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 O Pensamento Anarquista de David Graeber:  Um Exame Kevin Carson

O Pensamento Anarquista de David Graeber: Um Exame

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Neste artigo para o C4SS, Kevin Carson faz um apanhado geral dos temas anarquistas no trabalho do antropólogo David Graeber.In this paper for C4SS, Kevin Carson investigates anarchist themes in the work of antropologist David Graeber.

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  • O Pensamento Anarquista de David Graeber: Um Exame

    KevinCarson

  • CentroporumaSociedadesemEstadoN17(InvernoPrimavera2014)

    Introduo: A Primazia da Vida Cotidiana David Graeber escolheu, como epgrafe de seu livro Fragmentos de uma Antropologia Anarquista, uma citao do artigo sobre Anarquismo de Pyotr Kropotkin para a Encyclopedia Britannica. Nele Kropotkin afirma que, em uma sociedade anarquista, a harmoniaseria

    obtida, no por submisso lei, ou pela obedincia a qualquer autoridade, mas por acordos livres celebrados entre os vrios grupos, territoriais e profissionais, livremente constitudos por questes de produo e consumo, como tambm pela satisfaodainfinitavariedadedenecessidadeseaspiraesdeumsercivilizado.

    A coisa interessante sobre isso que ele poderia servir como uma descrio precisa de virtualmente qualquer sociedade anarquista, incluindo o tipo comunista libertrio favorecido por Kropotkin, Goldman ou Malatesta, o tipo de anarcosindicalismo favorecido pela maioria dos Wobblies e da CNT, o anarcocoletivismo de Bakunin, o mutualismo de Proudhon, ou o anarquismo de mercado de Thomas Hodgskin e Benjamin Tucker. E apropriado que Graeber tenha escolhido ele como sua epgrafe, porque sua afeio por "grupos livremente constitudos" e "acordos livres" celebrados entre eles maior do que qualquer tentativa

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  • doutrinria de classificar tais grupos e acordos como firmas empresariais operando no nexo monetriooucomocoletivossemmoeda.Graeber, como j vimos ser o caso com Elinor Ostrom, caracterizado, acima de tudo, por uma f na criatividade e na agncia humana, e uma relutncia em deixar formulaes tericas a priori impedirem suas percepes tanto sobre a particularidade quanto sobre "existncia"NT01 da histria, ou interferirem com a capacidade de agrupamentos comuns e faceaface de pessoas no local desenvolverem arranjos funcionais quaisquer que possam ser entre si mesmas. Graeber um daqueles pensadores anarquistas (ou anarquistescos) que, apesar de possivelmente se identificarem com uma variante hifenizada do anarquismo, tem uma afeio pela variedade e pela particularidade de instituies autoorganizados e de escala humana que vai alm do rtulo ideolgico. Essas pessoas, igualmente, vem os relacionamentos entre seres humanos individuais de formas que no podem ser reduzidas a simplesabstraescomoonexomonetrioouosocialismodoutrinrio.

    Se ns realmente queremos entender os fundamentos morais da vida econmica e, por extenso, da vida humana, pareceme que precisamos comear... com as coisas bem pequenas: os detalhes cotidianos da existncia social, a maneira como tratamos nossos amigos, inimigos e filhos frequentemente com gestos to minsculos (passar o sal, pedir um cigarro) que normalmente nunca sequer paramos para pensar sobre eles. A antropologia tem nos mostrado exatamente quo diferentes e numerosas so as maneiras em que sabese que humanos se organizam.Maselatambmrevelaalgumasnotriassemelhanas...

    O anarquismo de Graeber , acima de todo resto, centrado em humanos. Ele implica em uma alta considerao pela atividade e razoabilidade humanas. Em vez de ajustar seres humanos reais a algum paradigma anarquista idealizado, ele exibe uma abertura a e uma celebrao de o que quer que seja que seres humanos possam realmente fazer ao exercitar essa atividade e razoabilidade. A anarquia no o que as pessoas faro "aps a Revoluo", quando algum tipo de "Novo Homem Anarquista" tiver emergido a quem se possa confiar autonomia o que elas fazer agora mesmo. "Anarquistas so simplesmente pessoas que acreditam que seres humanos so capazes de se comportarem de uma maneirarazovelsemteremqueserforadosaisso."Em sua forma mais simples, as crenas anarquistas se ligam a duas suposies elementares. A primeira que seres humanos so, sob circunstncias normais, to razoveis e decentes quanto se permite que sejam, e podem organizar a si mesmos e s suas comunidades sem que se precise lhes dizer como. A segunda que o poder

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  • corrompe. Acima de tudo, o anarquismo apenas um questo de ter a coragem de tomar os simples princpios de decncia atravs dos quais todos ns vivemos, e seguilos at suas concluses lgicas. Por mais estranho que isso possa parecer, das maneiras mais importantesvocprovavelmentejumanarquistavocapenasnopercebeu.Vamoscomeartomandoalgunsexemplosdavidacotidiana.

    Se h uma fila para entrar em um nibus lotado, voc espera sua vez e se abstm deacotovelaraspessoasparaabrircaminhonaausnciadapolcia?

    Se voc responder "sim", ento voc est acostumado a agir como um anarquista! O princpio anarquista mais bsico a autoorganizao: a suposio de que seres humanos no precisam ser ameaados com processos a fim de que sejam capazes de chegar a entendimentos razoveis uns com os outros, ou de tratar uns aos outros com dignidade e respeito...Para encurtar um longa histria: anarquistas acreditam que sobretudo o prprio poder, e osefeitosdopoder,quetornamaspessoasestpidaseirresponsveis.

    Voc membro de um clube ou de um time esportivo ou qualquer outra organizao voluntria em que as decises no so impostos por um lder, mas feitas na base do consensogeral?

    Se voc respondeu "sim", ento voc pertence a uma organizao que trabalha sobre princpios anarquistas! Outro princpio anarquista bsico a associao voluntria. Isto simplesmente uma questo de aplicar os princpios democrticos vida comum. A nica diferena que anarquistas acreditam que deveria ser possvel ter uma sociedade em que tudo pudesse ser organizado de acordo com essas linhas, todos os grupos baseados no livre consentimento de seus membros e, portanto, que todos os estilos topdown e militares de organizao, como exrcitos, burocracias ou grandes corporaes, baseados em cadeias de comando, no seriam mais necessrios. Talvez voc no acredite que isso seja possvel. Talvez voc acredite. Mas toda vez que voc chega a um acordo atravs de consenso, em vez de ameaas, toda vez que voc faz um acordo voluntrio com uma outra pessoa, chega a um entendimento, ou chega a um compromisso dando a devida considerao situao e s necessidades particulares da outra pessoa, voc est sendo umanarquistamesmosevocnoperceber.

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  • O anarquismo apenas a maneira que as pessoas agem quando elas so livres para fazer o que escolherem, e quando elas lidam com outras que so igualmente livres e, portanto, estocientesdaresponsabilidadeparacomasoutrasqueissoimplica.A abordagem de Graeber quanto forma de uma hipottica sociedade anarquista simples: retire todas as formas de dominao, ou de autoridade unilateral e no responsiva por parte de algumas pessoas sobre outras, coloque as pessoas juntas, e veja com o que elasaparecem.Como veremos posteriormente, Graeber critica vises totalizantes e idealizadas do estado. Similarmente, a prpria anarquia, em vez de um sistema totalizante, apenas uma maneira das pessoas interagirem umas com as outras, e isso (como Colin Ward...) est em tudo em tornoaonossoredoragora.

    Poderamos comear com um tipo de sociologia de microutopias, a contraparte de uma tipologia paralela de formas de alienao, formas alienadas e noalienadas de ao... O momento em que paramos de insistir em ver todas as formas de ao apenas atravs de sua funo de reproduzir formas maiores e totais de desigualdade de poder, seremos tambm capazes de ver que as relaes sociais anarquistas e as formas noalienadas de ao esto em tudo ao nosso redor. E isto crtico porque j mostra que o anarquismo , j, e sempre tem sido, uma das principais bases da interao humana. Ns nos autoorganizamos e nos engajamos emajudamtuaatodotempo.Sempreofizemos.

    A definio de Graeber de "Anarquia", adequadamente, bastante simples. o que quer que seja que as pessoas decidam fazer, quaisquer arranjos dos inmeros possveis que elasfaamentesimesmas,quandonoestosendoameaadascomviolncia:

    ...um movimento poltico que visa produzir uma sociedade genuinamente livre e que define uma "sociedade livre" como uma onde humanos entram apenas naqueles tipos de relaes uns com os outros que no teriam que ser feitas cumprir pela ameaa constante de violncia. A histria tem mostrado que vastas desigualdades de riqueza, instituies como a escravido, serivdo por dvida, ou trabalho assalariado, s podem existir se suportadas por exrcitos, prises, e polcia. Mesmo desigualdades estruturais mais profundas como o racismo e o sexismo so, em ltima instncia, embasadas na (mais stil e insidiosa) ameaa de fora. Anarquistas, portanto, vislumbram um mundo baseado na igualdade e na solidariedade, em que seres humanos seriam livres para se associarem uns com

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  • outros para perseguir qualquer variedade infinita de vises, projetos e concepes do que elas acham valioso na vida. Quando as pessoas me perguntam que tipos de organizao poderiam existir em uma sociedade anarquista, eu sempre respondo: qualquer forma de organizao que se possa imaginar, e provavelmente muitas que atualmente no podemos, com apenas uma ressalva elas estariam limitadas s que possam existir sem ningum ter a capacidade, em nenhum momento, de chamar homens armados para aparecerem e dizer "eu no me importo o que voc temadizersobreistocaleabocaefaaoqueformandado".

    Graeber se considera um "anarquista com a minsculo", do lado de quaisquer formas sociais em particular que pessoas livres e mutuamente anuentes organizem para si mesmas quandosaremdebaixododedodaautoridade.

