seja, em geral, muito mais

amplo.

Nesse mesmo sentido, mas no âmbito específico das políticas adotadas pela união

europeia, parece haver um esforço recorrente, com vistas a assegurar uma suposta soberania

ou independência nacional – entendidas, neste contexto, como direito à autodeterminação –

que, em geral, surge como um valor a ser protegido e preservado. Com tal afirmação, no

entanto, não se pretende corroborar essa tese nem polemizar em torno dela. Por ora, basta

reconhecer a existência de movimentos em sentidos diversos: os que afirmam que a cautela

adotada na definição das políticas europeias no que diz respeito à proteção das soberanias

nacionais pode ser entendida como desejável e saudável; os que a consideram, não mais

desejável, mas necessária e incontornável; ou, ainda, os que entendem tal cuidado como

excessivo e prejudicial para a construção de uma identidade europeia comum.

Nesse contexto de transformação dos nacionalismos, no entanto, seja essa

transformação conducente ao fim das nações ou não, interessa agora verificar o que acontece

com as chamadas identidades nacionais. Pensando-se especificamente nos critérios

identitários, isto é, nos elementos que, no passado, e em especial, ao longo do século XIX e na

primeira metade do século XX, foram frequentemente associados à construção das

identidades nacionais – como os conceitos de território (e fronteira), soberania, etnia (e raça),

povo, história (e memória) e língua entre outros –, interessa refletir sobre seus respectivos

usos nos dias de hoje.

A noção de território nacional como sendo o espaço físico onde se localiza

espacialmente a nação e que delimita sua área de atuação, associado à ideia de fronteira, ou

seja, de limites físicos e de controlo de acesso ao território nacional, é fortemente impactada

pelo desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação que redefinem, de certo modo, a

própria noção de espaço, que agora se amplia para dar conta do mundo digital e do mundo

virtual.

Além disso, sob pressão dos processos de globalização que conduzem ao

estabelecimento de novos mercados e novas solidariedades, os quais, em muitos casos,

concretizam-se na criação de entidades multi, inter ou transnacionais, essas fronteiras se

deslocam para além dos estados nacionais, muitas vezes instaurando uma zona cinzenta, de

indefinição entre o território de um país e o do país vizinho. Exemplo dessa situação é a

União Europeia e o seu esforço de abertura e de livre circulação interna, levado a cabo pela

Page 23: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Introdução

5

atribuição de maior porosidade às fronteiras, ao ponto de, às vezes, estas se tornarem

transparentes ou mesmo invisíveis.

A ideia de soberania da nação, por sua vez, como direito de autodeterminação e de

livre arbítrio, ou seja, como o reconhecimento da sua capacidade de e da sua autoridade para

tomar decisões no âmbito do seu território, sem sofrer ingerências externas, é relativizada pelo

contexto sócio-econômico global, que instaura um novo jogo de forças e interdependências.

Apenas como exemplo dessas transformações, pode-se citar duas situações recorrentes: a

globalização dos mercados financeiros e a globalização dos meios de comunicação de massas.

Com a mobilidade do capital – que se traduz na internacionalização das unidades de

produção, das instituições financeiras, assim como dos mercados de consumo entre outros – e

a consequente criação de novos e ampliados fluxos que transcendem os limites e o controlo

quer das nações de origem, quer das nações de destino, estabelece-se uma forte relação de

interdependência caracterizada por maior instabilidade e riscos de contaminação entre países.

Nessas condições, se é verdade que uma crise econômica pode ser deflagrada pela ação (ou

omissão) de um único país, dificilmente pode ser contornada sem o consórcio de muitos

outros, ameaçados pelos riscos de contágio.

Na perspectiva da internacionalização dos meios de comunicação, que implica, por

exemplo, a circulação de imagens e mensagens em âmbito global – muitas vezes em tempo

real, desafiando o controlo e a censura locais –, estes concorrem para a construção de

reputação e imagem dos diferentes sujeitos nacionais, interferindo nas relações estabelecidas

entre nações, nas negociações internacionais, no desempenho financeiro e influenciando,

inclusive, decisões de natureza política.

Também o conceito de raça sofre um profundo revés, em parte em função da sua

apropriação pelos regimes totalitários da primeira metade do século XX, com destaque para o

nazismo, e das dramáticas consequências que acarretou. Posto de lado o conceito de raça, com

seu sentido pejorativo e sua carga negativa, é preciso encontrar uma maneira de suprir sua

ausência, corrigir seus defeitos. A ideia de etnia, como indicativo de uma origem comum, é a

que melhor parece corresponder a tais necessidades.

Mas também o conceito de etnia é transformado, como bem ilustra a reflexão de

Fredrik Barth (1998) sobre o tema. O autor apresenta o conceito de etnia, não mais como um

fato consumado, isto é, como uma caraterística inata e irrevogável de um indivíduo ou de um

grupo, mas sim como o resultado de um processo de seleção e descarte de traços avaliados

positiva ou negativamente, ou seja, também como resultado de um processo de construção. O

Page 24: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Introdução

6

recurso à etnia, portanto, deixa de ser uma referência estática e eterna e torna-se em algo, em

alguma medida, volátil e passível de transformação ao longo do espaço-tempo.

Nesse mesmo sentido, a noção de povo como os autores, isto é, os criadores originais

de uma nação e, ao mesmo tempo, como os seus legítimos e autênticos herdeiros, também é

reconfigurada à luz dos processos de globalização e da intensificação dos movimentos

migratórios. Multiplicam-se, assim, os deslocamentos, modificando-se os desenhos das

cidades, que, aos poucos, transformam-se em espaços multiculturais.

Pessoas de diferentes nacionalidades convivem num mesmo espaço, interagem,

estranham-se, identificam-se, num constante movimento de atração e repulsa. Os direitos de

cidadania – conquistados pelos antes estrangeiros e agora cidadãos – ampliam a capacidade

de ação do indivíduo, equiparam o que antes era desigual, atenuam ou mesmo apagam as

diferenças. Em muitos países, partidários do jus solis, filhos de pais estrangeiros, nascidos no

país são considerados nacionais ou, ao menos, têm essa possibilidade ao seu dispor,

alimentando em alguma medida o cenário de concorrência entre os conceitos de povo (no viés

de uma partilha étnica) e cidadão (no viés de uma partilha de direitos), que se confundem em

certas situações e constrastam em outras.

A história, com sua forte carga temporal e de continuidade, também é reinventada, ao

lado da ideia de memória. A história deixa de ser o resgate ou o registro de fatos e

acontecimentos do passado e tranforma-se numa narrativa, isto é, numa versão motivada,

parcial e sempre inacabada desse passado. Torna-se, desse modo, objeto de disputa entre

indivíduos, instituições, ideologias, governos – e o mesmo pode-se afirmar da memória, seja

individual, seja coletiva.

As relações de poder entretecidas nessas narrativas de história-memória têm, afinal,

sua existência reconhecida, mesmo que nem sempre seus conteúdos sejam facilmente

identificáveis. Essa história-memória perde seus contornos essencialistas e afirma-se como

invenção. Agora, portanto, não mais se presta com tanta facilidade à comprovação

incontestável da existência secular de uma nação, recurso muito frequente no passado dos

nacionalismos.

Finalmente, resta referir o papel da língua como elemento de identificação, isto é, o

recurso à língua como critério de nacionalidade, que ainda parece estar em vigor. A

associação entre uma língua e uma nação está muitas vezes presente, por exemplo, nos

discursos de proteção à língua, seja ela minoritária ou não, contra o risco de extinção –

ameaçada por línguas mais fortes, como o inglês – ou de ser maculada ou contaminada por

expressões e palavras estrangeiras. Nesse sentido, não são incomuns iniciativas, às vezes no

Page 25: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Introdução

7

campo jurídico, que visam proibir o uso dos chamados estrangeirismos ou mesmo de instituir

multas pecuniárias por erros gramaticais – caracterizados como atentados contra a língua –

em contexto de publicidade ou de circulação pública de informação.

Também reforçam essa relação entre língua e identidade os discursos que atribuem

valor cultural e econômico às línguas, como, por exemplo, as iniciativas que procuram reunir

países que partilham uma mesma língua em busca, entre outras, de vantagens comerciais e

políticas, como a lusofonia ou a francofonia. Nesse contexto, a língua é entendida como

patrimônio ou bem passível de ser possuído e rentabilizado.

A associação entre língua e cultura também contribui para a valorização do papel das

chamadas línguas nacionais como força que une os indivíduos nacionais e os diferencia dos

estrangeiros ao estabelecer uma relação entre a língua e um certo caráter nacional, isto é, um

suposto padrão de comportamento cristalizado em representações, em geral idealizadas e

arquetípicas, que muitas vezes exercem grande influência nos processos de autoidentificação

e também no modo como a nação é percebida pelos outros.

Mas, se o caráter identitário da língua parece persistir na Europa atual, não se pode

negar que o contexto de uso das línguas se tenha transformado, até porque todos os critérios

acima indicados estão ligados e são interdependentes, fazendo com que a transformação de

um afete de algum modo os demais. Com os processos de globalização, o desenvolvimento

das tecnologias de comunicação, o aumento da mobilidade de dados, bens e pessoas e a

multiplicação das migrações, o contato entre línguas também se intensifica. A língua única,

como valor, perde espaço para a diversidade linguística – agora, é esta última que é

valorizada. O indivíduo monolíngue perde potencial competitivo face ao indivíduo plurilingue

tanto nos mercados de trabalho como na sociedade em geral.

No contexto europeu, o multilinguismo é a ideologia linguística adotada, embora não

isenta de contestação, o que significa dizer que a identidade europeia se constrói em torno da

diversidade linguística e não em torno da construção de uma só língua para a Europa (cf. a

Resolução do Conselho da União Europeia de 21 de novembro de 2008, sobre uma estratégia

europeia a favor do multilinguismo). Mas, nesse cenário, as línguas também podem assumir

diferentes papéis. Com o esbatimento das fronteiras físicas e a virtualização e fragmentação

do espaço no interior do continente, as línguas parecem se sobressair como uma espécie de

barreira natural, a separar ingleses, franceses, portugueses ou alemães. Em reforço a tais

discursos, a língua ainda figura como um importante canal de acesso ao exercício pleno da

cidadania, quando não à aquisição primeira dessa cidadania em muitos casos.

Page 26: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Introdução

8

Resta saber qual é o impacto dessas mudanças e transformações na relação entre

língua e nação, ou melhor, no modo como o indivíduo se vale da língua para construir sua

identidade nacional ou a de outrem. O objetivo desta pesquisa é refletir sobre esse tema no

contexto da União Europeia de hoje. Será que o potencial da língua como elemento de

identificação nacional realmente permanece? E, se permanece, mantém-se inalterado ou se

transforma? Nesse contexto, o que se pode dizer sobre a relação entre língua e identidade

nacional no âmbito do projeto europeu: ela surge como um empecilho para a construção de

uma identidade europeia ou consiste numa estratégia relevante para a sua construção?

Com tal objetivo em mente, analisa-se o caso de Portugal, às voltas com um acordo

ortográfico (AO) que visa uniformizar a grafia da língua entre os países lusófonos e que tem

suscitado polêmica no país, parte dela em torno de questões de identidade. Para desenvolver

essa reflexão, estuda-se o caráter identitário das discussões sobre o AO, a partir da análise de

artigos de opinião publicados na mídia impressa em Portugal.

A presente pesquisa está dividida em duas partes. Na primeira, que reúne os capítulos

de 1 a 3, constrói-se o enquadramento teórico e metodológico que servirá de norte para o

desenvolvimento do estudo do caso português e, ao mesmo tempo, de contraponto para a

análise dos dados obtidos. Na segunda parte, que reúne os capítulos de 4 a 7, desenvolve-se a

análise de caso propriamente dita.

No primeiro capítulo, faz-se um recorte das teorias sobre as identidades a fim de se

delinear aquelas que são objeto deste estudo: as identidades nacionais. Parte-se da perspectiva

dos estudos culturais sobre o tema, explorando-se seu caráter transdisciplinar e,

especialmente, as relações entre identidade e modernidade, marcadas nos tempos atuais pela

ideia de crise, fragmentação e multiplicação, ou seja, discute-se o fim da identidade singular e

inteira, por um lado, e a configuração de um cenário de concorrência entre identidades

diversas, que ora se completam, ora se contradizem ou se anulam.

Dentre as identidades, desenvolve-se o conceito de identidade nacional, traçando-se

uma breve retrospectiva da história dos nacionalismos na Europa especialmente a partir do

século XIX. A ideia de nação como comunidade imaginada, proposta por Anderson (2006), é

o pano de fundo contra o qual se desenha essa identidade, num processo que mobiliza

diferentes critérios como os conceitos de raça, etnia, língua, território, povo, soberania,

cultura, história, memória entre outros.

A seguir, explora-se a relação entre identidade nacional e cultura – conceitos que, em

certos momentos, parecem se sobrepor. A própria definição de Anderson (2006: 4) de

nacionalismo como sendo um tipo especial de artefato cultural já aponta para essa

Page 27: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Introdução

9

interconexão. O recurso a um conjunto de valores, comportamentos, tradições, memórias,

visões de mundo e tantos outros elementos que podem ou não fazer parte dessa ideia de

cultura nacional serve também aos processos de identificação individual e coletiva, de

classificação de si mesmo e de outrem, de reconhecimento da igualdade e da diferença.

Por fim, essa reflexão sobre as identidades em geral e as identidades nacionais

especificamente debruça-se sobre a atualidade dos processos de globalização e seus impactos

sobre o conceito de nação e de identidade nacional. Tal contexto é em muito devedor da ideia

de que os nacionalismos estariam perto do seu fim, isto é, de que já não seriam a grande força

de transformação social que foram ao longo do século XIX e da primeira metade do século

XX, como destaca Hobsbawm (2012).

As identidades nacionais são ainda o foco do segundo capítulo, mas, desta vez, a

ênfase da análise recai especificamente sobre o papel da língua em sua construção. Segundo

Hobsbawm (2012), é nas décadas finais do século XIX que a língua adquire papel de destaque

na construção dos nacionalismos, configurando, assim, uma espécie de nacionalismo

linguístico. A máxima uma língua, uma nação conquista terreno e impulsiona a construção

das chamadas línguas nacionais, às quais é associado um ideário de pureza e superioridade em

relação às demais línguas, ou versões dela, faladas num dado território.

Mas, se a princípio parece ser a qualidade da língua como meio de comunicação e

expressão que se destaca, numa reflexão mais aprofundada sobre as identidades nacionais o

que chama a atenção é a forte carga simbólica que as línguas adquirem. Nesse sentido,

interessa analisar a ideia de língua como símbolo da nação e dos nacionalismos; de língua

como matéria-prima do indivíduo nacional, como edificadora de mundos, ou melhor, de

representações dele, conformando o espaço de ação da nação e do seu povo.

No espaço de interação entre língua e identidade nacional acima delineado, o conceito

de cultura também se faz presente. Aliás, muitas vezes parece difícil delimitar os campos de

ação de cada um desses conceitos – língua, identidade nacional e cultura – dada a forte

correlação estabelecida entre eles. A língua é identificada como elemente essencial da cultura

nacional, contribuindo para sua formação e constituindo-se no interior dessa cultura

simultaneamente. Cabe também à língua a importante função de transmissão dessa cultura

nacional – no bojo da qual se engendram e manifestam as identidades nacionais –, como se a

língua carregasse, isto é, transportasse cultura.

Nesse contexto, e levando-se em conta o projeto europeu, interessa refletir sobre essa

relação entre língua, identidade e cultura no âmbito da diversidade linguística, ou melhor, no

âmbito da ideologia ou política linguística adotada pela Europa: o multilinguismo. Na

Page 28: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Introdução

10

construção de uma identidade europeia, que papel a língua desempenha? Se as línguas

carregam cultura e se as identidades são dependentes desse contexto cultural, é possível

construir uma identidade singular para a Europa? É com essa discussão que se encerra o

segundo capítulo.

O terceiro capítulo é dedicado ao enquadramento teórico-metodológico propriamente

dito, que tem como ponto de partida a noção de discurso. Parte-se da proposta de Foucault

(1997), isto é, da ideia de discurso como modo de organização de significados, para explorar

o seu papel como elemento estruturante de e estruturado por relações sociais, transpassado por

relações de poder e disputas ideológicas.

De entre a amplitude de discursos possíveis, destacam-se aqueles produzidos e

veiculados pela mídia, isto é, os discursos midiáticos, uma vez que são estes os que

constituem o corpus desta pesquisa. Considerando-se as funções desempenhadas pela mídia

nas sociedades modernas e as relações sociais que ela estabelece e inspira, o discurso

midiático parece sobressair como elemento formador de opinião pública, conquistando, assim,

uma certa relevância.

Nesse contexto, as propostas de investigação apresentadas pela análise do discurso

ganham destaque e são elas que orientam esta investigação. A vertente da linguística

sistêmico-funcional é central nesta abordagem e serve como diretriz para o levantamento e

análise dos dados obtidos a partir de uma seleção de artigos de opinião publicados sobre o

acordo ortográfico nos jornais portugueses ao longo de 2012.

Por fim, explicita-se a posição assumida no estudo das identidades nacionais como

sendo a da construção discursiva. Afasta-se, assim, as visões essencialistas das identidades,

em geral produzidas em torno de certas representações recorrentes e resistentes à mudança, e

afirma-se o seu caráter de processo e construção, sempre dinâmico e em constante

transformação. Nesse contexto, as identidades são entendidas como tomadas de posição no

âmbito do discurso, em consonância com Tann (2010).

Com o quarto capítulo, tem início a segunda parte desta pesquisa, voltada

especificamente para a contextualização, a identificação, o tratamento e a análise de dados.

Parte-se da elaboração de uma breve retrospectiva histórica de Portugal, onde são

identificados alguns episódios potencialmente relevantes para a análise do papel da língua na

construção das identidades nacionais portuguesas, como a fixação das fronteiras do país e a

participação de Portugal na chamada era dos descobrimentos.

A seguir, é o contexto da língua que ganha relevância, mas, desta vez, a ênfase recai

sobre a atualidade. Neste século XXI, interessa observar que discursos se digladiam no debate

Page 29: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Introdução

11

sobre a língua portuguesa e sobre as suas perspectivas – ou não – de desenvolvimento,

valorização econômica, afirmação cultural entre tantas outras. Com essa análise, busca-se

refletir sobre o futuro da língua portuguesa como elemento de construção identitária das

diferentes nações que a adotam.

Em continuidade a essa reflexão, passa-se à apresentação, justificativa e descrição do

conjunto de dados que será analisado, isto é do corpus, que consiste em matérias de opinião

publicadas nos jornais portugueses, ao longo de 2012, sobre o acordo ortográfico, como já

referido anteriormente. Na análise desses textos, são considerados exclusivamente os

discursos de caráter identitário, alguns explícitos, outros não. Com essa afirmação, ficam

excluídos da análise muitos outros discursos sobre o acordo ortográfico, cuja natureza técnica,

jurídica ou política não apresentam, a priori, conotação identitária.

Por fim, encerra-se este capítulo com o delineamento das estratégias de análise, que

serão apresentadas de forma pormenorizada nos capítulos cinco e seis. Tais estratégias estão

divididas em duas partes principais. Na primeira delas, procura-se analisar certos elementos

que, com alguma frequência, surgem nos discursos dos nacionalismos. Na segunda, reflete-se

sobre as diferentes posições contruídas por e para Portugal na relação com outros países

citados nos textos.

No quinto capítulo, parte-se para a análise propriamente dita do corpus, que será

desenvolvida também no capítulo seguinte. Nesta primeira parte da análise, a perspectiva

adotada é a da identificação dos principais elementos – designados como marcadores

identitários – a serem mobilizados na construção de discursos em torno da ideia de identidade

nacional, em geral, e identidade nacional portuguesa em particular.

Pátria, nação, soberania, povo, cultura, identidade e matriz são os temas mobilizados

via tais marcadores, definidos em função de suas respectivas frequências ao longo do corpus

– verificada pela contagem de palavras do texto – e da sua relevância para os discursos e

teorias sobre os nacionalismos, elaboradas e desenvolvidas especialmente a partir do século

XIX, na Europa.

Por fim, analisa-se o modo como tais marcadores são utilizados, assim como os

discursos e representações de identidade nacional sinalizados por eles. Nesse processo,

procura-se realçar as relações estabelecidas entre os mesmos e o conceito de língua – aqui

entendido de forma abrangente para incluir a ideia de ortografia. O papel simbólico

desempenhado pela língua na construção das identidades nacionais é, assim, posto em

destaque.

Page 30: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Introdução

12

No sexto capítulo, a estratégia de análise desloca-se dos marcadores identitários para

se concentrar nas relações estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais ou

supracionais, com o intuito de se compreender melhor de que forma as identidades são

estabelecidas por via da construção da ideia de um ou vários outros. É dessa tensão entre um

eu e um outro que se pretende inferir o papel da língua como símbolo de uma certa identidade

nacional.

Com tal objetivo, primeiro busca-se identificar os discursos que relacionam Portugal a

outras entidades nacionais e supranacionais, para, a seguir, analisar tais relações em função

das simetrias e assimetrias que são estabelecidas. Nos casos das relações de simetria, isto é, de

equivalência de forças ou posições, estas são classificadas como positivas ou negativas,

dependendo do modo como são valoradas em seus respectivos contextos. Nos casos das

relações de assimetria, busca-se identificar que posição Portugal ocupa: se o pólo forte –

relação assimétrica em que Portugal assume posição de vantagem – ou o pólo fraco – relação

assimétrica em que Portugal ocupa posição de desvantagem.

Por fim, tais relações – simétricas e assimétricas – são analisadas em conjunto, de

forma constrastada, de modo a se construir um panorama alargado das diversas relações

estabelecidas entre Portugal – na perspectiva do eu – e diferentes entidades nacionais ou

supranacionais – na perspectiva do outro. Os principais resultados identificados a partir dessa

ação são reunidos num quadro-resumo.

No sétimo e último capítulo, busca-se relacionar os discursos teóricos desenvolvidos

nos capítulos 1 a 3 às análises de dados desenvolvidas nos capítulos 4 a 6, numa perspectiva

comparada. Considerando-se, portanto, a evolução dos conceitos de identidade e de

identidade nacional, pretende-se compreender melhor que papel a língua, como símbolo,

desempenha hoje na construção dessas identidades no contexto europeu.

Com essa finalidade, retomam-se os conceitos estudados no âmbito dos marcadores

identitários, que são agora novamente analisados à luz do conjunto de resultados obtidos e

dentro do enquadramento teórico-metodológico definido para esta pesquisa. Do mesmo modo,

os diferentes discursos de representação de Portugal, que afloram na perspectiva da

comparação entre o país e outras entidades nacionais e supranacionais, são mais uma vez

avaliados.

Por fim, a partir do conjunto de dados, conceitos, discursos e representações reunidos

e construídos ao longo desta pesquisa, busca-se refletir sobre o conceito de identidade

nacional hoje e o espaço ocupado pelas línguas, numa perspectiva simbólica, em sua

construção. No presente cenário, propõe-se o exercício do questionamento das forças e

Page 31: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Introdução

13

fraquezas que são atribuídas às identidades nacionais, assim como das oportunidades e

ameaças que se lhe apresentam.

Page 32: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 33: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

PARTE I

Page 34: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 35: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Capítulo 1

As identidades nacionais na Europa do século XXI

Identidade e modernidade

Identidade nacional

Identidade nacional e cultura

Identidade nacional e globalização

Page 36: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 37: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Identidade é uma palavra recorrente nos discursos atuais, tanto na academia, como nos

jornais, na televisão, no cinema, nos videojogos, na internet, nas conversas do dia-a-dia, nos

consultórios médicos. No entanto, tanta insistência em torno do seu uso – às vezes abusivo –

não torna mais fácil a sua definição; pelo contrário. Identidade parece ser mais uma noção do

que um conceito propriamente dito, muitas vezes confundindo-se com subjetividade,

personalidade, imagem, cultura, comunidade entre tantos outros termos. Ainda assim, apesar

desses contornos fluidos e difusos, surge como tema central nas discussões sobre a

modernidade – aqui entendida como os tempos atuais (ou, mais precisamente, como

modernidade tardia ou pós-modernidade).

Este capítulo se inicia precisamente com uma reflexão sobre a ideia de identidade na

modernidade. A partir dos estudos de Hall (2014), entre outros, procura-se explorar os papéis

desempenhados pelas identidades na caracterização da atualidade. Identidades múltiplas ou

identidades fragmentadas? Identidades em crise ou a era das identidades? Identidades

líquidas? Esses são alguns dos temas que orientam a discussão.

Parte-se do princípio de que o debate sobre as identidades é prolífico e pode assumir

contornos distintos a partir das perspectivas que sejam adotadas. Identidades de gênero, etária,

religiosa, étnica, profissional são apenas algumas delas, entre as quais destaca-se as

identidades nacionais, que serão aqui analisadas. Com essa finalidade, parte-se da elaboração

de uma breve retrospectiva histórica dos nacionalismos na Europa, explora-se o tema das

identidades nacionais e alguns dos seus possíveis significados.

Nesse contexto, importa ressaltar que, não raras vezes, as identidades nacionais se

confundem com o conceito de cultura ou identidade cultural. Nesses casos, identidade

nacional e identidade cultural passam a indicar uma mesma coisa, girando em torno da

construção de uma suposta cultura nacional como recurso de identificação individual e

coletiva. Essas relações entre cultura e identidade são analisadas na tentativa de se melhor

compreender os significados possíves das identidades nacionais hoje.

Page 38: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

20

Por fim, na “Europa da Nações”, engajada num processo de integração, em diferentes

níveis, entre nações soberanas e na construção de uma entidade supranacional, interessa

refletir sobre o que acontece com as identidades nacionais. Mais do que isso, na era da

globalização, pode-se ainda falar em identidades nacionais? Essas são algumas das questões

que se pretende discutir ao final deste capítulo.

O objetivo deste capítulo é, portanto, introduzir o tema das identidades e, mais

especificamente, das identidades nacionais, a partir de uma reflexão teórica e de uma breve

retrospectiva do desenvolvimento e transformação da ideia de identidade. Entre tantos

caminhos possíveis, procura-se, aqui, traçar um pequeno recorte que servirá como ponto de

partida para este estudo.

Identidade e Modernidade

O conceito de identidade é historicamente situado. Essa afirmação, que, a princípio,

pode parecer banal e desnecessária, marca uma posição que deve ser explicitada desde já: as

identidades não são inatas nem eternas; não são uma força da natureza ou um fato à espera de

constatação. Na maioria das vezes, quando se fala em identidade, seja na esfera pública, seja

na privada, em geral dá-se como certo o mútuo entendimento; mas convém frisar que tal se dá

menos em função de um conhecimento partilhado e indisputado do seu significado do que

pela operação de um mecanismo de naturalização e essencialização que incorpora as

identidades aos discursos da atualidade.

Para refletir sobre o tema, pode-se partir, por exemplo, acompanhando Hall (2014), da

Europa do iluminismo. O paradigma da racionalidade, que aflora no século das luzes, traz à

tona o sujeito racional, movimento este bem representado pela máxima de Descartes: “Penso,

logo existo”. Uma certa noção de individualidade ganha corpo e se propaga no espaço – em

especial, no espaço urbano, com o desenvolvimento das cidades. É nas cidades que o sujeito

se depara com uma infinidade de outros: rostos, vozes e movimentos que passam, muitas

vezes, sem retorno.

Se, no espaço rural, isto é, no campo, a vida avança entre cores, odores e vozes

conhecidas, o mesmo não acontece nas cidades. A consciência de si e da diferença, no

reconhecimento de um ou muitos outros, está no cerne dessa primeira noção de identidade,

tendo a razão ou a racionalidade como motor e justificativa. Como bem destaca Benjamim

Page 39: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

21

(2006: 40), citando Georg Simmel, o desenvolvimento dos meios de transporte coletivo

constitui um bom exemplo desse estranhamento no contato com o outro e do incômodo que

provoca:

“As relações recíprocas dos seres humanos nas grandes cidades… caracterizam-se por um

evidente predomínio da actividade do olhar sobre a do ouvido. As causas principais deste

estado de coisas são os meios de transporte colectivos. Antes do aparecimento dos autocarros,

dos comboios dos eléctricos no século XIX, as pessoas não conheciam a situação de se

encontrarem durante muitos minutos, ou mesmo horas, a olhar umas para as outras sem

dizerem uma palavra.” A nova situação não era, como reconhece Simmel, nada

tranquilizadora.

Como descreve Hall (2014: 17-22), o crescimento e a multiplicação das cidades,

associados à crescente complexidade da vida social e do nível de organização necessário para

mantê-la em funcionamento e sustentá-la, implicam o estabelecimento de novas fidelidades.

O indivíduo racional, pouco a pouco, cede seu lugar ao sujeito social, num deslocamento que

parece refletir as novas exigências e capacidades inerentes e necessárias à vida em grupos

alargados e heterogêneos, ou seja, em círculos sociais ampliados.

Os processos de socialização, a formação de e a interação entre grupos e as novas

relações de poder operam sobre aquele indíviduo racional, transformando-o em sujeito social,

que, por sua vez, desempenha novos papéis em sociedade. Esses novos papéis ou identidades

sociais fornecem, em alguma medida, estabilidade e segurança, proporcionando uma sensação

de conforto e de pacificação de conflitos, ao instilarem no sistema um certo grau de

previsibilidade e de expectativas pré-fixadas.

Do indivíduo racional ao sujeito social, chega-se ao século XX, marcado, ao menos na

perspectiva europeia, por duas grandes guerras em sua primeira metade e pelo despoletar de

movimentos de acirramento e multiplicação de contatos entre pessoas, grupos e entidades

(associações, instituições e organismos de natureza diversa), identificados como processos de

globalização, que provocariam um forte impacto no tecido social, promovendo profundas

transformações, especialmente nas últimas décadas do século passado e neste início de século

XXI.

A noção de identidade – em suas diferentes versões – vai tomando forma ao longo

dessas transformações, sem que seja possível (ou mesmo importante) fixar um ponto de

partida. Apenas como referência, vale a pena notar que no vocabulário de termos relevantes

em cultura e sociedade (Keywords: A Vocabulary of Culture and Society), de Raymond

Williams (1981), publicado em 1976, o verbete “identidade” sequer aparece. No entanto, em

Page 40: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

22

sua versão revista e ampliada (New Keywords: A Revised Vocabulary of Culture and Society),

editada por Tony Bennett, Lawrence Grossberg, Meaghan Morris, publicada em 2005, o

verbete “identidade”, elaborado por Kevin Robins (Bennett et al, 2005), não só é incluído

como aparece com algum destaque.

A perspectiva adotada por Robins, em tal verbete, é a da identidade como

identificação, isto é, como uma percepção de igualdade individual ou coletiva, que

supostamente se mantém inalterada ao longo do tempo. Essa ideia de permanência contida na

ideia de continuidade atuaria como uma espécie de estratégia de organização da complexidade

da vida moderna tanto no campo subjetivo (psicológico) como social. Os caráteres de unidade

e continuidade das identidades serviriam de contraponto ao pluralismo, à diversidade e à

transformação tão característicos desta modernidade tardia:

Identity is to do with the imagined sameness of a person or of a social group at all times and

circumstances; about a person or a group being, and being able to continue to be, itself and not

someone or something else. Identity may be regarded as a fiction, intended to put an orderly

pattern and narrative on the actual complexity and multitudinous nature of both psychological

and social worlds. The question of identity centers on the assertion of principles of unity, as

opposed to pluralism and diversity, and of continuity, as opposed to chance and transformation.

(Bennet et al, 2005).

Essa definição de identidade é apenas uma entre tantas possíveis, uma vez que os

estudos de identidade são objeto de disciplinas diversas como a sociologia, a psicologia, a

antropologia e os estudos culturais em meio a outras possibilidades. A abordagem adotada

nesta pesquisa, entretanto, é a dos estudos culturais, que não só reconhece os diferentes vieses

adotados por áreas de conhecimento distintas, como se vale deles para construir sua reflexão –

tarefa que pode ser desenvolvida a partir de estratégias diferentes e que, portanto, deve ser

clarificada. Com tal intutito, propõe-se aqui pensar-se em três categorias distintas,

identificadas como “multidisciplinar”, “interdisciplinar” e “transdisciplinar”.

Entende-se a multidisciplinaridade como a opção que se vale de diferentes áreas do

conhecimento na análise de um dado objeto ou na reflexão sobre um tema qualquer. Nessa

perspectiva, a divisão do conhecimento em áreas distintas e estanques é assumida à partida e

respeitada. O resultado obtido é uma espécie de soma das diferentes mais-valias oferecidas

por cada área. Ao longo desse processo e segundo seus críticos, faz-se presente o receio de

contaminação entre elas, associado ao risco de perda de rigor científico ou de coerência

teórico-metodológica.

Page 41: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

23

Entende-se a interdisciplinaridade como a opção que, embora também opere a partir

das múltiplas disciplinas, não reconhece a existência de limites claros e definidos entre elas.

Pelo contrário, reconhece o contato e a sobreposição, ou seja, a existência de um espaço

liminar, valorado positivamente e explorado nessa perspectiva. No entanto, segue

reconhecendo a divisão do conhecimento em áreas de saber com suas características e

especificidades.

Entende-se a transdisciplinaridade como a opção que rompe com a clássica divisão do

conhecimento em disciplinas independentes, construindo-se a partir de diferentes teorias e

ideias de origens diversas. Não se quer aqui pôr em causa a classificação e divisão do

conhecimento para fins didáticos – esse não é o tema em discussão. O que se reclama é uma

perspectiva de conjunto, que trabalha a partir de ideias e reflexões, recusando-se à

classificação tradicional ou mesmo à ideia da classificação como um fim em si mesma – a

classificação é aqui entendida como um recurso de raciocínio, estratégia de reflexão. Há um

potencial de transformação que é valorizado nessa abordagem, sem que isso signifique

abdicar do rigor científico ou da coerência teórico-metodológica – embora, muito

provavelmente, atribuindo-se a tais termos significados em alguma medida diferentes dos

tradicionais.

A perspectiva da transdisciplinaridade, no enquadramento dos estudos culturais, é

aquela adotada nesta pesquisa, o que não implica desconsideração pelos riscos inerentes à

transposição de um conceito de uma área para outra. Considera-se, no entanto, que um

conceito – ou uma ideia, um pensamento, uma reflexão, uma teoria – é indissociável do seu

contexto, isto é, do contexto no qual é produzido. Desconsiderar tal relação, impossibilita esse

exercício nos moldes propostos. Em outras palavras, o que se defende é que o conhecimento é

construído a partir do diálogo, da relação e do embate entre ideias. Partir de uma ideia

desenvolvida por outro/s, apropriar-se dela e transformá-la é atividade inerente à produção do

conhecimento e não uma ameaça à mesma.

Claro que não se está isento do risco de se construir ideias ou relações inconsistentes

ou incoerentes, que, nesse caso, logo serão constestadas, criticadas, descartadas ou

transformadas. Mas tal movimento é salutar para o desenvolvimento e a produção de

conhecimento. Também é preciso considerar que, muitas vezes, compreender mal significa

simplesmente discordar da corrente dominante, isto é, compreender diferentemente de outros

ou não conseguir convencer seus pares da validade e pertinência de uma perspectiva – isso se

dá em função de vários fatores, que, em geral, envolvem relações de poder, prestígio e

posição de quem fala ou de contra quem se fala.

Page 42: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

24

A discussão em torno dos conceitos de multi, inter e transdiciplinaridade, além de

controversa, não é, no entanto, objeto deste estudo. O que se pretende é simplesmente

explicitar a posição aqui adotada. Feito esse alerta e esclarecido tal ponto, retoma-se a

discussão sobre as identidades no contexto atual, caracterizado como pós-modernidade ou

modernidade tardia.

Em A Condição Pós-Moderna (1986), Lyotard reflete sobre os tempos atuais,

marcados pelo aumento da complexidade das relações sociais entre sujeitos e pela

fragmentação e multiplicação dos centros. É o momento que representa o suspiro final das

grandes narrativas que caracterizavam o período que lhe antecede, ou seja, o fim dos

discursos com pretensão de generalidade e universalidade que serviam de justificativa e de

estrutura para uma dada sociedade – não mais a busca por regras gerais, aplicáveis a toda

multiplicidade e complexidade de situações e casos, mas sim o caso específico e particular,

sempre contingente.

Para o autor, esse cenário constitui uma mudança, uma transformação suficientemente

relevante para marcar uma distinção entre a noção de modernidade e de pós-modernidade,

também chamada de modernidade tardia – expressões utilizadas para denominar o período

que se estende da segunda metade do século XX até a atualidade. No âmbito deste trabalho,

como regra geral, as referências à modernidade, contemporaneidade e modernidade tardia

remetem para o tempo presente.

É nesse contexto da modernidade tardia que Stuart Hall (2014: 22-28) afirma que as

identidades perdem seu centro, num processo marcado, principalmente, por cinco

movimentos: o pensamento marxista, o surgimento da psicanálise, a semiologia de Saussure,

as ordens do discurso de Foucault e as teorias feministas. Essa afirmação se assenta num

cenário anterior no qual as identidades teriam adquirido uma certa estabilidade ou fixidez ou,

ao menos, seriam assim percebidas.

Tanto o pensamento marxista, desde o século XIX, como os movimentos feministas, a

partir dos anos 60 do século XX, ao promoverem um novo tipo de identidade ampliada,

colaboram para esse processo de deslocamento do centro (ou descentramento) das

identidades. A promoção de uma identidade da classe trabalhadora assim como a de uma

identidade feminina promovem a ideia de identidade desterritorializada e descontínua, isto é,

estabelecem uma relação identidade/diferença que não depende da vinculação a um território

ou a uma progressão temporal contínua. Pressupõem uma identidade motivada pelo status

social e econômico – pela ideia/condição de trabalhador – ou pelo status social e biológico –

pela ideia/condição de mulher.

Page 43: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

25

As teorias psicanalíticas, a partir de Freud e depois com Lacan, promovem a noção de

subjetividade, ao mesmo tempo em que ressaltam o papel do inconsciente no

desenvolvimento humano e na construção do indivíduo. Os discursos em torno da supremacia

da razão e do predomínio do indivíduo racional na construção da identidade são fortemente

influenciados pela noção de inconsciente e da sua relevância na formação do ser humano.

A semiologia de Saussure, ao se debruçar sobre os modos de criação e troca de

significados, ou seja, sobre os processos de comunicação, põe em evidência a complexidade

da interação humana e sua dependência de um sistema de trocas simbólicas. A língua é

afirmada como um sistema social e simbólico, dotado de um repertório de significados –

construídos e reconstruídos ao longo do tempo-espaço – do qual o indivíduo se vale para

viver em sociedade.

A teoria sociológica de Foucault, que posiciona o discurso como elemento estruturante

da sociedade, põe em causa mais uma vez a autonomia do indivíduo racional, suspendendo a

invisibilidade, ou melhor, revelando as redes sociais (poder/saber) que limitam e delimitam a

possibilidade de ação e manifestação humanas. São as ordens do discurso que pré-determinam

o que pode ou não ser dito, de que modo, por quem, em que contexto, com qual valor, numa

espécie de condicionamento da autonomia e do poder de agência do indivíduo.

Em comum, todas elas anunciam o fim da supremacia do indivíduo racional como o

principal – ou mesmo, o único – ator social, dotado de autonomia, capaz de determinar seu

próprio destino, contrariando, de certo modo, a máxima de Descartes (“Penso, logo existo”).

Fazem-no ao trazer à luz uma série de outras perspectivas e forças que interagem e

condicionam em algum grau a vida em sociedade. O indivíduo torna-se sujeito numa dupla

perspectiva: do ser e do estar, ou seja, quer numa perspectiva estática e essencialista, quer

numa perspectiva dinâmica e performativa.

A ideia de fragmentação, recorrente nos discursos da modernidade tardia, parte do

paradigma de uma identidade una e indivisa que se perde ou se parte, ou seja, de identidades

que se fragmentam. Com o fim das grandes narrativas, a narrativa das identidades, em sua

completude, também se perde. A complexidade da vida moderna, a multiplicação das

variáveis que regulam as relações entre sujeitos, as difíceis e confusas equações de

interdependência entre fatores e o consequente aumento da especialização, associado ao

aumento da quantidade de informação e dados a circular, permitiriam no máximo vistas

parciais, fragmentos que poderiam ou não ser combinados.

Essas identidades fragmentadas instauram um estado de tensão permanente, quer em

função de um exercício incessante de combinação e conjugação das partes, nem sempre

Page 44: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

26

conseguido, mas muitas vezes desejado – numa busca pela estabilidade ou pelo equilíbrio –,

quer em função da ansiedade gerada pela tentativa de se reconstituir um todo indiviso – meta,

agora, impossível de ser alcançada.

Essas tensões transparecem, muitas vezes, nos discursos de afirmação de uma certa

“crise das identidades” que se teria instalado nas sociedades modernas. A perda de pontos de

referência seguros e estáveis, além da multiplicação das possibilidades de identificação,

provocam insegurança e ansiedade no sujeito social moderno, que vivencia essa situação

como crise.

Ora em paralelo, ora em concorrência com a ideia de fragmentação das identidades –

que pressupõe, como já afirmado, a existência anterior de um todo, de uma totalidade, que se

perde – está a noção de multiplicação: não mais identidades fragmentadas, mas sim

identidades múltiplas. Para dar conta da complexidade do sistema social é preciso se

multiplicar – não mais fragmentar o todo, mas sim multiplicá-lo em sua inteireza. Trata-se, na

verdade, de uma justificativa ou estratégia diferente para dar conta do mesmo resultado: o fim

de uma identidade una e indivisível e o desenvolvimento de novas e diversas identidades.

Essa perspectiva parece inverter a ideia de crise convertendo-a em oportunidade. A

modernidade tardia não é mais caracterizada pela “crise das identidades”, mas sim como a

“era das identidades” – em vez da fragmentação, a multiplicação. Para fazer face à

complexidade da modernidade, o indivíduo se vale de várias identidades distintas e

independentes: de gênero, etária, profissional, nacional, etc.

Nesse sentido, cada indivíduo teria um repertório de identidades à sua disposição, que

poderiam ser utilizadas sempre que necessário, segundo o critério de cada um, para melhor

atender as necessidades da vida em sociedade. Na era das identidades, o indivíduo exercitaria

seu poder de escolha e sua capacidade de compra, como se de um bom consumidor se

tratasse, beneficiando-se de um livre-mercado das identidades (Billig, 1995: 134). A

identidade de consumidor, desse modo, ganharia proeminência, especialmente numa

sociedade caracterizada como sociedade de consumo.

A ideia de livre-mercado das identidades acentua a noção de voluntarismo e a

perspectiva sócio-econômica associadas ao tema ao delinear um cenário em que as

identidades se transformam em mercadoria, passíveis de serem adquiridas ou descartadas em

função do poder aquisitivo do consumidor e da sua vontade. Essa contaminação da lógica de

mercado a tantas outras esferas da vida social é também uma característica dos discursos da

modernidade.

Page 45: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

27

A metáfora da liquidez, tão bem explorada por Bauman (2006), parece útil na

caracterização das identidades nesse contexto de modernidade tardia como “identidades

líquidas”. A matéria em estado sólido se transforma. O estado de liquidez acentua o caráter

fluido e de certo modo volátil das identidades, que estão em permanente estado de

transformação e acentua também sua flexibilidade, isto é, a sua capacidade de assumir formas

diferentes em função do seu entorno.

O que as perspectivas da crise e da era das identidades têm em comum, no entanto, é a

valorização do papel desempenhado por elas nas sociedades atuais. Essa afirmação é em parte

corroborada pelo volume de trabalhos produzidos em torno do tema e pela frequência dos

discursos que dela se valem. Apesar da grande variedade de posições e conceitos veiculados,

é possível refletir sobre o tema a partir de duas visões antagônicas que atravessam essas

discussões: as visões essencialistas e as visões não-essencialistas das identidades.

Considerando-se os dois extremos, pode-se caracterizar as visões essencialistas como

aquelas que partem da ideia de identidade como algo dado, algo que nasce com o indivíduo e

o acompanha – mesmo à sua revelia – até a morte. Faz dele o que ele é, regula seus atos,

determina seu comportamento, isto é, constitui sua essência. Sendo assim, não pode ser

modificada ou transformada. Essas perspectivas retiram poder e autonomia do indivíduo, que

passa a estar sujeito a essa identidade, e são compatíveis com os discursos de descoberta, isto

é, da ideia do indivíduo que parte em busca de si mesmo.

Do lado oposto, estão as visões não-essencialistas que negam o caráter inato das

identidades, afirmando seu potencial de criação e transformação. O indivíduo não nasce com

uma identidade, mas sim a constrói na relação com si mesmo e com os outros. As identidades

resultariam, assim, de um processo de construção. No âmbito dessas teorias, esses processos

de construção podem ser descritos e caracterizados de formas bastante distintas, mas, em

geral, em todas elas o indivíduo adquire algum poder de participação – maior ou menor, mais

ou menos ativo, mais ou menos condicionado. O indivíduo, desse modo, pode escapar à

situação de sujeição e passar à posição de sujeito.

A grande maioria das teorias e reflexões sobre as identidades em vigor hoje, no

entanto, parecem se situar entre um extremo e outro, combinando perspectivas essencialistas e

não-essencialistas. Partindo-se dessa premissa, pode-se delinear algumas das concepções mais

frequentes a partir de duas analogias: a do núcleo-duro e a da moda, que serão desenvolvidas

a seguir.

Uma dessas perspectivas de construção identitária pode ser pensada recorrendo-se a

uma analogia com o conceito de “núcleo-duro”, retirado do direito. O sistema jurídico-

Page 46: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

28

constitucional é construído a partir de um núcleo-duro, isto é, de um conjunto de regras e

valores fundamentais – estáveis e, praticamente, inalteráveis – aos quais outras normas

jurídicas são associadas e incorporadas, sendo consideradas válidas apenas se e à medida que

forem compatíveis com ele. Do mesmo modo, as identidades seriam constituídas a partir de

um núcleo-duro, de um centro irradiador de controlo, validade e sentido – perspectiva

essencialista – em torno do qual o indivíduo construiria sua identidade ao longo da vida –

perspectiva não-essencialista.

Na segunda perspectiva, recorrendo-se à moda como metáfora, as identidades seriam

como as roupas, um traje que se veste e se despe segundo o livre-arbítrio, a escolha, o humor

do indivíduo – para cada situação, um traje diferente. Nesse modelo, a noção de estilo permite

uma certa ligação entre um traje e outro, criando, em seu conjunto, alguma unidade. Desse

modo, seria possível reconhecer o indivíduo independentemente do traje utilizado ao se

reconhecer o seu estilo. Embora esse modelo se aproxime mais das visões não-essencialistas,

quando comparado com o anterior, ainda é compatível com um viés de essência, presente na

definição de cada traje a ser utilizado, ou seja, na definição de um repertório de identidades

pré-fabricadas à disposição do indivíduo.

A perspectiva adotada nesta pesquisa parte de uma visão não-essencialista das

identidades, em que estas são o resultado de um processo constante de construção. Tal

processo consiste na tomada de posição no âmbito do/a discurso/prática social. Com essa

afirmação, não se pretende fazer qualquer juízo sobre os elementos que condicionam tais

processos – sua validade, possibilidade, credibilidade – mas sim afirmar seu caráter relacional

e sua necessária fluidez, sua eterna incompletude e sua natureza de projeto sempre em

andamento.

A discussão desenvolvida até o momento girou em torno das identidades, consideradas

no presente contexto num alto grau de abstração. Agora, no entanto, o que interessa é fazer

um recorte mais específico de modo a focar naquela que, entre tantas e tão variadas

possibilidades, é o objeto principal desta reflexão: a identidade nacional ou, melhor, as

identidades nacionais.

Como alerta Kuper (1999: 235), as identidades, mesmo na perspectiva individual e

privada, são vividas no mundo, no diálogo com o/s outro/s – e, na perspectiva construtivista,

são aí construídas. No entanto, são vivenciadas individualmente, ou seja, numa perspectiva

subjetiva, o indivíduo descobre essa identidade em si mesmo, no seu interior. Essa identidade

consiste na identificação com o outro, com o/s grupo/s com o/s qual/is estabelece relação/ões

Page 47: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

29

de pertença, encontrando, assim seu lugar no mundo – seja uma nação, uma minoria étnica,

uma classe social ou um movimento político ou religioso, como exemplifica o autor.

Tais recursos à identificação com o outro e ao estabelecimento de relações de

pertença, como referido acima, conduzem ao “mito da nação”, que, como afirma Billig (1995:

137), assim como o mito da tribo ou o da religião, oferece algum conforto ao indivíduo ao

propiciar a possibilidade do resgate de uma certa integridade, de uma certa inteireza, isto é, de

uma noção do todo em meio à fragmentação e à insegurança inerentes à contemporaneidade.

Identidade nacional

Dois eventos são frequentemente indicados como sendo os precursores dos

nacionalismos na Europa: a declaração da independência americana, em 1776, e a revolução

francesa, em 1789. Mas é o século XIX aquele caracterizado como sendo o da “era das

nações”, ou seja, o período em que os nacionalismos – como movimento político, social e

econômico e como ideologia – ganham força e as nações são construídas.

Em sua primeira metade, a Europa passa por grandes transformações, com o início da

era industrial e a incidência (e persistência) de uma crise econômica que se espraia pelos

campos, promovendo insatisfação e conflitos que culminam com uma série de levantes

populares um pouco por toda a Europa, período identificado como sendo o da “primavera dos

povos” ou “primavera das nações” (1848).

O poder dos reis é posto em causa e sua origem divina é questionada pelas novas

teorias liberais, com destaque para os pensamentos de Rousseau e Adam Smith, que se

fundamentam na ideia de que o poder pertence ao povo e só em seu nome pode ser exercido.

Trata-se do período que representa o início do fim dos regimes monárquicos e a ascenção da

democracia.

Fichte, Korais, Rousseau, Herder e Mazzini, cada um na sua época e à sua maneira,

são identificados como os fundadores dos nacionalismos na Europa e, portanto, precursores

do seu estudo. No entanto, embora tais estudos constituam uma referência importante para

esta pesquisa, é importante ressaltar que seu foco são as identidades nacionais e os

nacionalismos como projeto político, meio de mobilização das massas, movimento liberal,

requisito democrático entre tantas outras possibilidades, sendo que, muitos desses temas, não

são aqui explorados. O que se busca identificar nessas teorias são elementos que contribuam

Page 48: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

30

para a reflexão sobre o papel simbólico das línguas na construção das identidades nacionais

num contexto bastante específico: a Europa do século XXI.

Todas as transformações acima referidas e as instabilidades que lhe são inerentes

contribuíram para o deflagrar das duas grandes guerras (1914-1918 e 1939-1945) que

marcaram a primeira metade do século XX na Europa e redefiniram suas fronteiras. Não por

acaso, esse período se confunde com aquele identificado por Hobsbawm (2012) como sendo o

do apogeu dos nacionalismos: de 1918 a 1950.

É no desdobramento desses conflitos, em 1951, que nasce a Comunidade Europeia do

Carvão e do Aço (CECA), que viria a ser o embrião do que é hoje a União Europeia. A CECA

é sucedida pela Comunidade Econômica Europeia (CEE), em 1967, e, finalmente, pela União

Europeia, em 1992. Em seu primeiro momento, trata-se de um acordo comercial estabelecido

entre França, Itália, Alemanha Ocidental, Bélgica, Holanda e Luxemburgo. Ao longo dos

anos seguintes, no entanto, passa por vários alargamentos e transformações em natureza,

funções e objetivos, chegando à sua configuração atual como entidade supranacional,

constituída por 28 países soberanos, em busca de integração nos mais variados níveis e

engajada na construção de uma identidade própria.

A ideia de nação como uma espécie de força da natureza, embora dormente, à espera

de irromper constitui o ponto de partida de muitos dos nacionalismos europeus. Nesse

contexto, a nação é concebida como o resultado de séculos de vivência em comum, partilhada

por indivíduos que se assemelham, que possuem uma mesma origem, que ocupam um dado

território, que partilham uma mesma história, uma língua, uma cultura. Todos esses elementos

se mobilizam e conjugam na formação de um Estado-Nação – uma nação politicamente

constituída e reconhecida –, dotado de autodeterminação, estrutura política e jurídica,

instituições públicas, etc.

Nesse sentido, a posição construída por Renan (1994) e defendida num importante

discurso, proferido em 1882, intitulado “Qu’est-ce qu’une nation?” (“O que é uma nação?”)

representa mudança significativa. Para o autor (ibidem:17), a nação seria um “princípio

espiritual”, uma entidade dotada de alma e capaz de inspirar sentimentos de solidariedade e

sacrifício. Nessa concepção de nação, o que faz de uma determinada comunidade nacional

uma nação propriamente dita é o sentimento de solidariedade que ela é capaz de inspirar e que

une todos aqueles que dela fazem parte. Tal sentimento seria suficientemente forte para

justificar sacrifícios – matar e morrer em nome da nação e daqueles que no passado, hoje e

também no futuro, estiveram, estão e estarão dispostos a fazer o mesmo.

Page 49: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

31

O principal critério de existência nacional seria o desejo de um povo de permanecer

unido, a vontade de ser uma nação. Nesse mesmo sentido, pertencer a uma nação seria uma

questão de escolha, e não de origem étnica, língua materna, local de nascimento ou de

qualquer outro critério objetivo. Para Renan, a pertença nacional consiste num compromisso

livremente assumido e reafirmado diariamente numa espécie de “plebiscito diário” (Renan,

1994).

O pensamento de Renan rompeu com os modelos clássicos dos nacionalismos em

vigor até àquele momento – que, em geral, se afirmavam a partir de elementos como etnia,

língua, território, povo, religião, história, antiguidade, etc. – e exerceu grande influência nos

estudos sobre o tema. Renan foi, nesse sentido, o precursor de uma série de desenvolvimentos

que levariam a uma guinada no campo teórico a partir dos anos 80 do século XX, como

exemplificam Anderson (2006) e Hobsbawm (2012).

Em geral, as novas teorias nacionalistas se afastam das visões essencialistas da ideia

de nação e assumem o viés da construção. Nesse sentido, as ideias de Gellner são um bom

indicativo da mudança. Para o autor, são os nacionalismos que engendram a nação, e não o

contrário. Gellner (1994: 63) contesta a visão do “despertar da nação”, que enfim toma

consciência de si, da sua história e das suas raízes – discurso corrente nos nacionalismos. Para

o autor, os nacionalismos consistem em novas formas de organização social, baseadas em

sistemas de educação pública organizados, controlados e instituídos pelo Estado.

Gellner contesta o mito da nação como uma força latente, mergulhada num sono

profundo e ininterrupto, apenas à espera de se manifestar ou, ainda, como uma ordem natural

e universal de classificar os homens em grupos distintos. Nesse mesmo sentido, o autor nega a

ideia de nação como destino inexorável, apenas postergado, sempre na expectativa de

emancipação. Para o autor, as nações são fabricadas a partir de um processo seletivo,

arbitrário e inconsciente que se vale de culturas pré-existentes e ora as apaga ora as

transforma radicalmente. Nesse processo, vários elementos são mobilizados, com destaque

para as línguas, as tradições e um sentido de autenticidade e pureza que seriam característicos

da alma da nação (1994: 63-64):

Nationalism sees itself as a natural and universal ordering of the political life of mankind, only

obscured by that long persistent and mysterious somnolence. (…) It´s nationalism which

engenders nations, and not the other way round. Admittedly, nationalism uses the pre-existing,

historically inherited proliferation of cultures or cultural wealth, though it uses them very

selectively, and it most often transforms them radically. Dead languages can be revived,

traditions invented, quite fictitious pristine purities restored.

Page 50: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

32

A nação seria, portanto, uma “comunidade inventada”, numa perspectiva que põe em

causa a existência de comunidades homogêneas, compostas por indivíduos que partilham uma

mesma origem, traços genéticos, língua, etc. e que parece não se sustentar face a uma análise

detalhada, um olhar perscrutador. Mas a inexistência – e mesmo a impossibilidade – dessa

homogeneidade não impede que uma comunidade seja percebida ou se perceba como tal.

Anderson parte das reflexões de Gellner e constrói sua própria teoria, que ainda hoje

exerce grande influência nos estudos dos nacionalismos. Critica o recurso à “invenção”,

presente no conceito de Gellner, por acreditar que essa expressão remete para o universo da

arbitrariedade, da fabricação de uma mentira, dificultando o seu entendimento. Anderson

(2006: 5-6) propõe, como alternativa, a definição de nação como comunidade “imaginada”,

ressaltando seu caráter “limitado e soberano”, como ilustrado abaixo:

In an anthropological spirit, then, I propose the following definition of the nation: it is an

imagined political community – and imagined as both inherently limited and sovereign.

It’s imagined because the members of even the smallest nation will never know most of their

fellow-members, meet them, or even hear of them, yet in the minds of each lives the image of

their communion.

É interessante observar que, embora Anderson defina os nacionalismos como artefatos

culturais, como referido na introdução deste estudo, o autor define nação como comunidade

política – e não cultural, religiosa ou étnica, por exemplo. Esse entendimento de nação e

nacionalismo parece condizer com o ideário do Estado-Nação, que remete para a ideia de

Estado como nação politicamente organizada, ao mesmo tempo em que acentua o papel da

cultura em sua construção.

A substituição de inventada por imaginada pretende ressaltar a dependência do

processo de construção da nação em relação a elementos pré-existentes. As nações não

surgem do nada, nem no vácuo, mas sim da mobilização (ativação/passivação,

afirmação/negação, apagamento/insersão, transformação/cristalização) de certos elementos

que lhe são anteriores ou não, ou seja, o processo de imaginar a nação não é arbitrário, pelo

contrário, há sempre condicionamentos.

Na comunidade imaginada como nação proposta por Anderson, a noção de soberania

que caracteriza os Estados é associada à ideia nação, acentuando o seu direito de se

autodeterminar. A definição de limites pode ser interpretada como o estabelecimento de

fronteiras, de limites territoriais, mas também de uma clara linha divisória a marcar a

diferença, definindo critérios de inclusão e exclusão. Em ambos os casos, a analogia com o

Page 51: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

33

modelo de Estado-Nação pode ser retomada – mesmo que apenas como destino, esperado,

desejado ou almejado.

Partilhando a ideia de nação de Anderson, Hobsbawm desenvolve sua análise dos

nacionalismos numa perspectiva histórica. Reconhecendo que o processo de imaginação da

nação é, como já alertavam Gellner e Anderson, em muito dependente do sistema educativo e

da apropriação seletiva de culturas pré-existentes, Hobsbawm debruça-se sobre o papel da

tradição, que, para ele, também é resultado de um processo de construção. Num célebre artigo

sobre a invenção da tradição, Hobsbawm (1994: 77-78) identifica três desenvolvimentos que

considera prioritários para a invenção das tradições: o desenvolvimento de um sistema

nacional de educação primária, a criação de cerimônias públicas e a produção em massa de

monumentos públicos.

Hobsbawm (1994: 76) chama a atenção para o paradoxo que envolve as nações que,

embora se afirmem e percebam como entidades naturais e seculares, muitas vezes à espera de

serem afirmadas e reconhecidas, mas sempre profundamente enraizadas e cujas origens se

perdem no tempo, são, pelo contrário, bastante atuais – são o resultado de um processo de

construção, isto é, são organizações características da modernidade.

Nesse mesmo sentido, Giddens (2002) afirma que os Estados-Nação são a mais

destacada forma social produzida pela modernidade. Assim, o Estado-Nação se distinguiria de

outras entidades sociopolíticas tradicionais pela sua forma particular de territorialidade,

vigilância e controlo, onde se destaca o monopólio do uso legítimo da força, como registrado

abaixo:

Modernity produces certain distinct social forms, of which the most prominent is the nation-

state. As a sociopolitical entity the nation-state contrasts in a fundamental way whith most

types of traditional order. It develops only as part of a wider nation-state system (which today

has become global in character), has very specific forms of territoriality and surveillance

capabilities, and monopolises effective control over the means of violence. (Giddens, 2002:

15).

O papel da tradição também é explorado por Giddens (2000: 60-61), que estabelece

uma relação com o conceito de “memória coletiva” proposto por Hallbwachs (1990). Segundo

este último, a memória não implica a preservação do passado, pois este é continuamente

revisto e reescrito em função do presente. A memória, portanto, seria essa reconstrução, em

parte individual, mas, sobretudo, social e coletiva desse passado.

A tradição, para Giddens, consiste num “meio de organização da memória colectiva”

(2000: 61), envolvendo a ideia de ritual e um caráter de obrigatoriedade, que o autor

Page 52: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

34

caracteriza como dotado de conteúdo moral e emocional. Giddens, portanto, também se afasta

de uma abordagem essencialista do tema, explorando outras dimensões da ideia de tradição.

Deslocando-se o foco do conceito de nação para o de povo, Deutsch (1994)

desenvolve sua perspectiva sobre os nacionalismos a partir da ideia de que a participação e a

pertença a um povo implicam a habilidade de comunicação mais eficiente e abrangente entre

seus indivíduos, em comparação com aqueles que não fazem parte do grupo. Funda-se na

possibilidade de comunicação, de compreensão mútua. A nação é uma comunidade de sentido

e a existência de uma língua comum é condição essencial para a sua existência.

Essa perspectiva, que ele identifica como sendo funcional, envolve a partilha de

recursos comunicativos, isto é, da capacidade e habilidade de utilização da informação, por

meio de uma série de ações que incluem a recolha, transmissão, combinação e uso de dados e

que depende, portanto, da partilha de códigos de comunicação comuns, ou seja, da existência

de uma cultura de comunicação partilhada, como afirma Deutsch (1994: 27):

What is proposed here, in short, is a functional definition of nationality. Membership in a

people essentially consists in wide complementarity of social communication. It consists in the

ability to communicate more effectively, and over a wider range of subjects, with members of

one large group than with outsiders. This overall result can be achieved by a variety of

funcionally equivalent arrangements.

A partir das ideias reunidas até aqui, pode-se vislumbrar a variedade e multiplicidade

de narrativas e abordagens que caracterizam as teorias sobre os nacionalismos. Nesse cenário,

destaca-se a iniciativa de Smith (2001: 19-20), que, ao refletir sobre os nacionalismos na

modernidade, identifica cinco perspectivas gerais que, juntas, representam a diversidade de

estudos e teorias sobre o nacionalismo em vigor: (i) as nações como comunidades políticas

territoriais; (ii) as nações como vínculo político primário e principal fonte de lealdade de seus

membros; (iii) as nações como os principais atores políticos na arena internacional; (iv) as

nações como construções dos seus cidadãos, em especial dos seus líderes e grupos de elite; e

(v) a nação como enquadramento, como veículo e como beneficiária do desenvolvimento

político e social.

A perspectiva das (i) nações como comunidades políticas territoriais acomoda as

teorias que refletem sobre a ideia de nação no âmbito dos Estados-Nação, ou seja, como

entidades soberanas, situadas num dado território, com fronteiras claras e definidas, com um

sistema jurídico e político que garanta os direitos-deveres dos seus cidadãos, com uma

comunidade coesa.

Page 53: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

35

A seguir, a ideia de (ii) nação como vínculo político primário e principal fonte de

lealdade entre os indivíduos nacionais engloba as teorias que exploram a perspectiva política

da nação/pátria, que demanda lealdade e sacrifício, em sobreposição às demais formas e

recursos de identificação. Os conceitos de dever cívico, cidadania, democracia e participação

são temas recorrentes.

A proposição seguinte consiste na identificação das (iii) nações como sendo os

principais atores políticos na arena internacional e remete, portanto, para as situações de

contato entre Estados, ou seja, para a organização das nações no cenário internacional e os

diferentes papéis que podem desempenhar. Nesse contexto, são recorrentes temas como a

multiplicação e o aumento da influência de entidades supranacionais, com seus reflexos sobre

a ideia de soberania nacional, o aumento da interdependência entre as nações e os efeitos da

globalização.

Uma outra perspectiva identificada pelo autor consiste na concepção das (iv) nações

como o resultado de processos de construção realizados por seus cidadãos, acenando, assim,

para as teorias construcionistas, que afirmam o caráter contingente da ideia de nação como

organização social da modernidade, cuja criação é em muito devedora dos interesses da

liderança e das elites nacionais. As relações de poder, as ideologias, o potencial de

identificação e mobilização em torno da ideia de nação são explorados, ao mesmo tempo em

que se destaca a relação de dependência entre o conceito de nação e outras instituições da

modernidade, seus valores e sua infraestrutura: “transporte, burocracia, língua, educação,

mídia, partidos políticos, etc.” (Smith, 2001: 20).

Por fim, o autor conclui apresentando a definição de (v) nação como o

enquadramento, como o veículo e como a beneficiária do desenvolvimento político e social,

afirmando a nação como “único instrumento para garantir as necessidades de todos os

cidadãos na produção e distribuição de recursos e único meio de assegurar o desenvolvimento

sustentável” (Smith, 2001: 20). Isso porque a ideia de nação seria a única dotada de força

suficiente para sensibilizar indivíduos e mobilizar as massas em termos de “compromisso,

dedicação e auto-sacrifício” (ibidem) inerentes à modernização.

Independentemente da formulação que se adote, no entanto, pode-se afirmar que a

ideia de nação e os nacionalismos ainda desempenham papel relevante nas sociedades

modernas, inspirando e despertando alianças e rivalidades, mobilizando pessoas, consistindo

em ou configurando elementos de identificação e solidariedade, num mundo em constante

transformação que parece, cada vez mais, exigir atores e performances globais.

Page 54: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

36

Smith (2001: 1) é taxativo ao afirmar que, na perspectiva das ciências sociais, nações e

nacionalismos são entidades da modernidade, cuja construção se inicia na segunda metade do

século XVIII e que têm seu apogeu na primeira metade do século XX, mas que, a partir daí,

vêm perdendo sua força e importância muito em função da transcendência das fronteiras

nacionais, característica da atual era global.

