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O PARADIGMA PROPOSTO POR MAUS:
LEMBRAR OU ESQUECER O HOLOCAUSTO?
Ânderson Martins Pereira1
Ariane Avila Neto de Farias2
RESUMO: O presente artigo busca discutir os processos que envolvem o “lembrar” e “esquecer”
representados na obra Maus: a história de um sobrevivente (2009). Dessa maneira, a partir da
ficcionalização que se dá na margem entre literatura e história, questiona-se tais processos como
perpassados pela contemporaneidade. Este estudo justifica-se por contribuir com os estudos acerca das
fronteiras entre história e literatura e, por conseguinte, do real e do ficcional.
Palavras-chave: Metaficção historiográfica; Holocausto; Maus.
ABSTRACT: The present paper aims to discuss the processes of “remembering” and “forgetting” in
texts that happens on the border of literature and history in the book Maus: a história de um
sobrevivente (2009), wondering about how these processes are surpassed by the contemporaneity. This
paper is justified to contribute with the studies about borders in between history and literature,
therefore, the real and the fictional.
Keywords: Historiographic metafiction; Holocaust; Maus.
Introdução
Art Spiegelman é um cartunista de ascendência escocesa e, ainda que tenha realizado
outros trabalhos, ficou conhecido como o escritor de Maus: a história de um sobrevivente,
obra que traz as vivências do autor e de seu pai transpostas para os quadrinhos. Na presente
obra, Art e seu pai se incumbem da tarefa de relembrar o holocausto, vivenciado pelo último.
O livro, dividido em duas partes, demora treze anos para ser concluído e apresenta de um lado
a força de legitimar e narrar o acontecido trazida pelo filho e, de outro, a vontade do pai e de
outros judeus de superá-lo e esquecê-lo.
1 Doutorando do programa de pós-graduação em Letras – área de concentração em Sociedade, (inter)textos
literários e tradução nas literaturas estrangeiras modernas, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). E-mail: [email protected] 2 Doutoranda do programa de pós-graduação em Letras – área de concentração em História da literatura, na
Universidade Federal do Rio Grande (FURG). E-mail: [email protected]
2
O autor traz na obra Maus: a história de um sobrevivente (2009), através do relato de
seu pai, a história de sua família marcada pelo holocausto. No livro, o autor apresenta ao leitor
duas ideias que, ainda que paradoxais, perpassam os indivíduos que vivenciaram ou
vivenciam o holocausto: a necessidade humana de narrar e com isso relembrar e; a
necessidade de esquecer e deixar o horrível evento delegado a um passado intocável.
Pretende-se com a análise da dicotomia lembrar/esquecer discutir questões referentes à
ficcionalização e historicismo, bem como a legitimidade da literatura e do relato na
constituição da História.
O holocausto tem sido tema recorrente, pois, segundo o sociólogo e filósofo Zygmunt
Bauman, no livro Modernidade e holocausto (1998), o fato não é um problema judeu, mas um
problema que se deu em uma sociedade moderna, no auge de sua civilidade. Nesse sentido, o
sociólogo questiona a predisposição humana para tais atos e vai ao encontro ao já exposto por
Hannah Arendt no livro Human Condition (1958), no sentido de que muitos soldados
poderiam não ser maus, mas que estariam apenas seguindo ordens,
Quanto mais culpáveis forem “eles”, mais seguros estaremos “nós” e menos
teremos que fazer para defender essa segurança. Uma vez que a atribuição de
culpa for considerada equivalente à identificação das causas, a inocência e
sanidade do modo de vida de que tanto nos orgulhamos não precisam ser
colocadas em dúvida. (BAUMAN, 1989,p.14)
O teórico pontua que, em geral, isola-se um acontecimento social como um problema
exclusivo de um grupo, eximindo o restante da sociedade da culpa e, consequente,
responsabilidade de lidar diretamente com este. Esse evento é tomado como algo que ocorreu
com o “outro”, porém “irreproduzível” em nossa sociedade. Ao terceirizarmos tais
acontecimentos conseguimos lembrar de maneira impessoal e assim, dar prosseguimento a
narração do fato. Entretanto, sabe-se que minimizar as dimensões de um episódio é não
reconhecer a possibilidade de sua repetição, retirando dele uma ferramenta militante que
compreende o lembrar como forma de não repetição de certos atos.