    Eu estou menos interessado em descobrir que tipo de anarquista eu sou do que em trabalhar em amplas coalizes que operem de acordo com princpios anarquistas: movimentos que no esto tentando trabalhar atravs ou se tornarem governos movimentos desinteressados em assumir o papel de instituies governamentais de facto, como organizaes profissionais ou firmas capitalistas grupos que foquem em tornar nossas relaes uns com os outros um modelo do mundo que desejamos criar. Em outras palavras, pessoas trabalhando em direo a sociedades verdadeiramente livres. Afinal, difcil descobrir exatamente que tipo de anarquismo faz mais sentido quando tantas questes s podem ser respondidas mais adiante na estrada. Haveria um papel para mercados em uma sociedade verdadeiramente livre? Como poderamos saber? Eu mesmo estou confiante, embasado na histria, que mesmo se tentssemos manter uma economia de mercado em tal sociedade livre isto , uma em que no haveria nenhum estado para fazer cumprir contratos, de forma que acordos viriam a ser baseados apenas na confiana as relaes econmicas rapidamente se metamorfoseariam em algo que libertrios achariam completamente irreconhecvel, e logo no se assemelhariam a qualquer coisa que estamos acostumados a pensar como um "mercado". Eu certamente no consigo imaginar ningum concordando em trabalhar por salrios se tiver quaisquer outras opes. Mas quem sabe, talvez eu esteja errado. Eu estou menos interessado em planejar com o que se pareceria a arquitetura detalhada de uma sociedade livre, do queemcriarascondiesquenospermitiriamdescobrir.

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  • Eu mesmo estou menos interessado em decidir que tipo de sistema econmico deveramos ter em uma sociedade livre do que em criar os meios atravs dos quais aspessoaspossamfazertaisdecisesporelasmesmas.

    altamente improvvel que isto acabasse parecendo qualquer modelo hifenizado monoltico em particular de anarquismo, como anarcosindicalismo, anarcocomunismo, ou qualquer outra viso esquematizada de sociedade. Seria muito mais provvel incluir uma mistura de todo tipo de coisas, a maioria das quais provavelmente j existe em forma nascente hoje em dia em todo nosso entorno. Alm de economias de ddiva e de compartilhamento, /peerproduction/, etc., poderia muito bem incluir elementos significativos de trocas de mercado embora Graeber seja altamente ctico que qualquer coisas remotamente que se assemelhe ao "anarcocapitalismo" pudesse vir a existir ou ser sustentadointeiramenteatravsdeacordosvoluntrios.

    Mesmo o que agora parecem grandes e gritantes divises ideolgicas provavelmente se resolveriam bastante facilmente na prtica. Eu costumava frequentar grupos de notcias na Internet nos anos 1990, que, na poca, estavam cheios de criaturas que se denominavam "anarcocapitalistas". ...A maioria delas passava uma boa quantidade de seu tempo condenando anarquistas de esquerda como proponentes de violncia. "Como voc pode ser a favor de uma sociedade livre e ser contra o trabalho assalariado? Se eu quiser contratar algum para colher meu tomates, como voc vai me impedir exceto atravs da fora?" Logicamente, ento, qualquer tentativa de abolir o sistema de salrio s pode ser feito cumprir por alguma nova verso da KGB. Ouvese esses argumentos frequentemente. O que nunca se ouve, significantemente, algum dizer "Se eu quiser ser contratado para colher os tomates de algum, como voc vai me impedir exceto atravs da fora?" Todo mundo parece imaginar que, em uma futura sociedade sem estado, eles, de alguma forma, vo acabar membros da classe empregadora. Ningum parece pensar que eles sero os colhedores de tomates. Mas de onde, exatamente, eles imaginam que esses colhedores de tomates vo vir? Aqui podese empregar um pequeno experimento mental: vamos chamlo de parbola da ilha dividida. Dois grupos de idealistas reclamam, cada um, metade de uma ilha. Eles concordam em desenhar a fronteira de tal forma que h quantidades aproximadamente iguais de recursos em cada lado. Um grupo passa a criar um sistema econmico em que certos membros tm propriedade, outros no tem nenhuma, e aqueles que no tem nenhuma no tem quaisquer garantias sociais: eles sero deixados morrer de fome a menos que busquem emprego sob quaisquer termos que os ricos estejam dispostos a oferecer. O outro grupo cria uma sistema em que garantido a todos

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  • pelo menos os meios bsicos de existncia, e acolhe todos os que chegam. Que possvel razo aqueles previstos para serem o vigia noturno, os enfermeiros, e os mineradores de bauxita na sociedade anarcocapitalista teriam para ficar l? Os capitalistas ficariam desprovidos de sua fora de trabalho em uma questo de semanas. Como resultado, seriam forados a patrulhar seus prprios terrenos, limpar seus prprios penicos, e operarem seu prprio maquinrio pesado isto , a menos que eles rapidamente comeassem a oferecer a seus trabalhadores um acordo to extravagantemente bom que eles poderiam muito bem estar vivendo em umautopiasocialistaafinal.

    Por essa e por qualquer nmero de outras razes, estou certo que, na prtica, qualquer tentativa de criar uma economia de mercado sem exrcitos, polcia e prises para suportla acabar no parecendo nada com o capitalismo muito rapidamente. Na verdade, eu suspeito fortemente que ela acabaria parecendo muito pouco com o que estamos acostumados a pensar como um mercado. Obviamente eu poderia estar errado. possvel que algum tente isso, e os resultados sejam muito diferentes do que eu imaginei. Caso no qual, tudo bem, eu estarei errado. Sobretudo,euestouinteressadoemcriarascondiesemquepodemosdescobrir.

    (Vale a pena manter em mente que o "acordo voluntrio" ente Robinson Cruso e "SextaFeira" foi possvel apenas porque Cruso foi capaz de reclamar "propriedade" sobre todaailhacomaajudadeumaarma.)Graeber est razoavelmente confiante na capacidade das pessoas medianas de organizar maneiras de conviverem na ausncia de autoridade. Os casos em que o colapso de um estado resulta em uma Hobbesiana "guerra de todos contra todos", como a Somlia, so na realidade uma minoria. A violncia na Somlia resultou principalmente do fato de que o estado colapsou em meio a uma guerra prexistente entre grandes chefes militares, que continuaramalutarapsoestadotercolapsado.

    Mas na maioria dos casos, como eu mesmo observei em partes rurais de Madagascar, muito pouco acontece. Obviamente, as estatsticas esto indisponveis, uma vez que a ausncia de estados geralmente tambm significa a ausncia de qualquer um levantando estatsticas. No entanto, eu falei com muitos antroplogos e outros que estiveram em tais lugares e seus relatos so surpreendentemente similares. A polcia desaparece, as pessoas param de pagar impostos e, de outra forma, elas praticamente continuam

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  • como faziam antes. Certamente elas no entram em uma Hobbesiana "guerradetodoscontratodos".

    Comoresultado,nsquasenuncaouvimosfalardetaislugares...

    Ento, a verdadeira questo que termos que perguntar se torna: o que que a experincia de viver sob um estado, isto , em uma sociedade em que as regras so feitas cumprir por ameaa de prises e pela polcia, e todas as formas de desigualdade e alienao que isso torna possvel, que faz ela parecer bvio para ns que as pessoas, sob tais condies se comportariam deumamaneiraque,nofinaldascontas,elasrealmentenosecomportam?

    A resposta anarquista simples. Se voc trata pessoas como crianas, elas tendero a agir como crianas. O nico mtodo bem sucedido que qualquer um jamais inventou de encorajar outros a agirem como adultos tratlos como se j o fossem. No infalvel. Nada . Mas nenhuma outra abordagem tem qualquer chance real de sucesso. E a experincia histrica do que realmente acontece em situaes de crise demonstra que mesmo aqueles que no cresceram em uma cultura de democracia participativa, se voc lhes tirar suas armas ou sua capacidade de chamar seus advogados, podem repentinamente se tornar extremamente razoveis. Isto tudo que os anarquistasrealmenteestopropondofazer.

    Ento o anarquismo no apenas uma grandiosa teoria que foi inventada por algum pensador de alto escalo, como Marx no Museu de Londres. o que as pessoas realmente fazem.

    Os princpios bsicos do anarquismo autoorganizao, associao voluntria, ajuda mtua se referem a formas de comportamento que elas [as chamadas "figuras fundadoras" do pensamento anarquista do sculo XIX] assumiam ter existido hquasetantotempoquantoahumanidade.

    I. Democracia Cotidiana O respeito de Graeber pela capacidade das pessoas comuns de atingirem suas metas atravs da cooperao voluntria se reflete em sua viso da democracia, no como algo que a raa humana sofreu em ignorncia por milnios esperando que alguns caras espertos

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  • na gora ateniense, no Iluminismo francs ou na Assemblia do Estado da Filadlfia propusessem, mas algo que as pessoas tm instintivamente feito por toda a histria quando elasseencontravamumassoutrascomoiguais.Ele aponta para a "onda de resposta indignadas em pginas web conservadoras" quando alegaes de intelectuais acadmicos ocidentais de que gregos, ingleses, colonos americanos, ou algum outro ramo da "Civilizao Ocidental", se deparam com Amartya Sen fazendo "o bvio ponto de que a democracia poderia to facilmente ser encontrada em conselhosdealdeianafricadosul,ounandia".

    Neste sentido, a democracia to antiga quanto a histria, quanto a prpria inteligncia humana. Ningum poderia ser dono dela. Eu suponho... que se poderia argumentar que ela emergiu no momento que os homindios deixaram de meramente tentar ameaar uns aos outros e desenvolveram as habilidades de comunicao para resolverem um problema comum coletivamente. Mas tal especulao intil o ponto que assembleias democrticas podem ser atestadas em todos os momentos e lugares, da seka balinesiana ao ayllu boliviano, empregando uma infinita variedade de procedimentos formais, e brotar onde quer que um grande grupo de pessoas se sente junto para fazer uma deciso coletiva sobreoprincpiodequetodosparticipandodeveriamterumavozigual.

