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1 O patrimônio cultural entre os sujeitos da modernidade nacional e culturas objetificadas 1/2 Walter Francisco Figueiredo Lowande (UNIFAL-MG) 1. O patrimônio cultural como híbrido O que hoje podemos classificar como o conjunto de práticas de tutela do patrimônio cultural nacional tem sua trajetória atrelada à própria emergência da modernidade. É isso que indica, por exemplo, o deslocamento semântico que Françoise Choay identificou, desde o século XVII, para o termo “monumento”. A princípio, sua materialidade funcionaria como “um dispositivo fundamental no processo de institucionalização das sociedades humanas” e teria por vocação ancorá-las “em um espaço natural e cultural, e na dupla temporalidade dos humanos e da natureza” (CHOAY, 2011, p. 12). Tratar-se-ia, portanto, de um “dispositivo memorial intencional” ligado a uma consciência específica do tempo que sofreria uma transformação profunda com o advento da modernidade. Em lugar do “monumento”, passaria então a ser valorizado o “monumento histórico”, que “não se volta para a memória viva. Foi escolhido de um corpus de edifícios preexistentes, em razão do seu valor para a história (seja de história factual, social, econômica ou política, de história das técnicas ou de história da arte...) e/ou de seu valor estético(CHOAY, 2011, p. 13-14). Fica claro, portanto, que o novo “monumento histórico” participaria de uma metanarrativa da modernização (mesmo que em suas versões particulares de “monumentos históricos nacionais”) validando uma ideia de progresso civilizacional ou cultural por meio da referência à experiência empírica do passado evidenciada na materialidade de edifícios e outras “antiguidades”. Para Dominique Poulout o patrimônio também é um tipo de “suporte para uma representação da civilização” (POULOT, 2009, p. 13). 3 Mas ele não cumpriria o papel de mera validação empírica de narrativas historiográficas. A sua materialidade se imporia pela 1 V ENADIR, GT. 08 - Festejos, rituais e a salvaguarda de direitos culturais. 2 Este artigo é uma versão, com pequenas modificações, de parte do Capítulo 6, intitulado “Cultura, civilização e modernidade nacional: o patrimônio cultural brasileiro em disputa”, de minha tese de doutorado, que está para ser defendida no Programa de Pós-Graduação em História da UNICAMP, sob orientação da Profa. Dra. Silvana Barbosa Rubino. 3 A respeito do conceito de “civilização” como algo que defi ne os ideais configuracionais das sociedades modernas, cf. ELIAS, 1994 e DUMONT, 1994.

O patrimônio cultural entre os sujeitos da modernidade

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Page 1: O patrimônio cultural entre os sujeitos da modernidade

1

O patrimônio cultural entre os sujeitos da modernidade nacional e

culturas objetificadas1/2

Walter Francisco Figueiredo Lowande (UNIFAL-MG)

1. O patrimônio cultural como híbrido

O que hoje podemos classificar como o conjunto de práticas de tutela do patrimônio

cultural nacional tem sua trajetória atrelada à própria emergência da modernidade. É isso que

indica, por exemplo, o deslocamento semântico que Françoise Choay identificou, desde o

século XVII, para o termo “monumento”. A princípio, sua materialidade funcionaria como “um

dispositivo fundamental no processo de institucionalização das sociedades humanas” e teria por

vocação ancorá-las “em um espaço natural e cultural, e na dupla temporalidade dos humanos e

da natureza” (CHOAY, 2011, p. 12). Tratar-se-ia, portanto, de um “dispositivo memorial

intencional” ligado a uma consciência específica do tempo que sofreria uma transformação

profunda com o advento da modernidade. Em lugar do “monumento”, passaria então a ser

valorizado o “monumento histórico”, que “não se volta para a memória viva. Foi escolhido de

um corpus de edifícios preexistentes, em razão do seu valor para a história (seja de história

factual, social, econômica ou política, de história das técnicas ou de história da arte...) e/ou de

seu valor estético” (CHOAY, 2011, p. 13-14). Fica claro, portanto, que o novo “monumento

histórico” participaria de uma metanarrativa da modernização (mesmo que em suas versões

particulares de “monumentos históricos nacionais”) validando uma ideia de progresso

civilizacional ou cultural por meio da referência à experiência empírica do passado evidenciada

na materialidade de edifícios e outras “antiguidades”.

Para Dominique Poulout o patrimônio também é um tipo de “suporte para uma

representação da civilização” (POULOT, 2009, p. 13).3 Mas ele não cumpriria o papel de mera

validação empírica de narrativas historiográficas. A sua materialidade se imporia pela

1 V ENADIR, GT. 08 - Festejos, rituais e a salvaguarda de direitos culturais. 2 Este artigo é uma versão, com pequenas modificações, de parte do Capítulo 6, intitulado “Cultura, civilização e

modernidade nacional: o patrimônio cultural brasileiro em disputa”, de minha tese de doutorado, que está para ser

defendida no Programa de Pós-Graduação em História da UNICAMP, sob orientação da Profa. Dra. Silvana

Barbosa Rubino. 3 A respeito do conceito de “civilização” como algo que define os ideais configuracionais das sociedades modernas,

cf. ELIAS, 1994 e DUMONT, 1994.