Em Maus, depara-se com uma narrativa que coloca a experiência de alguém próximo a
quem narra, como pertencente ao mundo de maneira geral, um problema de todos. Vejamos a
passagem abaixo,
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Figura 1 – Imagem retirada do livro Maus: a história de um sobrevivente (2009, p. 202)
Na imagem acima, há uma denúncia do afã da sociedade de ler o holocausto como
algo circunspecto à comunidade judaica, corporificada na palavra de “Israel” proferida pelo
repórter em resposta a uma responsabilização geral, defendida pelo personagem Art. O
protagonista redimensiona o episódio para o mundo e à sociedade, deixando claro que a todos
cabe a tarefa de lembrar ou de esquecer tais acontecimentos. Todavia, é importante salientar
que, tais processos não são concorrentes e perpassam o indivíduo em diversos momentos da
narrativa de Spiegelman. A questão que se apresenta no cerne da escrita do autor, e que
buscamos analisar no presente trabalho, não é apenas o que é história ou o lugar dela e da
literatura, mas o que se quer como parte integrante da história e o porquê. O holocausto foi
um evento atroz de proporções mundiais que não se encerra com a libertação dos presos, mas
permanece até os dias de hoje como ferida de todas as sociedades e continua sendo uma
sombra para os sobreviventes e seus descendentes.
1 O lugar da história “estórica”: concepção teórica
Para melhor lidar com a obra de Spiegelman é necessário versar sobre a relação entre
história e literatura e, por conseguinte, entre o real e o ficcional. Debates acerca das
aproximações entre História e Literatura datam de muito tempo. O diálogo entre essas duas
áreas é um campo de pesquisa que se desenvolveu significativamente no Brasil a partir dos
anos 1990 e, hoje, se trata de uma temática promissora em relação às pesquisas e trabalhos
publicados no meio acadêmico (PESAVENTO, 2006, p. 02). São diversos os novos objetos,
4
abordagens e temáticas que surgem, modificando profundamente a produção intelectual dos
historiadores. Não é de hoje que diferentes teóricos se questionam sobre os limites entre tais
áreas e, por consequência, as fronteiras entre realidade e ficção.
Há diferentes questões que articulam o debate que aproxima as narrativas histórica e
literária, ao entender ambas como discursos que respondem às indagações dos homens sobre o
mundo, as quais são vistas como narrativas que respondem às perguntas, expectativas, desejos
e temores sobre a realidade, que oferecem o mundo como texto. É, dessa maneira, que as
ideias defendidas por Aristóteles de que a ficção e a arte estariam completamente distantes do
real e de que o historiador “só poderia falar a respeito daquilo que aconteceu” e de que caberia
ao poeta falar apenas “sobre o que poderia acontecer” (HUTCHEON, 1991, p.142) vão
perdendo sua força e sentido. É assim, que as constantes discussões sobre o tema trazem à
tona a dificuldade em se distinguir os dois campos.
Entende-se a História como representação do passado, instrumento de designação de
acontecimentos registrados pela escrita ou oralmente. Já a Literatura, é compreendida a título
de textos de ficção de todo tipo, bem como o estudo e a análise de tal fenômeno. Percebe-se a
partir de tais definições que esses termos carregam questionamentos bastante complexos em
seu escopo. No confronto desses termos, distinguem-se dois aspectos que tornam a
determinação de sua atuação uma zona cinzenta: o primeiro decorrente da constatação de que
os textos literários são/podem ser fatos históricos e o segundo, referente ao discurso,
instrumento utilizado por ambas.
No que concerne ao espaço reservado a História, de acordo com Sandra Jatahy
Pesavento, esse seria regido pelo vínculo que vai estabelecer com seu objeto, sendo seu
objetivo o de chegar a uma verdade sobre o acontecido que mais se aproxima com o passado,
sua maior diferença em relação à Literatura (2004, p. 82). Sobre o mesmo tema, a teórica
Valdeci Borges (2010) coloca a História “[c]omo processo social e como disciplina, e a
literatura, como uma forma de expressão artística da sociedade possuidora de historicidade e
como fonte documental para a produção do conhecimento histórico” (BORGES, 2010, p. 94).