Essa é também a visão de Hobsbawm, que, secundado por Anderson, defende a ideia

de que os nacionalismos teriam chegado ao fim, no sentido de que não mais seriam a principal

força motriz das transformações sociais experimentadas na atualidade, ao contrário do que

fora durante os dois últimos séculos. Em resumo, a tese do fim dos nacionalismos, mais do

que o fim propriamente dito, assinala uma mudança, quer do conceito de nação, quer dos

movimentos que o informam.

A questão que se põe, portanto, é de se saber se as mudanças acima referidas são

suficientemente drásticas para que os conceitos de nação e nacionalismo, como entendidos até

agora, deixem de dar conta desses novos significados e tenham de ser substituídos; ou, por

outro lado, se tais conceitos seguem operacionais e úteis e, portanto, tais mudanças implicam,

simplesmente, um alargamento dos significados anteriores e novas perspectivas de análise,

num movimento corrente e recorrente em qualquer estudo que se desenvolva ao longo do

tempo-espaço.

De modo geral, não parece haver muitas dúvidas de que o papel dos nacionalismos

tenha mudado ou, pelo menos, de que esteja em fase de transformação, em comparação com o

período do seu apogeu. A questão se torna mais controversa, no entanto, quando se trata de

analisar a natureza de tais mudanças e, especialmente, de se saber se estas implicaram a perda

de relevância dos nacionalismos para as sociedades europeias modernas, como afirma

Hobsbawm (2012), tema que será retomado mais à frente.

Na segunda metade do século XX, o foco de tensão se desloca da Europa para os EUA

e a URSS, no contexto da chamada Guerra Fria. A Europa é dividida pela “cortina de ferro”,

que separa a Europa ocidental da Europa de Leste. A Alemanha, partida em dois desde o final

da 2ª Guerra, só voltaria a se reunificar em 1990, após a queda do muro de Berlim, em 1989, e

um pouco antes da dissolução da URSS, em 1991.

Deparamo-nos, em 2015, na Europa, com um cenário marcado por tensões em que os

discursos nacionalistas ocupam posição de destaque. Apenas como exemplo: na Espanha,

tensões entre catalães, bascos e “espanhois”, sem mencionar os galegos; no Reino Unido, o

referendo pela independência da Escócia, sem esquecer eventuais conflitos com a Irlanda; na

Bélgica, a crise política de 2010-2011 que deixou o país sem governo por 541 dias.

Page 55: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

37

O cenário atual também é marcado por uma crise econômica, que tem abalado a

Europa nestes últimos anos, e pela questão das migrações, que neste momento adquire

contornos dramáticos. Em tal contexto, multiplicam-se os discursos nacionalistas, agora não

mais de afirmação nacional, exclusivamente, mas sim de discriminação ou mesmo de

xenofobia, adotados, em geral, mas não só, por partidos de extrema-direita, como a Frente

Nacional, de Marine Le Pen, na França, e o UKIP, de Nigel Farage, no Reino Unido.

Hobsbawm já alertava para esse fenômeno, que, embora possa emergir em associação

aos nacionalismos, não se confunde com eles. Como afirma o autor, a xenofobia, longe de ser

um programa político ou uma ideologia, é simplesmente uma expressão de angústia ou

mesmo de fúria que, segundo Hobsbawm, raramente seduz mesmo os mais ardentes

nacionalistas:

However, xenophobia, readily shading into racism, a more general phenomenon in Europe and

North America in the 1990s even than it was in the days of fascism, provides even less of an

historic programme than Mazzinian nationalism. Indeed, it rarely even pretends to be more

than a cry of anguish or fury. Moreover, even the romantic sympathisers with the sovereign

independence of selected small peoples are rarely found insisting on the Janus-like

characteristics of M. Le Pen’s National Front. It has one face, and most of us would prefer it to

have none. (Hobsbawm, 2012: 170).

Ainda assim, a combinação entre xenofobia e nacionalismos, por mais equivocada que

seja, parece ter, na atualidade, um potencial explosivo e não deixa de ser um sintoma de que,

em algum momento, a construção de uma relação saudável entre um suposto eu e um certo

outro falhou. A xenofobia, como uma visão deturpada dos nacionalismos, em geral alimenta

posições discriminatórias que não raro evoluem para a violência.

Identidade Nacional e Cultura

Assim como identidade, cultura é também um conceito fugidio que, à primeira vista,

parece de fácil apreensão, mas que, numa tentativa de análise mais cuidada, escorrega pelas

mãos. Em alguns casos, o conceito de cultura é definido de forma tão abrangente que passa a

significar quase tudo, pondo em risco sua funcionalidade conceitual. Em outros, sua definição

é tão cerrada que impossibilita uma reflexão minimamente coerente sobre seu uso e

operacionalidade.

Page 56: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

38

Toma-se como ponto de partida a definição de cultura, segundo o preâmbulo da

Declaração Universal da Diversidade Cultural da UNESCO, de 2012, como sendo o

“conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que

caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os

modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças”.

Nessa definição, a cultura é apresentada como um marcador da diferença – “traços

distintivos” – e definida de forma bastante abstrata – modos de vida, valores, tradições,

crenças. Uma vez que a cultura se baseia na distinção, ou seja, na diferença, e partindo-se do

princípio de que identidade e diferença são ideias correlatas, depreende-se da citação acima a

relevância do conceito de cultura para os estudos de identidade. Corrobora essa afirmação, a

constatação presente na declaração da UNESCO (2012: preâmbulo) de que a cultura “se

encontra no centro dos debates contemporâneos sobre a identidade”.

Ainda sobre o papel da diferença na construção das identidades, destaca-se a posição

de Boaventura de Sousa Santos (2001: 46), que não só realça a participação dos processos de

diferenciação como os identifica como fonte de desiguadade e manifestação de relações

assimétricas de poder. Nesse sentido, as identidades seriam, primordialmente, formas de

dominação, como abaixo referido:

As identidades são o produto de jogos de espelhos entre entidades que, por razões

contingentes, definem as relações entre si como relações de diferença e atribuem relevância a

tais relações. As identidades são sempre relacionais mas raramente são recíprocas. A relação de

diferenciação é uma relação de desigualdade que se oculta na pretensa incomensurabilidade das

diferenças. Quem tem poder para declarar a diferença tem poder para a declarar superior às

outras diferenças em que se espelha. A identidade é originariamente um modo de dominação

assente num modo de produção de poder que designo por diferenciação desigual.

A relação de simbiose entre identidade e diferença é também explorada na perspectiva

dos estudos de cultura. Nesse contexto, vale destacar a teoria desenvolvida por Stuart Hall

(Silva, 2000), centrada no binômio identidade/diferença, que melhor se traduz no estudo das

identidades como processo, sempre em andamento, de identificação, como mencionado

abaixo:

Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveriamos falar de

identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não da plenitude

da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é

‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser

vistos pelos outros.

Page 57: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

39

Para o autor, num entendimento alargado da noção de cultura como modo de vida,

valores, crenças, história, memória, costumes, tradições, partilhar uma certa identidade

nacional implicaria partilhar uma certa identidade cultural – o que significa dizer que, em

alguma medida, os conceitos de identidade e cultura estariam, portanto, sobrepostos,

partilhando um certo conteúdo e mesmo algumas características.

Nesse contexto de aproximação entre cultura e identidade, parece importante destacar

que, assim como as identidades nacionais, as identidades culturais também assumem, muitas

vezes, contornos essencialistas. Contestando tais visões, e, especialmente os discursos que

associam cultura à ideia de raça ou etnia, Kuper (1999: 227) afirma que a cultura não é uma

questão de raça, ou seja, que não está inscrita geneticamente nos seres humanos, mas sim que

resulta de um processo de aprendizagem.

Num esforço de afastamento do viés essencialista, entende-se que a ideia de cultura

implica aprendizado e transmissão, embora tais processos nem sempre sejam desenvolvidos

de forma consciente. Em comunidades estáveis e isoladas, a cultura passa despercebida, torna-

se invisível. Mas, num cenário de mobilidade e de comunicação descontextualizada, a cultura

na qual o indivíduo se desenvolve e aprende a comunicar torna-se central para a construção de

um sentido de identidade (Gellner, 1994: 69). É no contexto de contato entre culturas

diferentes, muitas vezes promovido pelo deslocamento ou afastamento do contexto cultural

em que vive o indivíduo, que este se apercebe da sua cultura.

Anderson (2006: 267) também contribui para o debate da relação entre identidade e

cultura ao afirmar que as nações, assim como as pessoas, valem-se da construção de

narrativas para dar sentido às suas identidades. A percepção de continuidade no tempo e no

espaço, o resgate da memória e, sua contrapartida, o abandono ao esquecimento, são

entretecidos para dar corpo a essa estratégia discursiva.

Em sintonia com tal afirmação, a ideia de nação como estratégia narrativa é

desenvolvida por Bhabha, que explora especialmente um espaço de indefinição e

ambivalência onde categorias como “povo”, “minorias” e “diferença cultural” se confundem e

sobrepõem em permanente deslocamento e constante recepção. A noção de limiar é explorada

pelo autor como o espaço onde fronteiras se perdem ou em que nunca estão claramente

fixadas. Bhabha entende nação como sendo a medida da liminaridade da modernidade cultural

(1994: 292).

Nesse sentido, na modernidade tardia, as nações já não são necessariamente o espaço

de homogeneização cultural, onde diferenças são apagadas e suprimidas, mas sim arena onde

diferentes narrativas disputam primazia e afirmam o caráter ambivalente da nação. Essas

Page 58: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

40

contranarrativas põem em causa as visões essencialistas, características das comunidades

imaginadas como nação, ao evocar e apagar contiuamente suas fronteiras totalitárias (Bhabha,

1994: 300).

Em resumo, o que se depreende da posição do autor é a definição de nação como

estratégia discursiva de identificação cultural e exercício de poder, que se vale de um duplo

movimento narrativo (1994) para constituir a categoria de povo ora como sujeito, ora como

objeto, num movimento contínuo de oscilação. O povo é objeto de uma pedagogia

nacionalista que o institui e constitui como povo, ao mesmo tempo em que é sujeito nos

processos de significação que afirmam ou reafirmam a existência atemporal e contínua desse

mesmo povo, que sempre existiu e sempre existirá. Segundo Bhabha (1994: 296-297), é nessa

partição entre a temporalidade acumulativa e contínua do pedagógico (identidade narrativa) e

a estratégia recursiva e repetitiva do performativo (identidade performativa) que a nação

como narração é produzida.

Afirmar a relevância do conceito de cultura para a construção das identidades

nacionais ou que os conceitos de identidade nacional e cultural são, muitas vezes,

sobrepostos, não significa negar as especificidades de um e de outro. Nesse contexto, a

reflexão de Van Dijk (2005: 79-80) sobre os conceitos de conhecimento nacional e

conhecimento cultural, no contexto da produção de discursos, parece contribuir para realçar

algumas diferenças.

Segundo o autor, o conhecimento nacional é aquele partilhado por todos os cidadãos

de um dado país e adquirido via sistema escolar e meios de comunicação de massas. É sempre

pressuposto, seja nos discursos públicos, seja nas conversas entre membros dessa comunidade

nacional. Já o conhecimento cultural é aquele partilhado pelos membros de uma mesma

cultura e construído a partir da identificação com uma dada língua, religião, história, hábitos,

origem ou aparência (2005). É adquirido primeiro na família e depois na escola, na mídia, na

interação com amigos.

Para o autor, a principal diferança entre eles é que o conhecimento cultural é o pano de

fundo contra o qual operam todos os outros conhecimentos, entre eles, o nacional. Outra

distinção importante reside no fato de o conhecimento cultural ser mais genérico e abstrato,

enquanto o nacional girar em torno de eventos reais/concretos num dado momento histórico e

social.

Page 59: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

41

Identidade Nacional e Globalização

Os processos de globalização têm sido apontados como causa de inúmeras mudanças

não só na esfera internacional, como também nas esferas nacional e local. Com a

globalização, transforma-se, entre outras, a relação espaço-tempo – a comunicação global,

desterritorializada e instantânea passa a ser possível. O outro não precisa mais ser imaginado,

deixa de ser um outro distante e inerte, muitas vezes objetificado, para se tornar um outro

presente. Nesse cenário, o contato com o outro passa a ser rotineiro e a possibilidade de

interação e interpelação, ou seja, de “interrogação mútua”, na expressão de Giddens (2000:

93), concretiza-se.

O contato entre diferentes modos de vida e culturas, porém, configura sempre uma

perturbação – benéfica ou não –, ou seja, gera algum tipo de instabilidade e, muitas vezes,

choques. Nesse contexto, o recurso às identidades, entre elas as nacionais, ou o apego a certas

representações e discursos relacionados a elas parecem constituir alguma garantia de

estabilidade e segurança, mesmo que apenas aparente.

No momento atual, de globalização e mobilidade, de migrações em massa, de

porosidade de fronteiras, os limites físicos de um Estado-Nação deixam de ser suficientes –

ou, pelo menos, perdem força – para definir uma comunidade nacional, que agora se alarga e

pulveriza (há mais armênios vivendo na diáspora do que na Armênia, por exemplo). Talvez as

fronteiras de uma cultura possam hoje desempenhar o papel das antigas fronteiras territoriais,

ou talvez as línguas nacionais possam desempenhar esse papel – partindo-se do pressuposto

de que seria possível defini-las com exatidão e clareza. Mas também é possível que a própria

noção de fronteira tenha perdido sua validade e operacionalidade, pelo menos em parte, no

contexto atual.

Segundo Billig (1995: 132-133), a globalização, ao diminuir os espaços e as diferenças

entre as nações, faz com que as identidades nacionais também percam força ou relevância em

detrimento de outras estratégias de identificação. O autor destaca o papel crescente das

identidades construídas em torno da ideia de “estilos de vida”, associadas predominantemente

a padrões de consumo.

Também Hall alerta para uma transformação das identidades no contexto atual, muitas

vezes definido como sendo uma espécie de campo de batalhas entre forças globais e locais

(Hall, 2014: 44 e 45). Essas transformações são, em geral, associadas a um aumento da oferta

de identidades à disposição do indivíduo, numa clara comparação com o setor econômico, e à

Page 60: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

42

supervalorização do consumo e do papel do consumidor – muitas vezes identificado como

sendo o novo cidadão moderno – nesta modernidade tardia.

Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribiu para esse

efeito de “supermercado cultural”. No interior do discurso do consumismo global, as

diferenças e as distinições culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a

uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global, em termos das quais todas as

tradições específicas e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas. Esse fenômeno é

conhecido como “homogeneidade cultural”. (Hall, 2014: 43).

Segundo o autor, as sociedades atuais vivem marcadas por um movimento de

oscilação entre a valorização da “tradição” e da “tradução”, onde a tradição sinaliza um apego

às formas essencialistas de cultura e identidade e a tradução remete para o cenário mais

dinâmico de contato, diversidade e transformação. Nos casos em que a balança pende para a

tradição verificam-se, por exemplo, o renascimento dos velhos nacionalismos, como na

Europa Oriental, e os fundamentalismos, nas suas mais variadas formas (Hall, 2014: 52 a 54).

A perda de soberania dos Estados-Nação, que agora precisam se organizar em

instituições supranacionais para exercer poder ou a ele resistir (seja o poder político,

econômico, social, etc.), faz com que as identidades nacionais percam sua força como

principal e mais elementar reduto de identificação coletiva, capaz de sobrepujar tantas outras

identidades.

Para Billig (1995), nesta modernidade tardia, o território nacional perde sua

capacidade de inspirar identidades e vínculos, cedendo lugar a novas formas de identificação,

inspiradas, desta vez, não mais nas línguas nacionais, mas sim na linguagem eletrônica dos

computadores e meios digitais. O espaço delimitado dos Estados-Nação é subtituído pelo

espaço alargado que surge com as novas tecnologias, dando lugar a novas formas de ser, estar,

pensar e sentir neste mundo que se globaliza.

Thus, the thesis of postmodernism proclaims a vision of a future world. In this world, no longer

is the national territory the place from which identities, attachments and patterns of life spring.

The order of the national world gives way to a new mediaevalism. The binary language of

electronics is like a new latin, binding together the knowledgeable across political kingdoms.

In place of the bordered, national state, a multiplicity of terrae are emerging. And those, who

see their identities in terms of gender or sexual orientation, are, like monks before them, bound

by no earthly terra, restricted by no mere sense of place. Thus, a new sensibility a new

psychology emerges in global times. (Billig, 1995:134).

Como parte dos processos de globalização, tem-se o estabelecimento, criação ou

valorização de entidades supranacionais, mas também – e, em parte, como reação a eles – o

Page 61: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

43

fortalecimento de entidades locais, num duplo movimento de globalização e glocalização. O

termo glocalização (Robertson, 1995: 26) refere-se aos movimentos de resistência às forças

globais e seu potencial de massificação, isto é, de imposição de um padrão único,

supostamente global e homogêneo, destruindo, assim, as especificidades locais e pondo em

risco a diversidade cultural.

A emersão de entidades supranacionais e locais no cenário europeu, no entanto, não

implica necessariamente a dissolução das entidades nacionais ou mesmo uma mudança

drástica do seu papel – implica, sim, um novo equilíbrio de forças, com a entrada de novos

atores sociais. Na discussão atual sobre nações e nacionalismos, o que parece estar em causa é

a definição desses papéis – a natureza da mudança e sua intensidade, assim como a definição

desse novo jogo de forças, com a identificação de pontos fortes e fracos, de estabilidade e

instabilidade, de equilíbrio e desequilíbrio.

No que diz respeito às identidades nacionais, porém, as questões que surgem parecem

ser outras. As identidades nacionais ainda são relevantes, isto é, o recurso à ideia de nação na

construção da identidade (coletiva do indivíduo) ainda é potencialmente interessante, ainda

possui força suficiente para sobrepujar outras formas de identificação, ainda é capaz de

mobilizar pessoas e comunidades em torno de uma causa?

Não parece haver dúvidas de que as identidades nacionais seguem em uso, quer no

âmbito internacional, quer no local. As entidades supracionais revelam grande preocupação e

cuidado em seus discursos e políticas para não ferir sucetibilidades nacionais. No âmbito

dessas mesmas entidades, em geral, as discussões e deliberações ainda são conduzidas entre

nações. Do mesmo modo, mas no sentido inverso, as entidades locais também se constroem

ainda muito em função dos contextos nacionais nos quais se inserem.

Mas, ainda que se reconheça a persistência da ideia de nação, a arena de debates

parece ter-se alargado. As identidades nacionais concorrem agora não só com tantas outras

identidades de natureza diversa, mas também com outros tipos de identidades

territorializadas: identidades supracionais (o cidadão do mundo, o cidadão global),

identidades regionais (o europeu, o africano), identidades locais (o minhoto, o lisboeta).

Corroboram a afirmação acima os discursos de valorização da diversidade, que,

aliados à perspectiva da construção das identidades, ampliam o campo de oportunidades de

identificação. Nesse cenário, o indivíduo ganha liberdade e poder para assumir diferentes

posições e exercer o poder inerente a elas – com ou sem sucesso –, mas, ao mesmo tempo,

corre o risco da perda de segurança e estabilidade.

Page 62: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

44

Claro que não se pode esquecer que as identidades nacionais, assim como todas as

outras, podem ter valor negativo ou positivo e podem ser fator de inclusão ou exclusão,

dependendo do contexto. Também é preciso destacar que tais identidades – e certas

representações delas – não são sempre assumidas voluntariamente pelo indivíduo, e sim,

muitas vezes, atribuídas a ele como uma espécie de rótulo que determina seu campo de ação e

movimentação.

Nos cenários em que os indivíduos podem assumir diferentes posições e entrar

conscientemente no jogo das identidades, há sempre a possibilidade de se apropriar e se tirar

proveito delas. Mas, ao contrário, quando ficam presos a determinadas representações,

tornam-se reféns dessas identidades – exemplo de tais situações são os movimentos

fundamentalistas em suas diversas naturezas política, religiosa, econômica, etc.

É nesse contexto que ganham corpo as teorias que apregoam o fim dos nacionalismos.

Pressionados pela globalização – aqui traduzida no desenvolvimento das tecnologias de

comunicação; no aumento da mobilidade de bens, pessoas e dados; e na crescente

interdependência entre Estados – e pela transformação da organização mundial indissociável

dela, os nacionalismos estariam perdendo força.

Mas os acontecimentos desse final de século XX parecem contrariar essa tese. Apenas

como exemplo, vale lembrar a guerra, que novamente varreu os bálcãs entre 1991 e 1995,

dessa vez protagonizada especialmente pela Sérvia, Croácia e Bósnia-Herzegovina, na esteira

da dissolução da Iugoslávia – conflito que, mais uma vez, trouxe à tona as velhas ideologias

nacionalistas.

Contrariando a posição acima esboçada, no entanto, e a favor da tese do fim dos

nacionalismos, defendida por ele, Hobsbawm (2012: 163) afirma que os desmantelamentos da

Iugoslávia e da URSS, no final do século XX, assim como os conflitos deles decorrentes, são

ainda efeito do embate de forças verificado no início do século, e não consequência dos

nacionalismos atuais.

Hoje, em vez de impérios que se fragmentam em nações, são as grandes nações que se

fragmentam – ou ameaçam se fragmentar – em pequenas e médias nações na perspectiva de

um suposto nacionalismo etnolinguístico (Hobsbawm, 2012). Em vez de um embate de

forças, tem-se um jogo de pressões. O foco se desloca da força em si mesma – que incide

sobre uma dada superfície – para o seu efeito – a pressão que exerce sobre essa mesma

superfície, uma vez que tais forças já não são tão claras e identificáveis, mas sim invisíveis e

difusas.

Page 63: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

45

Em suma, muitas das disputas alimentadas e fomentadas pelos nacionalismo de hoje

não mais se valem do exercício de poder militar – embora este ainda persista (como, por

exemplo, no caso Ucrânia versus Rússia) – mas sim de um plebiscito, de uma campanha de

valorização de uma certa língua, de uma manifestação a favor de uma minoria ou contra a

discriminação de um grupo, do preconceito contra os imigrantes, dos discursos xenófobos de

uma suposta afirmação nacional de certos partidos políticos.

Billig (1995), ao refletir sobre o tema, chama a atenção para o que ele denomina de

“nacionalismo banal”. Não mais o “morrer pela pátria”, o sacrifício último do cidadão-

patriota (ainda muito valorizado, especialmente nas séries de TV americanas em torno das

figuras dos marines e rangers, por exemplo), mas sim de outras formas de afirmação e

identificação, muitas vezes superficiais, rotineiras, enfim, banais – a bandeira pendurada nas

fachadas dos prédios ou agitadas nas ruas em dias de jogos, ou utilizada como pingente num

colar ou pulseira ou como estampa numa peça de vestuário; a sensação de sucesso partilhada

numa disputa internacional sobre um assunto qualquer (música, gastronomia, comércio,

turismo, etc.); a identificação com uma celebridade nacional que faz sucesso mundo a fora.

De modo geral, parece razoável afirmar que a imagem da nação – suas representações

e discursos – ainda se faz bastante presente, refletindo e influenciando a construção da

identidade de cada um e de todos. As identidades nacionais estão estampadas nos documentos

de identificação individual e são critério de acesso a parte significativa dos direitos e deveres

do indivíduo; estão nas vitrines das lojas, nas telas de cinema, nos concursos de música, na

séries de TV, nas redes sociais; estão nos jornais e noticiários, no centro de debates sobre

igualdades e desigualdades sociais, direitos humanos, conflitos militares e crises

humanitárias, sociais, econômicas, políticas, militares, de saúde pública. As identidades

nacionais constituem, ainda, um importante critério de inclusão/exclusão no mundo

contemporâneo.

Síntese

Neste capítulo, partiu-se do conceito de identidade, em sentido amplo, para então se

analisar as identidades nacionais. Fez-se um recorte teórico – um entre tantos possíveis –

destacando-se o papel das identidades no contexto da modernidade tardia, no qual elas

parecem assumir maior relevância e complexidade. As noções de multiplicação, fragmentação

Page 64: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

As identidades nacionais na Europa do século XXI

46

e crise das identidades foram algumas das perspectivas exploradas. Essa reflexão serviu de

fundo para a introdução das identidades nacionais na Europa, apresentadas a partir de uma

breve retrospectiva histórica onde o século XIX e a primeira metade do século XX adquirem

maior relevância. A seguir, explorou-se a relação entre identidade nacional e cultura na

tentativa de melhor compreender os vínculos e interdependências que ligam tais conceitos,

especialmente no contexto europeu atual, marcado pelo projeto de união europeia. Trazendo-

se tal discussão para este início de século XXI, procurou-se desenvolver o tema em

contraponto com os processos de globalização, refletindo-se sobre alguns dos diferentes

significados que assumem e sobre o impacto que exercem sobre a ideia de nação e,

consequentemente, de identidade nacional.

Page 65: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Capítulo 2

Língua e identidade nacional

Língua e identidade nacional: perspectiva histórica

Língua e identidade nacional: perspectiva simbólica

Língua, cultura e identidade nacional

Língua, multilinguismo e identidade nacional

Page 66: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 67: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

De entre os diferentes elementos que são mobilizados na construção das identidades

nacionais está a língua, cuja relevância para esse processo pode ser inferida quer pela

frequência das referências, quer pela intensidade dos discursos de associação entre língua e a

ideia de nação e nacionalismo. O fato de a língua consistir num dos poucos critérios que

podem ser inferidos objetivamente (Hobsbawm, 2012) parece contribuir para o cenário em

que a língua ganha relevância e destaque no processo de construção identitário.

Neste capítulo, parte-se de uma reflexão sobre o papel da língua na construção dos

nacionalismos europeus numa perspectiva histórica. Hobsbawm situa sua importância num

dado período, registrando uma mudança na percepção dos nacionalismos a partir de 1870, que

conduz à afirmação de um nacionalismo linguístico ou etnolinguístico. Anderson (2006), por

sua vez, destaca o papel das línguas de imprensa e a importância do seu desenvolvimento no

contexto do capitalismo industrial que se afirma nos séculos XIX e XX.

A seguir, explora-se a relação entre língua e identidade nacional numa perspectiva

simbólica, isto é, a ideia de língua como símbolo, como ícone de uma nação, como elemento

de referência e de identificação. A língua como símbolo, numa sociedade onde os sistemas

simbólicos adquirem cada vez mais importância, e o papel da mídia na construção,

transmissão e disseminação desses símbolos são alguns dos temas desenvolvidos.

Prosseguindo com a reflexão, analisa-se a relação entre língua e o conceito de cultura,

os quais, muitas vezes, aparecem sobrepostos ou, ao menos, num contexto de

interdependência. A língua como limite do mundo, isto é, como limite da possibilidade de

conhecimento, ou como elemento condicionante e conformador do indivíduo e da sua visão

de mundo são algumas das abordagens discutidas. Em complemento a elas, estuda-se a noção

de língua como portadora e transmissora de cultura, desempenhando papel central na criação,

manutenção e disseminação de uma suposta cultura nacional, no âmbito da qual as

identidades são construídas.

Page 68: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

50

Por fim, o papel da língua na construção das identidades europeias é analisado no

contexto do multilinguismo, no qual a moeda corrente deixa de ser a língua em sua unicidade

e passa a ser a língua em sua diversidade – que é, então, valorizada e interpretada como uma

mais-valia para o projeto europeu. Mas, se no contexto da interação entre os diferentes países

que constituem hoje a União Europeia, a diversidade linguística é interpretada como valor, em

outros, como no contexto das migrações, com as tensões e pressões linguísticas que este

encerra, tais discursos de valorização nem sempre prevalecem, promovendo uma certa

confusão e instabilidade no interior do sistema.

O objetivo deste capítulo é identificar e explorar algumas das diferentes perspectivas

de análise da relação entre língua e identidade nacional que possam contribuir para a reflexão

sobre o tema no contexto europeu atual. Pretende-se também, com tal esforço, construir um

pano de fundo contra o qual se possa pensar a posição de Portugal, no que diz respeito às

questões identitárias que afloram das discussões sobre o novo acordo ortográfico, que será

objeto da segunda parte desta pesquisa.

Língua e identidade nacional: perspectiva histórica

Embora a língua como fator de identidade ou de identificação seja um elemento

recorrente em muitos dos discursos sobre os nacionalismos, seu papel pode ser – e tem sido –

questionado. O que se discute não é tanto a existência de uma relação entre língua e nação,

mas sim sua natureza e suas transformações ao longo do tempo. Pensando-se numa relação de

causa-efeito, são as línguas que dão origem às nações ou são as nações que criam as línguas?

Nesse contexto, quando falamos em língua, de que língua falamos: dos vernáculos orais ou

escritos, das línguas administrativas dos antigos impérios coloniais, das línguas de cultura,

línguas de imprensa, línguas nacionais?

Para refletir sobre tais questionamentos, parte-se do pensamento de Anderson (2006:

71-73), que, ao discorrer sobre a importância das línguas para os nacionalismos, ou melhor,

sobre a importância das línguas para a construção de uma consciência nacional, destaca o

papel desempenhado pelas línguas de imprensa. Segundo o autor (ibidem: 42-43), a formação

de uma consciência nacional é indissociável de um contexto bastante específico: a

combinação, que ele caracteriza como “explosiva”, entre o capitalismo (como modo de

produção), a imprensa (como tecnologia de comunicação) e a diversidade linguística.

Page 69: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

51

O capitalismo, com sua dependência da formação de mercados de consumo e de mão-

de-obra para a produção em massa, promove a concentração de pessoas e torna cada vez mais

necessária a comunicação entre elas. Novas tecnologias de comunicação são desenvolvidas e

a adoção de uma língua comum, num contexto de coexistência de línguas diversas, torna-se

necessária e economicamente vantajosa.

Com o desenvolvimento da imprensa, a língua passa a configurar um espaço ampliado

de comunicação e compreensão mútuas ou, como afirma Anderson (2006: 72), campos de

trocas e comunicação unificados em torno da língua, agora situada abaixo do latim, mas

acima dos vernáculos orais, numa referência à criação daquilo que ele chamou de línguas de

imprensa, já mencionadas acima.

Nesse contexto, e em decorrência dele, a língua ganha uma certa fixidez, característica

do registro escrito e da pretensão de compreensão por um público heterogêneo e alargado. Do

mesmo modo, novas relações de poder atreladas às línguas são construídas, ou seja, as línguas

de imprensa são também configuradas como línguas de poder, concorrendo, em alguma

medida, com as línguas administrativas. Essas novas línguas irradiam sua força pela

sociedade, favorecendo aqueles indivíduos e grupos cujos vernáculos são alçados à categoria

de língua de imprensa ou que dela se aproximam e que, por esse motivo, ganham prestígio

face aos demais.

Como parte desse processo, multiplicam-se as publicações de gramáticas, vocabulários

e estudos comparados, que mobilizam um número cada vez maior de especialistas e

estudiosos, empenhados no desenvolvimento, na classificação e na organização das línguas

em famílias e grupos. Anderson (2006: 71), citando Seton-Watson, identifica o século XIX,

na Europa, como sendo a “era dourada” dos filólogos, gramáticos, lexicógrafos e literatos.

A escolha, definição e padronização de uma língua de imprensa não é indiferente ao

processo de construção das línguas nacionais. Pelo contrário, as línguas de imprensa

contribuem para esse processo ao atribuir prestígio a uma certa língua em detrimento de

outras, que, consequentemente, acabam por ganhar maior estabilidade e conquistar maior

número de falantes – tornam-se, assim, candidatas preferenciais ao posto de língua nacional e,

nesse sentido, as precursoras das mesmas.

Para Hobsbawm, as línguas nacionais são construídas ao longo da constituição das

nações propriamente ditas, num processo de forte cariz político-ideológico que pode envolver

diferentes estratégias – a partir, por exemplo, de uma suposta correção ou padronização de

línguas pré-existentes ou mesmo de sua invenção. Esse pensamento contraria o mito da nação

como força natural e latente, adormecida durante séculos, ou seja, como uma consciência

Page 70: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

52

coletiva em vias de se emancipar, reafimando seu caráter de artefato cultural e de produto de

um dado contexto social, histórico e situado que aflora a partir do final do século XVIII na

Europa:

The politico-ideological element is evident in the process of language-construction which can

range from the mere ‘correction’ and standardization of existing literary and culture-

languages, through the formation of such languages out of the usual complex of overlapping

dialects, to the resuscitation of dead or almost extinct languages which amounts to virtual

invention of new ones. For, contrary to nationalist myth, a people’s language is not the basis

of national consciousness but, in the phrase of Einar Haugen, a ‘cultural artifact’.

(Hobsbawm, 2012: 111)

Mas a existência de uma língua nacional, de acordo com Hobsbawm, nem sempre foi

essencial para o processo de construção das nações. Para o autor, durante a fase inicial dos

nacionalismos (de 1780 a 1870 aproximadamente), a língua não constitui um fator decisivo de

identificação nacional. Ele cita, entre outros, o exemplo da França à época da Revolução

Francesa, onde 50% dos franceses não falavam francês e apenas 12 ou 13% eram capazes de

falar a língua “corretamente” (2012: 60).

No período subsequente, no entanto, as línguas rapidamente assumem relevância.

Retomando o caso francês, logo após a revolução, tem início um movimento de

uniformização linguística, excepcional para a época, no entender de Hobsbawm. Essa política

de difusão e afirmação da língua francesa é mais uma evidência de que, no princípio dos

nacionalismos, falar a língua nacional não foi um critério relevante para a afirmação de uma

nacionalidade – no caso, a francesa. No entanto, aderir a ela posteriormente, ou seja, falar o

francês, torna-se, progressivamente, pré-requisito obrigatório para o exercício da cidadania e

para a identificação nacional:

The French insistence on linguistic uniformity since the Revolution has indeed been marked,

and at the time it was quite exceptional. (…) But the point to note is, that in theory it was not

the native use of the French language that made a person French – how could it when the

Revolution itself spent so much of its time proving how few people in France actually used

it? – but the willingness to acquire this, among the other liberties, laws and common

characteristics of the free people of France. In a sense acquiring French was one of the

conditions of full French citizenship (and therefore nationality) as acquiring English became

for American citizenship. (Hobsbawm, 2012: 21).

As línguas são, assim, mobilizadas para a causa nacional, num movimento que marca

a transformação dos nacionalismos de uma fase inicial, caracterizada por Hobsbawm (apud

Smith, 2001: 121) como sendo a do nacionalismo das massas, cívico e democrático, que se

Page 71: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

53

desenvolve no período entre 1830 e 1870, para uma nova forma de nacionalismo: o

nacionalismo etnolinguístico, que se afirma entre 1870 e 1914.

Segundo Hobsbawm (2012), as línguas, cujas origens são difíceis de precisar, mas

que, invariavelmente, remetem para um passado longínquo e incerto, prestam-se na perfeição

às estratégias de enraizamento das nações nesse passado distante: constituem uma espécie de

prova de existência e capacidade de sobrevivência, assim como um atestado do seu direito ao

reconhecimento público como nação com o estatuto de Estado e todos os direitos a ele

inerentes.

Essa afirmação de antiguidade, típica da nação moderna recém-criada, embora

represente um paradoxo e, mais do que isso, um equívoco, como defende Hobsbawm, é

recorrente. Fundamenta-se numa concepção da nação como resultado de um desenvolvimento

natural e progressivo, lento e duradouro, que se desenrola quase que à revelia da indústria

humana. A nação ganha, assim, a força dos fenômenos naturais que há muito tempo e em

larga escala subjugam a vontade do homem:

We should not be misled by a curious, but understandable, paradox: modern nations and all

their impedimenta generally claim to be the opposite of novel, namely rooted in the remotest

antiquity, and the opposite of constructed, namely human communities so ‘natural’ as to

require no definition other than self-assertion. (Hobsbawm, 1994: 76).

A existência de uma língua nacional e os discursos em torno dela tornam-se, assim,

fundamentais para os nacionalismos e a construção das nações, como indica o movimento das

elites locais no sentido de adquirir proficiência em tais línguas. Essas elites, em geral criadas

e educadas nas línguas de prestígio – ou seja, nas línguas administrativas e de cultura – nem

sempre dominavam os vernáculos. No momento em que o domínio da língua local é alçado à

condição de prova de uma nacionalidade, é preciso encontrar uma explicação para tal deficit.

Segundo Anderson (2006), a justificativa para tal falta era o estado de dormência em que

vivia e sobrevivia a nação, uma espécie de sono cujo despertar se dá ao longo do século XIX.

Anderson, no mesmo sentido de Hobsbawm, também identifica uma transformação no

papel da língua para os nacionalismos. Segundo ele, se, num primeiro momento, as línguas

não são percebidas como fator de identificação nacional, atreladas a um dado grupo ocupante

de um território específico, num momento posterior passam a operar como verdadeiras

barreiras naturais, separando comunidades nacionais sob o domínio dos antigos impérios: “os

vernáculos ‘não civilizados’ começaram a ter a mesma função política que o Oceano

Page 72: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

54

Atlântico desempenhara anteriormente: ou seja, a de “separar” as comunidades nacionais

subjugadas dos antigos reinos dinásticos” (Anderson, 2006: 257).

Outro fator que contribui para a construção das identidades nacionais em torno da

unidade linguística é a realização dos censos. Como afirma Anderson (2006), no final do

século XIX, os censos, que a princípio tinham por objetivo quantificar o número de

indivíduos pagadores de impostos ou aptos para a atividade militar – deixando de fora, assim,

mulheres e crianças, por exemplo –, passam a se organizar em torno de outros critérios de

classificação. Religião, etnia e língua são incluídos ou realçados à medida que o império se

especializa e multiplica suas funções, ampliando, ao mesmo tempo, a máquina administrativa

para dar conta dos novos sistemas de educação, saúde, administração da justiça, policiamento,

etc.

Essas transformações seguem sempre a lógica dos realizadores dos censos que,

segundo Anderson, gira em torno de uma quase obsessão pela completude e pela ausência de

ambiguidade, impossíveis de serem efetivamente aplicadas. Cria-se, assim, uma espécie de

ficção onde as categorias listadas são entendidas como únicas, claras, distintas e isentas de

zonas cinzentas e de indefinições: “(t)he fiction of the census is that everyone is in it, and that

everyone has one – and only one – extremely clear place” (Anderson, 2006: 166).

Nesse novo desenho, a inclusão da língua como categoria de classificação e objeto de

quantificação nos censos é bastante debatida, como afirma Hobsbawm. Segundo o autor, no

congresso internacional de estatística de 1860, sua inclusão é considerada opcional, cabendo a

cada Estado analisar sua relevância e optar ou não por ela. Em 1873, no entanto, passar a ser

expressamente recomendada (Hobsbawm, 2012: 97).

Portanto, se a língua, naquele momento, não era ainda um critério essencial de

identificação nacional para alguns Estados, tal cenário se modifica com sua inclusão no censo,

quando grupos passam a se identificar e diferenciar a partir dela como nunca haviam feito

antes. Desenvolve-se, em torno da língua, uma certa consciência ou percepção da identidade

e da diferença, de pertença a um grupo maioritário ou minoritário, da partilha de uma posição

de vantagem ou desvantagem no interior dos impérios:

What nobody quite appreciated was that asking such a question would in itself generate

linguistic nationalism. (...) In truth, by asking the language question censuses for the first

time forced everyone to choose not only a nationality, but a linguistic nationality. The

technical requirements of the modern administrative state once again helped to foster the

emergence o nationalism (…). (Hobsbawm, 2012: 100).

Page 73: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

55

Um outro desdobramento da inclusão das línguas como categoria nos censos

relaciona-se com a associação da língua e suas estatísticas a outros critérios de classificação

simultaneamente adotados, como etnia, religião, estatuto sócio-econômico entre outros,

trazendo à tona relações de poder que antes poderiam passar despercebidas e criando novos

pontos de contato e ligação, assim como de conflitos.

Especialmente a partir de 1830 e até o final do século XIX, as línguas paulatinamente

ganham destaque como critério de nacionalidade, configurando uma espécie de nacionalismo

linguístico. Falar a língua torna-se critério de identificação nacional e também de

reconhecimento público como membro integrante de uma nacionalidade específica. O amor à

língua se confunde com o amor à nação. Proteger e afirmar a língua torna-se sinônimo de

proteger e afirmar a nação. A língua é entendida como sendo a alma da nação, e não o

resultado de uma construção historicamente situada e de tradições inventadas:

Yet the ‘national language’ is rarely a pragmatic matter, and still less a dispassionate one, as

is shown by the reluctance to recognize them as constructs, by historicizing, and inventing

traditions for, them. Least of all was it to be pragmatic and dispassionate for the ideologists

of nacionalism as it evolved after 1830 and was transformed towards the end of the century.

For them, language was the soul of a nation, and, as we shall see, increasingly the crucial

criterion of nationality. (Hobsbawm, 2012: 95).

Nesse sentido, vale ainda destacar o papel da língua na construção das chamadas

nações tardias: Alemanha e Itália. Unificadas na segunda metade do século XIX, em ambos os

casos, a língua – ou seja, o alemão e o italiano, respectivamente – desempenha papel crucial

como fator de identidade, embora não fosse, à época, utilizada pela grande maioria das

pessoas quer num caso quer noutro. Mais do que meras línguas administrativas, o alemão e o

italiano eram línguas de cultura e de valor literário, consistindo, segundo Hobsbawm (2012:

103), no único elemento que fazia daqueles indivíduos alemães ou italianos. Essa mesma

ideia é defendida por Blommaert & Verschueren que, ao citarem o exemplo alemão,

identificam a língua como sendo virtualmente o único recurso de identificação nacional

possível:

The German quest for a nation-state was considerably facilitaded by the spread of German

dialects across a large part of Europe. Though only few people actively used a common

language of culture, politically the geographical area in question had been so fragmented that

language was not only a useful, but virtually the only possible, focus for unity. Moreover, by

the time of German unification in the second half of the nineteenth century, European

nationalism was taking a linguistic turn (expressed, i.a., in the insertion of a language

question in national censuses). (Blommaert & Verschueren, 1992: 364).

Page 74: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

56

Essa centralidade do papel da língua caracteriza os nacionalismos linguísticos, que

giram em torno, não só da língua como símbolo de uma identidade nacional, mas

especialmente da língua de educação e de administração, isto é, da língua adotada pelos

sistemas de educação pública e pelos governos – “linguistic nationalism was and is essentially

about the language of public education and official use” (Hobsbawm, 2012: 96).

Em tal cenário, a transformação do papel da língua está intrinsecamente relacionada

com a construção das chamadas línguas nacionais, ou seja, de uma língua comum a todos os

membros de uma dada nação, que permite a comunicação mas também a identificação

recíproca, a partilha de valores e cultura, o sentimento de pertença e, do mesmo modo, mas

em sentido inverso, a delimitação, a marcação da diferença e a instauração da suspeita face à

imaginação do outro.

Mas, se, na construção das línguas nacionais, prevalecem os discursos de atribuição de

relevância às suas funções comunicativa e cultural, Hobsbawm aponta em direção oposta,

identificando as questões de poder, status, política e ideologia como sendo centrais ao

desenvolvimento dos nacionalismos linguísticos: “(a)t all events problems of power, status,

politics and ideology and not of communication or even culture, lie at the heart of the

nationalism of language” (Hobsbawm, 2012: 110).

Nesse contexto, vale ainda destacar que o processo de construção das línguas

nacionais só se torna possível com o desenvolvimento concomitante da imprensa e dos

sistemas de educação de massas (Hobsbawm, 2012: 10), que simultaneamente promovem e

dependem da literacia numa dada língua, agora de cariz nacional, padronizada e prestigiada.

Mais uma vez, o capitalismo representa a força propulsora desse processo, com sua

dependência de mercados ampliados e meios de comunicação e circulação desenvolvidos e a

consequente demanda cada vez maior por literacia.

A ampliação do papel da literacia em tal cenário também é destacada por Gellner

(1994) em sua reflexão sobre a modernidade, caracterizada, segundo ele, pela transformação

da vida social e econômica, por maior mobilidade e pela emancipação do proletariado

industrial. De acordo com o autor, as instituições da modernidade, com seu aparato

econômico, de governo e educação, requerem novas literacias, favorecendo, assim, a língua

de poder, que passa a representar uma espécie de passaporte para se alcançar a cidadania em

sua plenitude (ibidem: 60).

Em resumo, a modernização das sociedades, marcadas por um maior desenvolvimento

e dependência tecnológica e dos meios de produção em massa, cria novas exigências, entre

elas, uma demanda cada vez maior pela literacia na língua nacional, que precisa ser

Page 75: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

57

devidamente apropriada, não só no âmbito da oralidade, como no da escrita. Essa nova

situação acentua a relevância dos sistemas de educação secundária desenhados para atender

uma população cada vez maior e mais concentrada, acompanhando o crescimento do chamado

proletariado industrial e promovendo um certo grau de homogeneização e padronização

(Hobsbawm, 2012: 93-94).

Nesse processo, começa a ganhar corpo a ideia de audiência de massas: numerosa,

supostamente homogênea e padronizada, que é acompanhada pelo desenvolvimento de novas

tecnologias de comunicação, ou seja, pelo desenvolvimento dos meios de comunicação de

massas, com destaque para o rádio, a televisão e o cinema, ainda na primeira metade do

século XX.

Por um lado, os meios de comunicação de massas contribuem para o desenvolvimento

e a valorização da língua nacional, uma vez que dependem dela para distribuir seus produtos e

alcançar seu público. Ao mesmo tempo, o domínio da língua torna-se essencial para a fruição

de tais produtos, que circulam cada vez com mais frequência e conquistam relevância

crescente na estrutura das sociedades modernas.

Por outro lado, como afirma Hobsbawm (2012: 141-142), tais mídias representam a

possibilidade de novas formas de expressão e identificação nacional – para além das questões

envolvendo a definição de fronteiras, de disputas jurídicas ou de língua – e de circulação de

símbolos nacionais, que antes estavam restritos à esfera pública e agora alcançam o espaço

privado:

However, deliberate propaganda was almost certaingly less signficant than the ability of the

mass media to make what were in effect national symbols part of the life of every individual,

and thus to break down the divisions between the private and local spheres in which most

citizens normally lives, and the public and national one. (ibidem: 142).

Essa breve reflexão sobre a relação entre mídia e língua – realizada, aqui, numa

perspectiva histórica – e as funções que tal relação desempenha ao longo do processo de

construção das identidades nacionais pode ser estendida até a atualidade. Nas sociedades

europeias atuais, a língua ainda parece figurar como elemento de identificação nacional e a

mídia segue ocupando lugar de destaque na estruturação dessa sociedade. Tais temas serão

desenvolvidos a seguir, a partir de duas perspectivas distintas – a simbólica e a cultural – e no

contexto do multinguismo: aposta da União Europeia na valorização da diversidade

linguística que caracteriza seu território.

Page 76: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

58

Língua e Identidade Nacional: perspectiva simbólica

Deutch (1994), em sua reflexão sobre os nacionalismos, já assinalava a dependência

da nação em relação à língua, como referido no capítulo anterior. Para o autor, a possibilidade

de comunhão de uma história comum, do sentimento de pertença e da compreensão mútua

entre os membros da nação era condição sine qua non para sua existência e tal compreensão

só seria possível a partir da partilha de um conjunto de recursos e estruturas comunicativos

desenvolvidos em torno de um sistema comum de símbolos, que seria a língua:

The community which permits a common history to be experienced as common, is a

community of complementary habits and facilities of communication. It requires, so to speak,

equipment for a job. This job consists in the storage, recall, transmission, recombination, and

reapplication of relatively wide ranges of information; and the ‘equipment’ consists in such

learned memories, symbols, habits, operating preferences, and facilities as will in fact be

sufficiently complementary to permit the performance of these funcions. A larger group of

persons linked by such complementary habits and facilities of communication we may call a

people. (...) The communicative facilities of a society include a socially standardized system

of symbols which is a language, and any number of auxiliary codes, such as alphabets

systems of writing, painting, calculating, etc. (Deutsch, 1994: 26).

Nessa sua definição funcionalista dos nacionalismos, a língua é explorada em seu viés

predominantemente comunicativo. A participação num dado grupo, ou seja, o reconhecimento

de alguém como membro integrante dessa comunidade – e, da mesma forma, seu auto-

reconhecimento como membro dessa comunidade – consiste na capacidade de se comunicar

socialmente. Em outras palavras, ser capaz de se comunicar de forma mais eficiente com

integrantes desse grupo do que com aqueles que dele não fazem parte configura um recurso

essencial de identificação e de auto-identificação.

A língua, no entanto, além de um sistema simbólico, é por si só um símbolo – e é esse

o viés que se pretende explorar neste estudo, ou seja, o da língua como símbolo de uma certa

identidade nacional e, nessa condição, dotada de poder econômico, político, sociocultural e

também simbólico, na acepção de Bourdieu (1999). A língua como símbolo de uma origem

comum, a língua como símbolo de uma raiz antiga e profunda, a língua como símbolo de uma

certa visão de mundo, a língua como símbolo de poder, a língua como símbolo de um

temperamento ou comportamento, a língua como símbolo de uma cultura, a língua como

símbolo da nação são apenas alguns exemplos.

Nessa perspectiva, importa não só a construção de representações simbólicas

associadas à língua, mas também o potencial de disseminação e fixação das mesmas. Com o

aumento exponencial da mobilidade e o desenvolvimento dos meios de comunicação,

Page 77: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

59

característicos da modernidade, o campo de partilha e difusão dessas representações se

expande. Tal movimento se dá primeiro no campo nacional, impulsionado pelo sistema

educativo e pela mídia, pela infra-estrutura e pelas instituições nacionais, e, depois, para além

da arena nacional, com a globalização e os desdobramentos que lhe são inerentes.

O desenvolvimento dos sistemas nacionais de educação, quer no nível primário, quer

no secundário, propicia a fomação de um ambiente ideal para a circulação da informação e

também de ideias, valores e ideologias. Ao mesmo tempo, permite algum grau de controlo por

parte das instituições – de governo, religiosas, políticas, da sociedade civil, etc. – responsáveis

pela definição e aplicação das políticas educativas ou que participam desse processo em

alguma medida.

No que diz respeito à construção das identidades nacionais, a implementação de tais

sistemas educativos faz com que uma certa ideia de nação, com suas diferentes estratégias de

representação, seja criada e partilhada por essa rede, naturalizando-se como sendo a definição

correta, isto é, a única, a verdadeira, a autêntica, cristalizando, assim, uma visão essencialista

dessa identidade nacional e criando, simultaneamente, a ilusão de homogeneidade e

naturalidade comungada pelos membros dessa comunidade.

Também a mídia, como principal meio de difusão de sistemas simbólicos (Thompson,

1995), adquire cada vez mais relevância nos processos de construção identitária. Essa

afirmação se fundamenta no crescente papel desempenhado pela mídia nas sociedades

modernas, impulsionado pelo desenvolvimento das tecnologias de comunicação. Em outras

palavras, para se entender e refletir sobre a natureza desta modernidade tardia, é essencial

analisar o papel desempenhado e o impacto provocado pelos novos meios de comunicação:

The development of communication media was interwoven in complex ways with a number

of other developmental processes which, taken together, were constitutive of what we have

come to call ‘modernity’. Hence, if we wish to understand the nature of modernity – that is,

of the institutional characteristics of modern societies and the life conditions created by them

– then we must give a central role to the development of communication media and their

impact. (Thompson, 1995: 3).

A fim de se ter uma percepção mais clara dessa situação, basta pensar que as

transformações promovidas pelo desenvolvimento dos meios de comunicação de massas

incluem a ampliação dos espaços e oportunidades de ação individual e coletiva, o alargamento

dos horizontes de visão, o acesso a uma quantidade exponencial de informação, a

possibilidade de conhecimento e de formação e expressão de opinião (assim como a

Page 78: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

60

responsabilidade que a acompanha) sobre acontecimentos diversos, a redefinição das esferas

públicas e privadas, entre tantos outros.

Com essas transformações, a necessidade de mediação – seja em função das distâncias

físicas que separam o indivíduo do acontecimento ou do excessivo volume de informação que

se torna possível, por exemplo – também é acrescida, reforçando a importância da mídia,

como instrumento de mediação por excelência, e a dependência do indivíduo em relação a ela,

num movimento circular, ou seja, é o desenvolvimento dos meios e tecnologias de

comunicação que cria novas necessidades de acesso e consumo da informação, necessidades

essas que só podem ser atendidas pelo desenvolvimento desses mesmos meios e tecnologias

de comunicação.

Mas essa situação não é nova nem resulta diretamente do desenvolvimento da internet,

pelo contrário, as transformações associadas ao desenvolvimento da mídia e ao seu impacto

nas sociedades são estudadas há muito tempo. Já nos anos 60, por exemplo, Schiller

(Thompson, 1995) desenvolvia a tese do imperialismo cultural ao analisar o papel dos EUA

na disseminação de informação e entretenimento. Segundo o autor, o imperialismo cultural

americano seria uma das consequências dos processos de globalização, uma nova forma de

manifestação do poder econômico dos EUA, que agora estaria a se manifestar como

aculturação, isto é, como imposição de uma homogeneidade baseada nos padrões americanos,

como destruição das especificidades nacionais e locais, em resumo, como destruição da

diversidade cultural.

A tese do imperialismo cultural americano é questionada por Thompson, que relativiza

os efeitos do poderio americano no campo da comunicação e, consequentemente, da

disseminação de sistemas simbólicos no âmbito global. Parte fundamental da argumentação

de Thompson reside nos processos de recepção dos produtos de comunicação por parte de

suas respectivas audiências e na importância das diferenças culturais na interpretação e leitura

desses produtos.

Segundo Thompson, para se apreender verdadeiramente a amplitude e a intensidade

das transformações operadas pelo desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação,

com suas novas e complexas redes e fluxos de comunicação e informação, é preciso afastar-se

da concepção de comunicação como mera transmissão de dados. As funções da mídia nas

sociedades modernas são muito mais alargadas e incluem o importante papel de instituidora

de novos tipos de relações sociais, de outras formas de interação e de relação com o outro e

consigo mesmo:

Page 79: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

61

(…) (W)e can understand the social impact of the development of new networks of

communication and information flow only if we put aside the intuitively plausible idea that

communication media serve to transmit information and symbolic content to individuals

whose relations to others remain fundamentally unchanged. We must see, instead, that the

use of communication media involves the creation of new forms of action and interaction in

the social world, new kinds of social relationship and new ways of relating to others and to

oneself. (Thompson, 1995: 4).

No campo da política linguística é possível encontrar outros indícios dessa perspectiva

simbólica. Muitas das políticas que vigoram ainda hoje giram em torno de uma suposta

língua-padrão, de prestígio, poder e qualidade superior, que deve ser protegida e que, não

raras vezes, serve de instrumento para desvalorizar e desprestigiar outras línguas ou mesmo

outras versões dela mesma, ou seja, suas variantes – na verdade, a própria ideia de variação

já parece implicar uma espécie de hierarquia de valores ao pressupor um centro, isto é, uma

referência estável contra a qual essa variação é construída e, muitas vezes, medida e avaliada.

No debate em torno das línguas nacionais, as ideias de valor e de superioridade da

língua, associadas aos discursos de valorização de uma suposta pureza, por exemplo,

manifestam-se em discursos como os que falam sobre os riscos de “contaminação” e a

necessidade de “proteção contra ameaças” de natureza diversa. Em alguns casos, verifica-se

mesmo uma tentativa de imobilizar a língua, fixando seu conteúdo e enrijecendo as regras de

uso, num esforço – destinado ao fracasso, uma vez que toda língua viva se desenvolve e altera

ao longo do tempo e do seu uso – de evitar a mudança a qualquer custo.

Outra linha de argumentação recorrente é aquela que se fundamenta em discursos de

defesa da preservação da língua e da sua imobilidade em favor da garantia do entendimento

mútuo. Não mais se trata de afirmar seu valor e superioridade face às demais, portanto, mas

sim de apelar para a perspectiva da língua em sua função comunicativa. Nesse caso, a

perspectiva simbólica é aparentemente relegada ao pano de fundo, enquanto a perspectiva

utilitária da língua é trazida à cena.

Ainda nesse sentido, o conceito de língua materna parece ser bastante representativo

das relações que são estabelecidas entre língua e identidade. A escolha dessa expressão, que

remete para os laços de famíla, traz à tona uma série de representações bastante fortes para as

sociedades europeias modernas no que diz respeito à figura da mãe como primeira fonte de

vida, origem, alimento, orientação, proteção, afeto. O vínculo materno é referido

frequentemente como sendo um dos mais fortes no que diz respeito à natureza humana.

A relação de filiação também surge como um forte elemento de identificação

individual, constando, por exemplo, de boa parte dos documentos utilizados para identificar o

indivíduo ao longo da sua vida em sociedade. A referência à língua materna – que, em parte,

Page 80: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

62

por conta desse imaginário e daquilo que ele implica, vem sendo substituída em algumas

áreas por expressões como primeira língua, por exemplo – remete para um universo de

expectativas, posturas e sentimentos face às línguas e ao seu uso que parecem condizer com

os discursos de afirmação nacional construídos em torno das línguas, acentuando seu papel de

ícone da nação.

Como refere Hobsbawm, um exemplo significativo da dimensão simbólica assumida

pelas línguas nacionais e traduzida, em parte, nessa preocupação com a pureza e a

autenticidade das línguas nacionais – exemplo repetidamente narrado, mas com diferentes

países ocupando a posição de protagonismo –, consiste no esforço repetitivo e intensivo de

excluir da língua certas palavras que não são consideradas suficientemente autênticas ou

originárias, ou seja, palavras emprestadas ou tomadas de outras línguas de contato. Tais

vocábulos são, em geral, substituídos por novas versões mais adequadas à ideologia

linguística nacional:

Indeed, languages become more conscious exercises in social engineering in proportion as

their symbolic significance prevails over their actual use, as witness the various movements

to ‘indigenize’ or make more truly ‘national’ their vocabulary, of which the struggle of

French governments against ‘franglais’ is the best-known recent example. (Hobsbawm, 2012:

112).

Nesse contexto, entende-se por ideologia linguística os valores, práticas e crenças

relacionadas com o uso das línguas que vigoram numa dado contexto social, espacial e

temporal. Dizendo-se de outro modo, entende-se por ideologia o conjunto de ideias,

percepções e expectativas sobre a língua, motivadas por um dado contexto sociocultural, que

se manifestam nas diferentes instâncias de uso da mesma (cf. Wodak and Boukala, 2005).

Os discursos de valorização da pureza e da integridade, associados aos temores de

miscigenação e contágio, permeiam a discussão sobre os nacionalismos linguísticos e também

o debate sobre os chamados nacionalismos etnolinguísticos. Embora os conceitos de língua

nacional e nacionalismo se aproximem e sobreponham, há, nessa última referência ao

nacionalismo etnolinguístico, uma associação bastante direta entre língua e origem, ou seja,

prevalece a associação da língua a uma origem comum, ou etnia, que pode se confundir,

inclusive, com a ideia de raça.

Hobsbawm chama a atenção para essa relação, que ele classifica como “óbvia”, entre

racismo e nacionalismo. Segundo o autor, em alguns momentos tais conceitos chegam a se

confundir, embora raça e língua não possam ser inferidas uma a partir da outra. De certo

Page 81: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

63

modo, as referências ao “nacionalismo linguístico” e ao “nacionalismo etnolinguístico”

parecem corroborar a tese de Hobsbawm:

The links between racism and nationalism are obvious. ‘Race’ and language were easily

confused as in the case of ‘Aryans’ and “Semites’, to the indignation of scrupulous scholars

like Max Muller who pointed out that ‘race’, a genetic concept, could not be inferred from

language, which was not inherited. Moreover, there is an evident analogy between the

insistence of racists on the importance of racial purity and the horrors of miscegenation, and

the insistence of so many – one is tempted to say of most – forms of linguistic nationalism on

the need to purify the national language from foreign elements. (Hobsbawm, 2012: 108).

De qualquer modo, não se pode ignorar a força dos sentimentos que levam os

indivíduos a se identificarem como membros de um grupo, atribuindo-se uma dada identidade

étnica e linguística em contraste com outros, que, em geral, representam uma ameaça contra a

qual aquele grupo precisa de se defender. Esse é o cenário esboçado por Hobsbawm (2012:

170) e que, em alguma medida, fundamenta sua afirmação de que a xenofobia é a ideologia de

massas mais disseminada no mundo, como já comentado no capítulo anterior.

Língua, Cultura e Identidade Nacional

Pelo menos desde a afirmação de Wittgenstein de que a língua de um indivíduo define

os limites do seu mundo (Potter, 1997), no sentido de que a língua constitui um dos mais

importantes meios de apropriação e apreensão de tudo aquilo que o rodeia, a relação entre

língua e visões de mundo tem sido fequentemente debatida. Em outras palavras, o que se

debate é o lugar da língua e seu peso na construção da realidade, no singular e no plural.

Entre os muitos estudos desenvolvidos nessa área, destaca-se o trabalho de Sapir e

Whorf, representado pela hipótese de que a língua de um indivíduo determina ou condiciona

sua visão de mundo. A língua, nesse contexto, seria um elemento estruturante da vida em

sociedade e essencial para a definição de seus contornos; mais do que uma forma de dizer ou

representar algo, a língua seria condição de sua existência.

Um exemplo bastante esquemático, mas também ilustrativo, seria o dos esquimós, que

contariam com um conjunto muito maior e variado de palavras para indicar a cor branca,

recurso que permitiria uma indicação mais precisa para o estado da neve. Essa capacidade de

reconhecimento do seu meio ambiente seria fundamental para sua sobrevivência e

indissociável dela, estando, ao mesmo tempo, dependente da existência e conhecimento desse

Page 82: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

64

conjunto ampliado de palavras para dizer o estado e a condição da neve. Em outras palavras,

na perspectiva do indivíduo, a condição de existência, no campo da realidade, de um conjunto

ampliado de estados da neve é indissociável da existência simultânea desse vocabulário com

ele compatível.

De modo geral, a existência de alguma relação entre língua e mundo é pouco

contestada, o que, no entanto, é objeto de debate é a natureza e o grau dessa relação. A língua

determina uma visão de mundo ou influencia tal visão? Se influencia, em que medida ou de

que modo? Mais especificamente, e já direcionando o debate para o tema em causa nesta

pesquisa, interessa refletir sobre em que medida a língua que falamos faz de nós quem somos

ou, em outras palavras, em que medida a língua que falamos determina ou influencia nossa

identidade.

A sociolinguística também explora essa relação entre língua, visão de mundo e

identidade ao extrapolar a perspectiva da língua como meio de comunicação, estritamente, e

analisar seus diferentes papéis no contexto social. A língua é, assim, analisada numa

perspectiva mais abrangente, como forma de ação e estratégia de interação em sociedade,

como recurso de identificação e de estabelecimento de relações interpessoais entre outros.

É no âmbito da discussão acima que o conceito de cultura é trazido ao debate,

estabelecendo-se uma relação de interdependência entre língua e cultura. Embora não sejam

sinônimos, não se pode negar a existência de uma forte componente cultural no conceito de

língua ou, em sentido inverso, de uma forte componente linguística no conceito de cultura.

Em comprovação ao acima afirmado, basta observar a frequência de vezes em que um termo é

tomado pelo outro, numa sobreposição nem sempre explícita ou intencional.

Nessa perspectiva, a ideia de que as línguas são dotadas de cultura parece fazer

sentido. Nascer, ser educado, crescer e conviver numa certa língua, portanto, implicaria

partilhar uma certa cultura em toda a sua amplitude – língua e cultura seriam, assim,

indissociáveis. Essa partilha de ou comunhão numa mesma língua e cultura configura um

forte recurso de identificação individual e coletiva, e também de identificação nacional –

muitos dos discursos de afirmação nacional, em geral de caráter essencialista, valem-se dele

para construir uma percepção de homogeneidade e identidade, por exemplo.

Corroborando a posição que associa cultura e identidade, Hall (2014: 29) destaca a

sobreposição existente entre esses dois conceitos no âmbito nacional, descrevendo as culturas

nacionais como “comunidades imaginadas”, numa referência explícita à definição de nação de

Anderson. Para o autor, assim como as nações, as culturas nacionais são construções da

modernidade e fonte de identificação individual e coletiva, como referido a seguir:

Page 83: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

65

As culturas nacionais são uma forma distintivamente moderna. A lealdade e a identificação

que, numa era pré-moderna ou em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo,

à religião e à região, foram transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura

nacional. As diferenças regionais e étnicas foram gradualmente sendo colocadas, de forma

subordinada, sob aquilo que Gellner chama de “teto político” do Estado-nação, que se tornou,

assim, uma fonte poderosa de significados para as identidades culturais modernas. (Hall,

2014: 30).

Uma vez que a relação de interdependência entre língua e cultura já foi aqui destacada,

parece razoável ampliar essa discussão para abranger as relações de interdependência entre

cultura, língua e identidade, que estão aqui em causa. Seguindo tal raciocínio, a língua

definiria os limites, isto é, o campo de atuação dessa cultura – e, se pensarmos nas culturas

nacionais, poderiam, inclusive, atuar como uma espécie de sucedâneo das fronteiras da nação.

Nesse sentido, parece interessante referir a acepção de cultura nacional de Santos

(2001: 25-6), segundo a qual esta seria uma construção dos Estados-Nação, que, ao longo do

século XIX, teriam tomado para si a tarefa de diferenciar a cultura interior às suas fronteiras

daquilo que lhe era exterior, homogeneizando essa cultura no interior do seu território, para

então extrapolar essa noção de território físico que define os limites dessa cultura nacional e

pensar o papel da língua nesse contexto.

Como afirmam Wodak e Boukala (2015: 258), cada vez mais, são a língua nacional, a

ideia de etnia e a cultura que operam como definidores desses limites e fronteiras, figurando

como elementos importantes nos debates sobre as políticas de identidade: “ ‘(b)order politics’

is part of national identity politics and is now increasingly defined by the national language

(“the mother tongue”), ethnicity and culture, thus transcending the political borders of the

nation state”.

