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O PARADOXO DA DECISÃO E A FUNÇÃO DOS TRIBUNAIS BRASILEIROS NA
CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE: OBSERVAÇÕES A PARTIR DA
PERSPECTIVA TEÓRICO-SISTÊMICA DE NIKLAS LUHMANN
THE PARADOX OF DECISION AND THE ROLE OF BRAZILIAN TRIBUNALS AT
THE REALIZATION OF THE RIGHT TO HEALTH: OBSERVATIONS FROM
NIKLAS LUHMANN’S SYSTEMS THEORY PERSPECTIVE
Rodolfo Soares Ribeiro Lopes
RESUMO: O objeto da pesquisa foi a concessão de medicamentos pelo Judiciário, visando a
observar como vem sendo produzido o sentido jurídico de saúde e quais os reflexos nos
tribunais brasileiros. O corpus da pesquisa consistiu na íntegra de decisões jurídicas coletadas
nos sites do Supremo Tribunal Federal (STF), do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do
Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) e na 7ª Vara da Fazenda Pública no Fórum do
Recife, que versassem sobre a questão da concessão de medicamentos, analisando-as a partir
da teoria dos sistemas de sentido de Niklas Luhmann. O resultado, ainda que parcial, é que
não existe um sentido único e padronizado do que seja a concessão de medicamentos, mas
apenas uma dentre várias outras possibilidades, fato que, ao invés de inviabilizar a
comunicação, permite que ela continue.
PALAVRAS-CHAVE: DIREITO; SOCIEDADE; DECISÃO JURÍDICA; TEORIA DOS
SISTEMAS; MEDICAMENTOS.
ABSTRACT: The object of research was the concession of medicines by the Judiciary,
aiming to observe how the juridical meaning of health, as well as its consequences, is being
produced in the courts. In order to accomplish these objectives, we collected decisions at
websites of brazilian judiciary organs – STF, STJ, TJ-PE – and in Recife’s Forum, that dealt
with the matter of the concession of medicines, analyzing them considering Niklas
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 3140
Luhmann’s systems theory perspective. The result, even if yet partial, is that we don’t have a
pattern related to concession of medicines, but only one between multiple possibilities, a fact
that, instead of making communication impracticable, allows it to continue.
KEYWORDS: LAW; SOCIETY; JURIDICAL DECISION; SISTEMS THEORY;
MEDICINES.
INTRODUÇÃO
O direito à saúde é garantia fundamental para a existência do indivíduo, a ser
implementada mediante políticas sociais e econômicas, constando expressamente na
Constituição de 1988, mais especificamente do artigo 197 ao 200. Ademais, como todo direito
fundamental, tanto sua implementação quanto sua eficácia envolvem diversos fatores. Com o
objetivo de pesquisar de maneira mais aprofundada a concessão de medicamentos,
promovemos pesquisa bibliográfica sobre o tema, bem como sobre o marco teórico: a teoria
dos sistemas de sentido de Niklas Luhmann.
A fim de obter as decisões jurídicas que compõem o corpus da pesquisa, coletamos
os dados nos sites do Supremo Tribunal Federal (STF), do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
e do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE). No primeiro, a pesquisa do termo
“medicamentos” trouxe 65 ocorrências; no segundo, 531; no último, por fim, 223 resultados.
A vasta quantidade de material disponível demandou, por conseguinte, a seleção de algumas
decisões jurídicas, a fim de tornar viável a análise. Ademais, algumas visitas à 7ª Vara da
Fazenda Pública, no Fórum do Recife, foram realizadas, oportunidades nas quais pudemos
obter outras 32 decisões jurídicas relativas à mesma temática com a ajuda do juiz de Direito
José Viana Ulisses Filho e seus estagiários.
O critério de escolha adotado foi temporal, em que foram privilegiadas as decisões
mais recentes, tanto de posicionamento contrário, quanto favorável à concessão de
medicamentos, visto que o material é extremamente vasto. De modo que o estudo das
decisões se tornasse viável, procedemos à seleção de 15 decisões no total (RE-AgRg nº
393175-0/RS; RE-AgRg nº 271286-8/RS; STA 91-1/AL; RMS nº 28338/MG; RMS nº
20335/PR; RMS nº 17903/MG; MS nº 0144946-1/PE; MS nº 0177024-1/PE; MS nº 145961-
2/PE; PROCESSO nº 001.2008.008162-3/PE; PROCESSO n° 001.2007.043312-8/PE;
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 3141
PROCESSO n° 001.2006.039943-1/PE; PROCESSO n° 001.2008.031138-6/PE; PROCESSO
nº 001.2008.044972-8/PE; PROCESSO nº 001.2007.071513-1/PE), incluindo decisões do
Supremo Tribunal Federal (STF), do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do Tribunal de
Justiça de Pernambuco (TJ-PE) e da 7ª Vara da Fazenda Pública do Fórum de Recife, desde o
ano 2000 até 2009.
Em relação às decisões, pesquisamos especificamente os votos dos respectivos
ministros, desembargadores e juízes, a fim de observar a produção de sentido de saúde em
decisões sobre a concessão de medicamentos. Assim, visamos a frisar que a construção da
semântica contemporânea referente à concessão de medicamentos permanece sendo resultado
da seleção de uma entre várias outras possibilidades que permanecem acessíveis
(LUHMANN, 2002, p. 83).
O artigo está estruturado de forma que iniciamos abordando o direito à saúde como
direito fundamental, bem como tratamos de sua eficácia. Em seguida, apresentamos o marco
teórico que guiou nossas observações dos dados para, por fim, tratarmos da pesquisa empírica
e procedermos à análise dos dados coletados, finalizando com as devidas conclusões.
1. ASPECTOS GERAIS CONCERNENTES AO DIREITO À SAÚDE
A proteção ao direito à saúde, no atual patamar, compõe-se não apenas de uma
simples dimensão “curativa” – relacionada à eliminação dos mais variados males que afligiam
os seres humanos de sociedades primitivas –, mas também por um aspecto “preventivo”, que
passa a tomar corpo com o advento do welfare state (SCHWARTZ, 2001, p. 34). Mais tarde,
a partir do período posterior à Segunda Guerra Mundial, surge, ainda, um aspecto de
“promoção” do direito à saúde, consubstanciado no preâmbulo da Constituição da
Organização Mundial de Saúde (OMS), que entende a saúde como o completo bem-estar
físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças (SCHWARTZ, 2001, p. 35).