A relação entre ambos os conceitos remonta a necessidade intrínseca de narrar, de
acordo com o crítico literário J. Hillis Miller (1990), desde tempos imemoriais somos
perpassados por narrativas e necessitamos delas para nos constituirmos enquanto seres
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humanos. Durante períodos de mínima organização tribal, desenvolvemos narrativas
minimalistas para passar informações, conhecimentos, valores e assim nos constituirmos
socialmente.
Na pós-modernidade, contexto histórico da obra aqui analisada, essa afirmativa nos
parece mais pungente. A sociedade ficcionaliza suas vivências, as compartilha de maneira
multimídia e espera que elas sejam lidas com o mesmo afinco com que se necessita ler
narrativas de outros. Segundo Miller (1990), ao transformar um fato em linguagem o
ressignificamos, escolhendo as partes que serão postas em evidência e quais ficarão em
segundo plano ou, mesmo, serão excluídas, tornando-as ficção. Entende-se, então, que os
fatos narrados são perpassados pela memória.
Beatriz Sarlo, crítica literária e cultura, no mesmo sentido de Miller, no livro Tempo
passado: cultura da memória e guinada subjetiva (2007), desmistifica o lugar da história,
trazendo a subjetividade como parte integrante do relato, mesmo que este seja feito por
alguém que o tenha presenciado.
Apresenta-se como novidade algo que pertenceu à ordem do evidente: se o
passado não foi vivido, seu relato só pode vir do conhecido através de
mediações e, mesmo se foi vivido as mediações fazem parte desse relato.
(SARLO, 2007, p.92)
Desta maneira, compreende-se que o relato é interpelado pelo sujeito. Essa ideia não
apenas questiona a noção de história como verdade, mas também impõe o problema de fontes.
Como dar voz a uma vasta gama de diferentes indivíduos? A sociedade está em busca de uma
verdade ou de várias e plurais? Assim, através destes questionamentos impõe-se um novo
mosaico, que impugna ao indivíduo um diferente olhar em relação as narrativas do passado.
Linda Hutcheon reafirma o envolvimento da literatura com essas questões, no livro
Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção (1991) a autora nomina um novo gênero
apartado do romance histórico, a metaficção historiográfica. Tal gênero traz consigo o
questionamento do passado e do fazer histórico, impregnando-se de crítica à história e ao
lugar da literatura. Mesmo rompendo com a constituição da narrativa histórica proposta por
George Lukács (1966), na qual o gentleman, ou personagem principal traria consigo as
características sociais somente de seu tempo, ambos os teóricos associam o contexto social
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como essencial para a criação de um novo gênero e pensar histórico. Eles se constituem a
partir de um diferencial na relação do sujeito com a história.
Para Lukács (1966), os cidadãos europeus começam a perceber o papel da história em
virtude das revoluções civis, das diferenças das organizações do exército, que começam a ser
chefiadas por quem antes não era parte da realeza, começam a vê-la como processo que está
sempre inacabado e que, de fato, essa história perpassa e modifica suas existências. Esses
movimentos sociais perpassam o literário e o motivam a englobar essas inquietações. No
mesmo movimento, um novo gênero surge na pós-modernidade, necessita nova definição e se
legitima por Hutcheon. A autora demonstra que a pós-modernidade se apropria do passado,
mas o questiona sob o julgamento de seu próprio contexto. Contudo, teorias e criações de
textos que deem conta das especificidades sociais demostram a necessidade do homem de
narrar sua história. Hutcheon (1991) pontua que o espaço da literatura de narração histórica
não apenas se legitima, mas produz significação para a encontro do sujeito com o passado.
Ainda que se tenha introduzido teorias do narrar, o fluxo histórico é marcado também
pela subjetividade e pelo que se quer olvidar. É necessário introduzir as motivações do
“esquecer” ligados ao holocausto. O evento narrado por Spiegelman não é apenas atroz, mas
lida basicamente com um dos maiores medos humanos que é o medo da morte. Desta
maneira, embora os seres humanos tenham se utilizado de mitos para preparar o indivíduo
para a morte, o evento em si não é mito, mas factual e vários são os mecanismos para transpô-
lo para história. Entretanto, se questiona até que ponto se quer isso?
