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O Poder dos Candomblés Perseguição e Resistência no Recôncavo da Bahia

O Poder Dos Candombles

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  • O Poder dos CandomblsPerseguio e Resistncia no Recncavo da Bahia

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    ReitorNaomar Monteiro de Almeida Filho

    Vice-ReitorFrancisco Jos Gomes Mesquita

    EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    DiretoraFlvia Goullart Mota Garcia Rosa

    Conselho Editorial

    Titularesngelo Szaniecki Perret Serpa

    Caiuby Alves da CostaCharbel Nin El-Hani

    Dante Eustachio Lucchesi RamacciottiJos Teixeira Cavalcante FilhoMaria do Carmo Soares Freitas

    SuplentesAlberto Brum Novaes

    Antnio Fernando Guerreiro de FreitasArmindo Jorge de Carvalho BioEvelina de Carvalho S Hoisel

    Cleise Furtado MendesMaria Vidal de Negreiros Camargo

  • Edmar Ferreira Santos

    SalvadorEdufba2009

    O Poder dos CandomblsPerseguio e Resistncia no Recncavo da Bahia

  • 2009, By Edmar Ferreira Santos.Direitos de edio cedidos

    Editora da Universidade Federal da Bahia - EDUFBAFeito o depsito legal.

    RevisoNdia M. L. Lubisco

    NormalizaoAdriana Caxiado

    Editorao Eletrnica e CapaRodrigo Oyarzbal Schlabitz

    Foto da capa

    Damrio Dacruz

    Ilustraes das separatrizes

    Rodrigo Oyarzbal Schlabitz

    EDUFBA

    Rua Baro de Jeremoabo, s/n - Campus de Ondina,

    40170-115 Salvador-BA

    Tel/fax: (71) 3283-6164

    [email protected]

    Sistema de Bibliotecas - UFBA

    Santos, Edmar Ferreira.O poder dos candombls : perseguio e resistncia no Recncavo da Bahia /

    Edmar Ferreira Santos. - Salvador : EDUFBA, 2009.209 p.

    ISBN 978-85-232-0609-3

    1. Candombl - Recncavo (BA). 2. Perseguio religiosa. 3. Resistncia.4. Imprensa e poltica. 5. Relaes raciais. I. Ttulo.

    CDD - 299.608142

  • AGaiaku Luiza (in memoriam) que na sua grandeza chama-va-me professor, enquanto me ensinava histrias da Bahia,

    e aMaria Luiza, parte da minha sorte.

  • AGRADECIMENTOS

    Em agradecimentos pblicos incide sempre o risco dos lapsos ou aimpossibilidade de falar de todas as pessoas, ainda mais quando no pe-queno o nmero daqueles que contriburam para a realizao do trabalho.Assim, inicio agradecendo ao professor Luis Nicolau Pars, que dedicouhoras do seu tempo orientao, leitura e releitura deste trabalho, tornan-do-se imprescindvel para sua realizao, sobretudo, pela discusso das maisdiversas questes, pela amizade e respeito liberdade de escolha dos meusprprios caminhos.

    Os professores Joclio Teles e Wlamyra Albuquerque leram meus es-critos e reflexes iniciais. Apontaram possibilidades e chamaram a atenopara aspectos fundamentais no tratamento das fontes e na tessitura dotexto. No posso deixar de destacar e agradecer a ateno e o incentivodesses professores a cada novo encontro, no Centro de Estudos Afro-Ori-entais, nas ruas ou nos arquivos de Salvador e de Cachoeira. Agradeotambm a todos os professores, funcionrios e colegas do ProgramaMultidisciplinar em Estudos tnicos e Africanos, especialmente LindinalvaBarbosa, Cludia Santos e Artemisa Cand.

    A professora Lucilene Reginaldo me iniciou no universo dahistoriografia com preciosas lies de teoria e pesquisa. Sua ateno e con-fiana so inestimveis. Henrique Cunha Jr. e Ftima da Silva incentiva-ram a realizao da pesquisa e reclamaram a sua urgncia. Na mesma pers-pectiva, agradeo a Eduarda Senna e Lysie Reis. A professora Lina Arasacreditou no projeto desde o primeiro momento (quando no passava demal tranadas linhas) e contribuiu significativamente para sua elabora-o. Entre os amigos e amigas que desde o incio dispensaram confiana eapoio no posso deixar de agradecer a Reginilde Santa Brbara, Sueli Sou-za e Damrio da Cruz.

    rica Rocha Moreira acompanhou de perto todas as etapas do proje-to. Alm do carinho e da compreenso nos momentos mais difceis do tra-balho intelectual, leu e teceu crticas de natureza poltica e acadmica eajudou na reviso do texto. Agradeo por tudo.

    Meus familiares tiveram de experimentar junto comigo uma ausnciaaumentada a cada dia. Agradeo a compreenso e o estmulo de todos.Tambm a famlia jeje mahi do Rumpame Ayono Runtoloji, especialmenteGaiaku Regina e Iy Zulmira, Vodum pahum anadeji. No poderia esquecerdos que me acolheram durante meus estudos nos Estados Unidos: aquele

  • abrao para Edward, Amlia, Erlinda, Ruth, Nilda e Jim, companheiros ecompanheiras de experincias singulares.

    Em Cachoeira e Salvador so muitas as iys, equedes e ogans, irmose irms, amigos e amigas que contriburam para este trabalho. Meus agra-decimentos a Dona Estelita (Juza Perptua da Irmandade da Boa Morte),Dona Lica, Equede Aparecida, Seu Geninho ( in memoriam), OganBernardino, Seu Hermgenes, Ogan Dezinho, Babalax Duda, OganSandro, Lus Magno, Billy Oliveira, Luzia Gomes, Fbio Lima, Liu Onawale Maurcio Arajo. Tambm agradeo aos funcionrios do Arquivo Regio-nal de Cachoeira, que tiveram ateno e pacincia frente aos meus inme-ros pedidos.

    A pesquisa contou com o acompanhamento da equipe doProgramabolsa, coordenado no Brasil pela Fundao Carlos Chagas. Agra-deo a toda a equipe, em particular professora Flvia Rosemberg, quealm de coordenar o programa encontra tempo para ser conselheira inesti-mvel. Dedico especiais agradecimentos ao International FellowshipProgram Ford Foundation, que atravs da concesso de uma bolsa de estu-dos me possibilitou dispor do tempo e dos recursos necessrios para realiza-o desta pesquisa.

    A equipe da Editora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA)foi responsvel pela cuidadosa produo deste livro, meu grato reconheci-mento. Por fim, o Prmio de Divulgao Cientfica da Fundao de Ampa-ro Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) foi indispensvel para estapublicao.

  • Mas no se pode absolutamente excluir um povo dahistria nem impedi-lo de viver sua histria e,consequentemente, de cont-la a si mesmo, por t-lavivido na prpria carne.

    Boubacar Barry

  • SUMRIO

    13 | PREFCIO

    INTRODUO

    19 | A CONSTRUO SOCIAL DA CIDADE DO FEITIO22 | A IMPRENSA E A METODOLOGIA25 | O DISCURSO CIVILIZADOR DA IMPRENSA

    CAPTULO I

    37 | OS BATUQUES DA CIDADE: CELEBRAES NEGRAS E IDIAS DE CIVILIZAO41 | A MARCHA DA CIVILIZAO: EVANGELIZAO E MANUTENO DA ORDEM45 | O CONTROLE DOS BATUQUES NO SCULO XIX48| AS TENTATIVAS DE ORDENAMENTO DA FESTA52 | OS BATUQUES E A CIDADE PS-ABOLIO57 | OS DIFERENTES BATUQUES E A POLCIA

    CAPTULO II

    71 | A MARCHA DOS CANDOMBLS: A DOR E A DDIVA DA CURA NO INTERIOR DA BAHIA72 | A FEITIARIA E O FETICHISMO: A CONVERGNCIA DOS DISCURSOS CATLICOS E PROTESTANTES77 | O DISCURSO MDICO-HIGIENISTA E A IMPRENSA81 | FEITIARIA E CURANDEIRISMO NA IMPRENSA LOCAL86 | ENTRE PEJIS E CANDOMBLS: TERMINOLOGIAS E ESTERETIPOS93 | O PARADOXO DA FEITIARIA104 | LEMBRANAS DO CONFLITO E UMA VOZ DISSIDENTE

    CAPTULO III

    111 | POLTICAS LOCAIS E RELIGIOSIDADE AFRO-BAIANA: REPRESSO E ESTRATGIAS DE RESISTNCIA114 | OS PAPIS POLTICOS DO OGAN118 | OS JOGOS POLTICOS DA IMPRENSA128 | OS ANOS 20: MUDANAS POLTICAS E REPRESSO POLICIAL133 | ASPECTOS DAS RELAES RACIAIS NA IMPRENSA LOCAL

    CAPTULO IV

    143 | AS SENHORAS DO SEGREDO: LUTAS, ENCANTOS E DESENCANTOS NA RESISTN- CIA DOS CANDOMBLS146 | ME JUDITH E A RESISTNCIA LEGAL159 | ITINERRIOS ANCESTRAIS: TERRITORIALIDADES AFRO-BAIANAS EM CACHOEIRA171 | O MISTRIO E O SEGREDO DO BOZ: A RESISTNCIA SILENCIOSA DOS CANDOMBLS

  • 183 | OUTRAS HISTRIAS

    189 | REFERNCIAS

    195 | APNDICE Jornais e Outras Fontes197 | ANEXO Mapa e Fotografias

  • O Poder dos Candombls / 13

    PREFCIO

    Nos tempos atuais de crescente visibilidade pblica dos candom-bls, dos seus registros nos livros de tombo e da retrica de preservaodos patrimnios culturais afro-brasileiros, no resulta suprf luo lanarum olhar atento para um passado no to remoto em que tais prticas dematriz africana eram ora silenciadas, ora perseguidas e depreciadas por-quanto identificadas com atraso e desvio dos modelos civilizatrios euro-peus. Se esse olhar retrospectivo resulta salutar ao constatar o quanto seavanou, ele tambm nos alerta para o quanto ainda se precisa avanar,pois os discursos da intolerncia religiosa de ontem se alastram at hoje,embora em novos plpitos, com os mesmos efeitos perniciosos. Nesse sen-tido, o livro de Edmar Ferreira Santos atinge uma meta que qualquerpesquisa em histria social pode almejar: a de nos permitir compreenderem detalhe a complexidade do passado para, atravs dele, iluminar osparadoxos do presente.

    Filho da cidade de Cachoeira, no Recncavo baiano, poeta, profes-sor, militante antirracista, formado em histria, mas com interesseinterdisciplinar na antropologia, Edmar Ferreira conhecedor atento davida cultural e religiosa da heroica cidade e sabedor de alguns dos seussegredos. Talvez por isso ele tenha decidido debruar-se no universo dahistria local e, com palavras medidas, nos evocar, nos ajudar a imaginar asluzes e as sombras de figuras, enredos e memrias que, empoeirados, hmuito esperavam ser descortinados, nas entrelinhas dos documentos. Defato, a histria poltica e cultural de Cachoeira na Repblica Velha, maisprecisamente nas trs primeiras dcadas do sculo XX, constitua um uni-verso e perodo que ainda ningum abordara de forma criteriosa e sistem-tica. Apenas por esse aspecto, a obra que se segue seria digna de destaquee interesse, mas no s.

