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XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil O projeto literário de Franklin Távora pelo viés de O Cabeleira Prof.ª Dr.ª Cristina Betioli Ribeiro 1 (UNICAMP) Resumo: Por meio da análise de O Cabeleira (1876), primeiro romance da série Literatura do Norte (1876- 1881), pretendemos mostrar de que maneira Franklin Távora executou o seu projeto literário, con- forme as perspectivas nacionalistas do período e os impasses entre os métodos convencionais de criação romanesca e as tendências cientificistas da “geração de 70” brasileira. Nesse sentido, vale destacar o embate do romancista com José de Alencar e as suas relações com as idéias positivistas difundidas pela Escola de Recife, que o formou. Palavras-chave: Franklin Távora, O Cabeleira, Literatura do Norte, romance, folclore. O prefácio a O Cabeleira: corolário de um projeto literário Os pressupostos que definem o exame crítico dos romances de Alencar, nas Cartas a Cincina- to, expõem, desde 1871, os parâmetros ideológicos que orientam o projeto literário de Franklin Tá- vora, anunciado, sistematicamente, no prefácio de O Cabeleira, cinco anos depois. Embora o autor se queixasse da ausência de editores interessados em publicar suas obras e te- nha custeado a impressão do livro nos prelos da Tipografia Nacional, em 1876, o romance sobre o sanguinário cangaceiro pernambucano foi o que mais recebeu atenção da crítica e dos folcloristas do período, bem como o maior número de publicações da história editorial de Franklin Távora (LI- MA, 2004). O prefácio programático a O Cabeleira determina as diferenças fundamentais entre Norte e Sul, no que se refere às exuberâncias naturais e à autenticidade da literatura nacional. Os escritores da Corte, alheios ao repertório das tradições populares do Norte, velhas conhecidas dos literatos do lugar, estariam impregnados pelas idéias do estrangeiro. Deste ponto de partida, Távora propõe co- mo projeto literário genuinamente brasileiro, o que se voltar para a sua dileta região de origem, o Norte. O fator geográfico, que conduziria a um distanciamento da contaminação estrangeira, própria dos centros urbanos, garantiria o aspecto que o autor considera essencial para a expressão cultural legitimamente brasileira: a “feição primitiva” dos costumes ainda não afetados pelo “progresso” (TÁVORA, 1973, p. 27). Em sentido contrário, no mesmo prefácio, há passagens que tomam o avanço civilizatório do Norte como bem-vindo e, sob a luz do positivismo, vislumbram promissoras possibilidades de evo- lução econômica da nativa Amazônia (idem, ibidem, p. 26). Como em muitos outros aspectos que podem ser debatidos sobre o projeto literário de Franklin Távora e sua concretização ficcional, o prefácio encerra nítidas contradições, atestando as dificuldades em se afinar o idealismo romântico com o discurso científico de “ordem e progresso”. A “feição primitiva” da cultura e dos costumes do Norte poderia servir como fonte preciosa, em especial para o pólo artístico, como instrumento de renovação da nacionalidade, sobretudo no gênero romance. A tarefa de usufruir desse manancial literário, caberia aos escritores da própria região, capitaneados pelo porta-voz do projeto. Em 1877, quando publica as “Lendas e tradições populares do norte” na revista Ilustração Brasileira, o autor retoma a importância das pesquisas sobre as fontes populares de criação poética. A importância atribuída ao “gênio setentrional”, repre- sentado pela “musa do nosso povo”, reafirma as preceptivas do prefácio a O Cabeleira e resulta na publicação de uma série de lendas nortistas, recolhidas pelo autor como parte dos “monumentos” populares e históricos que pedem para serem estudados (TÁVORA, 1877). Embora o Norte figure como predileto para os estudos folclóricos e para a literatura nacional, Távora admite que a produção do gênero romance é mais significativa no Sul. Assim, reconhece os méritos de vários romancistas dali, dentre os quais está listado Joaquim Manoel de Macedo, já antes

O Prefácio de O Cabeleira

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  • XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interaes, Convergncias

    13 a 17 de julho de 2008USP So Paulo, Brasil

    O projeto literrio de Franklin Tvora pelo vis de O Cabeleira Prof. Dr. Cristina Betioli Ribeiro1 (UNICAMP)

    Resumo: Por meio da anlise de O Cabeleira (1876), primeiro romance da srie Literatura do Norte (1876-1881), pretendemos mostrar de que maneira Franklin Tvora executou o seu projeto literrio, con-forme as perspectivas nacionalistas do perodo e os impasses entre os mtodos convencionais de criao romanesca e as tendncias cientificistas da gerao de 70 brasileira. Nesse sentido, vale destacar o embate do romancista com Jos de Alencar e as suas relaes com as idias positivistas difundidas pela Escola de Recife, que o formou.

    Palavras-chave: Franklin Tvora, O Cabeleira, Literatura do Norte, romance, folclore.

