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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
Priscilia Sparapani
O princípio da vedação ao retrocesso social e sua aplicação ao regime jurídico dos servidores públicos
DOUTORADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC- SP
Priscilia Sparapani
O princípio da vedação ao retrocesso social e sua aplicação ao regime jurídico dos servidores públicos
DOUTORADO EM DIREITO
Tese apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Professor Livre-Docente Sílvio Luís Ferreira da Rocha.
SÃO PAULO 2013
Banca Examinadora
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Ao meu pai Mário, amigo, incentivador, querido, conselheiro, meu porto seguro; ouvinte de todas as horas, a quem sempre me socorro nos momentos em que preciso de apoio, carinho e compreensão, e que contribuiu com sua experiência profissional para este trabalho. À minha mãe Márcia, amiga, companheira, incentivadora, dedicada, zelosa, querida, fonte de amor e carinho, Mãe no melhor sentido da palavra, “cuore” da minha vida. À minha irmã Letícia, por ser minha alma companheira, confidente e cúmplice, que me conhece tanto e tão bem só pelo olhar, e que me apoia incondicionalmente; nosso compartilhar é muito especial. À minha sobrinha Laura, que veio trazendo muito amor, alegria e luz para todos. Tenho orgulho de vocês e de fazer parte desta família abençoada. Amo vocês! Obrigada pelo apoio durante toda esta jornada.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu orientador Prof. Dr. Silvio Luís Ferreira da Rocha, exemplo de professor e de ser humano. Obrigada pelos preciosos ensinamentos e observações sempre pertinentes, que muito contribuíram para a elaboração da presente tese. É uma imensa honra tê-lo como orientador em mais essa etapa.
Agradeço ao Prof. Dr. Celso Antônio Bandeira de Mello, sempre o maior mestre de todos nós, que inspira seus alunos a ter verdadeira paixão pelo Direito Administrativo e a trilhar pelo caminho da justiça, da igualdade, da ética. Obrigada pela oportunidade e raro privilégio de cursar o doutorado sendo sua aluna.
Aos Professores Doutores Dinorá Adelaide Musetti Grotti, João Antunes dos Santos Neto, Márcio Cammarosano e Sérgio Ferraz, pela honra de poder ser arguida por tão grandes mestres do Direito Administrativo.
Ao Carlos Eduardo Batalha da Silva e Costa, por quem tenho profunda amizade, respeito e consideração. Obrigada pelos incontáveis almoços e conversas para a troca de ideias a respeito das muitas dúvidas que tive durante a elaboração desta tese. Aprendi muito com você! Modelo de professor dedicado e comprometido com a profissão e com os seus alunos. Exemplo de humildade, generosidade e altruísmo para com todos a sua volta. Só tenho uma palavra para expressar toda a sua atenção comigo: gratidão.
À Ivani Contini Bramante, pelas sugestões e ideias muito bem-vindas para a melhora do trabalho e pela disposição em discutir um tema que nos é caro: o regime jurídico do servidor público, seus direitos e garantias.
Ao Marcelo Souza Koch Vaz Döppenschmitt, pela amizade e pela troca, nessa difícil caminhada, que é a elaboração da tese de doutorado.
Aos meus avós paternos Mário e Rosa, que, embora estejam no plano espiritual, continuam mandando suas vibrações de luz e carinho para todos nós, seus familiares. Ao meu avô materno Eduardo, que também virou um anjo de luz para ajudar a iluminar meu caminho.
À minha avó materna Eurides, 90 anos de força e vivacidade, por ter sido a minha primeira professora não só das letras e dos números, como também uma grande educadora da vida. E ao Miguel, avô de coração, pela sua bondade e grandeza de espírito.
Às amigas queridas Luciana Helena Brancaglione, Cecília Beatriz Soares de Almeida e Thatyana Antonelli Marcelino Brabo Patuto. Obrigada pelo apoio e incentivo sempre!
Às monitoras Vanessa Evelyn e Vanessa Galinari, por toda a competência com que desempenharam a atividade de monitoria, possibilitando que eu tivesse toda a confiança e suporte necessários para elaborar o presente trabalho com maior dedicação.
RESUMO
SPARAPANI, Priscilia. O princípio da vedação ao retrocesso social e sua aplicação ao regime jurídico dos servidores públicos. 2013. 331 f. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.
O objetivo desta tese consiste em apresentar o estudo do princípio da vedação ao retrocesso social e sua aplicação ao regime jurídico dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos. Busca-se compreender as mudanças instituídas nos direitos e garantias desses servidores, como decorrência de uma série de emendas constitucionais promulgadas que alteraram profundamente seus direitos e garantias. Com esse intuito, inicia-se o exame do tema, tecendo uma exposição sobre as diversas formas que o ente estatal assumiu ao longo do seu processo evolutivo. Destaca-se que referida exposição não envolve somente aspectos jurídicos, mas adentra, igualmente, em aspectos sociais, políticos e econômicos; nesse viés, parte-se do contexto maior dos modelos históricos de Estado de Direito e a construção do Direito Administrativo que acompanha a evolução do Estado até chegar ao atual estágio do Estado brasileiro neossocial e o Direito Administrativo contemporâneo em terras pátrias. Após, passa-se ao exame da vedação ao retrocesso social como princípio do Estado de Direito: primeiro no direito estrangeiro, analisando-se o pensamento doutrinário e jurisprudencial sobre o assunto; depois, sua presença no ordenamento jurídico pátrio, de modo implícito na Constituição Federal de 1988; incluindo análise dos julgados das Cortes Superiores de Justiça brasileiras acerca da matéria. Por fim, analisa-se a aplicação do primado do não retrocesso social ao regime jurídico dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos. Aludida análise é feita, primeiramente, por meio da exposição das mudanças todas em relação à garantia da estabilidade, do regime remuneratório e do regime previdenciário dos servidores públicos. Em seguida, o exame crítico do tema é feito por meio da divisão do assunto em cinco pontos principais: o papel do Supremo Tribunal Federal no controle dos direitos e garantias dos servidores públicos; a importância das “cláusulas pétreas” na democracia e a proteção aos direitos e garantias dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos; o princípio da vedação ao retrocesso social e a proteção que confere aos direitos e garantias dos servidores públicos; o regime jurídico do servidor público ocupante de cargo efetivo e a proteção do direito adquirido social; e, também, o princípio da vedação ao retrocesso social e a equivalência jurídica. O estudo acadêmico é justificado pela importância do assunto, uma vez que o tema da vedação ao retrocesso social é ainda novo e bastante polêmico, especialmente em virtude da própria divergência da doutrina quanto ao fundamento, conteúdo e alcance do princípio, o que reflete na pequena quantidade de decisões judiciais que envolvem o princípio da vedação ao retrocesso social nos Tribunais Superiores. Como método de pesquisa foram utilizados neste trabalho tanto o método dedutivo quanto o indutivo. Por intermédio da análise, fundamentalmente, de obras doutrinárias e, complementarmente, de jurisprudência, em especial do Supremo Tribunal Federal, foram abordadas as questões que envolvem o assunto. E, diante de todo o estudo, conclui-se que as alterações no regime jurídico do servidor público não ofendem o princípio da vedação ao retrocesso social se observarem a equivalência jurídica e a justa repartição de recursos. E, nesse passo, o não retrocesso social deve ser concebido como um princípio garantidor do nível mais elevado de direitos alcançado pela comunidade de servidores públicos ocupantes de cargos de provimento efetivo. Palavras-chave: Estado de Direito. Direito Administrativo. Vedação ao Retrocesso Social. Direito Adquirido Social. Regime Jurídico do Servidor Público Efetivo. Equivalência Jurídica.
ABSTRACT
SPARAPANI, Priscilia. O princípio da vedação ao retrocesso social e sua aplicação ao regime jurídico dos servidores públicos. 2013. 331 f. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.
This thesis objective is to present the study of the principle of sealing the social regression and its application to the legal framework of public officeholders effective, and understand the changes imposed on the server’s rights and guarantees as a result of a series of constitutional amendments enacted that fundamentally altered their rights and guarantees. With this in mind, there will be a subject examination, a presentation will be built, based on the various ways that the state entity has taken over its evolutionary process. It is noteworthy that such exposure involves not only legal aspects, but social, political and economic with the same relevance; that bias is part of the larger context of historical models of rule of law and the construction of Administrative Law that accompanies evolution of the state to get to the current stage of the Brazilian neo-contemporary social and Administrative Law on land homelands. After passes to the examination of the social backlash as sealing principle of the rule of law: first in foreign law, analyzing the doctrinal and jurisprudential thought about it, then their presence the national laws, so implicit in the Federal Constitution 1988, including analysis of trial of Brazilian High Courts of Justice on the matter. Finally, we analyze the application of the rule of no social backlash to the legal regime of public officeholders effective. Alluded analysis is done, first, by exposing all of the changes in relation to ensuring the stability of the remuneration system and the pension system for civil servants. Then the critical examination of the subject is done by dividing the subject into five main points: the role of the Supreme Court to control the rights and guarantees of civil servants, the importance of “immutable clauses” in Democracy and Human Rights Protection and guarantees of public officeholders effective, the principle of sealing and protecting the social backlash that confers the rights and guarantees of civil servants, the legal occupant of the public servant position and effective social protection of vested rights, and also The sealing principle of the social backlash and legal equivalence. The academic study is justified by the importance of the issue, since the issue of sealing the social backlash is still new and quite controversial, especially on account of the divergence of doctrine as to the basis, content and scope of the principle, which reflects the small amount of judicial decisions involving the principle of sealing the social regression in the Superior Courts. As a research method was used in this study both the deductive method, as the inductive. Through the analysis, primarily of doctrinal works and in addition, jurisprudence, particularly the Supreme Court, were discussed the issues surrounding the subject. And before all the study, it is concluded that the changes in the legal regime of public servants not offend the principle of sealing the social backlash observe the equivalence legal and fair distribution of resources. And, in this step, the social backlash should not be conceived as a principle guaranteeing the highest level reached by the community rights of public servants occupying positions of effective provision.
Keywords: Rule of law. Administrative Law. Sealing the Social Rewind. Acquired Social Law. Legal Regime of Public Effective. Legal equivalence.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11
1. MODELOS HISTÓRICOS DE ESTADO DE DIREITO E A CONSTRUÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO ........................................................................................... 15
1.1 Considerações iniciais ................................................................................................ 15
1.2 O Estado liberal: o absenteísmo estatal ...................................................................... 17
1.2.1 A Revolução Francesa como fonte, o Estado de Direito como ponto de partida do Direito Administrativo e o papel do Conselho de Estado francês ............................................................................................................ 20
1.2.2 A “separação de poderes”, a contribuição da doutrina e a formação do Direito Administrativo ................................................................................... 22
1.2.3 A crise do liberalismo: a insustentabilidade do laissez-faire, laissez- -passer ............................................................................................................ 26
1.3 O Estado social: intervencionismo e justiça social .................................................... 28
1.3.1 O Estado social e o Direito Administrativo ................................................... 32
1.3.1.1 A constitucionalização do Direito Administrativo .......................... 35
1.3.2 A crise do Estado social .................................................................................... 39
1.4 O Estado pós-social .................................................................................................... 40
1.4.1 Estado neoliberal ............................................................................................ 41
1.4.2 O neoliberalismo e o Direito Administrativo ................................................. 46
1.4.3 A crise do neoliberalismo .............................................................................. 48
1.5 O Estado pós-neoliberal: a crise mundial e a proposta de resgate do Estado Social e Democrático de Direito .............................................................................................. 49
1.5.1 O Direito Administrativo no Estado pós-neoliberal ...................................... 53
1.6 O Estado brasileiro contemporâneo ........................................................................... 56
1.6.1 Considerações preliminares ........................................................................... 56
1.6.2 O Estado social na Constituição de 1988 ....................................................... 57
1.6.3 O Estado neoliberal ........................................................................................ 58
1.6.4 O Estado brasileiro neossocial ....................................................................... 60
1.6.5 O atual estágio do Direito Administrativo brasileiro ..................................... 63
2. A VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL COMO PRINCÍPIO DO ESTADO DE DIREITO .............................................................................................................................. 72
2.1 Princípio da vedação ao retrocesso social: pensamento estrangeiro acerca do tema . 74
2.1.1 Alemanha ....................................................................................................... 74
2.1.2 Itália ............................................................................................................... 80
2.1.3 Portugal .......................................................................................................... 85
2.2 Brasil ............................................................................................................................. 101
2.2.1 Pensamento doutrinário a respeito do tema ................................................. 101
2.2.2 Fundamentos constitucionais do princípio da vedação ao retrocesso social ............................................................................................................ 130
2.2.2.1 A progressiva ampliação dos direitos fundamentais da sociedade ....................................................................................... 131
2.2.2.2 A paulatina redução das desigualdades regionais e sociais ........... 135
2.2.2.3 A construção de uma sociedade marcada pela solidariedade e pela justiça social ........................................................................... 136
2.2.2.4 O direito adquirido social e o princípio da vedação ao retrocesso social .............................................................................................. 137
2.2.2.4.1 A controvérsia em torno do conceito de direito adquirido ........................................................................ 137
2.2.2.4.2 O direito adquirido individual e social ........................... 141
2.2.2.4.3 Direito adquirido individual e social em face de emenda constitucional .................................................... 147
2.2.2.4.4 Direito adquirido individual e social: as diferentes dimensões de proteção ................................................... 154
2.2.2.5 Os tratados internacionais e a adesão brasileira ao princípio da vedação ao retrocesso social .......................................................... 156
2.2.3 Entendimento jurisprudencial a respeito do tema ........................................ 166
3. O PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL E SUA APLICAÇÃO AO REGIME JURÍDICO DO SERVIDOR PÚBLICO ..................................................... 179
3.1 Os servidores públicos: terminologia e classificação .............................................. 179
3.2 Regime estatutário ou institucional do servidor público .......................................... 182
3.3 Regime constitucional dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos ........ 189
3.3.1 Alterações instituídas no tocante à estabilidade, ao sistema remuneratório e ao regime previdenciário ........................................................................... 189
3.3.1.1 Garantia da estabilidade ................................................................. 190
3.3.1.1.1 Efeitos decorrentes da estabilidade: direitos à reintegração, à disponibilidade, ao aproveitamento e à recondução ..................................................................... 198
3.3.1.2 Sistema remuneratório dos servidores públicos ............................ 201
3.3.1.2.1 Normas constitucionais pertinentes à remuneração ou vencimento ..................................................................... 203
3.3.1.2.2 Regime de subsídios ....................................................... 205
3.3.1.2.3 Normas comuns à remuneração e aos subsídios ............. 208
3.3.1.3 Aposentadoria e proventos ............................................................ 217
3.3.1.3.1 O regime previdenciário e as Emendas Constitucionais 20/1998, 41/2003 e 47/2005 ........................................... 221
3.3.1.3.2 Emenda Constitucional 20 de 1998 ................................ 222
3.3.1.3.3 Emenda Constitucional 41 de 2003 ................................ 233
3.3.1.3.4 Emenda Constitucional 47/2005 ..................................... 241
3.4 O princípio da vedação ao retrocesso social e o regime jurídico constitucional do servidor público ocupante de cargo efetivo ............................................................. 244
3.4.1 O papel do Supremo Tribunal Federal no controle dos direitos e garantias dos servidores públicos ................................................................................ 245
3.4.1.1 A tese dos princípios – os argumentos de princípio e os argumentos de política ................................................................... 246
3.4.1.2 O emprego de argumentos de política pelo Supremo Tribunal Federal e a teoria da reserva do possível ....................................... 251
3.4.2 A importância das “cláusulas pétreas” na democracia e a proteção aos direitos e garantias dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos .. 259
3.4.3 O princípio da vedação ao retrocesso social e a proteção que confere aos direitos e garantias dos servidores públicos ................................................. 272
3.4.4 O regime jurídico do servidor público ocupante de cargo efetivo e a proteção do direito adquirido social ............................................................. 279
3.4.5 O princípio da vedação ao retrocesso social e a equivalência jurídica ........ 288
CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 302
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 311
11
INTRODUÇÃO
O presente estudo procura refletir sobre o princípio da vedação ao
retrocesso social aplicado ao Direito Administrativo, em especial ao regime jurídico dos
servidores públicos ocupantes de cargos efetivos. A análise do tema mostra-se
relevante, sobretudo após o advento de várias emendas constitucionais que introduziram
profundas alterações nos direitos e garantias dos servidores, em fins do século XX e
começo do atual século XXI. Assim, ante esse cenário de mudanças, o exame do
assunto buscará verificar se referidas modificações são legítimas (justificadas) perante o
Estado Social e Democrático de Direito agasalhado pela Constituição Federal de 1988,
ou se ferem o mandamento do não retrocesso social.
Para tanto, a tese situará a temática não somente no campo jurídico, mas
também no domínio social, político e econômico mundial da época em que as mudanças
foram realizadas, uma vez que o panorama sociopolítico e econômico-financeiro
exerceu forte influência nas transformações referentes aos direitos e garantias dos
servidores públicos.
Nesse viés, no capítulo inicial – por intermédio do exame dos modelos
históricos de Estado de Direito e a construção do Direito Administrativo que
acompanha a evolução do ente estatal –, procurar-se-á contextualizar as alterações
instituídas nos modelos de Estado e como tais mudanças repercutiram no Direito
Administrativo.
Nesse passo, será visto que o Direito Administrativo sofre o influxo
direto das alternâncias de modelos de Estado. De tal modo, a abordagem do assunto
começará a partir do Estado liberal, como modelo estatal em que há o nascimento do
Estado de Direito como ponto de partida do Direito Administrativo, até chegar ao
Estado pós-neoliberal no cenário internacional, na crise que acomete referida forma de
Estado e qual o estágio do Direito Administrativo nesse contexto.
Além disso, a análise também terá como meta trazer a lume o Estado
Brasileiro Contemporâneo neossocial e o atual estágio do Direito Administrativo pátrio,
12
mostrando-se, por intermédio de uma exposição geral, as mutações ocorridas nesse
ramo do Direito para uma melhor compreensão e contextualização da temática referente
às mudanças no regime jurídico dos servidores públicos.
Com o objetivo de analisar o conteúdo do princípio da vedação ao
retrocesso social, torna-se necessário proceder ao exame do referido princípio no
Capítulo 2 como um dos mandamentos do Estado de Direito.
Dessa forma, sem olvidar que a prioridade é o estudo do princípio do
não retrocesso social no ordenamento jurídico pátrio, revela-se importante conhecer o
pensamento doutrinário e jurisprudencial de outros países a respeito do aludido
primado, principalmente porque a proibição de retrocesso social foi mais bem
desenvolvida em outros ordenamentos, e, desse modo, ao ser acolhida pela doutrina
nacional, carrega consigo um conteúdo fortemente influenciado pelas ideias de
estudiosos de outras nações, em especial da doutrina e jurisprudência portuguesas,
consoante se exporá. Contudo, de igual modo, não se poderá deixar de trazer à baila a
doutrina alemã e italiana acerca do tema.
De tal maneira, após a análise do direito estrangeiro, conhecer-se-á o
pensamento da doutrina brasileira a respeito do citado princípio e o âmbito de sua
aplicação, para adotar o posicionamento que defende a aplicação ampla do não
retrocesso social, inclusive no plano constitucional. Afora isso, enfrentar-se-á o desafio
de estabelecer os fundamentos constitucionais do princípio do não retrocesso social com
a finalidade de evidenciar sua presença como princípio implícito na Lei Fundamental.
E se encerrará o segundo capítulo com o exame da jurisprudência dos
Tribunais Superiores pátrios (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça)
no intuito de demonstrar que ainda é pequeno o número de julgados nessas Cortes de
Justiça, que utilizam, na sua argumentação, o princípio da proibição de retrocesso
social, ou mesmo que o invoque como primado a ser aplicado para a solução de um caso
sub judice.
13
Após essa abordagem, toda a atenção do presente trabalho voltar-se-á,
no Capítulo 3, para o princípio da vedação ao retrocesso social e sua aplicação ao
regime jurídico dos servidores públicos.
De início, será realizado um exame mais detalhado sobre as mudanças
trazidas pelas emendas constitucionais que estabeleceram modificações nos direitos e
garantias fundamentais dos servidores públicos, quais sejam: na garantia da
estabilidade, no regime remuneratório e no regime previdenciário. Nesse ponto do
último capítulo, o método utilizado é o indutivo, em que serão analisadas pontualmente
as alterações concernentes a tais direitos e garantias, o que, consequentemente,
possibilitará divisar um prisma mais particularizado de cada item estudado. O intento é
o de mostrar as mudanças referentes aos citados direitos e garantias fundamentais
instituídas em decorrência de uma série de emendas constitucionais.
Com base nesse estudo, abre-se caminho para tratar de cinco pontos
importantes acerca da aplicação do princípio da vedação ao retrocesso social no que diz
respeito aos direitos e garantias dos servidores públicos efetivos.