    O texto inicia com uma anlise do discurso sobre as prticas ldicas ereligiosas afro-baianas, veiculado nas notcias do conservador jornal AOrdem, uma das mais influentes publicaes da cidade. Alm de constatara continuidade com a ideologia e as prticas disciplinares dos perodos doImprio e Colnia, o autor identifica uma mudana significativa, comoseja a progressiva apario, junto ao velho discurso da feitiaria tradicio-nalmente instigado pela igreja catlica, de um novo discurso do fetiche,introduzido atravs da Europa pela cincia mdico-higienista. Enquanto oprimeiro condenava as prticas afro-baianas como formas de superstio

  • 14 / Edmar Ferreira Santos

    marcadas pela presena do diabo, o segundo as condenava pela supostairracionalidade dos praticantes e pela explorao que os charlates faziamda sua ignorncia. Numa leitura crtica e metodologicamente cuidadosa,que examina e contextualiza o uso e os sentidos de palavras significativasque aparecem de forma recorrente nas notcias do jornal, o historiador nosmostra como os dois discursos se superpunham e reforavam mutuamente.

    Segue logo uma das partes mais originais do livro, relativa histriapoltica do perodo em apreo que em Cachoeira como na Bahia de modogeral, esteve fortemente marcada pelo personalismo dos lderes locais. Umpedao da histria cachoeirana que estava ainda por ser escrita. Todavia,Edmar Ferreira desvenda a complexidade dos interesses e das disputas noseio do conservador Partido Republicano, dominante na poca, e como asdiversas faces se utilizavam dos candombls, ora condenando-os e lan-ando contra eles campanhas repressivas, ora dando-lhes apoio, geralmen-te com fins eleitorais. Essa anlise da interdependncia entre poltica ereligio e das nuances da sua variabilidade constitui uma singular contri-buio para a histria da religiosidade afro-baiana. Ao tempo em que oautor desfaz o mito de uma represso sistemtica dos candombls e de umaposio unnime das autoridades, identificando pontuais alianas estrat-gicas com os grupos religiosos, ele mostra tambm como os subalternospodiam sabiamente se aproveitar das brechas criadas pelas disputas entrefaces polticas rivais.

    Fruto de uma pesquisa que combina e cruza a tradio oral com osregistros escritos, a parte final do texto d destaque especial ao singularcaso de Me Judith, ialorix do terreiro Aganju Did, fundado em 1916,na regio da Terra Vermelha. Atravs dessa figura lendria, alm de refletircriticamente sobre importantes questes de gnero que aparecem no dis-curso civilizatrio veiculado pela imprensa, o historiador aponta para umageografia da resistncia cultural dos candombls cachoeiranos, tecida apartir da experincia, vivida e sofrida, de inmeros sujeitos forjadores dasua prpria histria. Ilustrando de forma concreta e personalizada as dis-cusses de captulos precedentes, o autor revela, por exemplo, como MeJudith conseguiu difundir, mesmo que atravs da denncia publicada pelojornal A Ordem, o convite anunciando as festas da sua casa em 1917. Pre-ciosa jia documental que mostra, alm do pioneirismo da ialorix nessaprtica de distribuio de convites para amigos e clientes, a audcia dessamulher que no temia enfrentar o clima de perseguio reinante.

    Em definitivo, o texto conduz sempre ancorado na evidncia docu-mental da discusso mais genrica, sobre uma histria cultural das idias,

  • O Poder dos Candombls / 15

    ao mundo mais palpvel e biogrfico da experincia concreta, onde semanifestam e expressam essas idias e cultura. No seu conjunto, areconstituio histrica fruto de rica pesquisa de arquivo e de um conhe-cimento pormenorizado do campo nos permite melhor entender a cons-truo de Cachoeira no imaginrio baiano e nacional, como a terra damacumba ou a cidade do feitio, processo que se deu, precisamente, nomomento em que estavam sendo definidos os traos marcantes da identi-dade brasileira.

    Para alm do seu inegvel mrito intelectual, importante salientarque o livro tambm o resultado de algum que soube enfrentar e vencerdificuldades, algum que com persistncia e inteligncia soube contornaros obstculos at atingir a meta imaginada. Em 2005, Edmar Ferreira foimerecedor de uma bolsa de estudos do International Fellowship ProgramFord Foundation e sua pesquisa se converteu na primeira dissertao demestrado apresentada e defendida no Programa Multidisciplinar de Ps-Graduao em Estudos tnicos e Africanos, no Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia. Todos esses esforos se vmhoje recompensados com a publicao de O poder dos candombls: persegui-o e resistncia no Recncavo da Bahia.

    Deixando de lado o seu contexto de produo e o seu pioneirismoacadmico, gostaria de destacar, para concluir estas breves palavras de aber-tura, a curiosidade e o rigor intelectual do autor que, aliados a sua genero-sidade humana, o levaram a desenvolver uma pesquisa empiricamente s-lida, que no se deixou levar de forma leviana por pressupostos ideolgicostomados a priori. Edmar nos oferece uma histria, at agora invisvel da-queles a quem foi negada a voz paradoxalmente revelada nas entrelinhasdos textos produzidos pelos prprios silenciadores num livro que pode-mos saudar como uma genuna contribuio para a histria de Cachoeira,da religio afro-baiana e da cultura afro-brasileira em geral.

    Luis Nicolau ParsSalvador, 7 de abril de 2009.

  • O Poder dos Candombls / 19

    INTRODUO

    A CONSTRUO SOCIAL DA CIDADE DO FEITIO

    Cachoeira uma antiga cidade da Bahia, depositria de significativoacervo cultural do Brasil. Construda na margem esquerda do rio Paraguau,prximo sua foz no Recncavo baiano, o incio da colonizao portugue-sa dessas terras nos remete a meados do sculo XVI e s lutas de conquista,das quais resultou o extermnio de numerosa populao e diversas culturasindgenas1. A explorao inicial do solo massap pela economia da cana-de-acar, com a utilizao em larga escala de mo-de-obra escravizadaindgena e africana, deu vigor colonizao. Aos poucos a movimentaolocal foi se desenvolvendo em progressiva circulao de mercadorias, pormeio fluvial e martimo, com o porto de Salvador, e terrestre, com as entra-das para o interior da colnia. O paulatino crescimento levou criao daVila de Nossa Senhora do Rosrio do Porto da Cachoeira em 1698.

    A crescente relevncia da cultura do tabaco durante o sculo XVIII,na rea fumageira da Vila e adjacncias, forneceu o principal objeto decomrcio baiano na Costa da Mina, aumentando o fluxo de escravos e aprosperidade econmica da regio. Apesar de seu renome de regioaucareira, as culturas agrcolas do Recncavo foram diversificadas de acor-do com o solo, topografia ou clima das vrias zonas. O estabelecimento e ocrescimento do empreendimento agrcola na regio, especialmente da cana,apenas foi possvel atravs da utilizao do poderio militar dos portuguesessobre os povos indgenas, subjugados, escravizados e utilizados extensiva-mente nas plantaes, junto aos africanos, seguindo os moldes em que es-tava se desenvolvendo a empresa colonial ibrica2.

    A implantao da navegao a vapor nas primeiras dcadas do sculoXIX consolidou a vocao de Cachoeira como entreposto comercial entreSalvador e o interior do Brasil3. Entre os sculos XVIII e XIX, teve lugar a

    1 Wanderley Pinho identifica o terceiro governador-geral da Bahia, Mem de S, como o responsvel por umgenocdio empreendido em 1557 no baixo Paraguau. Ver: Wanderley Pinho (1982, p. 37-49).2 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. So Paulo: Companhiadas Letras, 1988. Especialmente o captulo 4. O Recncavo, p. 77-94. Sobre a utilizao do fumo como moedado trfico, ver Pierre Verger (1987).3 No dia 4 de outubro de 1819, ocorreu a primeira viagem em embarcao a vapor entre Salvador e Cachoeira.No entanto, foi apenas depois de 1835 que a navegao a vapor se estabeleceu definitivamente no interior daBaa-de-Todos-os-Santos. Ver: J. da Silva Campos (1930. p. 1).

  • 20 / Edmar Ferreira Santos

    construo das edificaes mais suntuosas da cidade. Viajantes europeuscomo os naturalistas Spix e Martius, encantados com sua visita vila, es-creveram:

    [...] sem dvida a mais rica, populosa e uma das mais agra-dveis vilas de todo o Brasil. Numerosas vendas e arma-zns cheios de vrios artigos europeus revelam o alto graude movimentao do seu comrcio4.

    Em 1837, a Vila de Nossa Senhora do Rosrio do Porto da Cachoeirafoi elevada categoria de cidade em reconhecimento por sua participaonas disputas emancipatrias ocorridas na Bahia5. poca, a cidade j secaracterizava como o mais importante centro de negcios e comrcio dorecncavo baiano.

    Cachoeira era considerada o segundo termo mais importante daBahia. Compreendia uma enorme rea geogrfica, populosa, com in-tensas relaes comerciais e intercmbios culturais, vastas plantaesde fumo e cana, bem como numerosos engenhos de acar. A cidadeera ainda espao de produo e distribuio de gneros alimentcios,passagem dos diamantes de Mucug e Rio de Contas, gado, alm deescravos e toda sorte de produtos para as famlias da regio6. SegundoJoo Jos Reis, j na passagem do sculo XVIII para o XIX, Cachoeiraera o segundo ncleo populacional da Bahia. Em 1775, seu centro ur-bano tinha 986 casas, talvez cerca de 4.000 habitantes; em 1804, 1180casas, cerca de 5.000 habitantes. Um recenseamento feito pela cmaralocal terminado em 1826, contaria 6 mil habitantes na vila e 60 mil emtodo o termo7.

    4 SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Viagem pelo Brasil (1817-1820). So Paulo:Melhoramentos, 1976.5 Refiro-me s lutas pela consolidao da independncia poltica do Brasil entre os anos de 1822 e 1823.6 A denominao termo se referia a uma circunscrio geogrfica, jurdica e poltico-administrativa. Quandoa Vila foi criada, em 1698, o seu termo incorporava o territrio de mais ou menos30 atuais cidades do Estado daBahia. Entre elas: Maragogipe, So Flix, Muritiba, Governador Mangabeira, Cabaceiras, Cruz das Almas, SoFelipe, Conceio do Almeida, Sapeau, Conceio da Feira, So Gonalo dos Campos, Feira de Santana,Santo Estevo, Castro Alves, Irar, Ipir, Santa Brbara, Conceio do Jacupe, Conde, Entre Rios, Esplanada,Ouriangas, D. Macedo Costa, Antnio Cardoso, Amlia Rodrigues, Tanquinho, Cardeal da Silva, Altamira,Acajutiba, Jandara entre outras. Ver: Francisco Jos de Mello (2001, p. 34-36). Em 1832, foi criada a Vila daFeira de Santana, que se tornou municpio no ano seguinte, anexando parte do territrio antes pertencente Vila de Cachoeira.7 REIS, Joo Jos. Magia jeje na Bahia: a invaso do calundu do pasto de Cachoeira, 1785. Revista Brasileira deHistria, So Paulo, v. 8, n. 16, p. 57-81, mar./ago. 1988. p. 63.

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    Em princpios do sculo XIX, estima-se que cerca de um tero dos500 mil habitantes da capitania eram escravos, podendo chegar essa pro-poro at 70% na regio dos engenhos8. Em Cachoeira, no ltimo quarteldo sculo XIX, ainda um numeroso contingente negro, escravizado e livre,era a principal fora de trabalho que fazia girar as engrenagens da cidade e,ao mesmo tempo, o temor de setores da elite que reclamavam reformas quepusessem fim s inmeras desordens e ao fetichismo africano. Aps alei da abolio da escravatura, setores dominantes passaram a se preocuparainda mais com a populao livre que recorreu cidade em busca de ocu-pao, bem como com a populao urbana j existente.

    O censo de 1890 apurou 38.136 habitantes no distrito de Cacho-eira. Nas dcadas seguintes, a populao s se elevou, contando 48.342habitantes em 1900 e, em 1910, o censo acusava 50.323 habitantes9.Como na capital baiana, observando-se as devidas propores, paraCachoeira a Repblica levou brisas de modernizao e urbanizao pre-tendidas pelas elites dirigentes. Para tanto, tornava-se imprescindvelmanter o controle sobre a populao negra, agora livre, que no paravade crescer com as levas de migrantes vindas de outras localidades dointerior do Estado. Percebe-se nesse momento uma intensificao dodiscurso pela segurana pblica, visando a manter a ordem e a civiliza-o. Desordens, caretas10, bozs11, sambas, batuques e candombls, fa-ziam as elites cachoeiranas clamarem uma urgente reforma de costu-mes12.