    O prefcio a O Cabeleira: corolrio de um projeto literrio Os pressupostos que definem o exame crtico dos romances de Alencar, nas Cartas a Cincina-

    to, expem, desde 1871, os parmetros ideolgicos que orientam o projeto literrio de Franklin T-vora, anunciado, sistematicamente, no prefcio de O Cabeleira, cinco anos depois.

    Embora o autor se queixasse da ausncia de editores interessados em publicar suas obras e te-nha custeado a impresso do livro nos prelos da Tipografia Nacional, em 1876, o romance sobre o sanguinrio cangaceiro pernambucano foi o que mais recebeu ateno da crtica e dos folcloristas do perodo, bem como o maior nmero de publicaes da histria editorial de Franklin Tvora (LI-MA, 2004).

    O prefcio programtico a O Cabeleira determina as diferenas fundamentais entre Norte e Sul, no que se refere s exuberncias naturais e autenticidade da literatura nacional. Os escritores da Corte, alheios ao repertrio das tradies populares do Norte, velhas conhecidas dos literatos do lugar, estariam impregnados pelas idias do estrangeiro. Deste ponto de partida, Tvora prope co-mo projeto literrio genuinamente brasileiro, o que se voltar para a sua dileta regio de origem, o Norte. O fator geogrfico, que conduziria a um distanciamento da contaminao estrangeira, prpria dos centros urbanos, garantiria o aspecto que o autor considera essencial para a expresso cultural legitimamente brasileira: a feio primitiva dos costumes ainda no afetados pelo progresso (TVORA, 1973, p. 27).

    Em sentido contrrio, no mesmo prefcio, h passagens que tomam o avano civilizatrio do Norte como bem-vindo e, sob a luz do positivismo, vislumbram promissoras possibilidades de evo-luo econmica da nativa Amaznia (idem, ibidem, p. 26). Como em muitos outros aspectos que podem ser debatidos sobre o projeto literrio de Franklin Tvora e sua concretizao ficcional, o prefcio encerra ntidas contradies, atestando as dificuldades em se afinar o idealismo romntico com o discurso cientfico de ordem e progresso.

    A feio primitiva da cultura e dos costumes do Norte poderia servir como fonte preciosa, em especial para o plo artstico, como instrumento de renovao da nacionalidade, sobretudo no gnero romance. A tarefa de usufruir desse manancial literrio, caberia aos escritores da prpria regio, capitaneados pelo porta-voz do projeto. Em 1877, quando publica as Lendas e tradies populares do norte na revista Ilustrao Brasileira, o autor retoma a importncia das pesquisas sobre as fontes populares de criao potica. A importncia atribuda ao gnio setentrional, repre-sentado pela musa do nosso povo, reafirma as preceptivas do prefcio a O Cabeleira e resulta na publicao de uma srie de lendas nortistas, recolhidas pelo autor como parte dos monumentos populares e histricos que pedem para serem estudados (TVORA, 1877).

    Embora o Norte figure como predileto para os estudos folclricos e para a literatura nacional, Tvora admite que a produo do gnero romance mais significativa no Sul. Assim, reconhece os mritos de vrios romancistas dali, dentre os quais est listado Joaquim Manoel de Macedo, j antes

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    apreciado nas Cartas a Cincinato como retratista exemplar de costumes (TVORA, 1973, p. 28). Assim como expe os nomes que admira, tambm o faz com o que o incomoda em especial. Em tom semelhante ao das Cartas, Jos de Alencar , no prefcio, sutilmente acusado de descumprir com a obrigao dos escritores do Norte, negligenciando a preciosa regio natal em sua safra liter-ria (idem, ibidem).

    Embora nesse momento reconhea em Alencar um engenho de primeira grandeza, Tvora ainda lana argumentos que o ferem como adversrio. Na ocasio em que o projeto da Literatura do Norte publicado, o romance O Sertanejo (1875) j se faz conhecido e, apesar de dar enfoque aos costumes cearenses, no destacado como obra significativa dentre as produes do Norte. Mais um motivo para se constatar o esprito de concorrncia entre os escritores, sobretudo o empenho de Franklin Tvora em superar Jos de Alencar.

    O Cabeleira: nacionalidade celebrada com histria e folclore do Norte Chamado pelo autor de romance histrico, O Cabeleira narra as faanhas do criminoso Jos

    Gomes, conhecido pelo apelido que d ttulo obra.Influenciado, desde criana, pelo pai Joaquim Gomes, o protagonista descrito como um bom menino que, apartado da presena benvola da me, encaminhado carreira do crime pelo perverso pai. Acompanhados, depois, pelo comparsa Teodsio, o trio aterroriza a populao de Pernambuco com saques, roubos e assassinatos, at que o reencontro de Cabeleira com o seu amor de infncia, Luisinha, restitui o lado bom do bandido. Ape-sar da redeno do personagem, nem por isso ele escapa punio exemplar reservada aos desvirtu-ados: conforme atestam a tradio popular e a histria de Pernambuco, o Cabeleira e seus parceiros do crime so enforcados publicamente. O personagem e sua trajetria so constantemente indicados como verdicos na histria e na tradio popular e, para comprovar isso, o autor recorre s Mem-rias histricas da provncia de Pernambuco (1848), de Fernandes Gama, alm de relacionar situa-es e falas dos personagens s trovas populares reunidas nas notas de rodap. importante lembrar que, antes, Tvora havia criticado Jos de Alencar em relao ao uso demasiado de notas (TVO-RA, 1872, p.18-19), no entanto, anos depois, d significativa importncia a elas no romance de es-tria da Literatura do Norte.