    Em outras palavras, ele v instituies para autogovernana e tomada de deciso em geral muito como Elinor Ostrom via instituies para governar recursos comuns: no como algo criado por "grandes homens" ou por autoridades e instituies devidamente constitudas, masporpessoascomunsquesesentavamjuntasecomeavamaconversar.Ento, para Graeber, a democracia algo que emerge "quando se tem uma coleo diversa de participantes, provenientes de tradies muito diferentes, com uma necessidade urgente de improvisar algum meio de regular seus assuntos comuns, livres de uma autoridade abrangenteprexistente".E, a partir de tais condies, ela tem frequentemente assim emergido por toda a histria humana, improvisada por seres humanos em posies de vida bem mais variadas do que os atenienses afortunados que tinham tempo infindvel para matar na gora, ou as elites proprietrias que sem reuniam na Filadlfia para representarem os interesses de especuladores de ttulos da guerra Continental e latifundirios. Exemplos histricos de democraciarealincluam,porexemplo,ademocraciadosnaviospiratas:

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  • Piratas, em geral, eram amotinados, marinheiros com frequncia originalmente pressionados ao servios contra suas vontades em cidades porturias atravs do Atlntico, que tinham se amotinado contra capites tirnicos e "declarado guerra contra o mundo todo". Eles frequentemente se tornavam bandidos sociais clssicos, se vingando contra capites que abusavam de suas tripulaes, e liberando ou mesmo recompensando aqueles contra quem no encontravam quaisquer reclamaes. A composio das tripulaes era, com frequncia, extraordinariamente heterognea. De acordo com o livro Villains of All Nations de Marcus Rediker, "a tripulao de Black Sam Bellamy de 1717 era uma Multido Misturada de todos os Pases, incluindo ingleses, franceses, holandeses, espanhis, suecos, nativos americanos, afroamericanos e duas dzias de africanos que tinham sido libertados de um navio negreiro". Em outras palavras, estamos lidando com uma coleo de pessoas em que provavelmente havia pelo menos algum conhecimento de primeira mo de uma gama muito ampla de instituies diretamente democrticas, indo dos things (conselhos) suecos s assembleias de aldeia africanas s estruturas federais nativas americanas, repentinamente se achando foradas a improvisar algum modo de autogoverno na completa ausncia de qualquer estado. Era o espao de experimento intercultural perfeito. No havia provavelmente um terreno mais conducente para o desenvolvimento de instituies daNovaDemocraciaemqualquerlugardomundoAtlnticonapoca.

    Os assentamentos de fronteira na Amrica do Norte, cujos habitantes tambm tinham pouco em comum com os clssica e formalmente educados delegados Conveno da Filadlfia,improvisavamformasdemocrticasdeautogovernanabemcomoospiratas.

    estas primeiras colnias eram bem mais similares a navios piratas do que somos dados a imaginar. Assentamentos de fronteira podiam no ser to densamente populosos quanto navios piratas, ou terem uma necessidade to imediata de cooperao constante, mas elas eram espaos de improvisao intercultural e, como os navios piratas, em grande parte fora do alcance de quaisquer estados. Foi apenas recentemente que historiadores comearam a documentar quo completamente emaranhadas as sociedades de colonos e nativos eram naqueles primeiros dias, com colonos adotando cultivos, roupas, remdios, costumes, e estilos de guerra indigenas. Eles se envolviam em comrcio, frequentemente vivendo lado a lado, s vezes casandose entrei si, ao passo que outros viviam por anos como cativos em comunidades indgenas antes de retornarem s suas casas tendo aprendido lnguas, hbitos e maneiras nativas. Acima de tudo, historiadores tm notado os temores contnuos entre os lderes de comunidades coloniais e unidades

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  • militares de que seus subordinados estivessem da mesma maneira que tinham adotado o uso de tomahawks, wampum e canoas comeando a absorver as atitudesindgenasdeigualdadeeliberdadeindividual.

    Nos anos 1690, ao mesmo tempo que o famoso pastor Calvinista de Boston Cotton Mather estava xingando piratas como uma praga blasfema da humanidade, ele tambm estava reclamando que seus companheiros colonos, desencaminhados pelo sossego do clima no Novo Mundo e pelas atitudes relaxadas de seus habitantes nativos, tinham comeado a sofrer o que ele chamou de "indigenizao" se recusando a aplicar punies corporais a seus filhos, e assim minando os princpios de disciplina, hierarquia, e formalidade que deveriam governar as relaes entremestreseservos,homensemulheres,oujovensevelhos...

    O que era verdadeiro em cidades como Boston era ainda mais verdadeiro nas fronteiras, especialmente naquelas comunidades frequentemente formadas por escravos e servos fugidos que "se tornavam ndios" inteiramente fora do controle dos governos coloniais, ou nos enclaves insulares do que os historiadores Peter Linebaugh e Marcus Rediker chamaram de "o proletariado Atlntico", a variegada coleo de libertos, marinheiros, prostitutas de navios, renegados, AntinomianosNT02, e rebeldes, que se desenvolveram em cidades porturias do mundo Atlntico Norte antes do surgimento do racismo moderno, e a partir dos quais muito do impulso democrtico das revolues americanas e outras parece ter primeiro surgido. Homens como Mather teriam concordado com isso tambm: ele frequentemente escreveu que os ataques indgenas a assentamentos de fronteira eram a punio de Deus sobre tais pessoas por abandonarem seus mestres legtimos e viverem eles mesmoscomondios.

    Se a histria foi escrita de forma verdadeira, pareceme que a real origem do esprito democrtico e muito provavelmente, de muitas instituies democrticas est precisamente nesses espaos de improvisao fora do controle de governos e igrejasorganizadas.

    O dio e o medo das elites coloniais do Novo Mundo da "selvageria" das comunidades de fronteira, quando lemos nas entrelinhas, se concentravam muito em sua ilegibilidade. "Ns nosabemosoqueelesestofazendo."H um forte paralelo entre as origens espontneas da democracia em navios piratas e em comunidades de fronteira e o relato de Kropotkin, em O Estado, da ascenso das cidades

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  • da Europa no final da Idade Mdia. As cidades comearam como reas marginais e ingovernveis nas fronteiras do controle feudal, estabelecidas por refugiados do sistema feudal de poder. A tpica cidade do final da Idade Mdia comeava como uma grande vila em um importante cruzamento ou vau, ou uma feira, que ficava inchada com populaes de camponeses fugitivos e eventualmente erigia muros e declarava sua independncia do suserano feudal nominal da rea. As instituies solidrias destas recmsurgidas cidades mostravam uma continuidade prxima com as instituies das vilas a partir das quais cresceram, ou dos camponeses que fugiram para elas suas cartas rgias de autogoverno, desafiando as autoridades feudais locais, equivaliam a promessas desesperadas de "vida, fortunas e honra sagrada". E as instituies de governana em guildas federadas exibiam um etos comunal e igualitrio muito parecido com quela da vila, com seus sistema de camposabertosegovernananoestatal.Mas a tradio ocidental convencional v a "democracia" como um conceito privilegiado aplicvel apropriadamente apenas Atenas de Pricles, Inglaterra em 1688 e Filadlfia em1787.

    Claro, o vis peculiar da historiografia ocidental que este seja o nico tipo de democracia que sequer visto contar como "democracia". Normalmente nos contam que a democracia se originou na antiga Atenas como a cincia, ou a filosofia, foi uma inveno grega. Nunca fica inteiramente claro o que isso deveria significar. Devemos acreditar que antes dos atenienses, realmente nunca ocorreu a ningum, em nenhum lugar, de juntar todos os membros de sua comunidade a fim de fazer decises conjuntas de uma maneira que desse a todo mundo uma voz igual? Isso seria ridculo. Claramente houve uma abundncia de sociedades igualitrias na histria muitas bem mais igualitrias que Atenas, muitas que devem ter existido antes de 500 A.C. e obviamente, elas devem ter tido algum tipo de procedimento para se chegar a decises para questes de importncia coletiva. Ainda assim, de algum modo, sempre se assume que estes procedimentos, quaisquer que possam tersido,nopoderiamtersido,propriamentefalando,"democrticos".

    A real razo para a relutncia da maioria dos acadmicos em ver um conselho de aldeia Sulawezi ou Tellensi como "democrtico" bem, fora o simples racismo, a relutncia em admitir que qualquer um que os ocidentais tenham massacrado com tal relativa impunidade estavam realmente no mesmo nvel de Pricles que eles no votam. Agora, admitidamente, isto um fato interessante. Por que no? Se aceitarmos a ideia de que braos se levantando, ou fazer todo mundo que apoia uma proposta fica de um lado da praa e todo mundo contra ficar do outro, no so

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  • realmente ideias to incrivelmente sofisticadas que nunca teriam ocorrido a ningum at algum gnio antigo as "inventasse", ento por que elas so to raramente empregadas? Novamente, parecemos ter um exemplo de rejeio explcita. Repetidamente, por todo o mundo, da Austrlia Sibria, comunidades igualitrias preferiramalgumavariaodoprocessodeconsenso.Porque?

    A explicao que eu proporia esta: muito mais fcil, em uma comunidade faceaface, descobrir o que a maioria dos membros dessa comunidades quer fazer, do que descobrir como convencer aqueles que no querem a acompanhla. A tomada de deciso por consenso tpica de sociedades em que no haveria qualquer maneira de obrigar uma minoria a concordar com uma deciso da maioria seja porque no h nenhum estado com um monoplio da fora coercitiva, ou porque o estado no tem nada a ver com a tomada de deciso local. Se no h qualquer maneira de obrigar aqueles que acham uma deciso da maioria desagradvel a acompanhla, ento a ltima coisa que se quer fazer uma votao: um concurso pblico em que algum ser visto perder. Votar seria o meio mais provvel de se garantir humilhaes, ressentimentos, dios, no final, a destruio de comunidades. O que visto como um processo elaborado e difcil de achar consenso , na verdade, um longo processo de ter certeza que ningum v embora sentindo que suas vises foram totalmente ignoradas.A democracia majoritria,poderamosdizer,podeemergirapenasquandodoisfatorescoincidem:

    1. um sentimento de que as pessoas deveriam ter uma voz igual ao fazer decises em

    grupo,e2. umaparatocoercivocapazdefazervalertaisdecises.