O primeiro ponto é representado pela análise do papel do Judiciário,
particularmente do Supremo Tribunal Federal, no controle dos direitos e garantias dos
servidores, e a tendência dessa Corte em utilizar argumentos político-econômicos no
lugar de proceder a uma argumentação jurídica para fundamentar seus julgados. Nessa
análise, tratar-se-á de uma temática especialmente ligada ao assunto em pauta, qual seja
a teoria da reserva do possível, que em muitas oportunidades entraria em conflito com o
princípio da vedação ao retrocesso social. Assim sendo, diante da importância do tema,
um tópico, ainda que breve, será dedicado à matéria.
Prosseguindo no desenvolvimento do capítulo, o ponto seguinte
abordará a relevância das “cláusulas pétreas” na democracia e a proteção que emana das
aludidas cláusulas em relação aos direitos e garantias dos servidores públicos ocupantes
de cargos efetivos.
E na sequência, adentrando mais efetivamente na aplicação do princípio
do não retrocesso social, falar-se-á, no terceiro ponto, da proteção que esse mandamento
14
confere aos direitos e garantias dos servidores públicos. Disso resultará nítida a função
do primado do não retrocesso social em relação à proteção conferida ao núcleo
fundamental da Constituição.
Também será imprescindível passar, no quarto ponto, pela análise do
regime jurídico do servidor público, tecendo um comparativo no tocante às diferentes
dimensões de proteção do direito adquirido: o direito adquirido individual e o direito
adquirido social.
E por fim, mas não menos relevante, abordar-se-á um tema essencial
para encerrar a tese e a matéria aqui discutida: o princípio da vedação ao retrocesso
social e a equivalência jurídica, medida esta, aliás, necessária para uma aplicação que
preze pela coerência do sistema jurídico constitucional-administrativo.
15
1
MODELOS HISTÓRICOS DE ESTADO DE DIREITO E A
CONSTRUÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO
SUMÁRIO: 1.1. Considerações iniciais 1.2. O Estado liberal: o absenteísmo estatal. 1.2.1. A Revolução Francesa como fonte, o Estado de Direito como ponto de partida do Direito Administrativo e o papel do Conselho de Estado francês. 1.2.2. A “separação de poderes”, a contribuição da doutrina e a formação do Direito Administrativo. 1.2.3. A crise do liberalismo: a insustentabilidade do laissez faire, laissez passer. 1.3. O Estado social: intervencionismo e justiça social. 1.3.1. O Estado social e o Direito Administrativo. 1.3.1.1. A constitucionalização do Direito Administrativo. 1.3.2. A crise do Estado social. 1.4. O Estado pós-social. 1.4.1. Estado neoliberal. 1.4.2. O neoliberalismo e o Direito Administrativo. 1.4.3. A crise do neoliberalismo. 1.5. O Estado pós-neoliberal: a crise mundial e a proposta de resgate do Estado social e Democrático de Direito. 1.5.1. O Direito Administrativo no Estado pós-neoliberal. 1.6. O Estado brasileiro contemporâneo. 1.6.1. Considerações preliminares. 1.6.2. O Estado social na Constituição de 1988. 1.6.3. O Estado neoliberal. 1.6.4. O Estado brasileiro neossocial. 1.6.5. O atual estágio do Direito Administrativo brasileiro.
1.1 Considerações iniciais
A evolução do Direito Administrativo mescla-se com a ideia de
evolução e transformação sofrida pelo próprio Estado. Essa disciplina jurídica tem
ligação direta com as mudanças de modelo estatal, bem como com as modificações
introduzidas no seu aparelho.1
Daí alguns doutrinadores afirmarem que “O Direito Administrativo,
enquanto conjunto de normas que regula as relações do Estado com os particulares,
pode-se dizer que existiu sempre, desde o nascimento do Estado. Mas isso não foi
suficiente ab origine à criação de uma disciplina”.2 Deveras, no início do Estado
1 Nos dizeres de Odete Medauar: “[...] da concepção do Estado decorrem consequências no contexto
das instituições públicas, sobretudo governamental e administrativa. Se a disciplina jurídica da Administração Pública centraliza-se no direito administrativo e se a Administração integra a organização estatal, evidente que o modo de ser e de atuar do Estado e seus valores, repercutem na configuração dos conceitos e institutos desse ramo do direito” (Odete Medauar, O direito administrativo em evolução, São Paulo: RT, 1992, p. 74).
2 Agustín Gordillo, Tratado de derecho administrativo, Parte General, 5. ed., Buenos Aires:
16
moderno, que se edifica centrado no absolutismo monárquico, o que havia pode ser
considerado um complexo normativo predecessor do Direito Administrativo, na medida
em que este se origina como ramo autônomo somente quando se tem o Estado de
Direito como fator favorável e a “separação de poderes” como seu pressuposto, ao que
se somam outros elementos, conforme se verá.
Nessa toada, desde o Estado da liberdade contra o despotismo, que
favorece o surgimento dessa área do saber jurídico, até o Estado Democrático de Direito
pós-neoliberal (contemporâneo), o Direito Administrativo desponta como um ramo que
ganha cada vez mais destaque e importância e se torna mais complexo e dinâmico em
virtude do fluxo dos acontecimentos político-econômico-sociais.
Hodiernamente, diante da globalização, do surgimento de novos
institutos e ideologias, que introduzem (ou tentam introduzir) novas formas de conceber
o Estado e o seu papel, o Direito Administrativo sofre constantes mutações embaladas
pela ideia de que é preciso acompanhar o momento e as atuais tendências mundiais.
Dessa evolução compassada no ritmo das mudanças do Estado, o Direito
Administrativo vai agasalhando institutos, técnicas e conceitos diferenciados.
Na esteira dessas considerações, a análise da correlação entre a
transformação dos modelos de Estado e a evolução do Direito Administrativo pode ser
feita por diversos prismas: histórico, filosófico, político-ideológico, econômico, jurídico
e social. Conquanto em termos didáticos o exame de cada um desses aspectos em
separado seja pertinente, assim não se procederá, na medida em que se opta por tratá-los
de forma conjugada, buscando apresentar uma visão multifária sobre a temática que se
quer considerar, de maneira a alicerçar suficientemente o desfecho que se pretende
alcançar com a explanação do tema.
Tendo por base essas afirmações e esclarecimentos iniciais, pretende-se
ao final deste capítulo inaugural da presente tese trazer a visão do Direito
Fundación de Derecho Administrativo, t. 1, p. II-1. No original: “El derecho administrativo en cuanto conjunto de normas que regula las relaciones del Estado con los particulares, puede decirse que ha existido siempre, desde el nacimiento del Estado. Pero ello no ha sido suficiente ab origene para la creación de una disciplina”.
17
Administrativo contemporâneo, bem como delinear as principais características do
modelo de Estado que condiz com o espírito e as disposições contidas na Constituição
de 1988, com o escopo de estabelecer as premissas fundamentais para o
desenvolvimento dos demais capítulos e dos assuntos que serão abordados no decorrer
deste estudo.
Por conseguinte, diante do que se intenta expor, em virtude de o Estado
ser fruto de um contínuo processo de evolução e de o Direito Administrativo se formar
quando o ente estatal atinge um determinado patamar que combina e reúne distintos
fatores, o estudo do assunto será mais bem compreendido se o início de sua abordagem
revelar o panorama encontrado no nascimento do Estado liberal.
1.2 O Estado liberal: o absenteísmo estatal
Buscando superar o antigo regime, surge o liberalismo. Caracterizado
por novéis visões e originais concepções tanto na filosofia, literatura e ciência quanto na
política e economia, desenvolve-se com base no racionalismo (corrente fundamental no
pensamento liberal), nas ideias empiristas do iluminismo e no liberalismo econômico.
Com a vitória da burguesia sobre o clero e a aristocracia, e a consagração das aspirações
defendidas pela Revolução Francesa, inaugura-se um novo modelo de Estado que
prevaleceu na Europa e nos Estados Unidos no século XIX.
Com a preocupação de deixar as práticas do absolutismo para trás, é
possível verificar que, “No plano institucional, o liberalismo significou a construção de
um Estado em que o poder se fazia função do consenso, e em que a divisão de poderes
se tornava princípio obrigatório”; além disso, “o direito prevalecia em seu sentido
formal e a ética social repudiava as intervenções governamentais”.3 Imperava a ideia de
que “O Estado que governa melhor é aquele que governa menos”.4
3 Nelson Saldanha, O Estado moderno e o constitucionalismo, São Paulo: Bushatsky, 1976, p. 51-53. 4 Norberto Bobbio, Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos, Organizado
por Michelangelo Bovero, Tradução de Daniela Beccaccia Versiani, Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 226.
18
Nesse viés, o Estado liberal assumiu fundamentalmente traços próprios
do que lhe seria característico: o absenteísmo estatal. Portanto, o lema era a não
intervenção: seja na ordem econômica – o que propiciou o afastamento do Estado da
economia favorecendo o livre mercado, a livre-iniciativa e o desenvolvimento
espontâneo das capacidades individuais em benefício da sociedade, graças à orientação
do que Adam Smith denominou de “mão invisível”5 –, seja em relação aos direitos e às
liberdades dos indivíduos, atuando, nesse caso, apenas em defesa do direito de
propriedade para resguardá-lo, visto que este, segundo defendia Locke, “é um direito
natural do indivíduo que não pode ser violado pelo Estado”.6 O ser humano alcançaria a
plenitude e a liberdade com o domínio sobre os bens, com o ser proprietário.7
Importa destacar que nessa época, contemporâneo ao Estado liberal,
surge o constitucionalismo8 e acontece a codificação9 (notadamente os códigos civis).
5 Em relação à liberdade dos indivíduos no plano econômico assevera Jorge Reis Novais, apoiado em
Adam Smith, que: “O bem-estar colectivo resultará, não de uma actividade conscientemente dirigida a atingi-lo, mas antes do livre encontro dos fins individuais, da livre concorrência de produtores e consumidores movidos e dirigidos por uma mão invisível através da procura e oferta de mercadorias. Porém, para que estes resultados se produzam é necessário que as leis internas da economia se possam desenvolver sem interferências exteriores e, logo, sem intervenção do Estado na esfera económica, para que a política não venha alterar a livre concorrência dos agentes económicos” (Jorge Reis Novais, Contributo para uma teoria do Estado de Direito: do Estado de Direito liberal ao Estado social e democrático de direito, Dissertação de Pós-Graduação apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em outubro de 1985, Separata do volume XXIX do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra, 1987, p. 53).
6 Leonel Itaussu Almeida Mello, John Locke e o individualismo liberal, in: Francisco C. Weffort (Org.), Os clássicos da política, 11. ed., São Paulo: Ática, 1999, v. 1, p. 85.
7 E é exatamente o indivíduo dono de coisas e detentor de patrimônio que se torna paradigma para os códigos civis (codificação).
8 Importa destacar que: “É preciso ter em conta, porém, que o constitucionalismo, apesar de impulsionado sempre pelos mesmos objetivos básicos, teve características diversificadas, segundo as circunstâncias de cada Estado. Com efeito, surgindo num momento em que a doutrina econômica predominante era o liberalismo, incorporou-se o constitucionalismo ao acervo de ideias que iriam configurar o liberalismo político. Este, por sua vez, expandiu-se como ponto de convergência das lutas a favor dos direitos e da liberdade do indivíduo. Dessa forma, em alguns Estados o constitucionalismo foi o instrumento de afirmação política de novas classes econômicas, enquanto que, em outros, foi a mera expressão de anseios intelectuais, nascidos de um romantismo político sem caráter utilitarista. Naqueles, em consequência, o constitucionalismo teve caráter verdadeiramente revolucionário, consagrando mudanças estruturais e implicando limitações ao governo e ao Estado. Nos demais teve um sentido quase simbólico, gerando as monarquias constitucionais, cujo absolutismo perdeu o caráter pessoal para adquirir um fundamento legal” (Dalmo Dallari, Elementos de teoria geral do Estado, 2. ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 72).
9 Em verdade, a ideia de Codificação, diz Bartolomé Clavero, “Define-se no momento revolucionário” (Revolução Francesa) “como meio de superação da sociedade estamental e corporativa [...]. Este é o conceito primogênito de Código”. Deveras, “Reclamam-no os Direitos e é efeito da Revolução. Esta é a sequência. [...] É assim o Código um tipo de norma que, do mesmo modo e no mesmo grau que a Constituição, traz Direitos. Não constitui um desenvolvimento ulterior do ordenamento, senão a
19
Aquele com a tarefa de restringir fortemente o Estado, definir suas estruturas e limitar o
poder político. Esta com o papel de garantir a mais extensa esfera de autonomia aos
indivíduos (princípio da autonomia da vontade), sobretudo na área econômica.
Consequentemente, se o que impera é o predomínio das liberdades negativas (direitos
baseados no valor essencial da liberdade e autonomia, denominados direitos individuais
ou de primeira geração), evidencia-se nesse contexto “uma nítida assimetria na relação
público-privado. O domínio do privado, nesse cenário em que prevalece o liberalismo
(político e econômico), é superdimensionado”.10-11
Nesse passo, enquanto o Direito Civil computava um extenso
desenvolvimento histórico – e agora vocacionado e centrado na figura do indivíduo –, o
Direito Público voltado à contenção da atividade estatal sofre o seu despertar. Nesse
panorama, por conseguinte, o Direito Administrativo começa a encontrar terreno
propício para sua formação, para só então se consolidar ao final do século XIX, como
um ramo do Direito Público independente, mediante a junção de vários elementos
(conforme se verá no item 1.2.2). Contudo, muitos doutrinadores apontam o movimento
revolucionário francês de 1789 como marco do nascimento desse ramo jurídico e o
Estado de Direito como seu ponto de partida.
ordenação imediata da liberdade no âmbito civil do mesmíssimo modo e no mesmíssimo grau que a Constituição o é ou deve também teoricamente sê-lo no político”. E continua: “Não há uma sequência de Direitos. Constituição e em seguida leis, eventualmente Códigos. Há uma relação direta do Código com os Direitos, igual a da Constituição. Um par de Códigos essencialmente se coloca lado a lado: um político, mais procedimental, e outro civil, mais substantivo. E esta codificação seria o direito pela razão de realizar os Direitos” (Bartolomé Clavero Salvador, Codificación y Constitución: paradigmas de um binomio, Quaderni Fiorentini, Milano: Giuffrè, p. 104-105, 1989).
10 Cristiano Paixão Araújo Pinto, Arqueologia de uma distinção: o público e o privado na experiência histórica do direito, in: Cláudia Fernanda de Oliveira Pereira, (Org.), O novo direito administrativo brasileiro: o Estado, as Agências e o Terceiro Setor, Belo Horizonte: Fórum, 2003. Em endereço eletrônico: disponível em: <http://direitoachadonasarjeta.wordpress.com/2008/10/31/arqueologia-de-uma-distincao-o-publico-e-o-privado-na-experiencia-historica-do-direito/>. Acesso em: 19 jul. 2011.
11 Pode-se dizer que: “É nessa quadra histórica que se inicia o interesse – ainda presente – de delimitar a divisão entre direito público e direito privado. Numa sociedade que estabelece, de forma explícita e propositiva, a limitação dos poderes do Estado, e que privilegia, como observado, a distribuição ‘natural’ de oportunidades pela própria dinâmica social, será fundamental considerar o direito público como aquele repertório mínimo de disposições e instrumentos referentes ao governo representativo, permanecendo uma grande parcela do direito público regida por convenção (usos e costumes que permeiam a prática do sistema político, procedimentos que limitam a universalização da participação popular, formalismo cada vez mais exacerbado dos processos e organizações estatais). O direito privado, por seu turno, radicaliza a emancipação do indivíduo, fruto da Modernidade. O elemento central é o contrato, e são pressupostas as potencialidades e capacidades de todo e qualquer indivíduo de firmar pactos, ser proprietário de bens e ser regido por um sistema universal de leis gerais e abstratas” (Araújo Pinto, Arqueologia de uma distinção: o público e o privado na experiência histórica do direito).
20
1.2.1 A Revolução Francesa como fonte, o Estado de Direito como ponto de partida
do Direito Administrativo e o papel do Conselho de Estado francês
Ao pôr fim à servidão e aos privilégios da nobreza e anunciar os ideais
universais, pregados por Rousseau, de “liberdade, igualdade e fraternidade”, a
Revolução Francesa consolidou o terceiro estado12 no poder e influenciou fortemente
outras revoluções pelo mundo, em especial as europeias e os movimentos de luta em
favor da libertação dos países da América Latina. Permitiu o nascimento do Estado de
Direito, baseado no primado da legalidade.
O Estado que se submete à lei tem, assim, íntima ligação com o
movimento revolucionário francês e, nesse passo, reconhece-se que o Direito
Administrativo, como regime especializado que disciplina a Administração Pública,
encontra ambiente propício para surgir. Portanto, a Revolução Francesa que dá origem
ao Estado que vige sob o império das leis também favorece o nascimento do Direito
Administrativo. Nesse sentido, é comum encontrar na doutrina do Direito Público a
associação do surgimento do Direito Administrativo à Revolução Francesa13 e à noção
de Estado de Direito.14
12 Sobre o terceiro estado importante foi a contribuição de Emmanuel Joseph Sieyès que escreveu
“Qu’est-ce que le tiers état?” (O que é o terceiro estado?). Tendo por base a doutrina do contrato social, de John Locke e Jean-Jacques Rousseau, o citado autor defendia a ascensão do terceiro estado (o povo) ao poder. Concebia um poder próprio da nação, superior aos demais poderes que tivessem sido constituídos de forma ordinária, sendo que tal poder não poderia ser por eles modificável. Surge então o poder constituinte. Nesse passo, asseverava que o terceiro estado “deve reunir-se à parte, não concorrendo com a nobreza e o clero, não permanecendo com ele nem por Ordens nem por cabeças. Rogo que se atenda à enorme diferença que há entre a assembleia do Terceiro Estado e a das outras duas Ordens. A primeira representa vinte e cinco milhões de homens e delibera sobre os interesses da Nação. As duas outras, ainda que reunidas, não têm poderes senão de cerca de duzentos mil indivíduos e só pensam nos seus privilégios. Dir-se-á que o Terceiro sozinho não pode formar os Estados gerais. Oh! tanto melhor! Comporá uma Assembleia Nacional” (Jean-Jacques Chevallier, As grandes obras políticas: de Maquiavel a nossos dias, Tradução de Lydia Christina, 5. ed., Rio de Janeiro: Agir, 1990, p. 201).
13 Esse é o entendimento de Eduardo Garcia de Enterría e Tomás Ramón Fernandéz, que reconhecem que o Direito Administrativo nasce com a Revolução Francesa (Curso de derecho administrativo, 9. ed., Madrid: Civitas, 1999, nota 5, t. I, p. 26). Por sua vez, Luciano Parejo Afonso diz que o Direito Administrativo tem como ponto de partida a Revolução Francesa, mas também é produto dos valores herdados do absolutismo monárquico. Assim leciona: “Somente com a precisão que resulta das precedentes considerações parece possível tomar o Estado constitucional de direito surgido da Revolução Francesa ou por seu influxo como ponto de partida ou origem do direito administrativo. Este não surge como consequência inevitável dos valores originais que consagra dito Estado revolucionário (é dizer, não é fruto unicamente da revolução e suas consequências políticas, senão como resultado da mescla ou síntese desses valores e dos herdados do regime anterior caducado” (El
21
Sob esse vértice Libardo Rodríguez Rodríguez afirma “que a filosofia
política e a concepção de Estado que se impuseram com a Revolução Francesa, de 1789,
constituem a fonte próxima do Direito Administrativo”. E, desse modo, “o conceito de
Estado de Direito, que constituiu um dos princípios norteadores dessa Revolução, foi,
por sua vez, o ponto de partida desse ramo do direito”.15
Nesse compasso, Jean Rivero defende que essa área jurídica só pode
surgir no panorama do Estado de Direito, a partir do instante em que o governante
consentiu em ver seus agentes sujeitos, em relação aos particulares, por norma
obrigatória e sancionada jurisdicionalmente.16 Em outras palavras significa que concebe
o Direito Administrativo, surgido para disciplinar as relações entre o Estado e os
administrados, sujeitando-se também o soberano a um conjunto normativo, apenas
quando se tem o Estado de Direito servindo como sua pedra angular e seu fundamento.
Ainda, na medida em que se afirma “que o direito administrativo, como
ramo especializado do direito, é uma concepção e criação do direito francês, originado
na Revolução Francesa de 1789”, tem-se que acrescentar a ideia, segundo Rodríguez,
apoiado na doutrina de vários autores, de que também é resultado “de uma evolução
progressiva que foi consolidando dita concepção”.17 E essa evolução é devida à
elaboração e trabalho do Conselho de Estado francês, instituído como órgão máximo da
jurisdição administrativa que se estabeleceu na França. Assim, instituiu-se a dualidade
concepto del derecho administrativo, Caracas: Jurídica Venezolana, 1984, nota 1, p. 41 Colección Estudios Jurídicos, n. 23).
14 Nesse sentido é a observação de Medauar; diz: “Frequente, na doutrina publicista, se apresenta a vinculação do surgimento do direito administrativo ao Estado de Direito” (O direito administrativo em evolução, p. 20).
