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35 O PASSADO EM AL’-ULYÃ: ESTUDO ANTROPOLÓGICO DE UMA POPULAÇÃO MUÇULMANA Eugénia Cunha, Carina Marques e Ana Maria Silva (*) INTRODUÇÃO A série osteológica analisada no presente artigo provém da Necrópole islâmica detectada na Quinta da Boavista, Loulé, na sequência de uma inter- venção arqueológica dirigida por Isabel Luzia (LUZIA, 2000) em 1999. Trata-se de uma das raras séries portuguesas do período almôada, pelo que adquirem maior relevância os resultados da análise antropológica que aqui se apresentam. ANTROPOLOGIA FUNERÁRIA As sepulturas, alinhadas paralelamente umas às outras, representavam fossas simples, de forma sub-rectangular, com as extremidades arredondadas. Estas foram abertas na rocha de base, uma variedade de calcário tufoso, esbranquiçado e de consistência macia, popularmente designada por caliço. Do total de 41 escavadas, 15 apresentavam lajes de cobertura de calcário de muito má qualidade. Contudo, não é de excluir que este número tivesse (*) Departamento de Antropologia Faculdade de Ciências e Tecnologia Universidade de Coimbra 3000-056 Coimbra - email: [email protected]

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O PASSADO EM AL’-ULYÃ: ESTUDO ANTROPOLÓGICO DE UMAPOPULAÇÃO MUÇULMANA

Eugénia Cunha, Carina Marquese Ana Maria Silva (*)

INTRODUÇÃO

A série osteológica analisada no presente artigo provém da Necrópoleislâmica detectada na Quinta da Boavista, Loulé, na sequência de uma inter-venção arqueológica dirigida por Isabel Luzia (LUZIA, 2000) em 1999.Trata-se de uma das raras séries portuguesas do período almôada, pelo queadquirem maior relevância os resultados da análise antropológica que aquise apresentam.

ANTROPOLOGIA FUNERÁRIA

As sepulturas, alinhadas paralelamente umas às outras, representavamfossas simples, de forma sub-rectangular, com as extremidades arredondadas.Estas foram abertas na rocha de base, uma variedade de calcário tufoso,esbranquiçado e de consistência macia, popularmente designada por caliço.Do total de 41 escavadas, 15 apresentavam lajes de cobertura de calcário demuito má qualidade. Contudo, não é de excluir que este número tivesse

(*) Departamento de AntropologiaFaculdade de Ciências e TecnologiaUniversidade de Coimbra3000-056 Coimbra - email: [email protected]

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sido inicialmente maior. Por outro lado, a descoberta de algumas telhastambém permite colocar a possibilidade de algumas sepulturas terem sidocobertas desta maneira (LUZIA, 2000).

Os esqueletos foram inumados, invariavelmente, de cabeça para Oeste epés para Este. As posições de inumação observadas incluíam o decúbitodorsal (n=17) e decúbito lateral direito (n=10). Algumas variações a estasposições mais típicas foram observadas, nomeadamente indivíduos que apresen-tavam a região superior em decúbito dorsal e o membro inferior,deposto lateralmente (com as pernas ora estendidas ora flectidas). A facedos indivíduos estava predominantemente virada para Su-Sudeste, na direcçãode Meca.

A tipologia das sepulturas e, sobretudo, as posições de inumação, per-mitiram aceder a uma contextualização cronológica, de época muçulmana.

As sepulturas albergavam quase sempre apenas um indivíduo, exceptoem dois casos particulares (nos enterramentos 22/23 e 31/37). Uma destasexcepções reporta-se a um caso em que numa mesma sepultura se detectaramdois esqueletos femininos adultos e alguns ossos de um recém nascido depostona zona pélvica de um deles, misturados com os seus ossos da mão. Foramefectuadas várias medidas dos ossos de não adulto, no entanto, não foi possívelaveriguar se se tratava de um recém nascido ou de um feto no final da gestação(UBELAKER, 1989).

ESTADO DE CONSERVAÇÃO DA SÉRIE OSTEOLÓGICA

Antes da apresentação dos resultados da análise paleobiológica, é funda-mental dar uma ideia do estado de conservação da série.