    Na maior parte da histria humana, foi extremamente incomum ter ambos ao mesmo tempo. Onde sociedades igualitria existem, tambm usualmente considerado errado impor coero sistemtica. Onde uma mquina de coero existiu, nem sequer ocorreu queles manejandoa que eles estavam fazendo cumprir qualquer tipodedesejopopular.

    Nos casos em que instituies formalmente majoritrias de fato emergiram dentro de estados coercitivos prexistentes (como nas democracias liberais ocidentais dos ltimos dois sculos), geralmente foram um caso em que elemento dissidentes de uma elite dominante defendiam seus prprios direitos contra o governante em termos que soavam mais geralmente aplicveis do que, na verdade, tinham a inteno de ser (Magna Carta), ou usavam a retrica democrtica para alistar uma maioria popular como aliados em sua luta

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  • por dominncia como Emmanuel Goldstein colocou em 1984, os do meio alistando os de baixo como aliados contra os de cima. E quando instituies formalmente majoritrias foram colocadas em prtica, na prtica, os sistemas continuaram a ser governados pela Lei de Ferro da Oligarquia e pelo uso de todas as tcnicas que Edward Bernays elaborou para "fabricarconsentimento".

    ... por esta razo que o novo movimento global comeou reinventando o prprio significado de democracia. Fazlo significa, em ltima instncia, mais uma vez, chegar a um acordo com o fato de que "ns" seja como "o Ocidente" (o que quer que isso signifique), como o "mundo moderno", ou qualquer outra coisa no somos to especiais como gostamos de pensar que somos que ns no somos o nico povo que jamais praticou a democracia que, de fato, em vez de disseminar a democracia ao redor do mundo, governos "Ocidentais" tem gastado pelo menos tanto tempo se inserindo nas vidas de pessoas que tm praticado a democracia por milharesdeanose,deumaformaoudeoutra,lhedizendoparapararemcomisso.

    Graeber contrasta as noes de "racionalidade" da classe dominante (que eles naturalmente possuem muito mais do que os governados) com "razoabilidade", que "a capacidade de comparar e coordenar perspectivas contrastantes" algo que pessoas acostumadas a estar em uma posio de comando, como as classes dominantes com sua pose de racionalidade superior, raramente tm que fazer. A tomada de deciso baseada em consenso, preferida pelos anarquistas, vem da prxis feminista ("a tradio intelectual daquelas que, historicamente, tendiam a no serem investidas com o poder de comando"). "O consenso uma tentativa de criar uma poltica fundamentada no princpio da razoabilidade..." Ele exige a capacidade de ouvir aqueles com perspectivas diferentes, se envolver em tomaldc, e encontrar pontos pacficos pragmticos com seus iguais. Em outras palavras, o tipo de coisa feita por pessoas comuns que tm que elaborar uma soluo para um problema comum sentando e conversando umas com as outras como iguais bem diferente da "racionalidade" de "realistas malucos" que so to totalmente antiautocrticos quanto aos verdadeiros vieses de suas supostamente neutras e autoevidentesmaneirasdefazercoisas.Parte da explicao para a hostilidade das elites ocidentais para com manifestaes histricas de democracia direta e autogovernana por pessoas comuns que isso tanto as desempoderaquantoasdeixasemtrabalho.ComoLarryGamboneargumenta:

    A democracia representativa, tal como existe no Parlamento e no Congresso, efetivamente isola as pessoas. Uma vez a cada quatro ou cinco anos, voc

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  • consegue ter seus cinco minutos de democracia, votando em um grupo ou outro, grupos sobre os quais voc tem zero controle. Enquanto isso, voc foi sujeitado a um bombardeio de propaganda 24 horas por dia, 7 dias por semana, pela mdia. Este ataque funciona em cima de seus medos, ansiedades e preconceitos, e os refora. Em isolamento, tanto em casa em frente da TV, quanto mais tarde na urna de votao, voc tem mais probabilidade de votar contra seus prprios interesses, commedosepreconceitosreflexivos.

    A democracia direta conecta indivduos, envolveos na discusso em uma assemblia. Questes so debatidas e, sem a censura e a demonizao cultivadas pela mdia, as pessoas podem ouvir outros pontos de vista e fazer suas prprias decises. Indecisos podem ser balanados pela assemblia em uma direo positiva, ao passo que, em isolamento e sujeito ao bombardeio da propaganda, eles poderiamapoiarpolticasquevocontraseusreaisinteresses.

    A democracia direta s pode funcionar em um grupo relativamente pequeno no mais do que alguns milhares de pessoas. Isto significa uma assemblia de comunidade ou de bairro e, assim, as questes so discutidas em relao s necessidades e desejos dessa comunidade e no so debate abstratos no nvel provincial ou nacional. Um "no no meu quintal" positivo pode ocorrer. Um possvel exemplo ningum quer um depsito de lixo nuclear em sua comunidade, mas em um referendo nacional, poderiam permitir um se pensassem que ele poderia ser colocado em algum outro lugar alm de sua regio. Se o voto fosse apenas da comunidade, no haveriam quaisquer depsitos de lixo nuclear permitidos em nenhumlugar.

    No difcil de ver por que os dominadores odeiam a democracia direta. Seu poder de dominar desvaneceria rapidamente. A alegao que direitistas s vezes fazem de que a democracia direta uma forma de tirania fcil de entender. Parece tirania para eles, porque eles no esto mais no controle e nos dizendo o que fazer. Nossa liberdade despotismo para eles. Sua liberdade s pode repousar sobre a nossa servido.

    Graeber, incidentalmente, v a anarquia assim como a democracia, como um fenmeno espontneo e de senso comum que emerge como uma questo natural quando pessoas comuns confrontam umas as outras como iguais fora da jurisdio do estado. Prticas historicamente democrticas de autogovernana tinha a maior probabilidade de crescer do mesmo solo que movimentos anarquistas especialmente do que James Scott chamaria de

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  • espaos ZomianosNT03 ou noestatais, reas fora do alcance de estados poderosos s quais servos, escravos, devedores, pessoas que escaparam do servio militar, e outros fugitivosdaautoridadetenderiamagravitar.

    Na China, por volta de 400 A.C...., havia um movimento filosfico que veio a ser conhecido como a "Escola dos Lavradores"NT04, que mantinha que tanto mercadores quanto oficiais do governo eram ambos parasitas inteis, e tentaram criar comunidades de iguais em que a nica liderana seria pelo exemplo, e a economia seria democraticamente regulada, em territrios no reclamados entre os grandes estados. Aparentemente, o movimento foi criado por uma aliana entre intelectuais renegados que fugiam para tais vilas livres e os intelectuais camponeses que eles encontravam l. Sua meta ltima parece ter sido gradualmente atrarem desertores dos reinos ao redor e, assim, eventualmente causar seu colapso. Este tipo de encorajamento de desero em massa uma estratgia anarquista clssica. Desnecessrio dizer que eles no foram, em ltima instncia, bem sucedidos, mas suas ideias tiveram uma influncia enorme em filsofos da corte das geraes seguintes.

    Indiretamente, eles influenciaram, por fim, os aspectos anarquistas do pensamento de Lao Tzu. O prprio Graeber aponta que isso foi apenas uma verso mais bem documentada do que a mdia do que as pessoas fizeram em todo o mundo quando conseguiram estabelecer novas comunidades s margens da autoridade estatal pessoas como os Zomianos de Scott, os Cossacos, Viajantes Ciganos e Irlandeses, as "utopias piratas" de Hakim Bey, "isoladostriraciais"nosertoNorteAmericano,etc.

    II. Comunismo Cotidiano Embora a narrativa econmica convencional trate a troca monetria como uma consequncia natural e espontnea do escambo, e uma sociedade dominada pela produo de mercadorias como a consequncia lgica disto, na verdade esta esfera separada de troca atomizada no nexo monetrio nunca existiu em nenhuma sociedade humana, exceto onde ela foi artificialmente criada pelo estado. O padro comum em toda a histria homana, incluindo comunidades em que elementos significativos de troca existiam, era que a produo, a troca e o consumo estivessem incorporados em um contexto de relacionamentos sociais, religio, amor e vida em famlia. Se qualquer coisa, o denominador comum em toda a histria humana mesmo em nossa sociedade, a despeito da tentativa do estado capitalista de ou destruilo ou explorlo como um auxiliar do nexo monetrio tem

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  • sido o que Graeber chama de "comunismo da vida cotidiana". Toda sociedade na histria humana tem sido uma fundao construda com esse comunismo cotidiano de famlia, lar, autoprovisionamento, dar presentes e compartilhar com amigos e vizinhos, etc., com um andaimedetrocademercadoehierarquiaserigidosobreele.Para Graeber, este tipo de comunismo a base da vida cotidiana na maioria das sociedades, no mesmo sentido que muitos anarquistas gostam de apontar que a maior parte de nossas vidas so caracterizadas pela anarquia. Ele quer dizer com isso a mesma coisa que a definio clssica transmitia: "de cada um de acordo com suas habilidades, a cada um de acordo com suas necessidades". Sem este tipo universal de comunismo, embasado na associao voluntria e na autoorganizao, tanto aquilo a que nos referimos como sociedade "capitalista", quanto ao que nos referimos como sociedade "socialista de estado" simplesmente no poderia se sustentar. Em grande medida, o nexo monetrio e instituies hierrquicas so parasitas desse estrato bsico de comunismo no qual a vida e aculturahumanassoreproduzidas.