    O primeiro captulo, que funciona, retoricamente, como um exrdio do romance, pretende as-sinalar a nacionalidade singular de Pernambuco no cenrio brasileiro e introduzir um protagonista de dimenses mitolgicas. As primeiras pginas da obra apresentam o Cabeleira como um vulto legendrio da histria pernambucana. Espcie de heri abortado (BARROSO, 1928, p. 11), o bandido comparado ao guerreiro espanhol medieval El Cid e ao benevolente ladro Robin Hood (TVORA, 1973, p.31-32).

    Apoiado em categorias deterministas para a composio e explanao dos personagens, Fran-klin Tvora explica o desenvolvimento do banditismo no Norte por motivos ligados raa, ao meio e ao momento a conhecida trade taineana, um dos assuntos valorizados e divulgados pela Escola de Recife. Nesse sentido, o Cabeleira apontado como o produto da conjuno de uma raa selva-gem (ndio) com uma raa civilizada (branco-europeu), afetado pela pobreza e pelo meio inspi-to e primitivo (serto e zona da mata pernambucana), num momento histrico ainda no alcanado pelo progresso.

    Retomados nos textos crticos do incio do sculo XX, estes fatores so assinalados por Gus-tavo Barroso, quando discorre sobre o imaginrio em torno dos cangaceiros nordestinos (BARRO-SO, 1928, p.11). Reiterando Stendhal e Taine e apoiado nos fatores scio-econmicos da regio, Barroso reconhece nos bandidos que examina em sua obra, dentre eles Lampio, um vigor prprio dos grandes heris, que inseridos numa realidade calamitosa, convertem-se em figuras que se afir-mam pela bravura, mas, sobretudo, pelo terror de vingadores (HOBSBAWN, 1975, p.54). Estes aspectos so observveis em vrias passagens do romance, mas sobretudo em uma, na qual o pai do

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    Cabeleira orienta o filho e os companheiros do bando, no sentido de driblarem as ameaas da justia que os persegue e planejarem um terrvel feito que a todos d que falar (TVORA, 1973, p.92).

    A disputa de poder com as autoridades pblicas patente. Para este heri s avessas, a no-breza se associa capacidade de demonstrar, por meio do horror, que os oprimidos tambm podem ser lderes e homens terrveis e respeitveis. O mameluco Cabeleira, alm de ser acompanhado pelo pai Joaquim e o pardo Teodsio, lidera bandos compostos tambm por outros malfeitores de fama, inclusive por negros fugidos (idem, ibidem, p. 91), o que refora a hiptese de que tais gru-pos criminosos podiam funcionar como atrativos aos excludos da ordem social e como meio de sobrevivncia e nobilitao pessoal. Os apelidos, que em geral definem a aparncia ou o tempera-mento dos bandidos, conferem a eles um realce de valentes e brutais, destacando-os do anonimato e os particularizando na memria popular. O romance faz meno a diversas alcunhas de criminosos que acompanharam Jos Gomes: Maracaj, Ventania, Jurema, Jacarand, Gavio, Miguel Mulati-nho e at mesmo de um Corisco (idem, ibidem, p.91-92), anterior ao que comps o bando de Lam-pio e ficou conhecido no sculo XX como o ltimo cangaceiro independente.

    Quando investiga e avalia as origens do cangao no Nordeste, desde o final do sculo XVIII, Maria Isaura Pereira de Queiroz (1997, p.59-64) aproveita muitas informaes contidas n O Cabe-leira, tomado por ela como um dos documentos oitocentistas sobre o assunto. Contudo, a autora acrescenta uma srie de outros fatores para as causas do fenmeno, tambm estruturais e morais, tais como: relaes pessoalizadas de trabalho, pautadas em valores como o favor, a honra e a grati-do, no interior de uma economia rudimentar cujo esprito de solidariedade no trabalho supera a hierarquia scio-econmica; calamidades pblicas, como a epidemia de varola e a grande seca de 1776-77 retratadas no romance, que vulnerabilizam a populao e provocam a ao desesperada de retirantes em busca de subsistncia nos arredores das zonas ridas; constantes conflitos entre paren-telas, envolvendo questes de poder e estatuto pessoal; crise da cana e do algodo, por causa da concorrncia norte-americana; modernizao e centralizao dos engenhos produtores de acar, levando muitas famlias de engenhos bangs decadncia; crescimento demogrfico associado falta de oportunidades locais de trabalho. A conjuno destes fatores proporciona o desenvolvimen-to de um cangao independente e organizado, acentuadamente a partir do final do sculo XIX, que encara a vida criminosa como profisso e meio de ganhar notabilidade, disputando poder com auto-ridades locais e sendo legitimado por elas como adversrio ou aliado altura. A autora alega que o fim deste tipo de banditismo est estritamente ligado mudana das condies econmicas da regi-o e das perspectivas de subsistncia da populao, somente nos anos 40 do sculo XX, depois da captura e morte de Lampio e com o progresso da industrializao, a expanso de novos centros urbanos e o fim da importao de mo-de-obra estrangeira.