Mas, além de portadoras de cultura e em consequência disso, as línguas são também

importantes ferramentas de transmissão e disseminação cultural. Por meio da língua, a cultura

nacional é transmitida de uma geração para outra, numa perspectiva temporal, e também

disseminada para além do espaço – físico ou virtual – que ocupa, num contexto em que os

sistemas de educação e ensino e as novas tecnologias da informação e de comunicação

desempenham papel relevante.

Dessa relação entre língua e cultura resulta uma aproximação entre os discursos que se

aplicam a uma ou outra: os discursos de valorização da diversidade cultural se confundem

com os discursos de valorização da diversidade linguística; os discursos de proteção de uma

dada cultura se confundem com os de proteção de uma dada língua. Aliás, em matéria de

língua e cultura, predominam os discursos de valorização e proteção ao lado da constante

presença de uma ameaça, como se fossem ambas – língua e cultura – cacterizadas por um

Page 84: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

66

permanente estado de fragilidade ou como se estivessem em situação de risco ou perigo

constante.

É bem verdade que muitas vezes tais questões estão associadas às línguas e culturas

minoritárias, mas nem sempre é assim. Veja-se, por exemplo, o caso dos EUA, onde se pode

encontrar discursos que consideram o castelhano como uma ameaça face à crescente

porcentagem de indivíduos de origem hispânica no total da população americana. Ainda, no

mesmo sentido, considere-se os discursos em tom acusatório sobre o desrespeito à língua-

padrão, entendido como forma de destruição do patrimônio cultural nacional, ou sobre as

tentativas de legislar sobre a língua e seu uso, estipulando multas a “erros” ou determinando a

abolição de “estrangeirismos”, entre outras iniciativas.

Também Hall analisa a relação entre língua, cultura e identidade por meio do discurso.

Segundo o autor, a nação consiste num sistema de representação cultural, no sentido de ser a

nação o enquadramento contra o qual as representações de cultura são construídas ou que

seleciona ou provê um conjunto de representações da cultura que são assim associadas a uma

identidade nacional específica. Com essa definição, o autor afasta as visões essencialistas das

identidades nacionais, como ilustrado abaixo:

(…) na verdade, as identidades nacionais não são coisas com as quais nascemos, mas são

formadas e transformadas no interior da representação. Nós só sabemos o que significa ser

“inglês” devido ao modo como a “inglesidade” [englishness] veio a ser representada – como

um conjunto de significados – pela cultura nacional inglesa. Segue-se que a nação não é

apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos – um sistema de representação

cultural (Hall, 2014: 30).

No interior desse sistema de representação, a cultura nacional é um discurso, ou

melhor, um “dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade”

(ibidem: 36), ou seja, um mecanismo de identificação ou de produção da identidade (e da

diferença) que atua apagando as diferenças entre os indivíduos que se imaginam como

membros de uma dada nação e realçando as diferenças entre tais indivíduos e aqueles

identificados como pertencentes a uma outra entidade nacional.

Uma outra perspectiva de análise da relação entre língua, cultura e identidade nacional

é evidenciada na construção de estereótipos, muitos deles presentes nos relatos de uso da

língua por famílias onde pais e filhos têm diferentes nacionalidades. Afirmar que um casal

namora em francês, briga em alemão e fala com seus filhos em inglês, por exemplo, não

parece suscitar grandes surpresas numa sociedade que partilha certos lugares-comuns, como a

Page 85: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

67

ideia de que o francês é uma língua romântica, o alemão é uma língua agressiva ou dura e o

inglês é uma língua de poder e sucesso internacional.

Nesse contexto, entende-se por estereótipo o conjunto de representações cristalizadas e

repetidas, partilhadas por um número ampliado de pessoas e utilizadas, de modo recorrente,

na construção e caracterização das identidades – seja de forma afirmativa, seja de forma

negativa. Embora nem sempre seja possível definir o conteúdo de tais estereótipos de modo

consensual, tal fato não impede nem restringe o seu uso nos discursos do cotidiano, tampouco

minimiza sua força e importância.

Os estereótipos constituem um forte recurso de construção de identidade e diferença e

desempenham papel de relevância na construção de uma certa imagem pública, tanto no que

diz respeito à autoimagem, como também no que diz respeito à imagem que se atribui ao

outro. Em geral, tais representações se valem de preconceitos de natureza diversa e

incorporam um grande potencial de violência, os quais, muitas vezes, passam despercebidos

em função da adoção, também recorrente, de um certo tom jocoso ou humorístico:

We could go on almost ad infinitum with such more or less serious anecdotal remarks about

nationality or the alleged mentality of nations. While this can be amusing to a certain extent,

we are also aware of how often nationalist attitudes and ethnic stereotypes articulated in

discourse accompany or even determine political decision-making, and we note with concern

the increase in discriminatory acts and exclusionary practices conducted in the name of

natinalism in many parts of Europe (Wodak et al, 1999: 1).

Retomando o exemplo do contexto familiar marcado pela pluralidade de identidades

nacionais, efetivas ou potenciais – cenário que tem vindo a se multiplicar nas sociedades

europeias atuais, onde se verifica um esforço no sentido de promover a mobilidade de

pessoas, ao menos no que diz respeito aos países membros da União Europeia –, pode-se

identificar outras questões referentes à língua, cultura e identidade. Preocupações como a

escolha do nome da criança para que seja facilmente pronunciável em línguas diferentes ou

do debate sobre a língua que será adotada nesse primeiro momento de socialização familiar

são cada vez mais frequentes. Como regra geral, a ideia de que a criança só tem a ganhar com

o aprendizado de línguas diferentes parece prevalecer, ou seja, é interpretada como uma mais-

valia.

Em resumo, nessas discussões sobre língua, identidade e cultura, parece haver um

esforço de acomodação das diferenças. Em outras palavras, procura-se promover a criação de

um espaço comum entre línguas diferentes, que não passa necessariamente pela adoção de

Page 86: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

68

uma única língua partilhada por todos, como uma espécie de língua franca ou de uso global

generalizado.

Língua, Multilinguismo e Identidade Nacional

Interessa agora refletir sobre o que acontece com a relação entre língua e identidade

nacional na Europa de hoje, ou melhor, sobre o que acontece com a percepção dessa relação.

A rigor, a afirmação peremptória de que a cada nação corresponde uma língua nacional (ou,

em sentido inverso, a existência de uma língua nacional conduzindo ao reconhecimento ou

constituição da nação), que ganhou força ao longo dos séculos XIX e primeira metade do XX,

há muito vem sendo desafiada.

Corroboram a afirmação acima os vários exemplos de nações únicas que se valem de

diferentes línguas nacionais (como a Suíça ou a Bélgica), assim como os exemplos de nações

distintas que partilham uma mesma língua nacional (como Portugal e o Brasil ou o Reino

Unido e os EUA). Tais situações, no entanto, não parecem abalar a fé generalizada na máxima

de uma língua, uma nação, ao menos nos discursos do cotidiano.

No contexto da União Europeia, no entanto, vigora a política ou ideologia do

multilinguismo, que consiste, grosso modo, na valorização da diversidade linguística

característica da Europa, indissociável da promoção do contato e do aprendizado entre as

diferentes línguas oficiais faladas nos países-membros. Traçando um paralelo com as

entidades nacionais tradicionais, interessa pensar qual seria o papel da língua hoje na

construção de uma identidade para a Europa.

Partindo-se, portanto, do pressuposto de que existe alguma afinidade entre o conceito

de identidade nacional e o de identidade europeia – e entendendo-se esta última como sendo

uma espécie de identidade supranacional, ou seja, da mesma natureza das identidades

nacionais, mas de um tipo distinto – importa refletir sobre a viabilidade de um projeto

identitário fundado no multilinguismo, isto é, na diversidade e variedade de línguas, em

contraste com a ideia de unidade linguística.

Seguindo tal raciocínio, a proposta de construção de uma identidade europeia em torno

do conceito do multilinguismo parece, a princípio, representar a negação da afirmação inicial

de uma língua, uma nação, no sentido de tentar promover um tipo de identidade nacional

(nesse caso, supranacional) sem a suposta unidade linguística equivalente. Mas tal leitura

Page 87: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

69

concorre com outros discursos inerentes ao multilinguismo, nem sempre explícitos, como

aqueles que giram em torno do respeito por e da proteção das diversas línguas nacionais.

Dizendo-se de outro modo, é possível identificar, entre tantos cenários possíveis e

concorrentes, um estado de tensão que se instaura entre os discursos de valorização da

diversidade linguística na Europa e os discursos de proteção da unidade – ou, melhor,

uniformidade – linguística de cada país-membro. Nessa perspectiva, a relação entre língua e

identidade é valorizada, assim com um certo nacionalismo linguístico, que não consegue se

afastar significativamente de visões essencialistas das identidades.

Os discursos construídos em torno da ideia de valorização e proteção da diversidade

linguística e cultural da Europa, assim como da necessidade de desenvolvimento de políticas e

programas de educação, ensino, mobilidade e conhecimento recíprocos a fim de combater

preconceitos e discriminação e promover a integração, estão presentes, por exemplo, no

Quadro Europeu Comum de Referência para as línguas que, ao descrever as “finalidades e os

objetivos da política linguística do Conselho da Europa” (QECR, 2001: 20), caracteriza a

diversidade como valor, mas também como obstáculo a ser superado, como exemplificado a

seguir:

- (…) o rico património que representa a diversidade linguística e cultural na Europa

constitui uma valiosa fonte comum que convém proteger e desenvolver, sendo necessários

esforços consideráveis no domínio da educação, de modo a que essa diversidade, em vez de

ser um obstáculo à comunicação, se torne numa fonte de enriquecimento e de compreensão

recíprocos (Destaques acrescentados.)

Esse mesmo discurso, porém, que valoriza a diversidade linguística, parece inspirar,

em alguma medida, a proteção – ou um cuidado que parece, muitas vezes, excessivo – das

chamadas línguas nacionais e, mais especificamente, da associação ou mesmo do vínculo

entre língua e nação. É nesse contexto que se fala na convivência entre as línguas ou mesmo

na importância da diversidade, sem se explorar, efetiva e necessariamente, as possibilidades

de construção de uma identidade não linguística ou fundada exatamente na existência de um

repertório ampliado e sempre em movimento de línguas.

Nesse sentido, a tentativa de construção de uma identidade nacional a partir do

multilinguismo parece representar, não a contradição, mas sim o seu contrário, isto é, a

afirmação e validação da relação entre língua e nação, uma vez que nos discursos do

multilinguismo essa relação parece permanecer intocada – mais do que isso, é, na maioria dos

casos, protegida e valorizada.

Page 88: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

70

Considerando o posicionamento acima, seria interessante refletir sobre os fundamentos

do raciocínio por trás dele – ou seja, analisar se tal respeito pela relação língua/nação resulta

do reconhecimento de sua validade e importância ou se consiste pura e simplesmente em

condição de viabilidade do projeto do multilinguismo na Europa, ao menos no momento atual

– mas tal desenvolvimento não é possível no âmbito desta pesquisa.

Assim, a diversidade linguística – e sua contrapartida: a diversidade cultural – surge

como mais-valia e elemento de identificação e diferenciação de um conceito de Europa, isto é,

de uma identidade europeia, sem promover mudanças significativas na relação língua/nação.

No entanto, muitos dos discursos atuais – do final do século XX até hoje – que relacionam

língua e identidade parecem se valer dos conceitos do passado, mais especificamente da

ideologia associado à ideia do nacionalismo linguístico, posição corroborada por trabalhos

recentes.

Blommaert e Verschueren (1992), por exemplo, em seu estudo sobre o papel

desempenhado pelas línguas no âmbito das ideologias nacionalistas europeias nos anos 90,

realizado a partir da análise de discursos da mídia, concluem que estas seguem sendo

utilizadas como elemento de identificação (e diferença) de um dado grupo, em geral associado

a uma suposta homogeneidade étnica e cultural. Em muitos casos, essas relações (entre língua

e identidade ou etnia e cultura) são tomadas como adquiridas, isto é, prescindem de

justificativas ou explicações.

No contexto acima delineado, o nacionalismo é entendido como sendo o resultado do

desenvolvimento natural das sociedades humanas, fundamentado numa identidade étnica e

linguística (ibidem: 373), no âmbito da qual a língua consiste num traço essencial e

indissociável dessa suposta origem ou identidade comum: “(i)n popular ideology (not to be

confused with public ideology) however, language tends to be much more fundamental, even

natural and inalienable, aspect of ethnicity or group identity in general” (ibidem: 375).

Os autores destacam a importância da homogeneidade, isto é, da ideia de que a vida

em sociedade requer a existência de semelhanças entre as pessoas, sendo que as diferenças

constituem um obstáculo a ser vencido ou mesmo um perigo a ser evitado. Nesse sentido, a

sociedade ideal é aquela que se fundamenta numa só língua, numa só origem, numa só

religião e numa só ideologia, e o nacionalismo é o movimento que promove o

desenvolvimento natural dessas sociedades ideais, onde a semelhança e a homogeneidade

representam o valor da pureza:

Page 89: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

71

In other words, the ideal model of society is mono-lingual, mono-ethnic, mono-religious,

mono-ideological. Nationalism, interpreted as the struggle to keep groups as ‘pure’ and

homogeneous as possible, is considered to be a positive attitude within the dogma of

homogeneism. Pluri-ethnic or pluri-lingual societies are seen as problem-prone, because they

require forms of state organization that run counter to the ‘natural’ characteristics of

groupings of people. (Blommaert e Verschueren, 1992: 362).

O papel da língua como recurso de construção de identidade e diferença, de união ou

divisão, faz dela uma espécie de “campo de batalha” (ibidem: 370) nos casos, por exemplo,

que envolvem diferentes grupos em meio a conflitos nacionalistas – em torno de identidades

nacionais afirmadas ou sufocadas, reconhecidas ou em busca de reconhecimento – ou

conflitos étnicos, que incluem, em muitos casos, confrontos entre as diferentes minorias que

coexistem no interior de um dado território nacional. A língua como característica distintiva

de grupos naturais torna-se, nesse contexto, objeto de opressão e discriminação, fonte ou

móvel de violência, injustiça e intolerância.

Ao refletir sobre os nacionalismos no período logo após a dissolução da URSS e a

reunificação alemã, Blommaert e Verschueren (1992) destacam a perspectiva da violência

associada aos nacionalismos, delineando um cenário pouco animador. Para os autores, as

transformações dos nacionalismos, longe de representarem uma mudança em sua natureza

violenta e conflituosa a favor da democracia e da pluralidade, representam simplesmente uma

mudança de escala. Agora não é mais o poder de opressão dos impérios contra os povos

dominados que está em causa, mas sim o poder de opressão e o racismo das nações contra os

grupos minoritários que delas fazem parte e que veem negados seus direitos à língua e cultura,

entre outros:

Nationalism has been a notorious cause of conflicts, and has let to dome of the worst events

in history. Also, the ‘liberated’ Moldavians and Kazakhs or Slovaks, as well as the liberated

East-Germans, seem to be building a track record of oppression and racism agains minorities.

Every minority has its own minorities. And for members of minority groups, be they

immigrants in Western-Europe, or Gagauz people in Moldavia, the ‘national’ government

may be as bad as the empire, because in both cases very little attention is given to their

linguistic, cultural or whatereve rights. Only the structural level of the debate has shifted.

Nothing has been achieved to guarantee more democracy in a pluralist sense. (Blommaert e

Verschueren, 1992: 373).

Considerando-se mais explicitamente o contexto do multilinguismo, interessa destacar

um estudo recente, realizado por Wodak e Boukala (2015: 268), que visa analisar a relação da

língua na construção do sentimento de pertença e das identidades nacionais na Europa da

atualidade. Sua principal conclusão é que, na Europa de hoje, embora o multinguismo vigore

Page 90: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

72

como princípio, implicando, em alguma medida, a valorização da diversidade, a defesa da

liberdade linguística e a promoção do aprendizado das línguas, este parece se restringir ao

conjunto de línguas oficiais da União Europeia, como citado abaixo:

Proficiency in the national languages of EU members is used as a strategy for the exclusion

of “strangers” and the enforcement of a (supra)national identity via border and body politics.

Hence, the multilngualism of the EU is limited to member states’ national languages, in spite

of the wording of official EU multilingualism policies.

O multilinguismo assumiria, assim, uma dupla face, configurando-se como estratégia

de inclusão e integração dentro do espaço territorial delimitado pela União Europeia e como

uma estratégia de exclusão de todos aqueles que não pertencem a tal grupo. Esse

entendimento parece contrariar as diretrizes gerais sobre as quais o conceito se assenta, já

mencionadas anteriormente.

Nesse estudo, Wodak e Boukala refletem sobre a relação de dependência, cada vez

mais acentuada, que é estabelecida entre o domínio de uma língua europeia e o acesso à

Europa, onde as políticas de língua adotadas pelos países membros, em acordo com as

recomendações gerais, configuram elemento relevante no processo de construção das

identidades nacionais individuais e coletivas. Para os autores, interessa perceber em que

medida as ideologias nacionalistas têm participado da configuração das políticas migratórias,

de aquisição de cidadania e da integração linguística por parte dos migrantes, num contexto

em que a língua parece se tornar uma importante barreira de acesso à legalidade (ibidem:

254).

Outra perspectiva que interessa ressaltar na análise dos resultados desse estudo

consiste na identificação de um discurso de contraposição entre o conceito de multilinguismo

e o de língua comum. Embora o multiliguismo seja percebido como um recurso de valor, é a

partilha de uma língua comum que é apontada como catalizador da integração e instrumento

de participação na sociedade: “Multilingualism is defined as a valuable resource; the

“commom language” (…), however, is promoted as the means to be able to participate in

society (Wodak and Boukala, 2015: 264).

A corroborar a afirmação acima, pode retomar-se a referência ao QERC (2001: 20),

citada anteriormente, que identifica a diversidade de línguas como um “obstáculo à

comunicação”, embora o faça no sentido de indicar um modo de vencê-lo, transformando essa

diversidade em “fonte de enriquecimento e de compreensão” mútuos por via do ensino e

aprendizagem das línguas, por exemplo.

Page 91: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

73

Em resumo, parece haver alguma tensão em torno do conceito do multilinguismo na

Europa de hoje, tensão na qual a questão das identidades nacionais ocupa posição central.

Essa tensão divide os indivíduos que têm como língua materna uma das línguas oficiais da

União Europeia daqueles que têm como língua materna uma língua não-europeia. Tal

afirmação é reveladora de uma distinção – da demarcação de uma diferença – entre os

membros da comunidade europeia: como se houvesse membros autênticos, isto é,

verdadeiramente europeus, e os não-autênticos, ou seja, os migrantes, mesmo que em

situação de legalidade, mesmo que cidadãos europeus.

Tomando de empréstimo a definição de multiculturalismo de Verkuyten para pensar o

multilinguismo num maior grau de abstração, pode-se entendê-lo como um pano de fundo –

uma ideologia, uma teoria, um conjunto de crenças – contra o qual são desenvolvidas

pollíticas e diretrizes para o ensino e a educação: “(m)ulticulturalism is considered, for

example, as an ideology, a lay theory, a set of normative beliefs, a framework for policies,

and a guideline for education and educational activities” (Verkuyten, 2007: 149).

Nesse contexto de coexistência e convivência da diversidade linguística, o indivíduo

pode agora construir sua identidade – individual e coletiva – a partir dessa pluralidade, e não

mais em torno da unidade linguística. Em outras palavras, nesse processo de construção

identitária, o conjunto de línguas que fazem parte do repertório do indivíduo num dado

momento é chamado a colaborar, como destaca Simpson (2008) ao analisar o contexto do

multilinguismo, mas na perspectiva africana. Segundo o autor, tal raciocínio se estende à

construção das identidades nacionais e do sentimento de pertença.

In terms of language-centred identity, it is perhaps natural do expect that the full range of

language(s) which make up an individual’s linguistic inventory has an influence on the

creation of self-image and the way that an individual sees him/herself as relating to others,

including the national population and the construct of the nation-state, and hence that

languages used for formal purposes also form part of speakers’ sense of national identity.

(Simpson, 2008: 24).

Por fim, um último tema que parece interessante explorar para melhor se entender a

relação entre língua, multilinguismo e identidade nacional refere-se ao papel das línguas como

demarcadoras da diferença: no contexto de coexistência de línguas diferentes num dado

espaço físico – neste caso, o da União Europeia – em que as fronteiras nacionais físicas

perdem paulatinamente definição e status, as línguas poderiam servir como sucedâneo destas,

instituindo novas geografias no interior da Europa.

Page 92: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

74

No desempenho dessa nova função, certas características das línguas são valorizadas:

exatamente aquelas que supostamente fazem das línguas uma nova versão das fronteiras.

Entre elas, destacam-se a sua visibilidade, que permite a identificação da diferença e parece

funcionar bastante bem como critério de inclusão/exclusão numa dada sociedade; sua

mobilidade, que faz com que ela melhor se adapte à fluidez e constante movimentação das

fronteiras; e sua permeabilidade, que responde melhor às necessidades de contato e interação

características do projeto europeu.

Mas o recurso à língua como estratégia de definição das fronteiras nacionais, no

cenário da União Europeia, em que as barreiras territoriais tornam-se cada vez mais

transparentes e líquidas, é posto em causa na análise da Europa contemporânea, num estudo

que parece indicar que a pluralidade e a multidirecionalidade dos fluxos de comunicação

estariam a relativizar o impacto das línguas como delimitadoras de um novo espaço público:

“the idea of serving and participating in creating a public sphere defined by national or

language boundaries has been losing its impact in CEE contexts where communication flows

have become more multidirectional an increasingly pluralistic” (Krzyzanowski and

Galasinska, 2009: 10).

A partir do conjunto de reflexões acima, pode-se afirmar, com alguma segurança, que

as línguas desempenham papel relevante na construção de uma identidade europeia

especialmente na perspectiva simbólica, que é aquela que aqui interessa. Mais do que as

línguas em si, são os discursos de valorização da diversidade linguística que parecem

caracterizar essa identidade e fundamentar as políticas de ensino e difusão de línguas, assim

como iniciativas no campo da cultura entre outros.

Nesse contexto, a valorização da diversidade linguística como fator de identidade não

parece alterar a relação de associação – ou mesmo o vínculo – entre língua e identidade

nacional estabelecido no interior de cada um dos Estados-membros. Essa afirmação é, em

parte, confirmada pelo esforço dos órgãos de administração da União Europeia em acomodar

as diferentes línguas nacionais ou assim reconhecidas em seu território, o que leva ao

reconhecimento de vinte e quatro línguas oficiais e à manutenção de uma estrutura de trabalho

que envolve aproximadamente 1750 linguistas e 3600 intérpretes, entre permanentes e

contaratados, além do pessoal de apoio.

Page 93: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Língua e identidade nacional

75

Síntese

Neste capítulo, procurou-se analisar a relação entre língua e identidade nacional.

Como ponto de partida, foi traçada uma breve retrospectiva histórica do papel desempenhado

pelas línguas na construção das identidades nacionais europeias, onde adquirem especial

relevância a partir da segunda metade do século XIX. A seguir, analisou-se a perspectiva da

língua como símbolo de uma certa identidade e os desdobramentos dessa ideia especialmente

a partir da segunda metade do século XX, entrelaçados com o desenvolvimento e a

popularização dos novos meios de comunicação de massas. Também a associação entre

cultura e língua e seu grande potencial no campo das construções de identidade de diversas

naturezas – neste caso, com destaque para as identidades nacionais – foi explorada nessa etapa

da reflexão. Por fim, considerou-se o impacto do multilinguismo para os nacionalismos

europeus deste início de século XXI.

Page 94: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 95: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Capítulo 3

A construção discursiva das identidades nacionais

O discurso

O discurso midiático

A análise crítica do discurso e a linguística sistêmico-funcional

A construção discursiva das identidades

Page 96: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 97: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Embora os estudos das identidades – entre elas as nacionais – possam ser

desenvolvidos a partir de bases bastante diferentes, a opção adotada nesta pesquisa já foi

explicitada em seu título: assume-se como pressuposto que as identidades resultam de um

processo de construção discursiva. Com essa afirmação, pretende-se afirmar o caráter

processual, dinâmico e em constante transformação das identidades, afastando-se, assim, as

abordagens essencialistas.

Neste capítulo será explicitado o enquadramento metodológico adotado: o da análise

crítica do discurso (ACD). A perspectiva da ACD, no entanto, engloba um amplo e

diversificado espectro de ferramentas e, por isso, precisa ser melhor especificada. Antes de

prosseguir, porém, é preciso ressaltar que esta tese situa-se no campo dos estudos de cultura e

não da análise crítica do discurso, servindo-se desta última, entretanto, para alcançar seus

objetivos.

Como ponto de partida, analisa-se o conceito de discurso, central à presente

abordagem, e seu papel na percepção daquilo que é chamado de realidade. Partindo-se do

pensamento de Foucault (1997), a relação entre discurso (ordens do discurso) e sociedade

(práticas sociais) é explorada na construção de um contexto mais amplo no âmbito do qual

este trabalho se situa.

Após delineada essa perspectiva mais genérica, reflete-se especificamente sobre o

discurso midiático, uma vez que o corpus de análise provém de textos veiculados nos jornais.

As especificidades de tais discursos são realçadas de forma a promover uma melhor

compreensão dos dados analisados. Essa discussão também contribui para uma avaliação da

relevância do corpus selecionado e do papel que tais discursos representam nas sociedades

modernas.

Explorada a ideia de discurso e de discurso midiático, passa-se à análise do discurso

propriamente dita, na vertente crítica. Não se trata aqui de apresentar a diversidade de

vertentes disponíveis – tarefa incompatível com o presente projeto – mas sim de definir os

Page 98: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

80

contornos da matriz teórico-metodológica a partir da qual a presente análise é definida. A

opção pela ACD fundamenta-se em seu forte cariz transdisciplinar e na sua versatilidade, que

garantem ao pesquisador a flexibilidade necessária para desenvolver sua análise ao mesmo

tempo em que suporta tais escolhas com seu sólido respaldo teórico e aplicado. A seguir,

identifica-se o viés específico que, a partir da matriz teórica, será adotado: o da Linguística

Sistêmico-Funcional (LSF).

Por fim, o conceito de construção discursiva das identidades nacionais, enquanto

objeto particular desta dissertação, é apresentado e analisado à luz das diferentes teorias e

posicionamentos que vêm sendo desenvolvidos nos últimos anos. A abordagem aqui adotada

é em parte devedora dos trabalhos de Wodak (Wodak et al, 1999) e Martin e Wodak (2003),

entre outros, e desenvolve-se a partir de análises quantitativas e qualitativas de dados,

realizadas no âmbito de um estudo de caso.

O objetivo deste capítulo é, portanto, identificar e apresentar os principais elementos

teóricos que guiarão este estudo e, mas especificamente, a análise de dados propriamente dita.

Destina-se, também, a descrever e caracterizar as metodologias adotadas e a justificar certas

escolhas que foram tomadas ao longo desta reflexão e que conduziram ao presente quadro

teórico-metodológico.

O Discurso

Nos anos 60, numerosos estudos e pesquisas no âmbito das ciências sociais viriam a

definir os contornos do movimento que ficou conhecido como “virada discursiva”. O marco

dessa mudança foi a publicação de um livro de ensaios filosóficos, editado por Richard Rorty,

em 1967, com o título The Linguistic Turn, cujo objetivo era promover a reflexão sobre as

drásticas mudanças no campo da filosofia associadas à linguagem, as quais defendiam, a

grosso modo, que as grandes questões filosóficas podiam ser solucionadas por via da

linguagem ou por meio de uma melhor compreensão do seu uso (Rorty, 1970: 3).

Essa ideia se faz presente numa série de teorias que estabelecem uma relação

intrínseca entre a linguagem e a vida em sociedade, entre elas as que se fundamentam na ideia

de construção discursiva da realidade, e que estão na base de muitos dos movimentos que

influenciaram e ainda influenciam o pensamento e a produção de conhecimento na Europa, e

Page 99: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

81

não só, como o pós-estruturalismo, o construtivismo e também o pós-modernismo, por

exemplo.

Adotar a perspectiva da construção da realidade, no entanto, não significa ignorar os

fatos, mas sim enquadrá-los num contexto de disputa por seus significados, assumindo a

existência de diferentes possibilidades; implica, ainda, suspender a ideia de

inequivocabilidade, autenticidade, inteireza, verdade, frequentemente associadas a eles.

Nessa concepção de realidade, nega-se a possibilidade de apreensão da existência

independente e indisputável de um fato, afirmando-se que este existe sempre em relação a

alguma coisa, numa referência à noção de contexto.

Também a teoria estruturalista partilha da ideia de construção. Segundo Potter (1997),

nessa tradição, a construção dos fatos – e, por inferência, da/s realidade/s – é o resultado de

disputas entre diferentes visões e representações de mundo, que atendem a interesses

específicos. Essas disputas são marcadas por relações de poder que se manifestam de diversas

formas. Nesses embates, o conceito de ideologia desempenha papel crucial. Para o autor, é a

ideologia, em suas diferentes estratégias de realização, que, em grande parte, sustenta as

relações de poder ao imprimir a certas relações sociais um caráter de necessidade,

naturalidade e atemporalidade:

(...) many researchers in the structuralist tradition have developed an explicitly critical concern

with fact construction: for them the point of looking at fact construction is to demonstrate the

way particular representations of the world are partial, related to interests, or work to obscure

the operation of power. Often the concern with fact construction comes from a broader concern

with questions of ideology, most prominently: in what ways can a set of social relations be

made to seem necessary, natural and timeless? (Potter, 1997: 69).

Como se depreende de tal afirmação, entende-se por ideologia o conjunto de verdades

partilhadas, isto é, de crenças que estruturam ou sustentam as estruturas da vida em sociedade

sem que as pessoas se apercebam delas. As ideologias moldam – e também toldam –

determinadas visões de mundo, constituindo-se, assim, em importante instrumento de

dominação e poder.

Ainda sobre o conceito de ideologia importa destacar que, embora há muito e

intensamente debatido, ele está longe de alcançar consenso. Para parte da doutrina, ele teria

perdido sua funcionalidade e deveria ser abandonado em função do seu caráter “sumamente

ambíguo e elusivo”, como informa Žižek (2010: 9). Para as teorias críticas e, em especial,

para a análise crítica do discurso, no entanto, a ideologia é uma noção central e essencial para

a compreensão dessa perspectiva crítica.

Page 100: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

82

Considerando-se o exposto até o momento, interessa ainda afirmar que, no âmbito

desta pesquisa, a ideologia é entendida como elemento intrínseco e, por isso mesmo,

indissociável, da vida social, e não como uma visão deturpada da realidade (Gouveia, 2001:

338-339), como defendem alguns, nem como prerrogativa única daqueles que detêm o poder

e o exercem contra os demais.

A noção de representação também é essencial para o entendimento dessa abordagem.

No viés construtivista, representar implica contruir significados (Hall, 2014). Nesse processo,

língua e cultura são conjugados para atribuir, transmitir e também modificar o sentido de

coisas, objetos, pessoas e eventos. Isso significa dizer que os significados não são inerentes às

coisas e, portanto, passíveis de serem descobertos, nem imutáveis ao longo do tempo-espaço.

Pelo contrário, pessoas diferentes, participantes de culturas distintas, vivendo em épocas

diversas constroem significados particulares.

Representar implica, também, seleção e escolha, e revela uma visão de mundo.

Representar implica olhar para algo ou alguém e identificar que elementos são significativos,

que elementos são dele indissociáveis ou que elementos são necessários e suficientes para

invocar novamente o ponto de partida no processo de representação. Representar implica,

portanto, interpretação, julgamento e valoração; implica trazer à tona certas características e

relegar outras ao pano de fundo, ou seja, implica, em alguma medida, transformação.

Nesse processo, as relações de poder se materializam no poder de representar, isto é,

de construir significados, de manter, modificar ou descartar certas representações em

detrimento ou a favor de outras; no poder de atribuir valor positivo a uma representação e

negativo à outra. Tal valor manifesta-se de formas diferentes: uma representação é melhor ou

pior do que outra, mais ou menos fidedigna, credível, natural, mais ou menos importante ou

relevante; é a única possível, não há alternativas a ela, é necessária ou inútil, correta ou

incorreta, completa ou parcial, etc.

Mais uma vez, o conceito de ideologia mostra-se relevante, agora para a compreensão

dos processos de representação ou, como afirma Hall, já mencionado acima, de construção de

significados. O papel da ideologia torna-se ainda mais evidente se considerarmos a definição

de Thompson (1990: 7) de ideologia como sendo a “construção de significados a serviço do

poder”, que opera a partir de estratégias distintas, como a da legitimação, dissimulação,

unificação, fragmentação e reificação (ibidem: 60). Žižek, por sua vez, define ideologia como

sendo a “matriz geradora que regula a relação entre o visível e o invisível, o imaginável e o

inimaginável, bem como as mudanças nessa relação” (Žižek, 2010: 7).

Page 101: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

83

Mas, independentemente da estratégia adotada na construção de diferentes

representações, é no discurso que elas se materializam. Essa ideia consiste num dos

fundamentos da perspectiva da construção social pela via discursiva (Hall, 1997: 15) e,

consequentemente, da construção discursiva das identidades, que será explorada ainda neste

capítulo. Tal posicionamento é em muito devedor da concepção de discurso proposta por

Foucault.

De acordo com Gouveia (2001: 337), o discurso, segundo Foucault, consiste nos

“modos, quase sempre linguísticos, mas não exclusivamente linguísticos, de organizar o

significado”. A partir desse conceito, Foucault (1997) desenvolve a noção de “ordem do

discurso”, estabelecendo forte relação entre discurso e prática social. Segundo o autor, as

instituições sociais estruturam-se – e são estruturadas – a partir de discursos. Não só criam

tais discursos – e são por eles criadas – como estabelecem critérios de aceitabilidade e valor.

O indivíduo, em sociedade, mais do que autor do seu próprio discurso, aprende a se valer

daqueles que correspondem aos seus interesses num dado contexto. É esse sistema de

saber/conhecimento que possibilita ao indivíduo – grupo ou instituição – o exercício do poder.

Retomando a associação entre discurso e representação, pode-se entender o discurso

como recurso de construção e expressão de representações sociais. O discurso, portanto,

constitui uma forma de exercício de poder. Tal poder se manifesta na possibilidade ou

capacidade de instituir discursos dominantes; de atribuir valor a um dado discurso e

desvalorizar outro; credibilizar ou descredibilizar; de oficializar ou marginalizar; de tomar o

discurso individual como coletivo; de sobrepô-lo aos demais; de naturalizar o discurso; de

torná-lo único e necessário, descartando qualquer alternativa como impossível ou inviável.

Há, assim, uma forte carga ideológica nos discursos.

Ainda sobre o conceito de discurso, Foucault destaca sua imbricação com a noção de

poder e o contexto de luta instituído em torno e por causa dele, caracterizando-o como um

bem, ou seja, como um objeto escasso e de valor que estipula e atua segundo regras próprias e

que suscita o interesse e a cobiça dos diferentes atores que transitam pelo tecido social, com

ambições de natureza, inclusive, política:

(…) o discurso (…) aparece como um bem – finito, limitado, desejável, útil – que tem as suas

regras de aparecimento, mas também as suas condições de apropriação e de utilização; um bem

que põe por conseguinte, a partir da sua própria existência (e não simplesmente nas suas

“aplicações práticas”), a questão do poder; um bem que é, por natureza, objecto de uma luta, e

de uma luta política. (Foucault, 2005: 163).

Page 102: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

84

A partir da definição de Foucault, mas de forma alargada, entende-se por discurso o

conjunto de recursos linguísticos, mas não só, dos quais o indivíduo se vale para (1) construir

e expressar ideias, conceitos e pensamentos; (2) representar diferentes visões de mundo e de

realidade; (3) assumir posições para si e relacionar-se com os outros; e (4) atuar em

sociedade. Nessa perspectiva, ressalta-se a relevância do papel desempenhado pelo discurso

no processo de construção social e de atribuição de significado à realidade.

Afirmar a relação de interdependência entre discurso e prática social é condição

necessária, se bem que embora não suficiente, para descrever a matriz teórico-metodológica

aqui adotada. A ideia de interdependência, em sentido amplo, pode englobar diferentes

relações. Para melhor explorá-las, pode-se estabelecer um paralelo com as ideias de tradução,

representação e construção apenas como recurso explanatório e, portanto, sem o intuito e a

pretensão de caracterizar uma teoria específica.

É possível pensar a relação entre discurso e prática social como sendo semelhante à

relação de tradução, aqui considerada, em sentido estrito, na perspectiva de transposição de

um texto produzido num idioma para outro. Tal comparação implica uma ideia de paridade,

ou seja, de espelhamento entre discurso e prática social, como se fosse possível traduzir

discurso em prática social e vice-versa. Nesse sentido, discurso e prática seriam

materializações de uma mesma essência, não implicando necessariamente uma real

transformação desta. Essa perspectiva pressupõe também uma relação temporal onde algo

deve ser primeiro criado ou constituído, para, depois, ser traduzido, num processo que se

realizaria ao menos em duas etapas distintas e sucessivas.

A relação de representação, por outro lado, implica maior grau de mudança, quer pelo

processo de seleção e descarte que lhe é inerente, quer pelas demais estratégias de

representação que podem incluir, por exemplo, substituições de elementos e comparações

diversas. Aqui também uma relação temporal se interpõe no sentido de que algo ou alguém

deve existir a priori para então ser representado. Em comparação com a relação de tradução,

portanto, a relação de representação seria caracterizada por um maior grau de transformação

na relação entre prática e discurso, mantendo-se a perspectiva da sucessão ao longo do tempo.

Por fim, a relação de construção implica criação – não incondicionada, uma vez que

toda a criação se dá num certo contexto – e permite, portanto, a transformação. Ao mesmo

tempo, prescinde de uma perspectiva temporal, ou seja, da existência anterior de algo, da ideia

de sucedibilidade. É a que comporta maior abrangência de significados e a que melhor

acomoda a noção de interdependência entre discurso e prática social, na perspectiva adotada

Page 103: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

85

nesta pesquisa, permitindo movimentos simultâneos de construir e ser construído, estruturar e

ser estruturado.

Partindo-se do pressuposto acima apresentado, consistente com o viés do

construtivismo social, pode-se também explorar o seu inverso, isto é, a decomposição desse

processo de construção como estratégia de acesso e possiblidade de reflexão sobre o mesmo.

Assim, se a realidade – ou a apreensão dela – é o resultado de um processo de construção,

desfazer tal processo, ou seja, desconstruí-lo, pode revelar os valores, as crenças, as

ideologias e as relações de poder que o informa. Se os discursos constróem e são construídos

no âmbito de práticas sociais, desconstruí-los revela os elementos que os informam e vice-

versa.

A desconstrução, nesse contexto, consiste no processo de decomposição que revela os

diferentes elementos constituintes de uma dada representação, assim como os diferentes

modos e graus de interrelação entre eles. Mais do que isso, uma vez negada a ideia de verdade

pela afirmação do seu caráter ilusório, segundo afirma Christopher Norris (Potter, 1997: 80), a

desconstrução surge como um importante meio de acesso às diferentes realidades sociais –

visões de mundo partilhadas ou disputadas – que vivenciamos. Dessa ideia deriva a

importância da análise do discurso ou das práticas discursivas.

As práticas discursivas têm grandes efeitos ideológicos. Pelo modo como representam a

realidade e posicionam os sujeitos podem ajudar a produzir e a reproduzir relações de poder

desiguais. A associação das questões de poder e de ideologia com o discurso é tornada evidente

pelo carácter de princípio estruturante da realidade que a este está associado: enquanto prática

social, o discurso estabelece uma relação dialéctica com a estrutura social, na medida em que

se afirma como um dos seus princípios estruturadores, ao mesmo tempo que é por ela

estruturado e condicionado. (Gouveia, 2001: 340).

Nas sociedades democráticas de hoje, o poder se manifesta, mais do que pelo exercício

da força ou do chamado poder coercitivo do Estado, pela capacidade de produzir consensos.

Dessa constatação, deriva, em parte, o conceito de poder como hegemonia, proposto por

Gramsci, que revela o embate ideológico que atravessa e informa as práticas discursivas,

caracterizadas por disputas “pela instauração, sustentação, universalização de discursos

particulares” (Resende & Ramalho, 2011: 25).

Nesse sentido, analisar e compreender as diversas relações que são construídas entre

poder e discurso afigura-se como essencial para o melhor entendimento das sociedades atuais.

Os discursos, no entanto, não são simplesmente formas de instrumentalização ou operação das

Page 104: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

86

disputas de poder, mas sim configuram-se em objeto dessa disputa e, em última instância, do

poder propriamente dito, conforme destaca Foucault:

Nisto nada há de surpreendente: uma vez que o discurso – como a psicanálise nos mostrou –

não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é também aquilo que é objecto

do desejo; e uma vez que – e isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é

simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo qual, e

com o qual se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. (Foucault, 1997: 10-11).

Nessa reflexão sobre discurso e poder – e mais precisamente sobre o poder de

construção de realidades – importa ainda destacar o conceito de poder simbólico,

desenvolvido por Bourdieu (1999: 166). Para o autor, o poder simbólico consiste exatamente

nesse poder de construção da realidade, que não se destaca pela estratégia da força, mas sim

pelo seu potencial de naturalização das escolhas, o que não significa que seja menos violento

do que a força bruta. Pelo contrário, tem algo de pervasivo e abstrato, que apaga as suas

origens e o envolve numa névoa que confunde e dificulta a resistência e o combate. Bourdieu

define o poder simbólico como sendo o poder que só pode ser exercido com a cumplicidade

de todos: de quem não quer saber que está sujeito a ele e de quem não quer saber que

efetivamente o exerce (1999: 164).

Como corolário das afirmações acima, pode-se dizer que os discursos particulares

utilizados por grupos sociais detentores de poder – as elites econômicas, sociais e intelectuais,

por exemplo – são também, e não por acaso, discursos de poder. São discursos de poder

porque característicos da classe dominante e são discursos da classe dominante porque

reconhecidos como discursos de poder, num movimento circular que se retroalimenta.

O conjunto de discursos característicos de um certo campo social, simultaneamente

configurados por e configuradores de um dado gênero de poder, em alguma medida,

reafirmam a divisão desigual de bens e recursos, pré-configurando os lugares, isto é, as

posições discursivas que o indivíduo pode ocupar na sociedade e o grau de mobilidade ao

qual ele pode ter acesso.

O discurso jurídico, por exemplo, ao valorizar construções gramaticais rebuscadas,

citações em latim e a utilização de jargões técnicos, entre outros, torna-se incompreensível

para todos aqueles que não tenham aprendido a se movimentar na esfera do direito e que,

portanto, não dominem seus discursos, representando, em muitos casos, obstáculo de acesso à

justiça, como muitas campanhas pela igualdade de direitos têm destacado.

Em resumo, na perspectiva da construção discursiva da realidade, reconhece-se a

existência de uma relação intrínseca entre discurso e prática social, marcada por disputas

Page 105: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

87

ideológicas e de poder entre outras. Tais disputas estruturam e dão forma ao tecido social –

sempre em transformação e renovação – influenciando ou mesmo, em alguns casos,

condicionando diferentes formas de interação social.

O discurso midiático

O papel da mídia nas sociedades modernas tem sido objeto de debate, especialmente a

partir do início do século XX, com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massas.

A popularização da rádio, entre os anos 20 e 30, e da televisão, entre os anos 50 e 60, marca

momentos decisivos nesse processo, com a ampliação das audiências e o desenvolvimento

posterior de uma série de teorias que, em geral, destacam seu poder (McQuail, 2003: 423-

429).

A mídia ocupa também papel de destaque nos estudos sobre a modernidade, muito em

função da relevância do desenvolvimento dos meios de comunicação de massas para os

chamados processos de globalização e sua análise e para a modificação e transformação das

relações econômicas, políticas, sociais e culturais que caracterizam o momento atual. Tais

transformações englobam uma série de mudanças que afetam também, mas não só, o próprio

conceito de Estado-Nação e seus papéis, como, por exemplo, alterações ligadas “ao

desmantelamento das fronteiras; à diminuição da soberania dos Estados nacionais com a

criação das grandes entidades transnacionais; à livre circulação de bens e de capitais; à

descrença nas grandes narrativas”, como ilustra Fiorin (2013: 15).

Para Thompson (1995: 3), como já referido no capítulo anterior, a mídia é um dos

elementos constitutivos da ideia de modernidade, configurando muitas das instituições e dos

modos de vida que lhe são inerentes. Desempenha, portanto, papel estruturante das novas

realidades sociais que se afirmam e são, ao mesmo tempo, estruturadas por elas. Nesse

sentido, a literacia midiática torna-se imprescindível para a vida moderna.

Para o autor, mais do que recurso configurador das intituições da modernidade, a

mídia institui e define novas formas de ação e interação no mundo social e novos modos de

relacionamento intra e interpessoal (Thompson, 1995: 4). Nesse contexto, a perspectiva da

transformação da relação espaço-tempo talvez seja um bom exemplo do alcance de tais

mudanças. Como afirma Giddens (2002), na modernidade, não mais tempo e espaço se

Page 106: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

88

definem reciprocamente, sendo possível pensar num espaço sem tempo e num tempo sem

espaço.

Também a centralidade da comunicação para o capitalismo moderno reforça o papel

da mídia nas sociedades atuais, entrelaçando poder econômico e poder simbólico. A mídia,

como importante recurso de produção e transmissão de sistemas simbólicos, figura, assim,

como fonte de poder, mas também como meio de acesso a ele e, sobretudo, como palco da

luta pelo poder. Essas relações caracterizam as chamadas sociedades da informação (cf.

Hassan, 2011), ou seja, sociedades organizadas em torno de sistemas de produção e circulação

de informação, como esclarecem Resende e Ramalho:

A importância da linguagem, nessas mudanças, está em sua centralidade no novo modo de

produção capitalista, isto é, baseado no conhecimento, na informação, pressupõe uma

economia baseada no discurso. O novo capitalismo depende de tecnologias de comunicação

(…). Como a mídia tem papel fundamental nesse processo, hoje as representações estão, sem

precedentes, cada vez mais associadas aos meios de comunicação. (Resende & Ramalho, 2011:

55)

Na sociedade da informação, como afirma Castells (2009), o poder é o “poder da

comunicação”, ressaltando assim o papel das redes de comunicação na instituição,

configuração e gestão das relações de poder numa sociedade onde os sistemas simbólicos se

multiplicam e ganham cada vez mais relevância. Nessa nova sociedade, agora organizada em

torno de redes e fluxos, o poder se materializa no poder de estabelecer e modificar redes,

atribuir valor a elas, destruí-las, etc.

A mídia – assim como os órgãos políticos, as principais instituições econômicas e as

entidades públicas – têm o poder de definir discursos e de permitir ou não o acesso de outros

interlocutores a esse processo (Krzyzanowski e Galasinska, 2009: 6). Ela atua como produtora

e reprodutora de ideologias, crenças e histórias, e exerce grande influência nas sociedades

modernas em todas as suas dimensões (Martin e Wodak, 2003: 11).

Em outras palavras, o poder da mídia se concretiza em sua capacidade de criar,

influenciar e disseminar crenças, valores, relações sociais e identidades (Fairclough, 1995: 2),

ao veicular determinadas representações em detrimento de outras, definindo e sendo definida

por práticas discursivas (ibidem: 50). Esse posicionamento contraria a ideia de que a mídia

atuaria como uma espécie de espelho da realidade (McQuail, 2003), atuando de forma

imparcial e objetiva, numa busca incessante pela informação fidedigna e pela verdade, que

tem suas origens no século XIX, mas que ainda encontra alguma repercussão – pelo menos

numa perspectiva deontológica, isto é, do “dever ser”. Pelo contrário, a mídia constrói versões

Page 107: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

89

alternativas dessas realidades, sujeitas aos interesses específicos, às relações de poder e aos

objetivos daqueles que participam de sua produção (Fairclough, 1995: 103-104).

Construir versões alternativas da realidade, no entanto, não significa distorcê-la, como

bem alerta Luhmann (2000:7). Para o autor, afirmar que a mídia distorce a realidade com suas

representações seria reconhecer a existência apriorística e essencialista dessa realidade, a qual

ele contesta. Para si, a questão que se coloca, portanto, não é a de se saber se a mídia constrói

a realidade, mas sim como a constrói.

Não se pretende, com essa afirmação, atribuir à mídia superpoderes, uma vez que o

seu papel na produção da notícia não é isento de debate e controvérsias, mas sim destacar sua

relevância como elemento estruturante do e estruturado pelo tecido social. Nesse sentido, vale

a pena relembrar a reflexão de Stuart Hall (2009) e outros sobre a perspectiva social da

produção da notícia, onde se destacam os papéis dos definidores primários e dos definidores

secundários nesse processo.

Segundo os autores, a mídia faria parte do segundo grupo, deixando a posição de

definidor primário para as diferentes fontes de informação e os detentores de poder, sejam

estes pessoas ou instituições. A notícia seria, portanto, produzida como resultado de um

processo em que definidores primários e secundários desempenham seus papéis, não sendo

nem pura e simplesmente uma “criação” da mídia, nem mera afirmação e repetição da

ideologia da “classes dominantes”:

The media, then, do not simply ‘create’ the news; nor do they simply tansmit the ideology of

the ‘ruling class’ in a conspiratorial fashion. Indeed, we have suggested that, in a critical sense,

the media are frequently not the ‘primary definers’ of news events at all; but their structured

relationship to power has the effect of making them play a crucial but secondary role in

reproducing the definitions of those who have privileged access, as of right, to the media as

‘accredited sources’. From this point of view, in the moment of news production, the media

stand in a position of structured subordination to the primary definers. (Hall et al, 2009: 653).

Não é objeto deste estudo, no entanto, aprofundar essa discussão. Importa apenas

destacar que a mídia desempenha papel relevante na construção da realidade e da vida em

sociedade. Segundo Fairclough (1995:52), ela constitui um eficaz instrumento de medida da

mudança sociocultural, uma vez que esta se manifesta na diversidade e na transformação das

práticas discursivas da mídia. Nessa perspectiva, a análise dos discursos midiáticos – e sua

imbricação no campo sociocultural – revela-se importante para a compreensão de diferentes

visões de mundo nesta modernidade tardia.

Page 108: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

90

Também questões relacionadas à cultura ganham cada vez mais destaque no debate

social, sendo seu potencial de transformação reconhecido e valorizado. Tal destaque à cultura

estende-se às noções de língua e discurso, indissociáveis da ideia de cultura. Nesse cenário, o

efetivo acesso à cidadania e ao conjunto de direitos (e deveres) que ele implica passa a ser

mediado por cultura, discurso e língua, configurando um universo que inclui também, como

ressalta Fairclough, o discurso da mídia, numa referência que faz lembrar mais uma vez a

importância da literacia midiática, já mencionada anteriormente:

The media, and media discourse, are clearly a powerful presence in contemporary social life,

particularly since it is a feature of late modernity that cultural facets of society are increasingly

salient in the social order and social change. If culture is becoming more salient, by the same

token so too are language and discourse. It follows that it is becoming essential for effective

citizenship that people should be critically aware of culture, discourse and language, including

the discourse and language of the media. (Fairclough, 1995: 201).

Uma vez que o corpus de análise desta pesquisa consiste em textos publicados em

jornais, interessa destacar duas características centrais dos mesmos: seu caráter público e sua

pretensão de acessibilidade. Tais características, embora distintas, estão interrelacionadas e

orientam parte significativa do processo de produção e consumo de notícias,

independentemente do perfil editorial do veículo de publicação.

O caráter público aplica-se ao seu conteúdo, que deve girar em torno de temas de

interesse público, ou seja, de questões pertinentes à chamada esfera pública em contraposição

ao conceito de espaço privado – distinção que se torna cada vez mais difícil de elaborar no

contexto da modernidade tardia (cf. Innerarity, 2006), mas que não será discutida no âmbito

deste estudo. Também a forma como tal conteúdo é produzido e reproduzido assume o caráter

público, isto é, resulta da participação dos diferentes atores que se movimentam no espaço

público. Daí a relevância do discurso midiático como meio de acesso aos discursos que

circulam e dão forma a esses espaços, discussão já, em parte, desenvolvida no capítulo

anterior.

A questão da acessibilidade refere-se tanto ao registro jornalístico em si mesmo quanto

à disponibilidade material do jornal. O registro jornalístico, no que diz respeito à linguagem, é

– ou, ao menos, pretende ser – acessível à maior parte dos leitores. Valoriza-se, portanto, o

discurso direto e conciso, claro e simples. Ao mesmo tempo, por se tratar de um meio de

comunicação, cuja distribuição é central para seu sucesso, também a questão da acessibilidade

física é contemplada.

Page 109: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

91

Tal caráter público e de acessibilidade contribui para a posição de destaque ocupada

pela mídia no tocante à construção da chamada opinião pública. Os jornais participam

ativamente do processo de formação de opinião, quer ao produzir e divulgar notícias e

informações, quer ao atuar como plataforma e arena de debate, divulgando opiniões – as suas

e as de outras pessoas, grupos ou instituições. Nesse contexto, os artigos opinativos ganham

destaque, não por serem os únicos elementos a cumprirem essa função – certamente não o são

–, mas sim por expressa e explicitamente a assumirem.

Segundo Habermas (Glyn et al, 1999: 32-33), o conceito de opinião pública varia de

uma época para outra, estando sempre entrelaçado, no entanto, com a ideia de “esfera

pública” – é sempre fluido e contingente, variando seus significados em função do uso que lhe

é dado. No âmbito desta discussão, entende-se opinião pública como consenso ou, mais

especificamente, como o conjunto de discursos em torno do qual se obtém algum grau de

concordância, mesmo que esta seja – e em geral é – momentânea, frágil e cambiante. Não

significa a opinião da maioria, mas a posição da maioria que se faz ouvir. A opinião pública

representa, assim, o conjunto de discursos contra os quais os demais serão medidos e

confrontados, ressaltando-se que o seu conteúdo não está isento de disputas nem pode ser

claramente determinado.

Embora não haja consenso sobre a definição do conceito de opinião pública,

dificilmente sua importância é contestada no âmbito da relação de associação entre

democracia, liberdade de imprensa e opinião pública. Nesse sentido, a opinião pública, mais

do que o ato de ouvir e ser ouvido, engloba também o recurso ao fazer-se ouvir, como

garantia fundamental do indivíduo numa sociedade democrática, cabendo à mídia o

importante papel de mediação e de expressão dessa liberdade.

Ainda no que diz respeito a essa discussão, importa destacar a figura dos formadores

de opinião ou influenciadores. Num sentido amplo, são aqueles cuja opinião exerce maior

influência sobre os demais em função de sua posição na sociedade – detém um conhecimento

maior sobre o tema (ou assim é percebido), ocupam uma posição de destaque na comunidade

(o padre, o acadêmico, o líder empresarial, etc.) ou detém espaço privilegiado nos meios de

comunicação (colunista, blogueiro, editorialista, etc.). Em geral, os chamados influenciadores

atuam como se fossem os tradutores ou intérpretes do conteúdo veiculado pela mídia para um

público mais abrangente (Abercrombie e Longhurst, 2007: 184).

Em suma, numa tentativa de sistematizar a discussão desenvolvida até aqui, importa

ressaltar que, embora não faltem alertas para o caráter irremediavelmente subjetivo da notícia,

apesar das inúmeras tentativas de afirmação de sua imparcialidade e objetividade (White,

Page 110: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

92

2001: 61), a opção de análise de textos da mídia, escolhida nesta pesquisa, recaiu

especificamente sobre textos opinativos, nos quais tal subjetividade é assumida logo à partida,

afastando-se, assim, qualquer pretensão de isenção.

Nesse contexto, entende-se que os artigos opinativos veiculam as ideias e posições dos

seus respectivos autores, que são, em geral, identificados como ‘formadores de opinião’, ou

seja, pessoas que, pela sua posição ou status na sociedade – cargos que ocupam, experiência

vivida, conhecimento especializado, imagem pública, etc. –, exercem influência e atuam

como porta-vozes das diferentes correntes que marcam o debate público.

De modo geral, a análise dos discursos veiculados nos artigos de opinião permite a

construção de uma visão aproximada do debate social, das diferentes vertentes e correntes de

pensamento que circulam nos cafés, nas universidades, no governo, nas ruas, etc. Sintetizam e

representam, em alguma medida, diferentes argumentos, ao mesmo tempo em que municiam

– alimentam e se retroalimentam de – atuais e novos intervenientes. Na maioria das vezes,

esses textos se entrelaçam, ora para reforçar uma posição, ora para contradizê-la. É do

conjunto desses fragmentos e recortes que se pretende construir possíveis imagens ou visões

do conjunto.

A análise crítica do discurso e a linguística sistêmico-funcional

A premissa inicial da análise crítica do discurso (ACD) é de que existe uma relação

intrínseca entre discurso e prática social. O discurso constitui um recurso para a apreensão do

mundo e para a ação e interação nele. Nesse sentido, o discurso consiste numa estratégia de

mediação social essencial, embora não única, da qual o indivíduo se vale para viver em

sociedade.

Retomando o conceito de ordem do discurso desenvolvido por Foucault e já

mencionado anteriormente, as instituições sociais instituem (e são instituídas por) um

conjunto de práticas discursivas que informam e conformam sua atuação e sentido. Conhecer

e operar no âmbito de tais práticas – ou ordens do discurso – é condição sine qua non de

acesso e exercício de poder.

Mais do que dois elementos distintos, as ordens do discurso e as práticas sociais são

duas faces de um mesmo objeto, duas perspectivas de abordagem de uma mesma coisa, ou

seja, são indissociáveis. Dizendo de outro modo, o texto, como materialização de uma prática

Page 111: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

93

discursiva, carrega em si mesmo as condições que lhe são exteriores. Como afirma Gouveia

(2009), a partir de um dado contexto pode-se prever os diferentes discursos que serão

mobilizados, assim como, a partir de tais discursos, pode-se apreender o contexto no qual

estes se desenvolvem:

(…) os significados que podemos querer fazer são fortemente dependentes de aspectos

contextuais, para além de que uma parte importante quer da nossa capacidade quer da nossa

habilidade linguísticas é o conhecimento que temos de como as coisas são típica ou

obrigatoriamente ditas em certos contextos. Ou seja, a relação entre a língua e os seus

contextos de uso, ou dito de outra forma, a relação entre um texto e o seu contexto, é de tal

forma motivada que, a partir de um contexto, será possível prever os significados que serão

activados e as características linguísticas potenciais mais previsíveis para as codificar em texto.

Da mesma forma, dado um texto, será possível deduzir o contexto em que o mesmo foi

produzido, porquanto as características linguísticas seleccionadas num texto codificarão

dimensões contextuais, tanto do contexto de produção imediato, situacional – quem diz o quê a

quem, por exemplo -, como do contexto mais geral, cultural – que tarefa está o texto a

desempenhar na cultura. (Gouveia, 2009: 25-26).

As práticas discursivas são, portanto, formas de mediação entre os campos textual e

social, sendo os discursos construídos e constrangidos por um dado contexto social e cultural,

o que não implica negar a natureza cíclica e histórica dos mesmos. Como Krzyzanowski e

Galasinska (2009: 6) afirmam, a apropriação e reapropriação de discursos é recorrente na

prática discursiva, alcançando tanto discursos anteriores como posteriores, num esforço

constante de recontextualização.

Também Fairclough afirma a interdependência entre as práticas discursivas e o

contexto sociocultural. Para o autor, tais práticas atuam como mediadoras entre texto e

contexto, estabelecendo entre ambos um vínculo. O contexto sociocultural, ao condicionar o

modo como os textos são produzidos e consumidos, atua também sobre as práticas discursivas

no interior das quais os textos são concretizados:

(…): I see discourse practice as mediating between the textual and the social and cultural,

between text and sociocultural practice, in the sense that the link between the sociocultural and

the textual is an indirect one, made by way of discourse practice: properties of sociocultural

practice shape texts, but by way of shaping the nature of the discourse practice, i.e. the ways in

which texts are produced and consumed, which is realized in features of texts. (Fairclough,

1995: 59-60).

Esse entendimento amplia o universo de significação do texto, extrapolando a noção

de autoria – isto é, a ideia de que o texto é essencialmente o resultado de um processo criativo

original e independente, levado a cabo pelo autor – e de intencionalidade – isto é, a noção de

Page 112: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

94

que os efeitos produzidos pelo texto resultam exclusivamente da intenção do autor ou, ao

menos, da sua ação (mesmo que não intencional).

Em parte, a perspectiva crítica da análise do discurso – que está longe de alcançar

consenso entre seus diversos praticantes – implica a ideia acima. Martin e Wodak (2003: 6),

por exemplo, entendem o conteúdo crítico da análise do discurso como recurso de

afastamento em relação aos dados, de reinserção (recuperação ou ligação) do campo textual

no social, de desmascaramento das operações ideológicas e de posições políticas e de

autorreflexão do analista em relação ao seu papel e ao objeto de análise. Para eles, o texto, via

de regra, não é unicamente obra do seu autor, mas sim local de disputa de diferentes

discursos, ideologias e posições, onde são negociadas as diferenças.

Uma vez reconhecida a controvérsia, importa esclarecer o entendimento que foi aqui

adotado. No âmbito desta pesquisa, atribui-se dois significados preponderantes ao conteúdo

crítico da análise do discurso: um deles está associado explicitamente a questões de poder,

enquanto o outro é dirigido à produção de significados – ambas as perspectivas serão

explicitadas a seguir.

Na primeira abordagem, a análise crítica do discurso busca revelar as relações de

poder que regulam as práticas discursivas/sociais, promovendo a mudança, ou seja, busca

trazer à tona as relações de poder e, assim, criar a possibilidade de mudança. Não se trata de

um poder único, nem de uma divisão dicotômica entre opressores e oprimidos, mas sim de um

poder difuso, que se manifesta das mais diversas formas.

Esse potencial de mudança é também destacado por Krzyzanowski e Galasinska

(2009: 12), que entendem os discursos como recursos de produção e reprodução da sociedade

e da cultura, atuando, portanto, necessariamente em sua contínua transformação e na

promoção da mudança, quer no âmbito cultural, quer no da política, sendo tais atividades

interdependentes.

Na segunda abordagem, a análise crítica do discurso pretende revelar o conteúdo

implícito, invisível, escondido no texto de forma intencional e não intencional. Todo texto é

composto por aquilo que diz, aquilo que pressupõe, aquilo que carrega e transmite sem o

saber e aquilo que deixa de fora, ou seja, como afirma Fairclough (1995: 108), citado a seguir,

pelo não dito, pelo dito e pelo pressuposto:

Any text is a combination of explicit meanings – what is actually ‘said’ – and implicit

meanings – what is left ‘unsaid’ but taken as given, as presupposed. Presuppositions anchor the

new in the old, the unknown in the known, the contentious in the commonsensical. A text’s

pressupositions are important in the way in which it positions its readers or viewers or

Page 113: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

95

listeners: how a text positions you is very much a matter of the common-sense assumptions it

atributes to you. (Fairclough, 1995: 106-107).

Para o autor, a ACD deve operar em três dimensões: na dimensão do texto, na

dimensão da prática discursiva e na dimensão sociocultural (Fairclough, 1997: 9). Em outras

palavras, a análise do discurso deve abarcar tanto forma como conteúdo, pois são ambos

indissociáveis, ou seja, além das características linguísticas do texto, importa analisar seus

modos de produção, consumo e distribuição, assim como o contexto sociocultural de fundo.

Tal análise não prescinde da reflexão sobre as relações de poder que se estabelecem

em torno das práticas discursivas. Nessa perspectiva, a noção de poder é ampliada, passando a

indicar não só as assimetrias entre os participantes no discurso como suas respectivas

capacidades para exercer controlo sobre os modos de produção, consumo e distribuição do

mesmo, num dado contexto (Fairclough, 1997: 1).

O posicionamento de Fairclough acomoda um grande número de possibilidades de

análise – bem exemplificadas por Ramalho & Resende (2011), na citação abaixo –

relacionadas com a materialização de discursos em textos. Essa abertura proposta por

Fairclough e a amplitude e liberdade de escolha a ela associada informam, em algum grau, as

análises que serão apresentadas nesta pesquisa.

(…) a representação de grupos específicos de atores sociais em textos de ampla circulação; a

recontextualização de discursos de um campo a outro; as influências de discursos específicos

sobre construções identitárias e sobre modos de ação; a representação de aspectos específicos

do mundo por meio de discursos particulares; os modos como grupos específicos de atores

sociais atualizam discursos particulares na representaça de suas experiências, etc. (Ramalho &

Resende, 2011: 58).

A análise crítica do discurso engloba numerosas e diversificadas perspectivas de

análise, as quais nem sempre podem ser conciliadas (Martin e Wodak, 2003: 5). Essa grande

versatilidade da ACD representa uma vantagem e, ao mesmo tempo, um desafio. Por um lado,

representa uma vantagem ao permitir diferentes abordagens e, assim, um certo refinamento na

adequação do meio de análise ao corpus específico, associado à persecução de um conjunto

de objetivos. Por outro lado, representa um desafio pelo risco desse ecletismo induzir o

analista a uma “contradição epistemológica”. Para evitar tal risco, como alertam Weiss e

Wodak (2005: 124), é preciso justificar e fundamentar cada escolha de análise adotada.

Entre as ferramentas disponíveis, a opção de pesquisa adotada neste trabalho é a da

linguística sistêmico-funcional (LSF), entendida, em sua dupla faceta teórica e metodológica,

como “teoria geral do funcionamento da linguagem humana” e “modelo de análise textual”

Page 114: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

96

(Gouveia, 2009: 14). Neste estudo, essa segunda abordagem é aquela que mais interessa e que

será, portanto, explorada.