Cada evento que conhecemos ou de que ficamos sabendo –exceto a morte –
tem um passado assim como um futuro. Cada um deles –exceto a morte –
traz a promessa escrita em tinta indelével, ainda que em letras mínimas, de
que a trama “continua no próximo capítulo” (BAUMAN, 2008, p.44)
Bauman no livro Modernidade e holocausto, publicado em 1998, pontua que através
da transformação do fato em história lidamos melhor com ele. Porém, na passagem acima, do
livro Medo líquido (2008), pontua a morte como evento sem passado ou futuro. No
holocausto a morte assume o medo e a promessa do apagamento, tomando para os seus
herdeiros, como Art Spiegelman, a forma de exclusão e de não pertencimento. A obra Maus
demostra que as marcas do holocausto não se sentem apenas nos que o vivenciaram, mas se
alastram nas vivências dos seus sucessores. Lembrar e reviver o terror é ao mesmo tempo um
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remédio e uma abertura na ferida, que procura muitas vezes ficar intocada para sua
“cicatrização”.
2. As dificuldades de narrar a experiência
Na presente obra temos a necessidade de Spiegelman de dar voz a seu passado. Ao
ficcionalizar a própria história ele transforma-se no rato Art e neste processo, o autor se
distância e parece inscrever o holocausto e a relação de sua família em um terreno mítico.
Joseph Campbell, renomado mitólogo, em seu livro póstumo, The power of the myth (1991),
aborda a importância do mito, de ficcionalizar a vida para melhor lidar com a realidade,
assimilar valores e aguentar fatos com os quais de outra forma não poderíamos fazê-lo.
The ancient myths were designed to harmonize the mind and the body. The
mind can ramble off in strange ways and want things that the body does not
want. The myths and rites were means of putting the mind in accord with the
body and the way of life in accord with the way that nature dictates.
(CAMPBELL, 1991, p.53)3
Art mitifica os povos em ratos, gatos, porcos, cães e sapos. A alegoria, obviamente,
traz em si significados sobre a ideia global desses povos, mas também distancia o autor do
ocorrido. Narrar sua própria história por intermédio de desenhos, de representações, mitifica a
história e a reconstrói de maneira a generalizar o fato e inscrevê-lo em um acesso mais fácil a
humanidade de modo geral. O evento ocorrido, que não é um episódio passado somente pelos
personagens, mas por muitas pessoas na história, compreende algo que deve ser
compartilhado. Mitificar o evento corresponde a um distanciamento que permite a autor e
leitor trocarem informações de maneira crítica.
When the story is in your mind, then you see its relevance to something
happening in your own life. It gives you perspective on what’s happening to
you. (…)These bits of information from ancient times, which have to do with
the themes that have support human life, built civilizations, and informed
religions over the millennia, have to do with deep inner problems, ineer
mysteries, inner threshold of passage, and if you don’t know what the guide-
3 “Os mitos antigos foram projetados para harmonizar a mente e o corpo. A mente pode divagar de formas
estranhas e querer coisas que o corpo não quer. Os mitos e ritos eram meios de colocar a mente em harmonia
com o corpo e o modo de vida de acordo com a maneira que a natureza ditava.” (CAMPBELL, 1991, p.53,
tradução nossa)
8
signs are along the way, you have to work it out yourself. (CAMPBELL,
1991, p.10)4
Na passagem acima Campbell pontua que a mitificação, ajuda a lidar com o que,
conscientemente, não se consegue manejar. No caso do holocausto, a representação da
história poderia ajudar na superação do trauma. A partir da mitificação, aceita-se melhor o
que se sofre e os medos que são enfrentados. Campbell, nesse sentido, trata a mitificação
como inerente a toda a cultura humana e aos rituais rotineiros.