Ademais, o direito à saúde, pelo fato de ser enquadrado na categoria dos direitos que
tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais (DA SILVA, 2008, p. 286) e por
relacionar-se intrinsecamente a outras garantias fundamentais, a exemplo do direito à vida
(art. 5º, caput, da CF/88) e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), não deve
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 3142
ser relegado ao arbítrio de posterior e incerta concretização, pelo simples motivo de ser norma
programática. Ao contrário, o Estado deve implementar as prestações positivas necessárias, de
cujo cumprimento depende a sua adequada efetivação (DA SILVA, 2008, p. 309, 465 e 831),
visto que a Constituição de 1988 é caracteristicamente uma Constituição dirigente,
vinculando, portanto, legislador, poder público, juízes e tribunais.
A fim de viabilizar a concretização do direito fundamental à saúde, a Constituição de
1988 prevê a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios para cuidar da saúde e assistência pública (art. 23, II), assim como compete à
União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre proteção e defesa da
saúde (art. 24, XII). Cabe, ainda, ao Poder Público dispor sobre sua regulamentação,
fiscalização e controle, de acordo com o expresso em seu artigo 197.
Apesar da significativa importância representada pelo direito à saúde no cenário
nacional, é patente a insuficiência de pesquisas substanciais a respeito do tema. Muitas delas
limitam-se a reconhecer dogmaticamente a proteção constitucional conferida à saúde, sem
quaisquer correlações com a realidade social do país, desprovidas, ademais, de análises
teóricas sérias. A própria expressão “judicialização da política” ou “ativismo judicial” –
largamente utilizada nos textos acadêmicos – carece de delimitações mais sólidas, o que
termina por levar a análises simplistas e sem profundidade.
Em face das insuficiências encontradas na literatura jurídica, a teoria dos sistemas de
sentido de Niklas Luhmann veio a calhar como importante aparato teórico para o
empreendimento de uma pesquisa consistente sobre a o direito à saúde e a concessão de
medicamentos pelo Judiciário, de maneira específica. Percebe-se, por conseguinte, a
relevância do estudo e a inovação trazida pela análise de decisões jurídicas a partir do enfoque
da semântica social, proporcionado pela teoria dos sistemas de sentido, uma vez que,
atualmente, são bastante escassas as pesquisas desse tipo.
2. BREVES NOÇÕES ACERCA DA TEORIA DOS SISTEMAS DE SENTIDO DE
NIKLAS LUHMANN
Nesse ínterim, uma vez expostas as noções gerais do direito à saúde, cumpre, então,
realizar breve introdução do marco teórico adotado. De acordo com Niklas Luhmann, a
comunicação é a operação fundamental para a constituição dos sistemas (LUHMANN, 1997,
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 3143
p. 13), e não tem nenhum fim, apenas acontece ou não (LUHMANN, 2002, p. 161). Ademais,
a comunicação é a síntese de três seleções, a saber: informação (Information), dá-la-a-
conhecer (Mitteilung) e entendimento (Verstehen) (LUHMANN, 1997, p. 196, 210, 227, 228
e 229), este último, o pressuposto para aceitar ou rejeitar uma comunicação. Importante,
ainda, observar que nenhuma dessas três seleções pode aparecer por si mesma, apenas juntas
podem gerar comunicação, o que implica dizer que apenas quando uma diferença entre
informação e dá-la-a-conhecer é compreendida – distinguindo-se, portanto, de uma mera
percepção do comportamento do outro – ocorre a comunicação (LUHMANN, 2002, p. 157).
Conforme mencionado, o sistema compõe-se de comunicações. Somente se pode,
contudo, relacionar as comunicações ao sistema mediante o sentido, uma vez que não há
comunicação fora dos sistemas sociais, considerando que esta é a única operação
genuinamente social e a menor unidade possível dos sistemas sociais (LUHMANN, 1997, 81
e 82). O meio do sentido como produto das operações que o empregam para viabilizar a
reprodução dos sistemas, assim como a sua própria delimitação frente ao ambiente
(LUHMANN, 1997, p. 44 e 45), tem importantes consequências para a relação entre sistema e
entorno, já que os limites daquele frente a este são limites de sentido, autorreferencialmente
produzidos. Assim, a forma do sentido é uma forma de dois lados (Zwei-Seiten-Form), na
qual ambos os lados estão dados simultaneamente, mas um em modalidade atualizada e o
outro em modalidade potenciada (LUHMANN, 1997, p. 142). Percebe-se, então, a mobilidade
do sentido como algo que se constitui na oscilação do caso individual para a estrutura e desta
para aquele por meio de confirmações e condensações, inexistindo, assim, pontos fixos de
sentido (CLAM, 2006, p. 112).
Ademais, o sentido é reprodução da complexidade do sistema (LUHMANN, 1998, p.
79), esta última caracterizada pelo fato de sempre existirem mais possibilidades do que se
pode realizar (LUHMANN, 1983, p. 45), representando, portanto, uma coação de seleção
imposta ao sistema, o que implica, por sua vez, contingência (LUHMANN, 1998, p. 48).
Contingência, em linhas gerais, carrega a ideia de que as possibilidades apontadas para as
demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas, o que significa perigo de
desapontamentos do sistema e necessidade de assumirem-se riscos (LUHMANN, 1983, p. 45
e 46).
O papel do sentido, no que se refere à garantia contra desapontamentos, é
fundamental, uma vez que obriga a uma seleção de uma entre várias outras possibilidades
(LUHMANN, 2002, p. 83), ou seja, o lado da forma não utilizado pelas operações atuais é
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também considerado na produção de sentido. Essa distinção entre atual e possível é uma
forma que é novamente introduzida nela mesma, a fim de que o sistema torne-se apto a
continuar operações atuais, apesar da crescente mudança de intenções, usos e impressões
(LUHMANN, 2002, p. 83). O que aqui se busca descrever como “forma” tem seu oposto
conhecido por “meio”, ambos representando uma distinção interna utilizada pelo sistema para
observar as possibilidades de seleção de sentido (LUHMANN, 2002, p. 84). A distinção
meio/forma refere-se a como os elementos do sistema estão acoplados, seja de maneira
frouxa, no primeiro caso, ou firme, no segundo (LUHMANN, 1997, p. 196). Cumpre salientar
que ambos se dão simultaneamente e pressupõem-se – sem meio não há forma e vice-versa –,
implicando um processo temporal, que serve tanto para continuar a autopoiesis, quanto para
formar e mudar as estruturas necessárias a ela (LUHMANN, 1997, p. 199).