    8 SCHWARTZ, S. B. Segredos internos, 1988. p. 280.9 Sobre os censos de Cachoeira nas primeiras dcadas do sculo XX. Ver: Antnio Loureiro de Souza (1972, p.19). Em 1921, ano de elevao do termmetro da perseguio s prticas culturais e religiosas afro-baianas, umcenso assim caracterizava a cidade: sua populao de 51.522 habitantes, assim distribudos: distrito da cida-de, 12.292; Blem, 4.395; Conceio da Feira, 7.746; Iguape, 6.704; Santo Estevo de Jacuipe, 20.385. Omunicpio possui 10.122 prdios, sendo 2.891 no districto da cidade; e 409 estabelecimentos rurais, sendo 14no districto da cidade. Existem no districto da cidade 28 estabelecimentos fabris.. Cachoeira e sua populaosegundo o ultimo recenseamento. PEQUENO JORNAL. 24 abr. 1921, p. 1.10 Mscaras utilizadas pela populao nos perodos de festa. Em Cachoeira, o uso dessas mscaras aparece comfrequncia nas notcias sobre o carnaval e a festa dAjuda. Os mascarados se valiam de estar com suas identida-des escondidas para de alguma maneira subverter a ordem.11 Designao popular para oferendas propiciatrias colocadas em vias pblicas por adeptos ou por indivduosprximos dos candombls. Essas oferendas eram constantemente identificadas como feitiaria e foram atacadaspelos jornais a pretexto de atentarem contra a limpeza pblica e, tambm, por conterem sacrifcios de animais.Discutimos a presena do boz nas ruas de Cachoeira no captulo 4.12 Para situao similar ocorrida em Salvador, ver: Wlamyra Albuquerque (1999); Alberto Ferreira Filho (1993)e Rinaldo C. Nascimento Leite (1996). Esses estudos sobre a Salvador republicana indicam que as prticasculturais dos populares podem evidenciar estratgias de resistncia da populao pobre frente atitude hostildas elites e, tambm, desprezo aos seus valores morais preconceituosos e excludentes.

  • 22 / Edmar Ferreira Santos

    A IMPRENSA E A METODOLOGIA

    A histria da imprensa na cidade de Cachoeira nos remete aos confli-tos pela independncia que tiveram lugar na Bahia entre os anos de 1822 e1823. Nesse perodo, partidrios da emancipao poltica, refugiados naento Vila de Nossa Senhora do Rosrio do Porto da Cachoeira, fizeram viruma tipografia enviada pelo Imperador em fevereiro de 1823. Nascia as-sim, no dia 1. de maro de 1823, o primeiro jornal da cidade. Chamava-seO Independente Constitucional e sua primeira campanha seria pelo ideal deservir a uma ptria livre. At esta data apenas Salvador contava com jor-nais impressos na Bahia. Depois de 2 de julho de 1823, firmada a indepen-dncia, o jornal passou a ser editado em Salvador at o ano de 182713.

    No correr do sculo XIX, o nmero de jornais em circulao aumen-tou consideravelmente. A maioria pertencia a grupos que dedicavam aspginas dos peridicos s suas disputas de carter poltico. Tais folhas, se-gundo Pedro Celestino da Silva, no passavam de um pelourinho de repu-taes14. Em 1854, tem-se notcia do primeiro jornal declaradamente re-publicano na cidade de Cachoeira. Chamava-se Apstolo Cachoeirano. Emseu artigo-programa, liam-se estas escandalosas palavras para a poca: livre o povo cachoeirano, viva o partido republicano!. No entanto, omais curioso neste acontecimento que o Apstolo Cachoeirano era edita-do na mesma oficina do jornal Constitucional, defensor do sistemamonrquico ento vigente15.

    Em 1938, Pedro Celestino reconhecia os melhoramentos e evoluoda imprensa, todavia, em relao Bahia caa em desalento. Nas suas pa-lavras: na Bahia, o jornalismo no tem tido o desenvolvimento relativoao grau da civilizao que possumos. Entre os anos de 1823 e 1938, esteautor contabilizou o nascimento de 130 jornais na cidade de Cachoeira, amaioria absoluta com existncia efmera. A grande exceo fica por contado jornal A Ordem, editado por 65 anos consecutivos, entre 1870 e 193516.Por ter sido o jornal de maior circulao do interior do Estado17, sua cam-panha contra as prticas culturais e religiosas afro-baianas, em especial

    13 SILVA, Pedro Celestino da. Datas e tradies cachoeiranas. Anais do Arquivo Pblico da Bahia, Salvador, v. 29,p. 363-384, 1943.14 Ibid.15 MILTON, Aristides. Efemrides Cachoeiranas. Revista do IGHB, Salvador, v.7, n. 26, 1901. p. 450.16 Ver nos anexos fotografia de primeira pgina do jornal A Ordem no ano de 1921, p. 144.17 SILVA, P. C. da. Datas e tradies cachoeiranas, 1943.

  • O Poder dos Candombls / 23

    contra os candombls, a despeito das intenes da redao do peridico,muito contribuiu para a construo social de Cachoeira como a cidade dofeitio18.

    Os nmeros publicados entre os anos de 1901 e 1934 constituem aprincipal fonte desta pesquisa. Outros jornais do mesmo perodo e encon-trados de forma esparsa nos arquivos baianos tambm foram utilizados.Destaca-se entre eles o jornal O Norte que, entre os anos de 1914 e 1923juntamente com o jornal A Ordem, protagonizou interessantes disputaspolticas na cidade de Cachoeira. Ao contrrio de A Ordem, poucos nme-ros do jornal O Norte foram encontrados e, o pior, em pssimo estado deconservao. No entanto, constituiu-se em fonte valiosa da qual este tra-balho no podia prescindir19.

    As notcias aqui trabalhadas possibilitam leituras e consideraes di-versas. Neste estudo elas so focalizadas de diferentes maneiras. Primeiro, feita uma leitura de carter mais textual, atentando para o contedo danarrativa onde incide o questionamento a respeito do que est sendo rela-tado. Esta interpretao, de carter mais pragmtico, aponta para a infor-mao em si, sem discutir as possveis motivaes de sua emergncia nosjornais.

    Segundo, apresenta-se uma interpretao sobre os posicionamentospolticos dos jornais locais. Aqui, nota-se que uma postura mais ou menosconservadora podia ser decisiva na hora e na forma de selecionar e publi-car uma notcia. Essa orientao metodolgica permite estabelecer um ce-nrio das atuaes sociais de diferentes grupos, mantenedores dos jornais eprotagonistas das disputas pela administrao da coisa pblica, por con-seguinte, dos diferentes cargos nas diversas esferas de governo. Assim, per-cebe-se como uma matria podia estar vinculada a idias frequentementeveiculadas e privilegiadas por um peridico e ser irrelevante para outro, oumesmo refutada.

    Terceiro, os jornais oferecem sinais que remetem a leituras mais pro-fundas: a escolha do ttulo da notcia, o que ela revela e silencia, tomindignado, irnico ou complacente, indicando a existncia de certo panode fundo, de experincias compartilhadas e disputadas num contexto soci-

    18 A cidade de Cachoeira goza de considervel prestgio quando o assunto candombl. Desfruta de reconhe-cida importncia por adeptos e no-adeptos de vrios estados brasileiros, chegando a alcanar status internaci-onal. No difcil ouvir referncias cidade como terra da macumba ou cidade do feitio; a respeito daimportncia da imprensa para a construo da nao e, tambm, para a auto-imaginao nacional. Ver: BenedictAnderson (1989).19 Ver nos anexos fotografia de primeira pgina do jornal O Norte do ano de 1921.

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    al20; percebidas no seu contexto, aos poucos se estabelece na leitura dostextos um clima de cumplicidade, indiferena ou rivalidade. O leitor convidado a partilhar dos posicionamentos do escritor, que o situa emcontraposio ao objeto das crticas do jornal. Os recursos utilizados parao convite so vrios: o ttulo, os destaques em letras maisculas ou emitlico, a repetio de termos, de maneira que, ao final, leitor e escritorpossam se fundir numa s cumplicidade. Entretanto, o convite podia seraceito ou no.

    Desta maneira, situa-se a imprensa como locus privilegiado para acompreenso dos movimentos e debates que configuravam o cenrio socialda cidade no perodo estudado. Procura-se ento recuperar as dinmicasque forjavam e manipulavam as representaes sobre as prticas ldicas ereligiosas afro-baianas em Cachoeira, nas trs primeiras dcadas do sculoXX. Perscruta-se a correlao de foras sociais que fizeram dos sambas,batuques e candombls, temas de disputas materiais e simblicas, pelo reale imaginrio da cidade. Nas linhas e entrelinhas, buscam-se histrias indi-viduais e de grupos sociais. Perseguidores, defensores e perseguidos. Ten-ses e estratgias de resistncia. Alianas e dissenses.

    Como fonte de pesquisa os jornais so produtos sociais fascinantes ecomplexos, depositrios de anseios, perplexidades, posies e representa-es. Para entender e recuperar o objeto de anlise aqui construdo foinecessrio investigar diferentes sees, dos editoriais aos anncios, juntan-do fragmentos procura de pistas dos seus significados. A inteno foiapresentar diferentes vises de um mesmo fenmeno o lugar das prticasldicas e religiosas afro-baianas para a sociedade cachoeirana nas dcadasiniciais do sculo XX. A experincia e as vozes de diversos atores foramrecuperadas para nos informar sobre esse lugar. Mes e pais-de-santo, ogans,equedes, filhas e filhos de santo, sambadores e sambadoras, batuqueiras ebatuqueiros, policiais, jornalistas, professores, advogados, mdicos, polti-cos e um maestro. O Estado, atravs do exame da legislao em vigor, tam-bm foi convidado a falar.

    Por fim, tanto quanto foi possvel, utilizamo-nos da tradio oral e damemria sobre a perseguio aos candombls locais. Este trabalho, nomenos fascinante e complexo, possibil itou conhecer melhor aterritorialidade dos batuques e das prticas religiosas, a intimidade de al-guns terreiros, bem como, elucidar sinais obscuros na documentao escri-ta. Desta forma, tambm dispusemos de documentos preservados em ar-

    20 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e histria. So Paulo: Companhia das Letras, 1989.Especialmente o texto Sinais: razes de um paradigma indicirio, p. 143-179.

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    quivos pessoais que, na medida em que eram apresentados, suscitavam di-ferentes histrias. Enfim, atravs da tradio oral e desses documentos, foipossvel saber mais sobre as pessoas de carne e osso das quais os jornais,algumas vezes, mencionavam apenas os nomes.