    Para alm das controversas atrocidades deste cangao independente, que imperou no polgo-no das secas por mais de 50 anos e foi cantado pela tradio oral e explorado na fico regionalis-ta, a conexo com a tradio clssica, que no deixa de ter uma influncia de peso na formao dos escritores oitocentistas, tambm se faz presente no romance do XIX. Jos de Alencar, ao se voltar para a Antigidade grega e para os exemplos medievais, estabelece analogias entre o personagem Arnaldo e Hrcules ou os doze pares de Frana. Alm de fazer conexo com esta tradio, poss-vel que Alencar se tenha valido do interesse provocado pelas famosas verses portuguesas de narra-tivas medievais (Carlos Magno e dos 12 pares de Frana, Princesa Magalona, Joo de Calais, Ro-berto do Diabo, etc.), popularizadas pelo comrcio livreiro carioca no formato barato de folhetos, desde meados do sculo XIX (EL FAR, 1997, p.128-129). Alencar faz comparaes entre o seu protagonista e aqueles heris, em diversas passagens de O Sertanejo (ALENCAR, s/d, p.149-321).

    Representantes, ambos, do carter semi-brbaro ou semi-civilizado do ndio misturado ao branco, no serto hibridizado pelo espao selvagem e pelo espao urbanizado, Arnaldo e Cabeleira so heris relativamente semelhantes, ilustrados por perspectivas que ora se tangenciam, ora se dis-tanciam. Situados nesta regio limtrofe entre a civilizao e a barbrie o serto , os dois

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    personagens encontram-se em condies propcias para a ao dos fora-da-lei, ou dos indivduos que permanecem, socialmente, entre a ordem e a desordem (DAMATTA, 1997, p.320). Nessas cir-cunstncias, conseguem renunciar dura realidade imposta maioria, disputando poder de mando e liderana com senhores de engenho e latifundirios e deixando um singular registro do comporta-mento popular brasileiro na luta pela sobrevivncia na sociedade rural, patriarcal e escravocrata. Muitos outros romances brasileiros, a lembrar de Memrias de um sargento de milcias (1852-53), sob outras perspectivas, exploram esse tipo nacional, ora ambientado no campo, ora na cidade, mas constantemente identificado com as oscilaes da ordem social e econmica do Brasil.

    Idealizados como cavaleiros poderosos, valentes e temidos, envoltos na atmosfera mstica dos heris antigos e medievais, os protagonistas de O Sertanejo e d O Cabeleira so paradigmas do universo dos valentes sertanejos que disputam o poder oficial e convivem com a pecuria exten-siva e a produo aucareira dos engenhos. Arnaldo o que se poderia chamar de jaguno, ou, co-mo define M. Isaura Pereira de Queiroz, um cangaceiro subordinado (QUEIROZ, 1997, p.23-29), isto , o encarregado de um rico fazendeiro local. Cabeleira um cangaceiro independente (idem, ibidem), seguido por um bando organizado e que age livremente. Neste ponto, reside uma importan-te diferena entre eles: Arnaldo, embora um desajustado, nunca contraria a nobreza de carter dos bons cavaleiros e dono de uma liberdade e poder restritos, ligados s imediaes da fazenda Oiti-cica e s vontades do capito-mor Campelo, com quem possui pacto de gratido e solidariedade. Cabeleira corresponde mais ao modelo do anti-heri, goza de liberdade mais ampla e plenamente voltada s satisfaes dos seus desejos, o que resulta numa trajetria de horrores, trilhada por um homem nascido e criado sob as influncias nefastas de um pai de maldade natural2. Condizente com o projeto literrio de Franklin Tvora, atento s fontes populares do Norte, o personagem Ca-beleira tem o mrito de provir da tradio oral pernambucana e dos registros histricos locais. No discurso narrativo, sustentado por notas de rodap e paratextos, a fonte popular e o documento his-trico autorizam a mitificao do Cabeleira, ao modo dos heris medievais Robin Hood e El Cid, perenizados pela tradio oral e pela memria coletiva como exemplos de lderes patriticos, valen-tes e benevolentes. Um momento do romance que bem ilustra o entrelaamento da narrativa com a poesia popular o da primeira invaso da cidade pelos bandidos armados. Em pnico, a multido recifense foge dos assassinos que chegam matando indiscriminadamente e a fala do Cabeleira, nessa situao, documentada pela seguinte nota: Corram, minha gente/Cabeleira a vem;/Ele no vem s,/Vem seu pai tambm. (TVORA, 1973, p.38).