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2

especificidade das formas de recepção das ficções narrativas por ele possibilitadas: “o

patrimônio não é o passado, já que sua finalidade consiste em certificar a identidade e em

afirmar valores, além da celebração de sentimentos, se necessário, contra a verdade histórica”

(POULOT, 2009, p. 12). Poulot utiliza a categoria “patrimonialidade” a fim de dar conta dessa

“modalidade sensível de uma experiência do passado, articulada com uma organização do saber

– identificação, atribuição – capaz de autentificá-lo” (POULOT, 2009, p. 27-28). Isso significa

que o patrimônio, em sua contribuição para a legitimação do poder, participaria de uma

complexa rede de relações:

O patrimônio define-se, ao mesmo tempo, pela realidade física de seus objetos, pelo

valor estético – e, na maioria das vezes, documental, além de ilustrativo, inclusive de

reconhecimento sentimental – que lhes atribui o saber comum, enfim, por um estatuto

específico, legal ou administrativo. Ele depende da reflexão erudita e de uma vontade

política, ambos os aspectos sancionados pela opinião pública; essa dupla relação é que

lhe serve de suporte para uma representação da civilização, no cerne da interação

complexa das sensibilidades relativamente ao passado, de suas diversas apropriações

e da construção das identidades. (POULOT, 2009, p. 13)

De todo modo, Poulot também reconhece que o patrimônio “participa de uma metáfora

central de nossa modernidade, a dos ‘modelos de profundidade’ – de acordo com a palavra

forjada por Frederic Jameson – ou ainda a do paradigma indiciário, em conformidade com o

qualificativo adotado por Carlo Ginzburg” (POULOT, 2009, p. 17-18). Para não ser obrigado

a me desdobrar nas interpretações oferecidas por esses dois outros autores, bastaria evocar um

terceiro, e afirmar que, para Poulot, o patrimônio passaria a abrigar, a partir da modernidade,

uma experiência do tempo análoga àquela dos conceitos históricos, conforme proposto por

Reinhart Koselleck (2006). O próprio Poulot afirma que “os mecanismos de aquisição,

conservação e transmissão das obras, tratando-se da formação e da evolução do corpus de

monumentos protegidos ou das coleções de museus, envolvem um horizonte de expectativa

associado às representações de um grupo social, à sua sensibilidade a suas experiências,

próximas ou longínquas” (POULOT, 2009, p. 20, negrito meu). É importante, contudo, destacar

que Poulot nota, no caso da profundidade específica do patrimônio, um deslocamento no

sentido de “invocar a Posteridade em vez do Tempo” (POULOT, 2009, p. 18). De fato, parece

uma constante do patrimônio moderno o efeito de produção identitária por meio do apelo ao

cuidado com uma herança passada de geração para geração.

Tanto Choay quanto Poulout parecem partilhar a ideia de que, de qualquer forma, o

patrimônio permite “objetificar” culturas ou a própria civilização. José Reginaldo Santos

Gonçalves desenvolve esse aspecto com maestria. Segundo esse antropólogo, diversas

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“modalidades de construção discursiva da ‘nação’ podem ser interpretadas como condições

para serem, ao mesmo tempo em que produtos ou efeitos de estratégias de ‘objetificação

cultural’, atualizadas por determinadas categorias e grupos de intelectuais em contextos

socioculturais específicos” (GONÇALVES, 2002, p. 14). Esse tipo de estratégia consiste numa

característica da cultura ocidental moderna segundo a qual se “inventa” uma natureza para uma

cultura (também inventada), como talvez diria Roy Wagner (2010). Em outras palavras,

pensando no caso da “nacionalidade”, seria como se essa ideia se referisse a algo concreto,

“objetivo”, como se ela própria fosse algo cuja “objetividade” fosse passível de ser captada por

um “sujeito do conhecimento”. A objetificação seria, na verdade, a produção discursiva dessa

ilusão. No que se refere especificamente à ideia de nação,

a coerência narrativa é concebida, ilusoriamente, como coerência factual. A nação é

transformada num distante objeto de desejo – o distante passado nacional, a identidade

nacional autêntica – contaminado pela coerência com que é narrado e,

simultaneamente, buscado. Incoerências e diferenças, indeterminação e contingência

são expulsas dos limites desse discurso nacional e concebidas como parte de nossa

vida cotidiana. A coerência e a integridade de que carecemos são projetadas numa

dimensão ausente, que é tornada presente pelas narrativas sobre a identidade e o

passado nacional. (GONÇALVES, 2002, p. 21)

Objetos de coleções museográficas, obras de arte e o patrimônio edificado são

imediatamente protegidos com o surgimento de uma “concepção moderna de história”, que

percebe o tempo como “um processo inexorável de destruição, em que valores, instituições e

objetos associados a uma ‘cultura’, ‘tradição’, ‘identidade’ ou ‘memória’ nacional tendem a se

perder” (GONÇALVES, 2002, p. 23). Esses artefatos referir-se-iam, portanto, a uma “unidade

imaginária”. No entanto, é apenas essa noção de “ruína”, de “fragmentação”, de “perda” que

permite a construção alegórica desse objeto ilusório do desejo, ou seja, a nação como totalidade.

A “perda” não é, assim, uma força externa, inexorável e fragmentadora de algo que possuiria

uma existência natural, objetiva, mas um componente interno do próprio discurso que produz

essa ilusão objetificadora. Segundo Gonçalves, essas alegorias produzidas pelo discurso

patrimonial “não somente expressam um desejo por um passado glorioso e autêntico; elas,

simultaneamente, expõem o seu desaparecimento. Estruturalmente, trata-se de uma forma de

representação que está baseada na própria desconstrução do seu referente” (GONÇALVES,

2002, p. 27).

Gonçalves, Poulot e Choay concebem, portanto, cada um a seu modo, o “patrimônio”

como um objeto produzido discursivamente por determinados sujeitos em função de relações

de poder produzidas pela ideologia moderna. Eu desejo sugerir, todavia, a possibilidade de

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4

inserir um terceiro elemento no meio dessa relação, o que significaria pensar em híbridos que

participam da produção tanto do polo subjetivo quanto do objetivo dessa equação.4 Seria

possível, portanto, pensar esse patrimônio, tanto o artístico, o museal e o edificado, por

exemplo, também como híbridos? Para tanto seria necessário encontrar alguma forma de

agência específica no próprio patrimônio.