Figura 2 – Imagem retirada do livro Maus: a história de um sobrevivente (2009, p. 171)
Como é possível observar no quadrinho acima, Spiegelman, a partir da representação
de povos como animais, inscreve também sua história na narrativa do social, do
compartilhado, retirando do pessoal sua figura e a de seu entorno. Os judeus são
representados como ratos, os alemães como gatos e nessa relação, os personagens perdem sua
pessoalidade para pôr em evidência a relação destes grupos com o fato. Para o Joseph
4 “Quando a história está em sua mente, então você vê a sua relevância para algo acontecendo em sua própria
vida. Isso lhe dá perspectiva sobre o que está acontecendo com você. (...) Estes “pedaços” de informação
advindos de tempos ancestrais, os quais têm a ver com os temas que têm dado base a vida humana, construído
civilizações e informado religiões ao longo dos milênios, têm a ver com problemas internos profundos, mistérios
profundos, profundos limiares vida, e se você não sabe quais as pistas estão ao longo do caminho, você tem que
descobrir por si.” (CAMPBELL, 1991, p.10, tradução nossa)
9
Campbell, nos dias de hoje temos sofrido com uma ausência de mitificações o que deixa o
indivíduo desprotegido para lidar com seus medos. Dessa forma, entende-se a mitificação
como uma importante ferramenta para minimizar os efeitos de uma realidade horrível.
Figura 3 – Imagem retirada do livro Maus: a história de um sobrevivente (2009, p. 174)
O personagem Art Spiegelman se questiona em várias passagens do texto se é possível
para ele ocupar o papel de narrador da obra, visto que não vivenciara o holocausto
diretamente. Os efeitos do holocausto são sentidos por ele na relação com os pais, e em seu
discurso torna-se claro que as desventuras que vivenciou em virtude do evento em nada se
comparam às vivenciadas diretamente por seu pai.
Figura 4 – Imagem retirada do livro Maus: a história de um sobrevivente (2009, p. 176)
10
Pelo exposto, entende-se que a obra se constitui como metaficção historiográfica e que
tal questionamento de legitimidade do narrar, estão de acordo com características intrínsecas
ao gênero como a autocrítica. Além da autoria e da legitimação do narrar, o fazer histórico e a
forma de expô-lo, que são marcas da metaficção historiográfica, são trabalhados no texto,
como é possível observar na passagem acima. Nela, o autor se personifica no narrador do
texto e divide suas inquietações com o leitor, questionando a veracidade das informações e até
mesmo a sua possível inabilidade de contar o fato, pois não o vivenciou, mas entrevistou e
conviveu com o seu pai que se torna fonte do seu relato.
Assim, a narração do holocausto é posta em xeque não apenas na figura deste
narrador, mas de quaisquer autores que entrem neste empreendimento. O evento marcado pela
morte, pode ser narrado por sobreviventes? Se assim não o for, não há legitimidade nestas
narrativas, pois os mortos não têm mais voz e foram os que sofreram o holocausto até as
últimas consequências e perderam sua vida neste episódio.
Figura 5 – Imagem retirada do livro Maus: a história de um sobrevivente (2009, p. 205)
Como visto, Art não se considera apto e até pensa em finalizar o seu relato, mas a
pergunta que se coloca é a de quem de fato tem o direito de narrar os fatos, se estes fatos
precisam ser narrados e, em caso afirmativo, quem tem o direito de fazê-lo. A questão do
“esquecer” está ligada à incapacidade de reviver o fato e o ocorrido, em dar voz a quem
realmente sofreu com o evento da morte. Como já visto por Bauman (2008), a morte é o
evento sem futuro, sem após. Ainda assim, no livro Modernidade e holocausto (1998), ele
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acentua a importância das narrativas sobre o episódio para que consigamos lidar com nossa
humanidade e que, a partir desse entendimento, consigamos caminhar com e através do fato.
Grande parte das lembranças dos porta vozes do holocausto se dá por vozes que não
morreram, mas vivenciaram o terror e se motivam pela esperança da não repetição do fato,
vozes que convivem com a morte vinda do passado e que em muitos casos se preocupam com
o futuro.