    Na verdade, "comunismo" no alguma utopia mgica, e nem tem ele qualquer coisa a ver com a propriedade dos meios de produo. algo que existe agora mesmo que existe, em algum grau, em qualquer sociedade humana, embora nunca tenha havido uma em que tudo tenha sido organizado dessa maneira, e seria difcil imaginar como poderia haver. Todos ns agimos como comunistas uma boa parte do tempo... "Sociedade comunista" ... nunca poderia existir. Mas todos os sistemas sociais, mesmo sistemas sociais como o capitalismo, foram construdos no topodeumalicercedecomunismoquerealmenteexiste.

    ...[C]omunismo, na verdade, apenas significa qualquer situao em que pessoas agem de acordo com este princpio: de cada um de acordo com suas habilidades, a cada um de acordo com suas necessidades. Isto , de fato, a maneira em que praticamente todo mundo age se estiverem trabalhando juntos. Se, por exemplo, duas pessoas esto consertando um cano e uma diz "ma passa a chave inglesa", a outra pessoa no diz "e o que eu ganho com isso?" Isso verdade mesmo se calha delas serem empregadas da Bechtel ou do Citigroup. Elas aplicam os princpios do comunismo porque so os nicos que realmente funcionam. Essa tambm a razo pela qual cidades e pases inteiros se voltam para alguma forma de comunismo aproximado e imediato na sequncia de desastras naturais ou colapsos econmicos mercados e cadeiras hierrquicas se tornam luxos que no podem bancar. Quanto mais criatividade exigida e quanto mais pessoas tm que improvisar em uma dada tarefa, mais igualitria a forma resultante de comunismo provavelmente ser. por

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  • isso que mesmo engenheiros da computao Republicanos ao tentar desenvolver novas ideas de software tendem a formas pequenos coletivos democrticos. apenas quando o trabalho se torna padronizado e tedioso (pense em linhas de produo) que se torna possvel impor formas mais autoritrias, mesmo fascistas, de comunismo. Mas o fato que mesmo companhias privadas so organizadas internamentedeacordocomprincpioscomunistas.

    Quando quer que olhemos os aspectos prticos de "quem tem acesso a que tipos de coisas e sob quais tipos de circunstncias" mesmo entre duas ou algumas poucas pessoas e vemos compartilhamento, "podemos dizer que estamos na presena de um tipo de comunismo".O domnio do comunismo se estende ainda mais em comunidades "menos impessoais", como vilas medievais, onde comumente aceito que qualquer um com o suficiente das necessidades bsicas da vida para poupar ir compartilhar um pouco com um vizinho em dificuldade. Eu adicionaria que a maioria das sociedades prestado na histria humana, e a maioria das vilas agrrias mesmo sob o estado, at que isso fosse ativamente suprimido, seja pelos cercamentos ou pela coletivizao forada, eram organizadas em torno de princpios de acesso a pastos, bosques e terrenos baldios comuns, e periodicamente redividiam as quotas dos campos abertos mesmo camponeses formalmente sem quaisquer faixas nos campos abertos manteriam um nvel passvel de subsistncia construindo chals nos terrenos baldios comuns e forrageando atrs de frutas, caa e lenha nos pntanos e bosques,emantendoalgunsporcosougansosnopastocomum.E a sociedade as comunidades realmente locais se volta para esse comunismo basal aps um grande desastre, com pessoas entrando em cena para contribuir com seu trabalho ou arriscar suas vidas das mesmas maneiras extraordinrias e ainda assim comuns que KropotkindescreveuemAjudaMtua.Mas mesmo dentro de hierarquias formalmente capitalistas ou socialistas de estado corporaes, fbricas estatais, etc. as hierarquias frequentemente dependem extraoficialmente do comunismo informal daqueles no degrau inferior trabalhando juntos para resolver problemas que so opacos para os idiotas no topo (quando no so efetivamente criados por eles). O capitalismo apenas "um sistema ruim para administrar o comunismo".A verdadeira eficincia das instituies hierrquicas vem do comunismo daqueles realmente envolvidos no trabalho e contribuindo com seus esforos para o empenho comum, da

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  • maneira tipicamente atribuda produo por pares baseada em recursos comuns. Claro, este comunismo ocorre em uma quadro institucional maior caracterizado por cadeias militares de comando. Mas "...cadeias topdown de comando no so particularmente eficientes: elas tendem a promover a estupidez entre aqueles no topo, e um arrastar de ps ressentidoentreaquelesnabase".

    III. A Irrelevncia de Modelos Ideolgicos Padro A viso de Graeber da particularidade e da contextualizao histrica da experincia humana impede de se abstrair as relaes sociais humanas em esferas artificialmente separadas como, por exemplo, o "homem econmico" funcionando puramente no nexo monetrio. De forma muito similar a Ostrom, Graeber v estados como simplesmente um exemplo de pessoas fazendo coisas, um tipo de relacionamentos padronizados. E o mercado, igualmente, apenas uma maneira das pessoas se relacionarem umas com as outrassvezes.Umadesuascrticaseconomiamoderna,enquantodisciplina,que

    para sequer haver uma disciplina chamada "economia", uma disciplina que se preocupa, antes de mais nada, com como os indivduos vem o arranjo mais vantajoso para troca de sapatos por batatas, ou de tecido por lanas, ela deve assumir que a troca de tais bens no precisa ter nada a ver com guerra, paixo, aventura, mistrio, sexo ou morte. A economia assume uma diviso entre diferentes esferas de comportamento humano que, entre pessoas como os Gunwinngu e os Nambikwara, simplesmente no existe... Isto, por sua vez, nos permite assumir que a vida cuidadosamente dividida entre o mercado, onde fazemos nossas compras, ea"esferadoconsumo",ondenospreocupamoscommsica,festaseseduo.

    Como vimos acima, o relato convencional da origem do dinheiro, exposto em A Riqueza das Naes de Smith e repetida em mil introdues economia desde ento, que o "nexo monetrio" emerge espontaneamente da propenso humana de "negociar e trocar". Pessoas em sociedade "primitivas" comeam trocando necessidades umas com as outras confrontadas com o problema da "coincidncia dupla de desejos", estas sociedades primeiro resolvem o problema estocando mercadorias especialmente desejadas para usarem como meio de troca, prosseguem adotando metais preciosos raros como o meio primrio de troca, e finalmente emitem quantidades especficas dos metais anteriores denominadosemvaloresmonetrios.

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  • O problema, Graeber aponta, que este relato totalmente ahistrico. Em toda as sociedades humanas histricas, a troca monetria tem estado incorporada em um contexto social mais amplo, como um meio entre muitos outros atravs dos quais as pessoas satisfazemsuasnecessidades.A histria da origem do dinheiro a partir do escambo, de Smith em diante, tem sido apresentada como um tipo de parbola se passando em uma sociedade completamente imaginria ("Para ver que a sociedade se beneficia de um meio de troca, imagina uma economiadeescambo.""Imaginequevoctenhagalos,masvocquerrosas.").

    O problema onde localizar esta fantasia no tempo e no espao: Estamos falando de homens das cavernas, nativos das ilhas do Pacfico, ou da fronteira americana? Um livrotexto, dos economistas Joseph Stiglitz e John Driffil, nos leva ao que parece serumacidadeimaginrianaNovaInglaterraounoMeioOeste...

    Novamente, esta apenas uma terra de fazdecontas muito parecida com o presente, exceto com o dinheiro, de alguma forma, arrancado fora. Como resultado, ela no faz qualquer sentido. Quem em s conscincia montaria uma mercearia em tallugar?Ecomoelesconseguiriamabastecimento?

    Em suma, tanto um "conto de fadas burgus" quanto a "acumulao original de capital" e o "Contrato Social". Isso no quer dizer que o escambo no ocorra, diz Graeber apenas que ocorre, no entre aldees, mas "entre estranhos, mesmo inimigos". O escambo usado principalmente para transaes pontuais entre pessoas que no tm qualquer contexto social comum. E, como ele argumenta em todo o Debt, os prprios casos de sociedades com nexo monetrio, que Smith teorizou terem evoludo a partir do escambo, existiram apenas onde estados despojaram seres humanos de todo contexto social e os reduziram a indivduosatomizados.Em virtualmente todas as comunidades humanas emergentes e autoorganizadas, o padro tpico tem sido, como vimos no comeo, o "comunismo da vida cotidiana" com alguma quantidade de troca de mercado mais formalizada no topo dele mas ainda incorporada no contexto social maior, no como uma esfera "econmica" abstrata. No nvel mais bsico, isso poderia tomar a forma de uma pessoa em uma aldeia sugerindo ao sapateiro que seu sapatos esto ficando desgastados, logo em seguida ganhando o "presente" espontneo de um par de sapatos, e mais tarde aproveitando a oportunidade de retribuir o presente quando o sapateiro precisar de algo que ela pode fornecer ou, com a mesma probabilidade,

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  • satisfazer uma necessidade de alguma outra pessoa a quem o sapateiro deve um favor. Em um nvel mais refinado, esse tipo de sistema poderia evoluir para dinheiro virtual, com todo mundo administrando guias contnuas com o aougueiro, o padeiro e o fabricante de velas, e mantendo um balano de qualquer natureza de bens e servios que forneam a seus vizinhos. Periodicamente, os membros da comunidade liquidam quaisquer diferenas que sobrem aps todos os dbitos e crditos terem se cancelado. Isto soa, na verdade, muito como os sistema de compensao mtua de crdito de Thomas Greco e E. C. Riegel. Nenhuma"duplacoincidnciadenecessidades"jamaissurge.

    IV. Poltica Prefigurativa Considerando a alta considerao de Graeber pelos resultados da interao humana espontnea e autodirecionada, no surpreendente que ele tenha desempenhado um papel fundamental no processo que levou o movimento Occupy a tomar um caminho horizontalistacontraosdesejosdemuitosdosseusaspirantesafundadores.

    Quando Graeber e seus amigos apareceram em 2 de Agosto..., ele descobriram que o evento no era, na verdade, uma assembleia geral, mas um tradicional comcio, a ser seguido por uma pequena reunio e uma marcha at Wall Street para entregar um conjunto de demandas prdeterminadas ("Um macio programa de empregos pblicoprivados" era uma, "Um fim opresso e guerra!" era outra). Na gria anarquista, o evento estava sendo dirigido por "verticais" organizaes topdown em vez de "horizontais" tais como Graeber e seus amigos. Sagri e Graeber sentiram quetinhasidoenganados,eestavambravos.