O paradoxo das operações atuais enquanto operações possíveis, por conseguinte, é a
condição de possibilidade da reprodução do sistema, uma vez que sua autopoiesis requer
contínua atualização de diferentes possibilidades. (LUHMANN, 2002, p. 84). Portanto, não
há um único sentido, fixo, estável, mas vários, fato que, ao contrário do que se possa pensar,
não inviabiliza a comunicação, mas a torna possível. A própria operação que (re)produz o
sentido é caracteristicamente histórica (LUHMANN, 1997, p. 47), viabilizando a
indeterminação de formas futuras, o que garante a diferença entre atualidade e possibilidade,
isto é, o sentido utilizado atualmente pode tornar-se possível, do mesmo modo que o possível
pode atualizar-se (LUHMANN, 1997, p. 50).
É importante notar, em relação à situação do indivíduo, que a teoria dos sistemas de
sentido entende o conceito de ser humano como um “obstáculo epistemológico”
(LUHMANN, 1997, p. 24), impedindo uma análise científica adequada e promovendo
expectativas impossíveis de serem satisfeitas. Por esse motivo, rejeita o apego humanístico de
sociedade e considera que somente a comunicação, como uma síntese de três diferentes
seleções (informação, dá-la-a-conhecer e (in)compreensão), é capaz de comunicar
(LUHMANN, 2002, p. 156 e 157). Assim, pode-se inferir que a reprodução da comunicação
mediante comunicação acontece na própria sociedade e que todas as outras condições
(mentais, psíquicas, neurofisiológicas, etc.) são condições do entorno, o que não quer dizer –
absolutamente – que a comunicação seja possível sem que haja consciência e cérebros
(LUHMANN, 1997, p. 14). Como conseqüência, tanto os sistemas psíquicos quanto os
comunicativos são estruturalmente determinados e realizam sua reprodução de acordo com as
suas próprias operações (LUHMANN, 2002, p. 171).
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Nesse contexto, o direito é um dos subsistemas da sociedade que contém
expectativas comportamentais generalizadas congruentemente (LUHMANN, 1983, p. 115). A
fim de lidar com a complexidade e a contingência, o direito desenvolve uma estrutura, que,
basicamente, é responsável por restringir o âmbito da possibilidade de opções, ou seja,
delimita o optável (LUHMANN, 1983, p. 53 e 54). Em virtude de existirem mais
possibilidades do que se pode selecionar, as estruturas são obrigadas a tratar do problema dos
desapontamentos, a frustração de expectativas. Visto que a crescente complexidade e
contingência poderiam conduzir a um nível insuportável de tensões, as estruturas dispõem
tanto de expectativas cognitivas, caracterizada por uma disposição ao aprendizado, uma
adaptação à realidade decepcionante, quanto de expectativas normativas, que não devem ser
abandonadas, caso ocorra sua transgressão (LUHMANN, 1983, p. 55 e 56). Percebe-se, por
conseguinte, que as normas são expectativas de comportamento estabilizadas em termos
contrafáticos. (LUHMANN, 1983, p. 57). Assim, o direito funciona conferindo uma espécie
de alívio às expectativas, já que oferece opções congruentemente generalizadas, através de
uma indiferença em relação às outras possibilidades, reduzindo consideravelmente, portanto,
o risco da expectativa contrafática (LUHMANN, 1983, p. 115).
A própria complexidade que caracteriza o direito, por conseguinte, é responsável por
limitar a possibilidade de escolha, reduzindo complexidade (LOSANO, 2002, p. 323),
consideravelmente maior no entorno. O sistema, então, apesar de autopoiético e
autorreferencialmente constituído, não é fechado, mantém contato com o entorno. A própria
diferenciação do sistema aumenta, ao mesmo tempo, a dependência e a independência do
entorno (CAMPILONGO, 2002, p. 86). O direito, especificamente, não pode separar-se do
ambiente, como se fosse um sistema normativo auto-suficiente de maneira completa
(ZAGREBELSKY, 2008, p. 138). Desse modo, os elementos que definem o interior do
sistema têm a função de selecionar os elementos do entorno a serem processados
interiormente por meio do código binário próprio ao sistema, isto é, atuam na redução de
complexidade do ambiente e apenas servem no interior do sistema (LOSANO, 2002, p. 328;
LUHMANN, 2004, p. 60).
Percebe-se, portanto, que ao sistema são constantemente oferecidas alternativas às
quais ele reage por meio de uma decisão, que estabelece o que é direito e o que não é. A
incapacidade de decidir inerente ao direito, já que não pode autolegitimar seus próprios
valores e critérios utilizados nas situações em que ele decide, é superada pela decisão, que
acaba com a falta de decisão (CLAM, 2006, p. 106). Por conseguinte, a decisão não é algo
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como uma alternativa que se pode escolher, mas sem alternativa não haveria decisão; esta é,
assim, a inclusão do terceiro excluído. (FISCHER-LESCANO, 2005, p. 220). Importante
salientar, entretanto, que a decisão não exclui as outras possibilidades de escolha, que
permanecem acessíveis como horizonte de possibilidades (FISCHER-LESCANO, 2005, p.
234).
No que se refere às relações com o entorno e outros subsistemas, vale frisar, para os
objetivos desse trabalho, uma em especial: as existentes entre o direito e a política e por meio
de que mecanismos ela ocorre. Os sistemas são operativamente fechados, o que não significa,
entretanto, solipsismo, mas apenas que as operações próprias se possibilitam recursivamente
pelos resultados das próprias operações (LUHMANN, 1997, p. 94; LUHMANN, 1995, p.