    A quadra indicada na nota de rodap, transformada em discurso direto no texto ficcional, de fato est em acordo com as formas mtricas orais (redondilhas menores, com rimas ABCB), vigen-tes na tradio potica nordestina (ABREU, 1999). Como se no bastasse a evidncia da tradio popular sobre a existncia do bandido, um excerto retirado das Memrias histricas da provncia de Pernambuco e transcrito na carta-posfcio ao Meu amigo, tambm pretende a confirmao da narrativa nos registros histricos. O autor recorre s duas fontes, a popular e a histrica, como meio de contornar os excessos da imaginao e dar maior veracidade ao romance, executando o que tanto apontou como faltas em Alencar. A carta-posfcio traz o registro do historiador Fernandes Gama, a respeito da passagem dos bandidos pela provncia de Pernambuco, no tempo do 34 gover-nador Jos Cezar de Menezes (1774) (TVORA, 1973, p.196; GAMA, 1977, p.320).

    No registro de Fernandes Gama, que cumpre o papel de suporte erudito nas pesquisas do romancista, o Cabeleira indicado como o pai, no como o filho. Nesse ponto, Tvora discorda da referncia histrica e se vale das trovas populares para apontar o erro do historiador: quase todas as trovas autorizam crer que a alcunha pertenceu ao filho, e s a este (TVORA, 1973, p. 196). A faceta folclorista do autor, que iria contribuir para a reunio de cantos populares de Slvio Romero (cf. TVORA, 1887), confia na tradio oral como fonte superior ao registro histrico. Por essa razo, os acontecimentos da narrativa so constantemente confirmados pelos dizeres das cantigas, que acompanham o enredo pelas notas de rodap. interessante frisar, ainda, que o historiador cita-

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    do na carta-posfcio, por sua vez, j se refere aos trovadores daquele tempo que compuseram cantigas alusivas vida, e morte do Cabeleira. Isto significa, em outras palavras, que antes da reco-lha de Franklin Tvora, Fernandes Gama, do ponto de vista da histria, j confere relevncia aos versos populares como fonte de conhecimento. O mesmo vale para Jos de Alencar, que desde Ira-cema, alega confiar na tradio oral como uma confirmao de dados histricos (ALENCAR, 2002, p.17-18). Assim, observa-se um ciclo, no qual gneros e fontes diversas interagem, de modo a con-jugar cultura popular, histria e belas letras.

    A aluso de Gama penetrao do Cabeleira no imaginrio popular e redeno do bandido logo antes de ser condenado morte, muito semelhante de Franklin Tvora que, no incio e na concluso do romance, encarrega-se de enaltecer a piedade e a punio crists. No entanto, quando reinventado no plano literrio, o histrico cangaceiro arrepende-se de seus crimes muito antes de estar diante da forca. Uma bondade latente, reprimida pelo pai na infncia do bandido, anunci-ada no quarto captulo do romance, quando o narrador constri um motivo afetivo e moral para o desvirtuamento do carter de Jos Gomes: ainda menino, dividido entre a educao terna e edifican-te da me Joana e os facinorosos ensinamentos do maldoso pai, corrompido por Joaquim Gomes, que com energia e virilidade superiores s foras da me, suplanta a influncia positiva que poderia ter formado um bom homem. Pelo vis determinista, o narrador salienta a vulnerabilidade da ndole natural, diante do poder da m educao (TVORA, 1973, p.61-62).

    Evidentemente, as informaes sobre a infncia do Cabeleira vm confirmadas pelos versos populares, que referenciam as recomendaes de Joana ao filho: Minha me me deu/ Contas pra rezar,/ Meu pai deu-me faca/ Para eu matar. (idem, ibidem, p.69).

    O reencontro do Cabeleira com o amor de infncia Luisinha, no quinto captulo, procura res-tabelecer o elo do bandido com a influncia benvola da me, cujo carter em muito se assemelha ao da moa com quem ele prometera, outrora, casar-se. interessante notar que, antes do reencon-tro idlico, o narrador contrape a fama do malfeitor cujo nome ecoou, com os uivos das feras carniceiras, do sul ao norte, do serto ao litoral ao anonimato de Luisinha, que do fundo da obs-curidade, que envolvia a sua existncia, [...] acompanhou com os olhos inundados em lgrimas as fases sucessivas que atravessou esse nome destinado a ter uma pgina enlutada na histria da p-tria (idem, ibidem, p.72). A carreira do crime, portanto, funciona como um caminho tortuoso para o destaque, o reconhecimento pblico e at mesmo para a celebrao histrica.