    O DISCURSO CIVILIZADOR DA IMPRENSA

    Mediante cuidadoso levantamento feito nos jornais da poca foi pos-svel notar um discurso elucidativo sobre o olhar de setores letrados a res-peito das noes de civilizao que informavam e justificavam suas posi-es. Aparentemente elaborada por representaes fragmentadas, elas aca-bam por construir um quadro mais ou menos coerente do perodo estuda-do, mostrando como o discurso civilizador dissimulava o racismo que tres-passava as relaes sociais:

    1) Modernizao urbana

    Os setores letrados da cidade criticavam todo e qualquer sinal queidentificasse o cenrio urbano com o atraso. Assim, preconizavam a demo-lio das runas, a urgente melhoria da iluminao pblica ( poca, feita aquerosene) e do abastecimento de gua, a reforma e arborizao de jardinse praas, o remodelamento dos prdios e bens pblicos, bem como novas emodernas edificaes que visassem ao embelezamento da cidade:

    com pesar no pequeno que vemos como esto sendofeitas as obras de melhoramento de nossa urbs.Si se trata de arborizao, ela em breve transformar a ci-dade num bosque cerrado pela proporo em que as rvo-res foram plantadas; si se trata do chafariz pblico remo-delado, vemos que o espao compreendido entre a gradeno est [sic] regular e nem ao menos a todo cimentado,quando, pensamos ns, deveria ser feito de pedras de can-taria.De tudo o pior a empresa de abastecimento de gua estarfazendo os passeios dos projetados jardins ladrilhados.Os tais tijolos do ladrilho no resistiro nem a ao dotempo nem tampouco ao uso do pblico, pois no tem aresistncia necessria para isso.No Calabar, hoje praa Ubaldino de Assis, j se encon-

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    tram numerosos tijolos com os seus retngulos esboroados.E a obra ainda no foi entregue a serventia pblica!Onde a fiscalizao? Onde o interesse pelos prprios pblicos?Quanto aos passeios dos jardins pblicos ainda se podemremediar. Porque no so eles cimentados ou calados?O sr. major intendente interino, que, verdade seja dita, temvistas protetoras para as coisas da urbs, ainda pode provi-denciar no sentido de fazer sanar este mal.21

    2) A valorizao do trabalho e a represso vadiagem

    No discurso de alguns setores letrados, pobreza, ociosidade, incivili-dade e criminalidade, parecem corresponder a caractersticas populares.Desse modo, era necessrio vigiar cuidadosamente o povo e, quando preci-so, aplicar punies que levassem os indivduos disciplina do trabalho,fazendo-os deixar de lado os vcios nos quais estavam imersos:

    Continuam os braos robustos e sadios a furtar-se ao tra-balho, e os campos, que poderiam ser cultivados, fazemimprodutivos, lembrando a monotonia de vasto cemit-rio, onde as folhas esguias dos ciprestes vergam dceis aoperpassar do vento agoureiro.Ao passo que isto se d, povoam-se de ociosos as tabernas,onde o copo de cachaa anda de mo em mo, desde oalvorecer do dia at a alta hora da noite [...]Destruamos o mal enquanto tempo.22

    3) Represso aos divertimentos populares

    Os divertimentos populares so representados na imprensa como br-baros. Eles feriam a moral crist preconizada pelos jornais locais. Dessamaneira, setores letrados da cidade reclamavam por mudanas urgentes,capazes de disciplinar os maus costumes que a imprensa ironicamente clas-sificava de belezas de uma civilizao indgena:

    Triste e deponente o espetculo que presenciamos naexibio de certas prticas como: caretas a p, lavagens, jogodo sete em frente aos templos, sambas atordoadores no pe-rmetro da cidade e outras belezas.

    21 A ORDEM. 15 maio 1915. p. 1.22 Id., 27 fev. 1901. p. 1.

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    Temos verberado fortemente estes abusos de liberdade, emocasio de festividade religiosa, no intuito de sermos aten-didos pelos infratores, cuja cegueira ou teimosia fal-os rein-cidir no crime de lesa-civilizao, sem que a polcia lhespossa pr cobro, pela insuficincia numrica de praas.Agora mesmo tivemos, de cavalheiros distintos, diversasreclamaes sobre banhistas no rio Paraguass, por trs daestao da Estrada de Ferro, nesta cidade, onde estes,rememorando a inocncia do pai Ado, antes de saborearo fruto, como ele, se apresentam aos olhos dos passageirosdo trem, em grande parte famlias, que inesperadamentedeparam com as belezas de tal civilizao indgena.Levando o facto ao conhecimento do digno sr. comissrio,ainda uma vez esperamos ser atendidos pelos infratores dospreceitos da moral e fazemos extensivo o nosso apelo aoscidados que acreditam em realces de festas com caretas eseus congneres e que nada mais fazem de que desmorali-zarem os princpios de f religiosa.23

    4) Economia dos hbitos, das falas e dos gestos

    Os hbitos, gestos e falas dos populares, alvo de rigorosa censura,representavam aos olhos da imprensa verdadeiros atentados moral e aosbons costumes. Assim, os comportamentos deveriam estar alinhados aospadres culturais europeus, sendo valorizadas as atitudes consideradas ra-cionais, cultas e moralmente orientadas:

    J se tem tornado demasiada a maneira insolente pela qualse mantm certos indivduos, nas galerias do cinema Ave-nida, da fronteira cidade.A atitude da polcia local est, nesse ponto, fraqussima ens chamamos a ateno do sr. coronel Joo Fraga, ativo eesforado delegado, no sentido de s.s. varrer dali oscapadcios que afrontam no raro, a moral das famlias,com suas intragveis molequeiras e pilherias e ditos obsce-nos.Esperamos no tarde a ao dos encarregados do policia-mento, a bem de nossos crditos de povo civilizado.24

    23 A CACHOEIRA. 31 out. 1901. p. 1.24 A ORDEM. 19 mar. 1921. p. 1.

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    5) Expurgar da cidade as heranas africanas

    Um entendimento fundamental que emerge da leitura do jornal AOrdem, nas trs primeiras dcadas do sculo XX, que o bem da civilizaoem que a cidade se encontrava dependia do extermnio das prticas cultu-rais e religiosas de matriz africana, notadamente, dos candombls. Os ar-gumentos da imprensa local identificavam essas expresses, e os indivduosque lhes davam corpo, com o que havia de mais atrasado na vida da cida-de. Essa concepo refletia a divulgao de teorias racistas que posicionavamo continente africano como o ltimo na escala da evoluo:

    Chega-nos reclamaes de um fato triste e deponente quese est dando em plena cidade. rua Martins Gomes, no prdio n. 67, h, quase diaria-mente, as encenaes da missa negra dos africanos, trans-plantada infelizmente para os nossos costumes antes da leiEuzbio de Queiroz, que aboliu o trfico de escravos. Essasencenaes so sempre acompanhadas de incomodativo eensurdecedor candombl.E porque a poca que atravessamos traz o rtulo deCivilizemo-nos! Bem ser que o sr. major delegado, cujasatribuies so manter a ordem em bem da civilizao in-dgena, volva a sua vista perscrutadora para as missas ne-gras da rua Martins Gomes.25

    interessante notar que o jornal que frequentemente identificava ocandombl com a degenerao da famlia, da sociedade e at mesmo daraa, representando-o como o lugar de brdios e orgias, tambm se refere aele, como vimos, por meio da expresso missa negra. A terminologiaempregada sugere o carter de celebrao musical e religiosa, mesmo como tom irnico que cerca a utilizao do termo em destaque. Assim, seu usonos indica a conscincia do articulista de que, ao se referir aos candombls,estava tratando da religiosidade de matriz africana.

    Em edio do dia 21 de outubro de 1905, uma notcia do jornal AOrdem se mostra emblemtica na articulao dos argumentos oriundos desetores letrados da cidade, em favor das suas idias de civilizao. A not-cia foi intitulada apenas com a palavra candombl e revela valores eintenes de setores da imprensa local:

    25 A ORDEM. 22 jul. 1914. p. 1.

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    Estamos na Costa da frica? o que se torna necessrio ser averiguado pela polcia,porquanto se l no estamos tambm de l no nos sepa-ram grande distncia os nossos costumes negreiros.E a prova que, fechando ouvidos a repetidas queixas daimprensa e de particulares, a polcia consente que dentroda cidade, porque no outeiro que o vulgo denominou deCucu, descendentes vadios de negros selvagens faam can-dombls, todos os dias, noite principalmente, incomo-dando com um bate-bate dos pecados o sono tranqilo dapopulao.J l se foram os tempos dos feitio e dos candombls, eporque atravessamos um sculo de largo progresso e ampla civili-zao, apelamos para a energia e a boa vontade, ainda nodesmentidas, do sr. Manuel Mendes de Magalhes, sub-co-missrio de polcia, certos de que s.s. por ponto final na foliamacabra dos negros desocupados do Cucu.26

    A notcia articula bem todos os argumentos da imprensa contra asprticas culturais e religiosas de matriz africana e de seus partcipes, bemcomo em favor de suas idias de civilizao. Como vimos, destaca-se aoposio candombl e feitio de um lado, e do outro, o progresso e a civi-lizao. Desse modo, era necessrio expurgar da cidade os costumes ne-greiros importados da Costa da frica. Era inadmissvel para os setoresletrados locais a presena desses maus costumes dentro da cidade. Nadefesa da civilizao, da tranquilidade, do trabalho e da moral das famli-as honestas, a imprensa propugnava o combate vadiagem e aos costu-mes de negros selvagens. Nesse sentido, por fim, criminalizava o que cha-mava de negros desocupados em suas folias macabras, tornando-os casode polcia.

    A leitura dos textos da imprensa local, notadamente do jornal AOrdem, leva-nos a acreditar que a campanha contra as prticas culturaise religiosas de matriz africana, em Cachoeira e adjacncias, foi organiza-da e liderada pelo referido peridico. A campanha refletia valores, prti-cas e perplexidades de setores dominantes da sociedade do Recncavo,que classificavam os sambas, batuques e candombls, como o que haviade mais atrasado na sociedade, herana da frica trazida por escravosignorantes. O jornal A Ordem, como j observamos, foi o peridico demaior circulao do interior do Estado, assim, sua campanha contra as

    26 A ORDEM. 21 out. 1905. p. 1, grifo meu.

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    prticas culturais e religiosas afro-baianas, notadamente contra os can-dombls, teve parte fundamental na construo social de Cachoeira comoa cidade do feitio.

    Deste modo, no captulo 1, procuramos demonstrar como o controledas celebraes negras nas trs primeiras dcadas da Repblica adaptou eatualizou mecanismos disciplinares forjados lentamente desde a Colnia.Ou seja, os enunciados das elites sobre os sambas, batuques e candombls,apresentavam explcita continuidade aos discursos tanto do Imprio quan-to da Colnia, alternando momentos de intransigncia com outros de to-lerncia. Contudo, um lento deslocamento discursivo teve lugar nos meca-nismos de controle ao longo do sculo XIX sob o pano de fundo de umaretrica que reclamava uma civilizao moldada em padres europeus. Nosculo XX, esse deslocamento j estava consolidado e constitua a base daperseguio aos sambas, batuques e candombls em Cachoeira.

    Ainda neste captulo, buscamos oferecer uma caracterizao da emer-gncia das prticas ldicas e religiosas afro-baianas na imprensa local, re-cuperando o cenrio de disputas e interesses que estavam em jogo. Emcomum, na indignao da imprensa em relao ao conjunto dessas prti-cas, tnhamos as danas, cantigas e as melodias dos atabaques. As danasconsideradas libidinosas e a sonoridade infernal eram atacadas a pretex-to de perturbar o sono e a tranquilidade das famlias honestas e trabalha-doras, bem como os textos reprovavam os ditos obscenos e as constantesdesordens que eram diretamente relacionadas a tais prticas.

    No captulo 2, analisamos os termos depreciativos utilizados na ca-racterizao dos candombls pela imprensa. A repetio desses termos relacionada construo de esteretipos. Uma estratgia evidente nas re-portagens e notcias veiculadas no jornal A Ordem a desqualificao dasprticas ldicas e religiosas afro-baianas e, consequentemente, dos sujeitosque lhes davam corpo. frequente a identificao dessas prticas e dessessujeitos como um cancro social, portadores de crendices insuportveis;malandros, capadcios e vadios; degenerao da famlia, da socie-dade e da raa; povo brbaro ligado a bruxarias, sortilgios e orgi-as; portadores de costumes antigos, atrasados, africanos; herdeiros deum africanismo barato, desabusado, desprezvel; fazedores de batecuns,bozs e brdios; representantes do atraso espiritual do que classifica-vam como heranas do africanismo.