Esse mundo que persistirá depois do termino da vida de alguém será
habitado por outras pessoas. E aquela que causou o impacto não estará entre
seus habitantes, mas as outras que lá estarão vão vivenciar o impacto daquela
vida que chegou ao fim –e, ao que se espera o reconhecerão (BAUMAN,
2008, p.50)
Bauman demostra que a necessidade de se permear no mundo é inata ao indivíduo. Já
que o evento da morte é inevitável, talvez consigamos projetar a nossa sombra nas gerações
futuras. O ditado popular “tenha um filho, plante uma árvore ou escreva um livro” é prova de
que a necessidade de permanecer e não ter nossas existências apagadas é comum a todos os
sujeitos. Na passagem acima, temos essa preparação para reconhecimento póstumo negado a
alguns indivíduos. Para os que morreram o final da existência torna-se apenas um número no
evento do holocausto, ainda que este impacto seja sentido e referenciado pelos seus
descendentes.
Figura 6 – Imagem retirada do livro Maus: a história de um sobrevivente (2009, p. 137)
12
O fazer histórico colocado na obra e evidenciado no quadrinho acima, cria uma
relação com o leitor na busca da verdade dos fatos, uma verdade definida e ao mesmo tempo
inexistente. O personagem Art começa anotando e traz para o recolhimento dos dados, por
fim, um gravador. As cenas de recolhimento de dados e relatos cotidianos fazem parte da
história e não apenas trazem verossimilhança ao leitor, mas acrescentam ao relato a
subjetividade de Art e seu pai como constituintes do relato.
[...] a subjetividade é histórica e, se acreditarmos possível tornar a captá-la
em uma narração, é seu diferencial que vale. Uma utopia revolucionária
carregada de ideias recebe um tratamento injusto se é apresentada só ou
fundamentalmente como drama pós-moderno dos seus partidários. (SARLO,
2007, p.66)
Esse cuidado nos leva ao encontro da concepção de história de Sarlo já que não há
como narrar sem marcar a subjetividade, ela é parte integrante do relato. Spiegelman se vale
dessas cenas para introduzir ao leitor o contexto de aquisição do relato, recorte narrativo dado
pelo seu pai e pela realidade na qual estava inserido e pelo narrador que remonta o relato e os
transporta para os quadrinhos.
Figura 7 – Imagem retirada do livro Maus: a história de um sobrevivente (2009, p. 134)
A questão do apagamento e do não acesso a informação é mostrado na obra pela não
possibilidade de acesso à memória da mãe, em vários pontos o protagonista procura um diário
onde supostamente sua mãe teria relato sua história. Pode-se entender o uso do adjetivo
equilibrado no quadrinho acima como a necessidade de ver a cena através de outros pontos de
vista, trazendo ao relato um panorama mais amplo que o corte feito por seu pai.
13
[é] um sujeito ferido, não porque pretende ocupar vicariamente lugar dos
mortos, mas porque sabe de antemão que esse lugar não lhe corresponde.
Então falará transmitindo uma “matéria-prima”, pois quem deveria ter sido o
sujeito em primeira pessoa do testemunho está ausente, é um morto do qual
não existe representação vicária (SARLO, 2007, p.34)
A mãe de Spiegelman morreu em virtude do holocausto e embora não tenha morrido
nele, as marcas do evento e as mortes de seus parentes a levaram ao suicídio. As marcas das
vidas perdidas se sentem nesse ato final de dar fim a existência e acabam sendo carregadas
pelo próprio autor.
Figura 8 – Imagem retirada do livro Maus: a história de um sobrevivente (2009, p. 105)
No quadrinho acima temos uma história anterior de Spiegelman nominado Prisioneiro
do planeta inferno: história de um caso, o quadrinho é anexado a Maus e faz parte da
narrativa, pois se enlaça a história, nele podemos ver que o personagem culpa a mãe pelo
suicídio, o deixando como portador das feridas do holocausto e endossando o sofrimento com
mais uma morte. A tarefa que será empreendida na feitura deste quadrinho, que é anterior a
criação de Maus, se atém mais ao “esquecer” do que ao “lembrar”. Ainda que muitos dos
parágrafos acima pontuem os problemas do narrar, Anja, a mãe de Spiegelman, deixa um
presente para o filho e esse presente é a própria história.
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Figura 9 – Imagem retirada do livro Maus: a história de um sobrevivente (2009, p. 161)
A personagem deixa afinal seu produto póstumo para ser lembrada, sua visão do
holocausto é confiada ao seu filho herdeiro. O produto posto é tão importante que ainda que
não lembre o conteúdo Vladek, pai de Art, lembra que ele deveria ter pertencido a seu filho.