15 Libardo Rodríguez Rodríguez, Explicación histórica del derecho administrativo, in: David Cienfuegos Salgado y Miguel Alejandro López Olvera (Coord.), Derecho administrativo: estudios en homenaje a don Jorge Fernández Ruiz, México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2005, p. 295.
16 Jean Rivero, Droit administratif français et droits administratifs étrangers, escrito em 1969 e reimpresso em Pages de Doctrine, Paris: LGDJ, 1980, v. 2, p. 476.
17 Rodríguez Rodríguez (Explicación histórica del derecho administrativo, p. 296) arrola em nota de rodapé (nota 5) vários doutrinadores que, segundo ele, comungam do seu entendimento de que o Direito Administrativo se origina da Revolução Francesa: os já citados logo acima (nota 31), Garcia de Enterría y Ramón Fernandéz; também Juan Alfonso Santamaría Pastor (Principios de derecho administrativo, 2. ed., Madrid: Centro de Estudios Ramón Areces, 1990, t. I, p. 13 e ss.); Guido Zanobini (Curso de derecho administrativo, Buenos Aires: Arayú, 1950, t. I, p. 56); e Agustín Gordillo (Tratado de derecho administrativo, 5. ed., Buenos Aires: Fundación de Derecho Administrativo, 1988, t. 1, p. II-4).
22
de jurisdição na França, “em que a administração da justiça competia à jurisdição
comum, encarregada de resolver os conflitos entre os particulares, e a jurisdição
administrativa, com competência para solucionar as controvérsias em que a
administração pública for parte”.18
Tamanha é a importância do Conselho de Estado na França que F.
Burdeau faz uma definição do Direito Administrativo com base no seu papel, afirmando
que esse ramo jurídico “é um direito eminentemente jurisprudencial”, pois verifica que
a sua trajetória é de “qualquer modo a história dos problemas da repartição de
jurisdição, cujos limites marcam, de tempos em tempos, juntamente com a categoria dos
atos impugnáveis e dos poderes de conhecimento e de decisão do juiz administrativo, o
coração da história”.19 Diante de tal compreensão, a história do Direito Administrativo é
“uma história de sentenças, portanto”, e, por sua vez, “do Conselho de Estado, do seu
papel, das suas funções, do seu prestígio, nem sempre idêntico a si mesmo e de fato a
ser confirmado e recuperado em cada mudança de regime constitucional”.20
Inserido no contexto do surgimento do Direito Administrativo, por
conseguinte, está a relevância do Conselho de Estado na França. Entretanto, é possível
ir além e analisar um pouco mais detida e aprofundadamente o nascimento desse ramo
jurídico, para além da Revolução Francesa, do Estado de Direito e do Conselho de
Estado, ultrapassando os muros do território francês, ao que se tem uma concepção que
atribui a uma série de elementos conjugados o surgimento dessa disciplina jurídica.
1.2.2 A “separação de poderes”, a contribuição da doutrina e a formação do Direito
Administrativo
Se a Revolução Francesa trouxe com ela o Estado de Direito, ao mesmo
tempo serviu para concretizar a “tripartição de poderes” desenvolvida por
18 Rodríguez Rodríguez, Explicación histórica del derecho administrativo, p. 299. 19 Bernardo Sordi tratando sobre a doutrina de F. Burdeau e sua obra Histoire du droit administratif –
de la Révolution au debut dês années 1970 (Per uma storia del diritto amministrativo, Quaderni Fiorentini, n. 25, p. 685, 1996).
20 Idem, ibidem, p. 685.
23
Montesquieu21 (O espírito das leis – 1748) para conter o poder do ente estatal,
separando-o em três funções. Com a atribuição de competências a órgãos distintos do
Estado, a teoria idealizada pelo Senhor de La Brède impediu a centralização irrestrita de
poderes nas mãos do governante.
Indubitavelmente o princípio da separação de poderes foi o “Esteio
sagrado do liberalismo”. Tanto que “O célebre art. 16 da Declaração dos Direitos do
Homem, contida na Constituição francesa de 3 de setembro de 1791, assim rezava:
‘Toda sociedade que não assegura a garantia dos direitos nem a separação de poderes
não possui constituição’”.22
Nesse diapasão, quando se efetiva a ideia de que aquele que faz as leis
não deve aplicá-las nem executá-las, de que quem as executa não deve fazê-las nem
julgá-las, e de que aquele que as julga não deve nem elaborá-las nem executá-las,23
abre-se espaço para que o Direito Administrativo possa se formar. Todavia, não é o
Estado de Direito nem a “separação de poderes” que dão origem a esse ramo jurídico,
conquanto a concepção de Estado de Direito tenha sido favorável para o surgimento
desse ramo do Direito e o princípio da tripartição possa ser tido como seu pressuposto.24
21 Em relação à paternidade da teoria da divisão dos poderes do Estado, Celso Ribeiro Bastos ensina
que: “Desde a Antiguidade clássica, mais precisamente desde Aristóteles, tem sido hábito da doutrina identificar em todo Estado a existência de três funções principais. [...] Esta divisão tricotômica foi retomada nos séculos XVII e XVIII por autores como Locke, Bolinbroke e Montesquieu (que para muitos é o pai da doutrina da separação de poderes). Esta paternidade é discutível porque, quando mais não fosse, os dois autores também citados e que o precedem seriam suficientes para subtrair-lhe a autoria. A verdade é que Montesquieu foi quem a exprimiu com mais clareza e perfeição trazendo para ela uma contribuição pessoal que acaba por justificar essa filiação que a História estabeleceu” (Celso Ribeiro Bastos, Curso de teoria do Estado e ciência política, 3. ed., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 74).
22 Paulo Bonavides, Do Estado Liberal ao Estado Social, 9. ed., São Paulo: Malheiros, 2009, p. 63. 23 Sobre a teoria da “separação de poderes” e a divisão das funções do Estado em três, Montesquieu
apregoa que: “‘Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou a mesma corporação dos principais, dos nobres ou do povo exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as desavenças dos particulares’. Porque não existe liberdade quando se acham reunidos, nas mesmas mãos, legislativo e executivo. ‘É para recear que o próprio monarca ou o próprio Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente.’ Tampouco existe liberdade quando o poder de julgar, o judiciário, não se acha separado do legislativo e do executivo. ‘Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador; se unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor’” (Chevallier, As grandes obras políticas..., p. 138).
24 Segundo Massimo Severo Gianinni, ao examinar a temática da “separação de poderes” e sua correlação com o nascimento do Direito Administrativo, não há uma ligação direta entre a teoria
24
Em realidade, “o Direito Administrativo nasce como somatório de
vários acontecimentos, alguns dos quais remonta a séculos, com origens e experiências
estatais diversas”. Dessa feita, “As peças do variado e nem sempre claro mosaico
vieram agregar-se e completar-se gradualmente, de modo que a instauração de um
Direito Administrativo se firmou pouco a pouco sem que, na França e em outros
lugares, houvesse plena consciência”.25
Na esteira dessa assertiva, Gianinni, ao se referir ao surgimento do
Direito Administrativo como ramo do Direito, em um dado ordenamento, afirma ser
necessário para tanto que: “[...] a administração seja separada dos outros poderes
estatais, ou seja, que exista uma administração em sentido jurídico”. Assim, a matéria
administrativa deve ser “disciplinada por normas próprias, de natureza publicista, que a
ela se referem de modo específico”; além disso, tais normas precisam constituir “um
todo orgânico, ou seja, dada uma administração em sentido subjetivo, as várias normas
referentes aos sujeitos, aos atos, e meios de ação, sejam ligadas por nexos comuns,
inspirados em unidade e generalidade de critérios e de princípios”.26 Essa última
exigência “corresponde diretamente à necessidade do sistema, própria da correlativa
ciência do direito, exigência de uma ciência, precisamente como uma ciência, é
essencial”.27
E acrescente-se a isso o papel da doutrina, que segundo Gianinni é vital
nesse processo de formação do Direito Administrativo, representando a ciência do
defendida por Montesquieu e o surgimento dessa disciplina jurídica. Destarte, assevera que: “O princípio da divisão tem por isso uma força muito menor do que parece; não obstante ser o poder executivo separado dos outros, ou melhor, o fato de a função executiva ser atribuída, institucionalmente e por via principal, a um grupo determinado de órgãos, constitui um dos pressupostos fundamentais para a existência de um direito da administração com fisionomia e individualidade própria. Pressuposto necessário, mas sempre pressuposto, ou seja, não causa determinante” (Massimo Severo Gianinni, Profili storici della scienza del diritto amministrativo, Quaderni Fiorentini, Milano: Giuffrè, n. 2, p. 192-193, 1973).
25 Elio Casetta apoiado na lição de Cannada-Bartoli (Elio Casetta, Manuale di diritto amministrativo, 12. ed., Milano: Giuffrè, 2010, p. 9).
26 Gianinni, Profili storici della scienza del diritto amministrativo, p. 205-206. 27 Idem, ibidem, p. 206.
25
Direito Administrativo, a qual vai desenvolver os critérios, conceitos, princípios e nexos
comuns, que ele entende fundamentais para o surgimento desse ramo do Direito.28
Assim, para o citado autor italiano, no que aqui se compartilha do seu
pensamento, há uma soma de fatores que dão origem ao Direito Administrativo, no que
ele sintetiza da seguinte maneira: “[...] o Direito Administrativo nasceu da confluência
das experiências constituídas do tipo estrutural ad actum principis e do direito de polícia
com os princípios constitucionais introduzidos pela Revolução Francesa”, e ainda “com
o espírito de racionalidade dos legistas franceses, italianos e alemães que tiveram,
naquele período fortemente criativo, posições dominantes”.29-30
Pois bem, diante desse somatório de circunstâncias e das contribuições
dos juristas da época, o Direito Administrativo sofreu um progressivo evoluir e
sistematizou-se nos ordenamentos de diversos países, porém será no Estado social que
esse ramo do Direito alcançará um novo patamar.
28 Gianinni arrola uma série de autores, expoentes da teoria clássica do Direito Administrativo na
França, Itália e Alemanha no seu escrito Profili storici della scienza del diritto amministrativo (Perfis históricos da ciência do direito administrativo), para demonstrar a importância fundamental dos doutrinadores para o desenvolvimento dessa disciplina jurídica. Interessa notar que Medauar, acompanhando o pensamento de Gianinni, sobre a importância do papel da doutrina na formação do Direito Administrativo, sintetiza: “Romagnosi, com sua obra Principi fondamentali del diritto amministrativo onde tesserne le istituzioni, editada em 1814; Macarel, que publicou em 1818 Les élements de jurisprudence administrative; De Gerando, com a obra em cinco volumes, Institutes du droit administratif français, dois volumes, 1840, formam o núcleo original da ciência do direito administrativo e tiveram papel relevante na formação desse direito” (Medauar, O direito administrativo em evolução, p. 25).
29 Gianinni citado por Medauar, O direito administrativo em evolução, p. 25. 30 Nesse viés, para ilustrar o pensamento doutrinário administrativista liberal, pode-se fazer menção a
um dos maiores expoentes no estudo do Direito Administrativo: Otto Mayer – um dos precursores no estudo da matéria, figurando como um dos principais nomes do Direito Administrativo alemão. Desse modo, “Pode assim dizer-se que o Direito Administrativo herdado de OTTO MAYER é, no seu núcleo, um sistema de formas jurídicas relativas ao exercício imperativo do poder estadual. Na verdade, no centro da doutrina jurídico-administrativa liberal estava o acto administrativo, concebido como uma forma de actuação a tratar doutrinalmente através dos seus ‘efeitos’ e das suas ‘consequências jurídicas’. Uma vez que a protecção do cidadão contra o executivo era a principal preocupação da doutrina, a sua atenção dirigia-se essencialmente para as condições de admissibilidade do recurso jurisdicional e para os vícios susceptíveis de o fundamentar, bem assim como para os pressupostos da responsabilidade administrativa. Ou seja, antes de mais nada, para a questão do controlo jurisdicional da Administração Pública. Completamente absorvida por essa questão da sujeição da actuação autoritária da Administração Pública aos diversos controlos jurídicos, a doutrina foi induzida a esquecer, de entre todas as formas de actuação administrativa, aquelas que não se reconduziam ao esquema tradicional da prática de actos administrativos” (Maria João Estorninho, A fuga para o direito privado: contributo para o estudo da actividade de direito privado da administração pública, Coimbra: Almedina, 1996, p. 91).
26
Contudo, convém trazer a lume, antes de passar à análise do modelo de
Estado de bem-estar social, que sucede o Estado liberal, os motivos que contribuíram
para a crise do liberalismo e o advento da nova forma de Estado.
1.2.3 A crise do liberalismo: a insustentabilidade do laissez-faire, laissez-passer
Se por um lado a classe burguesa, detentora dos bens, podia fazer uso
dos direitos políticos e desfrutar da garantia da liberdade, desejando do ente estatal
apenas a manutenção da ordem e segurança públicas para a proteção do direito de
propriedade,31 por outro, o proletariado, dono somente do seu labor, oprimido pela
burguesia que detinha o domínio dos meios de produção, acabava por se dedicar a
trabalhar e a produzir subordinado aos empresários burgueses, alienando sua força de
trabalho para receber parcos ordenados. E era essa relação que se estabelecia entre
opressores (burguesia) e oprimidos (trabalhadores), que despertara a crítica severa de
Karl Marx e Friedrich Engels em O Manifesto do Partido Comunista (1848), com o
propósito de deixar patente, segundo os teóricos fundadores do socialismo científico, o
abuso sofrido por quem não era proprietário e escancarar o fato de que o operário era só
uma peça que servia aos propósitos da nova classe opressora.32
É evidente que, diante desse cenário, em que não existiam garantias
referentes aos direitos trabalhistas, previdenciários ou outros direitos de cunho social, só
poderia haver um profundo descontentamento da classe operária, que se via privada de
todos os direitos que poderiam criar-lhe novas perspectivas e permitir que alcançasse
31 Conforme leciona Norberto Bobbio, se os “proprietários eram os únicos que tinham direito de voto,
era natural que pedissem ao poder público o exercício de apenas uma função primária: a proteção da propriedade” (Norberto Bobbio, O futuro da democracia, Tradução de Marco Aurélio Nogueira, 6. ed., São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 34).
32 Os autores bem resumem o quadro de opressão sofrido pelo proletariado em O manifesto, proclamando as seguintes ideias: “Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, patrão e companheiro, numa palavra opressores e oprimidos, estiveram em constante oposição uns contra os outros, numa luta sem tréguas, ora dissimulada, ora aberta, que, de cada vez, terminou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira ou pela destruição comum das classes em luta... A sociedade burguesa moderna, que nasceu do desmoronamento da sociedade feudal, não aboliu as oposições de classes. Não fez senão substituir por novas classes, por novas condições de opressão, por novas formas de luta as antigas. Mas a nossa época, a época da burguesia, tem de particular o ter simplificado as oposições de classe. Cada vez mais se divide a sociedade inteira em dois grandes campos inimigos, em duas classes diametralmente opostas uma à outra, a burguesia e o proletariado” (Chevallier, As grandes obras políticas..., p. 292).
27
uma condição de vida mais digna. Perante esse quadro de profunda desigualdade, em
que eram crescentes a pobreza e a miséria nos grandes centros que se desenvolviam em
torno das indústrias, é fácil perceber que o liberalismo agasalhou os interesses de uma
única classe: a burguesia – que se tornou “a classe capitalista por excelência, que
administra as riquezas da sociedade evoluída” preocupada exclusivamente com as
finanças e seus empreendimentos.33
Com efeito, a liberdade, com feição meramente formal, e a não
intervenção estatal, em que o Estado figura apenas como guardião do laissez-faire,
laissez-passer, le monde va de lui-même,34 contribuíram para que a esmagadora parcela
da população ficasse sem acesso a serviços básicos como saúde e educação, e sem
proteção em face da exploração da sua mão de obra, por parte dos que detinham e
comandavam o processo produtivo. Abstendo-se de atuar na ordem econômica, o
Estado não precisava se preocupar em proteger o proletariado e as demais camadas
populares, pois tudo o quanto estes precisassem, como “saúde, educação, previdência,
seguro social”, deveria ser “atingido pela própria atividade civil”.35
Desse modo, o liberalismo, baseado no radical discurso que pregava
intensamente o individualismo e o livre jogo das forças econômicas, em muito
contribuiu para que se estabelecessem enormes diferenças em relação às classes sociais.
Aos proprietários tudo era possível; aos trabalhadores nada era assegurado. O
consequente monopólio econômico pela burguesia acarretou o colapso da teoria que
defendia a natural estabilidade que se instituiria entre os agentes econômicos e a
racionalidade espontânea do mercado. Nesse passo, a exploração do homem pelo
homem, ao mesmo tempo em que fazia crescer as desigualdades, gerava profunda
insatisfação com o modelo de Estado liberal. Com as várias crises que se sucederam nos
países que adotaram o capitalismo liberal – dentre elas, a Grande Depressão e a quebra
da Bolsa de Valores de Nova York (1929) e também as fortes recessões acontecidas nos
33 Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Dicionário de política, Tradução de
Carmen C. Varriale, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini, 11. ed., Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, v. 1, p. 122.
34 A máxima francesa que expressava perfeitamente a política não intervencionista do liberalismo era traduzida na seguinte sentença: “Deixai fazer, deixai passar, o mundo caminha por si só” (Bastos, Curso de teoria do Estado e ciência política, p. 69).
35 Idem, ibidem, p. 69.
28
períodos do pós-guerra, que colaboraram ainda mais para que se intensificasse a
instabilidade socioeconômica –, começou-se a invocar uma forma de Estado mais
presente, mais preocupada com o bem-estar social.
Embora o liberalismo tenha lutado “fundamentalmente pelas liberdades
de (isto é, de religião, de palavra, de imprensa, de reunião, de associação, de
participação no poder político, de iniciativa econômica para o indivíduo)”,36 a ausência
de interferência por parte do Estado mínimo evidenciou a sua incapacidade máxima
para resolver os conflitos sociais em que a população estava imersa. Ao abandonar a
sociedade à sua própria sorte, o modelo liberal foi assistindo às suas estruturas básicas
minarem-se em um movimento crescente, fato que abriu caminho para uma progressiva
transformação do Estado, que de absenteísta passou a interventor e regulador das
atividades nos vários setores, da educação à economia.
1.3 O Estado social: intervencionismo e justiça social
Na medida em que o liberalismo deixava evidente que havia a liberdade
apenas para quem tinha bens, que os direitos fundamentais (compreendidos tão só como
direitos de defesa) eram estabelecidos de modo simbólico, que o Estado submetia-se ao
Direito, mas não tinha a menor preocupação em relação à proteção social, e que a
economia era livre, porém com monopólio da produção por apenas uma classe, mais
crescia a real necessidade de um Estado centralizador e interventor. Em realidade, os
dogmas proclamados pela política liberal eram inábeis para concretizar efetivamente o
que ela pregou.
Por influxo de novos ideários e dos partidos socialistas, havia um forte
desejo de que a igualdade existente apenas no plano formal passasse para o campo real,
que as liberdades e garantias previstas nas constituições tivessem efetividade, “que
houvesse justiça social, que se assegurasse o suficiente para as necessidades básicas da
vida”.37 Nessa toada, “Na Europa, em fins do século XIX, começaram a ser editadas leis
36 Bobbio, Matteucci, Pasquino, Dicionário de política, p. 702-703. 37 Medauar, O direito administrativo em evolução, p. 80.
29
de proteção social: de início, normas sobre acidentes de trabalho, com responsabilidade
limitada dos industriais (na Alemanha, França e Inglaterra)”, ao que depois surgiram
“leis de seguro-doença, assistência à velhice, invalidez, desemprego e sistema
obrigatório de aposentadorias”; interessa notar que, “em geral, as cotizações vinham de
empregados e empregadores, eram administradas por organismos autônomos (caixas),
sob o controle do Estado”. Destaque-se que: “Nos primórdios do século XX prossegue a
edição de leis de previdência social, como a Social Security Act, de 1935, nos Estados
Unidos; mas foi o Beveridge Repport de 1942”, no Reino Unido, “que rompeu com a
ideia restritiva de ‘assistência social’ e firmou novas matrizes mediante a noção de risco
social e mediante papel do Estado nesse âmbito”.38 Assim, almejando concretizar o
conceito e norte do Estado de bem-estar, que é o da proteção social, vários institutos e
práticas foram criados com o intuito de amparar as classes menos favorecidas da
sociedade.