    Como recordou Graeber, o movimento como tinha evoludo at aquele ponto dava todos os indciosdeserumprotestoconvencionalquefracassariasemmuitaateno.

    ...[U]ma coalizao local contra o corte de verbas, pendida com ONGs, sindicatos, e grupos socialistas, tinha tentado tomar posse do processo e solicitaram uma "Assemblia Geral" no Bowling Green. O ttulo se provou extremamente enganador. Quando eu cheguei, descobri que o evento tinha sido efetivamente tomado por um grupo de protesto veterano chamado Worker's World Party, mais famoso por ter costurado a ANSWERNT04, uma das duas grande coalizes antiguerra, l em 2003. Eles j tinham montado suas faixas, megafones, e estavam fazendo discursos aps o que, algum explicou, eles estavam planejando em liderar as 80 e poucas pessoas reunidasnumamarchapassandoemfrenteprpriaBolsadeValores.

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  • Mas Graeber, notando que a maioria das pessoas que apareceram no estavam to felizes assim com a autonomeada liderana dos ativistas profissionais ("o tipo de pessoa que realmente gosta de ficar marchando com placas primpressas e ouvindo portavozes do comit central de algum"), acabou desempenhando um papel comparvel a desencadear a cristalizao de uma soluo supersaturada em torno de uma partcula aleatria. A demonstrao que foi montada para ser apenas outra mesmice da Esquerda institucional "a antiquada poltica vertical de coalizes /topdown/, lderes carismticos, e ficar marchando com placas" em vez disso emergiu como um movimento horizontal e sem lderes.

    Mas conforme eu andava pelo Green, eu notei algo. Para adotar a terminologia ativista: esse no era realmente um grupo de verticais isto , o tipo de pessoas cuja ideia de ao poltica ficar marchando com placas sob o controle de um ou outro movimento topdown de protesto. Elas eram, em sua maioria, bem obviamente, horizontais: pessoas mais simpticas aos princpios anarquistas de organizao, a formas no hierrquicas de democracia direta, e ao direta. Eu rapidamente identifiquei pelo menos um Wobbly, uma jovem ativista coreana que eu lembrava de algum evento do Food Not Bomb, alguns estudantes universitrios usando apetrechos Zapatistas, um casal espanhol que tinha estado envolvido com os indignados em Madrid... eu encontrei meus amigos gregos, uma americana que eu conhecia das batalhas de rua em Quebec durante a Cpula das Amricas em 2001, que tinha se tornado sindicalista em Manhattan desde ento, um intelectual ativista Japons que eu conhecia h anos... Minha amiga grega olhou para mim e eu olhei para ela e ns dois instantaneamente percebemos que o outro estava pensando a mesma coisa: "Por que somos to complacentes? Por que que toda vez que vemos algo desse tipo acontecendo, apenas resmungamos coisas e vamos pra casa?" embora eu acho que a maneira que colocamos foi mais como, "Quer saber? Fodaseessamerda.Elesdivulgaramumaassembliageral.Vamosfazeruma".

    Ento ns reunimos alguns horizontais bvios e formamos um crculos, e tentamos fazer todo o resto se juntar a ns... Criamos um processo de deciso (operaramos atravs de consenso modificado) nos separamos em grupos de trabalho (divulgao, ao, facilitao) e ento nos reunimos novamente para permitir que cada grupo reportasse suas decises coletivas, e estabelecemos horrios para novas reunies tantodosgruposmenoresquantodosmaiores...

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  • Dois dias mais tarde, numa reunio de Divulgao, estvamos fazendo um brainstorming sobre o que colocar em nosso primeiro panfleto. A ideia da AdbustersNT06 tinha sido que focssemos em "uma exigncia chave". Esta era uma ideia brilhante do ponto de vista de propaganda, mas de uma perspectiva organizacional, ela no fazia qualquer sentido. Colocamos isso de lado quase imediatamente. Haviam questes muito mais fundamentais para serem colocadas para fora. Tipo: que ramos ns? A quem queramos apelar? Quem ns representvamos? Algum desta vez eu lembro bastante claramente que fui eu, mas eu no ficaria surpreso se meia dzia de outras pessoas tivessem memrias igualmente fortes de serem as primeiras a propor isso sugeriu, "bem, por que no nos chamamos 'os 99%'? Se 1% da populao acabou ficando com todos os benefcios dos ltimos 10 anos de crescimento econmico, controla a riqueza, dono dos polticos... por que no dizer apenas que somos todo o resto?" O casal espanhol rapidamente comeou a desenhar um panfleto de "Ns Somos os 99%", e comeamosapensarmaneirasdeimprimiloedistribuilodegraa.

    Ao longo das semanas seguintes, um plano comeou a tomar forma... Rapidamente decidimos que o que ns realmente queramos fazer era algo que j tinha sido realizado em Atenas, Barcelona, ou Madrid: ocupar um espao pblico para criar uma Assemblia Geral de Nova Iorque, um corpo que pudesse agir como um modelo de democracia direta genuna para se contrapr farsa corrupta apresentada a ns como "democracia" pelo governo dos EUA. A ao em Wall Streetseriaumpontodepartida.

    Tambm no surpreendente que Graeber veja o horizontalismo do EZLN, do movimento de Seattle, da Primavera rabe, do M15, do Syntagma e do Occupy no apenas como modelos para a futura sociedade humana que emerge do declnio de um sistema corporativo estatal existente de poder, mas tambm v sua poltica prefigurativa como a maneiradechegarl.O movimento antiglobalizao "conseguiu, em meros dois ou trs anos, transformar completamenteosensodepossibilidadeshistricasparamilhesemtodooplaneta".

    A prpria noo de ao direta, com sua rejeio a uma poltica que apele para governos modificarem seu comportamento, em favor de interveno fsica contra o poder estatal de uma forma que, em si mesma, prefigure um alternativa tudo isso emerge diretamente da tradio libertria. O anarquismo est no corao do

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  • movimento, sua alma a fonte da maior parte do que novo e esperanoso sobre ele.

    Ns notamos anteriormente a abertura de Graeber para as escolhas e decises concretas das pessoas. Ele considera a sociedade anarquista, adequadamente, como um processo emaberto:

    Onde o 'partido' democrticocentralista coloca sua nfase em atingir uma anlise terica completa e correta, exige uniformidade ideolgica e tende a justapr a viso de um futuro igualitrio com formas extremamente autoritrias de organizao no presente, estes abertamente buscam diversidade. O debate sempre foca em cursos particulares de ao tomase como certo que ningum jamais converter qualquer outra pessoa inteiramente ao seu ponto de vista. O lema poderia ser, 'Se voc est disposto a agir como um anarquista agora, sua viso de longo prazo essencialmente da sua conta'. O que parece apenas sensato: nenhum de ns sabe quo longe estes princpios podem realmente nos levar, ou o que uma sociedade complexa embasada neles acabaria parecendo. Sua ideologia, ento, imanente nos princpios antiautoritrios que subjazem sua prtica, e um de seus princpios maisexplcitosqueascoisasdeveriamcontinuardestaforma.

    E os movimento horizontalistas que surgiram desde os levantes Zapatistas em Chiapas so a ilustrao primria de Graeber de como essas lies realmente foram colocadas em prtica.Eles

    [quote]rejeitavam a prpria ideia de que se poderia encontrar uma soluo substituindose um conjunto de polticos por outro. O slogan do movimento argentino era, desde o comeo, que se vayan todas se livre de todos eles. Em vez disso, o primeiro ciclo do novo levante global o que a imprensa ainda insiste em se referir, cada vez mais ridiculamente, como "o movimento antiglobalizao" comeou com os municpios autnomos de Chiapas e chegaram a um ponto crtico com as asambleas barreales de Buenos Aires e cidades por toda a Argentina. Dificilmente h espao aqui para contar a histria toda: comeando com a rejeio pelo Zapatistas da ideia de tomar o poder e sua tentativa, em vez disso, de criar um modelo de autoorganizao democrtica para inspirar o resto do Mxico sua inaugurao de uma rede internacional (Ao Global dos Povos, ou AGP) que ento divulgou os chamados para dias de ao contra a OMC (em Seattle), o FMI (em Washington, Praga...) e assim por diante e, finalmente, o colapso da economia argentina, e o esmagador levante popular que, novamente, de um novo governo,

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  • criaram uma vasta rede de instituies alternativas, comeando com assembleias populares para governar cada vizinhana urbana (a nica limitao sobre a participao que no se pode ser empregado por um partido poltico), centenas de fbricas ocupadas e gerenciadas pelos trabalhadores, um sistema complexo de "escambo" e um ultramoderno sistema monetrio alternativo para mantlos em operaoemsuma,umainfinitavariaosobreotemadademocraciadireta.

    Tudo isso tinha acontecido completamente abaixo da tela de radar da mdia corporativa, que tambm errou o alvo das grandes mobilizaes. A organizao destas aes era para ser uma ilustrao viva do que um mundo verdadeiramente democrtico poderia ser, de bonecos festivos cuidadosa organizao de grupos de afinidade e conselhos portavozes, todos operando sem uma estrutura de liderana, semprebaseadonosprincpiosdademocraciadiretacombaseemconsenso.

    Era o tipo de organizao que a maioria das pessoas teria, tivessem elas simplesmente ouvido ele ser proposto, eliminado como um sonho mas ela funcionou, e to efetivamente que os departamentos de polcia de cidade aps cidadeficaramcompletamentedesconcertadossobrecomolidarcomelas...

    Quando os manifestantes em Seattle cantaram " com isso que a democracia parece",elesqueriamserlevadosaopdaletra.