    Imediatamente aps reconhecer Lusa, que est prestes a ser mais uma de suas vtimas, o pro-tagonista se abranda, instantes depois de golpear brutalmente a me adotiva dela, Florinda, que des-falecida, no resistiria violenta pancada. Do ponto de vista da tradio clssica que, como vimos, valorizada na produo de Tvora, o momento poderia ser comparado ao do reconhecimento e da peripcia, elementos trgicos que desencadeiam mudana de fortuna no percurso do heri e que quando acontecem juntos, so considerados por Aristteles como dignos de suprema beleza na tra-gdia. No entanto, alguns defeitos de verossimilhana enfraquecem o episdio. A essa altura, equi-parado s feras indomveis da natureza e autor de inmeros crimes hediondos, o Cabeleira subi-tamente capaz de ser gentil e de sentir remorsos. Esta repentina mudana no personagem, que o encaminha rpido demais para o bem, ainda que justificada no passado, provoca estranhamento, na medida em que a imagem de bandido impiedoso, j impressa na memria do leitor, desconstruda. O heri abortado, nesse momento, produz uma decepo s avessas. Outros defeitos de verossi-milhana aparecem nos episdios subseqentes, quando Luisinha salva do ataque dos homens do bando pelo Cabeleira e beijada por ele diante do corpo desfalecido de Florinda. O amor renasce no casal, sem haver tempo suficiente ou motivo significativo para justificar o improvvel perdo de Lusa para o assassino de sua me. No dcimo quarto captulo, a regenerao total do protagonista representada pelo momento em que Luisinha consegue fazer o Cabeleira orar, o que concretiza a conexo com os ensinamentos de Joana, que lhe dera contas pra rezar, quando menino.

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    A preocupao de Franklin Tvora em desenvolver um enredo de procedncia folclrica na prosa de fico, conciliado histria, finalidade moralizadora e ao cavalheirismo medieval, de-monstra a tentativa de o autor gerenciar vrias estratgias de composio ao mesmo tempo. Interes-sado em propor novos motes nacionalistas para o romance com o mestio, o folclore e a relao determinista de tipos brasileiros com as regies selvagens do Norte o autor ainda cede s con-venes do gnero e recai em motivos amorosos e moralizantes. Talvez pelas dificuldades em lidar simultaneamente com as referncias romanescas j estabelecidas e os parmetros novos de produ-o, o narrador se desculpe perante o leitor quando descreve as cenas mais violentas da trama, ao passo que o autor, na carta-posfcio, explica as razes que levaram a musa do povo a conservar a histria de um bandido no to cruel, ou nem de todo desprezvel (idem, ibidem, p.104-196).

    Quando se apia em informaes da tradio oral como argumento de veracidade, o autor po-de ter selecionado aquelas que confirmam a trajetria moralizante que ele deseja fixar no romance. No entanto, o mesmo argumento pode ser frgil, se considerarmos que a musa do povo pode can-tar diferentes verses ou pontos de vista de uma mesma histria. As proezas de um malfeitor cle-bre, por exemplo, podem ser tanto elogiadas, como desprezadas. Se tomarmos como parmetro de comparao o contedo das narrativas de cordel, salvo as diferenas de tempo e de materialidade em relao s coletas de Tvora, podemos apontar o contra-exemplo de Lampio. O cangaceiro, pernambucano como o Cabeleira e tambm famoso pela crueldade e coragem, tanto louvado e regenerado, como temido e depreciado nos folhetos. Na segunda metade do sculo XIX, quando o romance O Cabeleira publicado, ainda no est constitudo o mito do cangao, que ganharia fora somente na dcada de 50 do sculo XX, momento em que o banditismo no Nordeste j fez histria e a imagem do cangaceiro associada positivamente nacionalidade, pela elite intelectual (QUEIROZ, 1997, p.65-68). Em geral, o mesmo povo que canta, admirado e reverente, a coragem e a liderana dos grandes bandidos, vtima ressentida dos mesmos.

    Numa direo que se declara diferente da de Jos de Alencar, as concepes de observao e realismo pregadas por Franklin Tvora para a composio do romance, desde as Cartas a Cincina-to, refletem uma slida associao da verossimilhana documentao histrica. Nesse sentido, justifica-se o fato de o autor ver com bons olhos O Guarani, respaldado nos cronistas coloniais, muito embora o indgena ali representado esteja maximamente idealizado, aspecto to condenado por Tvora entre os defeitos narrativos de Alencar. Na realizao do projeto ficcional da Literatu-ra no Norte, sobretudo em O Matuto e Loureno, fica evidente a opo predominante de Tvora pela crnica histrica romanceada (ALMEIDA, 1999, p.88).

    A problemtica conciliao de um nascente realismo naturalista com a retomada do modelo histrico-romntico de um Walter Scott ou um Fenimore Cooper, ainda esteios paradigmticos para Franklin Tvora e outros seus contemporneos (TVORA, 1872, p. 147), gera, nO Cabeleira, uma narrativa em que se tenta conjugar elementos emprestados da cincia ao pedagogismo do enredo histrico. Do ponto de vista naturalista, cumpre-se o objetivo de apresentar ao leitor de romances o perfil de um criminoso que ilustra um estudo cientfico de caso, na sociedade sertaneja. Contudo, o predomnio da preocupao com o enredo edificante prescinde deste propsito.

    Do ponto de vista histrico, resgatam-se fatos memorveis do cenrio pernambucano, no s-culo XVIII. A ao, constantemente sinalizada por datas e dados histricos, comea em 1773, quando a assim chamada vila do Recife, poca j desligada de Olinda e instituda capital da provncia, era governada por Manuel da Cunha de Menezes. Trs anos depois, somando-se epi-demia de varola, uma seca rigorosa assola a regio, no momento em que a vila j governada por Jos Csar de Menezes. O Cabeleira, considerado pelo governador o responsvel por danos maiores que a fome, a peste e a guerra (TVORA, 1973, p. 131), depois de invadir a cidade, cometer su-cessivos crimes, reencontrar Luisinha e separar-se do bando, torna-se foragido da justia, a qual nomeia o capito-mor Cristvo de Holanda Cavalcanti o comandante da volante em busca do fugi-tivo. O dcimo segundo captulo, que no foge regra de suspender a curiosidade do leitor sobre o

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    paradeiro do bandido para trazer informaes de natureza histrica, encarrega-se de registrar a ima-gem do oficial de polcia, que depois celebrado pela memorvel captura do criminoso e por isso tambm ganha estatuto de heri. No contexto em que o capito-mor Cavalcanti primeiramente apresentado, o narrador faz uma especial descrio da cidade de Goiana, lugar da infncia de Fran-klin Tvora e local privilegiado da ao dos outros romances da srie (idem, ibidem, p.140-141).

    No elogio Goiana, fica evidente a celebrao dos aspectos que caracterizam, simultanea-mente, os avanos materiais e a simplicidade do modo de vida local. O vislumbre positivo do pro-gresso, contraditrio em relao ao discurso de resgate da pureza dos costumes primitivos, aparece desde o prefcio, como na apologia feita ao desenvolvimento da Amaznia, e reforado na con-cluso da narrativa, quando o narrador define a pobreza como elemento de degradao social e elogia a riqueza como um dos primeiros bens da vida (idem, ibidem, p.192-193).

    Produto, em parte, do acentuado atraso no processo de civilizao do Norte, o banditismo e outros problemas sociais e econmicos poderiam ser solucionados com o progresso da regio, a abolio do regime escravocrata, politicamente mais combatido a partir da dcada de 70, e a erradi-cao da pobreza. Como maom e um dos pivs da Questo religiosa (1872), Tvora critica o clero e seus dissimulados interesses polticos camuflados pelo ensinamento catlico da pobreza voluntria (idem, ibidem, p.194). Tal doutrina religiosa aparece resignificada na tpica do pobre feliz que aparentemente colhida da formulao presente no pensamento rousseauniano. Esta t-pica pode ser identificada com a pureza primitiva do roceiro ou do homem do campo, defendida pelo autor como mote na literatura nacional e cantada por poetas como Juvenal Galeno e Fagundes Varela, ambos apreciados pelo romancista.

    Se as inocncias e a vida simples das regies marginais cidade so indicadas como temas dignos de grandes poetas, dentre os quais Tvora destaca Schiller (TVORA, 1880, p.375), afinal, em que medida o progresso se coloca como vantagem para o aperfeioamento da sociedade ou co-mo deturpador da pureza dos costumes? Esta pureza, inevitavelmente associada ao primitivismo e, portanto, falta de instruo, louvvel ou incmoda?

    A explicao para os diferentes pontos de vista de Franklin Tvora talvez esteja no lugar re-servado a cada um dos seus discursos. Na poesia e na prosa literria, os costumes populares perma-necem idealizados e difceis de serem conciliados s discusses poltico-sociais. Se acrescentarmos o fato de que o autor acredita que o romancista moderno deve ser historiador, crtico, poltico ou filsofo (TVORA, 1903, p.94), tornam-se mais compreensveis as divergncias de argumentos no interior deste gnero literrio.

    No plano da criao ficcional de O Cabeleira, Tvora concede licena participao popular, discriminada no universo civilizado e erudito, e apresenta, para alm das notas de rodap e/ou paratextos que se ocupam da matria etnogrfica, um desafio, como os que so to comuns nos sertes do Norte, e, muitas vezes, pela facilidade das rimas e originalidade dos conceitos, chega[m] a oferecer versos que podem figurar entre os mais primorosos monumentos da literatura natal (TVORA, 1973, p.167). Provavelmente listado entre as recolhas do autor, o desafio que desta vez no aparece legitimado por fonte folclrica no p das pginas, trazido para o corpo da narrativa e cantado por um escravo e um caboclo do roado de Felisberto, tendo como mote a figura de Marco-lino, que junto a um miliciano, est caa do Cabeleira e mais tarde ser o delator do ltimo para-deiro do bandido. As estrofes so entremeadas por trechos de narrao que no perdem de vista os improvisadores das proposies e das rplicas (idem, ibidem, p.166-168). No embate prprio do desafio, os estigmas raciais aparecem como argumentos de disputa (ofensa e defesa). Aparentemen-te em posio no preconceituosa ou racista na esfera artstica, o narrador reconhece o talento de negros e mestios que maciamente compem o povo brasileiro na improvisao de versos, o que no necessariamente se traduz na sua opinio pblica e/ou crtica.