Veja-se que para realizar as diretrizes desse novo modelo, cuja primeira
formulação pertence a Herman Heller,39 o Estado deixou de ter como guia cardeal a
liberdade (com foco individualista), prevalente no Estado liberal, para abraçar o lema da
igualdade (centrando-se na ideia de preocupação com o coletivo, com o interesse
público, com o bem-estar de todos).40 Consequentemente, o Estado de bem-estar social,
(ou Welfare State, ou Estado-providência, ou Estado assistencial) primou pela noção de
38 Medauar, baseada nas lições de Pierre Rosanvallon, autor de La crise de l’État-providence (O direito
administrativo em evolução, p. 80). 39 Sobre o pensamento de Heller, Angel M. Lopez y Lopez destaca o seguinte: “Profundamente
marcado pela história de seu tempo, Heller vive a tragédia de um Estado, em que a hegemonia egoísta de uma classe conduziu às portas da instabilidade revolucionária, e que parece condenado à solução autoritária, de um sinal ou outro, é dizer, a sua negação como Estado de Direito. O objetivo é salvar a este, mas dando-lhe um conteúdo social, uma nova ordem às relações de trabalho criando mecanismos de redistribuição dos bens, e de acesso a todos aqueles mais essenciais para a vida. Deve-se observar que, em qualquer caso, o pensamento de Heller, o pensamento da primeira expressão do conceito de Estado Social, não implica uma abdicação dos postulados do Estado de Direito, e em especial dos relativos à representação política” (Angel M. Lopez y Lopez, Estado Social y sujeito privado: uma reflexion finisecular, Quaderni Fiorentini, Milano: Giuffrè, n. 25, p. 427-428, 1996).
40 Esse ideal da igualdade é bem colocado por Paulo Bonavides. Diz o autor: “O centro medular do Estado social e de todos os direitos de sua ordem jurídica é indubitavelmente o princípio da igualdade. Com efeito, materializa ele a liberdade da herança clássica. Com esta compõe um eixo ao redor do qual gira toda a concepção estrutural do Estado democrático contemporâneo. De todos os direitos fundamentais a igualdade é aquele que mais tem subido de importância no Direito Constitucional de nossos dias, sendo, como não poderia deixar de ser, o direito-chave, o direito-guardião do Estado social” (Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 4. ed., São Paulo: Malheiros, 1993, p. 301-302).
30
sociabilidade, e, dessa maneira, proclamou que todo indivíduo deveria ter, além do
plexo de direitos e garantias assegurados no plano normativo (que já o era no Estado
liberal, mas apenas em relação aos direitos de liberdade,41 e em caráter formal, como se
viu), igualmente a sua materialização no plano concreto. Consolidam-se os
denominados direitos econômicos, sociais e culturais ou de segunda dimensão.
Assim, o Estado de bem-estar procurou instituir a justiça social em
vários setores por meio da criação de condições vitais básicas de existência, traduzidas
na prestação de bens, serviços e infraestrutura materiais.42 Atenuou as desigualdades
sociais causadas pelo liberalismo com a instituição do ensino obrigatório na área da
educação, a assistência médica gratuita e de qualidade no campo da saúde, como
também chamou para si a previdência social na seara da seguridade; criou uma política
de tributação no campo das finanças públicas e realizou outras ações referentes às
políticas públicas implementadas com o fim de promover um desenvolvimento mais
justo e solidário visando à proteção dos desfavorecidos. Por conseguinte, inaugurou-se
“a era do Estado produtor, repartidor, distribuidor e distributivo, que não deixa à sorte
dos indivíduos a sua situação social, mas vem auxiliá-los através de medidas positivas e
de garantias efetivas”.43
Note-se que, se pelo ângulo social o Estado realmente atua diante da
sociedade, suprindo intensamente as necessidades vitais da grande massa populacional,
nos vários setores sociais e prestando serviços a quem dele necessitar, no cenário
político-econômico a atuação estatal também é forte, passando de mero expectador a
ator principal, no que teve John Maynard Keynes44 como seu maior defensor.
41 Segundo ensina J. J. Gomes Canotilho: “A primeira função dos direitos fundamentais – sobretudo
dos direitos, liberdades e garantias – é a defesa da pessoa humana e da sua dignidade perante os poderes do Estado. Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam o poder de exercer positivamente direitos fundamentais e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos” (J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, 6. ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 407).
42 Novais, Contributo para uma teoria do Estado de Direito..., p. 194. 43 Silvia Faber Torres, O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo, Rio de
Janeiro: Renovar, 2001, p. 51. 44 Keynes defendeu uma política econômica de Estado intervencionista na década de 1930 chegando ao
auge nas décadas de 1950 e 1969. Seu pensamento serviu para inspirar a escola keynesiana na área da economia.
31
Por outro prisma, tem-se o fato de que, por intermédio de toda essa
intervenção e regulação, a população passou a depender do Estado assistencial para
viver e sobreviver, buscando aproximar-se cada vez mais do ente estatal, no sentido de
poder usufruir verdadeiramente de tudo o quanto estiver colocado à sua disposição;
nesse passo, a sociedade organiza-se para exigir e manter os direitos conquistados a fim
de manter um diálogo eloquente com o Poder Público, evidenciando-se a “acção
permanente e estruturada dos partidos, grupos de interesses e organizações sociais sobre
a esfera política”. Logo, é com base “neste processo conjunto de estadualização da
sociedade e de socialização do Estado que se corporiza o princípio de socialidade
enformador do novo Estado social”.45
É um modelo que pretende “antes de tudo criar uma relação de
interação entre o Estado e a sociedade através da satisfação, na medida do possível, das
solicitações de prestações que os indivíduos ou grupos de indivíduos fazem ao Estado”.
Como “marco deste modelo, encontram-se os denominados ‘direitos sociais’”, cujo fim
é o de “impor ao Estado a obrigação de outorgar prestações tendentes ao melhoramento
social”. Consagram-se os direitos de igualdade, “cuja vertente material ou ativa
manifesta-se como direitos de prestação”.46 Tem como complemento necessário a
participação ativa dos administrados que requerem cada vez mais a presença estatal e
cobram essa atitude prestacional.
De todo o exposto, fica fácil notar que o modelo de Estado social se
constitui fundamentalmente em uma “forma de organização política que marcou fase de
grande valor na história da humanidade, pois é o primeiro sistema político de grandes
45 Novais, Contributo para uma teoria do Estado de Direito..., p. 197-198. Esclarece o autor que é a
dupla dimensão: intervenção estatal e aproximação dos indivíduos do Estado com formação de grupos sociais, que permite distinguir o Estado social dos seus conceitos afins, que segundo Novais são as designações: Estado assistencial e Estado-Providência; Welfare State ou Estado de bem-estar; Estado de Partidos; Estado de Associações; Estado administrativo. Entende, todavia que: “[...] Em qualquer destas expressões é possível notar pontos comuns ou mesmo identidades fundamentais com a ideia que explicitamos sob a fórmula de Estado social. Porém, enquanto cada uma daquelas designações coloca a tónica, ou se justifica integralmente em aspectos parcelares ou apenas numa das dimensões que atrás referimos, o Estado social surge como o conceito mais apto para exprimir, com toda a extensão salientada, a natureza específica do novo tipo de relações entre Estado, cidadãos e sociedade” (Idem, ibidem, p. 198).
46 Carla Huerta Ochoa, La intervención administrativa en el Estado contemporáneo, in: David Cienfuegos Salgado y Miguel Alejandro López Olvera (Coord.), Derecho administrativo: estudios en homenaje a don Jorge Fernández Ruiz, México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2005, p. 122-123.
32
dimensões que tentou conjugar democracia (no sentido mais geral de abertura potencial
do governo a grande número de pessoas)” à ideia de liberdade individual.47 Desse
modo, o Estado social retrata perfeitamente a fórmula Estado Social e Democrático de
Direito, especialmente “Quando o direito de voto foi estendido também aos não
proprietários, aos que nada tinham, aos que tinham como propriedade tão somente a
força de trabalho”; nesse passo, diante do exercício desse direito político fundamental,
foi possível exigir do Estado as providências sociais ausentes no liberalismo.48 Com
isso, “aconteceu que o Estado de serviços, o Estado social, foi, agrade ou não, a resposta
a uma demanda vinda de baixo, a uma demanda democrática no sentido pleno da
palavra”.49
Assim delineado o Estado social em suas principais linhas, importa
saber como ficou a relação do Estado de bem-estar com o Direito Administrativo.
1.3.1O Estado social e o Direito Administrativo
Diante da nova concepção de Estado que tem por lema o bem-estar da
coletividade, importa destacar que “a passagem do estado liberal para o estado social é
assinalada pela passagem de um direito com função predominantemente protetora-
repressiva para um direito cada vez sempre mais promocional”.50
Portanto, na esteira dessa transformação sofrida pelo Estado, o Direito,
que não deve ficar imune às mudanças, sofre modificações, e no Estado social se nota a
disposição para certa mistura entre os campos do público e do privado, diferentemente
do que dantes acontecia em que se tinham tais esferas bem demarcadas no contexto do
Estado liberal, embora não houvesse simetria ou equivalência entre elas. Nessa passada,
diante da estabelecida “premissa de materialização de direitos [...] e a consequente
transferência para o Estado de novas funções de inclusão e compensação, a delimitação 47 Antonio Baldassare, Stato sociale: una formula in evoluzione, in: Baldassare e Cervanti (Org.),
Critica dello Stato Sociale, Roma-Bari: Laterza, 1982, p. 40. 48 Ou seja, “começou-se a exigir do Estado a proteção contra o desemprego e, pouco a pouco, seguros
sociais contra as doenças e a velhice, providências em favor da maternidade, casas a preços populares, etc.” (Bobbio, O futuro da democracia, p. 35).
49 Idem, ibidem, p. 35. 50 Idem, p. 109.
33
entre Direito Público e Privado deixa de ser ontológica para assumir uma mera feição
didático-pedagógica”. Deveras, “A rigor, todo direito é público no Estado Social.
Mantendo-se a dicotomia para fins didáticos, convém mencionar o advento de novas
formas de juridicidade e a revisão dos fundamentos das disciplinas tradicionais”. Logo,
“Verifica-se a tendência, em ambas as hipóteses, de confundir os domínios [...] do
Direito Público e do Direito Privado. O Direito Administrativo, como disciplina
autônoma da teoria e da dogmática jurídicas, aparece no contexto do Estado Social”.51
Interessa notar que no Estado social o Direito Administrativo incorpora
o que de mais relevante acontece como elemento transformador do Estado: a ideia de
que é preciso proteger o indivíduo, não mais no contexto individualista do Estado
liberal, em que as liberdades negativas bastavam para que houvesse o seu
desenvolvimento humano, mas sim em cuidá-lo e auxiliá-lo de toda forma possível em
uma conjuntura que tem caráter e conteúdo voltado ao social.52 A ordem é disciplinar as
políticas sociais e a prestação de serviços à coletividade.
O Direito Administrativo assim instrumentaliza essa nova concepção
estatal, na medida em que também sofre alterações embaladas pelos novos valores que
se incorporam ao ordenamento jurídico. Na esteira dessas transformações verifica-se
que no Estado social “A economia assumiu novo peso na vida associada; a luta por
valores econômicos substituiu a luta por valores morais; a liberdade é quase instrumento
para algo que ela possibilita obter; não é possibilidade de fazer, mas de desfrutar”. Além
disso, “Ao indivíduo, à comunidade não basta mais estar em condições de fazer o que
crê, nem basta um catálogo de direitos e correspondentes limitações do Estado; o Estado
deve ser também instrumento para ser alcançado um bem que a comunidade vê como
51 Araújo Pinto, Arqueologia de uma distinção..., p. 41. Segundo o autor: “O célebre caso Blanco,
ocorrido em Bordeaux no ano de 1873, inaugura a discussão em torno da responsabilidade estatal e reflete a amplificação do campo de atuação estatal no paradigma do Estado Social” (Idem, ibidem, p. 41).
52 A ordem no Estado social é de proteger, e por via transversa protege-se até a minoria dominante, porque, embora as regras não sejam mais ditadas por uma classe social apenas, como no Estado liberal, em que nitidamente se tinha o controle político, econômico e social apenas por parte da burguesia, e agora o poder tenha sido democratizado, havendo mais grupos detendo o seu controle, resguardar e proteger é o lema do Estado de bem-estar e assim deve se materializar amplamente; ao fornecer bens e serviços para a população, protege-se indiretamente a propriedade de quem está no controle do Estado, na medida em que a população satisfeita não ameaça, não almeja os bens alheios. A par disso, é o Estado Social o modelo de Estado mais democrático e mais preocupado com a proteção dos administrados.
34
essencial”; estampa-se que o Estado “assumiu o bem-estar econômico da coletividade
entre os interesses públicos, como um deles”.53 É a época, portanto, do Direito
Administrativo que disciplina a forte intervenção do Estado no domínio econômico e
social.
De tal modo, a atuação intervencionista do Estado expandiu-se
imensamente e a sua esfera de controle, ingerência e penetração chegou ao ponto em
que o ente estatal se viu assumindo atividades e operando em áreas que antes eram
consideradas como próprias da iniciativa privada, o que acabou por implicar o
fenômeno de “publicização do privado”. Nesse viés, se o agir estatal adquiriu novas
dimensões e proporções, natural que o Direito Administrativo acompanhasse essa
multiplicidade de tarefas assumidas pelo Estado social, na medida em que, como dantes
já se afirmou, Estado e Direito são fenômenos que caminham em um mesmo compasso
e sofrem interferências recíprocas, em especial o Direito Administrativo, responsável
por reger as condutas estatais decorrentes do exercício da função administrativa.
Logo, em todos os setores em que ocorreu a incursão do Poder Público,
lá estavam as normas administrativas a orientá-lo, uma vez que o Estado, para alcançar
seus desígnios, passou a se guiar por meio dessa disciplina jurídica. Portanto, se o
Estado passou primeiramente a ser regulador da economia, assim agia “mediante a
edição de normas disciplinadoras da conduta dos agentes econômicos”.54 Se “Num
segundo momento, passou ele a protagonizar a própria atividade econômica, criando
empresas com tal finalidade, ou participando, em sociedades, dos capitais de empresas
privadas”, tornando-se, “em consequência, um grande empregador”,55 igualmente
precisava editar um conjunto normativo que possibilitasse essa sua atuação.
Ainda, em momento posterior verifica-se que o Estado-providência,
com grande número de ações, em que se requer cada vez mais a prestação de serviços,
exige também a realização de grandes obras públicas. Entretanto, nesse caso, a
Administração não ousava “realizar ela própria directamente as grandes obras públicas,
53 Fillipo Satta, Principio di legalità e pubblica amministrazione nello Stato democratico, Padova:
Cedam, 1969, p. 50-51. 54 Bastos, Curso de teoria do Estado e ciência política, p. 70. 55 Idem, ibidem, p. 70.
35
desde logo devido à ‘comovente penúria das suas disponibilidades financeiras’ e ao
carácter aleatório dos resultados pecuniários”, pois, diante do alargamento do
intervencionismo estatal e dos grandes gastos, os recursos foram se esgotando, fazendo
com que a Administração Pública “figurasse ‘de nobreza sem fortuna que, não podendo
tratar e explorar directamente as herdades, as dá de arrependimento a quem, com a
cultura, por um lado as melhora e alinda, e por outro lhe proporciona certa participação
nas colheitas obtidas’”.56 Por conseguinte, ao Estado caberia firmar contratos
administrativos para a realização dessas obras.57
De qualquer forma, o Direito Administrativo no Estado social disciplina
não apenas a atuação do ente estatal, como também direitos a prestações positivas por
parte do Poder Público. Dessarte, o Estado, que veio adaptando o exercício da sua
autoridade, antes preponderantemente absenteísta, agora predominantemente
intervencionista e centralizador, é acompanhado pelo Direito Administrativo, outrora
filho caçula do Direito Público, ao depois, condutor dos numerosos intentos estatais.
Nessa passada, o Direito Administrativo assume papel fundamental em
relação ao rumo do Estado e destino da coletividade. Além do que se expôs, outro
fenômeno acontece: as fronteiras tradicionais com o Direito Constitucional se rompem e
há uma forte interpenetração entre esses dois ramos jurídicos, de modo que sucede o
processo de constitucionalização do Direito Administrativo.
1.3.1.1 A constitucionalização do Direito Administrativo
Pode-se dizer que a importância da Constituição originou o movimento
de constitucionalização ou de irrigação fecunda da Lei Maior nos outros ramos do
Direito. Deveras, “a irrigação é o processo criativo, a regeneração”. Favorece o
surgimento de “uma jurisprudência constitucional que oferece ao direito uma forma de
56 Estorninho baseada na Lição de José Maria Tello de Magalhães Collaço (A fuga para o direito
privado..., p. 43). 57 Segundo Estorninho, no Estado de bem-estar social “uma das características mais típicas da própria
dogmática administrativa desta fase é precisamente a afirmação da dualidade de regimes jurídicos aplicáveis à Administração Pública”, isto é, funda-se “nomeadamente na distinção entre ‘gestão pública’ e ‘gestão privada’ e na defesa da dicotomia entre ‘contrato administrativo’ e ‘contrato privado da Administração Pública’” (Idem, ibidem, p. 46).
36
renascimento. Irrigação e não secagem ou degeneração”.58 Nesse diapasão, considera-se
como tal “o processo de transformação de um ordenamento, ao término do qual o
ordenamento em questão resulta totalmente ‘impregnado’ pelas normas
constitucionais”, isto é, “Um ordenamento jurídico constitucionalizado se caracteriza
por uma Constituição extremamente invasora, intrusiva, intrometida, capaz de
condicionar tanto a legislação quanto a jurisprudência e o estilo doutrinário”, e, ainda,
“a ação dos atores políticos, bem como as relações sociais”.59
O fenômeno da constitucionalização do Direito foi “Uma das grandes
mudanças de paradigma que ocorreram ao longo do século XX”, em que se deu “a
modificação do status da norma constitucional, que começou a ser considerada como
norma jurídica”. Essa transformação foi importante para se superar “o modelo existente
na Europa até a metade do século passado, pelo qual a Constituição era compreendida
como um documento essencialmente político, um convite para que os poderes públicos
efetivamente atuassem”. Nesse sentido, “A concretização de suas propostas ficava
invariavelmente vinculada à atividade do legislador, à discricionariedade do
administrador. Ao Poder Judiciário não se reconhecia um papel relevante na realização
prática do conteúdo da Constituição”.60
Destaca-se que como referência principal “ao desenvolvimento do novo
direito constitucional” desponta “a Lei Fundamental de Bonn (Constituição alemã) de
1949, e, em especial, o surgimento do Tribunal Constitucional Federal, instalado em
1951”. Sob forte influência da Carta alemã inicia-se “uma fecunda produção teórica e
jurisprudencial, responsável pela ascensão científica do direito constitucional no âmbito
58 Nicolas Molfessis, L’irrigation du Droit par les Décisions du Conseil Constitutionnel, Le Seuil,
Pouvoirs, revue française d’études constitutionnelles et politiques, n. 105, p. 89, 2003/2. Na França o fenômeno da constitucionalização deveu-se ao papel do Conselho Constitucional. Por seu intermédio o direito social ganhou, sem dúvida, um forte aliado.
59 Riccardo Guastini, La “constitucionalización” del ordenamiento jurídico: el caso italiano, Estudios de teoría constitucional, México/DF: Fontamara, 2001, p. 153. Embora trazendo esse conceito do processo de constitucionalização, o autor reconhece que ele é mais sugestivo do que preciso. E assim arrola algumas condições para que esse processo seja possível: (1) uma Constituição rígida; (2) a garantia jurisdicional da Constituição; (3) a força vinculante da Constituição; (4) a “sobreinterpretação” da Constituição (sua interpretação extensiva, com o reconhecimento de normas implícitas); (5) a aplicação direta das normas constitucionais; (6) a interpretação das leis conforme a Constituição; (7) a influência da Constituição sobre as relações políticas (Idem, ibidem, p. 155-164).
60 Luís Roberto Barroso, El neoconstitucionalismo y la constitucionalización del derecho: el triunfo tardío del derecho constitucional en Brasil, México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2008, p. 6.
37
dos países de tradição romano-germânica”. Importa também mencionar a segunda
referência nesse processo de grande ampliação do direito constitucional que “é a
Constituição da Itália, de 1947, e o posterior surgimento de sua Corte Constitucional,
em 1956”. E ainda acresce que, “Ao largo da década de setenta, a redemocratização e a
constitucionalização de Portugal (1976) e da Espanha (1978) deram valor e substância
ao debate acerca do novo direito constitucional”.61
Antes de 1945, na maior parte da Europa vigia o modelo de supremacia
do Poder Legislativo, na linha da doutrina inglesa de soberania do parlamento e da
concepção francesa da lei como expressão da vontade geral. Todavia, a partir de fins da
década de 40, a nova onda trouxe não somente novas Constituições, mas também um
novo modelo, inspirado na experiência estadunidense: a supremacia da Constituição.62
A fórmula envolvia a constitucionalização dos direitos fundamentais, que assim ficavam
alheios ao processo majoritário: sua proteção passou a ser responsabilidade do Poder
Judiciário. Vários países europeus começaram a adotar um modelo próprio de controle
da constitucionalidade, associado à criação dos tribunais constitucionais.63
Deveras, o constitucionalismo social do século XX é responsável por
operar uma ampla reestruturação nas diretrizes do modelo estatal de bases liberais, na
medida em que assume novas atividades e ocupações na seara socioeconômica. Esta
reformulação atribui ao Poder Executivo a tarefa de programar as políticas públicas,
cabendo-lhe regulamentar diversos setores: saúde, educação, previdência, meio
ambiente, saneamento, transporte etc., conferindo-lhe, por conseguinte, uma ampla
competência normativa a fim de poder alcançar ditos fins sociais. E não só. A lei,
também assume papel importante nessa empreitada, tornando-se instrumento essencial
para as intervenções do Estado nesses variados campos.