“O sujeito não só tem experiências como pode comunica-las, construir seu sentido e, ao fazê-
lo afirmar-se como sujeito” (SARLO, 2007,p.39). Ao deixar suas lembranças escritas e
endereçadas ao filho, Anja se inscreva como sujeito, essa atitude se inscreve no sentido de não
deixar que sua história morra consigo e ainda que a mesma dê fim a sua existência, não o faz
antes de dar vida a suas memórias, pois é a partir de seu relato que sua vida causará impacto,
se não no mundo ao menos na vida de seu filho.
Figura 10 – Imagem retirada do livro Maus: a história de um sobrevivente (2009, p. 161)
No quadrinho acima temos claramente o indivíduo perpassado pela dicotomia
“lembrar” e “esquecer”. Vladek empenha-se com o filho em lembrar do relato, mas a
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inexistência da narrativa de sua mulher fora ocasionada por ele mesmo a algum tempo para
esquecê-la. As lembranças não podem ser destruídas, nem suas cicatrizes, mas uma prova
física pode. O ato de destruição do diário é uma tentativa de superação do passado através do
esquecimento. Sarlo (2007) aborda várias catástrofes dentre elas o holocausto e pontua a
dificuldade da narração precisamente pela vontade de não reviver lembranças que fazem o
narrador sofrer.
Figura 11 – Imagem retirada do livro Maus: a história de um sobrevivente (2009, p. 63)
As lembranças de Vladeck vão de encontro ao medo da morte. Para Campbell (1991),
os mitos começam a ser criados quando os humanos primitivos se dão conta de que o ser que
morreu não mais está entre eles. Rituais, como o enterro, ajudam o sujeito a lidar com essa
situação e aceita-la. A vivência de uma realidade para qual os indivíduos não estavam
preparados levam o indivíduo ao medo. Bauman (2006) afirma que não temos medo do
escuro, mas sim do desconhecido. A mudança inesperada de realidade social faz com que as
vítimas do holocausto vejam o medo da morte de maneira nua e primal. Para os que
persistem, continua o embate entre a necessidade intrínseca de narrar e a vontade de esquecer.
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Considerações finais
Antes de se criar fundamentos e disciplinas que encerram conceitos como os de
literatura e história, as micro-histórias e os relatos de sobrevivência constituem um acervo que
não deve ser ignorado. A literatura sob esse viés, assume o papel ficcional da história e o
utiliza a seu favor para enaltecer a subjetividade do indivíduo. Se o sistema de signos é a
representação gráfica ou sonora do real, a literatura representa a representação - Aristóteles
assim pontua sua mimese. A abstração na obra é também uma ferramenta para lidar com o
fato, “a memória, como se disse, ‘coloniza o passado e o organiza na base de concepções do
presente’”(SARLO, 2007, p.66) (aspas do autor). Spiegelman percebendo a organização da
memória, convida o leitor a questioná-la, a interpelar o factual e a abraçar as lacunas
pertencentes a ele como partes desse mosaico incompleto. “Esquecer” e “lembrar” fazem
parte do relato em uma sociedade marcada por indivíduos perecíveis e por um evento que
acentua essa característica.
Somos seres que se distinguem de outros animais pela comunicação. Pode-se dizer que
a narrativa faz parte da essência humana e contribui para a inserção do ser na sociedade.
Assim, a obra Maus questiona a assertiva primal no âmbito da supremacia do “lembrar” e do
narrar descortinando-a sob as cinzas do holocausto. O embate entre o fluxo natural da
narrativa e reviver o horror do holocausto tomam fins opostos ainda que perpassem os
indivíduos em conjunto. O tamanho do trauma e a vontade de “esquecer” é subjetiva e
relegada ao indivíduo, porém é necessário estabelecer esses processos como interdependentes,
principalmente frente à experiência do medo.
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Referências
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2007.
SPIEGELMAN, ART. Maus: a história de um sobrevivente. Ilustrações do autor; Tradução
de Antonio de Macedo Soares. São Paulo: Companhia das letras, 2009.