Segundo Halliday (1994), pode-se identificar três macrofunções principais, atribuídas

à língua, que ele chama de “metafunções” – são elas a metafunção ideacional, a metafunção

interpessoal e a metafunção textual. A metafunção ideacional relaciona-se com o papel da

língua na construção de representações de mundo; a metafunção interpessoal relaciona-se com

o papel da língua na construção de relações subjetivas, ou seja, entre sujeitos; e a metafunção

textual relaciona-se com o papel da língua na construção e organização de sentido, como

explica Gouveia, ao referir-se às funções ideacional, interpessoal e textual respectivamente:

(…) Na sua essência (…), a linguagem desempenha três funções fundamentais, para além da

função comunicativa, equacionada como primordial e básica por um aparelho teórico que

encara a troca e a negociação do significado como a razão da existência da linguagem.

Concretizando, a linguagem serve para expressarmos conteúdo, para darmos conta da nossa

experiência do mundo, seja este o real, exterior ao sujeito, seja este o da nossa própria

consciência, interno a nós próprios; mas a linguagem serve também para estabelecermos e

mantermos relações sociais uns com os outros, para desempenharmos papéis sociais, incluindo

os comunicativos, como ouvinte e falante; e, por fim, a linguagem providencia-nos a

possibilidade de estabelecermos relações entre partes de uma mesma instância de uso da fala,

entre essas partes e a situação particular de uso da linguagem, tornando-as, entre outras

possibilidades, situacionalmente relevantes. (Gouveia, 2009: 15).

É importante esclarecer que a língua desempenha essas diferentes funções de forma

simultânea, ou seja, elas estão sempre presentes no texto, embora em diferentes graus. Na

análise de cada uma delas, a linguística sistêmico-funcional oferece um conjunto distinto de

ferramentas, que, em geral, aplicam-se à oração, considerada a unidade de análise mínima de

preferência da LSF, embora não única.

No âmbito desta pesquisa, será explorada preferencialmente a metafunção ideacional,

com o objetivo de analisar as diferentes representações de caráter identitário construídas ao

longo do corpus, uma vez que tal metafunção é aquela que se relaciona por excelência com as

questões de representação (Gouveia, 2009: 16). A análise da metafunção ideacional, com sua

vocação para a identificação de diferentes visões de mundo, permite a reflexão sobre os

discursos e recursos mobilizados no processo de construção identitário.

Embora a LSF ofereça uma série de ferramentas de análise textual que permitem, a

partir do estudo da escolhas gramaticais realizadas (perspectiva micro), identificar os

discursos e as práticas sociais que as informam (perspectiva macro), nesta pesquisa tais

ferramentas não serão utilizadas em sentido estrito. No atual contexto, a contribuição da LSF

Page 115: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

97

consiste na apropriação dos seus princípios teórico-metodológicos e da sua abordagem

funcional sobre a língua e suas instâncias de uso.

Numa primeira etapa – o estudo dos marcadores identitários, que será desenvolvido no

capítulo cinco –, como regra geral, a ferramenta de análise escolhida foi o estudo dos grupos

nominais num esforço de delineamento dos diferentes campos de significação construídos em

torno de cada um desses marcadores. Com esse objetivo em mente, no entanto, outros

recursos de análise foram mobilizados em complemento ou concorrência, isto é, de forma

independente, com essa primeira perspectiva.

Numa segunda etapa – o estudo das posições assumidas por ou atribuídas a Portugal

em relação a outras entidades nacionais ou supranacionais, que será desenvolvido no capítulo

seis –, a análise concentrou-se na interpretação dos processos e na identificação dos múltiplos

e variados recursos de comparação utilizados pelos diferentes autores para construir posições

de simetria ou assimetria entre as entidades envolvidas.

Resta ainda esclarecer que o enquadramento metodológico adotado nesta pesquisa

combina análises quantitativas e qualitativas, com a predominância destas últimas. A análise

quantitativa resume-se à contabilização de palavras no texto, de modo a identificar a

incidência de um certo vocabulário associado aos discursos sobre identidades nacionais, que

será explicitada no capítulo cinco. Uma vez identificado tal vocabulário, passa-se à análise

qualitativa, que não integra análise gramatical, em particular, mas tão somente categorização

de significados veiculados e parametrização desses significados.

Tais análises quantativa e qualitativa são desenvolvidas como parte de uma

metodologia – ou estratégia – de investigação identificada como sendo um estudo de caso,

isto é, um estudo detalhado de algo claramente definido – neste caso, dos argumentos de

natureza identitária identificados nos artigos de opinião sobre o AO publicados em 2012 na

imprensa portuguesa. Neste estudo, procura-se analisar de que modo a língua, em sua

dimensão simbólica, é utilizada na construção de determinadas identidades nacionais

portuguesas.

A partir da recolha de dados de diferentes jornais portugueses no período delimitado

acima, que são, a seguir, descritos pormenorizadamente, procura-se identificar, descrever e

analisar os argumentos que remetem para o tema da identidade nacional com o objetivo de se

construir um estudo de caso capaz de contribuir para um melhor entendimento do papel da

língua na construção das identidades nacionais na Europa de hoje. Nesse sentido, tal estudo

pode ser caracterizado como “instrumental” de acordo com a proposta de classificação de

Coutinho e Chaves (2002: 226), derivada de Stake, segundo a qual um caso pode ser

Page 116: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

98

classificado como instrumental quando “é examinado para fornecer introspecção sobre um

assunto, para refinar uma teoria, para proprocionar conhecimento sobre algo que não é

exclusivamente o caso em si”, ou seja, “o estudo do caso funciona como um instrumento para

compreender outro(s) fenómeno(s)”.

Não se trata, no entanto, de se afirmar que o presente caso de estudo configuraria um

exemplo recorrente do contexto europeu ou, em algum sentido, emblemático, nem tão pouco

que a partir do seu estudo seria possível compreender a/s realidade/s da Europa, em toda sua

diversidade e complexidade. Longe disso, entende-se que a presente análise representa um

dos possíveis discursos sobre língua e identidade nacional na Europa de hoje, ou mesmo um

entre os muitos discursos possíveis sobre língua e identidade nacional em Portugal, ou, ainda,

um entre os muitos discursos possíveis sobre língua e identidade nacional em Portugal no

âmbito da discussão sobre o acordo ortográfico.

No entanto, ainda assim, com todas as suas limitações e a impossibilidade de

generalizações, este estudo de caso representa um contributo para se pensar questões relativas

à língua e à identidade nacional. Também não se pode esquecer que boa parte do seu valor

advém muito provavelmente mais das questões que levanta do que daquelas que responde.

Como bem alerta Ponte (2006: 16), embora referindo-se à investigação no campo da

educação, não se deve “menosprezar o facto que muito do valor dos estudos de caso deriva

das questões que ajudam a levantar”.

A construção discursiva das identidades

Potter (1997: 86), ao refletir sobre a afirmação de Foucault (1997) de que os discursos

não só produzem objetos mas também sujeitos, estabelece uma relação entre o modo como se

fala sobre um objeto e uma identidade específica, ou seja, entre os discursos construídos em

torno de um dado objeto e a construção da identidade de quem fala sobre ele. Essa posição é

partilhada neste trabalho, que se fundamenta no processo de construção discursiva das

identidades.

Como já explorado anteriormente, a relação de simbiose entre prática discursiva e

prática social configura espaço produtivo para a análise cultural. As práticas discursivas, sua

unidade, os discursos de resistência, sua tranformação, os elementos que figuram de forma

recorrente nessas construções, os elementos que são excluídos, as relações estabelecidas e

Page 117: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

99

desafiadas, em conjunto, concorrem para o entendimento do modo como as identidades são

apreendidas e representadas no contexto europeu atual, mais especificamente, neste caso, o

português.

Nesse mesmo sentido, Gouveia (2013: 1063) alerta para a relação de interdependência

entre práticas discursivas e identidade, ao afirmar que é da articulação entre essas práticas –

que gozam de certa durabilidade e estabilidade – na produção de significados, sejam eles

sociais, institucionais ou organizacionais, que as identidades são, em grande parte,

construídas. Sempre abertas e mutáveis, essas identidades são, ao mesmo tempo, motivadas

por tais práticas e elemento de transformação das mesmas.

Como destacam Martin e Wodak (2003: 8), a história das nações e dos povos nunca

termina de ser contada, nunca está completa. Está sempre em construção e transformação,

sendo suscetível ao jogo de forças, sempre cambiante, daqueles que em nome individual ou

coletivo participam do processo. Concorrem nesse embate o sistema educativo, os discursos

políticos, a mídia, as organizações da sociedade civil, assim como narrativas individuais e

testemunhos que entrelaçam a história de um à história de todos. O poder, nesse contexto,

manifesta-se na escolha de uma dada narrativa, em detrimento de outras, que então é

naturalizada como sendo o passado, ou seja, como aquilo que realmente aconteceu.

Nesse processo, os recursos de representação da nação vêm à tona, colaborando para a

construção e transformação das narrativas nacionais. Anderson e Hobsbawm, entre outros, já

haviam alertado para a relevância dos sistemas nacionais e unificados de educação, a

invenção da tradição, a construção de monumentos e a instituição de cerimônias e ritos

nacionais na elaboração e disseminação dessas narrativas. Mais recentemente e, de certo

modo, em decorrência desses estudos, juntam-se a eles os discursos de revisão do passado (cf.

Martin e Wodak, 2003, por exemplo) e de valorização da cultura em exibição, concretizados

na promoção dos museus e nas ações de proteção e divulgação do patrimônio (cf. Boswell e

Evans, 1999, por exemplo), entre tantas outras possibilidades.

Wodak e de Cillia (Wodak et al, 1999) oferecem exemplo bastante ilustrativo ao

analisarem os eventos comemorativos do pós-guerra na Áustria. Como estratégia de

superação do passado nazista, a declaração de independência da Áustria é caracterizada como

uma espécie de “renascimento”. A partir dessa metáfora, é possível deixar para trás um

passado marcado pela “fatalidade” da guerra e suas consequências e começar outra vez, como

um recém-nascido: puro, inocente, sem máculas.

Essa nova relação com o passado é destacada por Giddens (2002: 2 e 3) em sua

caracterização da modernidade tardia como marcada pela superação da tradição e,

Page 118: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

100

especialmente, pela instauração do princípio da “dúvida radical”. Em outras palavras, nos

tempos atuais, nesta era pós-tradicional, as certezas do passado teriam sido substituídas pela

dúvida, isto é, por hipóteses que poderiam ou não ser confirmadas e cujo status de afirmação

ou negação poderia sempre ser revisto e alterado.

Essa possibilidade de revisão incessante estende-se à construção das identidades,

configurando aquilo que o autor identifica como o “projeto reflexivo” da identidade, como

citado a seguir. Nesse contexto, o indivíduo busca manter alguma coerência em suas

narrativas biográficas, que estão em constante processo de revisão, a partir das escolhas que

tem à sua disposição num ambiente marcado pelo predomínio dos sistemas abstratos,

entendidos, nesse contexto, como sendo os recursos simbólicos que consistem em meios de

troca dotados de um valor-padrão e de uso generalizado.

The reflexivity of modernity extends into the core of the self. Put in another way, in the context

of a post-traditional order, the self becomes a reflexive project. Transitions in individuals’ lives

have always demanded psychic reorganization, something which was often ritualised in

traditional cultures in the shape of rites de passage. But in such cultures, where things stayed

more or less the same from generation to generation on the level of the collectiviy, the changed

identity was clearly staked out –as when an individual moved from adolescence into adulthood.

In the settings of modernity, by contrast, the altered self has to be explored and constructed as

part of a reflexive process of connecting personal and social change. (Giddens, 2002: 33-34).

Embora Giddens, em sua reflexão, refira-se especialmente à identidade individual ou

autoidentidade, é importante destacar que as identidades coletivas – dentre elas as identidades

nacionais – são indissociáveis das identidades individuais, lembrando, mais uma vez, o alerta

de Kuper (já citado no primeiro capítulo) de que, assim como as identidades individuais são

vivenciadas no mundo, isto é, no contato com os outros, as identidades coletivas são sempre,

ao final, vivenciadas individualmente, ou seja, numa perspectiva subjetiva.

Retomando-se a perspectiva da identidade/diferença, na construção das identidades, e,

em especial, das identidades nacionais, ganha destaque o mecanismo de criação de um eu e de

um outro, que funciona, a grosso modo, pela afirmação das semelhanças e supressão das

diferenças no interior do grupo e, simultaneamente, pela afirmação das diferenças e supressão

das semelhanças na relação entre o grupo e aquilo/aquele que lhe é exterior.

Nesse processo de construção de identidades e diferenças, uma série de recursos são

mobilizados. Como afirma Wodak, a ideia de pertença a uma comunidade imaginada como

nação é construída a partir de práticas sociais e discursivas de inclusão e exclusão, criadas e

vivenciadas pelos diferentes atores sociais que interagem num dado contexto sociocultural e

histórico:

Page 119: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

A construção discursiva das identidades nacionais

101

In summary, we will assume the following theses: The national identity of individuals who

perceive themselves as belonging to a national collectivity is manifested inter alia, in their

social practices, one of which is discursive practice. The respective national identity is shaped

by state, political, institutional, media and everyday social practices, and the material and

social conditions which emerge as their results, to which the individual is subjected. The

discursive practice as a special form of social practice plays a central part both in the formation

and in the expression of national identity. (Wodak, 1999: 29).

Síntese

Neste capítulo, foram apresentados e discutidos os conceitos nos quais se fundamenta

o enquadramento teórico-metodológico adotado analiticamente nesta pesquisa, em particular

no que se refere às estratégias de análise textual. Partiu-se da noção de discurso, na acepção

de Foucault, que foi, a seguir, desenvolvida para se explorar a relação de simbiose entre texto

e contexto, ou discurso e prática social. O papel operado pelas ideologias e o discurso como

instrumento de representação foram alguns dos temas destacados, sempre tendo-se em vista a

perspectiva sociocultural e histórica. A mídia e os discursos produzidos e/ou veiculados por

ela também foram objeto de atenção e reflexão, dada a natureza do corpus de pesquisa. Do

entrelaçamento e desenvolvimento desses conceitos, chegou-se à análise do discurso,

apresentada aqui em sua perspectiva crítica, apontada como a principal diretriz de análise e

cujos contornos foram delineados. Ao lado da ACD, a linguística sistêmico-funcional foi

identificada como a abordagem que informa a análise propriamente dita, a ser desenvolvida

nos próximos capítulos. Por fim, a opção pela construção discursiva das identidades nacionais

foi explicitada.

Page 120: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 121: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

PARTE II

Page 122: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 123: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Capítulo 4

Contextualização e apresentação do corpus

Portugal: contexto histórico-cultural

O acordo ortográfico e os artigos de opinião

Mapeamento geral dos argumentos

Perspectivas de análise

Page 124: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 125: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

O Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), que vigora hoje em Portugal, tem suscitado

polêmica, como se depreende da frequência e do calor dos debates veiculados pelos meios de

comunicação portugueses nos anos subsequentes à sua entrada em vigor. Entre a diversidade

de temas que alimentam a discussão, interessa destacar aqueles que giram em torno de

questões de identidade nacional; afinal, são eles o objeto deste estudo.

Neste capítulo, parte-se de uma breve e fragmentada retrospectiva de determinados

momentos da história de Portugal, em especial a partir do século XIX, que contribuíram para

a construção da identidade do país. Pretende-se, assim, construir um dado contexto histórico-

cultural que servirá de enquadramento geral para a análise propriamente dita. Nesse processo,

procura-se destacar o papel da língua portuguesa como elemento intrínseco à construção de

certas versões de identidade para Portugal.

A seguir, são apresentados os contornos do atual acordo ortográfico, firmado por meio

de um tratado internacional e que conta com a adesão de vários países de língua oficial

portuguesa, entre eles Angola, Brasil, Moçambique e Portugal. Assinado em 1990, o acordo

entrou em vigor no país em 2009, sendo adotado no âmbito do sistema nacional de educação

apenas no ano letivo 2011/2012.

A assinatura do acordo e, mais especificamente, as disputas que se instauram em torno

da legalidade e aplicação do mesmo foram – e ainda são – objeto de debate, sendo a mídia

uma das suas principais arenas. É nessa fonte que se vai buscar os artigos de opinião

publicados sobre o tema em 2012, nos jornais portugueses, e que constituem o corpus desta

análise. Passa-se, então, à apresentação e descrição detalhada do mesmo.

Uma vez explicitado o corpus, promove-se a identificação e o mapeamento dos

principais argumentos de caráter identitário trazidos ao debate público. Deixam-se de lado,

portanto, as discussões sobre a legalidade e viabilidade técnica e jurídica do acordo para se

destacar as questões relativas à identidade e, em especial, ao papel da língua na construção

dessas identidades.

Page 126: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

108

Por fim, são identificadas as duas principais perspectivas de estudo que conduzirão a

análise das diferentes representações identitárias construídas para Portugal ao longo do

corpus. A primeira delas consiste em refletir sobre (1) o modo como diferentes elementos são

articulados nesse processo de construção de uma ou múltiplas identidade/s para Portugal; já a

segunda procura entender (2) como essas identidades são construídas a partir do contraste

com outras entidades nacionais ou supranacionais.

O objetivo deste capítulo é, portanto, delinear um contexto histórico-cultural alargado

que servirá de base para a reflexão sobre as identidades nacionais portuguesas, tendo sempre

como ponto de partida a questão da língua, e suas diferentes estratégias de construção, que

será desenvolvida nos capítulos seguintes. Ao mesmo tempo, visa apresentar, justificar a

escolha e descrever em detalhes o corpus já identificado.

Portugal: contexto histórico-cultural

Portugal, localizado a Sul na Europa Ocidental, faz divisa com um único país, a

Espanha, que se espalha a Leste e Norte do seu território. A Oeste e Sul, está o oceano

Atlântico. Desde a criação do Condado Portucalense, em 1096, e da estabilização das

fronteiras portuguesas – processo que transcorre especialmente entre 1128 e 1297, não

obstante as disputas travadas ao longo do tempo e eventuais instabilidades – até ao Portugal

de hoje, o país passou por uma série de experiências que marcaram sua história, como não

poderia deixar de ser.

Embora o período que aqui nos interessa seja o do século XIX em diante, em função

do seu relevo para o desenvolvimento dos nacionalismos europeus, importa ressaltar um

momento histórico anterior, que desempenhou e ainda desempenha papel de destaque na

construção da identidade portuguesa: os ‘descobrimentos’ ou, em outras palavras, as grandes

navegações.

Os descobrimentos portugueses têm início com a conquista de Ceuta, na África, em

1415, e prosseguem ao longo dos séculos XV e XVI. Um dos países pioneiros nas

navegações, Portugal realiza uma série de conquistas, estabelecendo novas rotas comerciais e

dando início a um império colonial que ampliaria seu domínio para Ásia, África e América do

Sul e só chegaria ao fim no final do século XX.

Page 127: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

109

Esse período é relevante para a construção da identidade portuguesa, quer pela

circunstância material que encerra – a multiplicação de contatos com um outro, a construção

da ideia desse outro e, de forma interdependente, da noção do eu – quer pela perspectiva

simbólica, que será explorada mais à frente.

Feita essa ressalva, avançamos no tempo para encontrarmos Portugal no início do

século XIX, envolvido em tensões com a França, que acabariam levando à transferência da

família real portuguesa e sua corte para o Brasil, então colônia de Portugal, em 1808, numa

tentativa de escapar às invasões napoleônicas e salvaguardar a soberania do país. Os franceses

acabariam por ser vencidos com a ajuda dos aliados ingleses, permitindo o retorno do rei à

Portugal em 1820.

Em 1822, o país perde sua maior colônia, com a declaração de independência do

Brasil, embora este siga sob o domínio do filho do monarca português, D. Pedro, que se torna

seu primeiro imperador. Este é também o ano da primeira constituição portuguesa, em cujos

dispositivos já se encontram referências aos conceitos de nação e pátria. Enquanto a nação

figura como fonte de soberania, a exaltação da pátria se materializa num dever constitucional

– “amar a pátria” – e na valorização e celebração do seu passado, da sua história, da sua

cultura, da sua existência propriamente dita (Sobral, 2012: 60-61).

Ao longo das décadas seguintes, a Inglaterra passa a exercer cada vez mais poder

sobre o agora enfraquecido império português, culminando no incidente de 1890 – o ultimato

inglês – que põe fim às pretensões expansionistas de Portugal na África. Portugal é obrigado a

abdicar do chamado “mapa cor-de-rosa”, pelo qual reivindicava o território que se estendia

entre Angola e Moçambique, colônias portuguesas à época. Esse episódio põe em evidência a

situação de Portugal que, embora potência colonial, há muito tinha perdido força face aos

impérios coloniais da época. Essa debilidade transparece em alguma medida na caracterização

feita por Boaventura de Sousa Santos (2001: 26-29) do colonialismo português como um

“colonialismo subalterno”. Com tal expressão, o autor afirma o papel de Portugal como país

colonizador e simultaneamente relativiza seu poder em função da fragilidade da posição

portuguesa no cenário europeu, marcada, sobretudo, pela dependência de Portugal em relação

à Inglaterra.

O século XIX é apontado como sendo o do apogeu dos nacionalismos na Europa,

como já referido no primeiro capítulo. Em Portugal, é também o momento em que o poeta

Camões é alçado à posição de herói nacional, três séculos após sua morte. Camões,

frequentemente considerado o “pai da língua portuguesa”, é o autor de uma das mais

poderosas representações literárias da identidade portuguesa. Trata-se do poema épico Os

Page 128: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

110

Lusíadas, publicado em 1572, onde o poeta narra as peripécias portuguesas durante as

grandes navegações, exaltando Portugal e os portugueses.

Ao longo do século XIX e em paralelo à criação, na esfera política, dos chamados

Estados-Nação, ganham também destaque as chamadas culturas nacionais. O papel dos

Estados, nesse processo de construção, consiste em diferenciar a chamada cultura nacional em

relação àquilo que lhe é exterior, ou seja, além-fronteiras, e homogeneizar essa cultura em seu

interior, ou seja, no interior do território nacional (Santos, 2001: 25-26).

A construção das chamadas línguas nacionais também marca o século XIX, pois estas

são elementos integrantes, ou melhor, ferramentas poderosas na construção de Estados

nacionais, à medida que diferenciam e essencializam seus falantes, como afirma Lopes (2013:

22), a partir de Blommaert e Rampton. Tal processo de construção promove a associação – de

cariz político, social, ideológico e também econômico – entre uma língua e uma nação, que

depois será exportada para fora da Europa com o colonialismo.

Importa também observar que tal processo, em alguma medida, atua como elemento

conformador de ideologias linguísticas que são utilizadas na construção de identidades

culturais e nacionais ainda hoje, “naturalizando” diferenças (Lopes, 2013: 27) e colaborando

para o exercício de um mecanismo de inclusão/exclusão fundado na percepção da identidade e

da diferença, como discutido no capítulo dois.

Em Portugal, a língua portuguesa é alçada à posição de língua oficial do reino ainda no

final do século XIII, por D. Dinis, à época da estabilização das fronteiras físicas. O idioma

português conforma, assim, pouco a pouco, mais um fator de diferenciação entre Portugal e

seu entorno. No século XVI, surgem as primeiras gramáticas de língua portuguesa – a de

Fernando de Oliveira (1536) e a de João de Barros (1540) –, que já reconhecem a ligação

entre língua e identidade (Sobral, 2012: 51).

Com os descobrimentos, Portugal difunde o português pelo seu império colonial,

levando-o a três continentes: América do Sul, África e Ásia. A expansão da língua nas

colônias leva a um aumento exponencial do número de falantes, que sobrevive ao império e

permanece nos dias de hoje. Segundo dados divulgados em 2013 pelo Observatório da Língua

Portuguesa, há mais de 240 milhões de falantes de Português espalhados pelo mundo, sendo

língua oficial em oito países: Angola (19,8 milhões de habitantes), Brasil (194,9 milhões),

Cabo Verde (496 mil), Guiné-Bissau (1,5 milhões), Moçambique (23,3 milhões), Portugal

(10,6 milhões), São Tomé e Príncipe (165 mil) e Timor-Leste (1,1 milhões).

Retomando a retrospectiva histórica, em Portugal, o início do século XX não é menos

turbulento: em 1908, o rei D. Carlos e seu filho e herdeiro são assassinados em plena praça

Page 129: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

111

pública, pondo fim à monarquia portuguesa. Segue-se um breve período de República (1910-

1926), que será interrompido por um golpe militar, e, em 1933, a instituição do chamado

Estado Novo, que dá início a uma das mais longas ditaduras da Europa.

Durante esse período, a identidade nacional portuguesa é construída em torno do

discurso oficial de valorização do passado e das glórias do império, que, em alguma medida,

assume os contornos de uma espécie de culto à nação. É o Portugal singular que se afirma,

bem representado pelo slogan oficial “orgulhosamente sós” (Sobral, 2012: 79), em discursos

tão frequentemente veiculados pelos meios de comunicação de massas, então sob controlo

estatal.

Mas não só em Portugal a mídia desempenha papel relevante na construção dos

nacionalismos. Em toda a Europa, com a popularização dos meios de comunicação de massas

– em especial a rádio, a televisão e o cinema –, novas formas de mobilização e envolvimento

são desenvolvidas. Esses processos permitem, de algum modo, que o nacionalismo se

popularize por meio da difusão dos seus ideais – antes partilhados apenas por uma elite ou

grupo – por toda a sociedade. A criação, fortalecimento e centralização de instituições

públicas, como o exército e a escola, aliadas aos movimentos de valorização de uma suposta

tradição nacional – com a construção de monumentos e a organização de eventos públicos,

por exemplo – são alguns dos recursos utilizados nesse processo (Sobral, 2012: 76-77;

Hobsbawm, 1994)

A primeira metade do século XX é também lembrada pelas duas grandes guerras que

marcaram a história da Europa e do mundo, e que servem de substrato para o projeto da União

Europeia, que, por sua vez, começa a se desenvolver a partir do seu fim. Embora Portugal

tenha participado do primeiro conflito (1914-1918) ao lado dos Aliados, mantém-se

oficialmente neutro em relação ao segundo (1939-1945).

Nas décadas seguintes, Portugal mergulha na guerra colonial – a chamada Guerra do

Ultramar, iniciada em 1961, envolvendo Angola, Guiné-Bissau e Moçambique – numa

tentativa de manter suas colônias na África, no momento em que o colonialismo parecia ter

chegado ao fim – ou, numa outra perspectiva, no momento em que este se transformava em

uma nova forma de exploração: o neocolonialismo.

A guerra colonial marca os extertores do regime ditatorial português, que chega ao fim

em 1974, com a Revolução dos Cravos, depois de 41 anos de existência. Representa, também,

o fim do império português com as independências de Angola e de Moçambique, em 1975, e

também do Timor, que, no entanto, é invadido e violentamente ocupado pela Indonésia nesse

mesmo ano, só alcançando sua independência em 2002.

Page 130: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

112

Com o fim do império, cerca de 500 mil portugueses precisam ser repatriados, após

abandonarem às pressas as antigas colônias – são os chamados “retornados”. Muitos nascidos

e criados nas colônias, com outras vivências e culturas, outros modos de falar, outras

expectativas e crenças, nunca haviam pisado em solo português. Mais uma vez, uma certa

ideia de identidade nacional vem a tona, agora na construção de um eu verdadeiramente

português e de um outro, retornado. O país passa por profundas transformações em todas as

esferas da vida em sociedade.

O início dos anos 80 representa um forte abalo na identidade portuguesa: por um lado,

o encolhimento do território com a dissolução do império português e do papel colonial; por

outro, o processo de integração na União Europeia (Magalhães, 2001: 310). Após cinco

séculos voltado para o Atlântico, Portugal vira-se para o continente, numa rotação de 180º.

Embora ainda não saiba que papel desempenhará nesse contexto, parece evidente que este

será diametralmente distinto do de Portugal imperial; novas relações de poder serão e deverão

ser estabelecidas.

A mudança do Portugal imperial para o Portugal europeu é uma mudança de

paradigma. Segundo Sobral (2012: 79), tais mudanças afetam profundamente a noção de

identidade portuguesa. A glorificação do passado imperial, da “singularidade portuguesa” e

da “vocação atlântica” dá lugar ao Portugal europeu, cuja nova identidade ainda precisa ser

forjada.

Nesse contexto de inserção de Portugal na Europa, vigora uma sensação generalizada

de fragilidade, de perda de soberania e, em última instância, de perda de poder em relação ao

seu entorno. Segundo Sobral (2012:91), isso advém da percepção da fragilidade da posição do

país na tomada de decisões no âmbito da União Europeia, derivada da multiplicação dos

contatos via circulação de pessoas, dados, informações.

A adesão de Portugal à União Europeia – à época ainda Comunidade Econômica

Europeia (CEE) – só acontecerá em 1986. Passado o período de euforia, marcado pelo afluxo

de capitais europeus, pela modernização da infraestrutura nacional e pelo desenvolvimento

social e econômico, Portugal imerge na crise financeira que se alastrou pela Europa neste

início de século, entre planos de austeridade, reduções de salários, cortes de benefícios,

aumento de desemprego, entre tantas outras medidas.

Depois de passar pela mais longa ditadura da Europa ocidental, vivenciar o fim do

império colonial e a chegada dos retornados, aderir à União Europeia e ao euro, Portugal

atravessa o século XX e aterra no século XXI para se digladiar com uma crise econômico-

Page 131: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

113

financeira que ainda não chegou ao fim e cujos desdobramentos, no que diz respeito ao futuro

do projeto europeu, ainda não se pode precisar.

Chegamos, assim, ao Portugal de hoje, que, segundo Eduardo Lourenço (1988), ainda

vive de glórias passadas, do sucesso da sua empreitada marítima. Num texto de grande

repercussão – O Labirinto da Saudade, publicado em 1978 – o autor explora essa construção,

que, de certo modo, ainda parece atual. Segundo Lourenço, a identidade portuguesa é em

muito devedora do “ter sido”, ou seja, daquilo que já foi, numa referência ao passado

imperial, construindo para si uma imagem irreal e mitificada, incapaz de refletir sobre o

presente e marcada por um sentimento de ausência de sua “própria realidade”, que se arrasta

desde o século XIX (1988: 65).

Por sua vez, José Gil (2008), ao refletir sobre a identidade portuguesa, destaca o

impacto da vivência da ditadura que, segundo o autor, ainda se faz presente num país que

resiste a se “inscrever” e vive ainda numa atmosfera de “medo”. Inscrever-se, na perspectiva

do autor, implica atuar sobre e transformar as relações sociais e também nós mesmos, ou seja,

atuar sobre o mundo ao redor e os espaços que ocupamos nele. Já a atmosfera de medo é

entendida como um sentimento difuso e impreciso, um medo ao qual não se consegue atribuir

verdadeiro sentido ou sequer identificar sua fonte, o que torna impossível resistir-lhe.

Para Boaventura de Sousa Santos (2001), Portugal ocupa hoje na Europa uma posição

intermediária – a mesma que já ocupava durante o período colonial. Não se enquadra no

grupo dos países em desenvolvimento, tão pouco no dos países desenvolvidos, ocupando uma

posição caracterizada pelo autor como “semiperiférica”. Esse deslocamento em relação ao

centro implica perda de poder, caracterizada pela relação de dependência em relação ao

cenário internacional, enfraquecimento da autonomia ou soberania nacional e pouca

capacidade de influência no cenário europeu.

Independentemente das diferentes perspectivas adotadas, é possível encontrar

elementos que mostram certa consistência em suas respectivas representações da identidade

portuguesa: a valorização do passado ou mesmo uma espécie de fixação por ele; boa dose de

imobilidade ou incapacidade de ação que poderia se traduzir num espécie de desligamento do

presente; e uma debilidade generalizada ou fragilidade da posição no cenário internacional,

onde Portugal parece estar sempre a meio do caminho – nem um coisa, nem outra, sempre um

quase que não se resolve, mas que, por outro lado, pode também indicar uma tentativa de

alcançar esse presente fugidio.

Quanto à língua portuguesa, a sua importância hoje pode ser inferida pela criação da

Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em 1996, que, em sua formação

Page 132: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

114

inicial, reuniu Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé

e Príncipe. Em 2012, Timor-Leste viria se juntar ao grupo e, em 2014, seria a vez da Guiné

Equatorial aderir à CPLP.

Mas, se o universo de falantes da língua portuguesa alcança cifras tão altas, colocando

o português entre as dez línguas mais faladas do mundo, sua posição na Europa parece ser

diferente. Apenas a título de exemplo, vale referir esta passagem do livro do jornalista inglês,

radicado em Portugal, Barry Hatton, sobre o país e sua história, que destaca o estranhamento

provocado pelo contato do português no espaço europeu:

A língua singular é outra desvantagem para um conhecimento mais íntimo de Portugal. Se

viajarem pela Europa, as pessoas não conseguem identificar a língua que estão a falar e muito

menos o que estão a dizer. Os sobrolhos erguem-se quando ouvem falar português, como se

estivessem a tentar localizar um raro odor ou paladar. (Hatton, 2011: 28).

Se, no entanto, a língua portuguesa pode provocar certo estranhamento no espaço

internacional, a relação de Portugal, e dos portugueses, com sua língua parece inspirar um

sentimento de forte ligação e proximidade. O aniversário da morte de Camões, dia 10 de

junho, é também o dia de Portugal e da comunidade portuguesa. Camões, aliás, dá nome a

ruas e praças um pouco por todo o país. Na capital, Lisboa, uma estátua do poeta ocupa o

largo que leva o seu nome, na região do Chiado, um dos pontos turísticos da cidade, onde

também se encontra a estátua de António Ribeiro Chiado, poeta do século XVI,

contemporâneo de Camões. Outros escritores lhes fazem companhia: uma estátua de

Fernando Pessoa, que, ao lado de Camões, é uma das grandes referências literárias

portuguesas, fica em frente ao café “A Brasileira”, numa das esquinas da rua Almeida Garrett

(1799-1854), e, próximo dali, econtramos uma estátua de Eça de Queirós (1845-1900). E,

assim como Garrett e Eça, há muitas outras referências literárias na cidade, como, por

exemplo, a Fundação Saramago, que leva o nome do único escritor português vencedor do

prêmio Nobel até esta data.

Nesse sentido, os célebres versos de Pessoa, tão frequentemente relembrados, parecem

bem representar o sentimento de boa parte dos portugueses em relação à língua: “Não tenho

sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento

patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa” (1982, I: 17). Mais do que a associação entre

língua e identidade nacional, ocorre aqui uma equiparação ou mesmo uma sobreposição

desses dois conceitos.

Page 133: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

115

O acordo ortográfico e os artigos de opinião

O acordo ortográfico, objeto dos textos que serão analisados a seguir, foi aprovado em

12 de outubro de 1990 pela República Popular de Angola, República Federativa do Brasil,

República de Cabo Verde, República da Guiné-Bissau, República de Moçambique, República

Portuguesa e República Democrática de São Tomé e Príncipe, no âmbito da Comunidade dos

Países de Língua Portuguesa (CPLP). Intervieram no processo a Academia das Ciências de

Lisboa, a Academia Brasileira de Letras e delegações de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau,

Moçambique e São Tomé e Príncipe, com a adesão de uma delegação de observadores da

Galiza.

O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AO90) visa à unificação da grafia do

português nos diferentes países onde este é língua oficial. Entre os objetivos principais

destacam-se a “defesa da unidade essencial da língua portuguesa” e do “seu prestígio

internacional”, como explicitado no texto do acordo, publicado no website da CPLP.

Concebido como tratado internacional, o AO90, à época da publicação dos artigos de

opinião aqui analisados (de 01 de janeiro a 31 de dezembro de 2012), havia sido ratificado por

Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor. Em Moçambique,

embora o acordo tenha sido ratificado pelo governo em junho de 2012, sua ratificação pelo

parlamento seguia pendente em maio de 2015. Até essa mesma data, Angola não havia

ratificado o acordo. O AO90 entrou em vigor em Portugal em 2009 e foi introduzido no

sistema educativo português no ano letivo de 2011/2012, passando a ser obrigatório a partir

de maio de 2015.

Para este estudo de caso, foram analisados os artigos de opinião publicados em jornais

de notícias portugueses sobre o acordo ortográfico ao longo do ano 2012, como já referido. A

seleção dos jornais pesquisados baseou-se nos critérios de (i) maior tiragem e (ii) maior

amplitude de cobertura (vide anexo 1) com o intuito de identificar textos com potencial de

repercussão ampliada, quer em função de sua disponibilidade em número de exemplares quer

em diferentes geografias.

Por artigo de opinião entende-se os textos assinados individualmente, que consistem

na manifestação explícita do pensamento e da opinião de um determinado autor. Dessa forma,

portanto, excluem-se os textos predominantemente noticiosos e os editoriais, que, embora

sejam de natureza opinativa, representam a opinião de uma dada instituição (nesse caso, do

respectivo jornal) e não de seu autor.

Page 134: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

116

Segundo os critérios acima indicados (tiragem e cobertura), foram identificados

sessenta e três artigos de opinião, publicados em cinco jornais: Público (55,5%), Diário de

Notícias (27,0%), Expresso (9,5%), Sol (4,8%) e Correio da Manhã (3,2%). Verificou-se,

portanto, a predominância incontestável do Público em número de artigos publicados, seguido

pelo Diário de Notícias, com pouco menos de metade do primeiro. Para fins de comparação

entre jornais diários, segue-se, ao Público e ao Diário de Notícias, o Correio da Manhã, com

apenas dois artigos publicados – número inferior, inclusive, ao dos dois jornais semanais

também contemplados no gráfico abaixo, Expresso e Sol:

Quadro 4.1 – Total de artigos por jornal analisado

Quanto aos jornais com periodicidade semanal, a liderança coube ao Expresso, que

publicou seis artigos, ou seja, o dobro dos artigos publicados pelo Sol. Uma vez que não se

considerou a extensão dos textos, quer em função do número de caracteres, quer em função da

mancha gráfica (espaço físico que o texto ocupa no jornal, incluindo fotos, ilustrações, etc.),

não parece razoável fazer aqui quaisquer outras inferências a partir de tais números.

Entre os sessenta e três artigos publicados, foram identificados quarenta e três autores

diferentes, dentre os quais 83,7% publicaram um único artigo e 16,3% publicaram dois ou

mais. Nesse último grupo, destacam-se Nuno Pacheco, com nove artigos; Francisco Miguel

Valada, com cinco artigos; Vasco Graça Moura, também com cinco artigos; e Alberto

Gonçalves, Ferreira Fernandes, Octávio dos Santos e Rui Miguel Ventura Duarte, com dois

artigos cada, como indicado no Quadro 4.2.

Da análise desses dados, depreende-se facilmente a proeminência de Nuno Pacheco,

ocupando a liderança absoluta do ranking, com nove artigos publicados sobre o AO, seguido

por Francisco Miguel Valada e Vasco Graça Moura, empatados em segundo lugar, com cinco

artigos cada, sendo os autores contrários à aplicação do acordo. À época da publicação dos

17

2

3

6

35

Diário de Notícias

Correio da Manhã

Sol

Expresso

Público

0 10 20 30 40

Série1

Page 135: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

117

artigos analisados, Pacheco ocupava o cargo de editor do jornal Público e Graça Moura

respondia pela presidência da Fundação Centro Cultural Belém (FCCB).

Quadro 4.2 – Total de artigos publicados por autor

Considerando-se a dispersão dos artigos ao longo do ano, verificamos uma

concentração de matérias em fevereiro (31,7%), em boa parte justificada pela repercussão de

uma decisão tomada por Vasco Graça Moura, que determinou a não utilização do acordo

ortográfico no Centro Cultural de Belem, instituição a que presidia, como já referido. Essa

decisão foi divulgada a partir de 3 de fevereiro de 2012.

Excluindo-se o mês de fevereiro, pode-se identificar alguma paridade no total de

artigos publicados em janeiro, março, abril e agosto, que gira entre seis e sete, representando,

portanto, bem menos da metade do total de artigos publicados em fevereiro, o que atesta a sua

atipicidade. Por fim, nos demais meses (maio, junho, julho, setembro, outubro, novembro e

dezembro) registrou-se dois ou três artigos cada – com exceção de outubro, com apenas um

texto publicado, como indicado no Quadro 4.3.

Embora não seja objeto desta pesquisa analisar a posição dos respectivos autores sobre

o acordo ortográfico, o mapeamentos de tais posições pode ser útil na caracterização do

contexto de análise. Por esse motivo, os artigos de opinião foram classificados em favoráveis

(A Favor) ou contrários (Contra) ao AO90. Nos casos em que o autor não assume uma

posição ou, pelo menos, não o faz com clareza, os artigos foram classificados com “N.D.”,

numa referência à não determinação de uma posição, como registrado no Quadro 4.4.

36

2

2

5

9

2

2

5

0 10 20 30 40

Outros(*)

Alberto Gonçalves

Ferreira Fernandes

Franciso Miguel Valada

Nuno Pacheco

Octávio dos Santos

Rui Miguel Ventura Duarte

Vasco Graça Moura

Série1

Page 136: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

118

Quadro 4.3 – Dispersão dos artigos ao longo do ano

Quadro 4.4 – Posição assumida face ao AO90

Na grande maioria dos artigos, portanto – 77,5% de um total de sessenta e três textos –

, os respectivos autores assumiram posição contrária ao AO. Apenas em 12,7% das

ocorrências os autores adotaram postura favorável ao acordo. Nos casos restantes (9,5%), os

autores propositadamente não assumiram uma posição ou não foi possível identificá-la com

clareza.

Uma vez concluída a apresentação do corpus numa perspectiva quantitativa, importa

agora justificar sua escolha. A opção por artigos cujo tema central é o AO visa garantir, em

alguma medida, a existência de uma relação entre língua e identidade nacional, ou seja, se for

possível encontrar argumentos de natureza identitária em artigos sobre o acordo, já teremos aí

7

20

6

7

2

2

2

7

3

1

3

3

JAN

FEV

MAR

ABR

MAI

JUN

JUL

AGO

SET

OUT

NOV

DEZ

0 5 10 15 20 25

Série1

49

8

6

Contra

A Favor

N.D.

0 10 20 30 40 50 60

Série1

Page 137: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

119

a garantia de existência de alguma relação entre língua e identidade, direta ou indireta,

explícita ou implícita, consciente ou inconsciente, deliberada ou não.

Por sua vez, a opção pela análise do discurso midiático – e, neste caso, estritamente do

discurso produzido e reproduzido pela mídia impressa e publicado também em meio digital –

deveu-se, prioritariamente, ao seu caráter público e à questão da acessibilidade. Ambos os

critérios são, a princípio, inerentes ao discurso jornalístico, embora nem sempre se

manifestem da forma esperada, como já discutido no capítulo anterior.

Como alerta Hobsbawm (1990: 11), identificar a visão da sociedade em sua base, ou

melhor, das pessoas comuns – e não dos governantes ou dos líderes de grupos engajados na

atividade pública – é sempre difícil. A opção pela análise dos discursos da mídia representa

uma tentativa de enfrentar essa dificuldade. Embora os artigos de opinião reflitam, a

princípio, opiniões individuais, elas refletem pensamentos correntes e recorrentes na

sociedade.

Por esse motivo, a perspectiva de divulgação e abertura ao debate, característica da

mídia e, em maior intensidade, dos artigos de opinião, dificulta o isolamento e permite uma

visão mais alargada das percepções e ideais que configuram um certo contexto sociocultural.

Em alguma medida, atuam como canal de acesso à pluralidade de discursos e representações

que circulam numa dada sociedade, num período específico.

Uma vez adotado o entendimento acima sobre o papel da mídia e dos artigos de

opinião, busca-se, na análise do discurso, os recursos necessários para revelar e avaliar o

potencial de significação que tais discursos realizam, seja de forma explícita ou implícita,

intencional ou não. Nesse sentido, Blommaert e Verschueren (1992: 357) destacam a

relevância do caráter implícito dos discursos ao afirmar que estes consistem em construções

coletivas partilhadas, que impregnam o discurso individual sem que o autor nescessariamente

se aperceba, adquirindo, assim, maior importância no contexto da análise:

“(…) more weitght is attached to the implicit frame of reference, the supposedly common

world of beliefs in which the reports (or the editorial comments) are anchored, than to the

explicit statements made by the reporters (or commentators). This approach is crucial for the

investigation of widely shared ideologies”.

Com a análise dos artigos de opinião publicados em 2012, pretende-se identificar de

que modos diferentes elementos são articulados nas representações da identidade nacional

portuguesa construída e disseminada nesse período. Tais elementos funcionariam como

espécies de marcadores identitários, quer pela frequência do seu uso nos discursos sobre

Page 138: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

120

identidade nacional em geral, quer pela sua relevância no contexto específico da identidade

portuguesa, revelando as representações partilhadas e disputadas. Busca-se, também, analisar

as diferentes posições assumidas por e ou atribuídas a Portugal na relação com outros países e

entidades nacionais e supranacionais.

Nesse contexto, o discurso jornalístico atuaria como uma espécie de discurso

intermediário entre as esferas pública e privada – assim como entre instituições e pessoas ou

entre especialistas e leigos, por exemplo – permitindo, dessa forma, alguma aproximação

entre diferentes concepções e entendimentos que circulam num dado momento, numa certa

sociedade, isto é, atuando no papel de mediador ou negociador.

Muito se tem discutido sobre o papel da mídia na sociedade moderna. Em geral, esses

discursos giram em torno da ideia de que a mídia, em algum grau, exerce papel estruturante

da realidade e decisivo na formação da chamada opinião pública, como discutido no capítulo

anterior. Sem nos alongarmos mais sobre o tema, que não é objeto desta pesquisa, parece

razoável assumir que, em alguma medida, a mídia consiste numa plataforma interessante e

relevante para se entender os valores e discursos recorrentes num dado momento, numa certa

sociedade sobre uma questão específica: neste caso, a identidade nacional portuguesa e o

papel da língua em seu processo de construção.

Mapeamento geral dos argumentos

A partir de uma primeira análise do corpus, procurou-se delinear os principais

argumentos trazidos ao debate sobre o acordo ortográfico, tanto na perspectiva dos seus

defensores como na dos seus opositores, na tentativa de melhor caracterizar esse corpus e de

construir um enquadramento geral que servirá de base para as reflexões que serão

desenvolvidas nos próximos capítulos.

Para facilitar a identificação dos artigos que compõem o corpus, a cada um foi

atribuído um código composto por duas letras – em referência ao jornal onde foi publicado – e

dois números – em referência à sequência temporal da publicação. O artigo identificado como

DN02, por exemplo, foi o segundo artigo, em ordem cronológica, publicado no jornal Diário

de Notícias e selecionado para compor o presente corpus. Seguindo esse mesmo raciocínio, a

sigla PB remete para o jornal Público, EX para o jornal Expresso, SL para o jornal Sol e CM

Page 139: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

121

para o jornal Correio da Manhã. O quadro completo com toda a identificação dos artigos está

disponível no apêndice A.

Na discussão sobre o AO, alguns temas se destacam por sua frequência e relevância

para os estudos de identidade. Para melhor entendê-los e analisá-los, tais temas foram

divididos em três grupos, de acordo com sua natureza e com o enfoque que adotam:

argumentos de caráter material (i), argumentos de caráter funcional (ii) e argumentos de

caráter simbólico (iii). Estes últimos são os que mais interessam no âmbito deste estudo.

Na perspectiva material (i), busca-se analisar o acordo em si mesmo, isto é, os

argumentos que incidem sobre o texto do acordo – seu conteúdo, as regras que institui, etc. –

e sobre o processo de elaboração, tramitação e aprovação. Em geral, os argumentos dessa

natureza caracterizam-se pela tecnicidade – real ou aparente – do debate, marcado pela

intervenção de juristas, linguistas e outros especialistas.

Em relação ao seu conteúdo, sobressaem as questões sobre aspectos técnico-

linguísticos, concretizadas, em geral, no debate sobre etimologia, que apontam, sobretudo,

para os riscos de eventual perda de relações de origem entre as palavras, com impacto

negativo para a educação e a aprendizagem do português europeu pelas gerações futuras,

entre outros problemas.

Nessa classe de argumentação, destaca-se o uso de um vocabulário muitas vezes

afetivo, que remete para o contexto das relações de família. Considerando-se o contexto

sociocultural português e o papel de destaque que a instituição da família ocupa dentro dele,

tal recurso pode ser bastante interessante na análise das representações de identidade também

na perspectiva simbólica. Afeto, responsabilidade, necessidade de proteção são alguns dos

temas correlatos que surgem nessas construções, como se pode ver nos seguintes exemplos:

Um tal exemplo é apenas útil para quem estuda Latim, mas diz-nos de como a partir de

famílias de palavras as diversas línguas formam cultura, e de como os povos que as falam e

as escrevem pensam. (…) A simplificação destrói laços de família. [PB25, destaques

acrescentados]

A verdade é que ninguém se conforma, depois de ter sido obrigado a pôr um p em ótimo, agora

lhe dizerem que afinal esse p (no qual nunca encontrou utilidade) não faz falta. Há quem

argumente com esse pai tirano, o latim, e com a etimologia da palavra optimus. A palavra sem

o p perderá a identidade. Alguns enxofram-se e dizem que lhes matamos o português! [EX04,

destaques acrescentados]

Nesse quesito, opositores e defensores do acordo assumem posições relativamente

claras: os defensores denunciam a perda da relação etimológica, que é identificada como

negativa, com implicações para o ensino e o aprendizado da língua, entre outros. Os

Page 140: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

122

defensores, por sua vez, relativizam e minimizam a importância dessas alterações, apontando

a reincidência das mesmas ao longo do desenvolvimento das línguas, evidente em acordos

anteriores.

Em relação ao processo de discussão e aprovação do acordo, o debate se divide entre a

análise da tramitação do AO, concebido como tratado internacional, onde as questões técnico-

jurídicas ganham corpo, e o tema da legitimidade democrática, que questiona a participação

de diferentes agentes sociais ao longo de todo o processo de elaboração, discussão, aprovação

e implementação do mesmo.

Seus críticos apontam falhas e irregularidades na tramitação do tratado internacional,

concluindo pela ilegalidade da entrada em vigor do AO, ao mesmo tempo em que acusam um

déficit de legitimidade democrática, apresentando o acordo como uma imposição, uma

abusiva demonstração de força por parte de uma minoria contra a maioria da população

portuguesa, resultado de um processo desenvolvido sem a devida publicidade. Já os

defensores do acordo defendem a legalidade de todo o processo e destacam o envolvimento

de diferentes atores sociais ao longo de sua gestação, assim como o longo período de

desenvolvimento que representaria a possibilidade de intervenção de todos e a devida

publicidade.

Ainda nessa perspectiva de análise, vale a pena observar o embate entre especialistas e

leigos, que levanta uma outra questão: quem pode – no duplo sentido de ter o poder de e estar

capacitado para – opinar sobre o ocordo? De certa forma, o pêndulo da balança parece

inclinar para o lado dos especialistas – sejam do campo da linguística, sejam do campo do

direito –, que são percebidos como dotados de maior autoridade para falar sobre o tema em

função do conhecimento que detêm. Não significa dizer que eles estejam em maioria entre os

autores dos artigos de opinião analisados, mas sim que as representações que associam saber e

poder prevalecem. Tal afirmação é corroborada, por exemplo, pela incidência dos casos em

que o autor se esforça por justificar a sua intervenção, uma vez que não se reconhece como

integrante do grupo de especialistas.

Essa discussão parece refletir uma certa tensão que se estabelece em torno do acordo e

da sua natureza técnica ou política, sem deixar de lado todas as posições intermediárias entre

um campo e outro. Como regra geral, é possível estabelecer uma relação afirmativa entre a

percepção do acordo como estando situado no campo técnico e a valorização do papel do

especialista nesse debate ou mesmo a sua identificação como o principal interlocutor nesse

processo.

Page 141: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

123

Na perspectiva funcional (ii), a argumentação em torno dos objetivos do acordo

centra-se na questão da unificação da grafia, na valorização da posição do português como

língua internacional e na ampliação e fortalecimento do mercado editorial de língua

portuguesa. É importante observar que tais argumentos são interdependentes, entendendo-se a

unificação da grafia do português como uma estratégia ou meio de acesso dos outros dois

objetivos.

Em relação à uniformização da grafia, opositores e defensores do acordo ocupam

posição antagônica. Para seus partidários, em geral, o acordo promove a unificação da grafia

do português e esta, por sua vez, reforça a posição da língua nos contextos acima indicados

(internacionalização e fortalecimento/ampliação do mercado editorial). Para seus opositores,

os argumentos se dividem basicamente em dois: aqueles que reconhecem o papel do acordo

na unificação da grafia, mas entendem que tal unificação não trará vantagens para Portugal, e

aqueles que afirmam ser o acordo incapaz de promover a unificação ao prever numerosas

exceções.

Em relação à valorização do papel do português como língua internacional, as

posições se dividem entre aqueles que reconhecem o potencial do acordo como elemento

positivo nesse processo e aqueles que o negam – nesse segundo pólo, predominam os

opositores do AO. Entre os que reconhecem o potencial, uma nova divisão se verifica: alguns

veem essa valorização como benéfica, entendendo que ela se estende à língua portuguesa em

sua integridade, enquanto outros veem-na com desconfiança, entendendo que a variedade

brasileira é que será privilegiada nesse processo, em detrimento do português europeu.

Em relação à ampliação e ao fortalecimento do mercado editorial, como regra geral, a

grande maioria dos autores reconhece a implicação do acordo nesse campo, mas nem todos

veem vantagem nessa relação. Entre os defensores do acordo, predomina a ideia de que o

mercado editorial em língua portuguesa sairá valorizado, com benefìcio para todos os países

de língua portuguesa. Entre os opositores, no entanto, tal valorização é entendida como

vantagem – muitas vezes desleal ou indevida – para o Brasil, em função do peso/tamanho do

seu mercado, em prejuízo para Portugal.

Na perspectiva simbólica (iii), a argumentação em torno dos significados do acordo

diz respeito ao seu conteúdo simbólico, isto é, ao papel que desempenha ou pode

desempenhar no processo de construção identitário. Os argumentos que se destacam nesse

quesito giram em torno da ideia da língua como fator de identidade individual e coletiva, mas

também em torno dos conceitos de correção da grafia, de valorização ou supressão da

diversidade linguística e de vinculação e afeto, como será explicitado a seguir.

Page 142: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

124

Em relação à associação entre língua e identidade, essa concepção é quase sempre

afirmada – quer pelos partidários do acordo, quer pelos seus opositores. A divergência entre

eles surge no que diz respeito à relação entre língua e ortografia. Para os que são contra o

acordo, muitas vezes ortografia e língua são tomadas como sinônimos ou, ao menos, como

conceitos fortemente interdependentes, e, portanto, a alteração ortográfica promovida pelo

AO implicaria alteração da língua propriamente dita. Retomando a relação inicial de

afirmação entre língua e identidade, essa linha de raciocínio leva à conclusão de que o AO

afetaria a identidade associada àquela, sendo essa percepção sempre valorada negativamente.

Para os que são a favor, em geral, os conceitos de ortografia e língua são entendidos

como tendo naturezas distintas. As alterações ortográficas promovidas pelo acordo, portanto,

não implicariam mudanças na língua propriamente dita. Nesse caso, o AO não afetaria a

identidade, isto é, não repercutiria sobre as representações de identidade nacional prevalentes

e recorrentes no Portugal de hoje.

Em relação à noção de correção ortográfica, os argumentos que se destacam, em geral

adotados pelos opositores do acordo, associam as mudanças ortográficas a erros, ou seja,

escrever de acordo com a nova ortografia significaria escrever “com erros”. Sustentam tal

argumento a ideia de que a norma-padrão adotada em Portugal, anterior ao acordo, é a melhor

e a mais correta, o que, em sentido contrário, implica dizer que as demais seriam piores e

menos corretas. Em alguns casos, são construídos discursos de aproximação ou mesmo de

equiparação entre a nova norma – pós-acordo – e o português falado no Brasil. O português

de Portugal, nesse caso, seria melhor ou mais correto do que o português do Brasil.

Em relação à questão da diversidade linguística, essa via de argumentação é marcada

por um consenso: a princípio, todos defendem a valorização da diversidade, ou seja, a

deiversidade como uma mais-valia. As divergências partem daí, com o questionamento da

influência do acordo sobre essa diversidade. Para alguns, ele a protege e respeita, pois,

embora unifique as grafias, dá espaço para as diferenças concretizadas nas várias exceções

que prevê. Para outros, especialmente para os opositores do acordo, ele suprime essa

diversidade, isto é, representa uma ameaça a essa diversidade linguística e também cultural,

associada aos países de língua portuguesa, ao promover uma espécie de apagamento das

diferenças ou tentativa de homogeneização em sua busca pela unificação gráfica, como

registrado no exemplo seguinte:

Eu não vou aderir nunca ao acordo ortográfico. Vou escrever sempre como aprendi e me

ensinaram. Acho este acordo um embuste, feito de uma forma apressada e imposto, mas não

Page 143: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

125

aceite. A diversidade numa língua é uma mais-valia cultural, todos os países lusófonos se

entenderam na linguagem e escrita, as suas divergências sempre foram políticas ou de outra

índole. [PB07]

É interessante destacar aqui uma dualidade que marca os argumentos contrários ao

acordo no que diz respeito ao tema da unificação das grafias e das exceções previstas. Por um

lado, há os que defendem que tais exceções são excessivas e comprometem o objetivo de

unificação ortográfica e há os ignoram o tema destacando e afirmando essa unificação. No

primeiro caso, no entanto, a unificação ortográfica parece ser vista de forma positiva, pois o

seu não alcance seria justificativa para o descarte do AO. No segundo caso, a unificação

ortográfica é vista de forma negativa, pois é exatamente o seu alcance que põe em risco a

diversidade que se quer defender.

Há, ainda, uma outra construção recorrente que pode ser classificada nesta categoria

de argumentos simbólicos: é a noção de língua como patrimônio, bem ou propriedade. Nessas

construções, a língua portuguesa é identificada como patrimônio de Portugal – concepção que

deriva, ao menos em parte, e que se confunde com a perspectiva de Portugal como sendo a

matriz da língua, tema que será melhor elaborado nos capítulos seguintes.

Retomando, nesse contexto, o argumento de que o AO90 representaria uma

aproximação entre o português europeu e o português do Brasil, com prejuízo para o primeiro,

Portugal seria, portanto, usurpado do seu patrimônio, prejudicado em seus direitos de

proprietário, desrespeitado em seu papel de matriz. São esses alguns dos argumentos

apresentados pelos opositores do AO. Os partidários, em geral, ou recusam a ideia de

propriedade ou a afirmam – mas, nesse caso, atribuindo direitos a todos aqueles que adotam o

português como língua, e não exclusivamente a Portugal.

Entre uns e outros – defensores e opositores –, trocam-se acusações: para os que são a

favor, os que são contrários se considerariam os “donos da língua”; para os opositores, são os

defensores do AO que se arvoram nesse papel ao quererem impingir o acordo aos demais. Em

ambos os casos, no entanto, o argumento de fundo permanece, ou seja, a língua é representada

como um bem.

A afirmação acima, porém, não implica dizer que todos os autores que se valem dessa

representação acreditam nela. Muitas vezes, um autor traz certo argumento à tona não para

defendê-lo, mas sim para recusá-lo, num exercício de antecipação às possíveis críticas ou

argumentos contrários que hipoteticamente lhe pudessem ser impingidos.

Em linhas bastante gerais, são esses os argumentos mais frequentes (cf. Quadro 4.5),

embora seja possível identificar muitos outros. Vale ainda a ressalva de que essas ideias e

Page 144: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

126

posições são quase sempre entrelaçadas e confundidas ao longo do debate, nem sempre sendo

fácil – ou mesmo útil – identificá-las ou isolá-las sem comprometer sua interpretação. Daí a

opção por se trabalhar a partir de perspectivas de análise e não a partir de uma divisão e

classificação rígida de cada argumento.

Perspectivas Temáticas

Material

Etimologia (questões técnico-

linguísticas)

Tramitação e legitimidade do AO

(questões técnico-jurídicas)

Funcional

Uniformização da grafia

Internacionalização da língua portuguesa

Fortalecimento e ampliação do mercado

editorial

Simbólica

Língua como fator de identidade

Valorização do português europeu face

aos demais (correção ortográfica)

Diversidade linguística como valor

Língua como bem ou patrimônio

Quadro 4.5 – Síntese dos argumentos

Perspectivas de Análise

Ao longo do corpus é possível identificar referências expressas e veladas a uma

suposta identidade portuguesa, embora sempre variável. Algumas delas destacam o papel da

língua, outras não. Essas identidades são construídas a partir de estratégias variadas e distintas

dentre as quais se destacam a (1) articulação de determinados elementos – identificados no

âmbito deste estudo como marcadores identitários, tema que será desenvolvido a seguir – na

construção de identidades para Portugal e (2) a contraposição entre Portugal e outras

entidades nacionais e supranacionais, elaborada por via da construção de posições de simetria

e assimetria, caracterizadas por uma relação de convergência/divergência ou de

vantagem/desvantagem, respectivamente.

Page 145: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

127

Na primeira perspectiva de análise (1), o ponto de partida foi a seleção de elementos

que permitissem a identificação de discursos de identidade nacional em geral e da identidade

nacional portuguesa em especial. Tal tarefa foi cumprida a partir da intersecção de duas ações:

por um lado, a contagem de palavras do corpus a fim de identificar termos recorrentes; por

outro, a elaboração de um vocabulário dos nacionalismos, isto é, de uma relação de termos

mobilizados de forma recorrente na construção das identidades nacionais, como povo, nação,

língua, cultura, etc.

Como resultado desse procedimento, foram identificados sete grupos de palavras, cada

um deles composto por uma palavra central e suas derivações, incluindo diferentes categorias

morfossintáticas e declinações, assim nomeados: nação, pátria, povo, língua, cultura,

identidade e matriz. Vale a pena, ainda, observar que a inclusão de matriz entre os elementos

mobilizados na construção dos discursos de identidade nacional, neste contexto, está

diretamente relacionada com o histórico colonial português, do qual o atual cenário de

dispersão da língua portuguesa é profundamente dependente. Essa discussão será retomada no

próximo capítulo.

Nesta etapa da análise, não foi feita distinção entre os artigos favoráveis e

desfavoráveis à adoção do artigo ortográfico, pois não é esse o tema que interessa a este

estudo. Entende-se que, a partir da análise de textos que se posicionam sobre a questão da

língua, a presença de elementos identitários por si só indica uma relação entre língua e

identidade, como já referido. Esta será a análise desenvolvida no capítulo a seguir.

Uma vez identificados os elementos mobilizados na construção de identidade, que, a

partir de agora, serão referidos como marcadores identitários, estes foram devidamente

identificados ao longo do corpus e, em seguida, analisados em seus respectivos contextos a

partir das diferentes estratégias suportadas pela análise crítica do discurso e pela linguística

sistêmico-funcional, como já identificado no capítulo anterior.

Na segunda perspectiva de análise (2), parte-se da identificação de relações de

contraste entre Portugal e outras entidades nacionais ou supranacionais no intuito de se refletir

sobre os diferentes modos como os discursos e as representações da identidade nacional

portuguesa são elaborados a partir da ativação de um mecanismo de construção de identidade

e diferença, que é posto em causa no contato com o outro e, especialmente, com a imaginação

desse outro.

Com esse objetivo e, mais uma vez, valendo-se da contagem de palavras do corpus,

foram primeiro identificadas as demais entidades nacionais ou supranacionais mencionadas,

entre países, regiões, instituições, etc. A seguir, tais referências foram contextualizadas a fim

Page 146: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Contextualização e apresentação do corpus

128

de se identificar a existência ou não de uma relação de comparação entre elas e Portugal.

Apenas os casos em que tal relação se afirmava foram selecionados. Essa perspectiva de

análise será desenvolvida no capítulo seis.

Síntese

Neste capítulo, foi elaborada uma breve retrospectiva histórico-cultural, tendo

Portugal como tema, na tentativa de se delinear um contexto bastante geral e abrangente que

servirá de base para as análises a serem desenvolvidas nos capítulos seguintes. A seguir,

possou-se à identificação do corpus de pesquisa: artigos de opinião sobre o AO90, publicados

em jornais portugueses, em 2012. Este foi descrito, a princípio, numa perspectiva quantitativa:

foram considerados o número de artigos publicados, seus autores, os veículos em que

circularam, sua dispersão ao longo do tempo. Tal descrição foi então complementada com

uma análise qualitativa, com foco no mapeamento dos principais argumentos trazidos à

discussão sobre o acordo ortográfico. Tais argumentos foram divididos em três categorias em

função de sua natureza e enfoque: argumentos de caráter material, argumentos de caráter

funcional e argumentos de caráter simbólico. Ao final, procurou-se identificar as duas

principais perspectivas de análise que serão desenvolvidas nos capítulos cinco e seis

respectivamente: a articulação de marcadores identitários na construção de identidades para

Portugal e a construção de posições de simetria e assimetria elaboradas por ou atribuídas a

Portugal num contexto de contato e comparação com outras entidades nacionais e

supranacionais.

Page 147: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Capítulo 5

Análise dos marcadores identitários

Representações de identidade nacional: marcadores identitários

Pátria e nação

Soberania

Povo

Cultura e identidade

Matriz

Consolidação da análise

Page 148: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 149: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Embora as teorias sobre os nacionalismos sejam bastante diversas, é possível

identificar alguns elementos que são recorrentemente trazidos ao debate, consistindo numa

espécie de vocabulário dos nacionalismos. Tais elementos funcionam aqui como marcadores

identitários, ou seja, como indicadores de que o tema identidade nacional, em alguma

medida, é trazido ao debate, contribuindo para a argumentação em torno da discussão sobre o

acordo ortográfico.

Este capítulo se inicia com a identificação de tais marcadores identitários, resultante,

num primeiro momento, da contabilização de palavras do corpus dentre as quais são

selecionadas aquelas compatíveis com a noção acima apresentada. O conjunto de palavras

obtido, dividido em sete grupos, gira em torno dos conceitos de pátria, nação, soberania,

povo, cultura, identidade e matriz, como já referido no capítulo anterior.