440). A unidade do sistema, portanto, somente pode ser obtida através das próprias operações
do sistema, fato que inviabiliza a comunicação com o entorno utilizando-se das próprias
operações (LUHMANN, 1995, p. 440). O mecanismo adequado para o estabelecimento de
relações com o entorno é , então, o acoplamento estrutural, que pressupõe que ambos os
sistemas acoplados sejam capazes de guiar suas operações de acordo com suas próprias
estruturas (LUHMANN, 1997, p. 100; LUHMANN, 1995, p. 436). Lançando mão dessa
ferramenta de redução de complexidade, os sistemas conseguem alçar-se a condições
altamente complexas do entorno sem necessidade de absorver ou reconstruir sua própria
complexidade, o que significa redução de complexidade como condição necessária para
construir complexidade (LUHMANN, 1997, p. 107; LUHMANN, 1995, p. 441). O código
binário lícito/ilícito utilizado pelo direito, por exemplo, passa a ser relevante como segundo
código no interior do sistema político, viabilizando sua autonomização (NEVES, 2006, p. 89).
Os acoplamentos estruturais provocam “irritações” em ambos os sistemas, ou seja,
são uma forma de percepção interior do sistema, que não encontra correlato no entorno e
apenas podem ser percebidas ao nível da observação de segundo grau (LUHMANN, 1995, p.
443), necessitando, ainda, de uma preparação interna indispensável para reagir a elas. Os
sistemas acoplados, por sua vez, assim como operam em diferentes velocidades, também
reagem às “irritações” em tempos diversos; portanto, a sincronia existente entre sistema e
ambiente só ocorre pontualmente, em um determinado momento, o que não implica
sincronização (LUHMANN, 1995, p. 443). Assim, não importa o quanto possa crescer a
complexidade, as influências do entorno podem apenas “irritar” o sistema jurídico, nunca
participar diretamente no seu interior (LUHMANN, 1995, p. 445), uma vez que as
“irritações” se dão internamente, de acordo com as estruturas próprias de cada sistema
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(CAMPILONGO, 2002, p. 95). O que ocorre é que a complexidade de um sistema é
desordem do outro, surgindo uma necessidade recíproca de seleção ou de reestruturação da
complexidade penetrante (NEVES, 2006, p. 92).
A forma encontrada para garantir o acoplamento estrutural entre direito e política foi
a Constituição (LUHMANN, 1995, p. 470), responsável por restringir as influências
recíprocas entre os dois sistemas e, ao mesmo tempo, por aumentar as possibilidades desse
acoplamento, uma vez que o sistema pressupõe as particularidades do entorno no plano de
suas próprias estruturas (NEVES, 2006, p. 97). Importante mencionar que o acoplamento
estrutural apresenta-se de diferentes formas e tem variadas consequências, de acordo com o
sistema que o acessa, de modo que se pode dizer que a Constituição fornece soluções políticas
para o problema da autorreferência do sistema jurídico e soluções jurídicas para o problema
da autorreferência do sistema político (LUHMANN, 1995, p. 478; NEVES, 2006, 98). Assim,
a Constituição exclui as ingerências da política no direito não mediadas por mecanismos
jurídicos e vice-versa, da mesma forma que impede um valor imediato de outros critérios de
natureza valorativa e moral, por exemplo, dentro do sistema jurídico (NEVES, 2006, p. 98 e
99). No caso dos direitos fundamentais – e do direito à saúde, mais especificamente –, a
Constituição os institucionaliza visando a evitar o “perigo da indiferenciação” e de uma
“simplificação totalitária” (NEVES, 2006, p. 102 e 103), assegurando, então, uma ordem
diferenciada de comunicação. Por fim, a ausência de transparência mútua entre os sistemas
acoplados é condição necessária ao reforço das mútuas irritações do acoplamento estrutural;
somente indiferença de ambos os sistemas em relação ao outro torna possível o crescimento
de uma específica dependência recíproca (LUHMANN, 1995, p. 480; LUHMANN, 1997, p.
106).
3. SOBRE A INEFICIENTE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE
Conforme expresso anteriormente, o direito à saúde adquiriu proteção constitucional
e, graças ao seu caráter programático, demanda posterior concretização na realidade social,
sob o risco de desrespeito à exigência constitucional. O direito, enquanto estrutura, é
mecanismo fundamental para lidar com as expectativas recíprocas existentes em sociedade,
tendo por função a generalização de expectativas comportamentais normativas (LUHMANN,
1983, p. 170). Importante salientar que a estrutura do direito se modifica de acordo com a
evolução da complexidade social, não se podendo considerar o direito como um fenômeno
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 3148
apartado da sociedade, fechado em si mesmo, mas em constante interação com esta e com os
outros subsistemas. Desse modo, a complexidade e a contingência são responsáveis por
orientar as pressões por mudança nas estruturas da sociedade e do direito (LUHMANN, 1983,
p. 172).
Em virtude da presença de inúmeros interesses antagônicos na sociedade, a
institucionalização dos direitos fundamentais – a exemplo da saúde – serve à viabilização do
desenvolvimento de comunicações, operações fundamentais para a constituição dos sistemas
(LUHMANN, 1997, p. 13) em diversos níveis diferenciados, a fim de evitar concepções
totalitárias que não consideram a pluralidade e a contingência de expectativas, levando a uma
indiferenciação inadequada à complexidade da sociedade contemporânea (NEVES, 2007, p.
75). Nesse aspecto, cabe considerar que a construção da semântica referente à concessão de
medicamentos é resultado da seleção de uma entre várias outras possibilidades (LUHMANN,
2002, p. 83), restando possíveis outras possibilidades latentes que permanecem à disposição
do sistema: não há um único sentido, fixo, estável, referente à concessão de medicamentos,
mas vários, fato que, ao contrário do que se possa pensar, não inviabiliza a comunicação, mas
a torna possível.
Grandes discussões foram suscitadas na jurisprudência a respeito da obrigatoriedade
de União, Estados e Municípios fornecerem medicamentos gratuitamente para indivíduos sem
condições materiais de os adquirirem, assim como das responsabilidades concorrentes dos
entes públicos no desenvolvimento de tal obrigação. A principal problematização é se o
Judiciário, ao posicionar-se a favor da concessão de medicamentos, estaria substituindo o
Poder Público em atribuições típicas da Administração, invadindo sua esfera de
discricionariedade no que diz respeito à alocação de recursos aos diversos âmbitos
governamentais, de acordo com as necessidades consideradas prioritárias.