Os 43 esqueletos que compõem a amostra populacional, possuíam diversosgraus de preservação, apresentando-se ora completos ora preservando apenasalguns ossos. Porém a maioria, cerca de 46.5%, corresponde a esqueletosbastante completos. Dos restantes, 27.9% eram esqueletos incompletos,tendo-se registado ainda 25.6% de enterramentos onde apenas foi possívelexumar escassos fragmentos ósseos. A título de exemplo, refira-se que doenterramento 4 foi exumado um indivíduo do qual se obteve a quase totalidadede peças ósseas, incluindo pequenos ossos dos pés e mãos, inversamente, doenterramento 20A só foram recuperados fragmentos de ossos longos e ossosdo pé pertencentes a um adulto. Mas para a avaliação do grau de preservaçãode um esqueleto não podemos contabilizar apenas o número de ossosrecuperados, mas também o estado em que estes se encontravam. Assim, consta-

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támos que as alterações tafonómicas, que a seguir se descrevem, são um dadocomum a todos os ossos. A superfície óssea mostra um aspecto corroído (fig.1),resultado quer da acção das raízes quer do tipo de solo em que os ossos estiveramdepositados. Com efeito, as raízes, para além de fracturarem osossos, podem também corroer a superfície óssea através do ácido que pro-duzem. Sabe-se, através da documentação, que o terreno em causa foicultivado desde o século XVIII e que, há cerca de 80 anos, foram abertascovas para a plantação de amendoeiras. “Segundo o último caseiro da quinta,nessa altura foram detectados ossos humanos” (LUZIA, 1999: 3).

Fig. 1 - Exemplo do tipo de alteração da superfície óssea dos ossos de Loulé.

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A grande concentração de raízes (fig. 2) de amendoeira poderá perfeita-mente ser o mecanismo responsável pela destruição da camada mais externade osso, produzindo nesta, marcas de raízes, corrosão e destruição mecânicado próprio osso. Para a destruição dos esqueletos também terá contribuídoa natureza calcária do solo combinada com outros factores, como níveis dehumidade, temperatura e salinidade.

A análise antropológica efectuada teve, essencialmente, os seguintes objecti-vos: abordar o perfil demográfico da série, aceder a uma imagem morfológicageral, traçar o perfil sanitário global e conhecer alguns aspectosdos hábitos dietéticos. Enfim, reconstruir a vida a partir do esqueleto.

COMPOSIÇÃO DA SÉRIE

Foram contabilizados 43 esqueletos, 7 não adultos e 36 adultos (fig. 3).Dos 7 não adultos, 6 eram adolescentes enquanto que o restante seriarecém-nascido. Para estimar as idades à morte dos não adultos recorreu-se essen-cialmente à calcificação e erupção dentárias (UBELAKER, 1989).

Fig. 2 - Raiz de amendoeira que destruiu grande parte do esqueleto que atravessou.

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Quanto à idade dos adultos, a sua estimativa baseou-se numa série de indica-dores (FEREMBACH et al., 1980). Estima-se que pelo menos três indivíduosteriam mais de 50 anos na altura da morte. Este cálculo foisustentado pela observação da metamorfose da superfície auricular, obliteraçãodas suturas cranianas e da patologia degenerativa (artrose) (BUIKSTRA eUBELAKER, 1994).

Já para aceder à proporção entre os sexos, foi a morfologia dos ossos dabacia que permitiu averiguar uma pequena predominância feminina (fig. 4).No entanto, para 16% dos esqueletos não foi possível determinar o seu sexo.

Fig. 3 - Distribuição de indivíduos por classes etárias.

Fig. 4 - Distribuição percentual dos indivíduos por sexo.

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ASPECTOS MORFOLÓGICOS

Quando se tenta reconstruir a aparência física deste grupo, percebe-se queno geral os indivíduos teriam uma estatura média a baixa e uma compleiçãomedianamente robusta. A estatura média dos homens ronda os 165 cm (n=9)enquanto que a das mulheres, 149 cm (n=7). É notória a maior robustezmasculina, designadamente ao nível das zonas de inserção muscular dosmembros superiores. Mas é a forma do crânio que mais se salienta (fig. 5):para além de ligeiramente alongada, há um claro achatamento na zonaposterior do crânio, onde as zonas de inserção muscular são bem notórias.Também o frontal é bastante estreito e determinadas zonas de inserçãomuscular no crânio estão bem marcadas. É o caso dos temporais, concreta-mente na zona acima das mastóides, onde o relevo da zona de inserçãomuscular faz lembrar as cristas supra-mastóides.