A seguir, cada um desses grupos é analisado em função dos seus respectivos contextos

e usos. Além da análise individual dos grupos, alguns deles são também analisados de forma

contrastada em função da sobreposição de seu potencial de significação que, muitas vezes, faz

com que sejam utilizados como se fossem expressões equivalentes ou mesmo sinônimos: é o

caso de pátria e nação e também de cultura e identidade.

Conclui-se a etapa de análise desenvolvida neste capítulo com a elaboração de um

quadro-resumo dos principais resultados, tendo sempre em vista a relevância dos mesmos

para a reflexão sobre os diferentes papéis desempenhados pela língua, em sua perspectiva

simbólica, na construção das identidades nacionais na Europa de hoje, em geral, e de

Portugal, em particular.

O objetivo deste capítulo é identificar os diferentes discursos e representações

construídos para as identidades nacionais, sejam elas genéricas ou específicas de/para

Portugal, a partir da articulação de elementos que marcam a discussão sobre os

Page 150: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

132

nacionalismos, especialmente no contexto europeu, mas que são elaborados no contexto

específico de uma discussão sobre língua e ortografia.

Representações de Identidade Nacional: Marcadores Identitários

Como já explicitado, a fim de se identificar as diferentes representações identitárias

construídas ao longo do corpus, foram selecionados determinados elementos indicativos da

presença de argumentos relativos à identidade nacional no âmbito do debate: os marcadores

identitários. Nesse quesito, identificou-se sete conjuntos temáticos nomeados como pátria,

nação, soberania, povo, cultura, identidade e matriz.

Dentre os marcadores identitários acima identificados, a inserção da ideia de matriz é a

que parece merecer maior atenção e necessitar de alguma justificativa quanto ao seu potencial

na construção dos discursos de identidade. Antes de mais nada, tal expressão mostrou-se

recorrente na contagem de palavras do texto, o que levou a uma maior reflexão sobre os

possíveis significados que ela assume na argumentação sobre o acordo e especificamente no

contexto português.

Por um lado, a noção de matriz, como origem, parece remeter para o passado colonial

de Portugal e, consequentemente, para o movimento de difusão – e também de imposição – da

língua portuguesa a partir da metrópole para as colônias, ou seja, para os diferentes países que

fizeram parte do chamado império colonial português e onde hoje a língua portuguesa ainda

ocupa posição de prestígio como língua oficial. Essa referência parece importante no presente

contexto; afinal, o acordo ortográfico – tema dos artigos de opinião em análise – consiste num

acordo internacional sobre a ortografia do português firmado pelos diferentes países de língua

oficial portuguesa, todos ex-colônias de Portugal.

Por outro lado, mas de forma interdependente à reflexão anterior, matriz também

remete para a ideia de molde ou modelo a partir do qual algo é copiado ou reproduzido. Nesse

contexto, a matriz ganha em autenticidade, originalidade e correção, em comparação às cópias

ou reproduções que são obtidas a partir dela. Existe uma relação de poder que se estabelece

entre a matriz e seus derivados, com valorização do primeiro em relação aos demais.

Além da ideia de matriz como origem e de matriz como molde ou modelo, podem se

fazer presentes também as perspectivas da matriz como forma de controlo (matriz versus

subsidiárias) ou como forma de exercício de direitos ou prerrogativa de autoridade (matriz

Page 151: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

133

como detentora de pleno direito sobre a autoria do produto). Em todos esses casos, no entanto,

a ideia de matriz surge sempre caracterizada de forma positiva.

Retomando os conjuntos temáticos, ou seja, os grupos de palavras (e seus derivados e

flexionados) nomeados em função do tema ao qual remetem, embora cada um deles tenha

sido analisado separadamente, optou-se por organizá-los em pares nos casos em que uma

reflexão comparada mostrou-se interessante. Isso se deu com os grupos Pátria e Nação e

também com os grupos Cultura e Identidade – conceitos, que muitas vezes, são sobrepostos

ou mesmo tomados um pelo outro em certas situações. Tem-se, portanto, os seguintes

conjuntos: (i) Pátria e Nação, (ii) Soberania, (iii) Povo, (iv) Cultura e Identidade e,

finalmente, (v) Matriz, como indicado no Quadro 5.1, onde também se registra o total de

ocorrências de cada marcador ao longo do corpus.

Grupo Ocorrências

Identificadas

Matriz 9

Identidade 11

Povo 23

Cultura 55

Soberania 5

Nação 34

Pátria 15

Total 152 Quadro 5.1 – Marcadores identitários

Neste momento inicial da análise, vale observar o predomínio das ocorrências dos

marcadores de Cultura, que representam 36% do total, seguidas dos marcadores de Nação,

com aproximadamente 23%, e dos marcadores de Povo, com 14,3%. Houve um maior

equilíbrio entre as ocorrências de Pátria e Identidade, que reprentaram 9,3% e 8,1% do total,

respectivamente. Neste primeiro recorte, portanto, a associação entre língua – aqui

representada pela temática geral dos artigos analisados: o acordo ortográfico – e cultura é a

que se sobressai.

Por fim, resta ainda esclarecer que nem todas as ocorrências identificadas foram

consideradas relevantes para este estudo e, portanto, devidamente analisadas. Para cada

marcador, foram adotados critérios de exclusão específicos, que são identificados no início da

análise de cada grupo. A partir de agora, portanto, serão consideradas apenas as ocorrências

Page 152: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

134

que serão efetivamente analisadas. Para identificar o número de ocorrências que resistiram a

essa primeira triagem, consulte-se o Quadro 5.2.

Grupo Ocorrências

Analisadas

Matriz 9

Identidade 9

Povo 20

Cultura 43

Soberania 5

Nação 21

Pátria 13

Total 120 Quadro 5.2 – Marcadores identitários e contabilização de ocorrências

Pátria e Nação

No grupo de palavras pertencente ao marcador Pátria, foram analisadas treze

ocorrências, do total de quinze identificadas – foram excluídas as incidências em que a

palavra pátria surgia como exemplo de vocábulo, não em seu sentido próprio. Fazem parte

desse grupo as categorias morfossintáticas: pátria/s (61,5%), patriota/s (7,7%), patriótico

(7,7%), patriotismo/s (15,4%) e patriotísticas (7,7%), como indicado no Quadro 5.3.

Vocábulo Ocorrências (%)

Patriótico 1 (7,7%)

Patriotísticas 1 (7,7%)

Patriotismo/s 2 (15,4%)

Patriota/s 1 (7,7%)

Pátria/s 8 (61,5%)

Total 13 (100%) Quadro 5.3 – Pátria

Verificou-se o predomínio de referências à palavra pátria, no singular ou no plural,

representando 61,5% do total, como acima indicado. Em relação às demais palavras, cada

uma delas foi mencionada apenas uma vez, com exceção de patriotismo, que foi referido duas

vezes. Nota-se, portanto, uma certa diversidade de vocábulos associados ao tema da pátria e,

com exceção de “pátria”, algum equilíbrio entre as respectivas frequências no corpus.

Page 153: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

135

No que diz respeito à identificação de uma relação entre pátria e língua, com exceção

de dois casos, esta se verifica em todas as demais ocorrências (84,6% do total), seja para

afirmar uma interdependência entre tais conceitos, seja para negá-la, como indicado no

Quadro 5.4. Nesse sentido, considerou-se como referência à língua tanto a menção expressa

da palavra língua como da palavra ortografia – esta última referida tanto de forma direta

(menção à “ortografia”) ou indireta (recurso à expressão “modo como se escreve”). Na

maioria dos casos, essa interdependência é negada ou contestada, como exemplificado abaixo:

a minha pátria não é a língua portuguesa [DN02]

a língua mudou e a pátria, obviamente, não acabou [SL01]

Portugal continua a mesma pátria, apesar de já não se escrever como no tempo do… [SL01]

diz a leitora, "a ortografia nada tem a ver com patriotismo (...)” [DN03]

Há apenas duas ocorrências em que a relação entre pátria e língua é afirmada, que são

identificadas a seguir:

a língua é algo inegociável e patriótico [PB07]

existe um profundo desacordo face a esta imposição convencional de renegar de um trago a

forma como aprendemos a escrever e a falar a nossa pátria “pessoana” [PB16]

O recurso à ironia também se faz presente para criticar a associação entre língua e

pátria, segundo a qual, apoiar as mudanças ortográficas estabelecidas pelo AO90 seria um ato

antipatriótico, de traição à pátria, como se deduz da expressão “vende-pátrias”, utilizada,

inclusive, como título de um dos artigos (DN03). Em outras palavras, defender a manutenção

da ortografia do português anterior ao AO90 implicaria um ato de defesa da pátria, ou seja, de

patriotismo. Essa expressão é ainda qualificada de forma pejorativa pelo qualificador

“desavergonhados”, como explicitado a seguir:

(…) esta questão está entrelaçada com conceções quase “patriotísticas”, permita-se-me esta

“desfiguração”: parece existir um núcleo rebelde resistente, uma espécie de "maquisards" da

ortografia, oposto aos desavergonhados "vende-pátrias" que aceitam submissamente o império

do Acordo Ortográfico. [DN03]

Nessa representação, a crítica à posição assumida por aqueles que defendem tal

argumento é reforçada pelo uso de um neologismo – a palavra “patriotísticas” –, destacado

pelo uso de aspas, para caracterizar aqueles que defendem essa relação, associado ao recurso a

um vocabulário que remete para um cenário de violência e conflito, ao período das grandes

guerras – “maquisards” e “império”.

Page 154: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

136

Considerando-se as duas ocorrências em que a palavra pátria não é relacionada com a

língua, numa delas a pátria é personificada e transformada em agente, embora sua ação seja

marcada pela irrelevância ou desperdício, como exemplificado abaixo:

escândalos fátuos com que a pátria sazonalmente se entretém [DN02]

Na outra, a palavra pátria é utilizada como modificador na locução “expressão pátria”,

numa passagem, marcada pela ironia, em que a aprovação do acordo ortográfico é

“equiparada” à instauração de uma ditadura, como aqui registrado:

Não teria bem esse nome [ditadura], claro, por causa da carga negativa que arrasta, mas seria

uma coisa a bem do prestígio da expressão pátria, da sua unidade essencial, de uma política

comum, que esta coisa de ter tantos partidos a dizer-se e desdizer-se a todo o momento

(garantiam) é realmente uma canseira. [PB14, referência e destaques acrescentados]

Independentemente de se afirmar ou negar a relação entre pátria e língua, no entanto, o

que realmente importa é o fato de tal relação se ter verificado. Por esse motivo, não se levou

em conta o fato de tais relações serem construídas no âmbito de artigos que se posicionavam a

favor ou contra o acordo – mais ainda, não se fez distinção entre as situações em que tais

relações eram afirmadas e defendidas pelos respectivos autores e aquelas em que eram

identificadas para, a seguir, serem contestadas, num exercício de argumentação. A opção por

essa perspectiva de análise se justifica pelo fato de, neste estudo, buscar-se analisar as

diferentes representações, construídas em torno da língua, de identidade nacional, e não o

conteúdo do acordo ortográfico ou mesmo seu impacto, como já discutido anteriormente.

Estabelece relação afirmativa 2 (18,2%)

11 (84,6%) negativa 9 (81,8%)

Não estabelece relação 2 (15,4%)

Total 13 Quadro 5.4 – Relação entre pátria e língua

Retomando-se, agora, a análise do conjunto de ocorrências, apenas em dois momentos

os autores estabelecem uma relação de proximidade e/ou posse com a pátria – uma particular

(singular) e outra coletiva – ao se valerem dos pronomes possessivos “minha” e “nossa”

respectivamente. É curioso notar que, em ambos os casos, já parcialmente citados acima, os

Page 155: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

137

autores fazem referência ao poeta Fernando Pessoa, importante ícone da cultura portuguesa,

como abaixo citado:

À revelia da proclamação gratuita de Fernando Pessoa, a minha pátria não é a língua

portuguesa. Mas a minha língua é [DN02]

Pelo contrário, (…) não será despiciendo afirmar-se que existe um profundo desacordo face a

esta imposição convencional de renegar de um trago a forma como aprendemos a escrever e a

falar a nossa pátria “pessoana” [PB16]

Em resumo, as representações identitárias analisadas nesse grupo remetem

predominantemente para a associação entre língua e pátria, que mais frequentemente é negada

do que afirmada, mas também para a possibilidade de identificação singular ou coletiva entre

o indivíduo e a sua pátria e/ou seus compatriotas.

Passando-se à análise do marcador Nação, foram analisadas vinte e uma ocorrências

de um total de trinta e sete identificadas – foram excluídas as incidências em que a nacional/is

surgia como parte integrante da nomenclatura de um órgão, instituição, cargo público ou

entidade diretamente relacionada com a discussão sobre o acordo ortográfico. Fazem parte

desse grupo as categorias morfossintáticas nação (28,6%) e nacional/is (71,4%), como

indicado no Quadro 5.5.

Vocábulo Ocorrências

Nacional/is 15

Nação 6

Total 21 Quadro 5.5 – Nação

Predominam, portanto, as referências ao modificador nacional, no singular ou no

plural, em comparação com o substantivo nação, ao contrário do verificado para o marcador

Pátria, por exemplo, no qual o uso do substantivo é que prevalece.

Considerando-se a relação estabelecida entre língua e nação, esta se verifica em três

(50%) do total de seis ocorrências de nação. Em duas delas, dá-se de forma explícita, em

representações construídas de forma a intensificar o papel da língua na representação da

nação, como demonstrado a seguir:

Um povo é uma comunidade de língua e de cultura, independente das fronteiras ocacionais dos

Estados, mas é a língua que caracteriza e define uma Nação. [DN07, destaques

acrescentados]

Page 156: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

138

Em um tempo de crise do Estado-Nação, de soberania diluída em espaços políticos e

económicos de integração e, consequentemente, de esbatimento das mais lídimas marcas

identitárias dos povos, a língua constitui, sem dúvida, um dos últimos redutos do seu

específico modo de ser e, por isso, um instrumento privilegiado da sua afirmação neste

"admirável mundo novo" de "constelações pós-estaduais". [DN06, destaques acrescentados]

Na terceira ocorrência, tal relação é construída de forma implícita por meio da

reprovação do comportamento de Portugal, referido no texto como “uma nação do Velho

continente”, de permitir a “alteração leviana de algo tão básico na identidade, na estrutura, na

actividade de um país como o é a ortografia” (PB35, citação incluída mais à frente).

Ainda considerando-se apenas a palavra nação, esta é utilizada em sua acepção mais

genérica nas duas citações acima (DN07 e DN06). Nas demais ocorrências, a palavra nação

ora representa Portugal ora representa o Brasil, como indicado no Quadro 5.6. Quando

representa Portugal, num caso, fá-lo para criticar a ingerência de um economista estrangeiro

nos assuntos do país – repercutindo o teor de uma coluna assinada por Paul Krugman,

identificado logo no início do texto, em função da sua nacionalidade, como “o americano Paul

Krugman”, e publicada no jornal americano The New York Times –, comentários esses

caracterizados como sendo uma interferência indevida do estrangeiro sobre o destino

nacional:

É verdade que o sr. Krugman chegou a trabalhar no Banco de Portugal, mas um estágio de três

meses em 1976 não habilita ninguem a conduzir a nação através de uma coluna no New York

Times [DN11]

Nesse sentido, o uso da palavra nação (ou da expressão “dirigir a nação” em vez de

“dirigir o país”, por exemplo) parece aumentar a distância entre o estrangeiro e Portugal, uma

vez que o estrangeiro é exatamente aquele que não é nacional, ou seja, que não faz parte da

nação. Do mesmo modo e pelos mesmos motivos, a caracterização do outro como estrangeiro

parece automaticamente afirmar a sua falta de legitimidade para se manifestar sobre os

desígnios da nação portuguesa, como se a atitude do economista, mais do que representar uma

afronta à soberania nacional, configurasse uma situação absurda, consistisse quase numa

impossibilidade fática.

Em sentido genérico 2

Em referência a Portugal 2

Em referência ao Brasil 2

Total 6 Quadro 5.6 – Acepções de nação

Page 157: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

139

No outro caso, já referido acima, Portugal é caracterizado como uma “nação do Velho

Continente”, numa passagem em que o autor parece atribuir valor positivo à pertença de

Portugal à Europa (o “Velho Continente”) ao repreender o país pela posição assumida face ao

acordo ortográfico:

(…) indigna de uma nação do Velho Continente a alteração leviana de algo tão básico na

identidade, na estrutura, na actividade de um país como o é a o ortografia, alteração essa que se

traduz num autêntico “Processo Retro-ortográfico Sem Curso”. [PB35]

No exemplo acima, o decurso do tempo, ou seja, a antiguidade do país, parece assumir

contornos positivos no discurso de afirmação de uma identidade nacional – representação

suportada por muitas das teorias nacionalistas da maior parte dos séculos XIX e XX. Outra

leitura possível da referência acima citada relaciona-se com a ideia de uma suposta

superioridade europeia em relação aos demais continentes; afinal, a atitude de Portugal não é

necessariamente indigna de uma nação qualquer, mas sim de uma nação “do Velho

Continente”.

Nas duas ocorrências restantes, a palavra nação representa o Brasil, ora como sendo a

“nação com mais falantes de português”, ora como a “nação mais populosa”. Em ambas as

referências, mencionadas num mesmo artigo (PB03), a superioridade numérica brasileira

parece confundir-se com uma manifestação e/ou expressão de força. Tais referências surgem

em situação de contraste entre Portugal e Brasil, em que este último aparece em posição de

vantagem.

Concluída a análise das ocorrências de nação, passa-se agora às ocorrências da palavra

nacional, no singular ou plural, que é utilizada como modificador. Para melhor entender o seu

uso, optou-se por classificar os substantivos modificados por ela em três grandes grupos assim

denominados: (i) político-institucional, (ii) cultural e (iii) espacial, como referido no Quadro

5.7.

Caracteriza-se o âmbito político-institucional como sendo o da infraestrutura pública,

da atuação governamental, das esferas legal, social e econômica, do campo institucional e

regulado. Nesse contexto, predomina a ideia de nação como instituição, como pessoa jurídica

dotada de direitos e deveres, assim como a perspectiva da organização e também da

burocracia, em geral associadas à figura do governo. Tal classificação destaca-se também por

um maior grau de concretude, ou seja, é possível delimitar o conteúdo de expressões como

legislação nacional, por mais vasta que esta seja, ou mesmo identificar a estrutura do sistema

educativo nacional. Por outro lado, o mesmo não se pode dizer das expressões como

Page 158: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

140

“interesse nacional” e “dificuldades nacionais”, cujos conteúdos são difíceis de precisar de

forma genérica, mas que ganham concretude em contextos específicos.

Quadro 5.7 – Classificação de nacional/is

Caracteriza-se o âmbito cultural como sendo o das manifestações culturais

propriamente ditas, das artes, tradições, costumes e comportamentos. Nesse contexto,

predomina a ideia de nação como lugar de pertença e fonte de identidade. Parece haver

também um maior grau de abstração envolvendo as expressões classificadas nesta categoria,

sendo, à partida, impossível definir ou delimitar o conteúdo de cultura nacional ou atitude

nacional típica, ou mesmo identificar quem poderia ser classificado como sendo um artista

nacional.

Caracteriza-se o âmbito espacial como sendo o da abrangência física, da ocupação de

determinado território em seu sentido mais literal. Nesse contexto, predomina uma

perspectiva física da nação, ao mesmo tempo delimitadora – da vida e de uma dada

perspectiva (âmbito), por exemplo – e delimitada, isto é, confinada num espaço.

Houve uma predominância de ocorrências classificadas na categoria político-

institucional (60%), em comparação com as categorias cultural (20%) e espacial (20%), as

quais registraram o mesmo número de ocorrências. Uma vez que os artigos analisados têm

como tema um tratado internacional firmado, no âmbito da CPLP, sobre a ortografia da língua

portuguesa, partilhada por todos, essa predominância não é surpreendente. Talvez também por

isso mesmo a única expressão recorrente seja “interesse nacional” – representando 33% (três

Classificação Referências Nº Parcial Total

Político-

Institucional classe política nacional 1

9

(60%)

15

(100%)

legislação nacional 1

sistema educativo nacional 1

interesse nacional 3

dificuldades nacionais 1

ordens jurídicas nacionais 1

órgãos nacionais 1

Cultural cultura nacional 1 3

(20%) atitude nacional 1

artistas nacionais 1

Espacial vida nacional 1 3

(20%) espaço nacional 1

âmbito nacional 1

Page 159: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

141

de nove) do total das ocorrências no âmbito político-institucional e 20% (três de quinze) do

total geral de ocorrências –, pois, em última instância, é isso que está em jogo num tratado

internacional.

No entanto, também podemos analisar esses dados como uma forma de ampliação da

esfera da língua – afinal, é ela que motiva a discussão – isto é, como um indicador de que seu

papel extrapola a questão da cultura, abarcando áreas como infraestrutura, organizaçãos

políticas, etc. Ainda nesse sentido, vale a pena notar uma ausência: não há uma única

ocorrência de nacional (ou nacionais) direta e explicitamente relacionada à língua – língua

nacional ou ortografia nacional.

Em resumo, as representações identitárias analisadas nesse grupo não remetem de

forma significativa para uma relação direta entre nação e língua – mas, nos poucos casos em

que o fazem, merece destaque a intensidade das representações construídas. Por outro lado, as

ocorrências classificadas nesse grupo estendem-se por amplos e variados domínios da vida em

sociedade, com detaque para o âmbito político-institucional.

Contrastando os marcadores Pátria e Nação, verifica-se significativas diferenças no

uso de ambos. Se, para pátria, a relação com a língua é construída de forma direta e

recorrente, o mesmo não se dá com nação. O recurso aos possessivos como estratégia de

apropriação e/ou identificação surge apenas associado à pátria, nunca à nação. Em pátria,

predominam os usos como substantivo, enquanto, em nação, prevalecem os usos como

modificador.

Soberania

No grupo de palavras identificadas como marcadores de Soberania, foram analisadas

cinco ocorrências. Em três delas, o conceito de soberania aparece num contexto negativo,

marcado pela ideia de enfraquecimento ou falta (“perda de soberania”, em PB03, e “soberania

diluída”, em DN06) ou de limitação ou dificuldade de atuação (“jogos sinuosos de soberania”,

em PB33).

O tema da perda de soberania é bastante comum na atualidade, sendo, com frequência,

relacionado com os processos de globalização e com o atual cenário geopolítico e econômico,

marcado pela formação e fortalecimento de entidades e instituições supranacionais como a

própria União Europeia. Nesse contexto, o poder de decisão da entidade nacional sofreria

Page 160: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

142

grandes perdas, uma vez que os resultados e as consequências de suas decisões já não

poderiam ser confinados ao território nacional. Do mesmo modo, mas em sentido inverso,

também não seria possível blindar o território nacional contra decisões tomadas por entidades

estrangeiras.

Do mesmo modo, a limitação ou dificuldade de exercício da soberania está associada à

questão da perda ou limitação acima referida. Num cenário marcado concomitantemente pela

acentuada interdependência entre países e pelo aumento da complexidade das relações de

força entre eles, o modo de ação e realização desse poder soberano também é transformado.

Perda de transparência, instabilidade de posições e menor previsibilidade dos efeitos e

impactos decorrentes do exercício da soberania são alguns dos temas em destaque nesse

processo de mudança.

Além da ideia de perda ou enfraquecimento, a palavra soberania também é utilizada

para caracterizar certos órgãos públicos (“órgãos de soberania”, em PB03). Nesse contexto,

pode ser identificada como função e responsabilidade de certos órgãos de governo,

identificados como sendo os tomadores de decisão no âmbito do AO. Nesse sentido, a

expressão “órgãos de soberania” parece surgir como alternativa a “órgãos de governo”, no

sentido da administração pública. A relação entre soberania e governo mais uma vez remete

para o cenário dos Estados-Nação, aos quais cabe a função, a responsabilidade, o direito e a

prerrogativa do exercício da soberania.

Por fim, na última ocorrência analisada, a ideia de soberania extravasa o âmbito

político-administrativo, sendo associada ao conceito de cultura na expressão “soberania

cultural e não só” (PB35). Verifica-se, portanto, um alargamento do uso do conceito de

soberania para a esfera da cultura nessa construção, em que soberania surge como equivalente

a independência ou liberdade. Soberania cultural, portanto, poderia ser interpretada como a

liberdade da qual goza um país para construir, definir, proteger a sua própria cultura, sem

interferências externas indevidas.

Nesse contexto, mais uma vez o processo de globalização poderia ser invocado como

ameaça em função do potencial de homogeneização cultural que seria concretizado por via da

imposição de uma cultura ou padrão-cultural dominante e pela destruição das culturas locais

ou autóctones – tese desenvolvida e expressa no conceito de imperialismo cultural, já

abordado no segundo capítulo.

Simultaneamente ao alargamento acima mencionado, a ideia de soberania cultural

parece implicar também uma aproximação, mesmo que indireta, entre a ideia de Estado-

Nação e cultura, à medida que ambos passam a partilhar essa mesma característica ou poder: a

Page 161: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

143

soberania. Essa aproximação condiz com o crescente papel da cultura na construção das

identidades nacionais, tema que será retomado no desenvolvimento deste capítulo.

Em resumo, as representações identitárias analisadas neste grupo remetem para a

perda ou enfraquecimento da soberania estatal, afirmação recorrente em tempos de

globalização e no contexto europeu. Também atribuem responsabilidade aos órgãos públicos,

caracterizados como órgãos de soberania. Por fim, ao alargar o conceito de soberania para o

campo da cultura, chamam a atenção para uma perspectiva crítica da globalização, que é aqui

relacionada com o conceito de imperialismo cultural.

Povo

No grupo de palavras que constituem o marcador Povo, foram analisadas vinte

ocorrências das vinte e três identificadas – foram excluídas as incidências nas quais

popular/es e popularmente faziam parte do nome de um país ou remetiam à ideia de

frequência de uso ou popularidade/apreço, e não especificamente ao conceito de povo. Fazem

parte desse grupo as categorias morfossintáticas povo/s (80%) e popular/es (20%), como

referido no Quadro 5.8.

Vocábulo Ocorrências (%)

Popular/es 4 (20%)

Povo/s 16 (80%)

Total 20 (100%) Quadro 5.8 – Povo

Verificou-se a predominância das representações construídas em torno do substantivo

povo – quatro vezes superior a incidência de popular/es. Nas dezesseis ocorrências de povo,

destacam-se as construções em que algo é atribuído ao povo (43,75%), seguida das

referências a povo como agente ativo/passivo (37,5%) e, por fim, pelas referências em que

algo é endereçado/direcionado ao povo (18,75%), como indicado no Quadro 5.9.

Destacaram-se as relações de atribuição (43,75%), seguidas de perto pelas relações de

agência (37,50%). As relações de endereçamento, por outro lado, representam metade, ou

menos, das ocorrências classificadas nas categorias anteriores (18,75%).

Page 162: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

144

Tipo de

relação Referências Nº

Parcial Total

Atribuição de (um) povo 2

7

(43,75%)

16

(100%)

do/s povo/s 3

de (outros) povos 1

de cada povo 1

Agência o/s povo/s 3

6

(37,50%)

o (próprio) povo 1

os (outros) povos 1

“de” (pelo) povo 1

Endereçamento ao povo 2 3

(18,75%) para (todos os) povos 1

Quadro 5.9 – Classificação de povo

Nas ocorrências em que algo é atribuído ao povo, este é representado como portador

de vontade (em PB07), idiossincrasias, mundividências (ambas em PB25) e identidade (em

DN06 e EX04). O povo é também o detentor de vida (em DN10) e língua (em PB26), e essa

mesma língua é identificada como sendo sua propriedade e matriz (ambas em EX04). Por fim,

o povo é personificado – ganha “costas” (em DN07) – sendo então atraiçoado, enganado,

quando algo é feito às escondidas, sem que lhe seja permitida a participação, numa referência

ao processo de aprovação do AO.

Nas ocorrências em que o povo é agente, ora este é objeto de uma definição ou

caracterização – sendo equiparado a uma comunidade (em DN07) ou considerado incapaz

(DN10) – ora assume o papel de sujeito, desempenhando as funções de pensar (em PB25),

acordar/concordar (em DN10), dar uso, utilizar (ambos em PB29) e cercar (DN08).

No entanto, com exceção do verbo cercar, os demais processos parecem remeter para

uma certa passividade, aqui entendida como ausência de iniciativa e, talvez, de mobilidade,

isto é, de ação propriamente dita. Quanto a referência a cercar, parece também importante

ressaltar a opção do autor pela expressão “cercado de povo” em vez da alternativa “cercado

pelo povo”. A opção da preposição de em detrimento de por parece indicar uma espécie de

despersonalização ou de coisificação do povo. Nesse contexto, o povo que cerca não parece

representar uma ameaça, pelo contrário, é quase a matéria que cerca o orador, que também

poderia estar cercado por árvores, cadeiras ou problemas. Mais uma vez, portanto, a

possibilidade de ação parece esvaziada.

Por fim, o povo como destinatário de algo, isto é, em situações em que algo é a ele

endereçado, aparece sempre em posição desfavorável, caracterizada pela perda de poder ou

capacidade. Nessas relações de endereçamento, o povo é invariavelmente subestimado, seja

Page 163: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

145

na perspectiva em que é obrigado a ceder – algo é imposto ao povo (em PB03) –, seja na

perspectiva em que é incapaz de entender – algo é explicado ao povo (em PB11) – ou seja na

perspectiva em que lhe é retirada a iniciativa da decisão – algo é considerado adequado ao

povo (em DN06).

Das quatro ocorrências de popular, em metade delas este é definido em oposição a

erudito (em PB06 e PB33) e, na outra metade, é utilizado como modificador das massas (em

PB01) e de dinâmicas (em DN10). O povo organiza-se em massas simultaneamente “dotadas

de vigor e liberdade”, mas “ignorantes”, e que, por isso, precisam ser instruídas e iluminadas.

É bem verdade que essa última afirmação é feita em tom de ironia, deixando claro que o autor

não partilha dessa ideia, mas tal recurso, em vez de negar a suposta ignorância das massas,

pressupõe, em alguma medida, que essa percepção é recorrente ou mesmo generalizada.

Passando-se agora à análise do papel da língua nas representações construídas em

torno do conceito de povo, pode-se identificar três linhas principais de argumentação, que

giram em torno da concepção de língua como (i) elemento constituinte ou formador dos

povos, (ii) manifestação ou expressão do modo viver e pensar ou (iii) bem, recurso ou

propriedade dos povos. Em geral, tais noções são de alguma forma sobrepostas, não sendo

possível estabelecer linhas divisórias claramente demarcadas. Ainda assim, no entanto, e

apesar de todas as nuances e interdependências entre tais argumentos, essa divisão pode ser

útil para se refletir sobre as relações estabelecidas entre língua e povo.

São exemplos da perspectiva da língua como elemento constituinte ou formador dos

povos os seguintes excertos:

Em um tempo de crise do Estado-Nação, de soberania diluída em espaços políticos e

económicos de integração e, consequentemente, de esbatimento das mais lídimas marcas

identitárias dos povos, a língua constitui, sem dúvida, um dos últimos redutos do seu [Estado-

Nação/povos] específico modo de ser e, por isso, um instrumento privilegiado da sua

afirmação neste "admirável mundo novo" de "constelações pós-estaduais". [DN06, referências

e destaques acrescentados]

Um povo é uma comunidade de língua e de cultura, independente das fronteiras ocasionais

dos Estados, mas é a língua que caracteriza e define uma Nação [DN07, destaques

acrescentados]

São exemplos da perspectiva da língua como manifestação ou expressão do modo

viver e pensar as representações abaixo:

A ideia espantosa de a escrita, manifestação por excelência da vida de um povo, ser

negociada por academias e imposta por lei só poderia surgir num país de atitude aristocrata,

hoje como na Primeira República. [DN10, destaques acresentados]

Page 164: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

146

Um tal exemplo é apenas útil para quem estuda Latim, mas diz-nos de como a partir de

famílias de palavras as diversas línguas formam cultura, e de como os povos que as falam e

as escrevem pensam. [PB25, destaques acresentados]

A minha experiência de classicista, de passagem pela gramática comparativa (…), abriu-me à

percepção das constantes e das volubilidades da semântica e dos étimos e, com isto, das

idiossincrasias e mundividência de cada povo falante de uma das muitas línguas desta

grande família. [PB25, destaques acresentados]

São exemplos da perspectiva da língua como bem ou propriedade dos povos as

passagens a seguir:

Para o acordista, mesmo sendo um leigo ou exactamente por ser um leigo, o linguista é uma

espécie que vai contra um século democrático em que a língua é do povo. [PB26, destaques

acresentados]

-, a entrada em vigor do AO deverá ser diferida para o momento em que, precisamente, a

existência de um vocabulário comum, contendo as grafias consideradas adequadas para todos

os povos da lusofonia, torne finalmente exequível o clausulado do Tratado. [DN06, destaques

acresentados]

E, ainda, num último exemplo que parece ilustrar bastante bem o modo como os

argumentos acima são entrelaçados:

Posto isto, o AO é importante porque aproxima da fonética uma série de palavras. E fá-lo, pela

primeira vez, em função de um idioma que, sendo português, é também propriedade, matriz

e identidade de outros povos e de outras latitudes. [EX04, destaques acresentados]

Em resumo, as representações identitárias analisadas neste grupo remetem para uma

ideia de povo em posição de subalternidade ou passividade. Na maioria das vezes, surge como

objeto, não como sujeito/ator. A relação entre língua e povo também é explicitada, sendo

construída, em geral, de forma a valorizar o papel da língua na constituição e nos modos de

ser e viver de um povo, que é representado como seu proprietário ou usuário privilegiado.

Cultura e identidade

Nos marcadores de Cultura, foram analisadas quarenta e três ocorrências das

cinquenta e cinco encontradas – foram excluídas as incidências em que as palavras cultura e

cultural surgiam como parte integrante da nomenclatura de um órgão, instituição, cargo

público ou entidade. Fazem parte desse grupo as categorias morfossintáticas cultura (30,2%),

cultural/is (60,5%) e culturalmente (9,3%), como indicado no Quadro 5.10.

Page 165: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

147

Vocábulo Ocorrências (%)

Cultural/is 26 (60,5%)

Cultura 13 (30,2%)

Culturalmente 4 (9,3%)

Total 43 (100%) Quadro 5.10 – Grupo cultura

Verificou-se, portanto, o predomínio do modificador cultural/is (60,5%), seguido por

cultura (30,2%), com metade das ocorrências do primeiro. As referências a culturalmente, por

sua vez, representam pouco mais de 9% do total de referências.

Considerando-se apenas cultura, em oito ocorrências de um total de treze, a palavra

ora modifica ora é modificada. Analisando-se esses oito casos, quando modifica (25%, ou

seja, em dois entre oito casos), recai sobre os conceitos de homem e comunidade – “homem

de cultura”, em DN04, e “comunidade de cultura”, em DN07. Quando é modificada (75%, ou

seja, em seis de um total de oito casos), recebe os atributos de “abertura e fair play” (em

DN10), “nacional” (em DN10), “portuguesa” (em PB03 e PB29) ou ainda os pronomes

possessivos minha (em PB29) e nossa (em DN10), como se verifica no Quadro 5.11.

Modifica ou é

modificada

É modificada Possessivos 2

6 8

Portuguesa/Nacional 3

Abertura e ‘fair play’ 1

Modifica 2

Outros 5

Total 13 Quadro 5.11 – Classificação dos usos da palavra cultura

Considerando-se o grupo de ocorrências em que cultura é modificada (seis casos),

registra-se o uso do pronome possessivo (33,3% dos casos) tanto para indicar uma relação de

identidade entre o autor e a cultura à qual se refere (“minha cultura”), quanto para indicar

maior proximidade entre o autor e os portugueses em geral (“nossa cultura”), condição que,

neste contexto específico (jornal português de circulação nacional), poderia ser atribuída à

grande parte dos leitores.

Ainda no que se refere ao uso de possessivos, parece interessante destacar que a

referência à “minha cultura” é feita por uma autora de nacionalidade espanhola, que afirma

ser a língua portuguesa parte da sua cultura. Este é um dos argumentos dos quais a autora se

vale para justificar sua manifestação sobre o AO, como se o seu texto consistisse em uma

Page 166: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

148

intromissão indevida pelo fato de ela não ser portuguesa ou, ao menos, de não ser falante

nativa do português e, portanto, tal justificativa fosse necessária.

Em três ocorrências (50%), a cultura é identificada como portuguesa, duas vezes de

forma direta (“cultura portuguesa”), e uma vez de forma indireta (“cultura nacional”). Ainda,

se nós considerarmos que a referência à “nossa cultura” foi feita por um autor português,

teríamos de adicionar mais uma ocorrência à forma indireta, considerando, portanto, que do

total de seis casos em que a palavra cultura é modificada, esse modificador remete para

Portugal em 66,7% dos casos.

É a partir da relação acima que são construídas as representações em que a cultura

aparece em situação de risco ou perigo iminente, sendo tal risco manifestado expressamente

ou assumindo os contornos de um alerta ou, ainda, de uma falta – é o que acontece em 30,8%

das ocorrências (ou seja, em quatro de treze casos). A ideia central é a de que o AO, ao

modificar a ortografia – e, por inferência, a língua –, modificaria também a cultura a ela

associada.

Essa ideia de risco é manifestada expressamente – “descaracterizar a cultura através da

‘linguagem’ escrita” (em DN07) e “os que tomam o novo acordo como atentado à cultura

nacional” (em DN10) –, mas também pode assumir os contornos de um alerta – “a cultura não

pode nem deve ser colonizada” (em PB07). Ainda nessa ideia de risco está a não afirmação da

cultura no âmbito internacional, numa passagem em que se criticam os esforços (ou a falta

deles) de divulgação da língua, destacada a seguir:

A fraca implantação e afirmação, no mundo, do português escrito e falado em Portugal,

podendo ter raízes fonológicas, não iliba os responsáveis políticos que desistiram de afirmar a

cultura portuguesa fora de portas. Veja-se o miserável papel que o Instituto Camões tem

desempenhado ao optar pela redução do apoio ao ensino do Português no estrangeiro, junto das

nossas comunidades de emigrantes que poderiam ser um dos veículos mais importantes da

difusão da cultura e da língua portuguesa [PB03]

No que se refere explicitamente à relação entre língua e cultura, do total de treze

ocorrências, em três delas (23,1%), a ideia de cultura é diretamente relacionada à língua.

Nesse contexto, a língua surge como um elemento formador e conformador da cultura, como

indicam os seguintes exemplos:

A etimologia é configuradora de memória e cultura [PB25]

(…) as diversas línguas formam cultura [PB25]

(…) o Português faz parte da minha cultura [PB29]

Page 167: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

149

O discurso de associação de uma língua – em sentido amplo – a uma cultura é

recorrente nas teorias dos nacionalismos. Nesse sentido, a língua que se fala representaria um

elemento essencial da cultura partilhada, como se a língua carregasse em seu bojo valores,

afetos, anseios, habilidades, impulsos, forças, fraquezas, vivências, histórias, memórias e

gostos.

Concluída a reflexão sobre as referências à cultura, passa-se à análise das vinte e seis

ocorrências em que se verifica a menção a cultural/is. Para melhor entender sua utilização,

optou-se pela classificação dos elementos modificados por ela em quatro grupos: (i)

patrimônio, (ii) contato ou partilha, (iii) identidade e (iv) campo, como detalhado no Quadro

5.12.

Tipo Referência Nº Parcial

Patrimônio

bens culturais 1

10

(38,5%)

custos culturais 1

patrimônio cultural 3

empobrecimento cultural 1

mais-valia cultural 1

valor cultural 2

riqueza cultural 1

Contato

contexto de voragem cultural global 1

6

(23,1%)

relações culturais 1

autonomia cultural 1

influência cultural 1

epopeia cultural 1

soberania cultural 1

Campo

assunto cultural 1

5

(19,2%)

questão cultural 1

plano cultural 1

fundamento cultural 1

responsabilidade cultural 1

Identidade

atitude cultural 1

5

(19,2%)

traço cultural básico 1

identidade cultural 1

memória cultural 1

contextualização histórico-cultural 1

Total 26

Quadro 5.12 – Classificação de cultural/is

Page 168: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

150

Em Patrimônio (i), foram classificadas as representações em que o conceito de cultura

é, em alguma medida, equiparado a um bem dotado de valor, inclusive econômico, e passível

de ser possuído. Tais representações, portanto, reforçam uma perspectiva patrimonial de

cultura.

Em Contato ou Partilha (ii), foram classificadas as representações em que o conceito

de cultura surge circunscrito ou limitado, em alguma medida, por outras culturas – quer em

situação explícita de contato com culturas diversas, quer em situação implícita, onde se afirma

sua soberania ou autonomia (afinal, só faz sentido afirmá-lo em face de um outro). Em outras

palavras, foram assim classificadas as representações que remetiam para um cenário de

diversidade cultural, de contato e partilha entre culturas.

Em Identidade (iii), foram classificadas as representações nas quais a ideia de cultura é

associada a elementos formadores e conformadores de identidade, em sentido mais estrito, o

que inclui referências a memória, história, comportamentos entre outros. Em Campo (iv),

foram classificadas as representações nas quais a cultura configura uma área temática ou de

ação, isto é, um campo de atuação ou enquadramento temático.

Houve uma predominância de referências na categoria Patrimônio, que representou

38,5% do total, seguido por Contato, com 23,1%. As categorias Campo e Identidade, por sua

vez, reuniram o mesmo número de referências, respondendo, cada uma, por 19,2% do total.

No que diz respeito a essas três últimas categorias, no entanto, apesar da diferença

significativa em pontos percentuais, vale observar que estes refletem uma diferença bastante

pequena em números absolutos: seis casos na categoria Contato contra cinco casos,

respectivamente, nas categorias Campo e Identidade. Esse relativo equilíbrio nas categorias

mencionadas, de certo modo, coloca em destaque a predominância da categoria Patrimônio.

A atribuição de valor patrimonial à cultura é uma tendência cada vez mais forte, haja

vista a Declaração Universal da Diversidade Cultural, da UNESCO, de 2002, que, embora

não o afirme expressamente, caracteriza a diversidade cultural como “patrimônio” e fonte,

entre outros, de crescimento econômico, além de definir bens e serviços culturais como

“mercadorias”, embora distintas das demais.

De certa forma, esse tema também está relacionado à ideia de contato ou partilha, que

pode ser ampliada para a esfera da diversidade cultural e da interculturalidade. Considerando-

se que o valor de um bem depende do mercado e de relações muitas vezes complexas de

oferta e demanda. É nesse contexto de interculturalidade, isto é, de contraste e contato que a

ideia de cultura como bem dotado de valor em boa parte se assenta.

Page 169: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

151

A cultura como fator de identidade também é um tema central nas discussões sobre os

nacionalismos, onde conceitos como nacionalismo cultural, identidade cultural e identidade

nacional se confundem e sobrepõem. No contexto atual, de porosidade de fronteiras e intensa

atividade migratória, parece ganhar cada vez mais relevância o recurso à cultura como fator

de identidade e recurso de identificação.

Considerando-se, agora, as ocorrências de culturalmente, verifica-se 4 (quatro) outras

ocorrências em que a cultura surge como um modo de ser – “culturalmente interessante” (em

PB03) e “culturalmente empinantes” (em PB25) – ou mais especificamente como um modo

de ser português, como exemplificado a seguir:

Portugal é um país culturalmente aristocrata [DN10]

Portugal, apesar da multissecular aliança britânica, é culturalmente francês [DN10]

Por fim, uma última observação: a palavra cultura sempre aparece no singular, o que,

de algum modo, acentua sua unidade, isto é, a ideia de inteireza. Mais ainda, parece refletir

uma concepção essencialista da ideia de cultura, atribuindo ou reconhecendo uma certa

homogeneidade em seu interior.

Em resumo, as representações identitárias que se destacam na análise desse marcador

estabelecem uma relação entre língua e cultura, ao mesmo tempo em que caracterizam uma

alteração à língua (neste caso, a alteração ortográfica instituída pelo AO90) como risco ou

ameaça à cultura. Também equiparam cultura a patrimônio, num cenário marcado pela

competição entre culturas (interculturalidade) e pela utilização recorrente da cultura no

processo de construção de identidades.

Passando-se, agora, ao estudo dos marcadores de Identidade, foram analisadas nove

ocorrências das onze identificadas – foram excluídas as incidências em que identidade era

sinônimo de semelhança ou de autoria. Fazem parte desse grupo as categorias

morfossintáticas identitário/as (22,2%) e identidade (77,8%), como referido no Quadro 5.13.

Vocábulo Ocorrências (%)

Identitário/as 2 (22,2%)

Identidade 7 (77,8%)

Total 9 (100%) Quadro 5.13 – Identidade

Page 170: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

152

Houve significativo predomínio das referências à identidade, que representam 77,8%

do total, em comparação com identitário e identitárias, com 22,2%.

Considerando-se as ocorrências de identidade, em todas elas é construída alguma

relação com a ideia de língua ou de ortografia. Ora se reconhece língua/ortografia como

elementos determinantes na configuração da identidade de uma dada comunidade ou país, ora

se nega. Do total de sete ocorrências analisadas, em quatro delas (57,1%) a relação que se

constrói é entre identidade e ortografia; nas outras três (42,9%), por outro lado, constrói-se

uma relação entre identidade e língua, como indicado no Quadro 5.14.

Relação Nº

Identidade/Ortografia 4 (57,1%)

Identidade/Língua 3 (42,9%)

Total 7 Quadro 5.14 – Identidade: língua x ortografia

Nas ocorrências em que se constrói uma relação entre língua e identidade, essa é

afirmada em todos os três casos, ou seja, nunca é negada. Nas ocorrências em que se constrói

a relação entre ortografia e identidade, essa é negada em 75% dos casos e afirmada nos

restantes 25%, que, em números absolutos, correspondem a um único caso, como destacado

no Quadro 5.15.

Relação Negada Afirmada Nº

Identidade/Ortografia 3 1 4

Identidade/Língua 0 3 3

Total 3 4 7

Quadro 5.15 – Relações de identidade

É importante destacar que as representações construídas em torno do conceito de

língua não necessariamente excluem o conceito de ortografia. De todo modo, sempre que a

escolha do autor recai sobre a referência à língua, a relação de interdependência entre esta e o

conceito de cultura é afirmada. Já as representações construídas em torno do conceito de

ortografia parecem assumir sentido mais restritivo, instituindo ou afirmando, em alguma

medida, uma diferença ou distinção entre língua e ortografia. Em tais casos, a situação se

Page 171: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

153

inverte, ou seja, a relação de interdependência entre ortografia e cultura é predominantemente

negada (em 75% dos casos, isto é, em três de quatro ocorrências).

Considerando-se novamente o conjunto das ocorrências de identidade, a relação de

interdependência entre identidade e língua/ortografia é afirmada em 57,1% dos casos, negada

em 42,9%, ou seja, mesmo que não se faça distinção entre as referências à língua e à

ortografia, ainda assim prevalecem as representações que estabelecem relação de

interdependência com o conceito de identidade.

Nas ocorrências de identitário e identitárias, as palavras modificadas são

respectivamente valor e marcas – “valor histórico, cultural e identitário”, em PB27, e “marcas

identitárias”, em DN06 (já citado nas páginas 138 e 145). Em ambos os casos, no entanto, a

relação entre língua/ortografia e identidade é afirmada, como exemplificado:

Sob a égide da utópica unificação linguística o AO90 mutila e desfigura a ortografia da L.P e,

juntamente, todo o valor histórico, cultural e identitário que cada variante encerra. [PB27]

Para esta análise, importa observar sobretudo que em nenhum momento a relação

entre a língua, propriamente dita, e a noção de identidade é negada. Pode-se pôr em causa a

sua exclusividade ou propriedade, isto é, a afirmação de que a uma dada língua corresponde

uma nação, mas não o seu valor como elemento identitário.

Em resumo, as representações identitárias reunidas e analisadas neste grupo remetem

predominantemente para a associação entre língua e identidade, em geral, para afirmá-la.

Entretanto, nos casos em que língua e ortografia são representados a partir da diferença, a

relação entre identidade e ortografia é mais frequentemente negada.

Contrastando os marcadores Cultura e Identidade, verifica-se que a língua é utilizada

como elemento relevante marcadamente nas representações de identidade, sendo as

representações de cultura muito mais variadas. A perspectiva patrimonial só se aplica à ideia

de cultura, embora seja possível estabeler uma relação entre língua e cultura, língua e

identidade e, desse modo, entre cultura e identidade.

É ainda importante destacar que, assim como as ocorrências de cultura, as de

identidade estão sempre no singular – não há exceções. De certa forma, parece haver o

entendimento corrente de unidade, isto é, a ideia de um todo ou de completude: uma cultura

e/ou uma identidade. Essa percepção, mais uma vez, revela, de certo modo, uma perspectiva

essencialista que ainda parece marcar muitos dos discursos sobre as identidades – e também

sobre as culturas.

Page 172: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

154

Matriz

Nos marcadores de Matriz, foram analisadas nove ocorrências. Em quase todas

(88,9%), a palavra matriz remete para a ideia de origem, realçando relações de dependência

entre línguas. A única exceção parece ser a representação construída em torno da associação

de matriz com identidade e cultura. Exemplo desse último caso é a citação abaixo:

Nós [portugueses] temos uma identidade cultural com quase um milénio, e não é por mudarem

algumas regras ortográficas que essa matriz se dilui [SL01]

Embora a interpretação acima pareça ser a mais razoável, também podemos construir

uma interpretação concorrente, que implicaria entender que a expressão “essa matriz” refere-

se a “regras ortográficas”, que, por sua vez, remeteriam para a ideia de língua. Nesse caso, a

palavra matriz estaria mais uma vez ligada ao contexto da língua e teríamos que todas as nove

ocorrências estariam ligadas a esse universo, sem exceção.

As referências à matriz, em resumo, remetem para uma associação com o contexto da

língua em oito ocorrências e para o contexto de identidade e cultura em um único caso, como

indicado no Quadro 5.16.

Contexto Nº

Língua 8 (88,9%)

Identidade e Cultura 1 (11,1%)

Total 9 Quadro 5.16 – Matriz

Retomando o grupo de ocorrências em que matriz é associada ao contexto da língua,

quatro delas (50%) consistem em citações de um editorial do Jornal de Angola, publicado em

9 de fevereiro de 2012, intitulado “Património em risco”. Numa dessas citações (em PB06), o

latim figura explicitamente como matriz da língua portuguesa. Nas outras três, idênticas, a

palavra matriz parece remeter, não mais para o latim, mas sim para o português europeu:

Se queremos que o português seja uma língua de trabalho na ONU, devemos, antes de mais,

respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil comércio das palavras. [DN15, EX03,

PB06]

Page 173: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

155

A interpretação acima baseia-se no fato de que, em suas três ocorrências, a citação

analisada é precedida por outra – uma vez integralmente, duas vezes apenas o trecho que

aparece abaixo em destaque – do mesmo editorial:

Ninguém mais do que os jornalistas gostava que a Língua Portuguesa não tivesse acentos ou

consoantes mudas. O nosso trabalho ficava muito facilitado se pudéssemos construir a

mensagem informativa com base no português falado ou pronunciado. Mas se alguma vez isso

acontecer, estamos a destruir essa preciosidade que herdámos inteira e sem mácula [PB06]

Na passagem acima, a referência às consoantes mudas e à ideia de herança parecem

remeter ao português europeu, que é então caracterizado como sendo uma “preciosidade” e

como uma língua “interia e sem mácula”, num contexto em que o AO é representado como

ameaça ou risco. De modo geral, ao longo do editorial do Jornal de Angola, os significados

de matriz parecem oscilar entre o Latim e o português europeu, sendo, em alguns casos, difícil

discernir qual deles está em causa.

Prossenguindo-se com a análise dos diferentes significados atribuídos à matriz, esta

ainda remete para o português europeu em outras duas ocorrências:

em Portugal e nos outros países que aprenderam a falar a partir da matriz europeia [PB13]

no universo que usa a língua portuguesa como matriz (dela fazendo derivar riquíssimas

variantes) [PB24]

Em uma outra ocorrência, a matriz não mais parece ser exclusivamente o português

europeu, mas sim a língua portuguesa em toda a sua diversidade:

Idioma que, sendo português, é também propriedade, matriz e identidade de outros povos e de

outras latitudes [EX04]

Por fim, numa última ocorrência a matriz passa a ser a Inglaterra, num contexto de

comparação entre a “matriz inglesa” e a “variante americana” (em PB24), como resumido no

Quadro 5.17.

De modo geral, parece subsistir a ideia de matriz como algo valorado positivamente,

como já discutido no início deste capítulo. A matriz como origem deve ser preservada e

respeitada. A relação entre a matriz e suas variantes traduz, em alguma medida, uma relação

de poder em que matriz é o pólo mais forte. A ideia de pureza e integridade atribuída à matriz

concorre para essa construção de significado.

Page 174: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

156

Referência Ocorrências (%)

Português europeu 5 (62,5%)

Língua portuguesa 1 (12,5%)

Latim 1(12,5%)

Língua inglesa (Inglaterra) 1(12,5%)

Total 8 (100%) Quadro 5.17 – Representações de matriz

Por fim, vale ainda destacar que, se na maioria das representações de língua como

matriz, esta é apresentada como matriz de outras línguas, há um único caso em que ela é

apontada como matriz dos povos que a falam, embora a distinção entre o português europeu

como matriz e os demais como variantes ainda esteja presente.

Em resumo, as representações identitárias identificadas nesse grupo remetem para a

ideia da língua como matriz, quer de outros povos, quer de outras línguas, prevalecendo a

identificação de Portugal como matriz da língua portuguesa.

Consolidação da análise

As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Pátria

frequentemente se valem da relação com a língua para, em seguida, negá-la. Não importa

aqui, no entanto, contabilizar quantas ocorrências afirmam e quantas negam tal relação – uma

vez que, no contexto do debate sobre o AO90, tais declarações se confundem com as

diferentes estratégias de argumentação a favor ou contra –, mas sim destacar a tensão

estabelecida no âmago da relação pátria/língua.

As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Nação, ao

contrário, não se destacam por estabelecerem relação com a noção de língua. Na maioria das

vezes, a palavra nação remete para um país específico. Considerando-se a totalidade das

ocorrências do grupo, com o predomínio dos registros de nação como modificador – ou seja,

com o uso de nacional/is – sua esfera de ação é ampliada especialmente para o campo

político-institucional e, a seguir, para os campos cultural e espacial.

As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Soberania

giram em torno da ideia de perda, risco ou ameaça à autonomia estatal, mas também ampliam

seu espaço de ação para a esfera da cultura. Partindo-se do pressuposto de que a noção de

soberania estatal açambarca a de soberania cultural, pode-se estender a ideia de perda, risco

Page 175: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

157

ou ameaça da primeira para a segunda. Tal cenário remete para o debate sobre um suposto

“imperialismo cultural” – que seria uma espécie de sucedâneo dos impérios do passado, ou

seja, uma nova forma de exploração e expropriação.

As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Povo

estabelecem relação com a noção de língua a partir de três perspectivas: a língua como

elemento constituinte ou formador dos povos, a língua como manifestação ou expressão do

modo viver e pensar ou a língua como bem, recurso ou propriedade dos povos. Em geral, o

povo é representado em situação de passividade, no pólo mais fraco de uma relação, como

atores secundários de sua própria história.

Grupo Representações

Pátria Estabelecem relação direta entre pátria e língua para, a seguir,

negá-la.

Nação

Salvo exceções, não estabelecem relação direta entre nação e

língua.

Alcançam variados domínios da vida em sociedade, com detaque

para o âmbito político-institucional.

Soberania Não estabelecem relação direta entre soberania e língua.

Remetem para o contexto de perda ou enfraquecimento.

Povo

Estabelecem relação direta entre povo e língua.

Representam o povo em posição de subalternidade ou

passividade.

Cultura

Estabelecem relação direta entre cultura e língua, caracterizada

pela interdependência.

Equiparam cultura a bem ou patrimônio.

Acentuam o papel da cultura na construção de identidades.

Identidade Estabelecem relação direta entre identidade e língua, em geral

para afirmá-la.

Matriz Estabelecem relação direta entre matriz e língua.

Quadro 5.18 – Marcadores identitários: quadro-resumo

As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Cultura

estabelecem relação com a língua, em geral, de interdependência. Nesse sentido, alterações à

língua implicariam alteração à cultura – em outras palavras, uma eventual situação de risco ou

ameaça à língua é considerada também um risco ou uma ameaça à cultura. Também são

recorrentes as representações em que se entende a cultura como um bem, ao qual se atribui

um dado valor, inclusive econômico. Nesse contexto, também se verifica a referência a

Page 176: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise dos marcadores identitários

158

cenários marcados pelo contato (interculturalidade) e competição entre culturas, assim como

pela utilização recorrente da cultura no processo de construção de identidades.

As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Identidade

remetem predominantemente para a associação com a língua. Na maioria das vezes, essa

relação é de afirmação, ou seja, a uma dada língua corresponde uma certa identidade ou,

ainda, reconhece-se à língua um papel decisivo – ou, ao menos, bastante importante – no

processo de construção dessas identidades.

As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Matriz, na

maioria das vezes, atribuem às línguas esse papel. Prevalecem as referências à Língua

Portuguesa e, mais especificamente, o português europeu. As línguas são representadas como

matriz de outras línguas ou mesmo de povos.

Síntese

Neste capítulo, procurou-se identificar e analisar as diferentes representações

identitárias construídas a partir da articulação de determinados elementos – identificados

como marcadores identitários –, selecionados em função de sua frequência ao longo do

corpus e da importância a eles atribuída pelas teorias sobre os nacionalismos na Europa. Os

grupos de palavras analisados foram intitulados de Pátria, Nação, Soberania, Povo, Cultura,

Identidade e Matriz. Primeiro foram contabilizadas as diversas ocorrências desses elementos

para a seguir, serem analisadas em seu contexto de uso, procurando-se destacar as situações

em que a língua era também mobilizada na construção de discursos e representação de

identidade nacional. Por fim, procurou-se reunir os principais resultados da análise num

quadro-resumo, que encerra essa etapa da reflexão.

Page 177: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Capítulo 6

Análise das relações de simetria e assimetria

envolvendo Portugal

Portugal numa perspectiva comparada: relações de simetria e assimetria

Análise das relações comparativas simétricas

Análise das relações comparativas assimétricas

Consolidação da análise

Page 178: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 179: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Para se refletir sobre os processos de construção das identidades nacionais,

interessa analisar as diferentes relações estabelecidas entre países, ou melhor, entre

diferentes entidades nacionais e/ou supranacionais. Aproximação e afastamento,

identificação e diferenciação, manifestação de força ou de fragilidade, afirmação de

vantagem ou desvantagem são algumas das estratégias adotadas na construção de um eu

nacional e de um ou vários outros estrangeiros.

A perspectiva de análise desenvolvida neste capítulo centra-se no processo acima

referido. Primeiro busca-se identificar a presença de outros países ao longo do corpus num

contexto de contato e/ou comparação com Portugal. Tais relações são identificadas como

simétricas ou assimétricas em função de estabelecerem, respectivamente, posição de

igualdade (nivelamento ou equilíbrio de forças) ou diferença (desnivelamento ou

desequilíbrio de forças) entre Portugal e as demais entidades nacionais ou supranacionais.

A seguir, passa-se à análise de tais relações. As simétricas são classificadas como

convergentes ou divergentes, segundo a direção do movimento a elas atribuídos nos

diferentes contextos em que surgem: aproximação (convergência, portanto) ou afastamento

(divergência). Nas assimétricas, por sua vez, busca-se identificar qual é a posição assumida

por ou atribuída a Portugal no campo do embate de forças entre as diversas entidades

nacionais ou supracionais referidas – se o pólo forte ou o pólo fraco.

Conclui-se este capítulo com a consolidação da análise das relações simétricas e

assimétricas mapeadas no corpus. Os discursos de aproximação ou afastamento, por via da

análise das relações de simetria, são contrastados com os discursos construídos em torno de

relações de força, aqui concretizados, na maioria das vezes, na afirmação de posições de

vantagem ou desvantagem. No final, elabora-se um quadro-resumo com os principais

resultados da análise realizada nesta etapa da pesquisa.

Page 180: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

162

O objetivo deste capítulo é identificar e analisar os diferentes discursos de

construção do eu nacional por via da comparação ou contraste com a ideia de um ou vários

outros estrangeiros. Busca-se, em outras palavras, analisar o mecanismo de construção de

identidade e diferença que é posto em movimento no processo de construção das

identidades em geral e das identidades nacionais especificamente.

Portugal numa perspectiva comparada: relações de simetria e assimetria

O ponto de partida da presente análise consiste na identificação das situações – um

total de oitenta e quatro – em que Portugal é representado numa relação de comparação

e/ou contato com outros países. Com o intuito de facilitar a identificação de tais situações

ao longo do corpus, manteve-se a notação inicial, que consistiu na atribuição de um código

composto por duas letras e dois algarismos a cada artigo, como já indicado na página 120.

No entanto, como é possível ocorrer mais de uma situação de comparação num mesmo

artigo, optou-se pelo acréscimo de um algarismo ao código inicial, dele separado por um

hifen.

Retomando-se a análise das situações de comparação, é importante esclarecer que,

com o objetivo de identificá-las ao longo do corpus, foram consideradas tanto as situações

em que Portugal é efetivamente nomeado, como aquelas em que sua presença pode ser

facilmente inferida, sendo o mesmo critério aplicado aos demais países, como

exemplificado abaixo:

Do lado de cá do Atlântico [CM01-2]

Africanos e asiáticos… portugueses e brasileiros [CM02-1]

(…) é do mais alto interesse nacional que… toda a comunidade que se exprime

oficialmente em português [SL01-3]

A análise que se segue é realizada em duas etapas: na primeira, procura-se

identificar qual é a posição assumida por ou atribuída a Portugal face aos outros países

(simétrica ou assimétrica); na segunda, busca-se caracterizar essas relações (em

convergente ou divergente, no caso das relações simétricas, ou em posição de vantagem ou

desvantagem, no caso das relações assimétricas).

Quando a relação de comparação entre Portugal e outras entidades nacionais ou

supranacionais indica, portanto, paridade de posições, ela é classificada como simétrica.

Page 181: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

163

Quando, no entanto, essa relação é marcada pela disparidade de posições – seja pela

valorização ou desvalorização de uma das partes ou pela simultânea valorização de uma

das partes e desvalorização da outra – ela é classificada como assimétrica.

Uma primeira análise das situações de comparação identificadas levou ao

desdobramento dos oitenta e quatro casos iniciais em noventa e quatro relações de

comparação. A razão desse desdobramento foi a constatação de que nove das situações

identificadas foram construídas a partir de duas ou três relações de comparação

simultâneas ou interdependentes, como, a seguir, exemplificado:

Em que pese a estas intenções mais poéticas do que realistas, o duro facto é que o AO90

vem consagrar duas ortografias - pelo menos - bem diferenciadas: uma para Portugal e

outra para o Brasil, com singular menoscabo pelas eventuais peculiaridades ortográficas

dos restantes países da CPLP, que provavelmente terão de aderir ou a uma, ou a outra - a

menos que surjam terceiras e quartas alternativas para os casos específicos de Angola,

Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor... [PB20-1]

Neste exemplo, o autor constrói, num primeiro momento, uma situação de paridade

entre Portugal e Brasil, embora marcada pela diferença, para, a seguir, construir uma

relação de disparidade, onde Portugal (assim como o Brasil) ocupa o pólo da força e/ou

vantagem face aos demais países da CPLP. Verifica-se, portanto, duas relações de

comparação entretecidas, o que leva à classificação da passagem acima na categoria de

situação de comparação complexa.

Em resumo, as situações de comparação constituídas por uma única relação

comparativa foram classificadas como simples, as demais foram classificadas como

complexas. Do mesmo modo, as relações comparativas que constituem situações de

comparação complexas foram classificadas, cada uma delas, como relação comparativa

complexa, enquanto as demais relações comparativas foram classificados como simples,

como indicado no Quadro 6.1.

Para facilitar a identificação dessas relações comparativas complexas no corpus,

optou-se pelo acréscimo das letras A e B ao código já apresentado acima. Portanto,

considerando-se essa última citação (PB20-1), a relação comparativa estabelecida entre

Portugal e Brasil é identificada como PB20-1A, enquanto a relação comparativa

estabelecida entre Portugal e os “restantes” países da CPLP é identificada como PB20-1B.

(Para uma visão geral do quadro de notações adotado nesta etapa da pesquisa, consulte os

apêndices C e D.)

Page 182: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

164

Houve, portanto, um predomínio das situações de comparação simples, que

responderam por 89,3% do total de situações. Do mesmo modo, e em consequência disso,

verificou-se também o predomínio das relações comparativas simples, que responderam

por 79,8% do total, contra 20,2% de relações comparativas complexas.

Tipo Situação de

comparação

Relação

comparativa

Simples 75 (89,3%) 75 (79,8%)

Complexas 9 (10,7%) 19 (20,2%)

Total 84 (100%) 94 (100%) Quadro 6.1 – Situações de comparação e relações comparativas simples ou complexas

Concluída essa primeira etapa, passou-se à análise das relações comparativas, que

contabilizaram um total de noventa e quatro, como já referido. Ao final dessa nova

classificação, verificou-se o ligeiro predomínio das relações de assimetria (51,1%) face às

de simetria (48,9%), como explicitado no Quadro 6.2.

Relações de Quantificação (%)

Assimetria 48 (51,1%)

Simetria 46 (48,9%)

Total 94 (100%) Quadro 6.2 – Relações simétricas ou assimétricas

Em outras palavras, em pouco mais da metade das relações de comparação

identificadas, registrou-se uma diferença de posição entre Portugal e outras entidades

nacionais ou supranacionais. Essas diferenças de posição implicam desequilíbrio de forças

entre Portugal e os demais intervenientes, sem, contudo, ser possível afirmar nesse

momento quais partes foram representadas nos pólos da força/vantagem.