Conforme visto anteriormente, os subsistemas direito e política funcionam de acordo
com critérios temporais diferentes (LUHMANN, 1995, p. 443), ocorrendo uma sincronia
temporária apenas no momento do acoplamento estrutural entre os sistemas, que,
posteriormente, processarão as informações de acordo com seus diferentes tempos. A
desarmonia existente entre os critérios temporais de ambos parece ser um dos principais
fatores responsáveis por ocasionar o descompasso entre a observação às normas jurídicas e à
implementação de políticas públicas. O sistema jurídico, como se percebe, é
consideravelmente mais lento do que o sistema político (LUHMANN, 1995, p. 427). Por sua
vez, a legislação, situada na periferia do sistema jurídico, é mais constantemente exposta a
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“irritações” de vários outros subsistemas, devendo processá-las ou não em normas jurídicas de
modo mais rápido (LUHMANN, 1995, p. 321 e 322), principalmente no contexto de uma
sociedade extremamente complexa com interesses de inúmeros grupos divergentes em
conflito, o que confere um caráter instável à lei (ZAGREBELSKY, 2008, p. 38). Assim, a
periferia opera em um nível de complexidade mais elevado do que o centro – que opera em
um grau significativamente acentuado de isolamento cognitivo –, e poucas das comunicações
que ocorrem naquela chegam a este, que correria o risco de restar desconfigurado
(LUHMANN, 1995, p. 322; CAMPILONGO, 2002, p. 84) caso não existisse um mecanismo
seletivo de autocontrole.
Em linhas gerais, alegam os que são contra a interferência do Judiciário, alguns dos
medicamentos seriam de alto custo, não teriam eficácia comprovada pelos agentes do SUS e
não estariam previstos no rol de medicamentos que o SUS seria responsável por fornecer,
desconsiderando, por conseguinte, a própria previsão orçamentária. Por outro lado, frente à
omissão de União, Estados e Municípios, com base na previsão constitucional e em farta
jurisprudência consolida nessa direção, o Poder Judiciário entende ser possível proceder à
concessão de medicamentos e suprir a inércia do Poder Público.
Contudo, apesar da veiculação de uma suposta jurisprudência “consolidada”,
“assentada” e “pacífica”, é preciso salientar que ainda há entendimentos de Ministros no
sentido contrário, da não concessão de medicamentos. Portanto, uma das problematizações da
análise por ora desenvolvida é mostrar que a expressão “concessão de medicamentos” não
carrega um único significado, mas vários, construídos constantemente na prática desenvolvida
pelos Ministros nos Tribunais Superiores. Para tanto, necessário analisar mais detalhadamente
a posição ocupada pelos tribunais, assim como sua importância, no âmbito do sistema
jurídico.
4. A FUNÇÃO DOS TRIBUNAIS NA CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE: O
PARADOXO DA DECISÃO JURÍDICA
A diferenciação dos sistemas também requer diferenciações internas, desenvolvidas
ao mesmo tempo em que o sistema se desenvolve. No que se refere ao sistema jurídico,
existem diversos outros subsistemas no seu interior, distinguindo-se entre periferia – mais
exposta às zonas de contato com o entorno, sujeita a inúmeras e diversificadas “irritações” – e
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 3150
centro, no qual se localizam os tribunais, responsáveis por garantir a unidade do sistema
jurídico. Ou seja, visam a estabilizar expectativas contrafáticas e, assim, lidar com o paradoxo
da decisão (FISCHER-LESCANO, 2005a, p. 28). Contudo, vale frisar que a distinção
centro/periferia não se refere a qualquer diferença ou posição social, o que se busca é tornar
possível que a legislação possa complementar as decisões, da mesma forma que as decisões
possam tornar possível a legislação; o centro não pode operar sem a periferia e vice-versa
(LUHMANN, 1995, p. 323; LUHMANN, 2004, p. 37). O importante é assumir a relação
existente entre legislação e decisão jurídica de forma circular, como limitação mútua no
âmbito de decisões.
Quando, por longo tempo, a teoria do direito encarava essa relação como assimétrica,
visava a evitar assumir, sobretudo, que os tribunais “criam” direito, substituindo a referida
afirmação pela de que, através da “descoberta” da lei, ocorria sua mera “aplicação”
(LUHMANN, 1995, p. 306; LUHMANN, 2006, p. 50). Em outras palavras, buscava-se fugir
da função paradoxal dos tribunais: decidir. A decisão, assim, é a diferença que constitui
alternativa, ou seja, é a terceira opção excluída pelas duas alternativas dadas, a unidade da
diferença; as decisões apenas podem ser feitas se a indecisão for dada (LUHMANN, 1995, p.
308; LUHMANN, 2002, p. 133; FISCHER-LESCANO, 2005, p. 220). Ademais, o paradoxo
da decisão é como um observador, que não pode ser ele mesmo uma distinção com a ajuda da
qual define alguma coisa, mas tem que excluir a si próprio como um ponto cego da
observação, o que envolve tempo (LUHMANN, 1995, p. 308; LUHMANN, 2002, p. 133,
134, 135 e 136).
O recurso utilizado para viabilizar a unidade da diferença entre passado e futuro é,
então, o presente, que é o ponto cego do tempo. Devido a essa possibilidade, o sistema pode
utilizar o tempo como o momento para que a decisão ocorra, mudando o que não poderia ser
mudado de outra forma no passado e o que ainda pode ser alterado no futuro (LUHMANN,
1995, p. 308 e 309). Por conseguinte, pode-se notar que a decisão não é determinada pelo
passado, mas opera de acordo com suas próprias construções, que apenas são possíveis no
presente (LUHMANN, 1995, p. 309), fato que leva as Cortes a se precaverem contra
possíveis consequências trazidas pela decisão, mesmo que não sejam capazes de prevê-las
totalmente, já que outras decisões posteriormente irão interferir nas anteriores. Essa
incapacidade de lidar com o futuro, portanto, gera a ilusão de que as decisões devam ser
determinadas pelo passado (LUHMANN, 1995, p. 309).
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 3151
Os tribunais, como se percebe, desempenham importante papel na desparadoxização
do paradoxo, já que, de acordo com o princípio da proibição do non liquet, são forçados a
decidir os casos a eles submetidos – mesmo quando não podem decidir – e, assim,
obrigatoriamente lidam com a questão do paradoxo da unidade da multiplicidade da decisão
jurídica, transformando indeterminação em determinação através de distinções (LUHMANN,
1995, p. 310, 313, 314, 317; FISCHER-LESCANO, 2005a, p. 61). A importância da distinção
centro/periferia, já esboçada, reside no fato de que os tribunais ficam responsáveis por
garantir a consistência do sistema, sua unidade, enquanto a periferia fica exposta a variadas
pressões advindas do entorno, filtrando as que podem ser processadas de acordo com o código
jurídico e, assim, apreciadas pelos tribunais (FISCHER-LESCANO, 2005a, p. 61).