Um outro aspecto comum a vários indivíduos, é a falta de encerramentototal da primeira vértebra do sacro. É sabido que esta é a última porção dosacro a fundir, por volta dos 18-20 anos. Nesta série há cinco indivíduosadultos (5/16 = 31%) com a porção anterior da 1ª vértebra do sacro aberta(fig. 6) mas que têm mais do que 20 anos, inclusivamente com mais de

Fig. 5 - Norma lateral de um dos crânios islâmicos de Loulé.

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50 anos, o que nos leva a pressupor uma etiologia eventualmente genética,ou seja, uma ausência de obliteração da 1ª vértebra sagrada devido a influ-ências genéticas, o que indicaria um forte cariz endogâmico deste núcleopopulacional.

Fig. 6 - Falta da fusão total da 1ª vértebra do sacro.

ALGUMAS DOENÇAS QUE AFECTARAM A POPULAÇÃOISLÂMICA DE LOULÉ

Outro objectivo prioritário da análise desta série de esqueletos era acederao seu estado geral de saúde. A Paleopatologia, ciência que se ocupa daleitura das alterações ósseas ocorridas ante-mortem, permite anuir a algumasdoenças que afectaram as populações do passado. É importante frisar aquique efectivamente só algumas doenças deixam vestígios nos ossos pelo que oacesso ao estado geral de saúde fica algo limitado. Ainda assim, as doençasque deixaram marcas nos ossos provenientes da Quinta da Boavista são suscep-tíveis de recriar um quadro fidedigno do estado geral de saúde.

Passamos a destacar alguns casos que ilustram a diversidade de patologiasdetectadas.

A artrose, a patologia que mais frequentemente afecta as populações do pas-sado, estava patente quer ao nível vertebral, quer ao nível do esqueleto apendicular.

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O esqueleto duma mulher com mais de 50 anos (que padeceria simultaneamentede osteoporose) ou as vértebras cervicais de um homemde meia idade e robusto são exemplos do primeiro tipo. Neste último caso,a assimetria das lesões cervicais indiciava claramente uma má posturaao nível do pescoço. Não obstante estes exemplos, no geral, a série emcausa não apresenta uma frequência elevada de artrose.

Um outro indivíduo apresentava fortes indícios de padecer de doençahiperostótica (DISH), indicada por uma fusão de quatro vértebras torácicas.Esta doença poderá estar associada a casos de diabetes ou obesidade,porém, a maioria dos autores considera-a ainda pouco definida em termosda sua etiologia. Esse mesmo indivíduo apresentava ainda uma exostose ósseabem evidente ao nível da tíbia esquerda que poderia estar relacionada com asíndrome das exostoses múltiplas ou teria relação com uma ossificaçãoligamentar. Finalmente, e ainda no mesmo indivíduo, foram detectadas umasérie de lesões nas zonas de inserção muscular dos fémures e coxais, compa-tíveis com o síndrome do cavaleiro. Pálfi e Dutour (1995) consideram queexistem critérios fundamentais (essencialmente correlacionados com o desen-volvimento de entesopatias) para reconhecer a actividade de cavaleiro (síndromede cavaleiro) no esqueleto. Alguns destes critérios incluem as entesopatias naextremidade proximal do fémur, concretamente no grande tro-cânter e natuberosidade isquiática, na região postero-superior do ilium (osso coxal), bemcomo, o desenvolvimento da faceta de Poirier na cabeça do fémur (uma extensãoda superfície articular para o colo femoral a nível anterior), assim como, umdesenvolvimento das áreas de inserção do músculo adductor longus na linhaáspera e dos músculos gastrocnemius lateral e médio nos fémures.Todos estes indicadores foram observados no indivíduo em questão, o quepermite avançar com a hipótese de se tratar de um indivíduo que praticava equi-tação com alguma assiduidade.

O esforço físico despendido no dia-a-dia por estes indivíduos pode serestimado através da observação das zonas ósseas que serviram de inserçãoaos vários músculos. Por exemplo, no esqueleto 29, que pertenceu a umindivíduo do sexo masculino com 30-40 anos na altura da morte, na zona deinserção do bíceps braquial, designadamente na tuberosidade bicipital deambos os rádios, são evidentes espículas ósseas (entesopatias) que estarãoem relação com o movimento repetido de flexão e extensão do antebraço,ao longo da vida do indivíduo.