Um exemplo de relação comparativa simétrica, na qual Portugal é representado pela

Academia das Ciências de Lisboa e o Brasil – o interveniente em causa – é representado

pela Academia Brasileira de Letras, é a passagem abaixo citada. Nesta referência, a

simetria se consubstancia na formação de um acordo, valorado como positivo para ambas

as partes:

Page 183: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

165

(…) depois de cem anos de divergências ortográficas (…) e depois de várias tentativas

goradas de acordos envolvendo a Academia Brasileira de Letras e a Academia das Ciências

de Lisboa (…) foi finalmente encontrado um texto comum que, podendo ter lacunas, é um

acordo internacional e um acordo é, em si mesmo, um facto que encerra convergência, que

é positivo e que importa, portanto, enfatizar. [DN13-1]

Em sentido contrário, o extrato seguinte exemplifica uma relação comparativa

assimétrica na qual Portugal ocupa o pólo fraco enquanto Angola e Moçambique ocupam o

pólo forte. Nesta referência, a assimetria se concretiza na atribuição de uma desvantagem a

Portugal – ou seja, na imposição do AO aos portugueses – e, simultaneamente, na situação

de vantagem reconhecida a Angola e a Moçambique, por não terem ratificado o AO, como

segue:

O colunista Rui Tavares decidiu adoptar, na sua crónica de 6 de Fevereiro, um tom

pretensamente jocoso para criticar a decisão do novo presidente do CCB, Vasco Graça

Moura, de não aplicar o chamado “acordo ortográfico” imposto aos portugueses, apesar da

forte mobilização que se registou no país contra ele e do facto de dois dos maiores países de

língua oficial portuguesa, Angola e Moçambique, não terem ratificado o respectivo tratado.

Fez mal. Quis ser engraçado, mas não teve piada. [PB05-1]

Considerando-se as entidades nacionais e supranacionas que tomam parte nas

relações de comparação envolvendo Portugal, o Brasil se destaca como o interveniente

mais frequente, surgindo em 83% do total, seja de forma isolada, isto é, como único país

envolvido, seja ao lado de outros países ou entidade, como indicado no Quadro 6.3.

Intervenientes Quantificação (%)

Brasil 78 (83%)

Outros países

(excluído o

Brasil)

16 (17%)

Total 94 (100%) Quadro 6.3 – Brasil como interveniente frequente no total de relações de comparação

Concluída essa primeira fase de classificação das relações comparativas construídas

em torno de Portugal e de outras entidades nacionais ou supranacionais, passa-se à análise

das relações comparativas de simetria.

Page 184: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

166

Análise das relações comparativas simétricas

Entre as relações de simetria, o interveniente mais frequente é o Brasil, que surge

em quarenta e duas de um total de quarenta e seis ocorrências, ou seja, em 93,4% das

relações assim classificadas. Nas quatro ocorrências em o que o Brasil não é mencionado, a

comparação se dá entre Portugal, Inglaterra e França (DN10-1); entre Portugal e Angola

(SL02-4); entre Portugal, Angola e Moçambique (PB03-2A) e, por fim, entre Portugal e

outros países lusófonos, excluído o Brasil (EX05-1A).

Nesses dois últimos casos, vale a ressalva de que se trata de situações de

comparação complexas das quais o Brasil também participa, figurando na relação

complementar a essas (PB03-2B e EX05-1B, respectivamente). A situação de comparação

estabelecida entre Portugal, Inglaterra e França é a única, entre as simétricas, que não

envolve países que não têm o português como língua oficial, como destacado no Quadro

6.4:

Intervenientes Quantificação

(%)

Brasil entre outros 42 (91,3%)

Angola e Moçambique apenas 1 (2,2%)

Angola apenas 1 (2,2%)

Países lusófonos (excluído o Brasil) 1 (2,2%)

Inglaterra e França 1 (2,2%)

Total 46 (~100%) Quadro 6.4 – Intervenientes que figuram nas relações de simetria

Considerando-se, agora, somente as relações de simetria em que o Brasil figura

como uma das entidades nacionais ou supranacionais contrastadas com Portugal, em vinte

e seis delas, ele é o único interveniente, correspondendo a 61,9% do total. Nas demais

dezesseis relações assim identificadas, ou seja, em 38,1% do total, o Brasil divide as

atenções com outros países de língua portuguesa, como ilustrado no Quadro 6.5:

Intervenientes Quantificação (%)

Brasil apenas 26 (61,9%)

Brasil e outros países de língua portuguesa 16 (38,1%)

Total 42 (100%) Quadro 6.5 – Brasil como interveniente frequente nas relações de simetria

Page 185: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

167

Da leitura do quadro acima se depreende, portanto, que, em todas as situações em

que o Brasil é identificado como um dos intervenientes na relação comparativa simétrica,

mas não o único, ele partilha sua posição com outros países de língua portuguesa, sem

exceções. Num único caso, o Brasil é citado ao lado de Moçambique (DN02-1) e, em

outro, ao lado de Angola e Moçambique (SL02-1). Nas demais ocorrências, no entanto, o

Brasil surge entre vários outros países de língua portuguesa, ou seja, entre os demais países

lusófonos.

Considerando-se, agora, o total de dezesseis ocorrências em que o Brasil é referido

ao lado de outros países lusófonos, interessa observar como variam as referências ao Brasil

e aos demais países de língua oficial portuguesa, ou seja, de que forma tais referências são

construídas. Em seis casos, ou seja, em 37,5% do total, as referências ao Brasil são

construídas de forma explícita. Nos dez restantes, que representam 62,5%, sua presença é

inferida, como detalhado no Quadro 6.6:

Tipo de referência Detalhamento Nº Parcial

Explícita

Brasil Angola e Moçambique 1

6 (37,5%)

Brasil e África lusófona 1

Brasil, Angola, Moçambique, São

Tomé e Príncipe, Cabo Verde,

Guiné e Timor

3

Brasil e outros países lusófonos 1

Implícita

Brasileiros 2

10 (62,5%)

Salvador 1

Aqueles que aprenderam a falar a

partir da matriz europeia

1

Outros povos (falantes de

português)

1

Países de Língua Portuguesa 1

Países lusófonos / família lusófona 3

Lusofonia (português africano,

americano e asiático)

1

Total 16 (100%) Quadro 6.6 – Estratégias de representação do Brasil quando um dos intervenientes, ao lado

de outros países de língua portuguesa: referências explícitas e implícitas

Verifica-se, portanto, o predomínio das referências implícitas ao Brasil no contexto

das relações comparativas simétricas que envolvem este e outros países, contrapondo-os a

Portugal. Nos casos em que o Brasil é o único interveniente, em dez ocorrências, ou seja,

em 38,5% do total, a menção ao país é concretizada na referência explícita ao Brasil; nas

Page 186: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

168

demais dezesseis, ou seja, nos restantes 61,5% dos casos, de forma implícita, como

indicado no Quadro 6.7.

Comparando-se os quadros 6.6 e 6.7, pode-se perceber que não houve diferença

significativa entre as referências explícitas e implícitas ao Brasil nos casos em que este

surge como único interveniente e nos casos em que surge como um dos intervenientes:

38,5% contra 37,5%, para as referências explícitas, e 61,5% contra 62,5%, para as

referências implícitas, respectivamente.

Tipo de

referência Detalhamento Nº

Explícita Brasil 10 (38,5%)

Implícita

Brasileiros 9

16 (61,5%)

Público brasileiro 1

Ortografia brasileira 1

Academia Brasileira de Letras 1

Luso-brasileiro 1

Discípulos de Malaca & Bechara 1

Dos dois lados do Atlântico 1

Duas ortografias 1

Total 26 (100%) Quadro 6.7 – Estratégias de representação do Brasil quando único interveniente:

referências explícitas e implícitas

Nas relações em que o Brasil surge como único interveniente, sendo representado

de forma implícita, tais representações são concretizadas via referência aos cidadãos

brasileiros (56,25%), via utilização de brasileiro/a como modificador de público, ortografia

e academia de letras (18,75%) ou, ainda via utilização de expressões que remetem

simultaneamente para Portugal e para o Brasil (25%), como registrado no Quadro 6.8.

É interessante observar que, do total de referências implícitas ao Brasil, nas

relações em que este figura como único interveniente, em um quarto delas são utilizadas

expressões que associam Portugal e Brasil. Veja-se, abaixo, um exemplo de relação

comparativa simétrica em que o Brasil encontra-se representado pelo modificador

“brasileiro” na expressão “neocolonialismo luso-brasileiro”:

O significado profundo desta coisa traduz provavelmente a confissão envergonhada, por

parte do neocolonialismo luso-brasileiro, de que o AO não dispõe absolutamente nada

para a grafia de vocábulos das línguas nativas que tenham sido incorporados no português.

[DN14-1, destaques acrescentados]

Page 187: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

169

A expressão “neocolonialismo luso-brasileiro” coloca Portugal e Brasil em

paridade (lado a lado), ao mesmo tempo em que subverte a relação histórica metrópole-

colônia que caracterizou a relação entre ambos os países num período histórico específico.

Na passagem acima, no entanto, num contexto em que o passado colonial se transforma em

mácula e a figura do poder colonial carrega sentido negativo, o Brasil é alçado a parceiro

de Portugal – agora, juntos, subjugam os demais.

Representação Classificação Nº

Brasileiros Referências aos cidadãos

brasileiros 9 (56,25%)

Público, ortografia ou ortografia

brasileira

Referência a brasileiro/a

como modificador 3 (18,75%)

Luso-brasileiro (*), Discípulos

de Malaca & Bechara, Dos dois

lados do Atlântico, Duas

ortografias

Associação entre Portugal

e Brasil 4 (25%)

Total 16 (100%) (*) Neste caso, ‘brasileiro’ também é utilizado como modificador, permitindo, assim, ser classificado no item anterior.

Preferiu-se, no entanto, destacar as estratégias de associação entre Portugal e Brasil.

Quadro 6.8 – Classificação das representações implícitas do Brasil quando único interveniente

Uma vez analisadas as relações comparativas simétricas como um todo, passa-se à

classificação das mesmas em função do critério convergência/divergência. As relações de

simetria remetem para uma situação de paridade de forças e/ou de posição no discurso, ou

seja, para o campo da equivalência, que pode se dar tanto pela convergência – perspectiva

positiva, de aproximação e igualdade – como pela divergência – perspectiva negativa, de

afastamento e diferença. Em outras palavras, uma vez estabelecida a equiparação de

posições, as entidades representadas são caracterizadas por algo que têm em comum – e

que, portanto, aproxima – ou por algo que as diferencia – e que, portanto, afasta.

Considerando-se as relações comparativas simétricas marcadas pela convergência,

esta, em geral, concretiza-se nos discursos de afirmação e valorização do português como

língua comum, isto é, de partilha entre diferentes países e povos e, portanto, dotada de um

potencial de aproximação. Ainda nesse sentido, a perspectiva da obtenção de um acordo

em torno de sua ortografia também é avaliada de forma positiva. Apenas como exemplo,

seguem citações de algumas das relações que foram assim classificadas:

Page 188: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

170

Não quero uma língua para me distinguir do Brasil. Prefiro uma que me aproxime. E quem

diz Brasil, que tem 200 milhões de falantes, diz naturalmente Angola, Moçambique, Guiné,

Cabo Verde, São Tomé e Timor. [EX04-3]

(…) depois de cem anos de divergências ortográficas (desde o acordo de 1911 que não foi

extensivo ao Brasil) e depois de várias tentativas goradas de acordos envolvendo a

Academia Brasileira de Letras e a Academia das Ciências de Lisboa (…) foi finalmente

encontrado um texto comum que, podendo ter lacunas, é um acordo internacional e um

acordo é, em si mesmo, um facto que encerra convergência, que é positivo e que importa,

portanto, enfatizar. [DN13-1]

O nosso grande património é termos uma língua comum com o Brasil, com Angola, com

Moçambique… tudo o que pudermos fazer para aproximarmos a grafia uns dos outros é

decisivo para nós. [SL02-1]

No que diz respeito às relações comparativas simétricas marcadas pela divergência,

por outro lado, esta, em geral, é representada pela valorização de uma perspectiva

individualista, em que se desvaloriza a ideia de aproximação entre os diferentes países de

língua portuguesa e sua suposta mais-valia, mas também, e principalmente, em sentido

contrário: valoriza-se a partilha de uma língua comum, mas na perspectiva da diferença.

Nesse caso, é a diferença, ou seja, a diversidade da língua partilhada que ganha destaque e

valor, sendo o acordo ortográfico, no seu papel de unificação das diferentes grafias da

língua, identificado como ameaça. Apenas como exemplo, seguem algumas passagens que

foram assim classificadas:

Por mim, os brasileiros e os moçambicanos são livres de adoptar o húngaro sem que eu os

censure ou sequer note a diferença. Não sou brasileiro nem moçambicano. Sou português e,

não fosse pedir demasiado, dava-me jeito redigir na língua em que cresci. [DN02-1]

(…) a “lusofonia” não vale pela unidade mas pela diversidade, pelo facto de haver um

português europeu, africano, americano e asiático. [EX01-3]

A grande família lusófona precisa, isso sim, de reconhecer-se na alegria criativa da

diferença, não de ficar frustrada com rasuras injustificadas e arbitrárias. [PB13-2]

Considerando-se, agora, a frequência dos discursos de convergência, assim como os

de divergência, no contexto das relações comparativas simétricas, verificou-se que em

vinte e dois de um total de quarenta e seis, a perspectiva adotada foi a primeira, ou seja a

da convergência. Nas demais vinte e quatro, prevaleceu a perspectiva da divergência, como

sintetizado no Quadro 6.9.

Houve, portanto, um ligeiro predomínio das relações comparativas divergentes, que

representaram 52,2% do total, contra 47,8% classificadas como relações comparativas

convergentes. Notou-se, no entanto, uma diferença significativa entre os vinte e seis casos

em que o Brasil aparece como único interveniente – 61,5% foram classificadas como

divergentes (dezesseis de um total de vinte e seis casos) e 38,5% como convergentes (dez

Page 189: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

171

de um total de vinte e seis casos) – e aqueles dezesseis casos em que aparece ao lado de

outros países lusófonos – 56,25% convergentes, 43,75% divergentes, como indicado no

Quadro 6.10.

Tipo de relação simétrica Convergência

Convergência 22 (47,8%)

Divergência 24 (52,2%)

Total 46 (100%) Quadro 6.9 – Relações simétricas: convergentes e divergentes

Intervenientes Convergência Divergência Totais

Brasil 10 (38,5%) 16 (61,5%) 26 (100%)

Brasil e outros países lusófonos 9 (59,25%) 7 (43,75%) 16 (100%)

Angola 1 (100%) 0 1 (100%)

Angola e Moçambique 0 1 (100%) 1 (100%)

Países lusófonos (Brasil excluído) 1 (100%) 1 (100%)

Inglaterra e França 1 (100%) 0 1 (100%) Quadro 6.10 – Relações simétricas convergentes e divergentes: Brasil e outros intervenientes

Nas relações de comparação simétricas em que o Brasil é o único interveniente,

prevalece a divergência, ou seja, o movimento de afastamento e/ou de instituição de uma

diferença entre o país e Portugal. Refletindo-se sobre tal resultado no âmbito do acordo

ortográfico, este parece confirmar a percepção de que Portugal e Brasil ocupam pólos

opostos ou, ao menos, distintos, mesmo que em igualdade de forças.

Por outro lado, nas relações simétricas em que o Brasil surge ao lado de outros

intervenientes, todos eles falantes do português, prevalece a convergência, isto é, o

movimento de aproximação e/ou instituição de semelhanças entre tais países e Portugal.

No contexto do debate sobre o AO, tal dado parece remeter, por exemplo, para

representações contruídas em torno da ideia de cultura partilhada associada à língua

comum, à lusofonia, entre outras.

Por fim, nas restantes quatro situações em que o Brasil não figura como

interveniente, três delas foram classificadas como convergentes (75%) e uma como

divergente (25%). Em três delas, as relações que são construídas envolvem outros países

de língua portuguesa: Angola, Moçambique e outros países lusófonos, excluído o Brasil.

Na única situação em que a relação de comparação, classificada como convergente, é

estabelecida entre Portugal e países que não têm o português como língua, Inglaterra e

Page 190: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

172

França são trazidos ao debate. Em relação à Inglaterra, afirma-se a aliança política com

Portugal; em relação à França, afirma-se uma identificação cultural, como exposto abaixo:

Portugal, apesar da multissecular aliança britânica, é culturalmente francês [DN10-1]

É bem verdade que tais identificações são construídas em torno de uma polaridade,

evidenciada pelo recurso ao vocábulo “apesar”, mas esta não nega o conteúdo afirmativo

das relações de comparação acima identificadas, até porque em toda a relação de igualdade

há sempre uma relação de diferença pressuposta. Em outras palavras, os conceitos de

igualdade e diferença são interdependentes, embora a escolha que se faça – ao se adotar a

perspectiva de uma ou de outra na análise – implique significados distintos.

Concluída a classificação das relações comparativas simétricas em relações

convergentes ou divergentes, resta ainda avaliar o papel da língua na construção das

identidades nesse contexto. Com exceção da relação em que Inglaterra e França aparecem

como intervenientes, nas demais, o acordo ortográfico ou a perspectiva mais específica da

língua estão presentes. Dizendo de outra forma, em todas as construções que envolveram a

participação de países de língua protuguesa, o AO e/ou a língua ocuparam posição de

destaque nessas discussões.

Nos casos em que o Brasil é o único interveniente, predominam as referências

construídas com foco no acordo mais especificamente. Nos demais casos, o conceito de

língua parece disputar as atenções com o acordo propriamente dito. Nessas construções, a

língua surge, em geral, como fator de identidade, como um bem ou patrimônio ou, ainda,

como manifestação de cultura. É interessante também observar que tais argumentos são,

muitas vezes, entrelaçados a ponto de não ser possível individualizá-los. Além disso,

muitos desses argumentos são apropriados tanto por autores contrários como por autores

que defendem o acordo.

No exemplo abaixo, pode-se comparar a perspectiva da língua como fator de

identidade e cultura e também como recurso de construção da diferença. O autor se vale da

referência à língua para construir uma certa identidade nacional portuguesa, associada com

a formação e o desenvolvimento do indivíduo (“na língua em que cresci”) e, indiretamente,

com a ideia de cultura, mas também, simultaneamente, para marcar a diferença com outros

perfis nacionais (“não sou brasileiro nem moçambicano”). Essa comparação também

remete, em alguma medida, para uma perspectiva de posse ou patrimônio aqui traduzida

pela indiferença do autor – na condição de português – em relação à língua falada por

Page 191: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

173

brasileiros e moçambicanos, associada à afirmação categórica de que sua língua é a língua

portuguesa, sem deixar espaço para a partilha ou para a aproximação com outros países

que também tem o português como língua nacional, como referido a seguir:

Por mim, os brasileiros e os moçambicanos são livres de adoptar o húngaro sem que eu os

censure ou sequer note a diferença. Não sou brasileiro nem moçambicano. Sou português e, não

fosse pedir demasiado, dava-me jeito redigir na língua em que cresci. À revelia da proclamação

gratuita de Fernando Pessoa, a minha pátria não é a língua portuguesa. Mas a minha língua é.

[DN02-1]

Na argumentação em torno da ideia de língua como patrimônio, pode-se realçar a

perspectiva da partilha de uma língua comum como fator de identificação e aproximação

entre os diferentes países de língua portuguesa, num contexto de mútuo benefício, e, com

isso, defender-se a aprovação do acordo. No entanto, a partir do mesmo argumento, pode-

se construir uma relação em sentido contrário, ou seja, pode-se destacar a noção de língua

como patrimônio, identidade e cultura, mas, nesse contexto, atribuir valor, não àquilo que

há de comum, mas, sim, às diferenças que caracterizam os distintos modos de falar e

escrever a língua nos diferentes países, isto é, valorizar a diversidade. Nesse cenário, o

acordo representaria uma ameaça a essa diversidade e, portanto, não deveria ser adotado.

Essas duas perspectivas são, respectivamente, exemplificadas nos seguintes extratos:

O nosso grande património é termos uma língua comum com o Brasil, com Angola, com

Moçambique… tudo o que pudermos fazer para aproximarmos a grafia uns dos outros é

decisivo para nós. [SL02-1]

A língua é algo inegociável e patriótico, nada se consegue à força. Eu vou continuar a

escrever como antigamente. A diversidade de vocabulário escrito e falado no Brasil,

Angola, Portugal, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e noutros são uma riqueza cultural.

[PB07-1]

Especificamente nas discussões em torno do acordo ortográfico propriamente dito,

a questão acima é retomada: o AO, em sua pretensão de unificação de grafias, é criticado

em contextos que, em geral, realçam as diferenças que subsistem ou mesmo que afloram

após o acordo, assim como a impossibilidade de superar as diferenças intrínsecas a cada

país por meio da língua, ou melhor, da unificação da grafia. Em sentido inverso, mas

visando ao mesmo objetivo, ou seja, à não adoção do acordo, são desenvolvidos

argumentos que caracterizam o AO, mais uma vez em sua pretensão unificadora, como

uma ameaça à riqueza cultural concretizada na diversidade. Entre os autores favoráveis ao

Page 192: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

174

AO, por outro lado, privilegia-se a ideia de acordo e o potencial positivo da unificação. São

exemplos dessas linhas de argumentação as citações que seguem:

Além disso, é muito de estranhar que, no ano em que o Brasil se apresenta em Portugal e

Portugal se apresenta no Brasil com tanta pompa e circunstância, nenhum dos países

interessados tenha feito qualquer reparo à maneira como a grafia do português, que se

pretende oficial e oficiosamente seja agora adoptada em Portugal, consagra uma série de

enormidades que não estão, nem podem estar, a ser aplicadas no Brasil e que aumentam a

desconformidade com a maneira como a língua se escreve de um lado e do outro. [DN17-3]

O que vale aqui é o princípio. É termos permanentemente na cabeça a ideia de que todos

ganham se em Portugal, no Brasil, em Angola, em Moçambique, em S. Tomé, em Cabo

Verde, na Guiné e em Timor se escrever do mesmo modo. [SL02-5]

Análise das relações comparativas assimétricas

Completada essa primeira etapa, passa-se à análise das relações comparativas

assimétricas, num total de quarenta e oito, que representam 51,1% do total das relações de

comparação, como já destacado no Quadro 6.2. Nessa categoria, foram classificadas as

relações estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais ou supranacionais nas

quais os diferentes intervenientes assumem posições desiguais, sendo possível identificar

um pólo forte e outro fraco, ou seja, uma posição de vantagem e uma posição de

desvantagem, como já referido.

Assim como nas relações comparativas simétricas, aqui também se verifica a

incidência do Brasil como principal interveniente. Nessas relações comparativas

assimétricas, o país surge em trinta e seis ocorrências, o que representa 75% do total, como

registrado no Quadro 6.11:

Intervenientes Quantificação (%)

Brasil 36 (75%)

Outros 12 (25%)

Total 48 (100%) Quadro 6.11 – Relações assimétricas: intervenientes

Considerando-se apenas os casos em que o Brasil figura como interveniente, em

trinta e três deles, ou seja, em 89,2% do total, ele aparece sozinho, como registrado no

Quadro 6.12. O Brasil é, portanto, e isoladamente, o principal interveniente nas

Page 193: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

175

representações que estabelecem algum tipo de contraste ou comparação, marcada pela

desigualdade, entre Portugal e outras entidades de cariz nacional ou supranacional.

Brasil Quantificação (%)

Como único interveniente 33 (91,7%)

Como um dos intervenientes 3 (8,3%)

Total 36 (100%) Quadro 6.12 – Relações assimétricas: o Brasil como interveniente

Há, portanto, apenas três situações em que o Brasil não é o único interveniente,

surgindo ao lado de Angola (PB06-5) ou dos demais países de língua portuguesa, nas

referências a “espaço lusófono” (PB20-2B) e “outros países lusófonos” (PB26-3).

Considerando-se, agora, os restantes doze casos em que o Brasil não surge entre os

intervenientes, as relações comparativas assimétricas são estabelecidas entre Portugal e

outros países de língua portuguesa predominantemente – em nove ocorrências, o que

representa, portanto, 75% do total. Os únicos países não falantes do português que figuram

nessas relações comparativas são a Espanha e a Inglaterra, como evidenciado no Quadro

6.13:

Intervenientes Detalhamento Quantificação

Países de língua

portuguesa

Angola 1

9 (75%)

Angola e Moçambique 2

África, africanos 4

Africanos e asiáticos 1

Restantes países da CPLP (exceto Brasil) 1

Outros Espanha, Inglaterra 3 (25%)

Total 12 (100%) Quadro 6.13 – Relações assimétricas: outros intervenientes

Uma vez analisadas as relações comparativas assimétricas como um todo, passa-se

à classificação das mesmas em função das posições assumidas por ou atribuídas a Portugal,

no âmbito das relações de força que elas delimitam e a partir das quais são construídas.

Nessas relações assimétricas, predominam as ocorrências em que Portugal ocupa o pólo

fraco, isto é, o da desvantagem ou da perda. Tais situações verificam-se em trinta e nove

do total de quarenta e oito relações de comparação analisadas, representando 81,25% das

ocorrências, como indicado no Quadro 6.14.

Page 194: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

176

Pólo Portugal

Pólo Forte 9 (18,75%)

Pólo Fraco 39 (81,25%)

Total 48 (100%) Quadro 6.14 – Relações assimétricas: forças e fraquezas

Nas nove ocorrências em que se dá o inverso, ou seja, nos 18,75% dos casos em

que Portugal ocupa o pólo da força, os intervenientes mais frequentes são os países

africanos de língua portuguesa (PALOP), com sete ocorrências de um total de nove, o que

representa 77,8% dos casos. Em três das ocorrências, que representam 42,9%, os PALOP

são os únicos intervenientes, enquanto nas demais quatro, que representam 57,1%, surgem

ao lado de outros países ou entidades, como registrado no Quadro 6.15.

Intervenientes Detalhamento Quantificação

PALOP

Únicos

intervenientes

África

3 (42,9%)

7 (77,8%)

Africanos

Angola, Moçambique,

Guiné / países africanos de

língua portuguesa

Entre outros

intervenientes

Africanos e asiáticos

4 (57,1%)

Espaço lusófono (excluído

o Brasil)

Países lusófonos

Restantes países da CPLP

(excluído o Brasil)

Outros 2 (22,2%)

Total 9 (100%)

Quadro 6.15 – Portugal no pólo forte: os PALOP como principais intervenientes

A seguir, em segundo lugar, surge Timor, com quatro ocorrências de um total de

nove, o que representa 44,4% dos casos – embora nenhuma explícita nem individual.

Depois, aparecem o Brasil, com duas ocorrências (22,2%) e, por fim, a Espanha, com

apenas uma (11,1%), como se depreende do Quadro 6.16.

Retomando-se a relação das entidades nacionais e supranacionais que intervêm nas

relações comparativas assimétricas e, analisando, em cada uma delas que pólo ocupam

nessa relação, tem-se o Quadro 6.17.

Page 195: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

177

País Detalhamento Como único

interveniente

Entre outros

intervenientes Ocorrências

Timor

Africanos e asiáticos

0 4 4 (44,4%)

Espaço lusófono

Países lusófonos

Restantes países da CPLP

(excluído o Brasil)

Brasil

Aqueles que só sabem escrever

de acordo com o som, ou

melhor, com a melodia da voz 1 1 2 (22,2%)

Países lusófonos

Espanha Espanhola 1 0 1 (11,1%) Quadro 6.16 – Portugal no pólo forte: Timor, Brasil e Espanha intervenientes

Intervenientes Pólo Forte/

Vantagem

Pólo Fraco/

Desvantagem Total

Brasil 32 1

Brasil e Angola 1

Angola 1

Angola e Moçambique 2

Países africanos de língua portuguesa 1 3

Africanos e asiáticos 1

Restantes países da CPLP (exceto Brasil) 1

Espaço lusófono, outros países lusófonos 2

Espanha 1 1

Inglaterra 1

Total 39 9 48 Quadro 6.17 – Relações assimétricas: quadro geral

Analisando as relações de assimetria em que Portugal é posicionado no pólo fraco,

ou seja, em desvantagem, temos, mais uma vez, o Brasil como interlocutor recorrente,

figurando em trinta e três de um total de trinta e nove casos, ou seja, em 84,6% do total,

como referido no Quadro 6.18. Com uma única exceção em que o Brasil surge ao lado de

Angola, nos demais casos ele aparece como único interveniente. Angola, por sua vez,

figura em cinco relações (12,8%), sendo o único interveniente em uma delas. Moçambique

aparece em três casos, mas sempre acompanhado de Angola ou dos demais países

africanos de língua portuguesa. Os únicos que não pertencem ao grupo de países de língua

portuguesa a figurarem como intervenientes numa relação comparativa assimétrica em que

Portugal ocupa o pólo fraco são a Espanha e a Inglaterra, como já mencionado.

Page 196: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

178

País Como único

interveniente

Entre outros

intervenientes Ocorrências

Brasil 32 1 33 (84,6%)

Angola 1 4 5 (12,8%)

Moçambique 0 3 3 (7,7%)

Espanha 1 0 1 (2,6%)

Inglaterra 1 0 1 (2,6%) Quadro 6.18 – Portugal no pólo fraco: principais intervenientes

Na relação de comparação que envolve a Espanha, o desequilíbrio das posições

ocupadas, com prejuízo para Portugal, é construído em torno de uma suposta indiferença

espanhola em relação ao país vizinho, que, em alguma medida, traduz-se numa percepção

de irrelevância ou na desvalorização do papel de Portugal, como abaixo exemplificado:

Quando falo com colegas, amigos ou familiares sobre o AO da Língua Portuguesa, eles

ficam admirados. Não percebem e dizem que eles nunca permitiriam uma coisa dessas aqui.

Não percebem e embora a maioria se esteja nas tintas (infelizmente, os espanhóis não ligam

muito às notícias vindas de Portugal, embora ache que a tendência começa a mudar) quase

sempre me perguntam: “E então, os portugueses não estão a fazer nada para evitar isso?

Fosse aqui e eu…” Mas não é aqui, é aí . [PB29]

A relação de comparação estabelecida com a Inglaterra, por sua vez, é marcada pela

ironia. Nela, atribui-se à Inglaterra uma habilidade no desempenho de uma atividade

específica – neste caso, a jardinagem – que, segundo o autor, Portugal não partilha. Nesse

quesito, a Inglaterra seria mais capaz que Portugal, ocupando, assim, o pólo da

força/vantagem face a ele.

As construções de comparação com Angola e Moçambique nas quais tais países

surgem no pólo forte da relação são marcadas, de modo geral, pela avaliação positiva do

comportamento de ambos no que se refere à não adoção da grafia definida pelo AO em

função do fato de ambos os países não terem, à época da publicação dos artigos, ratificado

o acordo. Estariam, portanto, em posição de vantagem, pois manteriam a correção da

grafia das palavras. Tal correção decorre do fato de Angola e Moçambique seguirem

escrevendo de acordo com as regras ortográficas em vigor antes do acordo, mantendo

assim a ortografia antiga, seguindo o modelo do português europeu.

Considerando-se, agora, apenas as representações de assimetria em que o Brasil

ocupa, sozinho, o pólo da força, verifica-se que as estratégias adotadas são bastante

diversas: num momento, promove-se a valorização do Brasil, noutro, desvaloriza-se

Portugal, como exemplificado abaixo. Em alguns casos, ainda, tais estratégias são

Page 197: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

179

combinadas. De todo modo, o objetivo é sempre o mesmo, posicionar Portugal no pólo

fraco da relação.

Por outro lado, o que interessa, para além da questão jurídica e cultural de fundo, é uma

questão política assaz bizarra. E a questão política actualmente resume-se a isto: estão a ser

aplicadas não uma, mas três grafias da língua portuguesa. A correcta, em países como

Angola e Moçambique, a brasileira (no Brasil) e a pateta (em Portugal e não se sabe em que

outras paragens). [DN17-2]

Aprofundando essa análise, pode-se separar os argumentos utilizados nas

estratégias de valorização ou desvalorização de Portugal e do Brasil em quatro grupos em

função do conteúdo dos argumentos dos quais se valem: (i) argumentos de cedência de

Portugal face ao Brasil, (ii) argumentos de maior força econômica do Brasil em relação a

Portugal, (iii) argumentos de proteção do português europeu e correção da língua e (iv)

argumentos de valorização e/ou aprovação de um comportamento ou imagem.

É bem verdade que os argumentos acima mencionados surgem, com frequência,

entrelaçados e sobrepostos, como se pode facilmente notar nos exemplos que serão dados a

seguir – questão já tratada em oportunidades anteriores. Por esse motivo, é importante

ressaltar que a segmentação aqui proposta visa apenas facilitar a análise dos dados e não

estabelecer critérios rígidos de classificação ou categorização.

Os argumentos de cedência (i) giram em torno da ideia de que o AO implicaria

uma concessão de Portugal em relação ao Brasil, uma espécie de abdicação de poder ou

mesmo de submissão: o acordo estaria mais inclinado para o Brasil, isto é, configuraria um

indevido alinhamento do português de Portugal pelo português do Brasil. Também figuram

nesse conjunto os argumentos que consistem em demonstração de força: o acordo foi

impingido, os portugueses foram obrigados. São exemplos de tais argumentos os seguintes

extratos:

Descaracterização da língua, submissão ao brasilês, com tudo se argumenta, até com o

"matriotismo" obstinado do "foi assim que me ensinou a minha santa professora da escola

primária" [DN03-1, destaques acrescentados]

Tavares apresenta-se como arauto do alinhamento da ortografia do Português europeu

pela do Português do Brasil, mas não adianta um único argumento a favor do “acordo”.

Mistura alhos com bugalhos e agita todos os episódios da crónica política recente para

“gozar” com as justificadas dúvidas de Graça Moura e dezenas de milhares de outros

portugueses (e alguns brasileiros) que conseguiram bloquear a primeira tentativa de nos

impingir o dito “acordo”. [PB05-2, destaques acrescentados]

Do que gosto no novo Acordo Ortográfico, tão inclinado para o Brasil, é do seu lado

português, como eu: um bocado feito em cima do joelho. [PB11-1, destaques

acrescentados]

Page 198: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

180

Os argumentos de força econômica (ii) destacam a superioridade numérica

brasileira em número de falantes e também em tamanho de mercado, assim como a sua

posição econômica no cenário internacional. Fala-se em internacionalização do português

do Brasil e da sua força no mercado editorial, como, por exemplo, no mercado das

traduções de manuais técnicos. São exemplos de tais argumentos os seguintes extratos:

Porque é que os decisores políticos adoptaram um comportamento parolo, adequando,

como dizem, a língua portuguesa escrita à língua portuguesa falada, quando a nação mais

populosa não o fez da mesma maneira (…)? [PB03-1, destaques acrescentados]

A realidade é que os fabricantes pressionam os distribuidores portugueses a utilizar as

traduções brasileiras em Portugal. [PB31-2, destaques acrescentados]

Os argumentos de proteção e correção da língua (iii) muitas vezes caracterizam o

AO90 como ameaça ao português europeu, ao seu futuro e à sua aprendizagem.

Apresentam as alterações ortográficas como erro e desrespeito a regras etimológicas,

assumindo, de forma explícita ou velada, que a versão correta do português é aquela

praticada em Portugal antes do acordo. Nessas representações, a assimetria de posições é,

às vezes, construída por meio da crítica da ratificação do acordo por parte de Portugal,

como exemplificado abaixo:

E o certo é que, se as coisas continuarem assim, dentro de uma geração ninguém conseguirá

pronunciar correctamente a língua portuguesa tal como ela é falada deste lado do Atlântico.

[DN17-1]

Em outros momentos, ao contrário, afirma-se situação de vantagem para o Brasil

pelo fato de, após o AO90, a grafia de uma certa palavra ter-se mantido fiel à versão

europeia, enquanto, simultaneamente, ter sido modificada em Portugal em função das

diferenças de pronúncia, como ilustra o exemplo a seguir:

(…) palavras que todos escreviam da mesma maneira, tantas, passam a escrever-se, por

imposição do AO, de modo diferente em Portugal, mantendo no Brasil grafia certa:

recepção, percepção, confecção, ruptura, cacto, etc. [PB34-3, destaques acrescentados]

Também a contabilização do número de alterações demandadas pelo acordo no

Brasil e em Portugal é objeto de comparação, em geral para afirmar, mais uma vez,

vantagem para o primeiro. O quadro geral, portanto, é de que o Brasil estaria em vantagem

Page 199: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

181

por contar simultaneamente com um maior número de exceções e um menor número de

alterações no âmbito de aplicação do AO90, como já mencionado anteriormente.

Os argumentos de valorização e/ou aprovação de um comportamento ou imagem

(iv), em geral, valorizam o comportamento brasileiro e/ou criticam o comportamento

português em questões relacionadas à língua, além de atribuir imagem negativa a Portugal.

São exemplos de tais argumentos os seguintes extratos:

Ignora Rui Tavares o que aconteceu ao fonema “güe” na palavra “bilingüe” quando o trema

foi suprimido em Portugal (o Brasil não nos acompanhou e fez bem)? [PB05-5, destaques

acrescentados]

Já os brasileiros continuarão a olhar para Portugal como um país mais deprimente do

que aquilo que sempre foi: nos jornais, nos hotéis, nos organismos públicos, o país da

omnipresente e sempiterna receção, perdão, rêcêssão. [PB30-1, destaques

acrescentados]

Passa-se, agora, à análise dos nove casos em que Portugal ocupa o pólo da força

numa relação assimétrica. Como já referido nos Quadros 6.13 e 6.14, os países africanos de

língua portuguesa (PALOP) são os intervenientes mais frequentes, seguidos de Timor,

Brasil e Espanha. Nas relações envolvendo os países africanos, a posição de vantagem

atribuída a Portugal é construída a partir da ideia de que o AO representaria os interesses

de Portugal – e também do Brasil – com total desconsideração pelos PALOP. Nesse

contexto, tais países seriam considerados como irrelevantes, ou mesmo incapazes, no

debate sobre o AO, controlado por Portugal e Brasil.

Tais relações são, de modo geral, marcadas por um suposto protagonismo

português na definição dos termos do acordo ortográfico face aos demais países de língua

portuguesa, excetuado o Brasil. Vale ainda ressaltar que essas relações são construídas

sempre na perspectiva da crítica, isto é, caracterizando essa manifestação de força como

indevida, constituindo-se, assim, em mais uma estratégia de resistência ao AO.

Timor, por sua vez, figura sempre ao lado dos PALOP e dos países lusófonos como

um todo, nunca sendo nomeado expressamente, como indicado no Quadro 6.14. Sendo

assim, todas as observações feitas acima para os PALOP também se aplicam a esse país.

Mais uma vez, a posição de força/vantagem atribuída a Portugal é construída via afirmação

da irrelevância e fraqueza de Timor, em função de seu papel secundário – ou mesmo da

quase total ausência de participação – no debate sobre o acordo ortográfico.

Em relação ao Brasil, o país é posicionado no pólo fraco da relação de comparação

em duas ocasiões: em DN07-1, onde surge como único interveniente, e em PB26-3, onde

Page 200: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

182

sua presença é inferida a partir da referência aos demais países lusófonos. Ambos os casos

serão analisados a seguir; este é o primeiro deles:

É que se querem abdicar de certa grafia para mostrar superioridade de ex-potência colonial

e facilitar a vida (a escrita) àqueles que só sabem escrever de acordo com o som, ou

melhor, com a melodia da voz, façam-no para exportação, mas conservem também no

meio intelectual a forma antiga. [DN07-1, destaques acrescentados]

Na referência acima, Portugal surge imbuído de uma certa superioridade, apesar do

tom irônico, associado ao seu passado histórico de país colonial. Essa mesma

demonstração de força pode ser derivada da expressão “querer abdicar”, que remete para o

cenário em que Portugal detém o poder, embora decida “abdicar” dele por sua própria

vontade, ou seja, por seu próprio “querer”. A posição de força para Portugal também é

construída a partir da desvalorização do seu oponente. Aqui, embora este não seja

expressamente indicado, a identificação do Brasil como “(a)queles que só sabem escrever

de acordo com o som ou com a melodia da voz”, nesse contexto, é significativamente forte.

O Brasil também se faz presente na referência a Portugal como ex-potência colonial, a

qual, a contrario sensu, traz para a discussão as ex-colônias portuguesas, entre elas o

Brasil. Ainda assim, trata-se de uma construção complexa e com uma boa dose de

ambiguidade, pois também carrega a perspectiva da perda.

Em PB26-3, por sua vez, a posição de vantagem portuguesa é construída a partir da

ideia de imposição da ortografia europeia aos demais países lusófonos. Essa hipótese é

elaborada de forma a ressaltar sua inverossimilhança, numa estratégia de combate à

acusação de que os opositores ao AO se consideram “donos da língua”. De acordo com o

autor, tal argumentação só seria sustentável se o acordo ortográfico representasse a

imposição da ortografia europeia aos demais, como mencionado. Isso significa dizer que,

embora nessa relação Portugal ocupe o pólo da força/vantagem, ela é construída como

falsa.

Por fim, naquele único caso em que a Espanha (PB29-1) surge como interveniente,

figurando no pólo mais fraco, essa desvantagem é construída a partir da ideia de

ilegitimidade, assumida pela autora, para participar do debate sobre o AO. Essa

ilegitimidade se fundamenta no fato de a autora ser espanhola, e não portuguesa, como já

anteriormente referido. Portanto, nessa condição, sua intervenção teria de ser justificada

sob o risco de ser considerada uma intromissão indevida num debate que supostamente não

Page 201: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

183

lhe diz respeito. Em outras palavras, no debate sobre o AO, em relação aos espanhóis, os

portugueses são os interlocutores privilegiados.

Excluídos os dois casos em que o Brasil figura entre os intervenientes (DN07-1 e

PB26-3) numa relação assimétrica em que Portugal ocupa o pólo da força/vantagem e o

caso em que a Espanha participa (PB29-1), nos demais casos – ou seja, em seis de nove

comparações (66,7%) – Portugal não está sozinho, partilhando a posição de vantagem com

o Brasil. Isso ocorre porque tais relações de assimetria ora analisadas fazem parte de

situações comparativas complexas, compostas por diferentes relações entrelaçadas, ou

seja, situações em que, muitas vezes, relações de comparação simétricas e assimétricas

convivem entre si.

Embora, neste momento, o foco desta análise incida exclusivamente sobre as

relações assimétricas nas quais Portugal ocupa o pólo da força/vantagem, a informação

acima parece relevante para uma reflexão mais apurada. Portanto, fica aqui a ressalva de

que seis das nove relações de comparação ora analisadas são precedidas ou entrelaçadas

por outras relações de simetria entre Portugal e Brasil, como exemplificado abaixo:

Em 1990, ilustres detentores de uma certa Ortografia da Língua Portuguesa babaram-se de

prazer e glória ao verem no papel o ‘Novo Acordo’. Africanos e asiáticos falantes e

escrevedores da Língua, conhecidos por ‘falarem à preto’ foram obrigados a ver

passar o comboio ortográfico de portugueses e brasileiros. [CM02-1, destaques

acrescentados]

Há, aqui, um duplo rebaixamento da posição de “africanos e asiáticos”. Primeiro,

explícito, pois são obrigados a alguma coisa, ou seja, submetidos à força. Depois, implícito

na limitação do seu modo de falar a uma certa cor da pele, “raça” ou etnia e também na sua

classificação como “escrevedores” da língua, e não simplesmente “os que escrevem”, por

exemplo. Essa sucessão de generalizações – “africanos e asiáticos” que falam “à preto” –

associada à presunção de verdade partilhada – “conhecidos por” falarem assim –

evidenciam e reforçam uma visão preconcebida e distorcida do outro. Nesse mesmo

sentido, vale referir a citação abaixo:

Em que pese a estas intenções mais poéticas do que realistas, o duro facto é que o AO90

vem consagrar duas ortografias - pelo menos - bem diferenciadas: uma para Portugal e

outra para o Brasil, com singular menoscabo pelas eventuais peculiaridades

ortográficas dos restantes países da CPLP, que provavelmente terão de aderir ou a uma,

ou a outra - a menos que surjam terceiras e quartas alternativas para os casos específicos de

Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor... (PB20-1B,

destaques acrescentados)

Page 202: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

184

No extrato acima, após a construção de uma relação comparativa simétrica entre

Portugal e Brasil, passa-se para uma segunda relação, dessa vez assimétrica, entre Portugal

(e Brasil) e demais países de língua portuguesa (Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde,

São Tomé e Príncipe e Timor). A assimetria de posições é evidenciada pela expressão

“singular menoscabo” e pela obrigatoriedade expressa em “terão de aderir”. Esse último

caso é também exemplo de situações de comparação complexas em que primeiro se

desenha uma relação de paridade ou equivalência entre Portugal e Brasil para, a seguir,

estabelecer relação de força face aos demais países de língua portuguesa.

Para concluir a análise das relações comparativas assimétricas, importa ainda

analisar três outros extratos – identificados como DN09-1, DN17-4 e PB33-1 – que

parecem ter sido construídos de forma a dificultar ou mascarar a identificação das relações

de força que estabelecem. Em todos eles, embora Portugal seja posicionado no pólo fraco

da relação, persiste a ideia velada de uma certa superioridade portuguesa em relação aos

seus pares, como referido abaixo:

Diga-se apenas que nem mesmo o Brasil aceita a carnavalização da grafia que está a ser

praticada em Portugal! [DN09-1, destaques acrescentados]

Embora essa construção posicione o Brasil no pólo de força face a Portugal, ela

traduz uma visão de mundo compatível com a ideia de superioridade portuguesa. Essa

interpretação baseia-se no uso da expressão “nem mesmo o Brasil”, que traduz surpresa,

isto é, contrariedade de expectativas. Os critérios de aceitação brasileiros seriam – ou

deviam ser, era esperado que fossem – mais baixos do que os dos portugueses. O uso da

expressão “carnavalização” também contribui para essa identificação, pois, embora possa

assumir diferentes significados, não deixa de invocar o Carnaval – festa popular fortemente

associada à imagem pública do Brasil – que ainda poderia remeter para uma espécie de

licenciosidade, um ambiente onde tudo é possível e nada deve ser levado a sério.

Passando-se à análise do extrato seguinte, é a vez de Angola e Moçambique se

juntarem ao Brasil como intervenientes, conforme a seguinte citação:

Talvez tenhamos de esperar que se realize um ano de Angola em Portugal e de Portugal em

Angola para o problema merecer atenção. E então não será de estranhar que tenhamos de

agradecer aos angolanos um rigor na grafia da nossa língua de que, por cá, nós portugueses já

não somos capazes. [DN17-4, destaques acrescentados]

Page 203: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

185

Nessa construção de assimetria, embora Angola seja posicionada no pólo da força,

pois surge como protetora da língua, mais capaz do que Portugal na realização dessa tarefa,

novamente está implícita a ideia de superioridade portuguesa. Ela transparece na expressão

“não será de estranhar”, que, embora pela negação, pressupõe haver uma contrariedade de

expectativas, e pelo reforço do papel de Portugal como detentor da correção da língua. Esta

última afirmação decorre de se classificar a grafia do português em Angola e Moçambique

como sendo a “correta” – à medida que preserva a grafia portuguesa pré-acordo – e,

simultaneamente, de negar essa condição à grafia brasileira.

Finalmente, no último extrato a ser analisado, o Brasil retorna à posição de único

interveniente, como se depreende da seguinte citação:

Torna-se igualmente caricato que se faça rasura da etimologia e ela permaneça refém da fala e

de formas de articulação volúveis. E constatar que no Brasil será preservada alguma

morfologia etimológica torna a questão ainda mais absurda (lá, dir-se-á “concepção”,

“recepção”, etc., coisa esquecida por cá). (PB33-1, destaques acrescentados)

No exemplo acima, constrói-se uma relação de assimetria, marcada pela vantagem

do Brasil. No entanto, a expressão “ainda mais absurda” parece fazer transparecer uma

relação de forças diferente. Embora o absurdo da situação possa estar relacionado com o

fato de haver diferenças, é possível interpretar esse aumento de intensidade “ainda mais”

como associado ao fato de ser o Brasil a preservar “alguma morfologia etimológica”,

quando tal papel deveria ser atribuído a Portugal. Essa interpretação é compatível com a

ideia de Portugal como matriz e do português europeu como sendo o mais correto e,

portanto, o padrão a ser seguido.

Consolidação da análise

Na análise das posições de força assumidas pelos ou atribuídas aos diferentes países

em situações de contato e comparação, verificou-se o ligeiro predomínio das relações de

assimetria (51,1%), ou seja, de situações em que são estabelecidas forças diferentes entre

os diversos interlocutores. Portugal, na grande maioria das vezes, ocupa o pólo fraco

dessas relações.

Embora diferentes países tomem parte nessas caracterizações, especialmente

aqueles envolvidos na discussão do tratado internacional sobre o acordo ortográfico, o

Page 204: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

186

Brasil se destaca como interveniente recorrente. Tal insistência é compatível com o

contexto de análise dos artigos sobre o AO: afinal, embora seja razoável esperar que a

língua portuguesa assuma contornos específicos em cada um dos países que a falam, em

geral são identificadas duas versões majoritárias entre os quatro países que reúnem o

maior número de falantes do Português – a versão brasileira (praticada no Brasil) e a

versão europeia (praticada em Portugal, Angola e Moçambique).

Nesse sentido, parece haver uma polarização maior entre Portugal e Brasil, que

decorre, pelo menos em parte, das maiores diferenças registradas entre o português falado

num e noutro país. Soma-se a isso o fato de Angola e Moçambique, à época da publicação

dos artigos, ainda não terem ratificado o AO, como já mencionado.

Essa análise corrobora, em alguma medida, a prevalência da ideia de que o AO90

seria mais benéfico para o Brasil do que para Portugal, partilhada por boa parte dos autores

que se opõem ao acordo – os quais respondem, em conjunto, por 77,8% do total de

sessenta e três artigos analisados.

Nas situações de simetria, ou seja, de equivalência de forças, houve um certo

equilíbrio entre as estratégias de construção de movimentos de divergência e convergência,

com relativa vantagem para a primeira – 52,2% contra 47,8% respectivamente. Mais uma

vez, o Brasil é o interveniente mais frequente, figurando em 91,3% das relações de simetria

– porcentagem superior, portanto, àquela verificada nas relações assimétricas, em que o

Brasil participa de 75% do total.

Deixando de lado a distinção entre relações comparativas simétricas e assimétricas

e considerando-se, assim, o total de noventa e quatro relações identificadas, o Brasil

aparece entre os intervenientes em 83% delas, ou seja, em setenta e oito do total de casos,

como indicado no Quadro 6.3.

Na perspectiva da construção das identidades nacionais, a valorização das

diferenças entre países – em simultâneo ao apagamento das mesmas no interior do espaço

nacional – configura um dos mecanismos mais básicos desse processo. No contexto

específico do AO90, porém, a aplicação dessa perspectiva identitária parece instituir uma

dualidade: por um lado, quer-se valorizar a identidade da língua, isto é, a noção de partilha

de algo comum entre os diferentes países de Língua Portuguesa, por outro, as diferenças

também precisam ser trazidas à tona – e valorizadas – num cenário em que um grupo de

países interage e negocia.

Além disso, no contexto de contato e negociação entre Estados nacionais, não

parece possível nem exequível manter-se o caráter nacional fora do debate. No entanto, tal

Page 205: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

187

carácter, ao mesmo tempo em que atua como um importante elemento de valorização da

diversidade, também fomenta conflitos, os quais, a rigor, devem ser resolvidos num

contexto de paridade de forças, como requer o ambiente democrático.

Conclui-se, desse modo, a análise das relações de comparação estabelecidas entre

Portugal e outras entidades nacionais ou supranacionais no âmbito do debate sobre o

acordo ortográfico. Os principais resultados encontrados foram sintetizados no Quadro

6.19 e serão retomados no capítulo seguinte, em que toda análise de dados realizada nesta

segunda parte da presente pesquisa será contrastada com o desenvolvimento teórico

elaborado na primeira parte.

Relações Principais resultados

Simétricas ∙Ligeiramente menos frequentes (48,9%) do

que as relações assimétricas

∙Brasil como interveniente frequente (91,3%)

∙Quando o Brasil é o único interveniente,

prevalece a divergência (61,5%)

∙ Quando o Brasil é um dos intervenientes,

prevalece a convergência (59,25%)

∙Quando o Brasil não figura entre os

intervenientes, prevalece a convergência

(75%)

Assimétricas ∙Ligeiramente mais frequentes (51, 1%) do

que as relações simétricas

∙Brasil como interveniente frequente (75%)

∙Portugal ocupa, predominantemente, o pólo

fraco da relação de comparação (81,25%)

∙Em 66,7% dos casos em que Portugal ocupa

o pólo da força, divide essa posição com o

Brasil

∙AO como cedência de Portugal face ao

Brasil

∙Maior força econômica do Brasil em relação

a Portugal

∙AO como ameaça/risco ao português

europeu

∙Português europeu como o mais correto Quadro 6.19 – Relações de simetria e assimetria: quadro-resumo

Page 206: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

188

Síntese

Uma vez identificada a perspectiva de análise desenvolvida neste capítulo – o

estudo comparativo das posições ocupadas por Portugal em relação a outros países e

entidades nacionais e supranacionais –, passou-se à classificação de tais situações em

simples ou complexas. As relações identificadas foram separadas em duas categorias: uma

indicativa da paridade de forças entre os intervenientes – relações simétricas – e a outra

indicativa de um déficit ou de uma diferença de forças – relações assimétricas. As relações

simétricas foram ainda analisadas em função dos movimentos de aproximação e

afastamento construídos entre os intervenientes, sendo classificadas como convergentes e

divergentes respectivamente. Nas relações assimétricas, foram identificados os países que

ocupavam quer o pólo forte quer o pólo fraco. Considerando-se Portugal como o país de

referência, tais relações foram classificadas como de força/vantagem quando Portugal

ocupava tal posição e como de fraqueza/desvantagem quando tal não ocorria. Por fim, os

principais resultados foram sintetizados num quadro-resumo.

Page 207: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Capítulo 7

Reflexão final

A perspectiva dos marcadores identitários

A perspectiva das relações de comparação

Repercussões e desdobramentos

Page 208: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 209: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

O recurso à língua como fator de identidade consistiu numa estratégia recorrente ao

longo do século XIX, especialmente a partir de sua segunda metade, na construção das

identidades nacionais na Europa. No entanto, neste início de século XXI, marcado pelos

processos de globalização e por profundas transformações do tecido social, no contexto da

modernidade tardia, resta saber se a relação entre língua e identidade nacional permanece – e,

se permanece, em que termos.

Neste capítulo, retoma-se os resultados da análise do corpus, desenvolvida na segunda

parte da pesquisa, especialmente nos dois capítulos anteriores, para, numa perspectiva

comparada e interessada, reavaliá-los a luz do enquadramento teórico-metodológico

elaborado na primeira parte. As teorias sobre os nacionalismos e sobre as identidades são

assim mobilizadas para dar sentido a – ou, ao contrário, para pôr em causa – os discursos e

representações identificados no exame dos artigos de opinião sobre o acordo ortográfico.

Como ponto de partida, traz-se novamente ao debate o conjunto de temas que

informam os chamados marcadores identitários, ou seja, elementos utilizados de modo

recorrente no processo de construção das identidades nacionais. Pátria, nação, soberania,

povo, cultura, identidade e matriz foram os conceitos assim identificados e que agora

retornam ao centro do debate sobre a relação entre língua e identidade nacional na Europa.

A seguir, retoma-se a análise das diferentes posições assumidas por e construídas para

Portugal nas situações de contato e contraste com outras entidades nacionais ou

supranacionais, realizada no capítulo seis. Procura-se, agora, constituir uma visão de

conjunto, que dê conta das perspectivas teóricas e das análises práticas e que revele os

diferentes discursos elaborados em torno da ideia de língua e identidade.

Por fim, concluída a análise comparada do recorte teórico-metodológico adotado e dos

resultados do estudo de caso, passa-se às reflexões finais sobre o tema central desta

investigação, ou seja, sobre o papel simbólico da língua na construção discursiva das

identidades nacionais. Esse esforço final implica a tentativa de se recontextualizar os

Page 210: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

192

discursos sobre língua e identidade num dado contexto espaço-temporal – a Europa deste

início de século – e de se refletir sobre possíveis ou potenciais repercussões e

desdobramentos.

O objetivo deste capítulo é sistematizar as reflexões e análises realizadas no decorrer

desta pesquisa, de modo a reunir e identificar as principais representações construídas em

torno da ideia de língua e de identidade nacional. Procura-se, assim, promover uma espécie de

mapeamento que – espera-se – possa contribuir para uma reflexão crítica e uma melhor

compreensão do tema.

A perspectiva dos marcadores identitários

Os primeiros elementos identificados como pertencentes à categoria de marcadores

identitários analisados neste estudo foram pátria e nação. Partindo-se do conceito de pátria,

em geral, os discursos construídos em torno dele estabelecem uma relação direta com a ideia

de língua. Na maior parte dos casos, entretanto, nega-se a interdependência entre um e outro,

ou seja, a associação entre língua e pátria é invocada para, logo a seguir, ser negada ou

contestada.

Considerando-se o viés argumentativo dos artigos de opinião, a insistência nesses

discursos de associação parece indicar a existência de uma crença ou, ao menos, de uma

expectativa partilhada de que a língua é indicadora ou reveladora da existência de uma pátria

a ela relacionada. Numa associação ainda mais elementar, tem-se a língua como constituidora

da ideia de pátria e definidora dos seus limites. Se tal não fosse verdade, não seria razoável

recorrer a esses discursos com tanta frequência apenas para negá-los. Por outro lado, essa

negação carrega em si mesma um indicativo ou uma tentativa de mudança; afinal, reconhece-

se a força do discurso, mas persiste a estratégia de resistência ou desafio a ele.

Assim como pátria, o conceito de nação também foi considerado nesta análise.

Embora ambos os termos, em determinados contextos, possam assumir significados bastante

próximos, parece interessante tentar delinear aqui possíveis diferenças entre eles. No contexto

da pátria, temos os cidadãos; no contexto da nação, temos o povo. Com tal associação

pretende-se reconhecer a existência de um acentuado viés político e de organização social

associado à ideia de pátria, onde a perspectiva da participação ou pertença é regulada por lei e

opcional, isto é, resulta de uma escolha, embora condicionada. Por outro lado, em relação à

Page 211: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

193

nação (em sentido estrito, excluindo-se, portanto, o conceito de Estado-Nação), a referência a

povo implica a noção de pertença, que decorre do nascimento, da ideia de etnia e origem e

que, por tal motivo, já não trata de questões de escolha ou opção, mas, sim, de

predeterminação.

Seguindo essa mesma linha de raciocínio, no contexto da pátria, a língua nacional

confunde-se com a noção de língua oficial; no contexto da nação, a língua nacional confunde-

se com a noção de língua materna. Mantém-se, assim, as mesmas distinções: pátria como

espaço marcado pela organização política e social, pela perspectiva da escolha e, sobretudo,

pela regulação da lei, e nação como espaço marcado pelas raízes, pelas relações familiares e

afetivas, pela predeterminação.

Se o esforço, acima esboçado, de caracterização e distinção entre pátria e nação fizer

algum sentido, pode-se pensar o conceito de pátria como estando interligado à ideia de

mobilização social e de ação política – talvez, por isso, tenha se verificado uma apropriação

mais direta do conceito de pátria (“minha pátria”, “nossa pátria”) do que de nação. Além

disso, na discussão sobre o acordo ortográfico, onde predominam artigos de oposição ao

mesmo, prevalece a incitação à ação: os opositores incitam à ação de resistência, à

mobilização de todos os descontentes com o acordo – haja vista a proposta da ILC-AO,

Iniciativa Legislativa de Cidadãos, contra a entrada em vigor do Acordo Ortográfico. Por esse

motivo, mais uma vez, a relação de associação direta entre língua e pátria parece mais

interessante do que com nação.

Nesse mesmo sentido e no que diz respeito à nação, em geral, a relação com a língua

não predomina, embora haja, excepcionalmente, algumas afirmações bastante fortes de

associação entre nação e língua, como referido no capítulo cinco. Parece haver também um

maior grau de abstração associado à nação em comparação com pátria, o que implicaria um

campo de significação maior para a primeira. Um indicativo dessa amplitude é a condição do

modificador nacional/is, cuja utilização é bastante alargada, o que explica, em boa parte, sua

frequência e a diversidade de associações (classificadas, nesta análise, em três campos

distintos: político-institucional, cultural e espacial, com predomínio do primeiro). De qualquer

modo, esse exercício de distinção entre pátria e nação serve apenas como estratégia de

reflexão, uma vez que, no âmbito deste trabalho, não se pode estabelecer com clareza as

linhas divisórias entre um e outro conceito.

Retomando a perspectiva histórica do desenvolvimento dos nacionalismos na Europa,

especialmente o século XIX, destaca-se, agora, o processo concomitante e interdependente de

desenvolvimento das chamadas línguas nacionais e de definição das fronteiras, que parece

Page 212: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

194

alcançar alguma estabilidade – embora precária e relativa – na segunda metade do século XX,

após as duas grandes guerras. Esse é também o período de construção e afirmação das

culturas nacionais, que conduzem, na chegada do novo milênio, a uma comunidade europeia

de países com línguas e fronteiras definidas.

Mas, no exato momento em que essa fixidez e essa estabilidade parecem se tornar

realidade, elas começam a se desmoronar; afinal, o mundo segue em movimento. Agora são

as novas tecnologias de comunicação, os novos recursos de mobilidade, as novas relações de

força, as novas interdependências, os novos aliados e inimigos, novos valores e princípios e

uma nova organização geopolítica que emergem a partir dos diferentes processos de

globalização, no contexto desta modernidade tardia.

As fronteiras nacionais são postas em causa e transformadas, especialmente no âmbito

da União Europeia, assim como a noção de pureza e homogeneidade das línguas nacionais e a

valorização das línguas-padrão em detrimento de quaisquer outras. Num cenário de

mobilidade que se traduz, entre as várias formas possíveis, em acirramento dos movimentos

migratórios e de multiplicação das situações de contato e contaminação entre línguas, novas

políticas e novas teorias são desenvolvidas, muitas delas a favor da pluralidade e da

diversidade.

Nesse mesmo cenário, mas agora resgatando-se a associação entre língua e nação, que

se fez marcadamente presente nos nacionalismos europeus, alcança-se a perspectiva do

direito: o direito à língua confunde-se com o direito à nação. O recurso à língua como fator de

identidade e estratégia de homogeneização, que tanto beneficiaram o processo de construção

das nações, agora, se mantido, transforma-se em ameaça à integridade nacional, uma vez que,

no interior do território da nação, a diversidade linguística, sempre presente, ganha

notoriedade.

Consequentemente, num contexto marcado pela diversidade e pluralidade de línguas

convivendo num mesmo espaço nacional, o conceito de uma língua, uma nação precisa ser

revisto e transformado, o que implica a necessidade de tranformação da própria ideia de

língua nacional como sendo a língua materna de um determinado povo. Os discursos de

associação entre pátria, nação e língua começam a mudar – mas mudar leva tempo e há

sempre resistência. Os resultados do estudo de caso – com seus discursos de afirmação e

resistência à associação entre língua e pátria, por exemplo – parecem apontar nessa direção.

Outro tema que também se relaciona com os conceitos de pátria e nação e que foi aqui

analisado foi soberania. O conceito de soberania, tão caro aos discursos de afirmação dos

chamados Estados-Nação, tem sido rediscutido à luz do atual cenário social, político e

Page 213: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

195

econômico, caracterizado por uma crescente interdependência entre os Estados, associada aos

processos de globalização.

Em geral, não há representações que estabeleçam relação direta entre soberania e

língua; ela surge, por outro lado, associada à ideia de Estado ou governo, num contexto que

remete para perda ou enfraquecimento do poder estatal. Tais construções corroboram os

discursos atuais sobre a perda de soberania dos Estados no cenário internacional, e não só,

face a interdependência política, econômica e social associada à globalização, como acima

apontado.

Como ponto de partida, podemos entender soberania como sendo o poder de um país

de decidir o seu próprio destino, pelo menos teoricamente, sem intervenções externas ou

condicionamentos. É o livre arbítrio aplicado ao Estado-Nação. Na prática, no entanto,

sempre houve condicionamentos de natureza diversa – sejam eles diretos ou indiretos,

explícitos ou não. Nas sociedades ocidentais atuais, marcadas por uma intensa mobilidade,

pelo desenvolvimento das tecnologias de comunicação e pela crescente interdependência

entre Estados, entre outros fatores, tais condicionamentos assumiram proporções de grande

vulto a ponto, talvez, de pôrem em causa a ideia de soberania em seus contornos originais.

Ainda no que diz respeito ao conceito de soberania, parece relevante fazer aqui uma

distinção entre duas perspectivas distintas. Por um lado, pode-se pensar a soberania no

contexto de perda ou enfraquecimento do poder ou da capacidade de um país decidir sobre um

certo tema por ter delegado tal poder, de forma voluntária e consciente, para os órgãos de

decisão colegiada da união europeia. Por outro, pode-se pensar a soberania no contexto de

perda ou enfraquecimento, porque um país, mesmo mantendo seu poder ou sua capacidade de

decidir, já não pode controlar ou conter a aplicação e/ou os resultados dessa decisão em

função de fatores externos a ele, mais uma vez associados aos processos de globalização e ao

desenvolvimento de novas tecnologias.

A questão da soberania perpassa a discussão do próprio projeto europeu, assim como

suas possibilidades de organização interna e sua imagem ou identidade no campo

internacional. Na condição de união entre países soberanos e distintos, é preciso definir de

quanto dessa soberania cada país deve abdicar a favor da unidade e como fazê-lo. Ainda hoje,

essa discussão vem sendo travada. No caso de Portugal, a pertença a uma entidade

supracional, como a União Europeia, parece tornar ainda mais evidente esse embate de forças

marcado pelos discursos de ameaça à ou perda de soberania.