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    Quatro anos depois da publicao do romance, durante a apreciao do poema Dirio de L-zaro, de Fagundes Varela, Tvora sugere que o sentimento virgem e espontneo do povo interes-sa arte, mas no as incorrees populares, inadmissveis para o escritor culto (TVORA, 1880, p.373). Esta opinio entra em choque com a diretriz cientfica de se manter o contedo das coletas folclricas ileso da interferncia erudita e desmistifica a idealizao da poesia popular como representante irrestrita da alma nacional. Assim, podemos supor que na execuo do seu projeto literrio, Tvora prope-se a narrar a histria folclrica do Cabeleira sem as incorrees da lin-guagem popular, reparadas na coleta e registro de versos orais, por sua vez transpostos para uma prosa de fico que se deseja nacional, inspirada no povo, mas fixada na literatura erudita em lin-guagem castia.

    A questo se coloca mais complexa, quando na esfera sociolgica, o discurso sobre negros e ndios de excluso, pois Franklin Tvora compactua com a tese do branqueamento defendida por Slvio Romero. A passagem de O Cabeleira que descreve Rosalina, mulata ardente, caprichosa, cheia de vivacidade e energia, pode reforar este argumento, quando a mestia mencionada como um tipo que est destinado a desaparecer dentre ns com o correr dos anos, mas que h de ser sempre objeto de tradies muito especiais no seio da sociedade brasileira (TVORA, 1973, p.104).

    A previso de desaparecimento do tipo mulato e/ou mestio da sociedade brasileira vlida tambm para as manifestaes populares, que aos olhos folcloristas, devem ser registradas e valori-zadas pela intelectualidade o quanto antes, para conhecimento da posteridade branca que permane-cer e, desse modo, ter acesso arqueologia cultural que a formou. Percebe-se que os anseios pela instruo e pelo progresso material e tnico da civilizao, defendidos nos planos poltico, eco-nmico e social a partir de fundamentos racistas e evolucionistas, so minimizados diante do proje-to artstico de salvao da cultura popular ou do ideal romntico de representao da naturalida-de popular por meio da poesia e da literatura eruditas.

    Nos romances congneres de Alencar, como O Tronco do ip, Til e O Sertanejo, verifica-se semelhante idealizao da cultura popular, porm, os valores da civilizao so decisivamente rejei-tados como deturpadores dos costumes. Descomprometido com as normas neo-realistas (ROME-RO, 1879) de observao requeridas por Tvora e pela crtica naturalista, Alencar permanece mais vontade com as convenes do romance e, portanto, menos pressionado a contestar as formas ro-mnticas do gnero. Com isso, suas obras dispensam os choques de correntes que aparecem nas produes de Franklin Tvora. Mesmo quando utiliza fontes orais na sua fico, certificadas ou no pela coleta folclrica, Alencar assume a reinveno da matria popular no mtodo criativo do ro-mance, tcnica que apesar de negada por Tvora, tambm praticada por ele.

    Ao contrrio de Alencar, o seu rival procura afinar-se s novas idias. Por isso, a produo d O Cabeleira depara-se com o momento de busca por novos elementos nacionais, nova crtica e novos parmetros para a criao literria, projetando a voz do pensamento nortista e sua vontade de ganhar visibilidade. Do ponto de vista histrico, a concentrao do romancista nos anos setecentos de Pernambuco homenageia a fase urea da economia aucareira do Norte no Brasil, antes da vinda da Famlia Real e do desenvolvimento da produo de caf, no Sul. Com o intento de dar destaque cana-de-acar, portanto, o autor confere dimenso mitolgica a ela, como vegetao abenoada que acoberta o Cabeleira antes de ele ser encontrado pela volante policial (TVORA, 1973, p. 174). O heri da narrativa , por fim, protegido pela folhagem da planta que reserva promessa de riqueza ao imprio e capaz de adoar, como seio maternal, os ltimos instantes de um filho da liberda-de antes da priso (idem, ibidem, p.182). As trovas populares do clebre testemunho da captura do bandido no canavial, onde cada p de cana/ era um p de gente (idem, ibidem, p.175)3.

    O romance, afinal, promove uma campanha a favor do Norte como lugar privilegiado econo-micamente e como fora centrpeta de brasilidade. Ciente de que a divulgao de idias literrias e polticas s ganharia projeo nacional a partir da Corte, Franklin Tvora lana o seu projeto estra-

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    tegicamente dois anos depois de ali se instalar, por meio do prefcio do romance primognito de uma srie que traria memrias, munies e tradies da sua regio natal.

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    1 Cristina BETIOLI RIBEIRO, Prof. Dr. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Departamento de Teoria e Histria Literria (DTL/IEL) E-mail: [email protected] 2 O experimentalismo cientfico da segunda metade do sculo XIX impulsionou pesquisas como as do italia-no Cesare Lombroso (1835-1909), que na obra O Homem criminoso (1875), desenvolve a teoria dos crimi-nosos natos. A hiptese da associao entre fisiologia e criminalidade pode ter influenciado a construo do personagem Joaquim Gomes, pai do Cabeleira, e do protagonista Loureno (de O Matuto e Loureno). 3 Esses versos foram reaproveitados na tradio literria por Manuel Bandeira, no poema Trem de ferro, que por sua vez foi musicado por Villa Lobos e Tom Jobim.