Ao ser impregnado de forma intensa pelas normas constitucionais, o
Direito Administrativo efetivamente se transforma. Tendo-se como norte as normas
61 Barroso, El neoconstitucionalismo y la constitucionalización del derecho..., p. 2. 62 Possível verificar nesse passo que, “Com a reconstitucionalização aquecida depois da Segunda
Guerra Mundial, dito panorama começou a modificar-se. Inicialmente na Alemanha, pouco depois, na Itália, e mais adiante, em Portugal e Espanha” (Idem, ibidem, p. 8).
63 Idem, p. 8.
38
constitucionais, a Administração encabeça a execução das políticas públicas e ao órgão
jurisdicional competem, como se disse, o seu resguardo e amparo. Com efeito, é de ver
que, “enquanto normas de caráter estrutural, as normas constitucionais fundamentais
determinam os processos de tomada de decisão dos poderes públicos e oferecem
padrões ou modelos para a atuação administrativa”.64 Nesse sentido, “A vinculação da
Administração ao Direito parte da Constituição”. A sujeição da Administração à
observância dos direitos fundamentais “é uma consequência elementar da natureza
normativa da Constituição”.65 Natural, portanto, que os direitos fundamentais passem
por “uma progressiva intensificação de sua eficácia (em relação a terceiros, pelo efeito
da irradiação, pela vinculação aos poderes públicos, por sua extensão aos status
especiais...)”. Destarte, “A eficácia real vai substituindo a eficácia meramente formal”.66
Logo, no Estado social, este assume a tarefa de brindar a população com
um mínimo básico de bem-estar por meio de prestações positivas de fazer no que diz
respeito à saúde, melhores condições de trabalho, segurança social, entre outras matérias
contidas na Constituição. Esse constitucionalismo social coloca, portanto, a
Administração Pública no centro de concretização dessas políticas sociais.
Cabe salientar que, em virtude da relevância da temática referente à
constitucionalização do Direito Administrativo, se voltará a tratar desse assunto mais
adiante, ao final do capítulo (item 1.6.5), com enfoque direcionado ao acontecimento
desse fenômeno no ordenamento jurídico brasileiro.
64 Eberhard Schmidt-Assmann, La teoría general del derecho administrativo como sistema, Madrid:
Marcial Pons, Instituto Nacional de Administración Pública, 2003, p. 51. 65 Idem, ibidem, p. 57. 66 Nesse sentido, Manuel Salguero leciona: “Todavia, a efetividade não é consequência automática da
eficácia vinculante do texto constitucional. É bem mais o resultado complexo e pluriarticulado de um processo de integração. A ótima garantia destes direitos não provém somente da dogmática, senão da obra de múltiplos fatores estatais, públicos e privados: o sistema educativo, a opinião pública, a imprensa, os grupos de interesses, o compromisso cívico... Em suma, a efetividade se remete à ‘cultura política de um povo’. Por isso diz Häberle que estamos necessitados da categoria de ‘cultura dos direitos fundamentais’. É uma categoria que consiste em conceber os direitos fundamentais ‘como parte integrante da cultura constitucional de um povo’ e afeta a ‘toda res publica’. Vai mais além dos estreitos limites do componente jurídico dogmático e se instala no mais amplo conceito de cultura” (Manuel Salguero, La cultura de los derechos fundamentales como garantía de la democracia, derechos y libertades, Revista del Instituto Bartolomé de las Casas, Universidad Carlos III de Madrid, Instituto Bartolomé de las Casas: Boletín Oficial del Estado, p. 445, 1999).
39
Pois bem, a par desse processo de impregnação do Direito pela
normatividade constitucional, se o Estado assistencial, de um canto, proporcionava o
bem-estar da população suprindo suas necessidades por meio da prestação de bens e
serviços, por outro, assumia cada vez mais atividades, o que conduziu à crise desse
modelo estatal, que importa ser analisada, pois essa conjuntura abre caminho para a
adoção das diretrizes do Estado neoliberal e da introdução e assimilação pelo Direito
Administrativo de novos institutos.
1.3.2 A crise do Estado social
Abraçada a linha protetiva, o Estado social se viu envolto em uma série
de ações e atuações, resultado de sua diretriz demasiadamente centralizadora, motivo
que acarretou o seu agigantamento, sua improdutividade e sua ineficiência, gerando a
necessidade de descentralizar as atividades estatais, a fim de alcançar melhores
resultados na prestação dos serviços públicos.
Esse alargamento das tarefas assumidas pelo Estado social é
considerado causador das rachaduras e fissuras na sua base estrutural, sobretudo no que
diz respeito aos temas ligados ao grande gasto de dinheiro público na prestação dos
serviços e à morosidade excessiva em sua atuação em virtude de sua burocratização.
Asseverava-se que, tantas e tamanhas foram as responsabilidades assumidas pelo
Estado, que o ente estatal deixou de desempenhá-las de forma satisfatória; e, além disso,
afirmava-se que sua abrangência já não alcançava a todos como antes. Com o seu
aparelho demasiadamente burocrático (privilegiando os procedimentos em vez dos
resultados), oneroso (com custos excessivos), ineficiente e ineficaz (não conseguindo
alcançar os fins pretendidos), torna-se um entrave aos objetivos estatais.
O crescente déficit público, a enorme penetração estatal na sociedade
civil retirando cada vez mais sua força e identidade, a indiferença política abatendo-se
sobre os cidadãos, a grande dependência do paternalismo do Estado, a patronagem em
relação aos servidores públicos, uma legislação social custosa, que espantava o
investimento de grandes empresas, o Poder Executivo sobressaindo-se sobre as outras
40
funções estatais, fazendo cair no descrédito o primado da separação de poderes em face
da ingerência estatal em todos os setores da vida econômica e social,67 tudo isso
evidenciou que o Estado prestador de serviços estava em crise e precisava ser
remodelado, uma vez que apresentava, consoante se asseverava, claros sinais de que
seria incapaz de continuar a desenvolver a contento todas as tarefas assumidas.
Perante esse panorama de protecionismo e de grandeza do Estado
social, colocava-se em xeque, por via de consequência, a sua continuidade, exatamente
porque o Welfare State não primava pela eficiência nem pela economicidade. Seu
avultado tamanho decorrente da sua ingerência nas mais diversas esferas foi
considerado motivo de limitação ao desenvolvimento econômico e obstáculo à livre
concorrência. Crescia a insatisfação com o Estado de bem-estar e aumentava o desejo de
instituir outra forma de Estado, agora calcada no primado da subsidiariedade. E foi o
que se fez. Deu-se azo ao modelo de Estado pós-social nas décadas finais do século XX.
1.4 O Estado pós-social
Diante das diferenças terminológicas empregadas no estudo do modelo
estatal posterior ao Estado-providência, cabe fazer um esclarecimento importante: o
Estado pós-social, sob o ponto de vista econômico, é chamado por muitos doutrinadores
de Estado neoliberal, e este seria dominante ainda nos dias atuais; para outros, o modelo
calcado no neoliberalismo já foi substituído, contemporaneamente, pelo Estado pós-
neoliberal ou Estado neossocial. Outros ainda, não fazem essa distinção, denominando a
forma de Estado ulterior ao Estado de bem-estar de Estado pós-social. Sob o ponto de
vista político, encontra-se recorrentemente na doutrina, nacional e estrangeira, a
afirmativa de que o Estado social foi substituído pelo Estado Democrático de Direito.
Em relação a essa última concepção, quem a defende propugna que os
ideais de liberdade, de igualdade, de justiça social, de proteção aos direitos e garantias
67 Argumentando nesse sentido sobre as consequências negativas advindas com a grandiosidade do
Estado social está Luciana Medeiros Fernandes, Subsidiariedade e parceria: o terceiro setor (As organizações da sociedade civil), Revista Esmafe – Escola de Magistratura Federal da 5.ª Região, Recife – Pernambuco, n. 6, p. 274, 2004.
41
fundamentais são verdadeiramente reconhecidos, protegidos e concretamente aplicados
nessa concepção estatal.
Deveras, como antes já se disse, fica difícil apartar o aspecto econômico
do político, uma vez que estão intimamente ligados, e dissociá-los seria um tanto sem
sentido.68 Em realidade, com exceção dos Estados que agasalharam políticas
totalitaristas, a democracia já se fez presente, em uma dimensão mais plena, no Estado
de bem-estar social.
Feita essa devida advertência, e em face do tratamento doutrinário
distinto, convém esclarecer que se adotará no presente trabalho a expressão “Estado
pós-social”, como equivalente ao modelo estatal que buscou suplantar o Estado
assistencial, porém com sentido mais amplo, comportando duas fases: uma primeira
etapa em que houve o surgimento do Estado neoliberal e uma segunda etapa (hodierna),
que adveio em virtude da crise do Estado neoliberal, o Estado pós-neoliberal.
Após esse devido aclaramento, principiar-se-á então a análise da
primeira fase do Estado pós-social.
1.4.1 Estado neoliberal
Em face da crescente intervenção estatal e da ampla dimensão
estampada pelo Estado de bem-estar, que acarretou a deficitária prestação de serviços à
coletividade – já que não conseguia satisfazer a todos, pois assumiu mais atividades do
que poderia realizar –, desponta no cenário mundial o Estado neoliberal, proclamando
pela autonomia e liberdade individual e a autorrealização da sociedade civil.69
68 Como afirma J. J. Calmon de Passos, quando trata do Futuro do Estado e do Direito do Estado, que
“dissociar o político do econômico é desprovido de todo e qualquer sentido. A ordem social é um imperativo a partir da inviabilidade de poderem os homens produzir, espontânea e isoladamente, os bens necessários ao atendimento de suas necessidades. Esta a matriz da organização social e também do político” (J. J. Calmon de Passos, O futuro do Estado e do direito do Estado. Democracia, globalização e o neonacionalismo. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador: Instituto de Direito Público da Bahia, n. 2, jun.-jul.-ago. 2005. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 3 set. 11).
69 Conforme observa Estorninho sobre o que ela denomina de Estado pós-social: “O alargamento desmesurado da actividade administrativa de prestação conduziu à sobrecarga e ineficiência da Administração Pública e, assim, tal como o náufrago procura, a todo custo, agarrar-se ‘à tábua de
42
À frente do pensamento neoliberal encontrava-se Friedrich von Hayek,
principal nome dessa doutrina, que, em seu manifesto inaugural do neoliberalismo, O
caminho da servidão (1944), defendia que não era aceitável o intervencionismo estatal,
pois o crescente domínio do Estado leva inevitavelmente à total “perda da liberdade”.70
Além do mais, dirigia suas ideias combatendo, provocativamente, os “socialistas de
todos os partidos”, indo contra “toda e qualquer medida política, econômica e social que
indique a mais tímida simpatia ou concessão para com as veleidades reformistas ou
pretensões de fundar uma ‘terceira via’ entre capitalismo e comunismo”.71
Segundo os neoliberais, era possível identificar dois inimigos que
deveriam ser combatidos: “Um desses inimigos era o conjunto institucional composto
pelo Estado de bem-estar social, pela planificação e pela intervenção estatal na
economia”; o “outro inimigo era localizado nas modernas corporações – os sindicatos e
centrais, que, nas democracias de massas do século XX, também foram paulatinamente
integrados nesse conjunto institucional”. Essas entidades eram consideradas culpadas
por sabotarem “as bases da acumulação privada por meio de reivindicações salariais”, e
uma vez que “os sindicatos teriam empurrado o Estado a um crescimento parasitário,
impondo despesas sociais e investimentos que não tinham perspectiva de retorno”.72
Interessa notar que essa forma de pensar frutificou e sofreu adaptações
sem perder a sua essência, contrária ao forte intervencionismo estatal, o que inspirou,
nas últimas décadas do século passado, “um conjunto particular de receitas econômicas
e programas políticos que começaram a ser propostos nos anos 70”, tendo “como fonte
de inspiração principal as obras de Milton Fiedman”, que, “por sua vez, remontam a
Hayek e à chamada ‘tradição austríaca’”.73-74
salvação’, a Administração procura hoje desesperadamente reencontrar a eficiência, nomeadamente através de fenômenos de privatização e de revalorização da sociedade civil” (A fuga para o direito privado..., p. 48).
70 Göran Therborn, A trama do neoliberalismo, mercado, crise e exclusão social, in: Edmir Sader, Pablo Gentili (Org.), Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 139.
71 Reginaldo C. Correa de Moraes, Neoliberalismo: de onde vem, para onde vai?, São Paulo: Senac, v. 6, p. 27-28.
72 Moraes, Neoliberalismo: de onde vem, para onde vai?, p. 28. 73 Therborn, A trama do neoliberalismo, mercado, crise e exclusão social, p. 139-140.
43
Esse plexo de programas invariavelmente continha diretrizes que
incluíam como incumbência governamental instituir medidas para estabilizar a moeda,
diminuir o déficit público e suplantar o Estado de bem-estar. Nesse sentido, importava
dar primazia aos planos e metas que permitissem reduzir ao mínimo a indesejada
ingerência do Estado assistencial e livrar os indivíduos das amarrações que os
cercavam, e que os inibiam a ponto de não conseguirem desenvolver e ampliar suas
capacidades de per si.
A transformação do ente estatal seria pautada nomeadamente pela
redução das suas dimensões; pela privatização das entidades integrantes do corpo
estatal, descomprometidas quanto à concretização das atividades típicas do Estado; pela
importância dada à liberdade econômica e à livre concorrência, ou seja, ao livre
mercado; pelo fim dos monopólios; pela descentralização das tarefas desempenhadas
pelo Estado, mesmo que típicas; pela presteza e bom desempenho na realização das
atividades estatais, até mesmo com a introdução de novos padrões gerenciais; pela
relação de colaboração estabelecida entre o Estado e a sociedade civil; pela participação
popular na Administração Pública, especialmente no tocante ao controle da qualidade na
prestação de serviços à coletividade etc.75
Nesse passo, objetivando alcançar referidos fins, resgatou-se o
pensamento liberal com uma roupagem um pouco mais adaptada aos novos tempos, na
medida em que agora também se unia ao liberalismo econômico o liberalismo político.
Não obstante, manteve como meta continuar a ser “uma reação teórica e política
veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar”.76 De tal modo, importava
adotar um modelo de Estado forte, modernizado, que priorizasse os benefícios criadores
74 Importante destacar que “[...] Da década de 30 até a década de 70, a produção teórica neoliberal
ficou restrita aos muros das academias e das instituições de pesquisa. Somente, no início dos anos 70, com a eleição de Margaret Thatcher na Inglaterra e Ronald Reagan nos Estados Unidos, o neoliberalismo chegou ao poder iniciando-se uma campanha em busca da hegemonia ideológica no mundo. Com a simbólica queda do Muro de Berlim e com a extinção da União Soviética, os neoliberais anunciaram, de forma eufórica, a ‘vitória definitiva’ da economia de mercado, que significava a conjunção do liberalismo econômico com o liberalismo político” (Francisco Uribam Xavier de Holanda, Do liberalismo ao neoliberalismo: o itinerário de uma cosmovisão impenitente, 2. ed., Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p. 51-52).
75 Roberto Ribeiro Bazilli e Ludmila da Silva Bazilli Montenegro, Apontamentos sobre a reforma Administrativa, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 18-19.
76 Perry Anderson, Balanço do neoliberalismo, in: Emir Sader e Pablo Gentili (Org.), Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 9.
44
do mercado. Entretanto, diferentemente do que se estabeleceu no liberalismo clássico, é
possível verificar um campo propício para uma relação não mais de oposição entre o
ente estatal e a sociedade – o Estado, agora com seu papel reduzido, e a sociedade civil,
fortalecida –, o que propiciou a possibilidade de travarem parcerias e estabelecerem
vínculos para concretizarem atividades baseadas em uma relação de
complementaridade.77
Essa nova forma estatal, portanto, também teve como objetivo,
fortalecer a sociedade civil, buscando inspiração no princípio da subsidiariedade,
oriundo da doutrina social da Igreja Católica, o qual “procurava demonstrar que onde
falta a atuação da iniciativa privada a tirania se apodera do Estado”.78 Sua concepção
pressupõe a ideia de que as organizações de ordem inferior devem desempenhar as
funções que elas próprias são aptas a realizar, em vez de recorrerem aos grupos
superiores transferindo a estes atribuições que os agrupamentos menores podem
alcançar e solucionar de maneira eficiente.
Ao dar precedência à esfera privada em detrimento da conduta e atuação
estatal, reconhece-se que o Estado deve eximir-se de praticar atividades que os
particulares têm a capacidade de efetivar, pois entende-se que a sociedade civil deve
poder andar com suas próprias pernas, escolher o seu próprio caminho, traçar os seus
rumos, com a mínima interferência do Poder Público. E veja-se que nessa empreitada,
somente se a iniciativa privada não tiver êxito, abrir-se-á para o ente estatal a
possibilidade de acionar a sua ação como fomentador, colaborador e fiscalizador da
77 No sentido de o Estado e de a sociedade civil serem “compartes” e “não mais concebidos como
reciprocamente excludentes” se pronuncia Medeiros Fernandes (Subsidiariedade e parceria: o terceiro setor (As organizações da sociedade civil), p. 275).
78 Com efeito, “O princípio da subsidiariedade, cuja concepção moderna é tributária da doutrina social da Igreja Católica que o erigiu em ‘solene princípio da filosofia social’, como expresso na Encíclica Quadragesimo Anno do Papa Pio XI (1931), foi concebido para proteger a esfera de autonomia dos indivíduos e da coletividade contra toda intervenção pública injustificada, contrapondo, de um lado, a autonomia individual e o pluralismo social às ideologias socialistas do final do século XIX e início do séc. XX, e, de outro, contestando os excessos do liberalismo clássico, que propugnava pelo afastamento do Estado do âmbito social. Esse princípio deriva de uma concepção cristã de sociedade, ou seja, de um ‘humanismo cristão’ que não se identifica nem com o ‘humanismo individualista’, nem com o ‘humanismo socialista’” (Torres, O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo, p. 7). Ainda, pode-se acrescentar a respeito desse mandamento o seguinte: “Proveniente da expressão latina subsidium, que significa ajuda ou socorro, a subsidiariedade não conduz a um mero limite à ação do poder público, assinando-lhe, ao revés, a função de estímulo, coordenação, integração e, excepcionalmente, suplência” (Idem, ibidem, p. 268).
45
livre-iniciativa, a fim de que os indivíduos concretizem seus desígnios empreendedores.
Assim, institui-se e fortalece-se a parceria entre o público e o privado, no sentido de que
o Estado ofereça seu auxílio aos particulares quando não tiverem condições de
materializar seus propósitos.79
Cabe ao Estado a missão de traçar diretrizes que possibilitem a
coexistência harmônica entre a importância e o destaque conferidos aos particulares e à
sociedade civil no cenário neoliberal, com seu posto de ator secundário (ou acessório)
na condução da economia e na prestação dos serviços públicos. Ao ente estatal é
conferido o atestado de mero coadjuvante, e a livre-iniciativa passa a ser dona do papel
principal.
Na esteira dessa ordem, exigem-se da esfera privada uma maior atuação
e desempenho de sua parte, o que implica a transferência de responsabilidades e
encargos, antes do Estado, agora dos particulares, uma vez que estes passam a executar
serviços sociais não exclusivos do Estado, notadamente os serviços de saúde e
educação. Nesta tarefa agem em conformidade com os interesses e as forças do
mercado, realizando a prestação do serviço como se fosse qualquer outra atividade
econômica privada lucrativa, contando com a ajuda e o suporte financeiro do Poder
Público quando não consigam concretizar referido objetivo, mas tão só dentro do
indispensável à efetivação de seus fins. Acontece um claro movimento de “privatização
do público”.80
Diante de todas essas mudanças trazidas pela política neoliberal, outra
vez o Direito Administrativo sofreu modificações e recebeu novos institutos, muitos dos
quais importados do Direito estrangeiro sob o influxo da onda originária do
neoliberalismo.
79 Estas ideias advindas do princípio da subsidiariedade são expostas por Maria Sylvia Zanella Di
Pietro, Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas, 5. ed., São Paulo: Atlas, 2002, p. 33-34.
80 Nesse sentido, no que diz respeito à privatização da Administração Pública, Sebastian Ricardo Martín-Retortillo Baquer afirma tratar-se do “fato de que funções e atribuições de inequívoco caráter público serão exercidas pela Administração, conforme procedimentos jurídico-privados, ou serão remetidas às organizações de caráter privado que, naturalmente, desempenhá-las-ão de acordo com esses mesmos procedimentos” (Sebastian Ricardo Martín-Retortillo Baquer, Reflexiones sobre la “huida” del derecho administrativo, Revista de Administración Pública, n. 140, p. 34, maio-ago. 1996).