    Os "princpios centrais" so os mesmos em todos os movimentos, de Chiapas, passando pelo movimento antiglobalizao psSeattle, a Primavera rabe, Wisconsin, M15, Syntagma, Occupy, e as coisas incrveis que tm acontecido mais recentemente em lugares daTurquiaaoBrasil:

    descentralizao, associao voluntria, ajuda mtua, o modelo de rede, e acima de tudo, a rejeio de qualquer ideia de que os fins justificam os meios, muito menos de que o negcio de um revolucionrio tomar o poder estatal e ento comear a impor sua viso sob a mira de uma arma. Acima de tudo, o anarquismo, enquanto uma tica da prtica a ideia de construir uma nova sociedade "dentro da casca da antiga" se tornou a inspirao bsica do "movimento de movimentos"..., que tem sido, desde o comeo, menos sobre tomar o poder estatal do que sobre expor, deslegitimar e desmontar mecanismos de governo, enquanto ganha espaos cada vezmaioresdeautonomiaedegerenciamentoparticipativodentrodeles.

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  • Graeber considera a prpria palavra "protesto" como sendo problemtica, porque "ela soa como se voc j tivesse pedido". Ela reconhece o sistema existente de poder, talvez at mesmo sua necessidade, e simplesmente tenta influenciar seu funcionamento. A ao direta, por outro lado, trata o sistema de poder tanto como ilegtimo quanto como desnecessrio, e envolve pessoas organizando suas vidas da maneira que desejam, como seosistemadepoderrealmentesequerestiverl.

    Bem, a razo pela qual anarquistas gostam da ao direta porque ela significa recusar reconhecer a legitimidade de estruturas de poder. Ou mesmo a necessidade delas. Nada incomoda as foras de autoridade mais do que tentar se retirar completamente do jogo disciplinar e dizer que podemos simplesmente fazer as coisas por ns mesos. A ao direta uma questo de agir como se voc j fosse livre.

    Graeber aponta para o exemplo de Madagascar, onde o estado deixou de funcionar no sentido de recolher impostos ou impor a lei em muitas reas rurais. "[E]ssencialmente, o governo deixou de existir e as pessoas apareceram com expedientes engenhosos de como lidar com o fato de que ainda havia tecnicamente um governo, ele s estava realmente bem longe". Na maioria dos casos isso significou ao direta pessoas simplesmente resolvendo problemas por si mesmas juntamente com o evitamento de confrontao direta com os funcionrios do estado. As pessoas eram muito educadas com as autoridades, mas tornavam o cumprimento da lei to difcil quanto possvel atravs da agresso passiva, de modo que os funcionrios do estado aprenderam que o caminho de menor resistncia era jogarjuntodafarsa.

    V. Alternativas de Escala Humana: Construindo a Sociedade Sucessora Quando olhamos para empreendimentos humanos particulares de autoorganizao, em sua particularidade, e no atravs do prismo de abstraes ideolgicas, me parece que arranjos locais, faceaface qualquer que seja a mistura de troca de mercado, ddiva e compartilhamento, ou autosuficincia no monetria que eles partilhem so em grande parte irrelevantes para crticas como o argumento do clculo socialista de Mises ou a alegao socialista antimercado de que qualquer forma de troca de mercado ir, atravs do processo de vencedores e perdedores, levar a um sistema capitalista embasado na propriedade absentesta de capital concentrada e trabalho assalariado explorado. A

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  • experincia humana, de forma bem simples, grande demais para que tais teorias descrevamadequadamente. difcil para mim imaginar uma sociedade sem pelo menos alguma precificao de mercado para permitir o clculo econmico em uma escala macro de comrcio envolvendo inmeras comunidades locais, como a distribuio de longa distncia de minerais, microprocessadores, etc. Mesmo Bakunin via suas comunas agroindustriais trocando seus excedentes umas com as outras em algum tipo de mercado. Por outro lado, mesmo defensores ferrenhos do clculo econmico como Mises admitiam que a valorao no monetria de insumos era factvel em pequenas escalas como o cenrio de Robinson Cruso ou uma fazenda de subsistncia e me parece que uma unidade econmica de algumas dzias de pessoas, como uma aldeia ou uma vizinhana, que produzisse a maior parte de suas necessidades de consumo no local, com horticultura intensiva, mircromanufatura e similares, em grande medida cairia na mesma categoria, contanto que a alocao interna dos insumos de produo e o compartilhamento da produo pudessem ser governados pelo mesmo etos comunista que uma famlia (embora, obviamente, alguns membros teriam que conseguir "divisas internacionais" vendendo bens ou servios fora, de modo que a comunidade pudesse comprar matriasprimas indisponveis localmente e bens industriaisespecializadosdoladodefora).Mas se a tecnologia de produo em pequena escala torna o comunismo localizado no monetrio factvel para uma grande parte das necessidades de consumo sem invocar o espectro do caos calculacional, parece igualmente provvel que uma quantidade significativa de atividade econmica poderia ser governada por mercados livres sem degenerarse como anarquistas antimercado avisam no capitalismo. Na anarquia sem adjetivos (sem qualquer autoridade central capaz de fazer cumprir a propriedade absentesta em larga escala de terras devolutas, fechar ocupaes ou criminalizar a subsistncia confortvel em terra ocupada, ou fazer vale a "propriedade intelectual", com a viabilidade tecnolgica de indivduos e pequenas comunidades se envolverem em produo com mquinas sofisticadas por si mesmas com gastos mnimos com capital, e com uma proliferao infinita de instituies comunistas para solidariedade e agrupamento de riscos e custos fora da economia monetria) parece improvvel que o prrequisito central para a explorao econmica existiria. Sem, isto , a concentrao de meios de produo dispendiosos em poucas mos, ou o bloqueio do acesso independente a meios de produo e subsistncia atravs do poder social, seria impossvel fechar alternativas viveis aaceitarotrabalhoassalariadonostermosoferecidos.

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  • o prprio elemento faceaface, em si o fato de que seres humanos em um nvel local esto interagindo diretamente e arranjando maneiras de lidarem uns com os outros que condicionaanaturezadasrelaessociais:

    assim como mercados, quando permitidos flutuarem inteiramente livres de suas origens violentas, invariavelmente comeam a se transformar em algo diferente, em redes de honra, confiana, e conectividade mtua, assim tambm a manuteno de sistemas de coero constantemente faz o oposto: transformar os produtos da cooperao, da criatividade, da devoo, do amor e da confiana humanas de volta emnmerosumavezmais.

    a "honra, confiana e conectividade mtua" de relaes humanas locais, faceaface e horizontais, em vez de sua natureza formalmente "de mercado" ou "no mercado", que determinaseurealcarter.Graeber expressa frustrao ao argumentar a viabilidade do anarquismo com liberais que o colocam como a hiptese de um "sistema" monoltico adotado atravs de algum tipo de acordo em grande escala para remodelar uma sociedade inteira de uma vez sob o mesmo padro, ou como uma sociedade organizada exatamente da maneira ela agora, em termos de instituies econmicas e sociais, mas com os governos repentinamente retirados.

    H uma sada, que aceitar que formas anarquistas de organizao no se pareceriam nada com um estado. Que elas envolveriam uma variedade infindvel de comunidades, associaes, redes, projetos, em toda escala concebvel, sobrepondose e cruzandose de toda maneira que pudssemos imaginar, e possivelmente muitas que no podemos. Algumas seriam bastante locais, outras, globais. Talvez, tudo que elas teria em comum que nenhuma envolveria ningum aparecendo com armas e dizendo para todas as outras pessoas calarem a boca e fazerem o que lhes mandam. E que, uma vez que anarquistas no esto realmente tentando tomar o poder dentro de qualquer territrio nacional, o processo de um sistema substituindo o outro no tomar a forma de algum cataclisma revolucionrio repentino a invaso de uma Bastilha, a tomada de um Palcio de Inverno mas ser necessariamente gradual, a criao de formas alternativas de organizao em uma escala mundial, novas formas de comunicao, formas menos alienadas de organizar a vida, que iro, eventualmente, fazer as formas existentes de poder parecem estpidas e irrelevantes. Isto, por sua vez, significaria que existem infinitos exemplosdeanarquismovivel...

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  • A tentativa de se chegar a solues atravs do estado totalmente equivocada. Antes, devemoscomeardosblocosdeconstruodocomunismocotidianoaonossoredor.

    ...a ltima dcada viu o desenvolvimento de milhares de formas de associaes de ajuda mtua. Elas variam de cooperativas minsculas a vastos experimentos anticapitalistas, de fbricas ocupadas no Paraguai e na Argentina a plantaes de ch e pesqueiros autoorganizados na ndia, de institutos autnomos na Coria a comunidades insurgentes em Chiapas e na Bolvia. Essas associaes de camponeses sem terra, ocupadores urbanos e alianas de bairro brotam praticamente em qualquer lugar em que o poder estatal e o capital global paream estar temporariamente olhando para o outro lado. Elas podem no ter quase nenhuma unidade ideolgica, muitas no esto sequer cientes da existncia das outras, mas elas so todas marcadas por um desejo comum de romper com a lgica do capital. "Economias de solidariedade" existem em todos os continentes, em pelo menos 80 pases diferentes. Estamos no ponto em que podemos comear a conceber estas cooperativas unidas em um nvel global e criando uma genuna civilizaoinsurgente.

    ...Ficarmos cientes de alternativas nos permite ver tudo que j estamos fazendo sob uma nova luz. Percebemos que j somos comunistas quando trabalhamos em projetos comuns, j somos anarquistas quando resolvemos problemas sem ajuda de advogados ou da polcia, j somos revolucionrios quando fazemos algo genuinamentenovo.

    Graeber, ao tratar o anarquismo como algo que j existe, com um estado superimposto a ele,soamuitocomoColinWard.