Giddens (2014: 11), ao refletir sobre tais questões, ou seja, sobre os discursos de

perigo ou ameaça de perda de soberania, no âmbito da UE, alerta para o fato, difícil de

Page 214: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

196

contestar, de que não se pode falar em perda daquilo que já não se tem: “Não se pode entregar

aquilo que já está perdido. É escasso o poder que as nações detêm individualmente na cena

mundial”.

No contexto desta pesquisa, no entanto, não parece fazer sentido aprofundar essa

discussão. A rigor, o que importa ressaltar é que o AO90 representa um acordo entre

diferentes países, concretizado na forma de um tratado internacional, o que necessariamente

implica um jogo de forças e negociação de interesses entre países, remetendo para a questão

da soberania. O fato de o tema da soberania vir à tona no âmbito de um acordo internacional

sobre ortografia parece, ainda, reforçar, por si só, a imbricação entre língua, nação e

identidade nacional, mesmo que de forma indireta. Uma vez que o que interessa aqui é pensar,

como sempre, o papel simbólico da língua em sua relação com as identidades nacionais, a

perspectiva da perda da soberania ajuda a construir um cenário caracterizado pelo perigo e

pela ameaça, que agora pairam também sobre o conceito de língua, trazendo a discussão sobre

o AO para o campo da política e da afirmação nacional.

Por fim, a referência, embora única, à soberania cultural concorre para explicitar essa

relação com a língua, desdobrando-se na associação entre língua e cultura e, por sua vez, entre

cultura e identidade, temas que serão analisados mais à frente. Aqui, a relação que interessa é

aquela estabelecida entre soberania e identidade nacional, tendo a cultura como elo. Nesse

sentido, a ideia de soberania se estende para outros campos além da política, em outras

palavras, um país soberano deve assim o ser em todas as suas esferas de atuação.

Do mesmo modo que soberania, outro tema considerado na identificação dos

marcadores identitários foi o conceito de povo. Na análise das referências a povo, interessa

destacar principalmente os discursos de associação com a língua. Nessas representações, a

língua surge como elemento constituidor do povo ou revelador de uma certa etnia/origem. A

língua é também associada a um particular modo de viver e pensar, retomando a perspectiva

da língua como condicionadora de uma visão de mundo na esteira do pensamento de

Wittgenstein ou de Sappir e Whorf, como referido no capítulo três, ou da própria linguística

sistêmico-funcional, no seu princípio de que as línguas são estruturadas pelo uso e pelas

necessidades dos seus falantes.

Nesse contexto, parece haver uma espécie de fusão dos conceitos de povo, língua e

identidade, criando-se um amálgama onde já não é possível separar cada um desses elementos

com facilidade. Ampliando-se o conceito de identidade individual para o de identidade

nacional, a nação passa a figurar nessas relações, onde povo, língua e identidade conduzem ao

reconhecimento de uma nação, com tudo o mais que isso implica.

Page 215: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

197

A perspectiva patrimonial também é revelada em discursos que identificam o povo

como sendo o legítimo proprietário da língua e da nação e, portanto, aquele que detém

direitos sobre ela e sobre o seu destino. É bem verdade que as representações construídas em

torno de povo revelam relações de poder em que este ocupa, na maioria das vezes, o pólo

mais fraco. No entanto, tal situação não impede nem afeta o reconhecimento de que cabe a

esse mesmo povo o direito à língua/nação – afirmação que consiste, inclusive, num dos

fundamentos do discurso democrático.

Em resumo, retomando-se a relação entre povo, língua e identidade, os discursos e

representações construídos em torno dela envolvem questões de controlo, poder e

interdependência, num contexto em que, embora se atribua ao povo um conjunto de direitos

sobre a língua e a nação, tais direitos lhe são usurpados, ou seja, o povo, em permanente

situação de fraqueza ou debilidade, não pode, não sabe ou não é capaz de exercer os seus

direitos.

Partindo-se, outra vez, da perspectiva das teorias dos nacionalismos, pode-se pensar as

representações de povo face à importância atribuída à mobilização das massas nos

movimentos nacionalistas, para a qual concorre a criação e multiplicação dos símbolos

nacionais. Nesse contexto, a língua, como símbolo da nação, ganha destaque e importância,

sendo tal associação utilizada como recurso de sensibilização para o caráter identitário das

discussões sobre o AO90. Não se trata, portanto, de discutir apenas questões de ortografia,

mas sim de proteger uma certa identidade nacional.

A ideia de um povo fragilizado, sem vontade ou iniciativa, que alimenta boa parte das

representações construídas em torno dele, é, em alguma medida, consistente com a ainda

recente experiência ditatorial portuguesa e compatível com as reflexões e os cenários

delineados a partir de Gil (2008), Lourenço (1988) ou Sousa Santos (2001), discutidos no

capítulo quatro. Nesse sentido, os dados obtidos a partir do estudo de caso parecem confirmar

tais posições.

Vale também referir que, à luz dos atuais desenvolvimentos dos meios de

comunicação e das transformações sociais que são tanto origem como consequência dos

mesmos, essas relações de força são afetadas. Novas formas de manifestação e expressão são

colocadas à disposição das pessoas em geral – ou seja, do povo – num movimento que ainda

não se sabe se conduzirá a mudanças efetivas. De qualquer modo, o cenário desenhado a

partir do estudo de caso parece datado de alguma forma. No entanto, a partir dos dados

obtidos neste momento, não se pode especular mais do que isso.

Page 216: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

198

Passando-se à análise do conceito de cultura, como regra geral, persiste a associação

entre esta e a língua, que é, em geral, afirmada ou mesmo dada como certa logo à partida.

Língua e cultura são assim posicionadas numa relação direta, caracterizada pela

interdependência. Essa perspectiva parece condizer com as atuais teorias que exploram as

funções e capacidades da língua para além da comunicação ou da função comunicativa.

Os conceitos de língua e cultura são, assim, entretecidos a partir da ideia de que a

língua carrega em si mesma valores, princípios, visões de mundo, pensamentos e sentimentos

– em outras palavras, a língua implicaria um modo de ser e estar no mundo. Nesse sentido,

pode-se dizer que a língua carrega cultura – produz e é produzida por uma cultura, ou seja, é,

simultaneamente, criadora dessa cultura e sua criatura.

Levando-se em conta a afirmação acima, não surpreende o fato de, muitas vezes,

identidade e cultura serem utilizadas como sinônimos. Com a ampliação do conceito de

cultura – que encontra na definição da UNESCO, citada no primeiro capítulo, um bom

exemplo – e sua valorização, ela passa a ser um recurso frequente e cada vez mais relevante

no processo de construção de identidades.

Além disso, essa abertura ou ampliação do conceito de cultura também promove um

maior grau de abstração, alargando seu campo de significação e uso. Desse modo, atribui-se à

ideia de cultura maior elasticidade e flexibilidade, permitindo que ela seja utilizada em

contextos bastante diversos, com significados distintos. A cultura torna-se assim uma espécie

de vale-tudo, sendo mobilizada em discursos de natureza social, política, econômica, etc.,

como exemplificam as expressões cultura econômica, cultura política, soberania cultural,

cultura literária, cultura nacional entre tantas outras.

Nesse contexto de associação entre língua e cultura, uma eventual alteração da língua

provocaria uma alteração da cultura a ela relacionada, sendo tal mudança, em geral,

identificada como ameaça ou perigo. Levando-se em conta o contexto do AO, há várias

perspectivas a analisar aqui. Em geral, para os autores que se opõem ao acordo, a alteração

ortográfica prevista por ele implica alteração à língua e, portanto, configura ameaça à cultura

nacional. Para os que são favoráveis, no entanto, tal alteração, sendo meramente ortográfica,

não afetaria a língua propriamente dita e, muito menos, a cultura a ela associada.

Há, ainda, uma terceira via de argumentação que é construída a partir de

representações onde se afirma o caráter evolutivo da língua e sua constante transformação,

sem que tais mudanças sejam caracterizadas como negativas ou como uma ameaça. Afastam-

se, assim, ou relegam a um segundo plano, a questão da associação entre ortografia e língua e,

Page 217: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

199

consequentemente, a perspectiva de alteração da língua – assim como os supostos riscos e

perigos associados a ela – em decorrência da implementação do acordo ortográfico.

Se a associação entre língua e cultura é, regra geral, afirmada, não parece haver o

mesmo grau de concordância em relação à natureza dessa relação. A questão que permanece

aberta é, partindo-se da afirmação de que uma língua implica uma certa cultura, o que se pode

afirmar no contexto em que essa mesma língua é adotada por países diferentes, ou seja, em

contextos culturais ou nacionais distintos? De certa forma, o que se quer entender é se, e em

que medida, partilhar uma língua implica partilhar uma cultura. Tais questões estão

estreitamente relacionadas com a perspectiva da dispersão das línguas característica do

passado colonial europeu e são o ponto de partida de conceitos como lusofonia. No entanto,

como esta pesquisa tem seu foco no contexto europeu, importa analisar esses temas

unicamente na perspectiva de Portugal.

Em torno dessas questões, encontram-se representações concorrentes, que importa

destacar. Por um lado, há discursos que associam o português à cultura portuguesa e

explicitamente ignoram ou afirmam a irrelevância dos demais contextos. Trata-se de uma

visão que procura singularizar a relação entre língua e cultura, resolvendo a questão ao

delimitar seu campo espacial de ação unicamente a Portugal – portanto, não mais no contexto

internacional no qual opera o AO.

Por outro lado, há discursos construídos em sentido oposto, nos quais se afirma a

multiplicidade e a diversidade da relação entre língua e cultura. Nesse sentido, ganham

destaque e valor as diversas culturas que têm na língua portuguesa um ponto de contato, assim

como a variedade dos modos de apropriação da língua característicos de cada cultura ou país

que faz do português sua língua.

Focando-se na relação entre cultura e identidade nacional, em muitas das

representações construídas a partir da ideia de cultura, eventuais alterações a ela são

identificadas como risco, incitando ações de proteção e defesa dessa cultura, como já

mencionado acima. A noção que subjaz a esse entendimento é a percepção da cultura como

algo estanque, imóvel, bem definido e delimitado, como algo herdado do passado e dos

antepassados e que precisa ser preservado em sua integridade e pureza. Essa cultura é, assim,

fonte e matriz da identidade atual partilhada por um povo e digna de proteção.

A caracterização acima assenta, em geral, numa visão essencialista de cultura, que

entende o contato como contaminação e a mudança como perda ou deterioração. Trata-se de

uma cultura não apenas singularizada, mas também no singular, que não dá espaço para a

alteridade, não acomoda diferenças e não contempla a negociação. De certo modo, essa é a

Page 218: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

200

visão de cultura que se destaca – ideia reforçada pelo uso da palavra cultura sempre no

singular.

Assim como verificado na análise da relação entre povo e língua, a associação entre

cultura e língua também contempla a perspectiva patrimonial. Em tais discursos, a língua é

representada como um patrimônio ou bem cultural, muitas vezes dotado de valor econômico.

Em geral, verifica-se uma certa materialização dos conceitos de língua e cultura, em contraste

com a abstração que caracteriza tantos outros discursos, como estratégia de atribuição de

valor.

No contexto acima, quando a diversidade é realçada em tais construções,

invariavelmente surge como recurso de agregação de valor. É interessante observar também a

grande maleabilidade do argumento da diversidade, que se presta igualmente aos opositores e

aos defensores do acordo, como já referido no capítulo quatro. Em comum, todos afirmam seu

valor e, consequentemente, a importância e a relevância de se preservar tal diversidade.

Por fim, a relação entre língua e cultura também é utilizada como um valioso recurso

de construção das identidades nacionais, por todos os motivos já indicados acima. Mas, neste

momento, é a perspectiva da identidade, nas representações em que esta é explicitamente

nomeada, que interessa investigar e, mais especificamente, o papel simbólico desempenhado

pela língua nesse contexto.

Sobre o conceito de identidade, o primeiro ponto a destacar é que este surge

fortemente associado à ideia de língua. De modo geral, é em função dela que ele é articulado.

Se a cultura, como esperado, dada a amplitude de significados que incorpora, alcança maior

variedade de temas e contextos, entre os quais os da língua, o conceito de identidade é quase

que univocamente associado à língua no âmbito dos artigos de opinião sobre o AO.

Os discursos construídos em torno da ideia de identidade estabelecem relação direta

entre esta e a língua, em geral para afirmá-la. Entretanto, assim como na análise das

representações de cultura, verifica-se aqui uma tentativa de distinção entre língua e ortografia.

Em geral, quando tal distinção é feita, busca-se negar a relação entre identidade e ortografia,

ao contrário do que se verifica com a relação entre identidade e língua.

Como recurso de construção de identidades nacionais, a língua figura em posição de

relevo, constituindo por si só um fator de identidade. A língua é, assim, produtora, isto é,

geradora de identidades. Apenas como exemplo, considere-se a expressão língua materna,

que muitas vezes é utilizada como sinônimo da língua nacional em contextos onde a ideia de

homogeneidade e partilha de uma mesma origem ou etnia é reforçada no interior de uma

comunidade nacional – ou que se pretende nacional.

Page 219: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

201

A relação de filiação mobilizada pela referência à figura da mãe é bastante ilustrativa

das relações que se deseja invocar – não só de origem física, biológica e, portanto, natural,

como também afetiva. A língua, nesse sentido, é percebida como um elemento ou símbolo de

reconhecimento individual e coletivo, numa reafirmação do seu papel na construção de

identidades. Língua e identidade, associadas, contribuem para a percepção e partilha do

sentimento de pertença a uma dada comunidade ou grupo.

Novamente, assim como para cultura, também na relação entre língua e identidade

verifica-se uma tensão entre o singular e o plural, o individual e o coletivo. Na perspectiva

singular, uma identidade é associada a uma língua; na perspectiva plural, uma língua é

associada a várias identidades – e o inverso também poderia ser explorado, ou seja, a

construção de uma identidade singular a partir da pluralidade de línguas, mas essa hipótese

não é aqui aventada. Também a língua como recurso de construção de uma identidade

singular – a minha identidade – ou de uma identidade coletiva – a nossa identidade – é

articulada ao longo da argumentação em torno do AO.

De modo geral, no entanto, o que mais uma vez se afirma é uma visão essencialista

das identidades, que se faz presente na noção de risco associada a eventuais transformações

desse conteúdo identitário ocasionadas por mudanças à língua ou, mais precisamente, à

ortografia. Assim como no caso de cultura, também as referências à identidade aparecem

sempre no singular.

Retomando-se, em parte, os temas desenvolvidos no primeiro capítulo em torno do

conceito de modernidade tardia e da caracterização dos tempos atuais como sendo marcados

pela fragmentação e pelo fim das grandes narrativas com pretensão de universalidade,

interessa pensar sobre os valores e possíveis significados das perspectivas essencialistas

associadas, nesse contexto, especialmente à ideia de cultura e de identidade.

Talvez, nesse sentido, o apego aos essencialismos seja uma reação, uma tentativa de

se identificar pontos de apoio – supostamente fixos, imóveis e estáveis – em meio a tantas

transformações e mudanças, ou seja, uma estratégia de enfrentamento do medo da mudança

ou uma forma de resistência e, ao mesmo tempo, parte desse processo gradual que não pode

ser contido ou imobilizado e que segue um ritmo próprio.

As representações marcadas pelo viés essencialista parecem reproduzir versões e

imagens cristalizadas do passado, sem que seja possível, no entanto, afirmar de forma

categórica se os seus autores defendem conscientemente tais perspectivas ou se repetem

fórmulas concebidas num contexto já bastante distinto daquele no qual são aplicadas. Em

outras palavras, não é possível dizer se o recurso à essência representa uma estratégia

Page 220: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

202

consciente de construção do presente ou o resgate de referências agora descontextualizadas,

isto é, resquícios de uma época que chega ao fim – e o mesmo se pode dizer dos

nacionalismos, tema que será abordado logo mais. O certo é que parece haver um embate de

forças entre discursos concorrentes, independentemente da posição dos respectivos autores

sobre o AO.

Em resumo, não se pode afirmar que os essencialismos sejam algo do passado e que

estejam condenados a serem superados ou substituídos por versões menos rígidas, isto é, por

conceitos com campos de significação mais amplos e maleáveis e, portanto, com maior

potencial de adaptação nas sociedades modernas, marcadas pela percepção de um movimento

constante, aceleração contínua e incremento e valorização da diversidade. Mas é possível, no

entanto, identificar em tais discursos semelhanças e continuidades com esse passado – resta

saber se isso faz parte do processo de mudança ou se é um fim em si mesmo.

Por fim, o último tema tratado sob a perspectiva dos marcadores identitários foi o

conceito de matriz, em relação ao qual verifica-se o predomínio das associações com a ideia

de língua. Nesse contexto, as representações construídas em torno de matriz identificam, na

maioria das vezes, a língua como sendo o elemento que primordialmente exerce tal função e,

portanto, como recurso privilegiado no processo de construção de identidades.

Partindo-se da relação estabelecida acima, pode-se pensar em perspectivas diversas

para as representações de matriz: matriz como origem, isto é, como ponto de partida, como

elemento a partir do qual outro se origina; matriz como molde ou modelo, isto é, como forma

ou estrutura utilizada para se reproduzir o objeto original ou produzir cópias dele; ou matriz

como controlo, isto é, como sede, como centro definidor dos fluxos de poder, controlo e

organização, como já brevemente referido no capítulo cinco.

Tais perspectivas parecem condizer com a ideia de língua como fator de identidade,

estendendo-se essa mesma analogia: identidade como origem, ou seja, como etnia, raiz,

história, memória; identidade como modelo, ou seja, como prescrição de um modo de ser e

agir, pensar ou mesmo sentir; identidade como controlo de acesso e exercício de poder, ou

seja, como pertença a um certo grupo, como estratégia de definição de critérios de

inclusão/exclusão, isto é, de definição de barreiras e linhas divisórias entre um eu e um outro.

A atribuição da função de matriz à língua, no contexto específico da língua portuguesa

e de Portugal, parece ser, em alguma medida, devedora do passado colonial, no qual se deu a

expansão da língua portuguesa: de Portugal para os países colonizados. Do mesmo modo, está

também associada a determinadas ideologias linguísticas, e não só, que entendem a pureza

como valor e a hibridez ou mestiçagem como desvalor. Nessa perspectiva, existe uma língua-

Page 221: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

203

matriz a partir da qual variações são derivadas, num processo que implica perda do valor

original de pureza, autenticidade, correção e rigor, distinguindo entre matriz (centro) e

variantes (periferia), por exemplo.

Adotando-se, no entanto, concepções alternativas ao conceito matriz/variantes, pode-

se entender as línguas como em permanente processo de transformação e mudança, motivadas

por outros contatos, vivências e contextos histórico-sociais. Nessa perspectiva, perde sentido a

tentativa de se definir claramente um ponto de partida e um ponto de chegada no processo de

evolução contínua das línguas, assim como de se estipular um ideal de pureza e correção a ser

seguido.

Apenas como exemplo, vale a pena retomar o seguinte excerto da citação já referida

no capítulo seis: “em Portugal e nos outros países que aprenderam a falar a partir da matriz

europeia” (em PB13-1). A opção pela locução verbal “aprender a falar”, independentemente

da intenção pretendida pelo autor do artigo, permite a construção de significados distintos:

transfigura o contexto colonial de imposição da língua portuguesa aos países colonizados ao

evocar o campo da educação e do aprendizado; parece pressupor uma certa incapacidade de

fala anterior ao contato com a língua portuguesa, promovendo, de certo modo, o apagamento

das línguas nativas; e, ainda, estabelece uma relação implícita de poder onde Portugal assume

o papel de quem ensina, ou seja, é identificado como o detentor de um saber/poder. Essa

interpretação – uma entre tantas possíveis – é, de certa forma, coerente com uma específica

imagem do colonizador, construída por e para Portugal, que parece ainda vigorar na

atualidade, apesar dos discursos em sentido contrário: a do bom colonizador empenhado numa

suposta missão civilizadora.

Embora o conceito de matriz não configure um elemento recorrente nos discursos

sobre os nacionalismos na Europa – muito possivelmente em função da associação de tal

conceito com o contexto colonial e, mais especificamente, com a relação entre colonizador e

colonizados, extrapolando, portanto, o espaço europeu –, as representações construídas em

torno de matriz e sua associação com a língua são compatíveis com as teorias sobre os

nacionalismos. A noção de língua como símbolo e matriz de identidade e cultura, destacada

no âmbito desta análise, é um bom exemplo disso.

Page 222: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

204

A perspectiva das relações de comparação

De modo geral, o recurso à comparação e ao contraste entre países é característico dos

processos de construção das identidades nacionais, como indicam as teorias analisadas nos

primeiros capítulos deste estudo – o contato com o outro e o esforço de se estabelecer e

afirmar diferenças entre países caracteriza os mecanismos de construção de um eu e de um

outro, tantas vezes referido. Nesse processo, como regra, as diferenças entre os diversos

grupos são realçadas, enquanto as diferenças internas ao grupo são sublimadas.

Identificação e diferenciação são, assim, movimentos distintos de um mesmo

processo. Nele, os valores atribuídos à identidade e à diferença podem variar em função das

representações que se pretende construir ou realçar: a diferença pode ser valorada como

positiva ou negativa, por exemplo, em função do contexto e das intenções de quem institui o

discurso, esboçando um jogo de forças que nem sempre se revela claramente.

No campo da argumentação, e especificamente em relação aos artigos de opinião aqui

analisados, a construção de identidade e diferença entre países distintos e a atribuição de valor

positivo ou negativo às mesmas configuram estratégias de persuasão e convencimento. Por

meio delas, são estabelecidas relações, muitas vezes complexas e quase sempre voláteis, de

forças e fraquezas, alianças e antagonismos.

Nesse sentido, não são raras as situações em que as diferentes possibilidades de

significação inerentes a certos discursos revelam equilíbrios de força distintos. Em tais casos,

o que, à primeira vista, parece indicar uma posição de fragilidade para Portugal, numa outra

leitura revela certa presunção de superioridade. Aliás, tal presunção, em certos momentos,

figura como elemento de construção da fragilidade inicialmente identificada, como já

analisado ao final do capítulo seis, nos comentários sobre DN09-1, DN17-4 e PB33-1.

Nas situações de comparação estabelecidas entre Portugal e outros países, o Brasil se

destaca como o interveniente mais frequente. Essa situação parece refletir a crença de que

Portugal e Brasil representam dois lados antagônicos no âmbito da discussão sobre o acordo

ortográfico, que seria, afinal, o resultado da vontade de ambos, com pouca ou nenhuma

participação dos demais países envolvidos. Em outras palavras, os tomadores de decisão, no

que diz respeito ao AO, seriam, portanto, Portugal e Brasil.

Seguindo o raciocínio acima, o predomínio das relações de assimeria traduzem a

disparidade de posições entre Portugal e Brasil, sendo o Brasil representado, quase sempre,

como detentor de vantagens. O acordo ortográfico supostamente seria mais benéfico para o

Page 223: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

205

Brasil do que para Portugal, pois implicaria uma aproximação indevida entre o português

europeu e o português falado e escrito no Brasil. A versão europeia da língua sairia

descaracterizada desse acordo ao sofrer um número maior de alterações ou, pelo menos, de

alterações mais significativas, em comparação com o Brasil.

Considerando-se o fato de que, em boa parte dos artigos analisados (77,5%), os

posicionamentos assumidos são contrários ao AO, a maior frequência das relações

comparativas assimétricas, onde Portugal ocupa o pólo fraco, não parece surpreender. Tal

conclusão decorre de a caracterização explicitada acima ser adotada preferencialmente pelos

autores que resistem ao acordo. Talvez por esse mesmo motivo, os cenários de ameaça, risco

e perigo, associados à língua portuguesa (especificamente ao português europeu) e às

identidades e culturas, sejam recorrentes.

Também nos casos em que Portugal ocupa o pólo da força, as representações acima

são mantidas. Em seis dos nove casos verificados, Portugal não aparece sozinho, mas sim

divide sua posição com o Brasil, como já discutido no capítulo anterior. Portanto, também

nesses casos, embora Portugal ocupe o pólo forte da relação de comparação, não consegue se

sobrepor ao Brasil, que, de modo geral, surge como o principal oponente de Portugal no

contexto do AO.

Retomando-se os principais argumentos mobilizados na construção de relações

comparativas assimétricas entre Portugal e o Brasil, temos: argumentos de cedência de

Portugal face ao Brasil, argumentos de maior força econômica do Brasil em relação a

Portugal, argumentos de proteção do português europeu e correção da língua e argumentos de

valorização e/ou aprovação de um comportamento ou imagem.

Os dois primeiros argumentos reforçam a caracterização de vantagem para o Brasil e

desvantagem para Portugal, apontando para o suposto favorecimento do Brasil no âmbito do

AO. O terceiro argumento, ao contrário, coloca Portugal em posição de vantagem, embora

cercado por ameaças e perigo. Essa vantagem é configurada como superioridade ao se atribuir

ao Português europeu a primazia da correção da língua, que agora se vê ameaçada pelo AO.

Por fim, o quarto argumento critica a posição de Portugal, por ter ratificado o acordo, e

simultaneamente valoriza as posições de Angola e Moçambique, especialmente, por ainda não

o terem feito.

Nas relações simétricas, houve um relativo equilíbrio entre convergência (47,8%) e

divergência (52,2%), com ligeira vantagem para a segunda. Mais uma vez, o Brasil figura

como o principal interveniente. Também outros países de língua portuguesa são chamados ao

Page 224: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

206

debate e apenas excepcionalmente países que não têm o português como língua oficial são

identificados – neste caso, especificamente a Inglaterra e a França.

A incidência do Brasil como interveniente nas relações de simetria (91,3%) é

significativamente superior à verificada nas relações de assimetria (75%). No entanto, deve-se

levar em conta que algumas das relações de assimetria são construídas lado a lado com

relações de simetria que envolvem o Brasil ou mesmo no âmbito de situações comparativas

complexas nas quais o Brasil muitas vezes figura. Isso significa dizer que, mesmo estando

ausente de 25% das relações de assimetria, ainda assim se faz presente em parte delas quando

se olha para a situação comparativa como um todo.

Considerando-se apenas a relação entre Portugal e o Brasil nas relações simétricas, é

interessante destacar a diferença das estratégias adotadas quando o Brasil figura como único

interveniente ou como um dos intervenientes, como já referido no capítulo anterior. No

primeiro caso, prevalece a divergência, ou seja, Portugal e Brasil são representados em

paridade de forças, porém com destaque para aquilo que os difere e distingue. No segundo

caso, ao contrário, prevalece a convergência, ou seja, destaca-se agora o que Portugal e o

Brasil têm em comum, mas dessa vez no âmbito da interação e concorrência com os demais

intervenientes envolvidos na relação de comparação.

Mais uma vez, os dados confirmam a análise anterior, que indica a polaridade de

posições assumidas ou atribuídas entre Portugal e o Brasil, por um lado, e, por outro, a

igualdade de forças e posições entre diferentes entidades nacionais e supranacionais que

remetem para o ambiente democrático e para os discursos de valorização da lusofonia, isto é

daquilo que une e aproxima os diferentes países de língua portuguesa.

A questão da polaridade também é reforçada pelo fato de prevalecer a convergência

nos casos em que as relações de comparação simétricas são estabelecidas entre Portugal e

outros intervenientes, excetuado o Brasil. Mas também parece relevante o fato de essa

convergência, no cenário em que o Brasil surge ao lado de outros países e entidades, tirar o

foco da relação Brasil e Portugal. Em outras palavras, embora se estabeleça, em tais casos,

uma relação simétrica convergente entre Portugal e Brasil, essa é diluída pela multiplicação

dos intervenientes ou mesmo pelo recurso a representações em que o Brasil surge de forma

implícita, como nas expressões “países lusófonos” (PB26-04) ou “países onde a língua oficial

é o português” (SL02-2), por exemplo.

Page 225: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

207

Repercussões e Desdobramentos

Os argumentos de natureza identitária articulados nos artigos de opinião sobre o

acordo ortográfico e identificados nesta pesquisa permitem, à partida, uma associação entre

língua e identidade. Em alguns casos, essa associação é estabelecida de forma direta –

destacam-se, aqui, as representações que envolvem os conceitos de cultura e identidade –,

enquanto, em outros, a associação é indireta.

De modo geral, não parece haver dúvidas de que existe uma relação entre língua e

identidade, aqui entendidas em sua amplitude. A língua figura em diversas representações

como recurso de construção, afirmação, visibilidade, comprovação e valorização de uma certa

identidade nacional, fruída de modo individual ou coletivo. Mas será que se trata dos mesmos

discursos do século XIX?

Mesmo que se conclua pela afirmação das semelhanças entre os discursos que

relacionam língua e identidade nacional no passsado e hoje, não parece razoável afirmar que

não houve mudança, uma vez que os conceitos de língua e identidade foram, por sua parte,

transformados. Nesse sentido, por mais que a associação se mantenha, seu potencial de

significação é, necessariamente, alterado.

Essa alteração se faz presente, entre outras situações, na concorrência entre os

discursos resgatados do passado e os discursos da modernidade, ambos trazidos à arena de

debates no contexto atual. A perspectiva da língua como símbolo de identidade é um bom

exemplo de discurso resgatado do passado que ainda se mantém atual e, a princípio, parece

mesmo inabalável. O que muda é a percepção das identidades, que cada vez mais,

apresentam-se no plural, sendo representadas como múltiplas ou fragmentadas, num contexto

de concorrência e competição. O mesmo se dá com o conceito de língua, que também ganha

flexibilidade e se multiplica em língua materna, língua nacional, língua culta, norma padrão,

língua minoritária, língua franca, segunda língua, etc.

O que parece resultar disso? Se a associação entre língua e uma certa identidade

permanece, essa “certa identidade” é que parece perder, em parte, sua força ao ter de

concorrer com uma série de outras identidades que podem ou não se sobrepor a ela em

contextos diversos. Mais ainda, de qual língua se trata?

A partir de Castells (2007), em sua reflexão sobre o poder da identidade, se construir e

atribuir valor a certas representações de identidade implica exercício de poder e se o poder, na

atualidade, é o poder da comunicação, este parece adquirir novas formas e inspirar novos

Page 226: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

208

problemas. O foco do debate parece se deslocar de questões de redistribuição de poder para

questões de fluidez e mobilidade nesta sociedade em rede.

Em certa medida, os discursos configuram quadros de referência, isto é,

enquadramentos, e assim estruturam pensamentos e modos de pensar de tal forma que,

mesmo quando tais discursos passam a ser excluídos ou recusados (ou quando o contexto ao

qual tal discurso está imbricado deixa de existir) esse enquadramento, como referência, ainda

persiste. É preciso tempo para a transformação, mas esse tempo passa em velocidades

diferentes. Vivemos vários tempos ao mesmo tempo, em simultâneo – e o mesmo pode ser

dito em relação ao espaço, como bem exemplificam Krzyzanowski e Galasinska:

(…) although long-rejected as a political system, communism still persists as a dominant

intellectual ideology evidenced in these personal accounts. Thus, it is argued that, despite being

eradicated in the public domain, communism still provides the ideological framework within

which the private/semi-private discourses of new realities are constructed. (Krzyzanowski e

Galasinska, 2009: 16).

Se é verdade que ainda repetimos os discursos de afirmação nacional do século XIX,

também é verdade que há muitos outros discursos que concorrem com eles: alguns em

contestação, outros em relativização. Cada vez mais, esses discursos tornam-se plurais, até

porque, nas sociedades de hoje, sobretudo nas democráticas, mais vozes se fazem ouvir, em

parte em função da multiplicação do acesso à educação e do desenvolvimento de novos meios

e formas de comunicação.

Em resumo, apesar da declaração do seu fim, a ideia de nação e as fidelidades que ela

desperta ainda parecem muito presentes, mesmo neste cenário de acentuada e abrangente

transformação. Tampouco se pode esquecer que as nações, como ainda as conhecemos, foram

construídas ao longo de mais de dois séculos – não parece razoável, portanto, esperar que

desapareçam em três ou quatro décadas.

Ao refletir sobre as nações e os nacionalismos neste início de século, Castells (2007:

32) afasta a sentença de morte decretada para afirmar que a globalização, longe de levar os

Estados-Nação à morte, promove o seu ressurgimento. É bem verdade que já não se trata mais

dos antigos Estados-Nação, nascidos na era Moderna – estes, sim, entraram em crise –, mas

de uma nova forma de Estado: o Estado em rede. As nações de hoje, embora não detenham o

mesmo poder que detinham nos moldes do passado, seguem exercendo influência (idem:

357).

Page 227: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

209

O Estado em rede, ainda segundo Castells (2007: XXI), seria caracterizado por fazer

parte e atuar numa abrangente rede de interações com outros Estados, governos, instituições,

entidades e organizações em diversos âmbitos: locais, internacionais, regionais, globais.

Nesse contexto, a sociedade civil, organizada local e globalmente, também desempenharia

papel relevante, assumindo posições distintas no embate de forças que marca o tecido social:

ora atuando em parceria ora em resistência às posições assumidas e defendidas pelo Estado.

Nesse contexto, o Estado regressa à cena global assumindo novas formas de

organização, de produção e exercício de poder e, também, novos princípios e estratégias de

legitimação (Castells, 2007: 358). No que diz respeito aos nacionalismos, portanto, não se

trata de apregoar o seu fim – afinal, não é necessário ou mandatório que acabe –, mas sim de

estabelecer e/ou reconhecer, em alguma medida, novas relações de forças, que parecem ainda

não se ter estabilizado.

Aceita a premissa de que o conceito de nação, longe de se ter exaurido, segue vivo,

embora em transformação, parece razoável assumir que a própria noção de identidade

nacional – seu possível conteúdo, mas também seu prestígio e relevância – é também

transformada. No campo das identidades nacionais, instaura-se uma concorrência maior de

identidades e identificações, onde diferentes elementos são mobilizados e/ou descartados ao

longo de processos de construção de identidades cada vez mais complexos, instáveis e

temporários, mas, nem por isso, menos intensos.

Essa mesma situação se verifica no contexto do nacionalismo linguístico, por

exemplo, num cenário em que línguas se multiplicam e já não podem ser contidas em espaços

físicos pré-determinados, como o dos antigos territórios nacionais, com suas fronteiras e

controlos rígidos.

O poder das redes globais e, especialmente, da mídia global, que demanda o

desenvolvimento e a circulação de uma língua comum, representa um desafio para as

identidades singulares, como defende Castells (2007), e o mesmo parece se dar com as

identidades nacionais. A língua, cada vez mais, aproxima-se do conceito de cultura,

assumindo o papel de expressão da mesma e atuando, muitas vezes, como o “reduto do

significado identificável”, nas palavras do autor (idem: 65).

Habermas (2004: 80), ao refletir sobre os nacionalismos hoje e, mais especificamente,

sobre as tensões e transformações da relação entre Estados no âmbito da União Europeia,

também destaca a perda da estabilidade das identidades coletivas, que, ainda segundo o autor,

ocorre juntamente com a perda de capacidade de ação dos Estados, pressionados por uma

sociedade mundial cada vez mais dirigida por parâmetros econômicos.

Page 228: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Reflexão final

210

Em resumo, nesse cenário de transformações acirradas e rápidas, a língua segue

representando um porto seguro, isto é, uma referência cultural importante e um excelente

substrato para a construção das identidades. Mas, por outro lado, perde parte de sua primazia

ao passar a atuar num ambiente de forte concorrência com outros elementos de identificação –

e, de forma significativa, com outras línguas. A associação entre uma língua e uma nação

parece perder sua rigidez com a valorização, não mais de uma única língua, mas sim de um

repertório linguístico, que representa – e também propicia – um espaço ampliado de atuação e

interação nas sociedades de hoje.

Síntese

Neste capítulo, resgatou-se os principais conceitos teóricos apresentados e discutidos

na primeira parte desta pesquisa para, em função deles, refletir sobre os dados obtidos na

análise realizada na segunda parte. Em primeiro lugar, foram discutidos os temas

identificados no âmbito dos marcadores identitários: pátria, nação, povo, soberania, cultura,

identidade e matriz. A seguir, passou-se à reflexão sobre as relações de simetria ou assimetria

estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais e/ou supranacionais. Por fim, num

esforço final de sistematização da análise, procurou-se identificar algumas das principais

representações construídas em torno da ideia de língua, em sua perspectiva simbólica, e de

identidade nacional na Europa de hoje.

Page 229: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Conclusão

Page 230: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 231: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Os conflitos e tensões que marcaram esses últimos anos envolvendo Ucrânia, Crimeia

e Rússia, a crise dos refugiados sírios e a polêmica em torno da construção de novos muros na

Europa, a entrada em cena do autoproclamado estado islâmico e, mais recentemente, as

disputas entre Rússia e Turquia parecem indicar que as nações e os nacionalismos continuam

em voga nesse início de século XXI e que ainda são capazes de mobilizar e inspirar pessoas e

jusitificar ações e decisões, se não drásticas, no mínimo, polêmicas.

No âmbito desta pesquisa, procurou-se refletir sobre os nacionalismos na Europa de

hoje, mas numa perspectiva bastante estrita: a do papel simbólico da língua na construção das

identidades nacionais, com foco num caso particular – o de Portugal – e num contexto

específico – o da discussão em torno do acordo ortográfico de 1990, concretizado num tratado

internacional assinado pelos diferentes países de Língua Portuguesa.

Como ponto de partida, foram trazidas à discussão algumas das atuais teorias sobre as

identidades em geral e as identidades nacionais em particular, especialmente no âmbito da

modernidade tardia, com todas as transformações a ela associadas. Entre outros temas,

procurou-se destacar os contrastes entre visões essencialistas e não essencialistas das

identidades, aqui entendidas como resultantes de processos, incessantes e sempre inacabados,

de construção.

A seguir, buscou-se identificar o papel da língua na construção das identidades

nacionais no contexto das teorias do nacionalismo ou, mais especificamente, no campo do

nacionalismo linguístico. Deu-se destaque ao potencial simbólico da língua nesse processo. A

relação entre língua e cultura também foi explorada. Por fim, o contexto europeu do

multilinguismo foi resgatado num esforço de reflexão sobre a possibilidade de construção de

identidade no cenário de multiplicidade de línguas.

Para concluir essa primeira parte da pesquisa, foram expostos os fundamentos teórico-

metodológicos que serviram de base e justificativa para a análise de dados. O conceito de

Page 232: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Conclusão

214

discurso, na acepção do Foucault, atuou como uma importante diretriz para se delinear a via

da construção discursiva, adotada neste trabalho. A análise crítica do discurso foi apresentada

e discutida em linhas gerais, uma vez ser essa a perspectiva que rege este estudo, na

abordagem da linguística sistêmico-funcional.

Uma vez delimitado o campo teórico e esclarecida a metodologia, passou-se à análise

de dados, que dá início à segunda parte deste trabalho. Uma breve contextualização da

história de Portugal e alguma reflexão sobre a situação atual serviram de introdução. A seguir,

a escolha do corpus – artigos de opinião sobre o AO90 publicados nos jornais portugueses –

foi explicitada e justificada. Os principais argumentos mobilizados foram identificados e

mapeados e as perspectivas de análise escolhidas foram indicadas.

A seguir, passou-se à análise propriamente dita, com a identificação e análise dos

marcadores identitários. Pátria, nação, povo, soberania, cultura, identidade e matriz foram os

temas explorados. A segunda etapa da pesquisa concentrou-se na identificação das diferentes

posições assumidas por ou atribuídas a Portugal no contato com outras entidades nacionais ou

supranacionais.

No final, promoveu-se uma reflexão sobre o caráter identitário da argumentação em

torno do AO90 em Portugal a partir da contraposição da parte teórica e da parte analítica

desenvolvidas até aqui. O objetivo dessa sistematização final foi explorar algumas das

perspectivas e possibilidades da língua, em seu viés simbólico, na construção dos

nacionalismos europeus hoje e na construção de uma certa identidade europeia.

Entre os resultados mais determinantes, destacam-se a persistência da associação entre

língua e identidade (onde a perspectiva da cultura desempenha papel relevante e onde

parecem ainda persistir e resistir certas visões essencialistas), mas num contexto marcado pela

multiplicação de discursos concorrentes que indicam, de certo modo, um forte potencial de

mudança e transformação. Tambem as relações de poder, entrelaçadas com a ideia de posse,

propriedade e correção da língua, concretizam-se em estratégias de inclusão e exclusão,

aproximação e afastamento, construção de posições de força e fraqueza ou, ainda, na

caracterização de cenários de risco e ameaça.

Em resumo, o papel simbólico da língua como recurso de construção de identidades

nacionais permanece, mas não se mantém inalterado; pelo contrário, pressionado e contestado

por discursos concorrentes e por visões não essencialistas da relação entre língua e identidade,

esse papel se transforma para se adaptar às novas realidades, marcadas pela multiplicação das

identidades, que, em geral, perdem gradualmente sua rigidez e fixidez, e pela multiplicação

das línguas, agora engajadas em novas relações de poder e prestígio.

Page 233: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Conclusão

215

Nesse contexto, o projeto europeu, com sua aposta no multilinguismo e seu esforço de

construção de uma ou várias identidades para a Europa, parece representar uma espécie de

posto privilegiado de observação – privilegiado não por ocupar uma posição de relevo ou

singular importância, mas sim por ter oficialmente assumido e colocado em prática o

multilinguismo – como política e como princípio – na construção de um organismo que se

pretende, de algum modo, supranacional.

Partilhando a posição de Wodak (Wodak et al, 1999: 9), em seu esforço por lançar

alguma luz sobre o caráter dogmático e essencialista do conceito de nação, que dificulta ou

até mesmo impede a coexistência – em paridade e igualdade – entre pessoas de origens,

religiões e línguas diferentes, neste estudo procurou-se destacar o caráter dogmático e

essencialista das identidades nacionais, em especial no que diz respeito ao recurso à lingua em

seu processo de construção.

Page 234: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 235: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndices

Page 236: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 237: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice A

Artigos de opinião sobre o Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa de 1990

Código Jornal Título Autor Data Posição

DN01 Diário de Notícias Em defesa dos espetadores Ferreira Fernandes 02.01.12 AFAVOR

DN02 Diário de Notícias A grande loja irregular / "Adeus, português" Alberto Gonçalves 08.01.12 CONTRA

DN03 Diário de Notícias (Des)Acordo Ortográfico separa os "marquisards" dos

"vende-pátrias"? Oscar Mascarenhas 21.01.12 AFAVOR

DN04 Diário de Notícias O Acordo Ortográfico é inconstitucional? Jorge Bacelar Gouveia 08.02.12 AFAVOR

DN05 Diário de Notícias Intimação ao Professor Malaca Vasco Graça Moura 08.02.12 CONTRA

DN06 Diário de Notícias O chamado 'novo acordo ortográfico': um descaso

político e jurídico

José de Faria Costa e Francisco

Ferreira de Almeida 13.02.12 CONTRA

DN07 Diário de Notícias A língua e a sua escrita Mário Bacelar Begonha 15.02.12 CONTRA

DN08 Diário de Notícias Vocês sabem o que é o 'modus operandi'? Ferreira Fernandes 20.02.12 ND

DN09 Diário de Notícias Questões do Estado de Direito Vasco Graça Moura 22.02.12 CONTRA

DN10 Diário de Notícias Aristocracia ortográfica João Cesar das Neves 27.02.12 ND

DN11 Diário de Notícias O caso Krugman Alberto Gonçalves 04.03.12 CONTRA

DN12 Diário de Notícias A opção Vasco Graça Moura 07.03.12 CONTRA

DN13 Diário de Notícias Afirmar o português no mundo Acácio Pinto 19.03.12 AFAVOR

DN14 Diário de Notícias A suspensão Vasco Graça Moura 11.04.12 CONTRA

DN15 Diário de Notícias O Acordo Ortográfico: inútil e prejudicial Anselmo Borges 14.04.12 CONTRA

DN16 Diário de Notícias Bloco de notas Joel Neto 10.07.12 CONTRA

DN17 Diário de Notícias O Acordo, outra vez Vasco Graça Moura 21.11.12 CONTRA

EX01 Expresso Antiga Ortografia Pedro Mexia 10.01.12 CONTRA

EX02 Expresso O cantinho de Vasco Graça Moura Daniel Oliveira 06.02.12 ND

EX03 Expresso A coerência, a coragem e a dignidade Miguel Sousa Tavares 11.02.12 CONTRA

EX04 Expresso O Acordo 20 anos depois Henrique Monteiro 22.02.12 AFAVOR

Page 238: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice A

Código Jornal Título Autor Data Posição

EX05 Expresso O impossível acordo António Guerreiro 01.03.12 CONTRA

EX06 Expresso Acordo ortográfico e bocejo… José Alberto Quaresma 05.04.12 CONTRA

SL01 Sol Não é aceitável dar-se ordem para desrespeitar o

Acordo Ortográfico Pedro Santana Lopes 13.02.12 AFAVOR

SL02 Sol Acordo ortographico José António Saraiva 20.02.12 AFAVOR

SL03 Sol O pior ataque à língua portuguesa José Cabrita Saraiva 20.11.12 AFAVOR

CM01 Correio da Manhã Paradoxo ortográfico Rui Pereira 26.01.12 ND

CM02 Correio da Manhã E as crianças, senhores? Victor Bandarra 19.02.12 CONTRA

PB01 Público Velho do Restelo', e com muito orgulho! Octávio dos Santos 15.01.12 CONTRA

PB02 Público Onde para o acento? Nuno Pacheco 23.01.12 CONTRA

PB03 Público Um acto político de empobrecimento cultural Luís Lobo 03.02.12 CONTRA

PB04 Público Grande Vasco Miguel Esteves Cardoso 06.02.12 CONTRA

PB05 Público Consoantes mudas ou colunistas surdos? Manuel Villaverde Cabral 10.02.12 CONTRA

PB06 Público Uma lança de África Nuno Pacheco 14.02.12 CONTRA

PB07 Público (Des)acordo ortográfico Joaquim Jorge 22.02.12 CONTRA

PB08 Público O AO90 está em vigor? Onde? Paulo Jorge Assunção 26.02.12 CONTRA

PB09 Público Dermatologia e resistência silenciosa Franciso Miguel Valada 29.02.12 CONTRA

PB10 Público Eterno desacordo Pedro Lomba 01.03.12 ND

PB11 Público Cor-de-rosa laranja Rui Cardoso Martins 04.03.12 ND

PB12 Público Pois é: antes fosse mentira Nuno Pacheco 01.04.12 CONTRA

PB13 Público A desmontagem do 'facto consumado' Teresa Cadete 08.04.12 CONTRA

PB14 Público abril com caixa baixa Nuno Pacheco 22.04.12 CONTRA

PB15 Público Os nomes dos meses: Abril na CPLP Franciso Miguel Valada 30.04.12 CONTRA

PB16 Público A acta do cidadão Mendes Bota 03.05.12 CONTRA

PB17 Público É agora que nos vamos ver livres da receção? Nuno Pacheco 13.05.12 CONTRA

PB18 Público Aventuras herbáceas e erros de podar Nuno Pacheco 03.06.12 CONTRA

PB19 Público A persistência do caos ortográfico Franciso Miguel Valada 26.06.12 CONTRA

Page 239: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice A

Código Jornal Título Autor Data Posição

PB20 Público Carta Aberta aos Governos de Angola e de

Moçambique António de Macedo 16.07.12 CONTRA

PB21 Público Ortografia no verão Hermínio Castro 05.08.12 CONTRA

PB22 Público Malefícios do ensino do Português Maria do Carmo Vieira 08.08.12 CONTRA

PB23 Público Um pouco mais de rigor, sff Franciso Miguel Valada 11.08.12 CONTRA

PB24 Público Eurofonia' e lusofonia, a mesma farsa Nuno Pacheco 12.08.12 CONTRA

PB25 Público A razão das raízes Rui Miguel Ventura Duarte 17.08.12 CONTRA

PB26 Público Esquisso do acordista António Fernando Nabais 18.08.12 CONTRA

PB27 Público Evolução artificial imposta por decreto Pedro Afonso 23.08.12 CONTRA

PB28 Público O petróleo desta nossa relação Nuno Pacheco 02.09.12 CONTRA

PB29 Público Sou espanhola e sou contra o AO90 Rocío Ramos 07.09.12 CONTRA

PB30 Público A recepção da recessão Rui Miguel Duarte 29.09.12 CONTRA

PB31 Público O Acordo Ortográfico e a tradução para português Paula Blank 28.10.12 CONTRA

PB32 Público Contra fatos: os argumentos Franciso Miguel Valada 13.11.12 CONTRA

PB33 Público Foi você que pediu o acordo ortográfico? Jacinto Pascoal 10.12.12 CONTRA

PB34 Público Alegria breve ou a língua de Pandora Nuno Pacheco 16.12.12 CONTRA

PB35 Público Processo Retro-ortográfico Sem curso Octávio dos Santos 26.12.12 CONTRA

Page 240: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 241: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice B

Análise dos Marcadores Identitários

Quadro Geral – Total de ocorrências por grupo:

13

21

5

43

20

9

9

0 10 20 30 40 50

Pátria

Nação

Soberania

Cultura

Povo

Identidade

Matriz

Page 242: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice B

Grupo Pátria

Palavras pesquisadas: Pátria/s - Patriotismo - Patriotística/s - Patriota/s - Patriótico/a/s

Nº Clipping Recorte

Relação Pátria x Língua

Não Estabelece

Estabelece

Afirma Nega

1 escândalos fátuos com que a pátria sazonalmente se entretém. Eu também me confesso e 1

2 proclamação gratuita de Fernando Pessoa, a minha pátria não é a língua portuguesa. Mas a minha língua é. 1

3 que se escrevia no século xix. a língua mudou e a pátria, obviamente, não acabou. o meu nome de família es 1

4 não cabem neste espaço. portugal continua a mesma pátria, apesar de já não se escrever como no tempo do de 1

5 s seria uma coisa a bem do prestígio da expressão pátria, da sua unidade essencial, de uma política comum, 1

6 orma como aprendemos a escrever e a falar a nossa pátria “pessoana”. As sondagens à opinião pública parece 1

7 (Des)Acordo Ortográfico separa os "maquisards" dos "vende-pátrias"? 1

8 "maquisards" da ortografia, oposto aos desavergonhados "vende-pátrias" que aceitam submissamente o império 1

9 h', porque assim lhes ensinaram - e não eram mais patriotas que eu, nem eu mais do que eles...". Remata a lei 1

10 , diz a leitora, "a ortografia nada tem a ver com patriotismo (...): a minha mãe sempre escreveu mãe com 'i'; o 1

11 ncesismo. Também tenho direito ao meu quinhão de "patriotismo" e sempre aproveito para homenagear o primeiro do 1

12 sta questão está entrelaçada com conceções quase "patriotísticas", permita-se-me esta "desfiguração": parece exist 1

Page 243: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice B

13 A língua é algo inegociável e patriótico, nada se consegue à força . Eu vou continuar a escrever como antigamente. 1

2 3 8

2 11

13

Grupo Pátria – Total de ocorrências:

8

1

2

1

1

0 2 4 6 8 10

Pátria/s

Patriotas

Patriotismo

Patriotísticas

Patriótico

Relação Pátria x Língua Nº

Não estabelece relação

2

Estabelece relação

Afirmativa 3 11

Negativa 8

Total 13

Page 244: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice B

Grupo Nação

Palavras pesquisadas: Nação/ões - Nacional/is - Nacionalmente

Nº Clipping Recorte Sentido-Significado

1

ítico e jurídico Em um tempo de crise do Estado-Nação, de soberania diluída em espaços políticos e econ

Abstrato

2

ados, mas é a língua que caracteriza e define uma Nação. A democracia moderna baseia-se na representaçã

Abstrato

3

s meses em 1976 não habilita ninguém a conduzir a nação através de uma coluna no New York Times. É verdad

Portugal

4

uesa escrita à língua portuguesa falada, quando a nação mais populosa não o fez da mesma maneira e quando

Brasil

5

al tem tantas excepções no Brasil, precisamente a nação com mais falantes de português. A fraca implantaç

Brasil

6

Portuguesa" ou qualquer outra - e indigna de uma nação do Velho Continente a alteração leviana de algo t

Portugal

Nº Clipping Recorte Classificação

7

ou três evidências, a saber: 1) a classe política nacional é, salvo escassas excepções, um entreposto de maç

Político-Institucional

8

tuições ou indivíduos não aderir a uma legislação nacional se esta não lhes agrada? Eu posso não aderir ao I

Político-Institucional

9

s que tomam o novo Acordo como atentado à cultura nacional esquecem que a nossa escrita não é a de Gil Vicen

Cultural

10

al é um país culturalmente aristocrata. A atitude nacional típica é de confiança em elites, especialistas, l

Cultural

11

de acautelar as implicações no sistema educativo nacional. O AO continua a ser avaliado, para que “no caso

Político-Institucional

12

essa coisa sem nome em todos os sectores da vida nacional, em especial no escolar. Também é possível que o

Político-Institucional

Page 245: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice B

13

stil. acordo ortográfico é do mais alto interesse nacional não tenho qualquer hesitação em afirmar que é do

Espacial

14

hesitação em afirmar que é do mais alto interesse nacional que este acordo seja assumido por toda a comunida

Político-Institucional

15

nte oportunidade de vincar o sentido do interesse nacional e de demonstrar a sua solidariedade com o governo

Político-Institucional

16

to de passar a haver "no interior do mesmo espaço nacional duas grafias, conforme a oscilação da pronúncia.

Espacial

17

ransformação tão profunda e fundamental de âmbito nacional? Não fui eu, de certeza, nem a generalidade dos p

Espacial

18

xcelente para ocultar as verdadeiras dificuldades nacionais. O caso Krugman A cada dia, nos vários cantos da

Político-Institucional

19

internacional e muito menos nas ordens jurídicas nacionais… Agora ficou claro que este entendimento é pacífi

Político-Institucional

20

e a opção por uma delas, a ser feita pelos órgãos nacionais competentes, siga a tradição ortográfica vigente

Político-Institucional

21

ultimamente, esta arte. Os mais ousados artistas nacionais, aliás, até a fazem de venda nos olhos, como nos

Cultural

Grupo Nação – Total de ocorrências:

6

15

0 5 10 15 20

Nação

Nacional/is

Page 246: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice B

Grupo Soberania

Palavras pesquisadas: Soberania/s - Soberano/a/s

Nº Clipping Recorte Caracterização

1 DN06 rídico Em um tempo de crise do Estado-Nação, de soberania diluída em espaços políticos e económicos de inte

Contexto de risco ou perda

2 PB03 a defesa de que a decisão tomada pelos órgãos de soberania, mais do que científica, socialmente relevante ou

Contexto político

3 PB03 onómico que prevalece e, mais uma vez, a perda de soberania que sobressai. O que pode justificar que a impos

Contexto de risco ou perda

4 PB33 dos monopólios editoriais, sem jogos sinuosos de soberania ou de limitação de actuação. É essencial não se j

Contexto de risco ou perda

5 PB35 ão alteráveis e revogáveis - e a independência, a soberania - cultural e não só - dos países africanos de lín

Contexto cultural

Page 247: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice B

Grupo Povo

Palavras pesquisadas: Povo/s - Popular/es - Popularmente

Nº Clipping Recorte Tipo de relação

1 DN07 , linguagem conceptual e a lógica abstracta. Um povo é uma comunidade de língua e de cultura, independ

Agência

2 DN07 a do novo acordo ortográfico, feito nas costas do povo, ou pelo menos de todos os letrados do País, já q

Atribuição

3 DN08 vem oficial miliciano subiu ao Unimog, cercado de povo, e falou como sabia, oco: "Vocês sabem o que é o

Agência

4 DN10 elite progressista do partido. Ambas consideram o povo incapaz, necessitando de orientação. O próprio po

Agência

5 DN10 vo incapaz, necessitando de orientação. O próprio povo está de acordo, ansiando por chefes salvadores ou

Agência

6 DN10 scrita, manifestação por excelência da vida de um povo, ser negociada por academias e imposta por lei só

Atribuição

7 PB03 das nos últimos seis anos no direito de impor, ao Povo que as elegeu, regras que dois terços dos portugu

Endereçamento

8 PB07 da uma língua por decreto, contra a vontade de um povo e contra a maioria de pareceres técnico-científic

Atribuição

9 PB11 is universais da luz e dos prismas, explicados ao povo na base da amizade… “suponho que o meu amigo já v

Endereçamento

10 PB25 isto, das idiossincrasias e mundividência de cada povo falante de uma das muitas línguas desta grande fa

Atribuição

11 PB26 contra um século democrático em que a língua é do povo. Não será estranho, amanhã, encontrar o acordista

Atribuição

12 DN06 atimento das mais lídimas marcas identitárias dos povos, a língua constitui, sem dúvida, um dos últimos r

Atribuição

Page 248: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice B

13 DN06 o as grafias consideradas adequadas para todos os povos da lusofonia, torne finalmente exequível o clausu Endereçamento

14 EX04 também propriedade, matriz e identidade de outros povos e de outras latitudes. Cedemos? Não sei, nem me i Atribuição

15 PB25 as diversas línguas formam cultura, e de como os povos que as falam e as escrevem pensam. As línguas e a Agência

16 PB29 uas devem evoluir ao ritmo do uso que lhes dão os povos que as utilizam para a sua comunicação e nunca se Agência

Nº Clipping Recorte Caracterização

17 PB06 istiu a via erudita e a via popular. Do ‘português tabeliónico’ aos nossos dias, milh Contexto do saber: popular x erudito

18 PB33 omo rutura (ruptura)/rotura (formado este por via popular)? Ora, se tudo isto é em nome de um vocabulário o

Contexto do saber: popular x erudito

21 DN10 iniciativa, na liberdade e no vigor das dinâmicas populares. A França, pelo contrário, afirmando-se democráti

Contexto do agente: o povo

22 PB01 missão a sua vida instruir, “iluminar” as massas populares ignorantes; por outro lado, a esmagadora maioria

Contexto do agente: o povo

Grupo Povo – Total de ocorrências:

16

4

0 5 10 15 20

Povo/s

Popular/es

Page 249: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice B

Grupo Cultura

Palavras pesquisadas: Cultura/s - Cultural/is - Culturalmente

Nº Clipping Recorte

Cultura

Modifica ou é modificada

Especificação

1 DN04 ao iniciar funções no CCB - indiscutível homem de cultura que sempre admirei - teve o mérito inesperado de

SIM Modifica

2 DN07 tracta. Um povo é uma comunidade de língua e de cultura, independente das fronteiras ocasionais dos Estad

SIM Modifica

3 DN07 o intelectual a forma antiga. Descaracterizar a cultura através da "linguagem" escrita que passa a ser di

NÃO Nomeia

4 DN10 lados. Os que tomam o novo Acordo como atentado à cultura nacional esquecem que a nossa escrita não é a de

SIM Modificada

5 DN10 anifestação de um dos traços mais fortes da nossa cultura. Não seríamos portugueses se não gastássemos temp

SIM Modificada

6 DN10 dura a nobreza e a Câmara dos Lordes, mas com uma cultura de abertura e fair play, apostada na iniciativa,

SIM Modificada

12 PB03 esponsáveis políticos que desistiram de afirmar a cultura portuguesa fora de portas. Veja-se o miserável pa

SIM Modificada

13 PB03 er um dos veículos mais importantes da difusão da cultura e da língua portuguesa. E porque não há justifica

NÃO Nomeia

14 PB07 r de identidade e de valor cultural inequívoco. A cultura não pode nem deve ser colonizada. A história ensi

NÃO Nomeia

19 PB25 gica”. A etimologia é configuradora de memória e cultura. Línguas que mantêm na escrita a memória etimológ

NÃO Nomeia

20 PB25 e famílias de palavras as diversas línguas formam cultura, e de como os povos que as falam e as escrevem pe

NÃO Nomeia

Page 250: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice B

21 PB29 ora com o fim de aprofundar o meu conhecimento da cultura portuguesa, se visito cada dia o site do PÚBLICO

SIM Modificada

22 PB29 al, determinei que o Português faz parte da minha cultura e até da minha vida e que sim, tenho alguma coisa

SIM Modificada

Nº Clipping Recorte Cultural/is

Classificação

23

ientações, documentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer textos e comunicações, sejam interno

Patrimônio

24

aprendizagem. Além dos avultados custos sociais e culturais, o AO90 acarreta também consideráveis custos econ

Patrimônio

25

elações diplomáticas, equitativamente económicas, culturais, norteadas pela rectidão, essas sim, são prioritá

Contato/Partilha

27

razão da liberdade de opinião e da sua autonomia cultural. E será a nova ortografia inconstitucional por a

Contato/Partilha

28

ho, de quase nove séculos -património histórico e cultural. Surpreendentemente, contudo, não é apenas a di

Patrimônio

29

ou acusando os líderes de todo o mal. A atitude cultural nem sempre coincide com a estrutura social. A Ing

Identidade

30

ido nas nossas cartas e recados nasce de um traço cultural básico. Foi a mesma atitude estatizante que nos t

Identidade

31

uma plenamente a grave responsabilidade política, cultural e social, correspondente a uma escolha dessa natu

Campo

33

lização absurda da Língua num contexto de voragem cultural global. Mas, se neste caso estou convicto de que

Contato/Partilha

34

o que interessa, para além da questão jurídica e cultural de fundo, é uma questão política assaz bizarra. E

Campo

35

irmãos para as respectivas esferas de influência cultural. estadistas e governantes de formação e ideologia

Contato/Partilha

36

r em polémicas estéreis. nós temos uma identidade cultural com quase um milénio, e não é por mudarem algumas

Identidade

37

assa mão-cheia de milhões na origem dessa epopeia cultural. cavaco silva tem aqui uma excelente oportunidade

Contato/Partilha

Page 251: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice B

38

e política e económica, sem verdadeiro fundamento cultural. Os legisladores impuseram aos falantes uma “orto

Campo

39

onética mas que se liga a uma memória histórica e cultural. Quando aprendemos a ler, fixamos a forma gráfica

Identidade

42

ão de expressões de cariz ideológico a um assunto cultural pode-se e deve-se recordar o que o «secretário-ge

Campo

43

mento cultural Um acto político de empobrecimento cultural A imposição do novo Acordo Ortográfico (AO), à ma

Patrimônio

45

ceite. A diversidade numa língua é uma mais-valia cultural, todos os países lusófonos se entenderam na lingu

Patrimônio

46

a portuguesa é um factor de identidade e de valor cultural inequívoco. A cultura não pode nem deve ser colon

Patrimônio

47

rde, S. Tomé e Príncipe e noutros são uma riqueza cultural. Para muitos portugueses que vão iniciar a escola

Patrimônio

48

da a argumentação exposta nos planos linguístico, cultural e jurídico, já se tornou público e notório que ni

Campo

50

pura perda de tempo” a contextualização histórico-cultural de um autor, inclusive com a indicação do lugar o

Identidade

51

fia da L.P e, juntamente, todo o valor histórico, cultural e identitário que cada variante encerra. Admitind

Patrimônio

52

promover a língua mirandesa, enquanto património cultural, instrumento de comunicação e de reforço de ident

Patrimônio

53

mas, pelo contrário, enriquece o nosso património cultural. Quando falo com colegas, amigos ou familiares so

Patrimônio

54

s e revogáveis - e a independência, a soberania - cultural e não só - dos países africanos de língua oficial

Contato/Partilha

Nº Clipping Recorte Culturalmente

55 DN10 a origem da crise económica. Portugal é um país culturalmente aristocrata. A atitude nacional típica é de confi

Modo de ser/estar

56 DN10 gal, apesar da multissecular aliança britânica, é culturalmente francês. A ideia espantosa de a escrita, manifest

Modo de ser/estar

Page 252: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice B

57 PB03 mais do que científica, socialmente relevante ou culturalmente interessante, é meramente política. É o interesse

Modo de ser/estar

58 PB25 iedades mais cultas e pensantes? Ou linguística e culturalmente empinantes? E cuja escrita se reduza a um troglod

Modo de ser/estar

Grupo Cultura – Total de ocorrências:

13

26

4

0 5 10 15 20 25 30

Cultura

Cultural/is

Culturalmente

Page 253: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice B

Grupo Identidade

Palavras pesquisadas: Identidade/s - Identitário/a/s Relaciona Identidade com...