46
1.4.2 O neoliberalismo e o Direito Administrativo
Com o advento do neoliberalismo talvez nenhum outro ramo do Direito
tenha sido tão sensível às mudanças decorrentes dessa concepção estatal do que o
Direito Administrativo –, embora se saiba que em realidade seja difícil encontrar
alguma área do saber jurídico que tenha ficado incólume às transformações decorrentes
dessa doutrina político-econômica.
Perante a reformulação do papel do Estado todo o modo de pensar e
conceber o Direito Administrativo clássico, com sua principiologia tradicional, foi
abalado por um agitado e intenso processo que tem por escopo reestruturar e modificar
institutos já consolidados que integram essa disciplina.
Nessa passada, verifica-se que, simultaneamente à transformação que se
fez no perfil do Estado, ocorreram alterações que atingiram os sujeitos que fazem parte
da estrutura da Administração, ou seja, seus entes, órgãos e agentes, bem como
existiram aquelas que alcançaram as atividades desempenhadas pelo Estado-
administração. Ou seja, a mudança afetou de modo intenso também o aparelho do
Estado, como não podia deixar de acontecer, uma vez que o Estado e seu aparato estão
umbilicalmente ligados.
Para fazer menção exemplificativa apenas ao que é mais nítido em
termos de mudança: a busca por eficiência, agilidade e transparência passaram a ser o
lema da bandeira que deveria ser hasteada sem trégua na Administração em todos os
níveis; a estrutura da Administração Direta se reduz e descentraliza-se, na medida em
que se criam entes da Administração Indireta, especialmente as agências reguladoras,
para controlarem e fiscalizarem seus respectivos setores de atuação, diminuindo o papel
do ente central nas atividades de prestação de serviços públicos e controle dessas
atividades quando exercidas por terceiros, isto é, transformou-se a prestação de serviços
públicos, que passou a ser comandada e normatizada pelas agências reguladoras, as
quais realizam a contratação com a esfera privada, assumindo para si o que antes era de
competência da Administração Central; materializam-se os contratos de gestão,
empregados como instrumento hábil para reger os termos e metas de desempenho a
serem firmados entre as agências executivas e seus órgãos supervisores; terceirizam-se
47
as atividades materiais subalternas ocorrendo a completa transferência da atividade para
a esfera privada, que age como provedora de mão de obra para o Estado; privatizam-se
as empresas estatais que deixam de compor o quadro de entidades públicas e permite-se,
com isso, um campo maior de atuação para a livre-iniciativa, reduzindo assim a
interferência do ente estatal na ordem econômica; o Estado e as organizações sociais
firmam contrato de gestão, em que o ente estatal (contratante) transfere atribuições,
recursos materiais e humanos para uma pessoa jurídica de direito privado, que assume
inteiramente a gestão e prestação de serviços públicos aos usuários; o fomento81 nunca
fora tão solicitado para promover e incentivar os particulares, a fim de que satisfaçam
necessidades consideradas de utilidade pública etc.
Modifica-se o Direito Administrativo, que atravessa a margem da
imposição e obediência, em que se dá primazia ao público e coletivo, para a de maior
consensualidade. Defende-se que o muro divisor entre o Direito Público e o Privado não
passa de uma distinção que serve tão somente para facilitar o estudo desses dois grandes
ramos jurídicos,82 prevalecendo a posição “segundo a qual os dois tipos de direito não
são campos totalmente opostos”,83 ocorrendo o “movimento de privatização de setores
da ação administrativa”.84
81 Nesse sentido, a atividade administrativa de fomento pode ser definida: “[...] como aquella actividad
administrativa que se dirige a satisfacer indiretamente ciertas necesidades consideradas de carácter público, protegiendo o promoviendo, sin emplear la coacción, las actividades de los particulares, y aun las de otros entes públicos que directamente las satisfacen” (Garrido Falla citado por Héctor Jorge Escola, Otras actividades administrativas, Compendio de derecho administrativo, Buenos Aires: Depalma, 1990, v. 2, p. 858). Ou, ainda, pode-se conceituá-la de forma mais concisa dizendo que ela: “Es una acción dirigida a proteger o promover las actividades y establecimientos de los particulares, que satisfagan necesidades públicas o que se estimen de utilidad general” (Roberto Dromi, Derecho administrativo, 4. ed. actual., Buenos Aires: Ediciones Ciudad Argentina, 1995, p. 655).
82 Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão, Introdução ao estudo do direito, Lisboa: Europa-América, Mem Martins, 1991, p. 222.
83 Estorninho, A fuga para o direito privado..., p. 153. 84 O qual, todavia, segundo Estorninho, “não deve ser encarado de forma exageradamente radical, uma
vez que mesmo quando a Administração Pública se socorre das formas de organização e actuação do Direito Privado este sofre algumas transformações e nunca se aplica ‘em si mesmo’” (Ibidem, p. 156).
48
1.4.3 A crise do neoliberalismo
Cabe explicar que as crises, analisadas em tópicos precedentes,
consoante se expôs, levaram ao fracasso do modelo estatal adotado e à sua superação
por uma nova forma de Estado. Isso ocorreu no tocante às outras concepções que o
Estado moderno assumiu e, da mesma maneira, deu-se com a feição estatal pautada no
neoliberalismo.
Sem conseguir o êxito que pretendia, o que se viu foi que após o período
de lua de mel com o neoliberalismo85 tornou-se possível verificar que o “elã neoliberal
começou a perder impulso”. Com isso, “Os déficits nas balanças comerciais, nas balanças
de pagamento, a desindustrialização”, acompanhados pelos “desequilíbrios sociais, com
taxas altas de desemprego, as clivagens sociais aprofundadas, as instabilidades provenientes
da ampla abertura ao mercado internacional foram refletindo esse novo período”.86 Um
momento de crise, de derrocada da política econômica neoliberal.
Portanto, a avaliação que se pode fazer em relação à política neoliberal
não é positiva. O que se demonstrou foi “uma fortíssima ofensiva no campo liberal”
ameaçando “derrubar os elementos decisivos do pacto do pós-guerra”, que, uma vez
demolidos, levam a “um aumento da marginalização social na medida em que a
‘maioria satisfeita’ vai deixando um setor da população cada vez mais fora dos circuitos
do trabalho, do consumo e da representação política”.87
O que se viu foi que a política de autorregulação do mercado serviu para
aumentar o número de desempregados, subempregados e miseráveis.88 Com efeito, fica
85 A lua de mel nos países da América Latina se deveu à “diminuição brusca e espetacular de processos
hiperinflacionários desatados ou em curso” (Emir Sader, A hegemonia neoliberal na América Latina, Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático, p. 36).
86 Idem, ibidem, p. 36-37. 87 García Santesmases, El “êxito” del neoliberalismo, Isegoría: Revista de Filosofía Moral y Política,
Madrid, n. 9, p. 152, abr. 1994. 88 Sobre a exclusão social e a desigualdade decorrente do neoliberalismo, Boaventura de Sousa Santos
afirma que: “Efetivamente, o neoliberalismo intenta substituir todos os conceitos existentes, como os de desenvolvimento e de democracia, pelos conceitos de controle e de segurança, após a sua incapacidade de gerar um forte apoio popular. Isto é devido ao aprofundamento da exclusão social, pobreza e desigualdade crescente no capitalismo neoliberal, o que implica o surgimento de um fenômeno que chamo de ‘fascismo social’. Este não é um regime político, mas uma forma de
49
fora de dúvida que “O neoliberalismo neutralizou, ou enfraqueceu grandemente, os
mecanismos democráticos de redistribuição social – ou seja, os direitos
socioeconômicos e o Estado-providência”.
Em termos mais amplos, verifica-se que no sistema global “o Estado-
nação se percebe como uma autoridade local que já não pode determinar de forma
independente as escalas da atividade econômica ou de emprego dentro de seu
território”; na verdade, “tais parâmetros estão ditados pelas opções da mobilização
internacional do capital”.89 Nesse passo, em virtude da globalização e do
neoliberalismo, submeter-se a quem comanda as forças políticas e econômicas
internacionais é um preço muito alto a pagar. O abandono às “soluções” do próprio
mercado mostra-se uma vez mais um modelo falho e combalido. No fundo, a política
neoliberal serviu para mostrar que não consegue se sustentar e que a intervenção estatal
por vezes é necessária para salvar os países sempre que as forças do livre mercado
evidenciam sua autoinsuficiência.
Nesse contexto, importa fazer uma análise do que aconteceu depois do
apogeu do Estado neoliberal, em que se adentra na era do Estado pós-neoliberal.
1.5 O Estado pós-neoliberal: a crise mundial e a proposta de resgate do Estado
Social e Democrático de Direito
O modelo de Estado resgatado e moldado à imagem e semelhança do
Estado mínimo atingiu seu ápice no findar do século XX. Se de um lado o pensamento
de Hayek foi pouco a pouco conquistando espaço dentro e fora das cátedras,90 e daí um
sociabilidade de desigualdade tão forte que alguns têm poder de veto sobre a vida dos outros. Corremos o risco de viver em sociedades que são politicamente democráticas, mas socialmente fascistas” (Boaventura de Sousa Santos, Entre la represión del neoliberalismo y la imaginación utópica de los pueblos, entrevista concedida a ALAI, América Latina en Movimiento, em 9 jun. 2008. Disponível em: <http://alainet.org/active/24577>. Acesso em: 31 jul. 2011).
89 Roger Campione, Modernidad, globalización y tercera vía. O del síndrome de Anthony Giddens, Derechos y Libertades, Revista del Instituto Bartolomé de las Casas, Madrid: Universidad Carlos III de Madrid, Instituto Bartolomé de las Casas: Boletín Oficial del Estado, VII (11) , p. 140, Ene-dic. 2002.
90 De 1927 a 1931 Hayek foi diretor do Instituto Austríaco de Pesquisas Econômicas; de 1929 a 1931 foi professor de Economia na Universidade de Viena. Em 1931 assumiu uma cátedra na London School of Economics, onde lecionou até 1950, ano em que aceitou uma cátedra na Universidade de
50
progressivo processo evolutivo de disseminar o neoliberalismo pelo mundo, de outro
canto, quando os vários Estados-nações espalhados pelos diversos continentes
finalmente adotaram a concepção neoliberal, de modo que o neoliberalismo difundiu-se
quase que hegemonicamente pelo globo, essa forma estatal neoabsenteísta não
conseguiu sustentar suas diretrizes, metas e planos, evidenciando o seu fracasso com a
crise financeira estadunidense de 2008, e que depois rapidamente se propagou por todo
o mercado mundial.
A resposta ao neoliberalismo, contudo, não foi uniforme. Alguns países
optaram por seguir um pós-neoliberalismo capitalista, nos mesmos moldes do que se
vinha adotando; outros optaram por retornar às políticas voltadas ao bem-estar da
coletividade;91 outros, ainda, preferiram adotar um pós-neoliberalismo social, o que tem
sido chamado de “socialismo do século XXI”.92
Entre os países que continuaram a seguir a via do neoliberalismo, o
resultado mostrou-se desapontador. Como reação à falência do sistema neoliberal,
deixa-se evidente a não aceitação a essa política, nos Estados Unidos da América, por
intermédio do Ocupe Wall Street, em que se rejeita “uma partilha cada vez mais
desigual da riqueza” com “salários e pensões confiscados, horários e ritmos de trabalho
aumentados; tributação e resgates financeiros a favor dos ricos – o ‘1%’, segundo os
Chicago lá permanecendo até 1962. Deste ano até 1969 ocupou uma cátedra em Freiburg, onde foi Professor Emérito. Conquistou o Prêmio Nobel de 1974 (Disponível em: <http://nobelprize.org/nobel_prizes/economics/laureates/1974/hayek.html>. Acesso em: 31 jul. 2011).
91 O Brasil enquadra-se nessa opção, podendo-se denominar de fase neossocial do modelo estatal brasileiro, apesar de ainda carregar alguns ranços da política neoliberal, conforme se verá adiante.
92 Quanto a este último ponto, “Em 2005, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, colocou na agenda política o objectivo de construir o ‘socialismo do século XXI’. Desde então, dois outros governantes – tal como Chávez, democraticamente eleitos –, Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador), tomaram a mesma opção. [...]. O socialismo reemerge porque o capitalismo neoliberal, não só não cumpriu as suas promessas, como tentou disfarçar esse facto com arrogância militar e cultural; porque a sua voracidade de recursos naturais o envolveu em guerras injustas e acabou por dar poder a alguns países que os detêm; porque Cuba – qualquer que seja a opinião a respeito do seu regime – continua a ser um exemplo de solidariedade internacional e de dignidade na resistência contra a superpotência; porque, desde 2001, o Fórum Social Mundial tem vindo a apontar para futuros pós-capitalistas, ainda que sem os definir; porque nesse processo ganharam força e visibilidade movimentos sociais, cujas lutas pela terra, pela água, pela soberania alimentar, pelo fim da dívida externa e das discriminações raciais e sexuais, pela identidade cultural e por uma sociedade justa e ecologicamente equilibrada parecem estar votadas ao fracasso no marco do capitalismo neoliberal” (Boaventura de Sousa Santos, O socialismo do século XXI, Carta Maior, Caderno Política, 24 maio 2007. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm? materia_id=14181>. Acesso em: 18 mar. 2012).
51
ocupantes de Wall Street”; e também “um quotidiano de angústia e de insegurança, de
colapso das expectativas, de perda da dignidade e da esperança para os ‘99%’”.93
Viu-se, de igual maneira, uma onda de protestos em vários países da
Zona Euro, por intermédio de greves gerais e manifestações contrárias às medidas de
austeridade impostas para tentar reduzir os déficits públicos. A população de nações,
como a Grécia, Itália, França, Espanha, Portugal, Reino Unido, não se conteve diante
das medidas tomadas pelos governos desses países, com o intuito de diminuir os gastos
públicos e as dívidas e instituir pacotes para tentar conter a crise econômico-financeira
que assola referidos países. Ditas medidas instituídas têm o fim de cumprir exigências
da União Europeia (UE) e do Fundo Monetário Internacional (FMI) para a concessão de
empréstimo para o pagamento das suas dívidas internas.
Na medida em que investimentos nas áreas da saúde, educação,
moradia, saneamento etc., foram reduzidos de maneira extremamente radical, somando-
se às restrições instituídas no sistema público de assistência e previdência social e às
alterações promovidas nas legislações sociais, e à flexibilização das relações de trabalho
na esfera privada e das garantias dos servidores no setor público,94 fica evidente que o
Estado pós-neoliberal precisa ser urgentemente remodelado.
Assim, é necessário refundar o Estado “para organizar a vida em
condição mais humana, elevando os níveis de participação democrática e respondendo
de maneira satisfatória às demandas e necessidades sociais”.95 Logo, o tipo de modelo
político-econômico sucessor do neoliberalismo tem relação direta com o tipo de
93 Boaventura de Sousa Santos explica que nos EUA o movimento Ocupe Wall Street surgiu em
setembro de 2011 (Boaventura de Sousa Santos, A greve geral, Carta Maior, Colunistas/16 nov. 2011, Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id= 5311>. Acesso em: 29 nov. 2011).
94 É o que acontece nos países da Zona Euro, por meio das medidas de austeridade, como já se disse. Consoante afirma Boaventura de Sousa Santos: “Em geral, podemos dizer que a greve geral na Europa de hoje é mais defensiva que ofensiva, visa menos promover um avanço civilizacional do que impedir um retrocesso civilizacional. É por isso que ela deixa de ser uma questão dos trabalhadores no seu conjunto para ser uma questão dos cidadãos empobrecidos no seu conjunto, tanto dos que trabalham como dos que não encontram trabalho, como ainda dos que trabalharam a vida inteira e veem hoje as suas pensões ameaçadas” (Ibidem).
95 Entrevista com Boaventura de Sousa Santos sobre neoliberalismo e o sequestro do direito. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/506636-o-neoliberalismo-e-o-sequestro-do-direito-para-boaventura-de-sousa-santos-a-legalidade-caminha-lado-a-lado-com-a-ilegalidade>. Acesso em: 16 mar. 2012.
52
sociedade que se quer; o cenário pós-neoliberal deve superar os problemas do
neoliberalismo e alcançar a humanização da sociedade, prezar pela democracia e
respeitar os direitos e garantias fundamentais, não podendo ser cópia exata do que já foi
adotado e não funcionou.
Nota-se que “as crises econômicas das últimas décadas, as
transformações produtivas e tecnológicas, a globalização do sistema econômico, as
desregulações e privatizações introduzidas por intermédio da perspectiva neoliberal dos
últimos decênios”, bem como “a criação de macropoderes econômicos opacos”, e ainda
“o deslocamento e destemporalização das relações laborativas”, obrigam agora que haja
“o fortalecimento do Estado Constitucional Social como nova aproximação que
fortaleça os direitos e suas garantias” e robusteça, de igual maneira, “os princípios de
supremacia constitucional e do império da juridicidade, a publicidade das atuações do
poder público e o controle do poder”.96
De todo modo, é fundamental que o Estado constitucional social
consiga contrabalançar a tríade liberdade, igualdade e solidariedade de um lado, com a
autoridade estatal de outro. Assim sendo, “O porvir da humanidade no mundo
convulsivo de nossos dias há de pertencer a uma sociedade de inspiração emancipadora,
voltada para concretizar valores postergados da justiça, da liberdade, da democracia, da
fraternidade”, o que em síntese pode ser representado pelos “valores resumidos na lição
constitucional dos direitos fundamentais, acrescidos das dimensões novas em que
democracia e paz emergem como direitos no pensamento jurídico da
contemporaneidade”.97
Nesse sentido, se o Estado liberal consagrou os direitos civis e políticos
como direitos de primeira dimensão, ou seja, os direitos de liberdade, e o Estado social
os direitos de segunda dimensão, isto é, os direitos de igualdade, no Estado pós-social
vieram à tona os direitos de terceira dimensão embasados no ideal de fraternidade
(direito à segurança, à proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, à paz, à 96 Humberto Nogueira Alcalá, El constitucionalismo contemporâneo e os direitos econômicos, sociales
y culturales, Revista Del Centro de Estudios Constitucionales, Santiago: Universidad de Talca, ano 1, n. 1, p. 137, 2003.
97 Paulo Bonavides, Do Estado neoliberal ao Estado neossocial. Folha de S. Paulo, 6 nov. 2008. Disponível em: <www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0611200809.htm>.
53
solidariedade universal etc.). E a democracia pode ser reconhecida como integrante da
quarta dimensão de direitos.98-99 Esta abarca “o direito à democracia direta, o direito à
informação e o direito ao pluralismo”, e destes direitos “depende a sociedade aberta do
futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo
inclinar-se no plano de todas as relações de convivência”.100
1.5.1 O Direito Administrativo no Estado pós-neoliberal
No plano global percebe-se que se promove um novo Direito
Administrativo, cujos princípios e conceitos convergem para a descentralização das
atividades estatais e para a regulação jurídica; cresce a interação entre o público e o
privado; amplia-se o intercâmbio com o Direito alienígena; ganha espaço a visão de que
o Direito Administrativo tem seu campo de atuação reduzido em face do Estado
regulador.
Todavia, esse cenário de mudanças exige que não se perca de vista a
noção de que o Estado não pode se furtar à sua missão de garantir o bem-estar dos
administrados. A diminuição do papel do Estado não é capaz de legitimar o sacrifício de
preceitos e princípios constitucionais.
Com efeito, no cenário do Estado pós-neoliberal, o Direito
Administrativo e seus princípios informadores precisam ser interpretados de modo que a
colisão entre o interesse público e os direitos dos administrados venha a ser conciliada
de forma democrática, equilibrada, justa, igualitária; o Estado deve atuar resguardando o
98 Quanto à democracia, diz ele: “A democracia positivada enquanto direito da quarta geração há de
ser, de necessidade, uma democracia direta. Materialmente possível graças aos avanços da tecnologia de comunicação, e legitimamente sustentável graças à informação correta e às aberturas pluralistas do sistema. Desse modo, há de ser também uma democracia isenta já das contaminações da mídia manipuladora, já do hermetismo de exclusão, de índole autocrática e unitarista, familiar aos monopólios do poder. Tudo isso, obviamente, se a informação e o pluralismo vingarem por igual como direitos paralelos e coadjutores da democracia; esta, porém, enquanto direito do gênero humano, projetado e concretizado no último grau de sua evolução conceitual” (Bonavides, Curso de direito constitucional, p. 571).
99 Bonavides, em vez de usar a designação dimensão mantém a tradicional terminologia geração, embora reconheça que o “vocábulo ‘dimensão’ substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo ‘geração’, caso este último venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade” (Idem, ibidem, p. 571-572).
100 Idem, p. 571.
54
interesse público primário sem deixar de agasalhar e dar efetividade aos direitos
fundamentais dos indivíduos.