Um caminho possível para esse fim seria tomar como inspiração algumas propostas que

têm sido exploradas no campo da antropologia da imagem e da arte. Hans Belting, por exemplo,

deixa de lado as discussões sobre as intenções do artista ou sobre o caráter semiótico da arte

para mostrar que a imagem é algo que acontece entre nós e um medium, que é um “vetor, agente,

dispositif (como dizem os franceses) ou suporte, anfitrião e ferramenta de imagens”

(BELTING, 2005, p. 68).5 Desse modo, o “campo de observação enquadrado” produzido pelo

painel da gravura europeia, por exemplo, foi um medium que foi apropriado por um arranjo

mental a fim de representar imagens preexistentes de uma forma até então inimaginada, capaz

de “controlar o mundo através de uma televista a partir de uma posição interior, o que significa

a partir de uma posição à parte (um dualismo separando interior e exterior, sujeito e mundo)”

(BELTING, 2005, p. 74). Entendo que é esse é um claro exemplo de como um artefato técnico,

um instrumento, um dispositivo, atua no meio social moldando as feições tanto o objeto

representado como o sujeito produtor de representações.

Alfred Gell chega a propor que uma teoria antropológica da arte precisa considerar os

objetos de arte como “pessoas”. No entanto, ao invés de “objeto de arte”, Gell usa o termo

“index” a fim de não restringir o significado antropológico de sua teoria, pois definir essas

coisas como “artísticas” significaria que haveria uma teoria estética a classificá-la, e a teoria

estética faz parte de um circuito específico e restrito de relações ocidentais nos quais esses

objetos estão envolvidos. Um index seria uma coisa visível, física, que “permite uma operação

cognitiva particular” e que Gell identifica como “a abdução da agência” (GELL, 1998, p. 13),

ou seja, uma inferência hipotética de caráter não semiótico ou não convencionalmente

4 A respeito do conceito de “híbrido” e de sua função fundamental na produção de sujeitos e objetos no mundo

moderno, cf. LATOUR, 1994. 5 É importante notar que Belting faz um uso específico da ideia de “imagem”: “Primeiro, poderia ser dito que não

falo de imagens como media, como normalmente fazemos, ao contrário, gostaria de argumentar que as imagens

usam suas própria media, a fim de transmitir-nos suas mensagens e tornar-se, em primeiro lugar, visíveis para nós.

As imagens até mesmo migram entre media diferentes ou combinam as características distintivas de vários media.

E há a segunda premissa: nomeadamente, a assunção de que mesmo nosso corpo opera por sua conta como um

medium vivo. É com essa capacidade inata (a do corpo que representa) que ficamos em posição de fazer uso dos

media fabricados e facilmente distingui-los das imagens inerentes; no sentido de que não assumimos tais media

como simples objetos, nem como corpos reais” (BELTING, 2005, p. 73).

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semiótico, diferente, portanto, da dedução ou da indução.6 “Agência”, por sua vez, é um

conceito fundamental nessa teoria, mais preocupada (à moda britânica) com as “relações

sociais” do que com a “cultura” – e daí uma grande diferença em relação aos “estudos visuais”

ou de “cultura visual”.7 “Agência” significa que “enquanto cadeias de causalidade

física/material consistem em acontecimentos que podem ser explicados por leis físicas que em

última análise governam o universo como um todo, agentes iniciam ‘ações’ que são causadas

por eles mesmos, por suas intenções, não por leis físicas ou pelo cosmo” (GELL, 1998, p. 16).8

Os objetos de arte teriam, então, na verdade, uma espécie de “agência de segunda ordem”, uma

vez que eles estariam imersos numa “textura relacional” na qual podem efetivamente ser

percebidos e tratados como agentes. Trata-se, portanto, de uma agência como que estendida aos

objetos artísticos, mas que se torna autônoma nos contextos relacionais imediatos dos quais eles

participam. Assim, a “agência social pode ser exercitada em relação a coisas e por coisas (e

também animais)” (GELL, 1998, p. 17-18).9 Na verdade, Gell sustenta que a agência só é

possível por meio desses indexes: “a objetificação em forma de artefato é como a agência social

se manifesta e se realiza, por meio da proliferação de fragmentos de agentes intencionais

‘primários’ em suas formas artefatuais ‘secundárias” (GELL, 1998, p. 21).10 Uma vez que Gell

não restringe sua teoria aos “objetos artísticos”, esse é um importante passo para que possamos

pensar também nas “agências” do patrimônio cultural, tanto material quanto imaterial.

Jorge Coli ressalta, por sua vez, a autonomia da arte em relação ao artista:

Graças à materialidade daquilo que são feitos, um quadro, uma escultura, seja o que

for, desencadeiam pensamentos sobre o mundo, sobre as coisas, sobre os homens,

pensamentos que dificilmente seriam por nós formulados como conceitos e como

frases. Muitas vezes o artista é incapaz de interpretar a própria obra. Ou seja, ele não

consegue ver o que fez, o que está dentro da obra. Essa autonomia me faz reiterar que

o princípio da obra de arte como pensamento material e objetivado deixa de ser objeto,

torna-se sujeito, sujeito pensante. O artista, portanto, dá vida a um ser pensante, que,

uma vez no mundo, se torna autônomo em relação ao seu próprio criador. (COLI,

2012, p. 68)

6 “[…] permits a particular cognitive operation which I identify as the abduction of agency”. “Abdução”, neste

caso, é um conceito tomado de empréstimo da semiótica de Charles Sanders Peirce que significa algo como uma

suposição, sendo uma das três formas canônicas de inferência ao lado da “indução” e da “dedução”. Em outras

palavras, abduzir significa, que, tendo-se observado B, A pode explicar B. 7 Para uma visão abrangente do campo de estudos da “cultura visual”, cf. KNAUSS, 2006. 8 “Whereas chains of physical/material cause-and-effect consist of 'happenings' which can be explained by

physical laws which ultimately govern the universe as a whole, agents initiate 'actions' which are 'caused' by

themselves, by their intentions, not by the physical laws of the cosmos”. 9 “Social agency can be exercised relative to 'things' and social agency can be exercised by 'things' (and also

animals)”. 10 “[…] objectification in artefact-form is how social agency manifests and realizes itself, via the proliferation of

fragments of 'primary' intentional agents in their secondary artefactual forms”.

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O que foi acima transcrito nos chama a atenção para o fato de que se esses trabalhos não

mais encaram as obras de arte como significados objetivados por sujeitos-autores, por outro

lado eles tendem a considerá-las como os próprios sujeitos nas relações sociais. A própria

“grande divisão” entre sujeitos e objetos, entre “eles” e “nós” que produz as relações modernas

de subordinação não é assim posta em questão.

Os problemas relacionados às práticas colecionistas que acompanham a própria

constituição da antropologia moderna também têm suscitado algumas reflexões, nesse campo,

a respeito de seus artefatos específicos. Johannes Fabian, por exemplo, sugere que

inquirir sobre ‘itinerários’ e ‘histórias de vida’ de coleções poderia ser um começo

promissor desde que estas, enquanto noções, não sejam usadas apenas como metáforas

adequadas, mas como conceitos que tornam possível apreender aspectos essenciais

das coleções, tais como suas identidades materiais e temporais específicas. (FABIAN,

2010, p. 66)

Todavia, é a antropologia que se tem chamado de “pós-social” (GOLDMAN, 2008) que

tem “revolucionado silenciosamente” (HENARE et al., 2007, p. 7), também, essa discussão.11

É importante notar, no entanto, que a abordagem essencialista das “coisas” – tomadas, portanto,

em si mesmas, para além da separação operada pela epistemologia moderna entre “material e

imaterial” – proposta por Amiria Henare, Martin Holbraad e Sari Wastell, apresenta de maneira

convincente algumas limitações para a perspectiva adotada pelo próprio Latour em relação

àquilo que ele define como sendo um “híbrido”. Segundo esses autores, as coisas que participam

de nossas relações sociais, embora possam ser propriamente entendidos como “híbridos” na

sociedade moderna, não necessariamente devem ser encarados dessa forma em contextos

relacionais não modernos. Os significados “não seriam portados pelas coisas, mas exatamente

idênticos a elas” (HENARE et al., 2007, p. 3).12 Tratar-se-ia, portanto, de uma abordagem

heurística, aberta à renovação do aparato teórico da antropologia a partir de um ato de criação

conceitual (“concepção”) não limitado pela epistemologia moderna, isto é, que se daria por

meio da compreensão da pluralidade de ontologias específicas de determinadas coisas,

produzidas por e produtoras de outros mundos e relações.13 Esta é, no entanto, uma perspectiva

11 “O que estas autoras e estes autores têm em comum em seus trabalhos aponta em vários graus em direção às

vantagens analíticas de mudar o foco das questões do conhecimento e epistemologia para aquelas da ontologia”

(HENARE et al., 2007, p. 8) – “What these authors have in common is that their work points in varying degree

toward the analytic advantages of shifting focus from questions of knowledge and epistemology toward those of

ontology”. 12 “[…] meanings are not ‘carried’ by things but just are identical to them”. 13 “Latour expôs a falsidade de nossas inclinações modernas, e ao fazer isso ofereceu uma nova ontologia, a qual

ele reivindicaria universalmente, independentemente de tempo ou espaço. Nossa presumida orientação ontológica

se provou inadequada em seus termos, mas ele nos ofereceu outras novas para pensarmos” (HENARE et al., 2007,

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metodológica que ainda não repôs, a meu ver, a nova ontologia proposta por Latour para

pensarmos as relações especificamente modernas.

Além disso, há nessa perspectiva uma postura ainda mais radical acerca de como

analisar as coisas. Ao contrário de uma perspectiva foucaultiana, por exemplo, segundo a qual

as coisas seriam criadas pelos discursos, como se eles ordenassem uma realidade exterior de

diferentes formas – “sobredeterminando”, portando, a realidade – essa perspectiva nega a

distinção ontológica entre discurso e realidade: “conceitos podem resultar em coisas porque

conceitos e coisas são exatamente a mesma coisa [...]” (HENARE et al., 2007, p. 13).

Entre os sujeitos cujas identidades se construíram narrativamente nessas histórias e o

seu objeto (a própria nacionalidade) surgiram diversos híbridos, que são ao mesmo tempo um

tanto dos sujeitos que os criaram e outro tanto do objeto que eles ajudaram a produzir. Esses

híbridos, ou seja, desde o patrimônio etnográfico, artístico e arquitetônico até os conceitos que

designam uma suposta autenticidade cultural nacional, todos eles não são nem exatamente os

sujeitos e nem os objetos que eles ajudaram a constituir: eles estão, na verdade, situados no

meio do caminho entre ambos. Assim, por exemplo, as edificações barrocas tombadas pelo

SPHAN constituíram tanto uma concepção específica de nacionalidade – a de uma cultura

brasileira predominantemente branca, portuguesa e católica (RUBINO, 1996) – quanto os

sujeitos de sua construção, como deixa claro José Pessôa na apresentação que faz do grande

sujeito do patrimônio arquitetônico nacional que se tornou Lúcio Costa: “No caso de Lúcio,

aliás, é a saudável arquitetura do nosso passado barroco que converte o profissional acadêmico

de sucesso num militante da ‘nova arquitetura” (PESSÔA, 1999, p. 14). Essa “rede

sociotécnica” (LATOUR, 1994) da constituição da modernidade nacional não pode ser pensada,

portando, de maneira cindida, e nem a “agência” dos próprios híbridos pode ser desconsiderada.

2. Orientando-se em meio a lapsos: a constituição narrativa de sujeitos e objetos

do patrimônio

As narrativas historiográficas sobre a trajetória das políticas públicas de tutela do

patrimônio cultural nacional continuam sendo excelentes documentos para flagrarmos esse

campo específico de separação entre os sujeitos e os objetos da modernidade nacional em

funcionamento. Como escrevi logo no início de um outro artigo, “a maior parte do que tem sido

p. 7) – “Latour has exposed the lie of our modernist leanings, and in so doing has offered a new ontology, which

he would claim universally, irrespective of time or place. Our presumed ontological bearings have proved

inadequate in his terms, but he has given us new ones to think through”.

Page 8: O patrimônio cultural entre os sujeitos da modernidade

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narrado, até agora, sobre as políticas públicas de proteção do patrimônio cultural brasileiro

corresponde, direta ou indiretamente, a uma necessidade do próprio IPHAN, ao longo de sua

trajetória, de conferir sentido às suas práticas, criando e recriando identidades que delimitassem

formas seguras de ação” (LOWANDE, 2013a, p. 51).

Todavia, esse elo que vai do sujeito ao objeto, do(a) intelectual/funcionário(a) à nação,

desaparece dos arquivos e das narrativas historiográficas como tal. Na historiografia produzida

pelo órgão patrimonial só há lugar para a constituição de sujeitos exemplares (ou contra-

exemplares) e dos objetos que devem sofrer sua ação. No caso exemplificado no final da seção

anterior, o arquiteto é o sujeito, ao passo que a alma, ethos ou identidade da nação é o objeto.

Os híbridos em si mesmos não são audíveis: ou falam dos sujeitos que os criaram ou dos objetos

que permitem alcançar, mas nunca de suas próprias funções de produção de relações modernas

de subordinação.

Mas como acontece esse silenciamento? No caso do sujeito, os arquivos e as narrativas

historiográficas deles decorrentes fazem desaparecer as relações que precisam ser estabelecidas

com o polo do objeto por meio do híbrido para que o próprio sujeito possa emergir. O sujeito é

apresentado como a pessoa dotada de uma perspicácia inata para notar, observar, separar e dar

a ver o seu objeto (no nosso caso, a identidade nacional). A verdadeira cultura nacional é algo

que estava lá desde sempre, apenas esperando um sujeito iluminado que tivesse a capacidade e

o mérito de a descobrir. O mundo moderno aguarda essa pessoa, que se torna assim um sujeito,

com todos os louros e recompensas por ter tido o mérito de manter a modernidade funcionando

e evoluindo, por ter mais uma vez objetificado (isto é, naturalizado, reificado) as relações que

lhe permitem produzir mais e mais. Essa pessoa, subjetivada por meio dos híbridos com os

quais foi impelida a ter contato, é assim desconectada do meio que a criou junto de toda uma

nova gama de objetos nacionais. Só existe, para esses arquivos e essas narrativas, o sujeito

criador, e não o sujeito criado. O sujeito pensa libertar pela verdade que ilumina, de modo que

não mais lhe interessa, saudado pela modernidade como o é, dar-se conta das relações de

produção assimétricas que obscurece dessa forma.

Em relação ao objeto aqui problematizado, ou seja, a “nação”, muito já foi dito a respeito

do seu caráter inventado, imaginado, construído ou mesmo objetificado. Mas, ainda nesses

casos, o que se tem é um sujeito contraexemplar, um antissujeito, o sujeito burguês que produz

um objeto falso. Seria necessário que um novo sujeito se conscientizasse do seu papel

revolucionário e criasse, assim, um novo objeto, um objeto verdadeiro, transformando, assim,

a modernidade burguesa numa modernidade socialista, por exemplo. Percebe-se que a própria

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modernidade enquanto ideologia e estrutura fluida de relações assimétricas, que se reproduz

pela desconexão narrativa entre sujeitos e objetos, não é colocada em questão.

A historiografia do patrimônio narra, por meio dos próprios arquivos das práticas

patrimoniais, uma sucessão de objetos cada vez mais verdadeiros em função das descobertas

realizadas por sujeitos comprometidos com uma sociedade cada vez mais democrática. Ou,

mesmo numa outra perspectiva, que se pretende um pouco mais crítica, ela indica a necessidade

de que esses sujeitos democráticos, ainda inexistentes, tomem consciência da necessidade de

procurar o verdadeiro objeto, isto é, uma concepção de nação objetiva, não ofuscada por

nenhum tipo de falsa consciência, que nos indique a possibilidade de uma modernidade

verdadeiramente democrática. Mas dessa democracia não participam os híbridos, esses seres

obscuros que transformam tanto os sujeitos quanto os objetos e, no decorrer deste trabalho,

continuam produzindo formas modernas de relações assimétricas e de temporalidades que as

orientam.

Quando eu escrevi o artigo “Orientando-se me meio a lapsos…” (LOWANDE, 2013a)

eu estava observando apenas a dinâmica da produção narrativa de sujeitos do patrimônio. Eu

percebi que esses sujeitos ganhavam uma identidade mais definida em momentos de crise da

produção daquilo que hoje eu entendo serem esses híbridos em forma de patrimônio cultural.

Quando o SPHAN, essa instituição cuja finalidade é produzir o valioso objeto da modernidade

– a nação –, se via na iminência de uma implosão, surgiam narrativas destinadas a manter viva

a ação patrimonial, ou seja, a indicar a sua importância para o futuro da coletividade nacional

a partir de alguns aspectos criteriosamente selecionados no passado.

As narrativas e as ideias de sentido que lhes dão forma podem ser, portanto, entendidas

também como um desses “híbridos” – e todos que produzimos algum tipo de narrativa podemos

notar o quanto ela própria vai constituindo os seus objetos ao mesmo tempo que constitui a nós

mesmos como sujeitos. Esse foi o “orientar-se em meio a lapsos” do patrimônio: a produção de

narrativas que, trazendo à tona alguns elementos e ocultando outros, garantisse a necessidade

de que os sujeitos do patrimônio continuassem executando a sua infindável tarefa de

desvelamento da nacionalidade brasileira, o objeto essencial de sua atividade. Vejamos então o

que, à época, eu escrevi a este respeito.

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3. A historiografia sobre as políticas públicas de preservação patrimonial cultural

no Brasil 14

Silvana Rubino já havia notado que “o PHAN [sic], desde sua fundação e em suas

diversas fases sempre contou e recontou seu mito de origem” (RUBINO, 1991, p. 21). A

antropóloga identifica essa “narrativa” em “discursos oficiais, documentos internos ou de

circulação mais ampla, sempre de modo incompleto, com lacunas” (RUBINO, 1991, p. 22).

Dentro dessa acepção mais ampla de narrativa, podemos encontrar, até aproximadamente a

década de 1980, textos não apenas laudatórios, mas preocupados com uma reflexão sobre o

sentido histórico da atuação do IPHAN ao longo de sua trajetória.

Um primeiro momento de reflexão ocorreu com a morte de Rodrigo Melo Franco de

Andrade, em 1969, que ocasionou a primeira grande carência de sentido da instituição. Sempre

considerado o líder carismático do IPHAN, com sua perda, os funcionários do órgão federal

começaram a se indagar sobre os rumos da atuação do órgão federal. Ainda em 1969, é lançado

o livro A lição de Rodrigo (DPHAN, 1969), que pode ser considerado um primeiro esforço

sistemático de compreensão do sentido das práticas da então Diretoria do Patrimônio Histórico

e Artístico Nacional (DPHAN). A figura de Melo Franco de Andrade passa, a partir de então,

a ser confundida com todo um período de atuação do IPHAN, a que se convencionou chamar,

a partir de artigo escrito por Luís Saia, no início da década de 1970, de “fase heroica” (SAIA,

1977). Essa expressão passou a definir o decurso de tempo que vai de 1936 a 1975, compondo,

a partir de então, toda e qualquer tentativa de periodização, não só da história da instituição,

mas, de modo mais amplo, das políticas públicas de proteção de bens culturais no Brasil.

O segundo momento de carência de sentido para a atuação do órgão deu-se a partir da

segunda metade da década de 1970. Com um mundo já bastante diverso daquele vivido durante

a “fase heroica” do IPHAN, as práticas identificadas com Melo Franco de Andrade passariam

agora por um novo questionamento. Liderados por Aloísio Magalhães, o grupo que se ligou ao

Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) voltou, mais uma vez, os olhos para a

“trajetória” do IPHAN. Para esse grupo, as ações efetivadas durante a “fase heroica”, não

obstante a seriedade e o rigor, ético e metodológico, no trato com o passado, fundamentar-se-

14 Esta seção é composta, com algumas correções, da seção “2. A historiografia sobre as políticas públicas de

preservação patrimonial cultural no Brasil” de LOWANDE, 2013a. Os itálicos são originais. O artigo original se

ampara sobretudo na “metateoria da história” de Jörn Rüsen (2001) e em sua concepção a respeito da “matriz

disciplinar” específica da ciência da história. A característica particular desses saberes relacionar-se-ia com as

carências de orientação para a ação e de identidade concretas das pessoas em suas vidas cotidianas. Tais interesses

tomariam a forma de uma apresentação metódica da experiência do tempo na historiografia e, por fim, retornariam

(ou deveriam retornar), por meio de diversos instrumentos didáticos, como saberes práticos à vida social.

Page 11: O patrimônio cultural entre os sujeitos da modernidade

11

iam numa visão bastante elitista do passado histórico nacional. Além disso, tratar-se-ia de uma

concepção de cultura “morta”, paralisada no tempo, que deveria ser substituída por outra,

“viva”, que pudesse contribuir com o desenvolvimento criativo da nação.

O grupo de Magalhães passa, então, a produzir um discurso para o presente, a partir de

uma construção histórica: era preciso substituir a noção de um “patrimônio-pedra-e-cal” por

outra, por uma cultura “viva” e heterogênea, que buscasse um desenvolvimento interno,

autêntico e democrático, de populações tradicionais do país.15 Além do mais, entre a atuação

exemplar de Melo Franco de Andrade e os novos ideais de modificação, do presente, haveria

um período de práticas anacrônicas, efetivadas durante a gestão anterior, de Renato Soeiro, e

que deveria, portanto, ser superado. Estavam assim dispostos e disponíveis os dois grandes

paradigmas que serviriam às periodizações posteriores da “trajetória” do IPHAN.

Um exemplo de produto historiográfico desse período pode ser encontrado na obra

Proteção e Revitalização do Patrimônio Cultural no Brasil: uma trajetória

(MEC/SPHAN/PRÓ-MEMÓRIA, 1980), produzida já no âmbito da Fundação Nacional Pró-

Memória. Segundo Márcia Chuva, esse livro

tem uma importância considerável, nos anos 1980, como obra de referência para

aqueles que lidam com a preservação cultural, pois, pela primeira vez, buscou-se

construir e divulgar uma história oficial dessa prática no Brasil, além de ter sido dado

um caráter de documentário à publicação – evidente pretensão de veracidade –,

basicamente constituída de uma série de documentos, projetos de lei, legislações,

portarias etc., que instituíram as ações de preservação e embasaram textos legais sobre

o assunto. (CHUVA, 2009, p. 60)

Fica claro, portanto, a partir dessa citação, que a historiografia cumpre aqui, também, a

função de orientar as condutas presentes, apoiando-se numa validade que somente as fontes ou

documentos podem fornecer (para além de instrumentos puramente retóricos ou poéticos).

Foi, contudo, somente depois de uma terceira crise de sentido, essa talvez mais

contundente que as anteriores, que uma historiografia propriamente acadêmica, relativa às

práticas preservacionistas e de restauro do país, começou a se estruturar. Em 1992, durante o

governo de Fernando Collor de Melo, as atividades do IPHAN chegaram a ser suspensas.

Embora os parâmetros de atuação fornecidos pelo grupo de Aloísio Magalhães fossem os mais

desejados, eles não puderam se efetivar nesse novo e conturbado contexto. Passou-se, então, a

15 A partir do livro E Triunfo? de Aloísio Magalhães (MAGALHÃES, 1997), é possível constatarmos, de maneira

bastante clara, as práticas discursivas emanadas, nesse período, em torno da figura carismática desse designer, que

se tornou não só o líder substituto do IPHAN, mas também, posteriormente, Ministro da Cultura. Além dos

trabalhos que mencionaremos adiante, é possível encontrar boas indicações a respeito desse período em SIMÃO,

2008.

Page 12: O patrimônio cultural entre os sujeitos da modernidade

12

buscar respostas metodologicamente embasadas para essa nova crise de sentido, seja por parte

dos funcionários do IPHAN ou por acadêmicos em sentido estrito, sendo que todos agora

puderam se amparar num sistema já fortemente estruturado de pós-graduação no país. Passamos

a ter, a partir de então, dissertações, teses e artigos, tentando fornecer ao IPHAN o sentido de

que carecia para continuar levando a cabo suas ações.16

Esse conjunto de trabalhos contribuiu enormemente para o conhecimento das ações de

proteção dos bens culturais no Brasil. Ele permitiu, de modo mais amplo, uma melhor

compreensão da dinâmica política, cultural e social de todo esse período abordado, sobretudo

no que diz respeito à história da elite intelectual nacional e dos discursos construídos, a partir

do Estado Novo, sobre a identidade nacional. Como exemplos dos aspectos que então passaram

a ser melhor conhecidos, tem-se a pretensão de rigor “científico”, ao lado do “ético”, com o

qual se procurava dotar a prática preservacionista do SPHAN;17 a relativa autonomia gozada

por esse órgão junto ao Estado;18 e, além disso, o recurso à identificação do período “moderno”

a uma tradição autêntica, ligação temporal sempre possibilitada por uma noção de “processo

civilizatório”, “evolução” ou “trajetória”. Assim, essas tentativas de identificação de

concepções hegemônicas de patrimônio cultural acabaram por clarificar um conjunto de

práticas de fato existentes na atuação do SPHAN, além de demonstrar os motivos de sua

eficácia.

Essa literatura, por outro lado, sedimentou uma concepção segundo a qual a história das

práticas preservacionistas nacionais pode ser identificada com dois paradigmas hegemônicos.

O primeiro deles estaria ligado ao grupo composto por Rodrigo Melo Franco de Andrade, pelos

modernistas mineiros e por Lucio Costa e os arquitetos modernos cariocas. Ele se relacionaria

à valorização de uma tradição construtiva portuguesa, fosse ela religiosa ou de residência, que

indicaria, por intermédio de características estéticas como a “sobriedade” ou “saúde plástica”

de nossas construções, a “verdadeira tradição” de uma civilização brasileira, cuja “linha

evolutiva” deveria ser seguida, no intuito de se construir uma nação autenticamente moderna,

e não apenas uma cópia da civilização europeia, desajustada ao nosso meio tropical (como

haveria sido quase todo o século XIX). Desse modo, o patrimônio cultural nacional seria, por

16 O que se segue é uma análise bastante generalizante a partir dos seguintes trabalhos, que não representam a

totalidade da ampla produção atualmente conhecida sobre o tema, mas conformam um quadro bem representativo

sobre o que foi produzido a respeito década de 1990 e início do século XXI no Brasil: RUBINO, 1991 e 1996,

CAVALCANTI, 1995 e 1996; MENDONÇA, 1995; SANTOS, 1996; FONSECA, 1997 e 2001; GONÇALVES,

2002; MALHANO, 2002. 17 A ideia de “Academia” proposta por Mariza Santos (SANTOS, 1996), é emblemática desse aspecto e aparece

de forma semelhante na maioria dos demais autores mencionados. 18 Tema central, principalmente em CAVALCANTI, 1995 e 1996, e MENDONÇA, 1995, embora também notado

pelos demais autores.

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13

excelência, o edificado, ou, como se costuma dizer, “pedra-e-cal”, e teria predominado até por

volta de 1975, quando a instituição passou por transformações mais profundas.

A partir de então, o grupo de Aloísio Magalhães seria o responsável, por sua vez, pelo

resgate de um conceito mais amplo de cultura (mais próximo daquele proposto por Mário de

Andrade e supostamente abandonado pela primeira geração do SPHAN). Este conceito se

referiria a todas as manifestações culturais nacionais, principalmente aquelas ditas “vivas”, cuja

manutenção seria essencial para que grupos sociais específicos continuassem existindo e se

desenvolvendo social e economicamente, sem que com isso se perdesse o “novo” valor nacional

da diversidade. O patrimônio “pedra-e-cal” seria substituído agora pela noção mais abrangente

de “bem cultural”.

Com isso reitera-se, no entanto, as próprias narrativas previamente inscritas nos

arquivos do IPHAN. Essas narrativas são justamente aquelas que foram produzidas com o

intuito de superar as crises sentido que ameaçaram, ao longo de sua trajetória, a sua obra de

produção de sujeitos e objetos da modernidade nacional por meio do patrimônio cultural. Ao

associar cada um dos períodos paradigmáticos das práticas preservacionistas nacionais a uma

grande subjetividade, essas narrativas na realidade apagam os vestígios desses processos de

subjetivação e objetivação. Elas apresentam sujeitos que produziram um patrimônio nacional,

e não um patrimônio nacional que produziu sujeitos. Elas mostram funcionários dedicados que

se empenharam, certos ou errados, no descobrimento da nacionalidade, mas não as ferramentas

conceituais que produzem tanto a nação quanto os próprios funcionários. Elas focam em

indivíduos isolados, dotados de uma clareza moral e de técnicas precisas de ação, em lideranças

carismáticas, em grandes sujeitos, obscurecendo assim os diversos entrecruzamos que a todo

momento perpassam essas subjetividades transformando-as, tolhendo assim um significado que

só pode ser captado numa rede de fluxos que, assim como a própria modernidade, tem um

caráter transnacional. Elas objetificam os próprios híbridos, como se o patrimônio não pudesse

ser nada além do que aquilo que ele deveria representar. Elas, por fim, naturalizam a

objetividade da nação, sempre demandando a procura do verdadeiro sujeito a desvendá-la.