5. ANÁLISE DAS DECISÕES JURÍDICAS FRENTE À TEORIA DOS SISTEMAS
Proceder-se-á, então, à análise de algumas das decisões coletadas frente ao marco
teórico já esboçado anteriormente, uma vez que demasiada extensa seria a análise de cada
uma delas em detalhes. Entretanto, antes de analisarmos as decisões, cumpre-nos fazer
algumas observações a respeito de quatro gráficos por nós produzidos, que trazem dados mais
detalhados a respeito de cada uma delas, de acordo com o tribunal de origem, e um gráfico
referente à porcentagem das decisões que foram favoráveis ou contrárias à concessão de
medicamentos.
O primeiro deles refere-se às decisões do Supremo Tribunal Federal (STF),
respectivamente dos anos 2007, 2000 e 2006:
Tabela 1: Análise qualitativa das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF)
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 3152
STFQUANTO À
CONCESSÃO
ARGUMENTOS
UTILIZADOS
FUNDAMENTAÇÃO
LEGAL
JURISPRUDÊNCIA
CITADA
STA 91-1 Contrária parcialmente
Lesão à ordem pública em
termos de ordem
administrativa;
medicamentos cujo
fornecimento não está
previsto pelo SUS.
art. 4º da Lei nº
8437/92; art 1º da Lei
nº 9494/97; Lei nº
8080/90; Portaria nº
1318/MS; art. 23, II,
art. 196, art. 198, I da
CF/88
Rcl 475/DF; Rcl 497-
AgR/RS; SS 2187-
AgR/SC; SS 2465/SC
RE-AgRg nº
271286-8/RSFavorável
Obrigação de Estado e
Município fornecerem
medicamentos a pacientes
hipossuficientes; necessária
efetivação do dever
constitucional; respeito à
dignidade humana;
indisponibilidade e
essencialidade do direito
subjetivo à saúde;
impossibilidade de
transformar a norma
programática em promessa
inconsequente; obrigação
do Poder Público em
promover políticas
públicas.
art. 2º, art. 167, I, art.
196, art. 198, parágrafo
único
RE nº 271286/RS; Ag
nº 232469/RS; Ag
236644/RS; AgRg
238328/RS; RE
273042; RE
236200/RS; RE
247900/RS; RE
264269/RS; RE
267612/RS; RE
242859/RS; RE
232335/RS; RE
273834/RS
RE-AgRg nº
393175-0/RSFavorável
Indissociabilidade do
direito à saúde e do direito
à vida; dever do Poder
Público garantir o acesso à
assistência farmacêutica e
médico-hospitalar aos
cidadãos carentes;
interpretação da norma
programática não pode
transformá-la em promessa
constitucional
inconsequente.
art. 196 da CF/88; art.
557, §2º do CPC
RTJ nº 171/326-327;
AI nº 462563/RS; AI
nº 486816-AgR/RJ; AI
nº 532687/MG; AI nº
537237/PE; RE nº
195192/RS; RE nº
198263/RS; RE nº
237367/RS; RE nº
242859/RS; RE nº
246242/RS; RE nº
279519/RS; RE nº
297276/SP; RE nº
342413/PR; RE nº
353336/RS; AI nº
570455/RS; RTJ
175/1212-1213; RE nº
257109-AgR/RS; RE
nº 271286-AgR/RS;
RE nº 273042-
AgR/RS; AI nº 604949-
AgR/RS
Nota-se, nas três decisões selecionadas, o reflexo da predominância do
posicionamento referente à concessão de medicamentos – largamente expresso no corpus de
decisões pesquisadas neste tribunal –, sustentado com base em vasta jurisprudência a esse
respeito, como se pode observar na última coluna do gráfico. Ademais, a argumentação
empregada nas decisões gira em torno, basicamente, das responsabilidades do Estado em
promover a efetivação da norma constitucional que trata do direito à saúde através de políticas
sócio-econômicas. Há, portanto, um claro realce da omissão do Poder Público frente às
necessidades dos cidadãos.
Seguimos, então, com a análise do segundo gráfico, referente às decisões do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), dos anos 2009, 2007 e 2004:
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 3153
Tabela 2: Análise qualitativa das decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
STJQUANTO À
CONCESSÃO
ARGUMENTOS
UTILIZADOS
FUNDAMENTAÇÃO
LEGAL
JURISPRUDÊNCIA
CITADA
RMS nº
28338/MGFavorável parcialmente
Direito a medicamentos aos
sem disponibilidade
financeira para custear o
tratamento; o direito assim
reconhecido não possibilita
ao paciente escolher o
medicamento que mais de
adeque ao seu tratamento.
art. 5º, art. 6º, art. 23,
II, art. 194, parágrafo
único, I, art. 196, art.
198 da CF/88
REsp nº 430526/SP
RMS nº
20335/PRFavorável
Direito à saúde como dever
do Estado; obrigatoridade
do Estado em promover
políticas sócio-econômicas
necessárias à
implementação do direito à
saúde; normas burocráticas
não podem ser eguidas
como óbice à obtenção de
tratamento adequado e
digno por parte do cidadão
carente
Lei nº 8080/90; Lei nº
8142/90
RMS nº 17449/MG;
RMS nº 17425/MG;
RMS nº 13452/MG;
RMS nº 17903/MG
RMS nº
17903/MGFavorável
Obrigação do Estado em
fornecer gratuitamente
medicamentos aos que
necessitam; hierarquia
entre normas de direito
constitucional e
infraconstitucional; as
normas burocráticas não
podem ser erguidas como
óbice à obtenção de
tratamento adequado e
digno por parte do cidadão
carente
Portaria/MS nº 863/02;
art. 196 da CF/88
RMS nº 11129/PR
Como se percebe, também no caso do STJ há um entendimento prevalecente no
sentido da concessão de medicamentos, expresso nas três decisões selecionadas. Importante
salientar, todavia, recente decisão (RMS nº 28338/MG) que destaca a impossibilidade de o
paciente escolher o medicamento que mais de adeque ao seu tratamento, apesar de reconhecer
a obrigação estatal em fornecê-lo (terceira coluna do gráfico acima), apontando para um novo
aspecto até então não considerado em decisões desse tipo. Desse modo, pode-se notar o que
foi sustentado anteriormente: a decisão não exclui as outras possibilidades de escolha, que
permanecem acessíveis como horizonte de possibilidades (FISCHER-LESCANO, 2005, p.