Sob esse prisma verifica-se que o Direito Administrativo precisa pautar-
se pelos novos padrões substantivos que estão presentes no Estado Democrático de
Direito na sua acepção mais moderna, que introduzem novas considerações no tocante
aos fins e valores que a sociedade e o Estado necessitam desenvolver e consolidar. A
sábia interpretação e aplicação do Direito Administrativo tornam-se essenciais para
efetivar os anseios populares, na medida em que “os cidadãos exigem que os direitos
fundamentais e as liberdades públicas consagrados nos textos constitucionais sejam
reais e efetivos”.101 Por conseguinte, deve-se afastar a interpretação rígida e presa à letra
inerte da lei, com o objetivo de se “permitir um eficaz desenvolvimento social para a
nação”.102
Nesse passo, contemporaneamente, toda ação governamental só deve
ser exercida na medida em que atender às balizas e condições constitucionalmente
previstas, além de atuar tão só em consonância com o sentido e o espírito da
Constituição. Deveras, “Não se interpreta, sob hipótese alguma, um texto jurídico (um
dispositivo, uma lei etc.) desvinculado da antecipação de sentido representado pelo
sentido que o intérprete tem da Constituição”.103 Assim sendo, o administrador deve
agir limitado pelo ordenamento jurídico constitucional e o Direito Administrativo deve
fundar-se nos princípios e valores constitucionais, tanto formais quanto substantivos,
expressos ou implícitos. É imprescindível, por conseguinte, que esse ramo jurídico
incorpore, em tempos atuais, a tese de que representa o “Direito constitucional
concretizado”, em que se tem a força da Constituição a modelá-lo de modo decisivo.104
101 Fernando Sáinz Moreno, El valor de la Administración Pública en la sociedad actual, In: ––––––
(Dir.), Estudios para la reforma de la Administración Pública, Madrid: Instituto Nacional de Administración Pública, 2004, p. 104.
102 Mónica Madariaga Gutierrez, Seguridad jurídica y administración pública en el siglo XXI, 2. ed., Santiago: Editorial Jurídica del Chile, 1993, p. 17.
103 Lenio Luiz Streck, Hermenêutica, Constituição e autonomia do direito, Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), Unisinos, 1(1):65-77, p. 72. Disponível em: <http://www.rechtd.unisinos.br/index.php?e=1&s=9&a=69>. Acesso em: 17 mar. 2012.
104 Schmidt-Assmann apoiado na lição de Fritz Werner. Esse autor tornou conhecida a fórmula ou expressão segundo a qual o Direito Administrativo é o Direito Constitucional concretizado, diante da
55
Na atualidade, o evoluir histórico “do constitucionalismo no mundo
(mormente no continente europeu) coloca à disposição a noção de Constituição
enquanto detentora de uma força normativa, dirigente, programática e compromissária”,
uma vez que “é exatamente a partir da compreensão desse fenômeno que se pode dar
sentido à relação Constituição-Estado-Sociedade”.105
Portanto, a crescente constitucionalização do Direito Administrativo
pode ser verificada na medida em que as Constituições passaram a agasalhar muito mais
do que o clássico “conteúdo orgânico/dogmático sobre a organização básica do Estado e
do regime dos direitos e garantias constitucionais”.106 Em verdade, as Constituições se
mostram como baluarte essencial dos direitos e garantias fundamentais. Confere-se vital
importância aos princípios e valores tendo-os como elementos integrantes do
ordenamento jurídico constitucionalizado. Assim, o Direito Administrativo precisa ser
interpretado de acordo com os valores consagrados na Lei Maior.
Deveras, o Estado não pode olvidar sua missão de zelar pelos interesses
da coletividade. A partir de uma leitura adequada do texto constitucional, fica evidente
que essa tarefa não pode ser relegada a segundo plano. E o ente estatal não pode fechar
os olhos para a importância cada vez maior do resguardo e efetivação dos direitos e
garantias fundamentais dos indivíduos. Direitos e garantias, aliás, que “acarretaram ao
Direito administrativo uma especial sensibilização em relação às consequências da
atuação pública”. Nesse sentido, “à tradicional preocupação com as formas da atuação
administrativa” deve-se somar agora o interesse pelas consequências dessa atuação.107
E o Direito Administrativo interpretado e aplicado (com base nos
princípios e valores constitucionais) precisa sê-lo em prol do legítimo interesse dos
administrados, que devem figurar no centro gravitacional de toda conduta do ente
estatal. Se assim não for, coloca-se em risco a verdadeira democracia social, aquela que
força da Lei Fundamental (La teoría general del derecho administrativo como sistema, p. 15). 105 Streck, Hermenêutica, Constituição e autonomia do direito, p. 72. 106 Allan R. Brewer-Carías, Marco constitucional del derecho administrativo en Venezuela, Revista de
Direito Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, v. 8, n. 31, jan. 2008. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/28631>. Acesso em: 8 ago. 2011.
107 Schmidt-Assmann, La teoría general del derecho administrativo como sistema, p. 79.
56
necessita imperar para que todos possam gozar efetivamente dos direitos e garantias que
lhes são assegurados.
1.6 O Estado brasileiro contemporâneo
1.6.1 Considerações preliminares
As transformações verificadas no âmbito global sempre tiveram forte
influência na seara nacional. Por conseguinte, é possível afirmar que o Estado brasileiro
também passou pelas diferentes fases de mudanças acontecidas nos vários Estados-
nações, especialmente aquelas que se deram nos países da Europa e nos Estados Unidos,
sempre com o poder de influir nos rumos dos países latino-americanos. Embora se saiba
que em cada um deles as transformações ocorridas guardaram certas particularidades,
sabido é também que tiveram, de modo geral, muitos pontos comuns já abordados ao
longo deste capítulo. Se assim o é, importa agora estabelecer o atual estágio do modelo
de Estado brasileiro, bem como do Direito Administrativo pátrio (na sequência). Para
tanto, caberá proceder primeiro a uma breve análise crítica da reforma neoliberal
introduzida no Brasil na década de 90 do século XX, para que após se consiga expor e
fixar a situação da hodierna concepção estatal.
E, uma vez que, conforme dantes já se disse, o modelo de Estado
adotado tem relação direta com o Direito Administrativo, a fim de traçar o perfil
contemporâneo desse ramo do Direito, é essencial, portanto, que inicialmente se fale,
mesmo que de modo sucinto, das mutações sofridas pelo Estado brasileiro,
particularmente no final do século passado e início do presente. Na esteira dessas
colocações, verifica-se que o Brasil agasalhou o modelo de Estado Social e
Democrático de Direito consagrado na Constituição de 1988; no entanto, em meados
dos anos 90 elaborou-se o plano de reforma do Estado brasileiro, com o escopo de
introduzir no ordenamento jurídico constitucional mudanças cujas diretrizes eram
inspiradas no modelo de Estado neoliberal. Diante desse cenário, trazem-se à baila aqui
algumas linhas referentes ao tema, que integram o artigo “O Estado social e os
princípios da segurança jurídica, da proteção à confiança e da vedação ao retrocesso em
57
matéria de direitos sociais”,108 em especial os tópicos O Estado social na Constituição
de 1988 e O Estado social versus o Estado neoliberal, uma vez que ambos estão
diretamente relacionados. O que se asseverou naquela oportunidade exprime de forma
sucinta o que se pensa a respeito do assunto.
1.6.2 O Estado social na Constituição de 1988
Gravado no espírito da Constituição está o modelo de Estado social. A
Lei Maior de 1988 mantém e ressalta a imprescindibilidade e a proteção dos direitos
sociais, o que “a toda evidência”, nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello, a
inclui “na linha do Estado Providência, do Estado Social de Direito, que pressupõe uma
presença ativa do Poder Público para promover o bem-estar dos administrados,
notadamente dos que se encontram na base da pirâmide social”.109
Revela o mesmo entendimento Ingo Wolfgang Sarlet, para quem o
princípio do Estado social está consagrado na Lei Magna de 1988. Nesse sentido,
defende e destaca que, mesmo diante da omissão de disposição normativa explícita no
texto constitucional nacional que qualifique a República Federativa do Brasil “como um
Estado Social e Democrático de Direito (o art. 1.º, caput, refere apenas os termos
democrático e Direito), não restam dúvidas – e nisto parece existir um amplo consenso
na doutrina – de que nem por isso o princípio fundamental do Estado Social deixou de
encontrar guarida em nossa Constituição”. Reforça seu entendimento ao afirmar que,
afora
[...] outros princípios expressamente positivados no Título I de nossa Carta (como, por exemplo, os da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, etc.), tal circunstância se manifesta particularmente pela previsão de uma grande quantidade de direitos fundamentais sociais, que, além do rol dos direitos dos trabalhadores (arts 7.º a 11 da CF),
108 Priscilia Sparapani, O Estado Social e os princípios da segurança jurídica, da proteção à confiança e
da vedação ao retrocesso em matéria de direitos sociais, In: Priscilia Sparapani e Renata Porto Adri (Coord.), Intervenção do Estado no domínio econômico e no domínio social: homenagem ao professor Celso Antônio Bandeira de Mello, Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 244-247.
109 Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 29. ed., São Paulo: Malheiros, 2012, p. 1090.
58
inclui diversos direitos a prestações sociais por parte do Estado (arts. 6.º e outros dispersos no texto constitucional).110
Por conseguinte, o ideário social estampado de modo contundente e
inquestionável ao longo das disposições contidas na Lei Maior de 1988 imprime ao
Estado brasileiro o dever de proteger e concretizar os valores albergados na
Constituição, o que implica o empenho na realização dos objetivos contemplados na
ordem econômica e social.
Da clara e ampla participação que o texto constitucional requer do
Estado no contexto social brasileiro, já que reclama um forte intervencionismo estatal, é
possível constatar que o Estado tem uma importância tamanha na vida hodierna em
razão da sua onipresença, que sua abstenção como agente interventor acabaria por
comprometer o funcionamento de importantes setores da sociedade e, por fim, a
efetividade dos objetivos do Estado brasileiro. Ainda que no Estado social o homem não
viva apenas no Estado, mas sobretudo do Estado,111 quando se altera essa estrutura
básica, corre-se o grave risco de aumentar e agravar a exclusão social.
No entanto, não faltaram críticas ao Estado provedor. E tantas e
tamanhas foram que começou a ganhar espaço e projeção o denominado Estado
subsidiário (ou neoliberal), considerado garantidor da autonomia e liberdade dos
indivíduos e fomentador da autorrealização da sociedade.112
1.6.3 O Estado neoliberal
Na época em que se buscou alterar o modelo de Estado social brasileiro
para o neoliberal, com base na reforma advinda no final da década de 90, durante o
governo do então Presidente Fernando Henrique Cardoso, o escopo era o de melhorar a
110 Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, 10. ed., Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011, p. 62. 111 Esse é o pensamento de Forsthoff, citado por Novais, Contributo para uma teoria do Estado de
Direito..., p. 197. 112 Na expressão de Silvia Faber Torres (O princípio da subsidiariedade no direito público
contemporâneo, p. 131).
59
eficiência na prestação dos serviços públicos e enxugar os gastos com a máquina
administrativa.
Com isso, prestigiaram-se a liberdade econômica, a livre concorrência e
a sociedade civil, uma vez que agora ela e o Estado não estariam mais em oposição
como no liberalismo clássico, mas em situação de colaboração e complementaridade,
para que realizassem atividades de utilidade ou necessidade pública, desonerando o
Estado e restando para este apenas auxiliar o particular na execução dessas atividades. O
ente estatal só assumiria as tarefas, caso a iniciativa privada não tivesse êxito. Assim, de
responsável pelo desenvolvimento das atividades econômico-sociais e pela produção de
bens e serviços, pretendeu-se que o Estado passasse tão só a incentivar e regular as
ações praticadas pelo setor privado.
Referidas metas, no entanto, precisam ser compatibilizadas com o
modelo de Estado social estampado na Constituição de 1988. Afirma-se que aludida
forma estatal permanece no espírito da Lei Maior, podendo ser aferida pela singela
interpretação do conteúdo das disposições contidas na Lei Fundamental. E mesmo que
se diga, como preleciona Celso Ribeiro Bastos, que a interferência do Estado é
“Exagerada por vezes, não é menos certo, no entanto, que a presença estatal tornou-se
uma constante na organização das sociedades modernas, a ponto de não mais se poder
imaginar uma reversão absoluta do processo. É mesmo impensável um retorno ao
modelo absenteísta”. Decisivamente, “A participação estatal é imprescindível sob
muitos aspectos”.113
Logo, após essas abreviadas considerações, nada mais oportuno do que
tecer um exame do panorama do Estado brasileiro contemporâneo, que, diferentemente
dos países europeus e dos EUA, começa a se firmar calcado no modelo de Estado de
bem-estar, denominado neossocial (para distinguir da segunda fase do Estado pós-
social, em que, em vários países do mundo, vive-se a crise pós-neoliberal). No Brasil
tem-se a mescla, em dias atuais, do Estado defensor dos direitos fundamentais e da
democracia (que não hesita em assumir seu mais largo significado,114 e na qual o povo,
113 Bastos, Curso de teoria do Estado e ciência política, p. 70-71. 114 Em relação à democracia, Bandeira de Mello pontua que: “Independentemente dos desacordos
possíveis em torno do conceito de democracia, pode-se convir em que dita expressão reporta-se
60
com a sua soberana legitimidade de comparte, manifesta-se e intervém na defesa do
interesse coletivo) e do Estado regulador (que deixa espaço para a livre-iniciativa e para
a livre concorrência atuarem em setores que antes eram comandados pelo ente estatal).
1.6.4 O Estado brasileiro neossocial
É bem verdade que a forma de Estado brasileiro foi remodelada pela
concepção neoliberal adotada no Brasil, em que se pretendeu transferir de modo gradual
a execução de funções estatais para a iniciativa privada, segundo já se destacou.
Nesse sentido, diversas mudanças ocorreram. Com base em um intenso
programa de desestatização efetuou-se o processo de retirada do Estado da seara
socioeconômica. Nesse passo, realizou-se desde a “venda de empresas estatais de
diversas áreas, inclusive de infraestrutura, nos três níveis de governo à drástica redução
do seu quadro de pessoal”; sobreveio o aumento “da carga tributária à criação de
agências reguladoras”; efetivaram-se “as reformas monetárias e os planos de
estabilização” e também a “adoção de políticas monetárias e fiscais conservadoras”;
além dessas medidas, pode-se falar ainda na ampliação da abertura dos setores da saúde
e da educação ao mundo empresarial, incluindo a “outorga de concessões de serviços
públicos ao setor privado”; de igual maneira, houve a “abertura comercial e financeira
ao capital estrangeiro” e a “eliminação de históricos monopólios estatais, seguindo a
lógica predominante da globalização neoliberal”, qual seja a de que “o Estado deixaria à
iniciativa privada a produção de bens e serviços, bem como a liderança do processo de
desenvolvimento econômico, e se tornaria, fundamentalmente, regulador das concessões
de serviços públicos”, isto “mediante a criação de agências reguladoras especializadas”;
o ente estatal atuaria somente no papel de “provedor subsidiário de funções públicas
nuclearmente a um sistema político fundado em princípios afirmadores da liberdade e da igualdade de todos os homens e armado ao propósito de garantir que a condução da vida social se realize na conformidade de decisões afinadas com tais valores, tomadas pelo conjunto de seus membros, diretamente ou através de representantes seus livremente eleitos pelos cidadãos, os quais são havidos como os titulares da soberania. Donde resulta que Estado Democrático é aquele que se estrutura em instituições armadas de maneira a colimar tais resultados” (Celso Antônio Bandeira de Mello, A democracia e suas dificuldades contemporâneas, Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 54, out. 2008).
61
clássicas como educação para os desafortunados, saúde pública, administração da
justiça e segurança”.115
Contudo, mesmo diante de tantas mudanças, que alcançaram seu auge
na década de 90 e começo do primeiro decênio do presente século, é visível, em tempos
hodiernos essa mistura de modelos acenada acima. Daí designar a concepção estatal
atual de neossocial. Se de um lado implantou-se um modelo neoliberal no Brasil, de
outro, verifica-se que o Estado conservou, no fundo, sua alma prestacional e
interventiva. Por conseguinte, o Estado neossocial toma força em um contexto em que a
figura do ente estatal é chamada a interferir na economia diante de tantas intempéries
acontecendo pelo mundo no plano econômico e, ao mesmo tempo, é convocada a atuar
perante os anseios da população que sofre com as mazelas sociais clamando por auxílio
e socorro.
Portanto, quando se fala no surgimento do Estado neossocial brasileiro,
está-se querendo fazer menção ao Estado social que – apesar de não ter mais as
idênticas configurações estabelecidas quando do seu aparecimento, pelo seu próprio
evoluir e pelas inúmeras modificações que sofreu em decorrência das diretrizes
neoliberais abraçadas – permaneceu latente, visto que agasalhado na Constituição
Federal de 1988.
Instaura-se, hodiernamente, um período em que o Estado não ignora a
sua importância no cenário nacional. O retorno progressivo da consciência do ente
estatal, em relação à necessidade de sua atuação, representa esperança e alívio aos
movimentos populares e às camadas mais desamparadas da sociedade. Vislumbram-se
novas possibilidades de intervenção, talvez agora de uma maneira mais equilibrada,
com um plano de governo que busque concretizar as reivindicações da população,
priorizando as políticas sociais, sem fugir à economia capitalista e ao avanço no setor
econômico-financeiro. O agir estatal deve estar condicionado pelas forças sociais,
políticas e culturais que agora, nos últimos tempos, ecoam mais fortemente.
115 Juarez de Souza, Críticas à construção de um Estado neoliberal no Brasil (1987-2002: 15 anos de
profundas mudanças), VIII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Panamá, 28-31, Oct. 2003, Caracas: CLAD, septiembre 2003. Disponível em: <http://unpan1.un.org/intradoc/groups/public/documents/clad/clad0047110.pdf>. Acesso em: 10 set. 2011.
62
Assim, na era neossocial, volta-se a viver no modelo de Estado que tem
um papel essencial nas relações sociais. Todavia, por ser imediatamente posterior ao
modelo neoliberal, contempla também suas linhas. Logo, põe-se em evidência a
transição entre a forma estatal caracterizada pela política neoliberal e aquela baseada no
novo Estado de bem-estar. Sem rupturas bruscas, o contexto atual mostra que as
mudanças estão acontecendo de modo progressivo no campo sociopolítico, diante dos
programas que passaram a ser implantados, com nítido caráter social,116 o que, por sua
vez, acaba por implicar transformação na esfera econômica e até mesmo modificações
na estrutura da própria sociedade. Na etapa pós-reforma estatal, é vital que aqueles que
comandam o Estado saibam que, sem o enfrentamento de problemas de todas as ordens
no campo social, não se efetivam os direitos e garantias fundamentais, os quais devem
ser garantidos e concretizados pelo Estado. Nesse passo, é de ressaltar que o Judiciário
ganhou papel de destaque na efetivação dos direitos sociais. Claramente a função
jurisdicional se fortalece no contexto do Estado neossocial.
Além disso, verifica-se a implementação das políticas públicas como
forma de minimizar a pobreza e as desigualdades sociais. Conquanto o ente estatal aja
com a consciência de que as forças do mercado autorregulado requerem um Estado que
lhes dê liberdade para atuar de acordo com valores individuais próprios da competição
capitalista, tal fator, de outro canto, não afasta a intervenção estatal.
116 Programas e ações sociais do governo federal no ano de 2004: A) programas voltados à educação e à
erradicação do trabalho infantil: a1) bolsa escola; a2) programa de erradicação do trabalho infantil – PETI; B) programas de atendimento à criança e ao adolescente: b1) atenção à criança de zero a seis anos; b2) bolsa alimentação; b3) agente jovem de desenvolvimento social e humano; b4) combate ao abuso e à exploração sexual e comercial de crianças e adolescentes – programa sentinela; C) programas de alívio ou combate a pobreza: c1) auxílio-gás; c2) programa fome zero; c3) geração de renda; c4) benefício de prestação continuada; c5) atenção à pessoa idosa; c6) cadastramento único; c7) bolsa-família; D) programas voltados ao trabalho e à renda: d1) programas do FAT – fundo de amparo ao trabalhador; d2) o sistema nacional de emprego – SINE; d3) seguro-desemprego; d4) intermediação de mão de obra (I-M-O); d5) PROGER – programa de geração de emprego e renda; d6) PLANFOR – plano nacional de qualificação do trabalhador; d7) plano nacional de qualificação – PNQ; E) programas voltados para a saúde da população: e1) programa saúde da família; e2) programa de saúde bucal; e3) iniciativa hospital amigo da criança; e4) programa promoção da saúde; e5) programa carteiro amigo; e6) programa saúde do adolescente e do jovem; F) programas voltados para o desenvolvimento rural: f1) programa nacional de agricultura familiar (PRONAF); G) programas de moradia popular e infraestrutura urbana: g1) o fundo de garantia por tempo de serviço – FGTS (Ana Lúcia Kassouf, Alexandre Nunes de Almeida, Rosangela Maria Pontili y Ferro Andrea Rodrigues, Análise das políticas e programas sociais no Brasil, Brasília, OIT/Programa IPEC América do Sul, 2004, Série Documentos de Trabajo, 182).