4. Considerações finais

É possível olhar para o patrimônio cultural brasileiro, para os arquivos de sua

constituição, e encontrar justo aquilo que ali se pretende suprimir? É possível, para além da

estabilidade dos consensos impostos, descobrir dissensos estruturantes? É possível, para além

dessas temporalidades projetadas de subjetividades, desvendar um movimento complexo de

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14

coisas, um fluxo de recursos capazes de produzir os próprios sujeitos e objetos de uma

modernidade alternativa nos trópicos? É possível, enfim, flagrar essa história transnacional da

modernidade naquilo que se encobre sob o véu do patrimônio cultural nacional?

Eu ainda tratei no artigo evocado acima da necessidade de se prestar a atenção em

“outros atores” (algo que, agora, chamaria de outros sujeitos), do patrimônio cultural nacional:

[…] é preciso agora dirigir o olhar para os aspectos menos notados (no tempo e no

espaço) dessas práticas, que igualmente as constituem. O “nariz torcido de Lucio

Costa”19 passaria a representar, assim, mais a necessidade de acatamento de pontos de

vista discordantes, que a autoridade absoluta dos quadros dirigentes. É necessário

investigar, desse modo, se essas práticas foram mesmo forjadas pela imposição de

pontos de vista dominantes, ou se se constituíram, na verdade, num espaço de disputa

pela implementação de interesses individuais ou grupais específicos. Um

empreendimento cultural do porte do que foi pretendido pelo Serviço do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), isto é, a proteção de um patrimônio cultural

disperso numa área de mais de oito milhões de quilômetros quadrados, precisou,

necessariamente, contar com o apoio de intelectuais detentores das mais diversificadas

versões sobre a “evolução” da nação (talvez o único ponto consensual entre eles).

(LOWANDE, 2013a, p. 58)

Esse foi o empreendimento intelectual ao qual eu mesmo havia me lançado desde a

produção de minha dissertação de mestrado (LOWANDE, 2010). Essa tensão também já

transparecia em outros trabalhos anteriores, atentos sobretudo à diversidade de publicações do

SPHAN, cujo contraste com o padrão aparentemente mais rígido de seus “tombamentos” é

bastante evidente.20 Ao focar outros sujeitos, eu acabei tratando também dos objetos e dos

híbridos que mediavam essa relação de produção, mas sem, no entanto, problematizá-la

devidamente.

19 Referência à anedota narrada por Antônio Luiz Dias de Andrade (ANDRADE, 1992), a respeito das relações

por vezes conflituosas estabelecidas entre a direção central do SPHAN no Rio de Janeiro, na pessoa de Lucio

Costa, e a regional paulista da mesma instituição, comandada por Luís Saia. Sobre as polêmicas em torno das

práticas de restauro da regional paulista do SPHAN, cf. também GONÇALVES, 2007, e LEMOS, MORI e

ALAMBERT, 2008. 20 A exemplo de RUBINO, 1991 e CHUVA, 2009. Um estudo muito importante em função da nova perspectiva

aberta a partir de então é o de GRUPIONI, 1998, que chamou a atenção para todo um circuito paralelo de relações

que envolvia diretamente o Museu Nacional e também era atrelado à idea de patrimônio nacional, isto é, aquele

relacionado aos artefatos etnográficos, científicos e artísticos cuja circulação era fiscalizada pelo Conselho de

Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil. A partir de então outras pesquisas passaram a

apontar para a necessidade de se ampliar o escopo da definição de patrimônio para além do arquitetônico, inclusive

no período tradicionalmente chamado de “pedra-e-cal”. Os trabalhos que vêm apostando nessa ampliação

certamente vão muito além do que eu conseguiria listar aqui, mas gostaria mencionar, como exemplo, SIMÃO,

2008, DIAS e LIMA, 2012, LOWANDE, 2013b, e MAGALHÃES, 2015. Alguns trabalhos relacionados às

práticas preservacionistas no estado de São Paulo também têm lançado luz a outros projetos de nação por meio da

proteção ao patrimônio cultural nacional, ampliando também, portanto, o alcance da própria concepção de

patrimônio para o período: NOGUEIRA, 2005, LOWANDE, 2010, SENA, 2011, TRINDADE, 2012,

LOWANDE, 2014, SODRÉ, 2014; TRINDADE, 2014.

Page 15: O patrimônio cultural entre os sujeitos da modernidade

15

De todo modo, é necessário nos voltarmos a estes complexos entrecruzamentos que

produziram os sujeitos e os objetos da modernidade brasileira por meio do patrimônio cultural.

Explicitar os processos que conduziram à objetificação da cultura nacional é um passo

necessário para restituir a voz de pessoas que, dessa forma, foram e continuam sendo silenciadas

pelas narrativas que compõem a metanarrativa da modernização brasileira. Seus saberes e

modos de vida concretos, conhecidos e produzidos por pessoas reais, têm sido subtraídos de

seus contextos e abstraídos no suposto anonimato da cultura nacional, ao passo que os que

ganham voz nesse processo são os intelectuais/funcionários lembrados a partir daí como os

grandes sujeitos descobridores da nacionalidade. Entre sujeitos e objetos assim produzidos

encontra-se, dentre outros instrumentos, o patrimônio cultural, que pode continuar assim

servindo para reproduzir as relações assimétricas de poder e visibilidade engendradas pelo

persistente sonho da modernidade nacional e universal.

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