34), isto é, o paradoxo das operações atuais enquanto operações possíveis atua como condição
de possibilidade da reprodução do sistema, uma vez que sua autopoiese requer contínua
atualização de diferentes possibilidades (LUHMANN, 2002, p. 84). Justamente por isso não
há um único sentido, fixo, estável, mas vários, fato que, ao invés de inviabilizar a
comunicação, torna-a possível. Em outras palavras, o sentido utilizado atualmente pode
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 3154
tornar-se possível, do mesmo modo que o possível pode atualizar-se (LUHMANN, 1997, p.
50).
O outro gráfico diz respeito às decisões do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-
PE), dos anos 2008, 2009 e 2009:
Tabela 3: Análise qualitativa das decisões do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-
PE)
TJ-PEQUANTO À
CONCESSÃO
ARGUMENTOS
UTILIZADOS
FUNDAMENTAÇÃO
LEGAL
JURISPRUDÊNCIA
CITADA
MS nº 0144946-1/PE Favorável
Comprovada a necessidade do
medicamento para a garantia da
vida do paciente, deverá ele ser
fornecido, entendendo-se a vida
no seu sentido mais amplo
art. 23, II, art. 196 da
CF/88; art. 159 da
Constituição Estadual;
Súmula 18 do TJ-PE
REsp nº 212346; RMS
nº17425/MG; MS nº
83478-4/PE; MS nº
111651-6/PE; MS nº
139557-1/PE; MS nº
79574-2/PE
MS nº 0177024-1/PE Favorável
Indispensabilidade do
fornecimento da medicação à
efetividade dos direitos à saúde,
à vida e à dignidade humana; a
prestação jurisdicional não é
invasiva da seara administrativa,
eis que a ordem apenas
determina o cumprimento de
obrigação já imposta pela CF/88
art. 5º, caput, art. 196,
art. 198, §1º, da CF/88;
art. 5º, parágrafo único, I,
da Constituição Estadual;
Lei nº 8080/90; Súmula
18 do TJ-PE; Súmula 512
do STF
REsp nº 656296/RS;
REsp nº 507202/PR;
ROMS nº 11129/PR;
REsp nº 212346/RJ;
REsp nº 194678;
ROMS nº 13452/MG;
REsp nº 828140/MT;
REsp nº 863240/RJ; RE-
AgRg nº 393175-0/RS
MS nº 145961-2/PE Favorável
Direito do cidadão, privado ao
acesso à medicamento de alto
custo, de receber do Estado a
prestação de assistência à saúde;
a manutenção do bem maior, a
vida, depende do medicamento
art. 5º, caput, art. 166,
art. 198, II, art. 196 da
CF/88; Lei nº 8080/90
MS nº 84901-2/PE;
MS nº 158576-8/PE;
MS nº 158579-9/PE;
Ag nº 238328/RS; Resp
nº 249026/PR; ROMS
nº 11183/PR; AgRg nº
271286/RS
As decisões do TJ-PE, conforme se observa, manifestam uma tendência à concessão,
ancoradas em argumentação (terceira coluna do gráfico acima) que alude à conexão do direito
à saúde ao direito à vida e à dignidade humana e em extensa jurisprudência dos tribunais
superiores, a exemplo do STF e do STJ. A Súmula 18 do TJ-PE já traz esse posicionamento
no sentido da concessão de medicamentos, pelo qual boa parte das decisões se pauta.
Por fim, proceder-se-á à análise do gráfico quatro, que trata das decisões de primeira
instância conseguidas com o auxílio do juiz José Viana Ulisses Filho, da 7ª Vara da Fazenda
Pública do Estado de Pernambuco:
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 3155
Tabela 4: análise qualitativa das decisões da 7ª Vara da Fazenda Pública do Estado de
Pernambuco
7ª VARA
FAZENDA
PÚBLICA/PE
QUANTO À
CONCESSÃO
ARGUMENTOS
UTILIZADOS
FUNDAMENTAÇÃO
LEGAL
JURISPRUDÊNCIA
CITADA
PROCESSO n°
001.2006.0399
43-1/PE
Favorável
O Poder Judiciário deve
manisfestar-se para evitar
lesões aos que necessitam
dos medicamentos,
garantindo aos cidadãos o
direito à saúde e a um
tratamento clínico eficaz; é
obrigação solidária dos
entes federativos assegurar
o acesso a medicamentos
aos hipossuficientes; os
direitos fundamentais à vida
e à saúde são direitos
inalienáveis; atuação
excepcional do Judiciário
quando os órgãos estatais
descumprirem seus
encargos político-jurídicos.
Lei nº 8080/90; art. 475
do CPC
REsp nº 828140/MT;
AgRg no Ag nº
893108/PE; RMS nº
20335/PR
PROCESSO n°
001.2007.0433
12-8/PE
Favorável
Idem Idem MS 84901-2/PE; REsp
nº 828140/MT; AgRg
no Ag nº 893108/PE;
RMS nº 20335/PR
PROCESSO nº
001.2007.0715
13-1/PE
Favorável
Idem Idem REsp nº 828140/MT;
AgRg no Ag nº
893108/PE; RMS nº
20335/PR
PROCESSO nº
001.2008.0081
62-3/PE
Favorável
Idem Idem MS 84901-2/PE; REsp
nº 828140/MT; AgRg
no Ag nº 893108/PE;
RMS nº 20335/PR
PROCESSO n°
001.2008.0311
38-6/PE
Favorável
Idem art. 5º, art. 196, art. 200
da CF/88; Lei nº
8080/90; art. 475 do
CPC
REsp nº 828140/MT;
AgRg no Ag nº
893108/PE; RMS nº
20335/PR
PROCESSO nº
001.2008.0449
72-8/PE
Favorável parcialmente
Insuficiência na prestação
de serviços de saúde pela
Administração Pública;
obrigação do Poder
Público de garantir, aos
cidadãos, o acesso aos
serviços de saúde;
obrigação do governo fazer
provisão dos serviços
necessários ao atendimento
das necessidades da
população
art. 196 da CF/88; art.
7º, II, da Lei nº
8080/90; art. 21,
parágrafo único, do
CPC
REsp 325337 / RJ
A análise das decisões tratadas no gráfico acima mostra que é dado destaque à
função do Judiciário na concretização do direito à saúde, frente à omissão dos outros Poderes.
Conforme visto anteriormente, os tribunais desempenham função essencial na
desparadoxização do paradoxo do direito, que toma corpo na decisão jurídica, somente
tornada possível caso a indecisão seja dada, garantindo a unidade da diferença (LUHMANN,
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 3156
1995, p. 308; LUHMANN, 2002, p. 133; FISCHER-LESCANO, 2005, p. 220). A posição
central ocupada pelos tribunais no sistema jurídico serve à garantia da sua unidade, uma vez
que – e ao contrário das zonas periféricas mais expostas às diversas “irritações” do entorno –
viabiliza a filtração das questões a eles submetidas através do código próprio ao sistema,
transformando indeterminação em determinação através de distinções (LUHMANN, 1995, p.
310, 313, 314, 317; FISCHER-LESCANO, 2005a, p. 61). São forçados, portanto, a decidir e,
obrigatoriamente, lidar com a questão do paradoxo da unidade da multiplicidade da decisão
jurídica.
O último gráfico refere-se à porcentagem das decisões que foram favoráveis e
contrárias à concessão de medicamentos, dentre as selecionadas para compor o conjunto de
decisões da pesquisa. Importante observar que a classificação “não favoráveis” engloba as
decisões que não concederam totalmente os pedidos feitos, enquadrando tanto as decisões
parcialmente favoráveis quanto às contrárias em parte:
Tabela 5: porcentagem das decisões favoráveis e contrárias à concessão de
medicamentos
DECISÕES STF STJ TJ-PE
7ª VARA
FAZENDA
PÚBLICA
TOTAL
FAVORÁVEIS 66,60% 66,60% 100% 83% 80%
NÃO FAVORÁVEIS 33,30% 33,30% 0% 16,60% 20%
O resultado de toda a análise é que a decisão, uma vez que, para viabilizar a unidade
da diferença entre passado e futuro, ocorre no presente (LUHMANN, 1995, p. 308 e 309), ou
seja, não pode ser determinada pelo passado. Ao invés disso, opera com base em suas próprias
construções, apenas possíveis no presente (LUHMANN, 1995, p. 309), o que leva os juízes a
se precaverem na medida do possível contra as consequências trazidas pela decisão, mesmo
que não possam prevê-las em sua totalidade, já que outras decisões futuras modificarão as
anteriores. A incapacidade de lidar com o futuro, portanto, gera a ilusão de que as decisões
devam ser determinadas pelo passado (LUHMANN, 1995, p. 309), “solidamente” construídas
sobre precedentes “firmados” e “assentados” pela prática diária dos tribunais.
Em sentido contrário, contudo, pode-se afirmar que não há um único sentido, fixo,
estável, referente à concessão de medicamentos, mas vários, fato que, ao contrário do que se
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 3157
possa pensar, não inviabiliza a comunicação, mas a torna possível. É a própria comunicação,
enquanto operação constitutiva da sociedade, que viabiliza a pluralidade de acepções acerca
da concessão de medicamentos, e não os indivíduos que fazem uso da comunicação.
6. CONCLUSÕES
A conclusão a que se pode chegar, após a análise do material com base na teoria dos
sistemas de sentido de Niklas Luhmann, é que não existe um entendimento padronizado e
único do que seja a concessão de medicamentos e da sua admissibilidade frente ao caso
concreto. Ocorre, de maneira inversa, uma diversidade de usos pelos ministros,
desembargadores e juízes da mesma expressão, que, apesar de ser composta pelas mesmas
palavras, pode ser utilizada em contextos variados (LUHMANN, 1997, p. 47 e 48). Por
conseguinte, o meio do sentido como produto das operações que o empregam para viabilizar a
reprodução dos sistemas, assim como a sua própria delimitação frente ao ambiente
(LUHMANN, 1997, p. 44 e 45), tem importantes consequências para a relação entre sistema e
entorno, já que os limites daquele frente a este são limites de sentido, autorreferencialmente
produzidos. Ademais, a historicidade característica da construção de sentido pelo sistema
mostra que determinada semântica social – como a da concessão de medicamentos – só é
possível como a seleção de uma possibilidade, em certo momento, dentre outras possíveis de
se realizar (LUHMANN, 1983, p. 45; LUHMANN, 2002, p. 83). Isto é, o lado da forma não
utilizado pelas operações atuais é também considerado na produção de sentido.
Nota-se, então, que essa atualização de possibilidades – uma seleção atual como
possível e vice-versa – serve tanto para continuar a autopoiese, quanto para formar e mudar as
estruturas necessárias a ela (LUHMANN, 1997, p. 199), demonstrando, mais uma vez, o fato
de que o sentido contemporâneo conferido à concessão de medicamentos foi construído pela
prática nos tribunais e é apenas uma dentre várias outras opções possíveis de realizar. O
direito não está presente na lei nem na fundamentação dos tribunais, da mesma forma que as
decisões jurídicas não são uma criação do nada, por meio de uma decisão autoritária, mas
acontecimentos (Ereignisse), que separam em um antes e um depois o processo de
significação, sem poder determinar o futuro deste mesmo processo através da absorção da
incerteza (FISCHER-LESCANO, 2005a, p. 235).
A decisão jurídica, por fim, não pode ser determinada pelo passado, como se pode
imaginar, mas opera de acordo com suas próprias construções, que apenas são possíveis no
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 3158
presente (LUHMANN, 1995, p. 309) e envolvem uma multiplicidade de usos de expressões
como “concessão de medicamentos”. Esses usos variados, ao contrário do que se possa supor,
não inviabilizam a comunicação, mas permitem que ela continue, tendo em vista o aspecto
temporal dos sistemas, o que garante a estabilidade em forma dinâmica ao substituir antigos
elementos por outros novos, tornando viável, então, a constante atualização de possibilidades
(LUHMANN, 1997, p. 52). Esse processo verifica-se de forma mais evidente a partir da
produção de sentido do direito através da decisão jurídica.
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* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 3160