Um outro esqueleto, masculino, apresentava uma exostose exuberante aonível da fossa rombóide da clavícula esquerda que poderá ser consequênciade um esforço excessivo, embora outras etiologias não possam ser excluídas.

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Neste indivíduo, foram ainda registados sinais de infecção numa tíbia direitaclaramente ligado a um hematoma ossificado.

Cinco em trinta indivíduos apresentavam nódulos de Schmorl. Estes sãoresultantes de tensões biomecânicas, que levam ao desenvolvimento de hérniasnos discos intervertebrais, traduzidas por pequenas depressões nos corposvertebrais (ROBERTS e MANCHESTER, 1995: 107), podendo por isso servistos como mais um indicador do esforço físico despendido por este grupode indivíduos. Também a incidência de espigas laminares, em quase todos osadultos desta série, corrobora a ideia da existência de actividades quotidianasparticularmente exigentes ao nível da coluna vertebral.

Ainda na coluna vertebral e, para ilustrar a diversidade das lesões observa-das, refira-se o caso de uma espondilólise verificada no esqueleto 3 (masculino,com mais de 30 anos), que se traduz por uma separação do corpo e do processoposterior da vértebra. Neste caso concreto, trata-se da ausência de fusão do pro-cesso articular posterior da 5ª vértebra lombar. Esta fractura vertebral, que podeser congénita, está também relacionada com a própria locomoção erecta. Ou seja,havendo um enfraquecimento congénito desta zona, stresses contínuosdecorrentes da posição erecta e do esforço físico associado, poderão levar àfalta de fusão. No quotidiano, esta lesão produziria apenas dores intensas nascostas, sem nenhuma limitação física (ROBERTS e MANCHESTER, 1995).

Um caso patológico digno de destaque é a assimetria observada nosúmeros de um adolescente. O úmero direito é simultaneamente mais pequenoe menos robusto que o seu simétrico (fig. 7). Esta anomalia poderá ter sidocausada por um trauma infligido bastante cedo ao nível da extremidade dadiáfise do úmero proximal o que terá dificultado o seu crescimento normal.

Fig. 7 - Assimetria dos úmeros do esqueleto 40.

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Em termos patológicos, talvez o caso que mais sobressai seja o do fibromanão ossificante (MARQUES et al., 1999) observado na metade distalposterior de um fémur direito que terá pertencido a um adulto com menosde 30 anos na altura da morte. Trata-se de uma lesão neoplásica benigna, geral-mente assintomática, que afecta predominantemente indivíduos jovens.O diagnóstico foi feito com a ajuda da imagem radiológica que nos permitiuexcluir outras etiologias.

Outra lesão observada digna de ser referida verificou-se ao nível vertebralde um indivíduo adulto de sexo masculino (esqueleto 6, com idade à morteindeterminada). Na sequência de um colapso vertebral, duas vértebras torácicasfundiram anteriormente. A lesão evoca necessariamente a tuberculose, umadoença infecciosa específica, que pode deixar marcas muito característicasnos ossos, designadamente do tipo das observadas. O diagnóstico não é, noentanto, definitivo, uma vez que estas fracturas são muito comuns em indi-víduos que são atingidos nas costas por objectos pesados ou quando caempara trás (ZIMMERMAN e KELLEY, 1982).

Perscrutando o modo como terá ocorrido o crescimento deste pequenogrupo de indivíduos islâmicos, a análise das hipoplasias lineares do esmaltedentário, linhas de menor densidade de esmalte dentário que se formamdurante períodos mais adversos de crescimento, é informativa de que o períodode crescimento mais problemático terá sido a fase do desmame. Este é umresultado esperado já que a transição alimentar ocorrida nesse período é normal-mente traumática. Dez dos trinta e seis (27.7%) adultos de Loulé apresentavamdistúrbios de crescimento evidenciados pelas hipoplasias, que comummente apon-tam para uma maior incidência de um período de stressentre os 2 e os 6 anos (escala de GOODMAN e ROSE, 1991).

Apesar do reduzido efectivo numérico da série, foram detectados casos pa-tológicos de etiologias diversas, desde degenerativa infecciosa, neoplásica, con-génita a traumática, que traduzem o carácter comum de várias afecçõesno período islâmico. Por outro lado, não foi observado qualquer sinal decuidados médicos, nem a nível dentário nem no esqueleto.

UM CONTRIBUTO PARA O CONHECIMENTODA DIETA ISLÂMICA

A análise dos dentes torna-se uma abordagem obrigatória em qualqueranálise paleobiológica. Ao resistirem de um modo ímpar à passagem dotempo e simultaneamente, ao constituírem a única parte do “esqueleto”

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que se manteve em contacto directo com o meio ambiente, os dentes têmuma capacidade igualmente ímpar de registar acontecimentos da vida dos indiví-duos. A dieta é um dos itens sobre os quais são informativos. A análisedas cáries, desgaste dentário e depósitos de tártaro, indica que os cardápiosislâmicos incluiriam alimentos doces. 8,6% dos indivíduos apresentam pelomenos uma lesão cariogénica. Algumas das cáries são severas, destruindogrande parte da coroa havendo também a assinalar uma fragilidade doesmalte generalizada. Inclusivamente, há que destacar um caso de formação in-completa do esmalte num adolescente.

Em termos de desgaste dentário, verificou-se que é acentuado com a particu-laridade de alguns indivíduos serem mais afectados na dentiçãoanterior em detrimento da posterior. Esta constatação sugere a utilizaçãodos dentes anteriores como uma terceira mão, especificidades alimentares,ou a manipulação de determinados alimentos recorrendo mais à dentiçãoanterior. Os depósitos de tártaro, invariavelmente subavaliados, indiciamuma fraca higiene oral.

Os dados relativos à patologia oral concordam com as fonte históricasdocumentais. Na pesquisa destas fontes para Loulé, encontrámos refe-rências curiosas que justificam ser aqui confrontadas com os dadospaleobiológicos. Silva (1989 in SANTOS, 1997) com base no livro “Livroda repartição da fruta” do século XV, conclui que “em Loulé, pela centúriade Quatrocentos, existia um forte comércio de exportação de fruta seca,figos e uvas, destinados à Flandres...” o que denota uma abundância destealimentos. Figos e uvas que, curiosamente, já vêm referidos num manuscritofrancês do século XIII como produtos provenientes do Reino de Portugal(ARNAUT, 1986: 43 in SANTOS, 1997).

COMPARAÇÕES COM OUTRAS SÉRIES ISLÂMICAS

A importância da série antropológica exumada da Necrópole islâmica deLoulé reside precisamente no facto de ser esta a primeira série muçulmana recu-perada em território português, a ser exaustivamente analisada emtermos antropológicos. Em Portugal escasseiam as Necrópoles islâmicas.No Algarve, há conhecimento de, pelo menos, mais três necrópoles islâmicasque forneceram restos humanos. É o caso da Necrópole da Quinta do Lago,com alguns enterramentos virados para Meca (análises em curso). Duranteas escavações dirigidas pela arqueóloga Cristina Garcia em Cacela Velha,surgiu uma suspeita fundamentada da existência dum núcleo islâmico,ainda não escavado. Também em 2001, em S. Bartolomeu de Messines

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(Silves), foi descoberta uma necrópole islâmica da qual só terão sido recu-perados 9 esqueletos (RAMOS, com. pess.). De Mértola, temos a sérieislâmica do Rossio do Carmo, sobre a qual uma primeira abordagem antro-pológica foi apresentada por McMillan e colaboradores (1999). Os, pelosmenos, 44 indivíduos que a compõem estão presentemente a ser analisados(CALEDON, com. pess.). Muito recentemente, em Évora, durante as esca-vações do Convento de São Domingos, foram detectadas pelo menos 19inumações em decúbito lateral o que faz suspeitar da sua origem islâmica(UMBELINO, com. pess). Finalmente, e também no presente ano, iniciou-sea escavação da Necrópole islâmica da Tapada da Inhaca, em Sintra. Aspoucas sepulturas já escavadas forneceram material osteológico em péssimoestado de conservação. Infelizmente, é este o quadro aproximado das sériesosteológicas islâmicas recuperadas no nosso País.

Quando comparamos com a situação na vizinha Espanha, torna-se claroque as grandes necrópoles portuguesas estão por conhecer. Veja-se apenaso caso da necrópole hispano-muçulmana de San Nícolas (Murcia, Espanha),que forneceu uma série com 425 indivíduos (BERNIS et al., 1992). A necró-pole terá sido utilizada entre os séculos XI-XIII (NAVARRO, 1986 inBERNIS et al., 1992), tendo sido contabilizados cerca de 200 não adultos,143 dos quais com ossos bem preservados. Pelo menos mais outras três sérieshispânicas com esta dimensão têm sido referidas na literatura. É o caso da Necró-pole islâmico-medieval escavada no centro de Sevilha, durante osfinais de 1997, inícios de 1998. Datada dos séculos XI-XII, os corpos estão geral-mente depositados em decúbito lateral parcial sobre o lado direito,com o crânio para oeste e cara virada para o sul (GUIJO MAURI, 2001).De um total de 175 inumações islâmicas, 88 são de adultos e 87 de nãoadultos.

Um outro cemitério islâmico, o de Bab-Al-Hanax foi descoberto emValência, durante as escavações de 1992-93. Um total de 343 enterramentosforam escavados na cidade árabe extramuros dos séculos XI-XIII, princípiosdo XIV. A orientação dos enterramentos apresenta invariavelmente os péspara este-noreste e a cabeça para oeste-sudoeste, com a face virada para su--sudeste.

Uma outra série do mesmo período é a de Xarea (Almería). De umanecrópole hispano-muçulmana, com uma cronologia dos séculos XI-XV(datação por 14C), foram exumados 229 indivíduos, 187 adultos (> 21 anos:101 masculinos; 83 femininos; 3 indeterminados) e 42 não adultos (ROBLEDOe TRANCHO, 2001).

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Numa primeira comparação entre os dois países ibéricos, torna-se evidenteo maior quantitativo de esqueletos islâmicos exumados em território espanhol.Esta disparidade se em parte é devida às dimensões dos territórios em si,também se justificará por não ter sido ainda detectada em Portugal umanecrópole islâmica de grandes dimensões. Por outros palavras, mesmo que osnúcleos populacionais portugueses sejam menores, não serão tão reduzidoscomo indicam as séries até agora conhecidas. Certamente que qualquer umadas necrópoles não foi escavada na totalidade pelo que qualquer comparaçãoe extrapolação a nível de estrutura demográfica carece de fundamento. Já anível paleopatológico, é importante referir eventuais casos de lepra ebrucelose nas séries espanholas (GUIJO MAURI et al., 2001). A confirmar-seo diagnóstico de tuberculose na série de Loulé, tornar-se-ia curiosoa detecção destas três patologias infecciosas em séries islâmicas. A etiologiadestas doenças remete, necessariamente, para núcleos populacionais dealguma densidade e a contactos frequentes com animais domésticos,associados a condições higiénicas e sanitárias deficitárias.

Interessante seria proceder a uma comparação mais exaustiva não só a nívelpatológico como também morfológico, designadamente para tentar averiguarse as características morfológicas que se destacaram na série de Loulé, nomea-damente a forma do crânio, se verificavam noutras populações coevas. Por outrolado, esta tendência para um certo cariz endogâmico sugerida pela presençacomum de traços morfológicos, poderá e deverá vir a ser confirmada atravésde análises paleogenéticas que permitirão, entre outros, averiguar a distânciagenética entre os vários núcleos populacionais islâmicos entre si e, também,a manutenção desses traços nas populações subsequentes o que pode constituiruma medida do alcance da islamização no nosso território.

PERSPECTIVAS

Os ossos humanos, ao constituírem o testemunho mais real do nossopassado, tornam-se insubstituíveis como contributo para o conhecimento dosnossos antepassados. Neste caso concreto, um estudo exaustivo dum númeromais significativo de esqueletos islâmicos recuperados em território português,poderá, sem dúvida, ajudar na compreensão do alcance da islamização daPenínsula Ibérica. Esperamos, por isso, conseguir aprofundar as análises antro-pológicas em curso, designadamente através de análises de DNA e, inevitavel-mente, duma melhor balização cronológica com datações por radiocarbono e darecuperação dum número mais significativo de esqueletos islâmicos num futuropróximo.

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