    Foram apreciadas as representaes da imprensa em relao aos can-dombls. Observou-se como a imprensa fez convergir diferentes vises acercada feitiaria. Apropriando-se do discurso mdico-higienista, aliado a umasingular retrica do fetiche, a imprensa baiana ajudou a construir um

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    esteretipo peculiar que associou a feitiaria, quase que exclusivamenteaos candombls e raa africana e a seus descendentes. Analisamos ostermos deste esteretipo, suas continuidade e peculiaridades em relao acompreenses anteriores sobre fetiche e feitiaria. Assinalamos que o prin-cipal objetivo de setores da imprensa era criminalizar os candombls e seusadeptos.

    Especificamente em relao ao candombl, assumiu relevo na cam-panha o argumento do exerccio ilegal da Medicina. A imprensa local clas-sif icava as prticas de mes e pais -de-santo algumas vezes comocurandeirismo e na maioria delas, como feitiaria. A campanha hostilizavaos curandeiros em razo da teraputica por eles utilizada no atendimento ecura dos mais diversos problemas fsicos e materiais. Essa teraputica erafrequentemente identificada com feitiarias e torturas que levavam pesso-as ignorantes morte. Apresentamos tambm um pouco da memria daperseguio s prticas teraputicas afro-baianas e uma voz dissidente naimprensa local, a do maestro Tranquilino Bastos.

    No captulo 3, confrontamos diferentes posicionamentos da impren-sa. Analisamos a existncia de dois grupos polticos na cidade, suas rela-es com as prticas religiosas afro-baianas e com os jornais. Percebemosque a histria da cidade experimentou uma guerra simblica traduzida pe-los peridicos A Ordem e O Norte disputa poltica que contou com aparticipao efetiva de adeptos dos candombls e tambm foi marcante naconstruo social de Cachoeira como a cidade do feitio27.

    Observou-se como o controle das celebraes negras nos primrdiosda Repblica continuou relacionado ao forte personalismo da polticabaiana, fazendo com que os mecanismos republicanos de controle no re-presentassem uma poltica de Estado e, sim, dependessem das posies einteresses (geralmente eleitorais) das autoridades constitudas e de seuscorreligionrios ou adversrios. Se no estavam submetidas a uma polticade represso sistemtica do Estado e, portanto, subordinadas a uma impla-cvel perseguio, tambm no estavam garantidas. Apesar de a liberdadereligiosa estar assegurada pela Constituio de 1891 e de ter sido reclama-da por lideranas da religiosidade de matriz africana, setores letrados dasociedade baiana faziam recair sobre os candombls uma singular retricado fetiche, que tentava impedir sua identificao como religio e os relaci-onavam com crimes e feitiarias.

    27 Interessa-nos a carga simblica da feitiaria na cidade de Cachoeira e arredores, ou seja, como os diferentesusos do feitio (discursos e prticas) podem ajudar a compreender aspectos fundamentais da sociedade baianado incio do sculo XX.

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    Tambm neste captulo, analisamos o momento de intensa campanhado jornal A Ordem contra os terreiros de candombl, mes e pais-de-santo.Localizamos esse perodo entre os anos de 1914 e 1923. Foram discutidosos papis polticos dos ogans como mediadores nas tenses entre autorida-des e candombls. Os interesses econmicos e polticos dissimulados nascampanhas da imprensa tambm foram analisados, bem como alguns as-pectos das relaes raciais vigentes, tais como apareceram nas folhas con-correntes. Aqui, tambm examinamos as estratgias de resistncia do povo-de-santo, ou seja, como souberam utilizar em seu favor as disputas entre asfaces polticas rivais.

    No nos escaparam as relaes entre a ordem patriarcal vigente e asmulheres do ax. Essa anlise foi realizada no captulo 4. Os candomblsforam acusados de perverterem mulheres, at virgens e crianas. As lu-tas, encantos e desencantos dessas mulheres foram discutidos neste captulo.Observamos que um lastro jurdico de controle dessas mulheres podia seracionado ao sabor das convenincias e argumentos dos setores mais in-transigentes. Isso tambm valia para as celebraes negras. Por outro lado,porm, com menos eficincia, indivduos dos grupos perseguidos tambmpodiam recorrer ao lastro jurdico da nao em defesa de suas prticas.Este foi o caso de Me Judith28.

    Realizando um cruzamento de fontes escritas e orais, dedicamo-nos adesenhar uma geografia dos candombls de Cachoeira nas trs primeirasdcadas do sculo XX. No obstante, mais do que determinar as suas loca-lizaes, buscamos as experincias compartilhadas em espaos forjados noconflito pela sobrevivncia e, tambm, pela existncia. Na dcada de 1920,com a enrgica entrada em cena da polcia contra os terreiros, muitos can-dombls silenciaram temporariamente. Todavia, os bozs tomaram contada cidade e a imprensa enfatizou outro argumento de relevncia na cam-panha contra os candombls a higiene e a limpeza pblica. Dessa manei-ra, atravs do boz, analisamos a resistncia silenciosa dos candombls.Toda a pesquisa e, particularmente, essa misteriosa resistncia, possibilita-ram demonstrar o imaginrio da feitiaria no qual a cidade estava imersa.

    O texto aqui apresentado resulta da dissertao de mestrado, defen-dida em outubro de 2007, no Programa Multidisciplinar de Ps-Graduaoem Estudos tnicos e Africanos, do Centro de Estudos Afro-Orientais daUniversidade Federal da Bahia. Em que pese a notoriedade da cidade de

    28 Ver nos anexos a fotografia de Me Judith, sacerdotisa nag da casa de Aganj Did. A histria das persegui-es contra esta ialorix e tambm de suas curas, sua religiosidade, articulaes polticas e festas, foramreconstrudas e analisadas no captulo 4.

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    Cachoeira como a terra da macumba ou a cidade do feitio, este oprimeiro estudo a focalizar a criao dessa imagem, ou seja, as formas deproduo, mediao, recepo e circulao das representaes ou das for-mas simblicas dessa imaginao coletiva. Este livro, portanto, abordaessa construo em meio s perseguies ao povo-de-santo e suas reaese articulaes com o poder.

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    CAPTULO I

    OS BATUQUES DA CIDADE: CELEBRAES NEGRAS E IDIASDE CIVILIZAO

    No incio do sculo XX, a cidade de Cachoeira parecia no mais cau-sar to boa impresso ao viajante que l aportava. O cronista Moreira Pin-to, em sua passagem pela cidade, notou-a grande, velha e decadente. Asruas irregulares e sem calamento, a sujeira, a ausncia de canalizao degua e a iluminao a querosene irritaram o referido cronista. Todavia, eleno pde deixar de notar a movimentao comercial e industrial expressaem 171 casas de negcios e 3 fbricas de charutos ao longo do permetrourbano daquela sede de comarca29.

    A cidade de So Flix, situada na outra margem do rio Paraguau,pareceu mais graciosa aos olhos do cronista, apesar de suas ruas estreitase no muito limpas. Os prdios quase todos novos, as 5 fbricas de cha-rutos e 16 armazns de fumo impressionaram o escritor, que destacou aeminncia da fbrica de charutos Dannemann. Segundo ele, esse estabele-cimento dispunha de homens, mulheres e crianas ocupados no carrega-mento, na separao e escolha das folhas de fumo, na fabricao de caixase outras atividades relacionadas ao fabrico de diversas qualidades de cha-ruto. Moreira Pinto estimou mais de 400 operrios trabalhando entre afbrica e os armazns da Dannemann, enquanto a Costa & Penna empre-gava 300 e a B. Rodemburg 150 trabalhadores30.

    A atividade dentro das fbricas e o movimento fora delas de umagrande quantidade de ganhadeiras e ganhadores, ocupados nos mais diver-sos ramos de servios e no florescente comrcio, atraa cada vez maispessoas dos distritos e cidades vizinhas para o vale do Paraguau. Disputaspor espao ou celebraes de alegria, no mbito do trabalho ou do lazer,podiam gerar dissenses e mesmo confuso nas ruas. Isso contrariava osadministradores locais e setores da elite que encontravam fiis porta-vozesna imprensa. Reclamavam da ociosidade de muitos braos e sugeriam quefossem utilizados nos campos ao invs de estarem diuturnamente ocupa-dos com a cachaa nas tabernas do cais do porto. Para esses setores letra-

    29 PINTO, Moreira. Uma viagem Cachoeira. A Ordem, 11 jun. 1902. p. 1.30 A ORDEM. 21 jun. 1902. p. 2.

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    dos, muitos indivduos pobres se furtavam ao trabalho, fazendo-se impro-dutivos, por simples vadiagem, resultando em frequentes desordens queno podiam ser toleradas pela sociedade.

    Essas fbricas e casas de negcios empregavam indivduos das duas ci-dades e imediaes. Muitos sambadores e sambadoras, mes e pais-de-santo,ogans, equedes, filhas e filhos-de-santo experimentaram seus dias em meioao cheiro quente que exalava das folhas de fumo entre os armazns, as fbri-cas e o porto, ou se consumiram no calor das fbricas de sabo e cerveja,curtumes e serrarias. Venderam panelas de barro, comidas, frutas e gua.Sentiram o corpo se curvar ante o peso dos fardos de fumo. Ao final dos diasde trabalho cansativo, muitos encontravam foras, alegria e f, para afastar afadiga e se juntar em interminveis rodas de samba ou cuidar dos prepara-tivos para as festas dos voduns e orixs nos arredores das cidades.

    No entanto, setores da imprensa estavam dispostos a varrer da regioas heranas do africanismo. A presuno de tais setores os enfileirava noque consideravam a marcha da civilizao, acompanhada de progressomaterial e cultural. Essa pretenso os levava a acreditar que eles se consti-tuam em modelos de hbitos adequados ao convvio social, sendo assim,portadores de idias religiosas e costumes elevados, bem como seriam osarautos dos progressos cientficos da modernidade. Os costumes negrei-ros, bem representados pelos sambas, batuques e candombls, deveriamser extirpados atravs do uso da fora policial, para que dessem lugar a umsculo de largo progresso e ampla civilizao31.

    Na sociedade brasileira ps-abolio, os grupos dominantes foram aospoucos articulando formas de manter o controle dos ex-escravos e seusdescendentes. Estes grupos, identificados com o modelo branco de civiliza-o europia, buscaram demarcaes de natureza racial para justificar emanter os privilgios hierrquicos que detinham nos tempos da escravi-do. Uma vez que a Constituio republicana igualou juridicamente osnegros e os brancos, o critrio racial foi utilizado para desqualificar o su-posto novo cidado. Este era visto como portador de traos biolgicos eculturais inferiores dos quais deveria se livrar para que pudesse ser alado aum patamar de hipottica igualdade.32

    Dessa maneira, podemos encontrar na imprensa da poca um semnmero de atributos que foram sendo identificados e naturalizados com ascamadas pobres da populao, de maioria negra. Esses atributos os relacio-

    31 A ORDEM. 21 out. 1905. p. 1.32 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil (1870-1930).So Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 189-238.

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    navam mais frequentemente vadiagem, ao alcoolismo, violncia, fei-tiaria e ao crime. Para que esses elementos fossem tornados naturais eidentificados com os negros, foram necessrias prticas e representaes depreconceito e discriminao racial disseminadas no cotidiano dos indiv-duos. Essas aes e representaes geravam em todos os grupos sociais ainternalizao de valores e condutas racistas, forjando assim uma identi-dade contrastiva entre negros e brancos, sendo o negro aquele inferior eincivilizado frente ao branco superior e civilizado33.

    O sermo de um padre poderia ser o palco da disseminao de taisvalores e prticas discriminatrias. Em visita cidade de So Flix, o padremissionrio Pedro Rocha transformou os candombls em tema de sua prdicadominical. O sacerdote divagou sobre os candombls, utilizando um tex-to que os caracterizava como antros de misrias e torpezas inominveiscom suas negras e funestas feitiarias. O artigo que o vigrio lanou moexigia a ao da polcia contra os candombls, divulgava nomes das mes-de-santo acompanhados de adjetivos desprezveis e apontava a localizaode seus pejis na cidade da Cachoeira34.

    O episdio sugere, para alm do desejo de civil izao quepretensamente animava os setores letrados da Bahia, que a inteno deacabar com os feiticeiros tambm mascarava a preocupao da Igrejacatlica com a sua hegemonia. A partir da anlise de processos criminaismovidos contra adeptos da religiosidade afro-baiana em Salvador, JulioBraga chama a ateno para essa disputa no campo religioso, advertindoque estava em jogo mais do que a possvel explorao da credulidade pbli-ca por parte dos adeptos dos candombls. Segundo este autor, nas primei-ras dcadas do sculo XX, os candombls j se apresentavam como umareligio popular capaz de quebrar o domnio absoluto da Igreja Catlica,identificada com a classe detentora do poder scio-econmico na Bahia35.

    No Brasil republicano, a igreja catlica foi destituda da posio legalde poder que dispunha, supostamente monopolizando o campo religioso36.

    33 BACELAR, Jeferson. A hierarquia das raas: negros e brancos em Salvador. Rio de Janeiro: Pallas, 2001. p. 19.34 A ORDEM. 16 jan. 1915. p.1.35 BRAGA, Jlio. A cadeira de ogan e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pallas, 1999. p.111-148, BRAGA, J. Nagamela do feitio: represso e resistncia nos candombls da Bahia. Salvador: EDUFBA, 1995. p. 19.36 A Constituio de 1824 declarava que a religio catlica continuaria como a religio do Imprio. J aConstituio de 1891 assim dispunha em seu artigo 72, pargrafo 7.: Nenhum culto ou igreja gozar de sub-veno oficial, nem ter relaes de dependncia ou aliana com o Governo da Unio, ou o dos Estados. Ver:Aliomar Baleeiro (2001). Desde pelo menos o sculo XVI, a inquisio moderna j denunciava os interesses daigreja em dispor exclusivamente do conhecimento do oculto, ver: Francisco Bethencourt (2004). Especialmen-te o captulo 7 intitulado O mgico e o campo religioso, p. 232-257.

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    Assim, ela foi situada como mais uma nas trincheiras da salvao, todavia,com a vantagem de estar atrelada ao poder socioeconmico ento consti-tudo. De qualquer maneira, a disputa existia e, como demonstra o epis-dio com o padre Pedro Rocha, o candombl era percebido como um con-corrente capaz de mobilizar as energias de um sermo de domingo.

    A proposta crist de salvao contrasta indelevelmente com a experin-cia simblica do universo dos candombls. Enquanto a igreja ofereceria umasalvao depois da morte, os candombls proporcionariam uma dinmica devida que entrelaa os nveis de existncia, ou seja, humanos, ancestrais e di-vindades compartilhariam nveis diferentes de uma mesma experincia. Essesnveis esto em constante comunicao, motivo pelo qual no necessrioesperar a morte para alcanar o bem-estar. Assim, viver melhor dependeria daboa comunicao entre os nveis de existncia. Essa comunicao aconteceaqui mesmo, neste mundo, existencialmente dividido e interligado37.

    Outras interpretaes situam prticas religiosas semelhantes as do can-dombl como uma atividade que objetiva prevenir o infortnio e proporcionara sorte. Ou seja, a atividade religiosa buscaria afastar os perigos que sitiam avulnerabilidade dos corpos (doena, infertilidade, derrota, mau-olhado, mor-te) e aproximar a fortuna, isto , sade, fertilidade, segurana espiritual, pres-tgio e sucesso38. De qualquer sorte, preserva-se a a diferena frente s religi-es ditas reveladas, como o islamismo ou o cristianismo, uma vez que o can-dombl estaria preocupado com a sustentabilidade da vida, em contraste comaquelas mais interessadas na salvao eterna da alma em outro plano.

    Por seu turno, desde a Idade Mdia a igreja catlica difundia a visodo que considerava ser, por um lado, a virtude de Deus e, por outro lado,aquilo que era arte diablica. O conhecimento da verdade divina s erapossvel atravs dos seus representantes. Estes eram considerados legtimosconhecedores do mistrio. Fora deste crculo, circulavam bruxas e feiticei-ros que, com a agncia do Diabo, podiam ter xito nas suas aes. impor-tante assinalar que ao domnio catlico da oferta religiosa subjaz uma lgi-ca de legitimao da ordem estabelecida, imposta pelos estratos privilegia-dos s camadas desfavorecidas da sociedade. Essa lgica baseada na troca

    37 SANTOS, Juana E. dos. Os nag e a morte: pde, ass e o culto gun na Bahia. 9. ed. Petrpolis: Vozes, 1998.38 CRAEMER, W.; VANSINA, J.; FOX, R. Religious movements in Central Africa: a theoretical study.Comparative Studies in Society and History, Cambridge, v. 18, n. 4, p. 458-475, oct. 1976, KARASCH, Mary C.A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2000. p. 350-362,PARS, Luis Nicolau. A formao do candombl: histria e ritual da nao jeje na Bahia. Campinas, SP: Unicamp,2006. p. 103-109.

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    o indivduo que experimenta uma vida de resignao aqui na terra seriacompensado com a salvao depois da morte39.

    Nos prximos pargrafos, esboaremos um movimento que se realiza nodiscurso dos grupos dominantes em relao s prticas culturais e religiosas afro-brasileiras, desde a Colnia at o sculo XIX, e mais acentuadamente, aps 1850.Percebe-se, nesse longo perodo, que as estratgias de controle sofreram um len-to e progressivo deslocamento. Se, desde a poca colonial, elas se assentavam nanecessidade de catequizao e conservao da ordem escravocrata, ao longo dosculo XIX, e principalmente aps 1850, acompanhando o desgaste da institui-o escravista, as elites brasileiras foram se apropriando mais fortemente do dis-curso civilizador, enquanto as preocupaes com a ordem escravocrata perma-neciam latentes. Os dois argumentos estavam intimamente ligados, porm, amudana foi se operando no campo discursivo, adaptando-se ao processo gradu-al de abolio da escravido no Brasil.

    O discurso civilizador se fortaleceu no Brasil a partir de meados dosculo XIX. Dois movimentos convergentes contribuem para esse fortale-cimento, na medida em que alimentavam os anseios de segurana e bem-estar daqueles que supostamente guiavam os destinos da sociedade brasi-leira. Refiro-me, por um lado, ao processo gradativo de libertao dos es-cravos, que coagia as elites a forjar novas formas de controle e manutenoda ordem. E, por outro lado, ao discurso mdico-higienista que, por tersido gerador de transformaes em importantes cidades europias, chega-va ao Brasil com promessas de modernidade e sade. Esses movimentosconvergiram e situaram as prticas ldicas e religiosas afro-brasileiras, bemcomo seus participantes, como difceis obstculos ao saneamento urbano emoral, portanto, entraves civilizao.40

    A MARCHA DA CIVILIZAO: EVANGELIZAO EMANUTENO DA ORDEM

    Desde os tempos coloniais, os encontros festivos dos negros desperta-vam a ateno dos brancos41. Vasta literatura indica que os setores domi-

    39 BETHENCOURT, Francisco. O imaginrio da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no sculoXVI. So Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 232-257.40 Sobre o discurso higienista no sculo XIX, ver: Muniz Sodr (1988, p. 21-45).41 REGINALDO, Lucilene. Festas dos confrades pretos: devoes, irmandades e reinados negros na Bahiasetecentista. In: BELLINI, Lgia; SOUZA, Evergton; SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Formas de crer: ensaios dehistria religiosa do mundo luso-afro-brasileiro, sculos XIV-XXI. Salvador: EDUFBA, 2006. p. 197-225.

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    nantes se dividiam entre tolerar e reprimir os batuques. Esses trabalhosdemonstram que o controle dos batuques jamais seguiu um direcionamentonico e uniforme. Na verdade, expresses culturais de matriz africana as-sumiram diferentes papis, a depender do contexto em que se tornavampblicas. Assim, pode-se considerar que as variantes que impulsionavamalguma autoridade, com maior ou menor poder, contra ou a favor dos ba-tuques, eram muitas. Os pesquisadores so unnimes em reconhecer quetolerar ou reprimir dependia da hora e das circunstncias, embora o estilopessoal de uma autoridade ou senhor pudesse ser decisivo42.

    Por outro lado, os batuques e os dias santos andaram lado a lado noBrasil. Entretanto, essa caminhada no foi harmoniosa. Os confrontos entrerepresentantes da Igreja e os batuques perduraram at a Repblica. Os pri-meiros a debater essa questo, ainda na atmosfera do Brasil colonial, foramos jesutas Benci e Antonil. Diante de uma religiosidade sincrtica que seesboava e debruados sobre o que consideravam a cristianizao imperfei-ta dos africanos escravizados, Benci acreditava na austeridade paciente econstante para superar o problema, enquanto Antonil enxergava osfolguedos dos negros numa outra perspectiva disciplinar. Para ele, a per-misso dos batuques livraria os negros da melancolia, aliviando as mazelasdo cativeiro e, por conseguinte, tornando-os mais saudveis e produtivos43.

    No Brasil, a posio de Antonil frente s coroaes de reis e s festas deNossa Senhora do Rosrio e So Benedito reflete o ponto de vista da produ-o e reproduo do sistema, colocando-se a favor de manifestaes sincrticassob o ngulo do controle social e ideolgico dos negros escravizados. Nota-seque apesar do perigo que as festas negras podiam representar para os bran-cos, elas dispunham de apelo e justificativa para a lgica do sistema escravista.Dessa maneira, foram utilizadas como instrumento de controle, entendidascomo uma vlvula de escape do contingente escravo. Atravs da devooreligiosa, da vida no interior das irmandades e da festa do santo padroeiro, aIgreja catlica tinha em vista um projeto evangelizador44.

    42 REIS, Joo Jos. Tambores e temores: a festa negra na Bahia na primeira metade do sculo XIX. In: CUNHA,Maria Clementina Pereira (Org.). Carnavais e outras festas: ensaios de histria social da cultura. Campinas-SP:Unicamp, 2002. p. 101-155, ABREU, Martha. O imprio do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio deJaneiro, 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; So Paulo: Fapesp, 1999, p. 284, SANTOS, Joclio Telesdos. Divertimentos estrondosos: batuques e sambas no sculo XIX. In: SANSONE, Lvio; SANTOS, JoclioTeles dos (Org.). Ritmos em trnsito: scio-antropologia da msica baiana. So Paulo: Dynamis; Salvador: Progra-ma A Cor da Bahia, 1997. p. 15-38.43 SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiaria e religiosidade popular no Brasil colonial.So Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 92-93.44 REGINALDO. Lucilene. Festas dos confrades pretos, 2006.

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    Em 1624, em Angola, j havia catecismos elaborados nas lnguaskimbundo e kikongo45. Em 1658, um catecismo para uma misso em Alladutilizava a palavra vodu para se referir ao Deus cristo e o nome do vodumLis era usado para identificar Jesus Cristo. J em 1708, um jesuta portu-gus elaborou um catecismo na lngua de Allad para ser usado no Brasil46.Contudo, a prtica evangelizadora europia, tanto na frica quanto nasAmricas, no foi pacfica. Parceira do projeto colonial, alm da violnciasimblica, a violncia fsica fez parte do processo. A poltica da pregaopela espada e pelo aoite foi largamente utilizada. Como justificativa seapregoava que para um povo brbaro como o africano, o cristianismo nopoderia ser imposto sem represso47.

    Na tentativa de encontrar o ponto de vista dos negros, Luiz Mottsumaria o debate antropolgico em torno do assim chamado sincretismoreligioso afro-brasileiro em duas dimenses: 1) ao cultuar os santoscatlicos, os africanos estavam apenas iludindo os donos do poder e oscatequistas, pois sua devoo dirigia-se no a Nossa Senhora ou a San-to Antnio, mas s divindades de seus ancestrais camuflados atrs dasimagens dos brancos; 2) os santos catlicos foram incorporados aopanteo de origem, aumentando e intensificando a magia africana. Oautor considera pertinentes as duas explicaes, que ao invs de seremexclusivas, seriam complementares48. Estaria assim delineado um car-ter de fundamental preservao e resistncia cultural dos negros, agin-

    45 No terreno do sincretismo afro-catlico histriadores sugerem, por exemplo, que os batuques que acompa-nhavam a coroao de Reis Congo no Brasil apontam para um processo de cristianizao mais longo, iniciadona frica do sculo XV, quando o primeiro soberano congols converteu-se ao catolicismo. Esse processo decristianizao que levou ao aportuguesamento das instituies do Congo, por sua vez, no exterminou astradies bakongo, servindo mais a interesses econmicos e de governo do que a interesses propriamente religi-osos. Em sentido semelhante, com relao s prticas religiosas dos povos da frica Central e Ocidental, pes-quisadores apontam que o uso comum do assim chamado complexo cultural ventura-desventura e o incessan-te nascimento de novos movimentos religiosos facilitou o ajuste e a propagao de renovados smbolos e liturgiasque objetivam afastar o infortnio e aproximar a sorte. Sobre o sincretismo afro-catlico no Congo, ver: RonaldoVainfas e Marina de Mello e Souza (1998, p. 95-118) e Alberto da Costa e Silva (2002). Especialmente ocaptulo 10, intitulado No reino do Congo, p. 359-405. Tambm sobre prticas religiosas na frica Central, ver:W. Craemer, J. Vansina e R. Fox (1976)46 THORNTON, John K. On the trail of voodoo: African christianity in Africa and the Americas. Americas: aQuarterly Review of Inter-American Cultural History, New York, v. 44, n. 3 p. 261-278, jan. 1998.47 Ferretti cita o clrigo Balthazar Afonso, em 1585, contente com as tticas dos exrcitos de Portugal tomandopequenas vilas de assalto: Os portugueses queimaram vivos os pagos em suas choupanas e vrias cabeas eramexpostas a fim de amedrontar os adversrios. Em outra ocasio 619 narizes foram cortados pelos portugueses.Srgio Figueiredo Ferretti (2006, p. 120-121).48 MOTT, Luiz R. B. Escravido, homossexualidade e demonologia. So Paulo: cone, 1988. p. 110-111. Estudandoo sincretismo nas religies afro-brasileiras, Srgio Ferretti afirma que todas as religies so sincrticas e que talfato no diminui, mas engrandece o domnio da religio, como ponto de encontro e de convergncia entretradies distintas, ver: Srgio Figueiredo Ferretti (2006, p. 113-130).

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    do criativamente em terreno adverso, defendendo e reconstruindo va-lores e prticas culturais49.

    Analisando uma devassa contra a dana de Tunda no arraial deParacatu, nas Minas Gerais dos idos de 1747, nos dias de setembro em queos catlicos comemoram os santos Cosme e Damio, Mott no deixou denotar a pouca ateno dispensada pelo vigrio-geral ao referido ritual dosnegros (que articulava elementos africanos e catlicos). Para Luiz Mott, agrande preocupao da maioria dos sacerdotes que viviam nas Minas noera exatamente com o reino dos cus e sim amealhar o mximo de rique-za aqui mesmo na terra. O autor tambm argumenta que somente umamulher acusada de feitiaria no Brasil foi enviada para os crceres daInquisio. Para ele, os inquisidores estavam mais interessados em perse-guir os abastados judeus e cristos novos do que gastar tempo e dinheirocom batuques da negrada50.

    No entanto, desde a Idade Mdia o mundo vinha passando por umaprogressiva demonizao da existncia. Processo que alcanou nveis qua-se insuportveis com os jesutas na poca moderna. Estes julgavam as pr-ticas ldicas e religiosas dos outros, fossem indgenas ou africanos, comoaberraes satnicas. No primeiro quartel do sculo XVIII, Nuno MarquesPereira (o Peregrino da Amrica) realizou a primeira descrio literriaque se tem notcia de um calundu51, caracterizando-o como demonaco52.Tambm a referida dana de Tunda que, na demonstrao de Mott, apre-senta enorme semelhana aos candombls e xangs contemporneos doNordeste, foi qualificada de dana diablica que atentava contra a santaf catlica53.

    49 Em que pese a terminologia empregada, Laura de Mello e Souza, apoiada nos argumentos de Roger Bastide,enfatiza o carter de preservao cultural do sincretismo religioso afro-catlico: Outorgado, talvez, num pri-meiro momento, pela camada dominante, o sincretismo afro-catlico dos escravos foi uma realidade que sefundiu com a preservao dos prprios ritos e mitos das primitivas religies africanas. Ver: Laura de Mello eSouza (1986, p. 93-94). Sobre o posicionamento de alguns lderes da religio afro-brasileira, de militantes domovimento negro e de intelectuais sobre o sincretismo, ver: Josildeth Gomes Consorte (2006, p. 71-91).50 Acotund ou a dana de Tunda o nome de um ritual religioso dedicado ao culto de deus da nao Cour(Lagos, Nigria), praticado no arraial de Paracatu (Minas Gerais) e que no ano de 1747 foi desmobilizado porum batalho de capites-do-mato perseguidores de negros fugidos. Ver: Luiz R. B. Mott (1988, p. 87-117).51 Calundu a denominao mais antiga para rituais religiosos de matriz africana realizados no Brasil. Essadenominao j aparece na poesia de Gregrio de Matos no sculo XVII. Ver: Yeda Pessoa de Castro (2001, p.192) e Joclio Telles Santos (1997, p. 17). A partir do sculo XVIII acontece um sensvel aumento nas denn-cias contra os calundus. Ver: Luiz R. B. Mott (1988, p.109).52 SOUZA, L. de M. e. O diabo e a Terra de Santa Cruz, 1986. p. 137-145.53 MOTT, L. R. B. Escravido, homossexualidade e demonologia, 1988. p. 88-108.

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    Nas ruas da vila de Santo Amaro da Purificao, na Bahia, no natalde 1808, o padre local tentou acabar com as comemoraes realizadas moda africana pelos negros haus e nags, acompanhados de gente detoda qualidade. Aps se dirigir aos referidos africanos com zelo apostli-co foi recebido com palavras menos decentes que argumentavam sobreo pouco tempo livre que tinham para se divertir ao contrrio dos senhoresque dispunham de todo o tempo para o lazer. Dessa maneira, os negrosescravizados censuraram a escravido e a religio catlica, uma vez quecontinuaram a batucar e a danar, alm de proferirem obscenidades contrao padre54. No Rio de Janeiro, Martha Abreu observou que os batuques seintensificaram nas proximidades da Igreja de Santana no dia de sua santa,na segunda metade do sculo XIX. A autora argumentou que, sob o olharvigilante de vizinhos e autoridades, os africanos e seus descendentes nego-ciaram seu divertimento e tambm a possibilidade de recriar determinadastradies religiosas atravs dos batuques no dia da santa55.

    O CONTROLE DOS BATUQUES NO SCULO XIX

    Os ajuntamentos festivos dos negros eram notados com preocupaoentre setores dominantes da sociedade pela possibilidade quase sempre ma-nifesta de desordens que os acompanhava. Na primeira metade do sculoXIX, a Bahia foi palco de muitas rebelies escravas, que foram alimentadas,em parte, pelo aumento do trfico de africanos. Estima-se que nesse perodo350 mil escravizados trazidos da frica tenham chegado Bahia. Aproxima-damente 7 mil por ano, trazidos da baa do Benin, imprio do Daom, terrasiorub, terras haus e vizinhana. O Recncavo baiano, particularmente,experimentou um notvel crescimento econmico a partir das ltimas dca-das do sculo XVIII. A ampliao do contingente escravizado contou aindacom a produo de fumo em Cachoeira, produto que foi utilizado em largaescala na troca por negros na costa ocidental da frica56.

    54 REIS, J. J. Tambores e temores, 2002. p. 107-108.55 ABREU, M. O imprio do Divino, 1999. p. 292-293.56 Segundo Joo Jos Reis, foi de fundamental importncia nesse crescimento a Revoluo Escrava do Haiti,uma vez que essa colnia francesa respondia pela agricultura aucareira de exportao mais prspera do mun-do. Assim, valendo-se da ausncia desse poderoso concorrente no mercado internacional, os engenhos deacar do Recncavo puderam aumentar o nmero de africanos, a produo e os lucros. Ver: Joo Jos Reis(1992, p. 100-101). Sobre as estimativas do trfico de escravos na primeira metade do sculo XIX, ver Joo JosReis (2003, p. 24-25, 120-121).

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    Caso observemos a importncia dispensada pelas autoridades coloni-ais dimenso tnica dos batuques durante a escravido africana no Bra-sil, as diferentes prticas levadas a efeito pelo 6 Conde da Ponte (1805-1810) e pelo 8 Conde dos Arcos (1810-1818) so referncias obrigatriasna discusso. As referidas autoridades estavam atentas ante a possibilidadede tenses e alianas tnicas recriadas na Bahia. Enquanto o primeiro acre-ditava na represso sem descanso para por fim aos batuques que subverti-am a ordem simblica europia e facilitavam a criao de laos de solida-riedade entre os africanos, o segundo acreditava na possibilidade de os ba-tuques preservarem ou mesmo acirrarem as divises tnicas entre os ne-gros. Ou seja, para o Conde dos Arcos era necessrio tolerar os batuquesde negros como forma de preservao da ordem escravista, uma vez que,caso os africanos preservassem suas rivalidades tnicas, pouco poderiamfazer contra os donos do poder os brancos57.

    Em sentido anlogo, do ponto de vista do saber erudito europeu, asdiscusses sobre civilizao, cultura e barbarismos, no eram recentes. Elasremontavam a tradies do pensamento clssico, reformuladas a partir dosculo XVIII58. No Brasil, sobretudo a partir da Independncia, setores daelite dispensaram progressiva ateno temtica da civilizao. Esta erarepresentada como uma conquista progressiva e cumulativa, todavia, ne-cessitava de luta contra a tradio, a superstio e o instinto irracional.Dessa maneira, o assim chamado paganismo africano, em suas manifes-taes privadas ou pblicas, mereceu acalorados discursos e prticas que osrepreendia59. Na base do paradoxo tolerar ou reprimir presente nas estra-tgias de setores da elite para civilizar os costumes dessas terras, encontra-va-se uma forte perspectiva de controle dos negros escravizados, ou seja,era a manuteno da ordem que estava no ncleo dos dois paradigmas detratamento da festa negra.

    Nas dcadas que seguiram proclamao da Independncia, as admi-nistraes locais passaram a dispensar um progressivo esforo para contro-lar a populao negra, livre e escravizada, atravs, principalmente, de pos-

    57 Para uma anlise das prticas dos dois condes baianos, ver: Joo Jos Reis (2002, p. 109-112, 2003, p. 68-93).58 KUPER, Adam. Cultura: a viso dos antroplogos. Traduo Mirtes Frange de Oliveira Pinheiros. Bauru, SP:EDUSC, 2002. Para Norbert Elias, conceitos como o de civilizao tm algo do carter de palavras que ocasi-onalmente surgem em algum grupo mais estreito, tais como famlia, seita, classe escolar ou associao, e quedizem muito para o iniciado e pouqussimo para o estranho. Assumem forma na base de experincias comuns.Crescem e mudam com o grupo do qual so expresso. Situao e histria do grupo refletem-se nelas. E perma-necem incolores, nunca se tornam plenamente vivas para aqueles que no compartilham tais experincias, queno falam a partir da mesma tradio e da mesma situao. Norbert Elias (1994, p. 21-50, grifo meu).59 Joo Jos Reis analisou Um debate na Assemblia Provincial da Bahia sobre a proibio do batuque em1855. Ver: Joo Jos Reis (2002, p. 134-147).

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    turas municipais cada vez mais detalhadas, no sentido de disciplinar a cir-culao dos negros no espao pblico. Nas posturas da Cmara Municipalde Cachoeira, havia a proibio de vozerias desde 1828. Encontramos aexpressa proibio dos batuques, pela primeira vez, na resoluo de 15 dejunho de 185560. Evidente que no escapava aos legisladores eles tam-bm senhores escravocratas seus interesses imediatos. Impedir que osnegros trocassem o trabalho pelo divertimento, alm de acabar com as de-sordens, evitaria prejuzos, alguns irrecuperveis.

    Foi o que ocorreu em 1822, na cidade de Cachoeira, com o crioulo An-tnio que, durante um lundu de pretos, matou o tambm crioulo Jos Pai-xo, em frente a uma taverna. Antnio e Jos eram escravos, respectivamente,de Rodrigo Antnio Falco e da viva Maria Rosa Santa Rita. Na viso dossenhores, o acontecimento gerou um duplo prejuzo, afinal, um escravo foipreso e o outro estava morto. Naquele mesmo ano, durante as lutas pela inde-pendncia da Bahia, os Conselheiros Interinos de Governo estabelecidos emCachoeira recomendaram s autoridades policiais do Recncavo que impedis-sem severamente as reunies de escravos a pretexto de funes, ou tabaques,e vigiando muito escrupulosamente sobre a conduta dos mesmos.61

    Joo Jos Reis constatou que aps a revolta dos africanos mal, em1835, ficou mais difcil para o povo negro festejar ao seu modo. Aiminncia de rebelies escravas fazia tremer senhoras e senhores, em lti-ma instncia, preocupados com a segurana de suas vidas. Setores daimprensa baiana, por sua vez, cuidaram de refletir e at aumentar essetemor. A relao entre batuque e rebelio foi sempre enfatizada, explo-rando preocupaes com o olhar estrangeiro, com a imagem da cidadeentregue aos brbaros africanos, mas, sobretudo, com a desordem62. Deforma semelhante, Joclio Teles dos Santos notou o incmodo que osbatuques causavam a setores da el i te baiana atravs de jornaissoteropolitanos e da constantemente renovada legislao contrria a taisdivertimentos. O autor observou que da resoluo de 25 de fevereiro de1831 de 10 de julho de 1889, as proibies foram mantidas com o intui-to de no consentir ajuntamentos de escravos, lundus, vozerias, batu-ques, danas de pretos, alaridos e sambas63.

    60 CDIGO de Posturas da Cmara Municipal da Cidade da Cachoeira, 1855. Fonte disponvel no ArquivoRegional de Cachoeira.61 A recomendao aconteceu aps receberem denncias sobre a possibilidade de revoltas escravas insufladaspelos portugueses. Ver: Joo Jos Reis (2002, p. 115).62 REIS, J. J. Tambores e temores, 2002. p. 121-129.63 SANTOS, J. T. dos. Divertimentos estrondosos, 1997. p. 15-38.

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    Assim, percebe-se que o acento repressivo recaa mais sobre a neces-sidade de conservao da ordem na Bahia escravocrata do que sobre asameaas Bahia civilizada. Ou seja, um lento deslocamento se operouna retrica de setores da elite contra as prticas ldicas e religiosas de ma-triz africana no correr do sculo XIX. Notadamente aps 1850, esses seto-res passaram a dispensar maior nfase ao discurso civilizador, enquantoos temores pela manuteno da ordem trespassavam suas palavras. evi-dente que os dois argumentos estavam intimamente ligados, porm, a mu-dana foi se operando no campo discursivo, no dissimulando, mas adap-tando-se s iminncias das circunstncias histricas, isto , ao processogradual de abolio da escravido no Brasil64.

    AS TENTATIVAS DE ORDENAMENTO DA FESTA

    As campanhas contrrias aos entrudos e favorveis ao carnaval, apoi-adas na oposio barbrie-civilizao, ganham terreno a partir de mea-dos do sculo XIX e so emblemticas quanto ao deslocamento retricode que trato, isto , mudana de nfase na manuteno da ordemescravocrata para o relevo na construo de uma ordem civilizada65.Os entrudos passaram a ser caracterizados como selvagens e ofensivos civilizao, enquanto o carnaval se estruturava a moda francesa comosmbolo de riqueza, com prstitos luxuosos, bailes de mascarados e brin-cadeiras de rua onde reinaria a ordem, a alegria e a civilidade66. Em Ca-choeira, os entrudos foram proibidos em 1855, nos seguintes termos: proibido andar pelas ruas jogando entrudo, ou jogar de dentro das casassobre quem passa pelas ruas67.

    No Rio de Janeiro do sculo XIX, as descries do jogo de entrudo de-monstram a plstica do referido divertimento. As narrativas revelam o costu-me de molhar-se e sujar-se uns aos outros com limes ou laranjinhas de cera

    64 importante assinalar o desenvolvimento da imprensa no sculo XIX como mola propulsora desse desloca-mento discursivo.65 Verger identifica em meados do sculo XIX o incio da perseguio aos entrudos na Bahia. Pierre Verger(1980).66 FRY, Peter; CARRARA, Sergio; MARTINS-COSTA, Ana Luiza. Negros e brancos no carnaval da velharepblica. In: REIS, Joo Jos dos (Org.). Escravido e inveno da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. SoPaulo: Brasiliense, 1988. p. 232-263.67 CDIGO de Posturas. Resoluo de 15 de junho de 1855. p. 6. Fonte disponvel no Arquivo Regional deCachoeira.

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    recheadas com gua perfumada, com recurso a seringas, gamelas, bisnagas eat banheiras todo e qualquer recipiente que pudesse comportar gua a serarremessada. As descries tambm se referem ao uso de polvilho, vermelho,tintas, farinhas, ovos e mesmo lama, piche e lquidos ftidos68.

    Temos notcia sobre os festejos de carnaval em Cachoeira desde o anode 1879, quando pessoas de critrio e gosto se reuniram para festejar pelaprimeira vez o carnaval na cidade69. Tambm nesta cidade o carnaval seorganizou em oposio ao jogo do entrudo. Registrando fatos comuns navida passada da cidade da Cachoeira narrados por seu pai, Francisco Josde Mello assim se referiu prtica do entrudo local ou: laranjinha, queconsistia em jogar pacotes de goma molhada ou gua entre os praticantes.A crnica ainda relata que essa prtica inconveniente gerava incidentes,s vezes, de certa gravidade70.

    Pedro Celestino da Silva nos traz uma descrio do entrudo em Ca-choeira:

    Grupos de rapazes, dispersos pelas ruas, agarravam amigose desconhecidos e, lutando corpo a corpo, metiam-nosdentro de gamelas adredemente cheias de gua, e por so-brecarga toda a famlia do folgazo despejava sobre o infe-liz cuias e mais cuias de gua.E, assim, machucado e maltratado, tendo as vestesencharcadas, era abandonado pelos agressores por entreestrepitosas gargalhadas.Outras vezes, no era s a gua que colaborava no banho:entravam tambm em ao a farinha de trigo, ps pretos,tinta de escrever, piche, lama com que cobriam os que eramalvos de to brutal brincadeira, fazendo-os sob estrondosa

    68 CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da folia: uma histria social do carnaval carioca entre 1880 e 1920.So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 54-55. A descrio do entrudo, tal como foi apresentado, asseme-lha-se s lavagens dAjuda tal qual ainda acontecem em Cachoeira.69 SILVA, Pedro Celestino da. A Cachoeira no carnaval. A Ordem 21 fev. 1925. p. 2. Em edio de 11 defevereiro de 1892, o jornal A Ptria da cidade de So Flix ops as brincadeiras do carnaval aos nocivos diver-timentos do entrudo. A matria em tom de louvao a civilizadora festa se refere ao clube carnavalesco Filhosdo Sol: Consta-nos que esse clube sair com o esplendor prprio do seu ttulo, divertindo e extasiando a popu-lao desta e da fronteira cidade, nos dias 28 do corrente e 1. de maro vindouro. Aproveitamos a oportunida-de para louvar os iniciadores de to aprazvel divertimento, que por sua vez tem acabado com o prejudicialbrinquedo do entrudo. A PTRIA. 11 fev. 1892. p. 1, 28 fev. 1892. p. 1.70 Francisco Jos de Mello foi articulista do jornal A Ordem. Francisco Jos de Mello (2004, p. 164). O jovemJos Ramiro das Chagas Filho, primognito do fundador e diretor do jornal A Ordem, foi assassinado com umtiro de garrucha por Cesrio Avelino da Silveira, sob o ftil pretexto de que a vtima queria entrud-lo. PedroCelestino da Silva (1925, p. 2).

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    vaia, arrostar o ridculo por onde passavam.Esse hbito esteve muito em voga entre pessoas do povo,trazendo, no raro, resultados funestos e cenas desagrad-veis que davam que fazer a polcia.Entretanto, grande parte da populao da Cachoeira sen-tia prazer em molhar-se.71

    A imprensa de Cachoeira exortava os jovens filhos da boa sociedadepara a organizao dos festejos momescos. A formao de clubes carnava-lescos era incentivada, ao tempo em que se criticava a falta de entusiasmode alguns diante da empresa civilizadora que era o carnaval. A organizaode clubes afastava o perigo dos temidos caretas a p mascarados avul-sos, indivduos maltrapilhos e errantes a desfilar pelas ruas causando desor-dens e insultando as famlias72.

    No carnaval de 1901, a cidade j contava quatro agremiaes: osEmigrantes do Centro, os Democratas Carnavalescos, os Pndegos da Arbiae os Amigos do Silncio73. Nesse mesmo ano tambm foi festejada na im-prensa a iniciativa de um grupo de jovens que desejavam erguer a Ca-choeira do estado aptico em que vivia sepultada. Tratava-se da criaodo Centro Civilizador Familiar, grupo de rapazes que se dedicariam apre-sentao de peas de teatro para as famlias, notadamente, cavalheirose senhoras.74

    Alberto Herclito Ferreira Filho analisou o entrudo em Salvadornos seus aspectos de classe. Para este autor, o entrudo exacerbava o gro-tesco da sociedade e fazia uma crtica radical ao comportamento sbrioe respeitvel, uma vez que seu objetivo era, literalmente, achincalharou ridicularizar. Ele se refere aos negros vestidos de nobres, homenstravestidos de mulher, geralmente prostitutas ou noivas, pretas africanascarregadas em cadeiras de arru, negras ostentando grandes panelas eenormes colheres de pau. Nessa perspectiva, o entrudo demonstrava umaclara conscincia popular dos antagonismos sociais. Assim, uma crtica

    71 SILVA, P. C. da. A Cachoeira no carnaval, 1925, p. 2.72 Em 1901, antecedendo as festas de Nossa Senhora d Ajuda, nas quais tinha lugar a tradicional lavagem, ojornal A Cachoeira assim se referia aos caretas a p: indivduos que gostam de bater carteiras e at criminososde morte que enchem de pudor as nossas faces e de cautela. A CACHOEIRA. 24 out. 1901. p. 1.73 Os primeiros clubes carnavalescos de Cachoeira foram os Democratas e os Filhos do Sol. Em 1892 e 1893deram brilho extraordinrio a festa e trouxeram cidade centenas de visitantes. Pedro Celestino da Silva(1925, p. 2).74 A ORDEM. 2 fev. 1901. p. 1, 16 fev. 1901, 10 mar. 1901. p. 1.

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    grotesca s hierarquias e uma inverso simblica do jogo social eramencarnados nos entrudos.75

    Cabe notar que a substituio do entrudo pelo carnaval moda euro-pia jamais aconteceu totalmente. Como observou Wlamyr