    J estamos praticando o comunismo na maior parte do tempo. J somos anarquistas, ou pelo menos agimos como anarquistas, toda vez que chegamos a entendimentos uns com os outros que no exigiriam ameaas fsicas como meios de execuo. No uma questo de construir uma sociedade inteiramente nova do zero. uma questo de ampliar o que j estamos fazendo, expandindo as zonas de liberdade, at que a liberdade se torne o princpio ltimo de organizao. Na verdade, eu no acho que os aspectos tcnicos de se chegar forma como produzir e distribuir objetos manufaturados sero provavelmente o grande problema, embora nos digam constantemente para acreditar que o nico problema. H muitas coisas com pouca oferta no mundo. Uma coisa que temos uma oferta quase ilimitada so

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  • pessoas inteligentes e criativas capazes de propor solues para problemas como esse. O problema no uma falta de imaginao. O problema so os sistemas sufocantes de dvida e violncia, criados para garantir que esses poderes de imaginao no sejam usados ou no sejam usados para criar qualquer coisa alm de derivativos financeiros, novos sistemas de armamentos, ou novas plataformas de Internet para preencher formulrios. Isto , claro, exatamente o que trouxe tantos a lugarescomooZuccottiPark.

    Ele prope, como um modelo revolucionrio para anarquistas, "uma teoria da casca de ovo de revoluo", em que "[v]oc simplesmente vai deixando ela oca at que no haja mais nada e, eventualmente, ela colapsar". Isso significa um perodo extenso de poder dual, finalmenteculminandonopontoemque"asforasdaordemserecusamaatirar".

    VI. O Outro Lado: A Estupidez do Poder Graeber est de acordo com James Scott, R A. Wilson e uma grande variedade de outros pensadores libertrios e anarquistas, de que o poder torna aqueles que o empunham estpidos.

    ...[A]o passo que as pessoas podem ser razoveis e atenciosas quando esto lidando com iguais, a natureza humana tal que no se pode confiar nelas para fazlo quando lhes dado poder sobre outras. D a algum tal poder, e elas quase invariavelmenteabusarodeledeumaformaoudeoutra.

    Mais fundamentalmente, so os diferenciais de poder, que permitem que um lado desconsidere as comunicaes do outro e substitua a razo pela violncia, que criam a estupidez. O poder e a violncia eliminam a necessidade de entender. Ao invs disso, aqueles no poder so capazes de forar a realidade em um esquema simples de entender. E j que aqueles no poder podem reprimir qualquer um que desobedea ou falhe em seguir o script, eles podem externalizar as consequncias negativas da irracionalidade para seus subordinados. O poder significa no ter nem que perceber nem sofrer as consequncias negativasdesuasprpriasaes.Um benefcio do poder tornar a sociedade legvel, na terminologia de James Scott que ele cria uma situao em que os poderosos podem se dar ao luxo de serem estpidos. Voc provavelmente j ouviu a antiga piada sobre o bbado que procura pela chaves do seu carro embaixo do poste, apesar de tlas perdido em algum outro lugar, porque a luz

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  • melhor. A aplicao da legibilidade por parte daqueles no poder uma maneira de colocar todas as chaves de carro de baixo de postes, ou pelo menos fazer com que todo mundo finja que l que esto. (Teremos mais a dizer na prxima seo sobre deliberadamente construirnossanovasociedadeforadocrculodeiluminaodoposte.)

    O que eu gostaria de argumentar que situaes criadas pela violncia particularmente pela violncia estrutural, com o que eu quero dizer formas de desigualdade social generalizadas que so, em ltima instncia, suportadas pela ameaa de dano fsico invariavelmente tendem a criar os tipos de cegueira voluntria que normalmente associamos com procedimentos burocrticos. Para colocar de forma crua: no tanto que os procedimentos burocrticos so inerentemente estpidos, ou mesmo que eles tendam a produzir comportamentos que eles mesmo definem como estpidos, mas, antes, que so invariavelmente maneiras de administrar situaes sociais que j so estpidas por que so fundamentadas em violncia estrutural. Eu acho que esta abordagem permite entendimentos potenciais sobre questes que so, de fato, tanto interessantes quanto importantes: por exemplo, o real relacionamento entre aquelas formas de simplificao tpicas da teoria social, e aquelas tpicas de procedimentos administrativos.

    ***

    A anlise comparativa sugere que h uma relao direta, no entanto, entre o nvel de violncia empregado em um sistema burocrtico e o nvel de absurdidade que se vqueeleproduz.

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    A capacidade da violncia de permitir decises arbitrrias e, assim, evitar o tipo de debate, esclarecimento e renegociao tpico de relaes sociais mais igualitrias, obviamente o que permite que suas vtimas verem os procedimentos criados na base da violncia como estpidos ou irracionais. Poderseia dizer, aqueles que dependem do medo da fora no so obrigados a se envolver em muito trabalho interpretativoe,assim,deummodogeral,noofazem.

    Ossubordinadostmqueentenderasituao,porquesoosquelidamcomarealidade.

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  • importante ter em mente que a maioria das relaes humanas particularmente as contnuas, seja entre amigos de longa data, ou inimigos de longa data so extremamente complicadas, densas de experincia e significado. Mantlas exige um trabalho constante e frequentemente sutil de interpretao, de infinitamente imaginar os pontos de vista de outrem. Ameaar outras pessoas com dano fsico permite a possibilidade de passar por cima de tudo isso. Torna possvel relaes de um tipo bem mais esquemtico (isto , 'cruze essa linha e eu vou atirar em voc'). por isso, claro, que a violncia to frequentemente a arma preferida dos estpidos: de fato, se poderia dizer que uma das tragdias da existncia humana que esta sejaaformadeestupidezparaaqualmaisdifcilproporumarespostainteligente.

    Eu realmente preciso introduzir um qualificao crucial aqui. Se duas partes se envolvem em uma competio de violncia digamos, generais comandando exrcitos opostos elas tm boas razes para tentar entrar na cabea uma da outra. realmente apenas quando um lado tem uma vantagem esmagadora em sua capacidade de causar dano fsico que elas no mais tem que fazlo. Mas isto tem efeitos muito profundos, porque significa que o efeito mais caracterstico da violncia sua capacidade de remover a necessidade de trabalho interpretativo se torna mais saliente quando a violncia em si menos visvel, de fato, onde atos de violnciafsicaespetaculartemmenorprobabilidadedeocorrer.

    Essas so as situaes do que eu me referi como violncia estrutural, na suposio de que desigualdades sistemticas apoiadas pela ameaa de fora podem ser tratadas como formas de violncia em si mesmas. Por esta razo, situaes de violncia estrutural invariavelmente produzem estruturas assimtricas extremas de identificaoimaginativa.

    H uma grande cena em Patton em que o general, aps derrotar Rommel, diz "Rommel, seu magnfico bastardo, eu li seu livro". Quanto maior a igualdade de poder, maior a necessidadedeselevaremconsideraoumaooutro.Eleserefere

    ao processo de identificao imaginativa como uma forma de conhecimento, o fato de que, dentro de relaes de dominao, geralmente aos subordinados que efetivamente relegado o trabalho de entender como as relaes sociais em questo realmente funcionam. Qualquer um que j tenha trabalhado em uma cozinha de restaurante, por exemplo, sabe que se algo d terrivelmente errado e um chefe irado aparece para avaliar as coisas, pouco provvel que ele leve a cabo uma investigao detalhada, ou sequer seriamente preste ateno nos trabalhadores

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  • todos se atropelando para explicar sua verso do que aconteceu. muito mais provvel que ele diga a todos para calarem a boca e arbitrariamente imponha uma histria que permita o julgamento instantneo: isto , "voc o cara novo, voc estragou tudo se fizer isso de novo, voc est demitido". So aqueles que no tm o poder de contratar e demitir que so deixados com o trabalho de entender o que realmente deu errado, de modo a ter certeza que no acontea de novo. A mesma coisa normalmente acontece com relaes contnuas: todo mundo sabe que criados tendem a saber um bom tanto sobre as famlias de seus empregadores, mas o contrrio quase nunca ocorre... [Ento] embora aqueles na base de uma escada social passem uma boa quantidade de tempo imaginando as perspectivas daqueles notopo,erealmenteseimportandocomelas,issoquasenuncaocorreaocontrrio.

    Quer se esteja lidando com mestres e servos, homens e mulheres, empregadores e empregados, ricos e pobres, a desigualdade estrutural o que eu tenha chamado de violncia estrutural invariavelmente cria estrutura altamente assimtricas de imaginao. Uma vez que creio que Smith estava certo em observar que a imaginao tende a trazer consigo a simpatia: o resultado que as vtimas da violncia estrutural tendem a se importar com seus beneficirios bem mais do que esses beneficirios se importam com elas. Isto poderia bem ser, aps a violncia em si,aforamaispoderosaquepreservataisrelaes.

    Como James Scott argumentou, aqueles no poder tentam tornar a sociedade legvel. Mas mais do que isso, eles tambm fingem que ela legvel quando no , e agem sobre essa suposio.

    O conhecimento burocrtico todo sobre esquematizao. Na prtica, um procedimento burocrtico invariavelmente significa ignorar todas as sutilezas da existncia social real, e reduzir tudo a frmulas mecnica ou estatsticas prconcebidas. Quer seja uma questo de formulrios, regras, estatsticas ou questionrios, sempre uma questo de simplificao. Usualmente no to diferente do chefe que entra na cozinha para fazer decises precipitadas e arbitrrias quanto ao que deu errado: em ambos os casos uma questo de aplicar modelos prexistentes muito simples a situaes complexas e frequentemente ambguas.

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  • Um expolicial do LAPD que virou socilogo (Cooper 1991) observou que a maioria esmagadora daqueles espancados pela polcia acabam no sendo culpados de qualquer crime. "Policiais no espancam assaltantes", ele observou. A razo, ele explicou, simples: a coisa que com mais garantia evoca uma reao violenta da polcia desafiar seu direito de "definir a situao". Se o que eu estive dizendo verdadeiro, isto apenas o que esperaramos. O cassetete da polcia precisamente o ponto em que o imperativo burocrtico do estado de impr esquemas administrativos simples e seu monoplio da fora coercitiva se renem. Simplesmente faz sentido, ento, que