Estabelece relação com (Afirma/Nega)

Nº Clipping Recorte Língua Ortografia

3

se envolver em polémicas estéreis. nós temos uma identidade cultural com quase um milénio, e não é por mudare NEGA

4

a da palavra optimus. A palavra sem o p perderá a identidade. Alguns enxofram-se e dizem que lhes matamos o po NEGA

5

, pharmacia ou phleugma também terão perdido essa identidade (para filosofia, farmácia e fleuma)? Ora, o facto NEGA

6

, sendo português, é também propriedade, matriz e identidade de outros povos e de outras latitudes. Cedemos? N AFIRMA

7

rdo é um erro, a língua portuguesa é um factor de identidade e de valor cultural inequívoco. A cultura não pod AFIRMA

10

tural, instrumento de comunicação e de reforço de identidade da terra de Miranda”, reconhecendo-se ainda “o di AFIRMA

11

tinente a alteração leviana de algo tão básico na identidade, na estrutura, na actividade de um país como o é AFIRMA

Nº Clipping Recorte Classificação

12 PB27 e, juntamente, todo o valor histórico, cultural e identitário que cada variante encerra. Admitindo uma pluralid

Modificador

13 DN06 entemente, de esbatimento das mais lídimas marcas identitárias dos povos, a língua constitui, sem dúvida, um dos

Modificador

Page 254: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice B

Grupo Identidade – Total de ocorrências:

7

2

0 1 2 3 4 5 6 7 8

Identidade

Identitário/as

Page 255: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice B

Grupo Matriz

Palavras pesquisadas: Matriz

Nº Clipping Recorte Contexto Representações

1 DN15 o na ONU, devemos, antes de mais, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil comércio das pal Língua Português europeu

2 SL01

por mudarem algumas regras ortográficas que essa matriz se dilui. temos de estar orgulhosos por falarmos Identidade Identidade cultural

3 EX03

o na ONU, devemos, antes de mais, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil comércio das pal Língua Português europeu

4 EX04

dioma que, sendo português, é também propriedade, matriz e identidade de outros povos e de outras latitude Língua Língua Portuguesa

5 PB06

somos falantes de uma língua que tem o Latim como matriz. Mas mesmo na origem existiu a via erudita e a vi Língua Latim

6 PB06

o na ONU, devemos, antes do mais, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil comércio das pal Língua Português europeu

7 PB13

outros países que aprenderam a falar a partir da matriz europeia, existisse uma Academia das Letras digna Língua Português europeu

8 PB24

o que pyjamas” ou “pajamas, pyjamas = pijamas”. A matriz inglesa e a variante americana válidas, na escrit Língua Inglês britânico

9 PB24

ste, no universo que usa a língua portuguesa como matriz (dela fazendo derivar riquíssimas variantes), é a Língua Português europeu

Page 256: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 257: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice C

Situações de Comparação e Relações Comparativas

Quadro Geral

Nº Clipping Portugal (país de referência) Intervenientes Relação Tipo

1 CM01-1 PT BR e qualquer outro PL Simetria Convergente

2 CM01-2 do lado de cá do Atlântico público brasileiro Simetria Divergente

3

CM02-1A

portugueses africanos e asiáticos Assimetria Vantagem

CM02-1B

portugueses brasileiros Simetria Convergente

4 DN02-1 (sou) português brasileiros e moçambicanos Simetria Divergente

5 DN03-1 Tenho assistido brasilês Assimetria Desvantagem

6 DN07-1 ex-potência colonial

aqueles que só sabem escrever de acordo com o som, ou melhor, com a melodia da voz

Assimetria Vantagem

7 DN09-1 PT BR Assimetria Desvantagem

8 DN10-1 PT britânica, francês Simetria Convergente

9 DN13-1 Academia das Ciências de Lisboa Academia Brasileira de Letras Simetria Convergente

10 DN14-1 luso(-brasileiro) (luso-)brasileiro Simetria Convergente

11 DN17-1 deste lado do Atlântico (do outro lado do Atlântico) Assimetria Desvantagem

Sigla País

AN Angola

BR Brasil

CV Cabo Verde

ES Espanha

GU Guiné

MO Moçambique

PL Países Lusófonos

PT Portugal

ST São Tomé e Príncipe

TI Timor

Page 258: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice C

Nº Clipping Portugal (país de referência) Intervenientes Relação Tipo

12

DN17-2A

PT AN e MO Assimetria Desvantagem

DN17-2B

PT BR Assimetria Desvantagem

13 DN17-3 PT BR Assimetria Desvantagem

14 DN17-4 PT AN Assimetria Desvantagem

15 SL01-1 PT BR Assimetria Desvantagem

16 SL01-2 entre os que já o fizeram (ratificaram o AO) BR Simetria Divergente

17 SL01-3 interesse nacional BR Simetria Convergente

18 SL02-1 nosso BR, AN, MO Simetria Convergente

19 SL02-2 portugueses países onde a língua oficial é o português Simetria Convergente

20 SL02-3 PT BR Assimetria Desvantagem

21 SL02-4 nosso AN Simetria Convergente

22 SL02-5 PT BR, AN, MO, ST, CV GU, TI Simetria Convergente

23 SL03-1 PT BR Assimetria Desvantagem

24 EX01-1 PT BR Assimetria Desvantagem

25 EX01-2 português brasileiro Simetria Divergente

26 EX01-3 lusofonia/português europeu lusofonia/português africano, americano e asiático Simetria Divergente

27 EX01-4 portugueses brasileiros Simetria Divergente

28

EX01-5A português brasileiro Simetria Divergente

EX01-5B iluministas ("sábios"=defensores do AO? OU

portugueses defensores do AO?) África Assimetria Vantagem

29 EX04-1 português outros povos e outras latitudes Simetria Convergente

30 EX04-2 Cedemos? (Portugal) Cedemos? (para o Brasil) Assimetria Desvantagem

31 EX04-3 Não quero (eu, português) BR, AN, MO, GU, CV, ST, TI Simetria Convergente

32 EX05-1A PT noutros países lusófonos Simetria Convergente

EX05-1B PT BR Assimetria Desvantagem

33 EX06-1 vamos/leitores irmãos BR Assimetria Desvantagem

Page 259: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice C

Nº Clipping Portugal (país de referência) Intervenientes Relação Tipo

34 PB03-1 decisores políticos BR Assimetria Desvantagem

35 PB03-2A PT AN e MO Simetria Divergente

PB03-2B PT BR Assimetria Desvantagem

36 PB05-1 portugueses AN, MO Assimetria Desvantagem

37 PB05-2 Português europeu Português do Brasil Assimetria Desvantagem

38 PB05-3 portugueses brasileiros Simetria Convergente

39 PB05-4 portugueses ortografia brasileira Assimetria Desvantagem

40 PB05-5 PT BR Assimetria Desvantagem

41 PB05-6 portugueses, pqno retângulo brasileiros Simetria Convergente

42 PB05-7 de cá BR Assimetria Desvantagem

43 PB06-1 "lançador" África Assimetria Desvantagem

44 PB06-2 Alentejo AN, angolanos, Salvador da Baía, Inhambane, CPLP Simetria Divergente

45

PB06-3A discípulos de Malaca (portuqueses) discípulos de Bechara (brasileiros) Simetria Convergente

PB06-3B Discípulos de Malaca (&Bechara) africanos Assimetria Vantagem

PB06-3C Discípulos de Malaca (&Bechara) brasileiro Assimetria Desvantagem

46 PB06-4 a (ortografia) portuguesa ortografia brasileira, cada um dos países Simetria Divergente

47 PB06-5 você angolanos, brasileiros Assimetria Desvantagem

48 PB07-1 PT BR, AN, CV, ST e outros Simetria Divergente

49 PB10-1 PT BR Simetria Divergente

50 PB10-2 nós (portugueses) brasileiros Simetria Divergente

51 PB10-3 PT BR e África lusófona Simetria Divergente

52 PB11-1 lado português BR Assimetria Desvantagem

53 PB13-1 PT

outros países que aprenderam a falar a partir da matriz europeia

Simetria Convergente

54 PB13-2 família lusófona família lusófona Simetria Divergente

55 PB17-1 PT brasileiros Assimetria Desvantagem

56 PB17-2 portugueses brasileiros Simetria Convergente

57 PB17-3 PT brasileiros Assimetria Desvantagem

Page 260: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice C

Nº Clipping Portugal (país de referência) Intervenientes Relação Tipo

58 PB17-4 dos dois lados do Atlântico dos dois lados do Atlântico Simetria Divergente

59 PB18-1 Portugal ingleses Assimetria Desvantagem

60 PB20-1A PT BR Simetria Divergente

PB20-1B PT (e Brasil) Restantes países CPLP Assimetria Vantagem

61 PB20-2A PT BR Simetria Divergente

PB20-2B PT (e Brasil) espaço lusófono Assimetria Vantagem

62 PB20-3 PT BR Simetria Divergente

63 PB21-1 alentejanos timorenses, brasileiros, moçambicanos, cabo-

verdianos, minhotos, guineenses, são-tomenses, açorianos, angolanos, etc.

Simetria Divergente

64 PB22-1 curvados, passemos brasileiros Assimetria Desvantagem

65 PB22-2 fecham-se, dificultam-se, nós (portugueses) BR Assimetria Desvantagem

66 PB25-1 PT BR Simetria Convergente

67 PB26-1 português europeu BR Assimetria Desvantagem

68 PB26-2 país lusófono país lusófono Simetria Convergente

69 PB26-3 ortografia europeia outros países lusófonos Assimetria Vantagem

70 PB26-4 países lusófonos países lusófonos Simetria Convergente

71 PB27-1 edição portuguesa mercado brasileiro Assimetria Desvantagem

72 PB29-1 portugueses espanhola Assimetria Vantagem

73 PB29-2 PT espanhóis Assimetria Desvantagem

74 PB30-1 PT brasileiros Assimetria Desvantagem

75 PB31-1 PT BR Simetria Divergente

78 PB31-2 distribuidores portugueses traduções brasileiras Assimetria Desvantagem

77 PB31-3 versão Pt-Pt BR Assimetria Desvantagem

78 PB33-1 se faça, por cá (em PT) BR (lá) Assimetria Desvantagem

79 PB34-1 PT brasileiro Simetria Convergente

80 PB34-2 todos os países de língua oficial portuguesa BR Assimetria Desvantagem

81 PB34-3 PT BR Assimetria Desvantagem

Page 261: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice C

Nº Clipping Portugal (país de referência) Intervenientes Relação Tipo

82 PB34-4 por cá BR Simetria Divergente

83 PB34-5 PT BR Simetria Divergente

84

PB35-1A duas ortografias (PT e BR) duas ortografias (BR e PT) Simetria Divergente

PB35-1B duas ortografias (PT e BR) países africanos de língua oficial portuguesa / AN, MO,

GU Assimetria Vantagem

Page 262: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice C

Relações Comparativas Simétricas

Quadro Geral

Nº Clipping Intervenientes Relação Tipo

10 DN14-1 (luso-)brasileiro Simetria Convergente

9 DN13-1 Academia Brasileira de Letras Simetria Convergente

21 SL02-4 AN Simetria Convergente

17 SL01-3 BR Simetria Convergente

66 PB25-1 BR Simetria Convergente

1 CM01-1 BR e qualquer outro PL Simetria Convergente

18 SL02-1 BR, AN, MO Simetria Convergente

31 EX04-3 BR, AN, MO, GU, CV, ST, TI Simetria Convergente

22 SL02-5 BR, AN, MO, ST, CV GU, TI Simetria Convergente

79 PB34-1 brasileiro Simetria Convergente

3 CM02-1B brasileiros Simetria Convergente

38 PB05-3 brasileiros Simetria Convergente

41 PB05-6 brasileiros Simetria Convergente

56 PB17-2 brasileiros Simetria Convergente

8 DN10-1 britânica, francês Simetria Convergente

45 PB06-3A discípulos de Bechara (brasileiros) Simetria Convergente

32 EX05-1A noutros países lusófonos Simetria Convergente

53 PB13-1 outros países que aprenderam a falar a partir da matriz europeia Simetria Convergente

29 EX04-1 outros povos e outras latitudes Simetria Convergente

68 PB26-2 país lusófono Simetria Convergente

70 PB26-4 países lusófonos Simetria Convergente

19 SL02-2 países onde a língua oficial é o português Simetria Convergente

35 PB03-2A AN e MO Simetria Divergente

Page 263: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice C

Nº Clipping Intervenientes Relação Tipo

44 PB06-2 AN, angolanos, Salvador da Baía, Inhambane, CPLP Simetria Divergente

16 SL01-2 BR Simetria Divergente

49 PB10-1 BR Simetria Divergente

60 PB20-1A BR Simetria Divergente

61 PB20-2A BR Simetria Divergente

62 PB20-3 BR Simetria Divergente

75 PB31-1 BR Simetria Divergente

82 PB34-4 BR Simetria Divergente

83 PB34-5 BR Simetria Divergente

51 PB10-3 BR e África lusófona Simetria Divergente

48 PB07-1 BR, AN, CV, ST e outros Simetria Divergente

25 EX01-2 brasileiro Simetria Divergente

28 EX01-5A brasileiro Simetria Divergente

27 EX01-4 brasileiros Simetria Divergente

50 PB10-2 brasileiros Simetria Divergente

4 DN02-1 brasileiros e moçambicanos Simetria Divergente

58 PB17-4 dos dois lados do Atlântico Simetria Divergente

84 PB35-1A duas ortografias (BR e PT) Simetria Divergente

54 PB13-2 família lusófona Simetria Divergente

26 EX01-3 lusofonia/português africano, americano e asiático Simetria Divergente

46 PB06-4 ortografia brasileira, cada um dos países Simetria Divergente

2 CM01-2 público brasileiro Simetria Divergente

63 PB21-1 timorenses, brasileiros, moçambicanos, cabo-verdianos, minhotos,

guineenses, são-tomenses, açorianos, angolanos, etc. Simetria Divergente

Page 264: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice C

Relações Comparativas Assimétricas

Quadro Geral

Nº Clipping Intervenientes Relação Tipo

30 EX04-2 (Cedemos?) Assimetria Desvantagem

11 DN17-1 (do outro lado do Atlântico) Assimetria Desvantagem

43 PB06-1 África Assimetria Desvantagem

14 DN17-4 AN Assimetria Desvantagem

12 DN17-2A AN e MO Assimetria Desvantagem

36 PB05-1 AN, MO Assimetria Desvantagem

47 PB06-5 angolanos, brasileiros Assimetria Desvantagem

7 DN09-1 BR Assimetria Desvantagem

12 DN17-2B BR Assimetria Desvantagem

13 DN17-3 BR Assimetria Desvantagem

15 SL01-1 BR Assimetria Desvantagem

20 SL02-3 BR Assimetria Desvantagem

23 SL03-1 BR Assimetria Desvantagem

24 EX01-1 BR Assimetria Desvantagem

32 EX05-1B BR Assimetria Desvantagem

33 EX06-1 BR Assimetria Desvantagem

34 PB03-1 BR Assimetria Desvantagem

35 PB03-2B BR Assimetria Desvantagem

40 PB05-5 BR Assimetria Desvantagem

42 PB05-7 BR Assimetria Desvantagem

52 PB11-1 BR Assimetria Desvantagem

65 PB22-2 BR Assimetria Desvantagem

67 PB26-1 BR Assimetria Desvantagem

Page 265: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice C

Nº Clipping Intervenientes Relação Tipo

77 PB31-3 BR Assimetria Desvantagem

80 PB34-2 BR Assimetria Desvantagem

81 PB34-3 BR Assimetria Desvantagem

78 PB33-1 BR (lá) Assimetria Desvantagem

45 PB06-3C brasileiro Assimetria Desvantagem

55 PB17-1 brasileiros Assimetria Desvantagem

57 PB17-3 brasileiros Assimetria Desvantagem

64 PB22-1 brasileiros Assimetria Desvantagem

74 PB30-1 brasileiros Assimetria Desvantagem

5 DN03-1 brasilês Assimetria Desvantagem

73 PB29-2 espanhóis Assimetria Desvantagem

59 PB18-1 ingleses Assimetria Desvantagem

71 PB27-1 mercado brasileiro Assimetria Desvantagem

39 PB05-4 ortografia brasileira Assimetria Desvantagem

37 PB05-2 Português do Brasil Assimetria Desvantagem

78 PB31-2 traduções brasileiras Assimetria Desvantagem

28 EX01-5B África Assimetria Vantagem

45 PB06-3B africanos Assimetria Vantagem

3 CM02-1A africanos e asiáticos Assimetria Vantagem

6 DN07-1 aqueles que só sabem escrever de acordo com o som, ou melhor,

com a melodia da voz Assimetria Vantagem

61 PB20-2B espaço lusófono Assimetria Vantagem

72 PB29-1 espanhola Assimetria Vantagem

69 PB26-3 outros países lusófonos Assimetria Vantagem

84 PB35-1B países africanos de língua oficial portuguesa / AN, MO, GU Assimetria Vantagem

60 PB20-1B Restantes países CPLP (excluído BR) Assimetria Vantagem

Page 266: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 267: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice D

249

Situações de comparação construídas entre Portugal

e outras entidades nacionais ou supranacionais

CM01-1

Do acordo ortográfico de 1990 (não tão novo como isso), pode dizer-se uma coisa que vale

para a generalidade das pessoas: é pior do que o pintam os seus pais e amigos, mas melhor do

que querem fazer crer os seus inimigos jurados. Para o bem e para o mal, o acordo não irá

alterar o modo de falar e escrever português em Portugal, no Brasil ou em qualquer outro

país lusófono. Todos sabemos que as especificidades do uso de uma língua excedem

largamente a grafia.

CM01-2

Estou certo de que o público brasileiro continuará a preferir, em geral, obras e textos escritos

em português do Brasil, bem como tradutores e intérpretes que usem esse português na

construção frásica, na escolha de vocábulos e, claro está, na pronúncia. Do lado de cá do

Atlântico acontecerá, seguramente, o inverso. Nada disso retira uma certa utilidade à

unificação da grafia, sobretudo para as editoras e em documentos oficiais. Mas essa

unificação é imperfeita, visto que o acordo admite que muitas palavras se escrevam de duas

maneiras diferentes.

CM02-1

Em 1990, ilustres detentores de uma certa Ortografia da Língua Portuguesa babaram-se de

prazer e glória ao verem no papel o ‘Novo Acordo’. Africanos e asiáticos falantes e

escrevedores da Língua, conhecidos por ‘falarem à preto’ foram obrigados a ver passar o

comboio ortográfico de portugueses e brasileiros. Depois, pediram-lhes batatinhas para

rubricarem o dito. Acordo que se preze deve levar assinaturas de todos.

DN02-1

Por mim, os brasileiros e os moçambicanos são livres de adoptar o húngaro sem que eu os

censure ou sequer note a diferença. Não sou brasileiro nem moçambicano. Sou português e,

não fosse pedir demasiado, dava-me jeito redigir na língua em que cresci. À revelia da

proclamação gratuita de Fernando Pessoa, a minha pátria não é a língua portuguesa. Mas a

minha língua é. Obs.: Embora a relação de comparação acima tenha sido construída de forma simétrica (divergente),

considerando-se o contexto mais geral de discussão do AO, a ideia de assimetria também se faz presente, uma

vez que o autor representa o acordo como uma forma de privação da sua língua e, portanto, como uma

desvantagem.

DN03-1

Tenho assistido - sem grande vibração, diga-se - à troca de opiniões, mais ou menos

acaloradas, mais ou menos profundas sobre a questão do Acordo Ortográfico.

Descaracterização da língua, submissão ao brasilês, com tudo se argumenta, até com o

"matriotismo" obstinado do "foi assim que me ensinou a minha santa professora da escola

primária". Obs.: Embora não haja menção expressa, Portugal é trazido à representação a partir de duas inferências: pela

expressão “tenho assistido”, que, de certa forma, remete para o caso português e para Portugal, uma vez que o

autor deste artigo ocupa o cargo de “provedor do leitor” no jornal português Diário de Notícias, e pela

expressão “submissão ao brasilês”, que invoca a parte que supostamente se submete (neste caso, Portugal).

Page 268: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice D

250

DN07-1

É que se querem abdicar de certa grafia para mostrar superioridade de ex-potência colonial e

facilitar a vida (a escrita) àqueles que só sabem escrever de acordo com o som, ou melhor,

com a melodia da voz, façam-no para exportação, mas conservem também no meio

intelectual a forma antiga. Obs.: Embora não haja menção expressa a Portugal, este é representado pela expressão “ex-potência

colonial”. O Brasil, por sua vez, é trazido à representação acima por meio da referência implícita aos

brasileiros, contida na expressão “aqueles que só sabem escrever de acordo com o som, ou melhor, com a

melodia da voz”.

DN09-01

De resto, há muitas outras questões que têm sido levantadas, mas que as mesmas

individualidades se dispensam de considerar, mostrando uma suficiência assaz discutível em

relação a assuntos que não estudaram e de que, pelos vistos, percebem pouco. Não as

abordaremos para já, mas elas não perdem pela demora. Diga-se apenas que nem mesmo o

Brasil aceita a carnavalização da grafia que está a ser praticada em Portugal!

DN10-01

A atitude cultural nem sempre coincide com a estrutura social. A Inglaterra é uma sociedade

aristocrata, onde perdura a nobreza e a Câmara dos Lordes, mas com uma cultura de abertura

e fair play, apostada na iniciativa, na liberdade e no vigor das dinâmicas populares. A França,

pelo contrário, afirmando-se democrática e abominando tirania e desigualdade, prefere

planeamento e regras impostas de cima, desconfia visceralmente de liberais e movimentos

espontâneos e confia em intelectuais e especialistas.

Portugal, apesar da multissecular aliança britânica, é culturalmente francês. A ideia

espantosa de a escrita, manifestação por excelência da vida de um povo, ser negociada por

academias e imposta por lei só poderia surgir num país de atitude aristocrata, hoje como na

Primeira República. A simples concepção de um Estado intrometido nas nossas cartas e

recados nasce de um traço cultural básico. Foi a mesma atitude estatizante que nos trouxe à

emergência financeira.

DN13-1

Em quarto lugar gostaria de dizer que depois de cem anos de divergências ortográficas (desde

o acordo de 1911 que não foi extensivo ao Brasil) e depois de várias tentativas goradas de

acordos envolvendo a Academia Brasileira de Letras e a Academia das Ciências de

Lisboa (1931, 1943, 1945, 1971/ /1973, 1975 e 1986) foi finalmente encontrado um texto

comum que, podendo ter lacunas, é um acordo internacional e um acordo é, em si mesmo, um

facto que encerra convergência, que é positivo e que importa, portanto, enfatizar.

DN14-1

O significado profundo desta coisa traduz provavelmente a confissão envergonhada, por parte

do neocolonialismo luso-brasileiro, de que o AO não dispõe absolutamente nada para a

grafia de vocábulos das línguas nativas que tenham sido incorporados no português. Se é este

o sentido útil desse ponto, isto significa o reconhecimento, por todos os governos, de que,

também por esta razão, o AO não pode ser aplicado enquanto não for alterado!

DN17-1

Os partidos políticos com assento parlamentar têm vindo a pactuar, sem excepção, com esse

estado de coisas. Ninguém lucra absolutamente nada com ele. Mas tudo isso redundaria

apenas num simples exercício de humor de gosto discutível, se não se traduzisse numa

violência quotidiana contra a língua. E o certo é que, se as coisas continuarem assim, dentro

Page 269: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice D

251

de uma geração ninguém conseguirá pronunciar correctamente a língua portuguesa tal como

ela é falada deste lado do Atlântico. Obs.: Embora o Brasil não tenha sido expressamente referido, sua participação na construção desta relação

comparativa é inferida pela expressão “desde lado do Atlântico”, que pressupõe o “lado de lá” ou o “outro

lado” do Atlântico (nesse caso, o Brasil).

DN17-2

Por outro lado, o que interessa, para além da questão jurídica e cultural de fundo, é uma

questão política assaz bizarra. E a questão política actualmente resume-se a isto: estão a ser

aplicadas não uma, mas três grafias da língua portuguesa. A correcta, em países como Angola

e Moçambique, a brasileira (no Brasil) e a pateta (em Portugal e não se sabe em que outras

paragens).

DN17-3

Alem disso, é muito de estranhar que, no ano em que o Brasil se apresenta em Portugal e

Portugal se apresenta no Brasil com tanta pompa e circunstância, nenhum dos países

interessados tenha feito qualquer reparo à maneira como a grafia do português, que se

pretende oficial e oficiosamente seja agora adoptada em Portugal, consagra uma série de

enormidades que não estão, nem podem estar, a ser aplicadas no Brasil e que aumentam a

desconformidade com a maneira como a língua se escreve de um lado e do outro.

DN17-4

Talvez tenhamos de esperar que se realize um ano de Angola em Portugal e de Portugal em

Angola para o problema merecer atenção. E então não será de estranhar que tenhamos de

agradecer aos angolanos um rigor na grafia da nossa língua de que, por cá, nós portugueses já

não somos capazes.

SL01-1

A este propósito, Cavaco silva foi peremptório: em seu entender, o acordo ortográfico era

essencial para que, no século XXI, o português falado em Portugal não ficasse com um

estatuto equivalente ao do Latim. Cavaco Silva fez-me notar que, nos leitorados das

universidades um pouco por todo o mundo, nas traduções em organizações internacionais e

em várias outras instâncias, era cada vez mais utilizado o português conforme escrito e falado

no Brasil.

SL01-2

Nem todos os estados-membros da CPLP ratificaram ainda o acordo? Pois não. Mas entre os

que já o fizeram encontra-se o país que se previa viesse a ter mais resistências: exactamente

o Brasil. Obs.: Portugal se faz presente nesta relação na condição de um dos países que já ratificaram o acordo.

SL01-3

Fiz, tempos depois, uma visita oficial ao Brasil, e falei no congresso e na academia brasileira

de letras. E recordo-me bem de como o ambiente era reservado ou até hostil.

Não tenho qualquer hesitação em afirmar que é do mais alto interesse nacional que este

acordo seja assumido por toda a comunidade que se exprime oficialmente em português. Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio da expressão “interesse nacional”, que, nesse contexto,

remete para o interesse de Portugal.

Page 270: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice D

252

SL02-1

- a oposição ao acordo ortográfico é um enorme disparate. O nosso grande património é

termos uma língua comum com o Brasil, com Angola, com Moçambique… Tudo o que

pudermos fazer para aproximarmos a grafia uns dos outros é decisivo para nós. Perante isso,

não tem qualquer interesse discutir chinesices, como a escrita desta ou daquela palavra. Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio do pronome possessivo “nosso” na expressão “nosso

grande património”, que, nesse contexto, remete para o patrimônio de Portugal.

SL02-2

É óbvio que não entrarei em discussões técnicas sobre este assunto com Vasco Graça Moura

ou qualquer outro especialista. Eles saberão certamente muito mais do que eu. Só que a

questão essencial não é essa. O essencial não é discutir o resultado – é admitir que são úteis

todos os esforços que se façam no sentido de os países onde a língua oficial é o português

aproximarem as suas grafias. E são especialmente importantes para nós, portugueses.

SL02-3

Portugal tem 10 milhões de habitantes – mas o Brasil tem 200 milhões. Só por arrogância ou

por capricho se pode defender que devemos ficar ad aeternum agarrados às nossas regras.

SL02-4

O nosso papel deverá, mesmo, ser o oposto: levar os países que ainda não adoptaram o

acordo, como Angola, a fazê-lo rapidamente. Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio do pronome possessivo “nosso” na expressão “nosso

papel”, que, nesse contexto, remete para o papel de Portugal.

SL02-5 O que vale aqui é o princípio. É termos permanentemente na cabeça a ideia de que todos

ganham se em Portugal, no Brasil, em Angola, em Moçambique, em S. Tomé, em Cabo

Verde, na Guiné e em Timor se escrever do mesmo modo.

SL03-1

Goste-se ou não se goste dele, há que admitir que, se o acordo existe, é precisamente porque

alguém se preocupou com estas questões e tentou delinear uma estratégia para a língua. Num

momento em que o português adoptado a nível internacional era mais o do Brasil do que

aquele que se falava a escrevia em Portugal, impunha-se a tomada de medidas. A solução

encontrada foi aproximar os dois ramos da língua.

EX01-1

Os legisladores impuseram aos falantes uma “ortografia unificada”, que, dizem, garante a

“expansão da língua” e o seu “prestígio internacional”. Mas a expansão da língua passa por

uma política da língua, que Portugal, por exemplo, não tem tido, ocupados que estamos em

fechar leitorados no estrangeiro, em aplicar uma abominável terminologia linguística nas

escolas, em publicar um lamentável Dicionário da Academia, em expulsar Camilo dos

currículos enquanto o substituímos por diálogos das novelas. Quanto ao prestígio

internacional, lamento informar que foi o sucesso económico, e não a “língua de Camões”,

que transformou o Brasil numa potência.

EX01-2

Um brasileiro continuará a falar uma língua muitíssimo diferente do português de Portugal,

diferente em termos de léxico, de sintaxe, de fonética. Um português, com um exemplar do

Page 271: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice D

253

Acordo debaixo do braço, bem pode perorar em Iraguaçu, que alguém lhe continuará a

perguntar “oi?”, pois não percebeu metade.

EX01-3

E isso não tem problema algum, a “lusofonia” não vale pela unidade mas pela diversidade,

pelo facto de haver um português europeu, africano, americano e asiático. Obs.: Na relação de comparação acima, os diferentes países de língua oficial portuguesa, entre os quais

Portugal, são chamados a participar por meio das referências ao português, em sua diversidade.

EX01-4

E ninguém é dono da língua: nem os brasileiros por serem mais, nem os portugueses por

andarem cá há mais tempo, muito menos uns académicos pascácios que dicionarizaram “bué”

e “guterrismo”.

EX01-5

É significativo que o próprio “acordo” reconheça o fracasso do projecto de “unificação a

língua”. Dadas as flagrantes diferenças entre o português e o brasileiro, os sábios são

obrigados a admitir a existência de duplas grafias, uma cá, outra lá [África, para estes

iluministas, é paisagem]. Obs.: Na segunda parte da relação de comparação acima, em que África aparece como interveniente, Portugal

se faz presente por meio da referência aos “iluministas” (também interligada aos “sábios” da primeira parte da

relação), que remete para os defensores do acordo e, nesse contexto (jornais portugueses), mais especificamente

aos defensores do acordo em Portugal.

EX04-1

Posto isto, o AO é importante porque aproxima da fonética uma série de palavras. E fá-lo,

pela primeira vez, em função de um idioma que, sendo português, é também propriedade,

matriz e identidade de outros povos e de outras latitudes. Obs.: Na relação acima, entende-se “outros povos” como uma referência aos demais países de língua

portuguesa.

EX04-2

Cedemos? Não sei, nem me importa. Obs.: Nesta relação de comparação, entende-se que Portugal e Brasil são trazidos à discussão por meio da

escolha de “Cedemos?” – quem cede, cede a alguém e, no presente contexto, as representações de cedências

giram em torno de ambos os países, ou seja, Portugal, ao ratificar o AO, supostamente ‘cede’ ao Brasil.

EX04-3

Não quero uma língua para me distinguir do Brasil. Prefiro uma que me aproxime. E

quem diz Brasil, que tem 200 milhões de falantes, diz naturalmente Angola, Moçambique,

Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Timor. Obs.: Na relação acima, Portugal se faz presente por meio da manifestação do autor, na condição de

representante português, evidenciada pelo flexão do verbo ‘querer’ na primeira pessoa do singular.

EX05-1 Mas como é que nós sabemos que há facultatividade, que podemos em alguns casos manter o

c e o p que são mudos em Portugal e noutros países lusófonos? Sabendo qual é a "norma

culta" no Brasil. Acontece que nós não sabemos nem temos meios de saber tal coisa. E

acontece que aquilo que o AO chama "norma culta" da pronúncia não está definida em lado

nenhum.

Page 272: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice D

254

EX06-1

O Brasil, um enorme e apetecível mercado editorial já se marimbou para o acordo

ortográfico, assumindo sozinho o seu "Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa". Lá

vamos de ter de vender um livrito ou outro numa grafia bizarra acordada. Os leitores irmãos

que se amanhem. Obs.: Embora não haja menção direta a Portugal, o país é trazido a esta representação por via de uma

referência implícita aos portugueses, realizada por meio do verbo ir, flexionado na primeira pessoa do plural.

PB03-1

Porque é que os decisores políticos adoptaram um comportamento parolo, adequando, como

dizem, a língua portuguesa escrita à língua portuguesa falada, quando a nação mais populosa

não o fez da mesma maneira e quando a uniformização da escrita foi a razão mais invocada

para que este acordo ortográfico se efectivasse, apesar de ter sido o Brasil o primeiro a

denunciar a uniformização operada com a revisão de 1945? Obs.: Nesta relação de comparação, Portugal é representado a partir da expressão “decisores políticos”, que

remete para os decisores políticos portugueses e, desse modo, para Portugal.

PB03-2

Uma língua é tão mais rica quanto maior for a diversidade que apresenta. Esta decisão ilegal

dos políticos que assumem o poder desde 1990 é tanto mais incompreensível quando uma

pretensa unidade linguística dos países de língua portuguesa é comprometida com a não

adesão de Angola e Moçambique ou quando o que se transformou numa regra para Portugal

tem tantas excepções no Brasil, precisamente a nação com mais falantes de português.

PB05-1

O colunista Rui Tavares decidiu adoptar, na sua crónica de 6 de Fevereiro, um tom

pretensamente jocoso para criticar a decisão do novo presidente do CCB, Vasco Graça

Moura, de não aplicar o chamado “acordo ortográfico” imposto aos portugueses, apesar da

forte mobilização que se registou no país contra ele e do facto de dois dos maiores países de

língua oficial portuguesa, Angola e Moçambique, não terem ratificado o respectivo tratado.

Fez mal. Quis ser engraçado, mas não teve piada.

PB05-2

Tavares apresenta-se como arauto do alinhamento da ortografia do Português europeu pela

do Português do Brasil, mas não adianta um único argumento a favor do “acordo”.

PB05-3

Mistura alhos com bugalhos e agita todos os episódios da crónica política recente para

“gozar” com as justificadas dúvidas de Graça Moura e dezenas de milhares de outros

portugueses (e alguns brasileiros) que conseguiram bloquear a primeira tentativa de nos

impingir o dito “acordo”. Obs.: Apesar da diferença quantitativa entre “dezenas de milhares” e “alguns”, entende-se que a representação

de simetria acima faz-se pela convergência, pois é esse o movimento destacadado.

PB05-4

A cedência à ortografia brasileira talvez faça vender alguns dicionários mas será altamente

prejudicial para a aprendizagem da língua pelas futuras gerações de Portugueses da Europa,

que já não precisam de ser desajudados. As profundas alterações introduzidas pelo presente

“acordo” na ortografia portuguesa não são equivalentes à substituição do “ph” de “pharmácia”

por “f ”, pois esta alteração não afectou a fonética da palavra, como a supressão do “c” mudo

afectará a pronúncia dos compostos do étimo “afecto” se este “acordo” for por diante.

Page 273: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice D

255

PB05-5 Ignora Rui Tavares o que aconteceu ao fonema “güe” na palavra “bilingüe” quando o trema

foi suprimido em Portugal (o Brasil não nos acompanhou e fez bem)?

PB05-6

O colunista devia saber que é muito feio tentar desvalorizar os argumentos alheios com piadas

de mau gosto. Não foi à toa que a grande maioria dos linguístas portugueses e muitos

brasileiros não cedeu a mal compreendidas motivações políticas na defesa da ortografia, da

fonética e da etimologia do Português em que nos temos entendido, até agora, neste pequeno

rectângulo do Sudoeste europeu. Obs.: Apesar da diferença quantitativa entre “a grande maioria” e “muitos”, entende-se que a representação

de simetria acima faz-se pela convergência, pois é esse o movimento destacadado.

PB05-7

Tanto mais que, como é bem sabido, o Português falado e escrito no Brasil não vai parar a

sua fortíssima dinâmica própria lá porque a classe política portuguesa assinou um “acordo”

artificial que só prejudica a aprendizagem e o correcto domínio do Português de cá!

PB06-1

Diz-se “meter uma lança em África” como sinónimo de vencer uma grande dificuldade. Pois

bem: há dias, a lança virou-se, directamente de África, contra o “lançador”. Obs.: Nesta relação de comparação, os intervenientes em destaque são os países africanos de língua portuguesa

– mais especificamente Angola, dado o contexto (referência a um dos editoriais do Jornal de Angola) –

representados por “África” – e Portugal, aqui entendido como o “lançador”.

PB06-2

E a findar: “O português falado em Angola tem características específicas e varia de

província para de província para província. Tem uma beleza única e uma riqueza inestimável

para os angolanos mas também para todos os falantes. Tal como o português que é falado no

Alentejo, em Salvador da Baía ou em Inhambane tem características únicas. Todos

devemos preservar essas diferenças e dá-las a conhecer no espaço da CPLP.

PB06-3 Ouviram, discípulos de Malaca & Bechara? Se lhes parece mal, por vir de africanos, então

ouçam lá um brasileiro: “O acordo ortográfico é um aleijão. Linguisticamente malfeito,

politicamente mal pensado, socialmente mal justificado e finalmente mal implementado. Foi

conduzido, aqui no Brasil, de modo palaciano: a universidade não foi consultada, nem teve

participação nos debates (se é que houve debates além dos que talvez ocorram durante o chá

da tarde na Academia Brasileira de Letras)”. Obs.: Nesta situação de comparação, Portugal e Brasil se fazem presentes, respectivamente, como “discípulos”

de Malaca, personalidade portuguesa, e “discípulos” de Bechara, personalidade brasileira – ambos a favor do

acordo. A perspectiva da assimetria é concretizada pela valorização da declaração de um brasileiro contra o

acordo, que deveria ser ouvida pelos portugueses (não por todos os portugueses, só por aqueles que são

favoráveis ao acordo, e não só pelos portugueses, também pelos brasileiros que o apóiam).

PB06-4

Mais: “A ortografia brasileira não será igual à portuguesa. Nem mesmo, agora, a ortografia

em cada um dos países será unificada, pois a possibilidade de grafias duplas permite inclusive

a construção de híbridos.”

Page 274: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice D

256

PB06-5

Foi você que pediu um acordo ortográfico? Não? Então descubra quem o encomendou. Os

angolanos e os brasileiros já sabem. Daí estas lanças, tão hábeis e certeiras. Obs.: Nesta relação de comparação, Portugal é representado a partir de uma interpelação (“você”), dirigida

aos leitores do jornal; portanto, aos portugueses.

PB07-1

A língua é algo inegociável e patriótico, nada se consegue à força. Eu vou continuar a

escrever como antigamente. A diversidade de vocabulário escrito e falado no Brasil, Angola,

Portugal, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e noutros são uma riqueza cultural.

PB10-1

Pois em 1973 Ruy Castro chegou a Lisboa para trabalhar numa revista brasileira cá editada.

No primeiro dia de trabalho houve um problema na casa de banho e ele pediu à secretária:

“Isabel, chame o bombeiro para consertar a descarga da privada”.

Isabel apenas percebeu o nome próprio e o “por favor”. Mas um colega do lado, brasileiro-

português, já acostumado aos labirintos da língua entre Portugal e Brasil, traduziu o pedido:

“Isabel, chame o canalizador para reparar o autoclismo da retrete”. E então sim, Isabel

percebeu.

PB10-2

Como foi que surgiram entre nós os vocábulos ‘autoclismo’ e ‘retrete’, enquanto os

brasileiros escolheram os termos ‘bombeiro’ e ‘privada’? Eu sei que a troika não trata destas

coisas. Etimologicamente, aprendo no Houiass, “autós” significa em grego “por si mesmo” e

“klusmós” “acção de lavar”. Privada entrou mais tarde e sem este amparo clássico. É produto

duma outra civilização. Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio do pronome pessoal de primeira pessoa do plural “nós”,

que, no contexto de um jornal português dirigido a leitores portugueses, remete para o país.

PB10-3

Nunca alinhei especialmente nas brigadas pró ou contra a unificação da ortografia. Por falta

de competência não iria acrescentar nada ao debate. O que posso dizer é que nenhum acordo

de escrita entre Brasil, Portugal e a África lusófona irá erradicar estas diferenças de

vocabulário. E muitas outras existem, como toda a gente sabe.

PB11-1

Do que gosto no novo Acordo Ortográfico, tão inclinado para o Brasil, é do seu lado

português, como eu: um bocado feito em cima do joelho. Matou a paz da língua (e nisso está

de acordo com o espírito económico e político do seu tempo, aspecto importante… espera,

aspeto).

PB13-1

E a esta [irmandade lusófona] bastaria que, em Portugal e nos outros países que aprenderam

a falar a partir da matriz europeia, existisse uma Academia das Letras digna desse nome (ou

de uma equipa competente plurinacional) que elaborasse um léxico contemplando todas as

variantes do português, em plena igualdade plural. Isto a montante de todos os remendos

pontuais e casuísticos que se queira fazer ao que nasceu torto e tarde ou nunca poderá

endireitar-se.

Page 275: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice D

257

PB13-1

A grande família lusófona precisa, isso sim, de reconhecer-se na alegria criativa da diferença,

não de ficar frustrada com rasuras injustificadas e arbitrárias. Obs.: Nesta comparação, todos os intervenientes são representados por uma só expressão “família lusófona”,

que reúne Portugal e todo os demais países de língua portuguesa.

PB17-1

“Segundo o AO90, os Brasileiros podem continuar a escrever (como sempre escreveram pela

reforma ortográfica brasileira de 1943), por exemplo: acepção, aspecto, conjectura,

perspectiva, decepção, detectar, excepcional, tactear, retrospectiva, percepção, intersectar,

concepção, imperceptível, respectivo, recepção, susceptível, táctico…

Em Portugal, com o mesmo AO90, seremos obrigados a escrever: aceção, aspeto, conjetura,

perspetiva, deceção, detetar, excecional, tatear, retrospetiva, perceção, intersetar, conceção,

impercetível, respetivo, receção, suscetível, tático…

Ora, a ideia não era uniformizar? Será que os Brasileiros não se vão rir quando virem, em

escritos de Portugal, aberrações como deceção, recetivo, perceção…?”

PB17-2

“No fundo eu estava perguntando, por outras palavras, o que é que lucrámos com isto,

Portugueses e Brasileiros, perguntando também, implicitamente, se não seria mais simples

deixar tudo na mesma — ao menos, já estávamos familiarizados com as igualizações e as

desigualizações, em vez de termos de aprender outras novas sem nenhuma vantagem óbvia.” Obs.: Embora esta relação de comparação faça referência tanto aos pontos em comum (“igualizações”) como

às diferenças (“desigualizações”) entre o português de portugueses e brasileiros, entende-se que nessa

representação prevalece o esforço de aproximação, portanto, esta passagem foi classificada como simétrica

convergente (o mesmo se dá em PB26-3).

PB17-3

Seguindo o raciocínio de António de Macedo, peguemos num, dois, três, quatro, uma dúzia de

livros brasileiros recentes. Não é difícil ler, a par de ato ou fato (que cá se mantém facto, já

agora, numa deliciosa “ortografia comum”), palavras como aspecto, perspectiva, caracterizou,

facção, respectivamente, etc. Essas mesmas que o unificador acordo quer que, só em

Portugal, se escrevam aspeto, perspetiva, caraterizou, fação (é verdade, fação!) e

respetivamente.

PB17-4

É isto um acordo para unificar a ortografia? Onde está o empregado que serviu o bife, hã?

Não vêem que está mal passado? Não, não vêem. Vão “adotar” a coisa e não vêem. Mas

comem-no, regalados, apesar do truque baixo do bife apenas virado na cozinha, sem ver outra

vez a frigideira, para que todos se deliciem com a ilusão de uma ortografia unificada. Mas há

vozes atentas, vejam lá, que percebem a impossibilidade de tais mudanças. Leiam-nas: “Há

diferenças intransponíveis dos dois lados do Atlântico, as quais foram acentuadas pelo

tempo.” Autor? João Malaca Casteleiro, o pai do aborto, perdão, do acordo ortográfico (pág. 6

do opúsculo Atual: o que vai mudar na grafia do português, ed. Texto, 2007). Obs.: Nesta relação, Portugal e Brasil são representados simultaneamente pela expressão “dos dois lados do

Atlântico”.

PB18-1

O defeito deve ser da gesta marítima, mas a verdade é que Portugal decididamente não se dá

bem com aventuras herbáceas. Os ingleses, sim. Jardinagem é com eles. Qualquer coisa onde

se mencione garden ou grass tem de ser bem feita. Eles sabem e dão muita importância ao

assunto.

Page 276: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice D

258

PB20-1

Em que pese a estas intenções mais poéticas do que realistas, o duro facto é que o AO90 vem

consagrar duas ortografias - pelo menos - bem diferenciadas: uma para Portugal e outra para

o Brasil, com singular menoscabo pelas eventuais peculiaridades ortográficas dos restantes

países da CPLP, que provavelmente terão de aderir ou a uma, ou a outra - a menos que

surjam terceiras e quartas alternativas para os casos específicos de Angola, Moçambique,

Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor...

PB20-2

Chamo a atenção para as semelhanças e diferenças: são de facto dois modelos bastante

distintos do AO90, a pensar exclusivamente no Brasil e em Portugal, como se mais nada

existisse no espaço lusófono. Dois modelos perfeitamente enquadrados: um delineado para o

Brasil, outro delineado para Portugal. E já nem discuto nem repiso a falácia da tão apregoada

"uniformização" ortográfica.

PB20-3

Quando José Eduardo Agualusa (angolano) e Mia Couto (moçambicano) declaram a sua

adesão ao AO90, será que sabem ao que é que estão a aderir? Ao modelo do AO90 para

Portugal, ou ao modelo do AO90 para o Brasil? Obs.: Apesar das referências aos gentílicos “angolano” e “moçambicano”, estes não parecem trazer para a

representação efetivamente Angola e Moçambique, mas sim duas personalidades de renome no campo da

literatura de língua portuguesa.

PB21-1

Temos o irresistível argumento de aproximar a escrita da oralidade. Com pronúncias tão

distintas como as dos alentejanos, timorenses, brasileiros, moçambicanos, cabo-

verdianos, minhotos, guineenses, são-tomenses, açorianos, angolanos, etc., nada mais

lógico senão dizer-lhes a todos que escrevam como pronunciam…? Quando estamos ao

mesmo tempo a “unificar”, claro! Isto só como anedota. Será possível que haja quem ainda

não tenha visto a contradição gritante deste disparate?

PB22-1

Falta só que, curvados perante o número de falantes brasileiros e em nome da pretensa

“unidade da língua”, passemos a usar “presidenta ou estudanta”, entre outras similares,

obedecendo à lei n.º 12.605, de 3/4/2012, sobre o “Emprego obrigatório da flexão de género

para nomear profissão”, recente inovação da “Presidenta” do Brasil. Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio do verbo “passar”, flexionado na primeira pessoa do

plural, que, nesse contexto, remete para os portugueses e, portanto, para Portugal.

PB22-2

Em 2011, o Conselho de Ministros afirmou que o AO visava “reforçar o papel da língua

portuguesa como língua de comunicação internacional”, mas, entretanto, fecham-se

leitorados, dificultam-se as aulas de Português para os filhos dos emigrantes, continuando nós

também a desconhecer o quanto tem custado e continua a custar este AO. O Brasil,

entretanto, promove congressos com o objectivo de “discutir políticas linguísticas

relacionadas à internacionalização do Português brasileiro”. E assim se fazem as cousas, diria

Gil Vicente. Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio de diferentes estratégias: via representação do governo

Português – concretizada na referência ao “Conselho de Ministros” e também nos verbos “fecham-se” e

“dificultam-se”, que, embora configurem orações com sujeito indeterminado, remetem para situações de

Page 277: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice D

259

responsabilização do governo – e via menção aos portugueses – concretizada na utilização do pronome pessoa

“nós”.

PB25-1

Dizem que é para facilitar… O Brasil fê-lo com as suas reformas. Portugal prepara-se para o

mesmo. Mas produziu e produzirá sociedades mais cultas e pensantes? Ou linguística e

culturalmente empinantes? E cuja escrita se reduza a um trogloditismo, à mera transcrição de

grunhidos? Repudiamo-lo!

PB26-1

A importância do Acordo, aliás, é defendida por se considerar que é a tábua de salvação da

língua. Sem o Acordo, e, portanto, sem o peso do Brasil, o português europeu passaria a ser

uma língua rapidamente extinta.

PB26-2

O acordista sabe que o Acordo Ortográfico não trouxe acordo ortográfico, mas finge, ainda,

ignorar que, para além da ortografia, não existem outras diferenças insanáveis, que só

poderiam desaparecer se, para além de um acordo ortográfico, se realizassem, ainda, um

acordo sintáctico, um acordo fonético e um acordo semântico. Nada disso impede o acordista

de afirmar, por exemplo, que “qualquer livro editado em português possa ser impresso em

qualquer país lusófono”. Obs.: Nesta relação de comparação, Portugal é representado pelos portugueses que defendem o acordo,

referidos na expressão “acordista”, mas também na expressão “qualquer país lusófono” – embora, neste último

caso, seja representado lado a lado com demais países de língua portuguesa.

PB26-3

É, ainda, vulgar, ouvir o acordista criticar os críticos do Acordo Ortográfico por se julgarem

“donos da língua”. Tal crítica faria sentido se esses mesmos críticos defendessem a imposição

da ortografia europeia a todos os outros países lusófonos. Obs.: Na relação de comparação acima, Portugal é representado pela expressão “ortografia europeia”.

PB26-4

A língua pertence, evidentemente, a quem a usa, o que quer dizer que o português pertence a

todos os países lusófonos e é, portanto, enriquecedor que esse facto provoque todo o género

de aproximações e admita as inevitáveis diferenças, que podem ser fonéticas, semânticas ou

ortográficas. Obs.: Embora esta relação de comparação faça referência tanto aos pontos em comum (“aproximações”) como

às diferenças (“inevitáveis diferenças”) entre o português dos diferentes países lusófonos, entende-se que nessa

representação prevalece o esforço de aproximação, portanto, esta passagem foi classificada como simétrica

convergente (a exemplo da classificação de PB17-2).

PB27-1

Além dos avultados custos sociais e culturais, o AO90 acarreta também consideráveis custos

económicos: substituição de milhões de livros, ferramentas informáticas, documentos, etc.,

que assim ficam obsoletos, e perda de posição das exportações de edição portuguesa para o

mercado brasileiro.

Este acordo foi forjado nas costas dos portugueses, à revelia dos seus interesses.

PB29-1 Devo começar por dizer que duvidei na hora de enviar este texto. No fim de contas, sou

espanhola e alguns portugueses poderiam levar a mal uma estrangeira vir cá opinar sobre

aquilo que não lhe diz respeito.

Page 278: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice D

260

Obs.: A relação de comparação acima caracteriza-se como assimétrica com vantagem para Portugal por

atribuir aos portugueses o “direito” de opinar sobre o AO – em outras palavras, por privilegiar o papel dos

portugueses (nacionais) em detrimento dos espanhóis (estrangeiros) nesse contexto.

PB29-2

Quando falo com colegas, amigos ou familiares sobre o AO da Língua Portuguesa, eles ficam

admirados. Não percebem e dizem que eles nunca permitiriam uma coisa dessas aqui. Não

percebem e embora a maioria se esteja nas tintas (infelizmente, os espanhóis não ligam muito

às notícias vindas de Portugal, embora ache que a tendência começa a mudar) quase sempre

me perguntam: “E então, os portugueses não estão a fazer nada para evitar isso? Fosse aqui e

eu…” Mas não é aqui, é aí.

PB30-1

Podem até ensinar às crianças de hoje que a receção se pronuncia como recéção. Dentro de

uns 30 anos, se o AO vier a prevalecer, poderá esta pronúncia vingar, graças à frequente

exposição à palavra (embora proferida com a vogal átona fechada, quando palavra isolada?).

Já os brasileiros continuarão a olhar para Portugal como um país mais deprimente do que

aquilo que sempre foi: nos jornais, nos hotéis, nos organismos públicos, o país da

omnipresente e sempiterna receção, perdão, rêcêssão.

PB31-1

Peço-vos que voltem a ler os exemplos apresentados. Não verão uma só instância de diferença

ortográfica, o que prova a futilidade do esforço (inútil porque não o consegue) de

uniformização ortográfica. A maioria dos manuais traduzidos no Brasil que eu revi estão

escritos assim e, provavelmente, no Brasil até são textos perfeitamente aceitáveis, não sei,

nem discuto. Mas em Portugal não.

PB31-2

A realidade é que os fabricantes pressionam os distribuidores portugueses a utilizar as

traduções brasileiras em Portugal.

PB31-3

Os argumentos são sempre os mesmos: (1) só se produz uma versão em Português e, dado que

o Brasil é um mercado maior, a versão a produzir será em Pt-Br ou (2) temos que reduzir

custos, por isso há que anular uma das versões em Português; o Brasil é um mercado maior,

portanto eliminamos a versão Pt-Pt. Ponto final.

PB33-1

Torna-se igualmente caricato que se faça rasura da etimologia e ela permaneça refém da fala e

de formas de articulação volúveis. E constatar que no Brasil será preservada alguma

morfologia etimológica torna a questão ainda mais absurda (lá, dir-se-á “concepção”,

“recepção”, etc., coisa esquecida por cá). Obs.: Na relação de comparação acima, Portugal é representado em contraposição ao Brasil nas referências a “lá” (Brasil) e “cá” (Portugal), mas sua presença também pode ser inferida pela construção verbal “se faça”, a partir da presunção de que é Portugal quem faz “rasura da etimologia” ao ratificar o AO.

PB34-1

Resulta [o adiamento da entrada em vigor do AO no Brasil] de uma pressão que vem de

longe, como nos lembra o professor Ivo Manuel Barroso (que em Portugal entregou na

Procuradoria uma queixa, fundamentada, para que Portugal se desvincule do AO90) e tem por

base uma acção judicial intentada pelo professor brasileiro Ernani Pimentel.

Page 279: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Apêndice D

261

PB34-2

Porquê? Porque o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), editado

unilateralmente no Brasil em 2009 (o que é já de si um absurdo, porque o AO90 prometeu,

sem nunca cumprir, um “vocabulário unificado” comum a todos os países de língua oficial

portuguesa), contradiz o acordo de 90 em vários pontos.

PB34-3

Felizes, com a perspectiva? Ainda não viram nada. Se o AO90 já é uma fraude, fingindo

unidade onde foi criada confusão e divisão (palavras que todos escreviam da mesma maneira,

tantas, passam a escrever-se, por imposição do AO, de modo diferente em Portugal,

mantendo no Brasil grafia certa: recepção, percepção, confecção, ruptura, cacto, etc.), as

propostas “simplificadoras” de Pimentel vão apimentar ainda mais o debate em torno da já tão

massacrada grafia da língua portuguesa.

PB34-4

Mas o que move Pimentel? O facto (que por cá se mantém com c, permanecendo “fato” no

Brasil) de “70 por cento dos candidatos chumbarem por causa da língua portuguesa” nos

exames brasileiros de acesso ao Superior.

PB34-5

Pobre Brasil, pobre Portugal, pobre língua. Deixa de ser portuguesa, rica em variantes, para

ser língua de Pandora, aberta não ao mundo mas todos os disparates caseiros. Quem a salva de

tais tormentos? Quem “desacorda” de vez o seu futuro?

PB35-1

Quem tem dúvidas pode dissipá-las ouvindo Fernando Cristóvão numa entrevista concedida

em 2008, que esclarece o que pensam os "acordistas" sobre o processo legislativo num regime

democrático - em que, supostamente, as leis não são dogmas nem mandamentos, e, logo, são

alteráveis e revogáveis - e a independência, a soberania - cultural e não só - dos países

africanos de língua oficial portuguesa: "(...) Porque é que Angola também não há de ter uma

ortografia diferente? E porque é que Moçambique qualquer dia não...? E a Guiné, lá por ser

pequenina, não há de ter uma ortografia? Onde é que nós vamos parar? (...) O acordo tem de

se fazer porque nós temos duas ortografias, não podemos continuar assim, e a continuar

assim qualquer dia temos cinco ou seis. Qual é a língua que resiste a tanta ortografia? [O

Francês, que tem 15, e o Inglês, que tem 18!] (...) Confesso que, perante a urgência de haver

uma ortografia unificada, eu não entendo como é que há tanta teimosia em querer emendar

uma coisa que ainda por cima é uma lei. (...)" Obs.: Na relação de comparação acima, Portugal se faz presente na expressão “duas ortografias”, que remete

para a ortografia de Portugal e para a ortografia do Brasil, simultaneamente.

Page 280: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 281: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Referências

Page 282: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas
Page 283: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

Referências

Abercrombie, N. and Longhurst, B. (2007). The penguin dictionary of media studies.

London: Penguin Books.

Anderson, B. (2006). Imagined communities. London: Verso. (Original work published

1983).

APCT - Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação. Disponível em

http://www.apct.pt/Analise_simples.php. Acessado em 12 de novembro de 2012.

Barth, F. (1998). Ethnic groups and boundaries: the social organization of cultural

difference. Long Grove: Waveland Press.

Bauman, Z. (2006). Liquid Modernity. Cambridge: Polity Press.

Benjamin, W. (2006). A modernidade – obras escolhidas de Walter Benjamin (J. Barrento,

ed. e trad.). Lisboa: Assírio & Alvim.

Bennet, T; Grossberg, L. and Morris, M. (eds.). (2005). New keywords. A revised

vocabulary of culture and society. Oxford: Blackwell.

Bhabha, H. (Ed.). (1994). Nation and Narration. London: Routledge.

Billig, M. (1995). Banal Nationalism. London: Sage Publications.

Blommaert, J. and Verschueren, J. (1992). The role of language in European ideologies.

International Pragmatics Association - Pragmatics, 2:3, 355-375.

Bourdieu, P. (1999). Language and simbolic power (G. Raymond and M. Adamson,

trans.). Cambridge: Polity Press.

Castells, M. (2009). Communication power. New York: Oxford.

Castells, M. (2007). A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. O Poder da

Identidade (vol. II). (A. Lemos e R. Espanha, trads.). Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian. (Original work published 1997).

Coutinho, C. P. e Chaves, J. H. (2002). O estudo de caso na investigação em tecnologia

educativa em Portugal. Revista Portuguesa de Educação, 15(1), 221-243.

Deutsch, K. (1994). Nationalism and Social Communication. In J. Hutchinson and A. D.

Smith (eds.). Nationalism. Oxford: University Press.

Fairclough, N. (1997). Critical discourse analysis: the critical study of language. London:

Longman.

Fairclough, N. (1995). Media discourse. London: Edward Arnold.

Fiorin, J. L. Introdução. Em L. P. M. Lopes (org.). (2013). O português no século XXI:

Cenário geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola.

Page 284: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

266

Foucault, M. (2005). A arqueologia do saber (M.S.Pereira, trad.). Coimbra: Almedina.

(Original work published 1969).

Foucault, M. (1997). A ordem do discurso (L.F.A.Sampaio, trad.). Lisboa: Relógio

D’Água. (Original work published 1971).

Gellner, E. (1994). Nationalism and high cultures. In J. Hutchinson and A. D. Smith (Eds.).

Nationalism. Oxford: University Press.

Giddens. A. (2014). Este turbulento e poderoso continente. Que futuro para a Europa?

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Giddens, A. (2002). Modernity and self-identity: self and society in the late modern age.

Stanford: University Press.

Giddens, A. (2000). Viver numa sociedade pós-tradicional. In U. Bech, A. Giddens and S.

Lash (Eds.). Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social

moderna (M. A. Augusto, Trans.). Oeiras: Celta.

Gil, J. (2008). Portugal, Hoje. O Medo de Existir. Lisboa: Relógio D’Água.

Gouveia, C. A. M. (2013). “Análise crítica do discurso: dimensões teóricas e

metodológicas”. Em M. C. Pimentel e P. F. Alberto (eds.). Vir bonvs peritissimvs

aeque. Estudos de homenagem a Arnaldo do Espírito Santo. Lisboa: Centro de

Estudos Clássicos.

Gouveia, C. A. M. (2009). Texto e Gramática: uma introdução à linguística sistémico-

funcional. Matraga, 16 (24), 13-47.

Gouveia, C.A.M. (2001). Análise crítica do discurso: enquadramento histórico. Em C. N.

Correia, M. H. M. Mateus (coords.). Saberes no Tempo Homenagem a Maria

Henriqueta Costa Campos. Lisboa: Edições Colibri.

Glynn, C. J., Herbst, S., O’Keefe, G. J. and Shapiro, R.Y. (1999). The history of public

opinion. In C. J. Glynn et al (eds.). Public Opinion. Boulder: Westview Press.

Habermas, J. (2004). The postnational constellations: political essays (M. Pensky, ed. and

trans.). Cambridge: Polity Press.

Halbwachs, M. (1990). A Memória coletiva (L.L. Schaffter, trad.). São Paulo: Edições

Vértice.

Hall, S. et al. (2009). The social production of news. In S. Thornham, C. Bassett and P.

Marris (eds.). Media Studies - a Reader. Edinburgh: University Press.

Hall, S. (2014). A identidade cultural na pós-modernidade (T. T. Silva e G. L. Louro,

trads.). Rio de Janeiro: Lamparina. (Original work published 1992.)

Halliday, M.A.K. (1994). An Introduction to Functional Grammar. London: Arnold.

Page 285: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

267

Hassan, R. (2011). The information society. Cambridge: Polity Press. (Original work

published 2008).

Haton, B. (2011). Os portugueses. Lisboa: Clube do Autor.

Hobsbawm, E. (2012). Nations and nationalism since 1780. Cambridge: University Press.

(Original work published 1990).

Hobsbawm, E. (1994). The nation as invented tradition. In J. Hutchinson and A. D. Smith

(eds.). Nationalism. Oxford: University Press.

Innerarity, D. (2006). O novo espaço público (M. Ruas, trad.). Lisboa: Teorema

Krzyzanowski, M. and Galasinska, A. (2009). Discourses of social and political

transformation in the ‘New Europe’. In ” in M. Krzyzanowski and A. Galasinska

(eds.). Discourse and transformation in Central and Eastern Europe. London:

Palgrave Macmillan.

Kuper, A. (1999). Culture: the anthropologist's account. Cambridge: Harvard University

Press.

Lopes, L.P.M. (org). (2013). O Português no século XXI – cenário geopolítico e

sociolinguístico. São Paulo: Editora Parábola.

Lourenço, E. (1988). O labirinto da saudade – psicanálise mítica do destino português.

Lisboa: Dom Quixote.

Luhmann, N. (2000). The reality of the mass media (K. Cross, trans.). Cambridge: Polity

Press.

Lyotard, J. F. (1986). A condição pós-moderna (J. B. Miranda, trad.). Lisboa: Gradiva.

Magalhães, I. A. (2001). Capelas imperfeitas: configurações literárias da identidade

portuguesa. Em M. I. Ramalho e A. S. Ribeiro (orgs.). Entre ser e estar – raízes,

percursos e discursos da identidade. Porto: Edições Afrontamento.

Martin, J. R. and Wodak, R. (2003). Re/reading the past: critical and functional

perspectives on time and value. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company.

McQuail, D. (2003). Teoria da Comunicação de Massas (C. Jesus, trad.). Fundação

Calouste Gulbenkian: Lisboa.

Ponte, J. P. (2006). Estudos de caso em educação matemática. Bolema, 25, 105-132.

Potter, J. (1997). Representing reality – discourse, rhetoric and social construction.

London: Sage Publications.

QERC - Quadro europeu comum de referência para as línguas: aprendizagem, ensino,

avaliação. (2001). Conselho da Europa. Porto: Asa

Page 286: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

268

Renan, E. Qu’est-ce qu’une nation? (I.M. Snyder, trans.). In J. Hutchinson and A. D. Smith

(Eds.). Nationalism. Oxford: University Press. (Original work published 1882).

Resende, V. e Ramalho, V. (2011). Análise de Discurso (Para a) Crítica: o Texto como

Material de Pesquisa. Campinas: Pontes Editores.

Resende, V. (2009). Análise de Discurso Crítica e Realismo Crítico. Implicações

interdisciplinares. Campinas: Pontes Editores.

Resolução de 21 de novembro de 2008 sobre uma estratégia europeia a favor do

multilinguismo (2008/C 320/01). Conselho da União Europeia. Disponível em

http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex:32008G1216(01).

Acessada em novembro de 2015.

Robertson, R. (1995). Glocalization: time-space and homogeneity-heterogeneity. In M.

Featherstone, M; S. Lash and R. Roberton (eds.). Global Modernities. London: Sage

Publications.

Rorty, R. (1970). The linguistic turn – recent essays in philosophical method. Chicago:

Phoenix Books (The University of Chicago Press).

Santos, B. S. (2001). Entre Prospero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e inter-

identidade”. Em M. I. Ramalho e A. S. Ribeiro (orgs.). Entre ser e estar – raízes,

percursos e discursos da identidade. Porto: Edições Afrontamento.

Silva, T. T. (org.). (2000). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais.

Petrópolis: Editora Vozes.

Simpson, A. (2008). Language and national identity in Africa. Oxford: University Press.

Smith, A. D. (2001). Nationalism and Modernism: a critical survey of recent theories of

nations and nationalisms. London: Routledge. (Original work published 1998).

Sobral, J. M. (2012). Portugal, Portugueses: uma identidade nacional. Lisboa: FFMS e

Relógio D’Água Editores.

Tann, K. (2010). Imagining communities: a multifunctional approach to identity

management in texts. In J. R. Martin, M. Bednarek (eds.). New discourse on

language – functional perspectives on multimodality, identity, and affiliation.

London: Continuum.

Thompson, J. B. (1990). Ideology and modern culture. Stanford: University Press.

Thompson, J. B. (1995). The media and modernity – a social theory of the media. Stanford:

Stanford University Press.

Van Dijk, T. (2005). Contextual knowledge management in discourse production – a CDA

perspective. In R. Wodak and P. Chilton (eds.). A new agenda in (Critical) Discourse

Page 287: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas

269

Analysis – theory, methodology and interdisciplinarity. Amsterdam: John Benjamins

Publishing Company.

Verkuyten, M. (2006). Multicultural recognition and ethnic minority rights: a social

identity perspective. European Review of Social Psychology, 17, 148-184.

Weiss, G. and Wodak, R. (2005). Analysing European Union discourses”. In R. Wodak,

and P. Chilton. P (eds.). A new agenda in (Critical) Discoruse Analysis – theory,

methodology and interdisciplinarity. Amsterdam: John Benjamins Publishing

Company.

Williams, R. (1981). Keywords: a vocabulary of culture and society. London:

Fontana. (Original work published 1976).

White, P. R. R. (2003). News as history: your daily gossip”. In J. R. Martin and Ruth

Wodak (eds.). Re/reading the past: critical and functional perspectives on time and

value. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company.

Wodak, R.; Cillia, R; Reisigl, M.; Liebhart, K. (1999). The discursive construction of

national identity. Edinburgh: University Press.

Wodak, R. and Boukala, S. (2015). (Supra)National identity and language: rethinking

national and european migration policies and the linguistic integration of migrants.

Annual Review of applied Linguistics, 35 (2015), 253-273.

Žižek, S. (org.). (2010). Um mapa da ideologia (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro:

Contraponto Editora.

Page 288: O papel simbólico da língua na construção das identidades ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24289/1/ulsd072910_td_tese.pdf · identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas