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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015)
O precário na publicidade: um estudo sobre o processo de
ressignificação do passado no comércio informal1
Sthael Fiabane2
Universidade Federal de Pernambuco
Resumo
Com base em registros fotográficos, esta pesquisa aborda mercadorias, suportes que midiatizam
marcas e anúncios publicitários que perderam a validade no comércio informal e adota como
campo de estudo as adjacências do Mercado São José em Recife – Pernambuco. Ao aludir
questões sobre como essas publicidades são readaptadas a partir de seus usos e funções iniciais
pelo comércio popular, identificamos que é predominante nos casos analisados a dimensão
utilitária dos objetos, que resiste e tem ligação com o precário nesse ambiente. Seguindo as
referências de David Lowenthal (2006), em especial sobre como respondemos a vestígios
tangíveis do passado, nosso objeto de análise, apresentamos reflexões do autor no livro “The
Past is a Foreign Country”. Sob a premissa de que a função primária da memória não é preservar
o passado, mas adaptar ele para enriquecer e manipular o presente, que compreendemos a
utilização das relíquias pelos comerciantes informais.
Palavras-chave: Consumo; Memória; Passado; Precário; Comércio Informal.
Introdução
O passado está em todo lugar. Adotando as reflexões de Lowenthal (2006),
entendemos que ao nosso redor sempre veremos surgir elementos e características que
têm ligação com antecedentes que remontam, resgatam e alteram nossa memória a
partir do momento em que reconhecemos estes de forma consciente e interessada. Esse
processo de lembrança e convívio com o passado é inerente à experiência humana e
sensível.
1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, consumo e memória: cenas culturais e
midiáticas, do 5º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco
sob orientação do Professor Doutor Rogério Covaleski. Participante do Grupo de Pesquisa: publicidade
nas novas mídias e narrativas do consumo (PPGCOM-UFPE). E-mail: [email protected]
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O fator cultural também é expressivo nessa abordagem, já que aliado a
circunstâncias e diferentes contextos, este molda o valor do passado. O olhar que
lançamos a objetos ou paisagens antigas, seja de rejeição ou celebração, está
intimamente ligado a valores que carregamos, inclusive referências históricas e
ideológicas.
Na contemporaneidade, onde a obsolescência dos objetos guia muitas das ações
e percepções humanas, é natural que o que é referente ou pertencente a épocas
anteriores seja cada vez mais escasso, perdido, esquecido e, sobretudo, rejeitado.
Entretanto, também é provável que se crie aversão à redução da vida útil dos objetos,
em que o resgate do valor do antigo surge como uma resposta à cultura do obsoleto.
Como nos fala Timothy Cantell em “Why care about old buildings?3” referenciado por
Lowenthal (2006): “In a world of concrete, Concorde and computers, it is vital that we
preserve what remains of individuality. If everything were modern, everywhere would
look pretty much the same”4.
No comércio informal, mercado que, em diversos fatores ainda resiste à cultura
contemporânea midiática, de hedonismo e obsolescência por meio do consumo,
percebemos um movimento oposto e de resistência em relação à limitação da vida útil
dos objetos. Nas bancas de venda do comércio popular identificamos a “afirmação” e
disposição de artefatos do passado que se dão pelo uso contínuo destes.
A falta de recursos financeiros para substituir alguns desses objetos pelo novo
é marcante na informalidade, assim, a precariedade é que faz com que o antigo e,
naturalmente, desgastado pelo tempo, resista no comércio popular. Nossas
investigações neste trabalho também incluem o questionamento sobre de que maneira
essa resistência do passado pode influenciar no consumo de produtos nas bancas,
botequins e fiteiros pesquisados de forma até a reverberar em outros contextos que não
o da informalidade.
3 Por que se importar com antigos edifícios? 4 Em um mundo de concreto, Concorde e computadores, é vital que preservemos o que resta de
individualidade. Se tudo fosse moderno, todo lugar pareceria praticamente o mesmo.
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Nestes espaços, estão presentes produtos e campanhas publicitárias que
perderam a validade: garrafas de aguardente que não são mais vendidas pelo mercado,
cartazes indicando produtos que a banca não comercializa mais, suportes produzidos
por marcas que não mais distribuem o produto indicado, entre outros. A identificação
na mudança da logomarca dos produtos e/ou a não comercialização destes pelas
empresas, constituem-se em relevantes indícios e parâmetros para que possamos atestar
a perda da validade dos objetos em questão.
Ornamentando esses estabelecimentos e cumprindo com suas funções iniciais
de publicização e comercialização dos produtos ou não – questões que vamos investigar
ao longo deste trabalho, acreditamos que os elementos postos nesse comércio conferem
uma identidade aos ambientes analisados. Segundo Lowenthal (2006) “The past is
integral to our sense of identity; the sureness of “I was” is a necessary component of
the sureness of “I am”. Ability to recall and identify with our own past gives existence
meaning, purpose, and value”5.
Nesse sentido, os elementos do passado compõem e constroem a identidade das
bancas e fiteiros, assim como também dão significado aos transeuntes, clientes do
comércio informal e, especialmente, aos comerciantes. Para os vendedores, quando os
objetos não têm uma função exclusivamente utilitária, estes artigos ganham um sentido
de coleção, onde identificamos a questão da identidade muito ligada ao que se quer
preservar do ponto de vista de “quem se é” a partir do que se viveu em meio a essas
matérias.
Já o público em geral – transeuntes e clientes, quando em contato com elementos
publicitários do passado, relembra campanhas e associa estas a momentos específicos
de suas vidas, o que se vivia naquele período, trazendo a ideia de nostalgia: não
lembram exatamente das campanhas ou marcas e produtos, mas lembram de como se
sentiam vendo ou experimentando estes. Assim, essas bancas podem proporcionar uma
5 O passado é integrante do nosso senso de identidade; a certeza do “eu fui” é um componente necessário
da certeza do “eu sou”. Habilidade para lembrar e nos identificar com nosso próprio passado dá à
existência significado, propósito e valor.
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experiência sensível ao público que, por sua vez, também pode atribuir – por meio de
uma percepção única e pessoal, uma identidade aos estabelecimentos a partir do que os
comerciantes confirmam e negam por meio dos objetos expostos.
Nossas relações com o passado
Segundo Lowenthal (2006), respondemos a relíquias como objetos de interesse
ou beleza como evidência de eventos passados e talismãs de continuidade. O que quer
dizer, segundo o autor, que vestígios nas paisagens e na memória refletem inúmeros
detalhes do que nós e nossos antecessores fizeram e sentiram. O que nos dá também a
certeza que o passado realmente aconteceu, “its traces and memories reflect undeniable
scenes and acts”6.
Assim, essas evidências reais do passado também se tornam objeto de interesse
uma vez que o passado não pode ser confirmado: o autor questiona se a história que
nos é contada de fato existiu e de que forma ela foi adaptada, como se manifesta sobre
o olhar dos historiadores - condicionado por questões do presente e do futuro, podendo
gerar distorções.
A partir do Renascimento, conta Lowenthal (2006), que os eruditos, cientes das
adulterações e falsificações de textos, voltaram-se para as relíquias como testemunhas
mais confiáveis do passado: “Embora hoje seja evidente que os artefatos são
modificados tão facilmente quanto as crônicas, a crença em sua veracidade ainda
perdura; uma relíquia tangível parece ipso facto verdadeira”. Existindo uma predileção
dos historiadores pelo extraordinário, grandioso ou precioso, as relíquias seguem uma
dinâmica de oposição a essa preferência, uma vez que, segundo o autor, vestígios
palpáveis são considerados mais característicos da vida cotidiana.
Não intencionamos nos prolongar nessa questão, contudo destacamos que a
partir dessas incertezas com relação ao antecedente, o valor dos vestígios e resíduos
físicos surge como forma de comprovação do passado:
6 Seus traços e memórias refletem incontestáveis cenas e atos.
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Memory and history both derive and gain emphasis from physical remains.
Tangible survivals provide a vivid immediacy that helps to assure us there
really was a past. Physical remains have their limitations of informants, to be
sure: they are themselves mute, requiring interpretation; their continual but
differential erosion and demolition skews the record; and their substantial
survival conjures up a past more static than could have been the case. But
however depleted by time and use, relics remain essential bridges between then
and now. They confirm or deny what we think of it, symbolize or memorialize
communal links over time, and provide archaeological metaphors that illumine
the process of history and memory. (LOWENTHAL, 2006, p. xxiii)7
Assim, por maiores que sejam as limitações em interpretar um resíduo físico do
passado, fica evidente o papel essencial dessas relíquias em estabelecer ligações do
passado com o presente. Como nos mostra Lowenthal (2006): “To gain assurance that
yesterday was as substantial as today we saturate ourselves with bygone reliquary
details, reaffirming memory and history in tangible form”8.
Os vestígios físicos, no caso do nosso estudo, as publicidades e produtos que
perderam a validade, ganham a atenção e o interesse do público por consistirem em
evidências de eventos passados e talismãs de continuidade, como já comentamos.
Assim, falamos sobre olhar o antigo e confirmar sua existência, identificar suas
características, relembrar como eram as campanhas ou produtos há alguns anos atrás e
comparar com o que é produzido hoje.
Entendemos dessa maneira, as limitações dos vestígios físicos com relação à
informação, já que são mudos e exigem interpretação, fazendo parte dos nossos estudos
buscar os significados presentes nas publicidades decorridas, no comércio informal.
Contudo, fazemos a ressalva de que essas podem variar de indivíduo para indivíduo, de
7 Memória e história ambas derivam e ganham destaque a partir de vestígios físicos.
Sobrevivências tangíveis fornecem um imediatismo vívido que ajuda a nos garantir que realmente
houve um passado. Resíduos físicos têm suas limitações de informantes, para ter certeza: eles próprios
são mudos, exigindo interpretação; sua contínua, mas diferencial erosão e demolição distorcem o
registro; e sua sobrevivência substancial evoca um passado mais estático do que poderia ter sido o
caso. Mas, por mais empobrecidas pelo tempo e pelo uso, relíquias permanecem pontes essenciais
entre o antes e o agora. Elas confirmam ou negam o que pensamos sobre
isso, simbolizam ou decoram ligações comuns ao longo do tempo, e
fornecem metáforas arqueológicas que iluminam o processo da história e memória.
8 Para ganhar confiança que ontem foi tão substancial quanto hoje nós saturamos nós mesmos com
detalhes de relicários passados, reafirmando memória e história em forma tangível.
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momento para momento. Dessa forma, intencionamos marcar nossas impressões sobre
essas relíquias e investigar seus usos pelos comerciantes informais, quais são as suas
motivações para tal e como os mercadores dão novo sentido a essas campanhas e
produtos. Essa ressignificação se dá a medida que, anteriormente essas publicidades
tinham outra acepção e relevância, diferentes das que possuem hoje. Assim, o passado
não pode ser alterado, mas renovado.
O processo de ressignificação parte da necessidade de acomodar essas
lembranças às necessidades do presente, como expressa Lowenthal (2006): “The need
to use and reuse memorial knowledge, and to forget as well as to recall, force us to
select, distil, distort, and transform the past”9. Assim, como reforça o autor, a função
primária da memória não é preservar o passado, mas adaptar ele para enriquecer e
manipular o presente e dessa forma compreendemos a utilização das relíquias pelos
comerciantes informais ao adereçar seus estabelecimentos, seja para ainda cumprirem
sua função inicial e/ou utilitária de estimularem as vendas dos produtos em questão ou
para construir a identidade do local sendo, neste caso, parte de um processo
inconsciente, intuitivo e espontâneo.
Figura 1 – Garrafas da aguardente Pitú Figura 2 – Suporte produzido pela marca Ala
Na primeira imagem apresentada, o produto ainda cumpre com sua função útil
e inicial de comercialização, as garrafas continuam lacradas e a bebida intacta, sendo
vendida a um preço maior que o da garrafa hoje comercializada pela Pitú: a garrafa
atual custa sete reais na banca enquanto que a mais antiga e bastante desgastada (lado
9 A necessidade de usar e reusar o conhecimento memorial, e esquecer assim como lembrar, força-nos a
selecionar, refinar, distorcer, e transformar o passado.
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esquerdo) é precificada à cinquenta reais. Já pela aguardente ao lado direito, também
anterior ao produto atual, mas um pouco mais recente, é cobrado o valor de dezessete
reais.
O comerciante de aguardente mantém a venda do produto mais recente da
marca, mas empenha-se em encontrar essas relíquias e comercializá-las a um preço
maior, reconhecendo o valor do produto antigo e seu potencial de lucro. Nesse caso,
lembramos do que nos fala Lowenthal (1998): “Como o passado parece afastar-se de
nós, procuramos evocá-lo também preservando e reabilitando suas relíquias”.
É interessante também notar que as garrafas antigas da aguardente estão
expostas em meio a dois produtos de circulação constante no mercado: o Whisky White
Horse e a cachaça Sagatiba e assim, atentamos para a convivência do passado com o
presente.
Já na segunda imagem (Figura 2), um suporte da marca de sabão em pó Ala é
usado para dispor os produtos da banca que, curiosamente, nada têm a ver com o
segmento de produtos de limpeza. São vendidos no estabelecimento: copos
descartáveis, pratos descartáveis, canudos, guardanapos, panos de prato, entre outros.
O comerciante explica que o suporte é muito antigo, mas ainda não encontrou um
substituto de melhor qualidade e mais adequado para expor os produtos. Neste caso,
reafirmamos a questão do precário, em atenção a nos ficar evidente que, tendo recursos
financeiros, o comerciante adquiriria outro suporte, não sendo o material raro e difícil
de se encontrar.
De toda forma, a marca não exerce no local a função de publicização do sabão
em pó, uma vez que o produto divulgado (Novo Ala com Branco Ativo Total) não é
mais comercializado pela empresa, havendo também a inadequação da publicidade com
o que é ofertado no estabelecimento. O que queremos dizer é que, em outro contexto,
se na banca fossem vendidos produtos do segmento ou de segmentos complementares
ao produto Ala, apenas a lembrança da marca do sabão em pó, ainda que com design,
slogan e produto anteriores, poderia cumprir com uma função publicitária. Tanto as
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marcas da Pitú quanto da Ala já passaram por várias reformulações, dando o caráter de
relíquia ao produto e ao suporte indicados.
Figura 3 – Porta-guardanapos Figuras 4 e 5 – Embalagem Tudo Pede (MercadoLivre)
O porta-guardanapos do Guaraná Antarctica também possui uma função
exclusivamente utilitária para o botequim localizado nos arredores do Mercado São
José indicado na Figura 3. Seria difícil pensar ou figurar a função de publicização a fim
de estimular as vendas do produto ou apenas de recordação da marca por meio de um
objeto em que a marca estampada no objeto perde a nitidez, é referente a uma campanha
de quinze anos atrás e está danificado. Novamente confirmamos o precário nessa
relação com o passado no comércio popular, uma vez que havendo capital, os recursos
seriam direcionados para a troca de materiais que estivessem nas mesmas condições do
porta-guardanapos.
Como um dado curioso, as Figuras 4 e 5 apresentam uma lata da mesma
campanha (Tudo Pede), ofertada no MercadoLivre10 com o aviso de produto já usado
(não havendo mais guaraná no recipiente), em que o usuário publica a data de validade
do produto confirmando que tanto o produto quanto a campanha datam do ano de 2000
e precifica a mercadoria no valor de cinco reais, valor este superior ao que é cobrado
por refrigerantes em lata “atuais”.
10 O MercadoLivre é uma empresa de tecnologia que oferece soluções de comércio eletrônico para que
pessoas e empresas possam comprar, vender, pagar, anunciar e enviar produtos por meio da internet.
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Passado e presente
Seguindo as reflexões de Lowenthal (2006), entendemos que em termos de
natureza temporal, os objetos possuem uma dinâmica diferente dos pensamentos e
palavras, já que a história escrita faz a demarcação entre passado e presente e o tempo
do verbo distingue o agora do então. Contudo, como aponta o autor, os artefatos são
simultaneamente passado e presente: suas conotações históricas coincidem com seus
papéis modernos, misturando os e às vezes confundindo-os.
O passado tangível por meio dos artefatos está mudando, envelhecendo,
renovando e interagindo com o presente em fluxo contínuo e o referido autor, nos fala
que é necessário sentir o passado como parte do presente e também separado deste.
Dando prosseguimento a nossas ponderações sobre as relíquias, destacamos que
segundo Lowenthal (2006), nenhum objeto físico é um guia autônomo para tempos
passados, ele acende o passado somente quando nós já sabemos que o artigo é
pertencente a outra época, sendo necessário um esforço consciente. Quando falamos de
uma identificação do passado inconsciente, falamos de algo irrefletido, que passa
despercebido, que não é observado; esse comportamento é muito comum, dado que o
passado se mescla com o presente no nosso cotidiano e com atividades cada vez mais
automatizadas e menos contemplativas.
Por outro lado, as relíquias expostas ao público são potencialmente visíveis a
qualquer observador, dando impressões do passado que dispensam intermediários,
havendo aí a vantagem da acessibilidade dos remanescentes tangíveis em comparação
com ler a respeito desses, o que requer um envolvimento maior. Dessa forma, observar
a história no local, ainda que de forma consciente, é um processo menos ativo do que
ler sobre tal, exigindo menos “esforço”, como expressa Lowenthal (2006), “os
fragmentos físicos permanecem diretamente ao alcance de nossos sentidos”.
É por meio da definição do autor de que relíquias tangíveis sobrevivem na forma
de características naturais e artefatos humanos, que incluímos as publicidades que
perderam a validade nessa demarcação, por serem produtos do homem. A propensão
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para detectar antecedentes, ligando o que existe agora com tempos anteriores, também
determina como percebemos coisas como relíquias.
De acordo com Lowenthal (2006), as relíquias sucumbem ao desgaste de
significado como também de importância. O autor também expressa que memórias
recentes e remotas frequentemente sobrevivem com impressões do presente, mas para
artefatos o novo deve substituir o velho e percebemos essa tendência no que se refere
às publicidades desgastadas e desatualizadas, que se deve ao fato destas fazerem parte
apenas do universo periférico da cidade e resistirem nos centros de comércio popular.
Três processos distintos nos alertam de que as coisas provêm do passado ou
estão relacionadas com ele: o envelhecimento, a ornamentação e o
anacronismo. O primeiro, a deterioração e o desgaste atribuídos ao
envelhecimento; o segundo, a ornamentação que celebram ou então chamam a
atenção para alguns aspectos do passado; o terceiro, a distância histórica,
transforma as relíquias em emanações de uma era anterior. As coisas
"antiquadas" - tirantes de carruagens, xícaras com proteção para bigode, carros
antigos, frontões clássicos - exibem ou ecoam formas ou estilos antiquados.
Algumas ainda são utilizáveis, outras obsoletas; algumas encontram-se em
sucatas, outras em museus. O que todas têm em comum é que parecem vir de
uma época anterior: são anacrônicas. A consciência de que as coisas são
anacrônicas propicia a percepção histórica. (LOWENTHAL, 1998, p. 154)
Figura 6 – Letreiro Leite Floral Figura 7 – Letreiro Minhoto Os letreiros apresentados nas Figuras 6 e 7 compõem as chamadas áreas
históricas – incluindo prédios tombados pelo patrimônio histórico, nesses espaços
podemos ter a sensação que o tempo parou ou que os objetos “morreram”. Lowenthal
(2006) expressa que, “quando muito sobrevive de uma época, pouco pode ter ocorrido
desde então; caso contrário, a maioria das coisas antigas já teria sido substituída”.
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É por meio desta questão que entendemos a presença desses elementos no
comércio informal e áreas precárias da cidade, onde a modernidade parece não ter
chegado ainda. Assim, essa “aura” de antiguidade, não implica em vitalidade histórica,
mas sim em privação de energia inovadora posterior – como revela o autor.
Para falar das relíquias apresentadas precisamos lembrar que estas são estáticas
e mudas, exigem interpretação para exprimir sua função de relíquia. Assim, o passado
contado pode transmitir um sentido mais claro de passagem pelo tempo, ao contrário
das relíquias tangíveis que exibem apenas momentos “suspensos no tempo”, como
pronuncia Lowenthal (2006):
O quanto apreendemos do passado por meio de suas relíquias remanescentes
varia segundo diversas circunstâncias. Uma delas refere-se à manifesta
antiguidade de coisas ao nosso redor. Determinados locais, cidades, casas,
mobiliários refletem nitidamente o passado - áreas inteiramente ocupadas por
ruínas de cidades, escavações pré-históricas, memoriais aos mortos, salas
repletas de antiguidades, mementos, lembranças, velhas fotos de família.
Outros locais, novos, recentes ou provisórios sugerem menos antiguidade.
Regiões há pouco habitadas, obviamente, não exibem os monumentos e
construções antigas, os sótãos, baús e museus, que conferem às mais antigas
um passado humano palpável. (LOWENTHAL, 1998, p. 156)
Os letreiros luminosos (que não são mais acendidos) nas Figuras 6 e 7, refletem
o passado por terem sido uma das primeiras formas de mídia exterior e por
constituírem-se em “formatos” não mais utilizados pelo mercado. Hoje, figuram mais
como parte dos prédios em que estão postos e consequentemente da paisagem da
cidade, do que como publicidade de fato. A partir disso, identificamos e retomamos o
desgaste de significado como também de importância dessas mídias como estratégia
publicitária. É possível pensar em apenas um desdobramento da publicidade dos
letreiros indicados: a lembrança da marca – podendo ser carregada do sentimento de
nostalgia, assim como a referência dos produtos então postos como sinônimo de
tradição.
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Atualmente, o uso de letreiros em geral, se dá pela sinalização de lojas e
estabelecimentos in loco. Não há mais a prática de dispor letreiros de determinadas
marcas de forma “aleatória” no espaço público para a publicização destas.
Figura 8 – Adesivo Produtos Bic Figura 9 – Sinalizador Cerveja Antarctica Na Figura 8, o adesivo que anuncia os produtos da marca Bic foi esquecido pelo
dono de uma tabacaria, local em que essas mercadorias não chegam mais para a venda.
O mesmo processo de esquecimento e deterioração dos objetos ocorre na imagem
apresentada na Figura 9, o indicador da Cerveja Antarctica no botequim, que não possui
mais a forma e pintura iniciais, assim como não mantém sua disposição por estar solto
da parede e pendendo, prestes a cair.
Ambas as imagens nos lembram a afirmação de Lowenthal (2006) sobre um
passado cheio de sombras: “is colourless, distorted, frozen; its meaning escapes me”11.
Não há relação de utilidade para que esses objetos ainda se mantenham nos locais
mostrados, apenas mostram sombras do que se foi e compõem a identidade do lugar a
partir do que se é quando se conserva determinados elementos, ainda que de forma
irrefletida. A interpretação de cada um com relação a essas imagens pode variar, mas o
que sabemos é que essas matérias foram “abandonadas”, não passaram por qualquer
manutenção ou manipulação e tem forte ligação com o precário.
Assim, o processo que nos torna cientes de um passado que coexiste e difere do
presente nos faz pensar em nossas memórias, nossa história e na idade das coisas ao
nosso redor. Nessa dinâmica tanto individual como coletiva, o passado pode ser
11 É descolorido, distorcido, congelado; seu significado escapa a mim.
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mudado apenas por fazer parte de um ato de reconhecimento, por acaso ou por escolha,
como fala Lowenthal (2006), “simplesmente apreciar ou proteger uma relíquia afeta
sua forma ou nossas impressões”.
Enfim, enfatizamos essa outra forma de transformação do passado, que não
remete às condições físicas dos vestígios, é indireta, se dá por “como os objetos são
vistos, explicados, ilustrados e apreciados”, Lowenthal (2006).
Considerações Finais
Entendemos o estudo de vestígios físicos do passado como uma forma de
resgate, a fim de conferir a estes devida importância em razão de estarmos tratando de
cenas cotidianas no centro da cidade do Recife e, naturalmente, na memória das
pessoas; mas que permanecem no limbo, esquecidos, despercebidos.
De acordo com Lowenthal (2006), “relíquias outrora esquecidas ou
abandonadas podem tornar-se mais preciosas do que aquelas em uso contínuo; a
descontinuidade em sua história atrai a atenção para elas, particularmente se a escassez
ou fragilidade as ameaçarem de iminente extinção”. Ainda que as relíquias a que nos
referimos estejam em uso contínuo, por não serem percebidas, podem ganhar a aura de
preciosidades quando “resgatadas” ou trazidas à tona.
Por serem ubíquas, as relíquias sofrem desgaste maior do que as lembranças
ou histórias. Enquanto a história impressa e memórias gravadas em teipe
podem ser disseminadas de modo irrestrito tornando-se, assim, potencialmente
imortais, as relíquias físicas sofrem desgaste constante. Embora ainda haja
muitos vestígios a serem encontrados, ressuscitados e decifrados, o passado
tangível é, em última instância, uma fonte finita e não renovável, exceto quando
o tempo engendra novas relíquias. (LOWENTHAL, 1998, p. 150)
Dada a condição finita e não renovável das relíquias físicas, nos propusemos a
estudar o que ainda é remanescente em termos de produtos e publicidades no mercado
informal. Em virtude dos motivos apresentados, compreendemos ao longo do trabalho
porque as peças publicitárias expostas por nós ainda estão nesse ambiente e como o
comércio popular dá novo sentido aos elementos indicados.
Neste trabalho, percebemos que essa forma de ligação com o passado se dá
através de algumas manifestações que Le Goff (2003) descreve: “a moda retrô, o gosto
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pela história e pela arqueologia, o interesse pelo folclore, o entusiasmo pela fotografia,
criadora de memórias e recordações, o prestígio da noção de patrimônio”. No caso desta
pesquisa, acreditamos que muitos desses fatores foram fundamentais e estão marcados
no presente estudo, especialmente a atenção pelo folclórico, tradições e manifestações,
sobretudo comunicativas e estéticas do comércio informal e dos comerciantes que
atuam nesse mercado, a importância do patrimônio e as publicidades antigas colocadas
como parte deste, assim como o entusiasmo pela fotografia como criadora de memórias
e recordações, sendo nossa escolha metodológica para registrar nosso objeto de
pesquisa.
Por fim, ressaltamos que a interpretação das relíquias no comércio informal é
individual e também coletiva e referenciamos Le Goff (2003) quando o mesmo destaca
que o que sobrevive da memória coletiva são escolhas e não o conjunto daquilo que
existiu no passado. Evidenciando assim, nosso “poder” no que se nega e se afirma do
passado.
Diferentes grupos da sociedade constroem suas memórias coletivas a partir das
quais são montadas práticas, ritos, celebrações, comemorações e monumentos. E
demonstrando a relevância deste estudo, afirmamos que sendo a memória coletiva uma
construção social, torna-se importante, como o autor já citado afirma, conhecer os
“processos e os atores que intervêm no trabalho de constituição e formalização das
memórias”.
Referências
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.
LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. São Paulo: Projeto História, 1998.
LOWENTHAL, David. The past is a foreign country. United Kingdom: Cambridge
University Press, 2006.