63
Desta feita, as modificações realizadas em relação à temática central
que motiva este estudo estão relacionadas a toda essa trajetória de transformações do
modelo estatal.
Logo, com a adoção do Estado neoliberal e, mais recentemente, o
ressurgir do Estado de bem-estar modificado por mudanças decorrentes da dinâmica dos
fatores sociais, políticos e econômicos, o Direito Administrativo sofreu (e sofre)
intensas mutações. Sob esse viés, imprescindível se torna a exposição do atual estágio
dessa disciplina jurídica.
1.6.5 O atual estágio do Direito Administrativo brasileiro
É certo que o Direito Administrativo encontra-se constitucionalizado
diante da constitucionalização de todo o Direito. Foi precisamente em decorrência desse
fenômeno que ocorreu a evolução na maneira de conceber esse ramo jurídico, passando
a ser interpretado e aplicado com assento nas normas constitucionais, e não apenas na
legislação infraconstitucional.
Por conseguinte, a Administração Pública não se prende mais à estrita
legalidade prevalecente no Estado liberal, pois agora se lhe confere o acesso direto às
normas constitucionais, prescindindo de um prévio mediar por parte do legislador. A
atuação administrativa, portanto, deve se conformar aos parâmetros e limites instituídos
pela Constituição. O apego restrito à lei é substituído por uma atuação pautada nas
normas constitucionais, que precisam ser observadas a fim de que sua conduta possa ser
considerada legítima perante o ordenamento jurídico. Obedece-se não só ao princípio da
legalidade, mas a vários outros mandamentos.
Nessa linha de compreensão, a legalidade absorve “toda a grandeza do
Direito em sua mais vasta expressão, não se limitando à lei formal, mas à inteireza do
arcabouço jurídico vigente no Estado”.117 Fala-se então no primado da juridicidade
117 Cármen Lúcia Antunes Rocha, Princípios constitucionais da administração pública, Belo Horizonte:
Del Rey, 1994, p. 79. Também Germana de Oliveira Moraes, ao abordar o tema, leciona que: “A moderna compreensão filosófica do Direito, marcada pela normatividade e constitucionalização dos princípios gerais do Direito e pela hegemonia normativa e axiológica dos princípios” tem como
64
administrativa.118 Confere-se ênfase aos princípios explícitos e implícitos previstos na
Lei Maior, que cada vez mais ganham força normativa e passam a reger a interpretação
das leis e demais atos do Poder Público.119 Com efeito, se no passado os princípios não
tinham função normativa, servindo tão só para auxiliar na interpretação das normas, na
atualidade passaram a ocupar lugar de destaque no ordenamento jurídico. O agir do
Estado-Administração deve estar em harmonia com a Constituição e seus mandamentos.
De outro lado, em virtude da constitucionalização do Direito
Administrativo, que tem como efeito a expansão das normas constitucionais, acontecem
mudanças no sistema jurídico-administrativo. Dessa ampliação tem-se como
decorrência, a toda evidência, que “a reserva vertical da lei foi substituída por uma
reserva vertical da Constituição”.120 Assim sendo, se alterações são introduzidas na Lei
Fundamental, como consequência dessa verticalidade constitucional, o Direito
Administrativo sofre essas modificações. Como um todo, o Direito Administrativo
passou por mutações. Consequentemente, essa disciplina jurídica não saiu ilesa a todas
as transformações que se fizeram em busca da modernização do Estado, de se enxugar
os gastos do governo e tornar a máquina administrativa mais eficiente. Com isso,
consequência a “substituição, no Direito Administrativo, do princípio da legalidade pelo princípio da juridicidade [...]” (Germana de Oliveira Moraes, Controle jurisdicional da administração pública, 2. ed., São Paulo: Dialética, 2004, p. 30).
118 Nos dizeres de Cármen Lúcia Antunes Rocha, “O princípio da juridicidade administrativa significa, portanto, que a Administração Pública é o Direito em um de seus momentos: o de sua dinâmica. Nem é, pois, que ela se submete ao Direito, mas tão somente que ela é o próprio Direito tornada num movimento realizador de seus efeitos para intervir e modificar a realidade social sobre a qual incide, em verdade, quem se submete ao Direito é o administrador público, porque a sua conduta, nesta condição, distingue-se do seu comportamento como indivíduo que se submete à lei em outras condições, segundo o exercício da sua liberdade assegurado pelo sistema jurídico” (Princípios constitucionais da administração pública, p. 82).
119 Luís Roberto Barroso, ao discorrer sobre o reconhecimento de força normativa às normas constitucionais, declara que tal mudança de pensamento “foi uma importante conquista do constitucionalismo contemporâneo. No Brasil, ela se desenvolveu no âmbito de um movimento jurídico-acadêmico conhecido como doutrina brasileira da efetividade. Tal movimento procurou não apenas elaborar as categorias dogmáticas da normatividade constitucional, como também superar algumas crônicas disfunções da formação nacional, que se materializavam na insinceridade normativa, no uso da Constituição como uma mistificação ideológica e na falta de determinação política em dar-lhe cumprimento. A essência da doutrina da efetividade é tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e imediatamente, na extensão máxima de sua densidade normativa”. E acrescenta: “Nessa linha, as normas constitucionais, como as normas jurídicas em geral, são dotadas do atributo da imperatividade. Não é próprio de uma norma jurídica sugerir, recomendar, alvitrar. Normas constitucionais, portanto, contêm comandos. [...]” (Luís Roberto Barroso, Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/ medicamentos.pdf>. Acesso em: 4 set. 2011).
120 Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 836.
65
evidencia-se que o Direito Administrativo brasileiro está permeado pelas mudanças
decorrentes do final da década de 90 e começo do século XXI.
Na esteira dessas ideias, após um período certamente agitado de muitas
alterações introduzidas na concepção de Estado brasileiro, que refletiram, enfatiza-se,
intensamente na seara do Direito Administrativo, este ramo jurídico sofreu o impacto
de sua maior aproximação com o campo do Direito Privado, ainda que não se possa
dizer que no âmbito pátrio se deu uma intensa fuga do Direito Administrativo ou fuga
para o Direito Privado, como ocorreu na Espanha e em outros ordenamentos
estrangeiros, sob a influência do ímpeto neoliberal de privatização do público, gerando a
interligação desses dois domínios do Direito de modo a criar uma situação de
“miscelânea” entre as duas áreas, dificultando ainda mais a distinção já bastante
polêmica nesses ordenamentos.121 No entanto, aqui não se esteve livre da penetração de
normas do Direito Privado no Direito Público, em uma multiplicidade de combinações,
com o fim de romper com a ação administrava em vários setores. Assim, em certa
medida não é demais afirmar que o Direito Administrativo brasileiro também sofreu sua
parcela de fuga para o Direito Privado.122
121 O final do século XX foi marcado pelas várias reformas nas Administrações Públicas nos quatro
cantos do mundo. Diante da clara inversão no modelo de Estado, que de interventor passou a regulador da economia e fomentador da sociedade civil, ocorreu a volta da iniciativa privada a esferas anteriormente tomadas pela gestão estatal, o que refletiu fortemente no Direito Administrativo, evidenciando o fenômeno conhecido, no direito espanhol, como a “fuga do Direito Administrativo”, ou a “fuga para o Direito Privado”. Observa Martín-Retortillo que o Direito Privado “deixa de ter o significado notoriamente marginal que habitualmente oferecia” no ordenamento jurídico da Espanha, “para converter-se, poder-se-ia dizer, em canal normal para o exercício de não poucas funções públicas”. E, embora o autor concentre seu estudo ao escrever sobre a fuga do Direito Administrativo, focado no sistema jurídico-administrativo espanhol, assevera que essa temática “também é bastante comum nos distintos ordenamentos do Direito comparado” (Martín-Retortillo, Reflexiones sobre la “huida” del derecho administrativo, p. 25 e 36). Destarte, segundo adverte a professora de Lisboa, Estorninho, é possível verificar que está aí “implícita uma radical transformação a todos os níveis, desde os moldes organizatórios, até a disciplina do pessoal ou às regras procedimentais”, constatando-se “o quanto o direito privado penetrou no direito administrativo, a ponto de não permitir mais afirmar-se que este último é um ramo do direito público”. Ainda Estorninho pondera: “[...] pode dizer-se que houve um fenômeno de ‘compenetração’ destes dois domínios e parece-me inevitável reconhecer que estes movimentos de ‘aproximação e interligação dos dois domínios’, levam a uma situação de ‘miscelânea’ que acaba por dificultar ainda mais a distinção que, de qualquer modo, há muito já era polêmica” (A fuga para o direito privado..., p. 54 e 157).
122 Segundo Di Pietro, ao abordar o Direito Administrativo atual, “Aparentemente, há uma fuga do direito administrativo, tal como referida por Jesús Leguina Villa [...] em trabalho sobre A Constituição espanhola e a fuga do direito administrativo. No entanto, essa procura pelo direito privado (que se insere também na ideia de privatização em sentido amplo) não afasta a aplicação de normas publicísticas, em especial do direito constitucional e administrativo, que sempre derrogam
66
Incorporaram-se ao âmbito do Direito Administrativo a previsão e a
utilização de instrumentos contratuais em uma clara contratualização nas relações entre
Estado e particulares e também entre órgãos públicos. Pretendeu-se criar um novo
modelo de relacionamento entre o ente estatal, o livre mercado e a sociedade civil,
diretamente ligado às parcerias entre o setor público e o setor privado, retirando do
Estado o monopólio de prover e suprir as necessidades da coletividade. Nessa toada, a
Administração Pública torna-se um centro gerenciador de uma coletânea de contratos
firmados para realizar uma série de tarefas que antes eram desempenhadas pelo Poder
Público. Estabelecem-se relações contratuais tanto no âmbito interno quanto no âmbito
externo da Administração. Internamente têm-se os contratos de gestão firmados entre
órgãos pertencentes ao ente central e unidades desconcentradas, com base em metas e
indicadores de desempenho apontados previamente; externamente utilizam-se as
concessões, as parcerias público-privadas (PPPs) e as Organizações Sociais (OSs), para
compartilhar ou transferir a execução direta dos serviços aos particulares ou às
entidades do Terceiro Setor.123
Nesses termos, ligado a esse contexto, é possível verificar outra
mudança sucedida no âmbito do Direito Administrativo, qual seja o incentivo às
técnicas de fomento, o que acarretou o alargamento do Terceiro Setor. Surgem “novos
tipos de entidades que ficam a meio-termo entre o público e o privado, prestando
atividades privadas de interesse público, com a ajuda e o incentivo do Estado e
submetendo-se, em consequência, ao controle pelo Poder Público”.124 Além das OSs, já
mencionadas, que formalizam seu vínculo por meio do contrato de gestão com o ente
estatal, pode-se falar ainda nas Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público
(Oscips), em que se reconhece ser possível a celebração de termo de parceria com essa
entidade em caráter complementar para a execução de serviço público (v. g. na área da
parcialmente o direito privado, quando este é aplicado pela Administração Pública. A consequência é a maior aproximação entre o direito administrativo, o direito civil, o direito comercial, o direito do trabalho, isto para não falar no direito internacional (por conta da globalização)” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, 2. ed., São Paulo: Atlas, 2007, p. 57).
123 Fernando Abrucio, Contratualização e organizações sociais: reflexões teóricas e lições da experiência internacional, Debates GV Saúde, v. 1, p. 25, 1.º sem. 2006.
124 Di Pietro, Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, p. 57.
67
saúde), e nas associações e fundações de apoio que celebram convênios com o Poder
Público.
Também ocorrem a regulação e o controle dos serviços públicos por
parte das agências reguladoras. Nesse viés, despontaram no cenário nacional as agências
setoriais, denominadas autarquias de regime especial, importadas especialmente do
Direito norte-americano, com o fim de descentralizar as atividades desempenhadas pela
Administração Direta. Com certas características específicas, diferem-se das demais
entidades autárquicas, haja vista serem dotadas de autonomia, independência,
estabilidade de seus dirigentes e poder normativo, a fim de regularem e fiscalizarem o
correspondente setor para o qual foram instituídas. A par daquelas que exercem típico
poder de polícia, ou seja, fiscalizador, o tipo inovador de agência constitui-se naquele
em que tais entes “regulam e controlam as atividades que constituem objeto de
concessão, permissão ou autorização de serviço público” ou as “de concessão para
exploração de bem público”.125
Mais recentemente começou-se a discutir o princípio da supremacia do
interesse público sobre o privado, colocando-o em xeque com questionamentos e
argumentos críticos que tendem a reduzir o seu conteúdo e afastar a sua força como
mandamento basilar do Direito Administrativo. Defende-se a desconstrução desse
primado. O discurso é no sentido de que, em um Estado Democrático de Direito, deve-
se defender e dar efetividade aos direitos fundamentais, pois na atualidade a
materialização desses referidos direitos é essencial e, muitas vezes, sua concretização
entra em rota de colisão com a supremacia do interesse público sobre o particular. Nesse
passo, segundo a doutrina que assim pensa, esse princípio deve ceder, na medida em
que representa o resquício de um Direito Administrativo retrógrado e conservador que
125 Segundo Di Pietro, as agências reguladoras no Brasil são de dois tipos: “a) as que exercem, com base
em lei, típico poder de polícia, com a imposição de limitações administrativas, previstas em lei, fiscalização, repressão [...]”; e “b) as que regulam as atividades que constituem objeto de concessão, permissão ou autorização de serviço público (telecomunicações, energia elétrica, transportes etc.) ou de concessão para exploração de bem público (petróleo e outras riquezas minerais, rodovias etc.)”. Esclarece que: “As primeiras não são muito diferentes de outras entidades anteriormente existentes, como o Banco Central, o Cade, a Secretaria da Receita Federal, o Conselho Monetário Nacional”. Já “As segundas é que constituem novidade maior no direito brasileiro, pelo papel que vêm desempenhando, ao assumirem os poderes que, na concessão, permissão e na autorização, eram antes desempenhados pela própria Administração Pública Direta, na qualidade de poder concedente. [...]” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., São Paulo: Atlas, 2013, p. 530).
68
impede a efetivação dos direitos e garantias fundamentais.126 No entanto, longe de
entrar na discussão a respeito do tema, o que por si só demandaria outro estudo
dedicado apenas ao assunto, entende-se que esse pensamento doutrinário não tem razão
de ser, pois “Não se trata de desconstruir a supremacia do interesse público”. Em
verdade, “na atual conjuntura nacional, o que é preciso, mais do que nunca, é fazer
respeitá-la, é integrá-la na defesa dos luminosos objetivos fundamentais de nossa
Constituição, expressos em seu monumental artigo 3.º”, uma vez que “a desvalorização
total dos interesses públicos diante dos particulares pode conduzir à anarquia e ao caos
geral, inviabilizando qualquer possibilidade de regulação coativa da vida humana em
comum”. Logo, “É preciso não confundir a supremacia do interesse público – alicerce
das estruturas democráticas, pilar do regime jurídico-administrativo – com as suas
manipulações” e, de igual modo, seus “desvirtuamentos em prol do autoritarismo
retrógrado e reacionário de certas autoridades administrativas”. Deveras, “O problema,
pois, não é do princípio: é, antes, de sua aplicação prática”.127
Outra questão essencial decorrente das mudanças no campo do Direito
Administrativo tem relação direta com a noção de discricionariedade administrativa. A
força normativa do arcabouço principiológico constitucional define os contornos dessa
competência. Se ao mérito administrativo era reservado um espaço intocável, sendo
vedado ao Poder Judiciário adentrar nas decisões e escolhas discricionárias por parte da
Administração Pública, esse espaço, que ainda permanece, vem sendo reduzido e
estabelece-se certo controle dos atos administrativos resultantes do exercício de
competência discricionária, na medida em que se criam limites decorrentes da
principiologia constitucional para o exercício desta competência. Isso se torna mais
evidente quando o tema envolve o controle jurisdicional das políticas públicas,
126 Esse posicionamento é representado pelo pensamento de alguns juristas que atacam frontalmente o
princípio da supremacia do interesse público: Alexandre Aragão, Daniel Sarmento, Gustavo Binenbojm, Humberto Ávila e Paulo Ricardo Schier (Interesses públicos x interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005). Também Willis Santiago Guerra Filho (Princípio da proporcionalidade e teoria do direito, Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides, São Paulo: Malheiros, 2003, p. 269-278) e Marçal Justen Filho (O direito administrativo reescrito: problemas do passado e temas atuais, Revista Negócios, ano II, n. 6, p. 39-41).
127 Alice Gonzalez Borges, Supremacia do interesse público: desconstrução ou reconstrução?, Revista Diálogo Jurídico, Salvador, n. 15, jan.-fev.-mar 2007. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 6 set. 2011.
69
fenômeno conhecido como judicialização das políticas públicas,128 em que o Judiciário
teria a obrigação de garantir os direitos sociais assegurados constitucionalmente,
refutando os obstáculos que impedem o desenvolvimento das políticas públicas.
Por conseguinte, dentre tantos fenômenos marcantes, evidencia-se a
importância de não se descurar do abrigo aos direitos fundamentais dos administrados.
Dessa forma, merece destaque a preocupação referente à consolidação e manutenção
dos níveis de proteção social já alcançados nos diversos domínios da segurança social e
da tutela dos direitos fundamentais sociais, até mesmo como requisito para a
preservação do Estado Constitucional Social e Democrático de Direito.
Em virtude de todas as transformações trazidas pela globalização
econômica em relação aos direitos humanos e fundamentais, torna-se necessário
verificar em que hipóteses estabelecem-se retrocessos no que diz respeito a aludidos
direitos. Nesse sentido, desponta como questão relevante o reconhecimento de uma
vedação ao retrocesso social como princípio jurídico-constitucional, em especial quando
se têm reformas político-econômicas acontecendo tanto no plano interno quanto externo
que envolvem, destacadamente, mudanças no âmbito das políticas públicas e alterações
no plano normativo. Ainda que não se queira analisar a temática sob o prisma
ideológico, não se pode negar que, como um dos efeitos das intensas reformas
perpetradas em âmbito nacional, se efetivam políticas de flexibilização e até mesmo de
supressão de garantias dos administrados, abrangendo os trabalhadores da esfera
privada (inclusive com aumento dos níveis de desemprego e de subemprego) e os
servidores públicos. Ademais, pode-se falar ainda na diminuição dos níveis de
prestação social, no desarranjo do sistema público de saúde, na ampliação
“desproporcional de contribuições sociais por parte dos participantes do sistema de
128 Pertinente explanação a respeito do tema é feita por Boaventura de Sousa Santos quando assevera:
“As relações entre o sistema judicial e o sistema político atravessam um momento de tensão sem precedentes cuja natureza se pode resumir numa frase: a judicialização da política conduz à politização da justiça. Há judicialização da política sempre que os tribunais, no desempenho normal das suas funções, afectam de modo significativo as condições da acção política” (Boaventura de Sousa Santos, A judicialização da política. Jornal O Público, Lisboa 26.05.2003. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/ opiniao/bss/078en.php>. Acesso em: 4 set. 2011).
70
proteção social”, no “incremento da exclusão social e das desigualdades, entre outros
aspectos que poderiam ser mencionados”.129
Nesse passo, importa visitar o tema da vedação ao retrocesso social
enfocando-se a sua aplicabilidade na seara do Direito Administrativo, em particular na
esfera dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos. Sob esse vértice é relevante
estabelecer a discussão em torno dos limites e possibilidades de dito primado com o
intuito de averiguar até que ponto são legítimas as modificações que se introduzem na
esfera dos direitos fundamentais dos servidores, colocando-se o problema de saber em
que medida o Estado (neossocial) pode, por intermédio de reformas na esfera da
segurança social, extinguir prestações (benefícios), de maneira a reduzir o grau de
proteção social atingido, especialmente se, assim agindo, não observar a equivalência
jurídica e, desse modo, acabar por desrespeitar direitos e garantias fundamentais.
Se mudanças sempre acontecem e continuam a ocorrer, pois é próprio
do Direito evoluir e acompanhar a dinâmica dos acontecimentos, torna-se vital,
consequentemente, que se estabeleça em que medida as modificações constitucionais (e
infraconstitucionais) podem sobrevir e quais os parâmetros para que as alterações
possam ocorrer, de maneira peculiar quando o assunto em pauta envolver direitos e
garantias fundamentais dos servidores.
Diante do exposto, colocados assim os principais pontos no que
concerne ao panorama do Direito Administrativo contemporâneo, em que se buscou
contextualizar a situação dessa disciplina jurídica e toda a sua evolução, relacionando-a
com os diversos modelos de Estado da era moderna, até chegar ao Estado pós-neoliberal
e o Direito Administrativo nos dias atuais, no cenário mundial, e ao Estado neossocial e
o Direito Administrativo hodierno, no panorama nacional, vale esclarecer, por
conseguinte, que o presente estudo pretenderá, nos capítulos que se seguirão, analisar o
princípio da vedação ao retrocesso social (Capítulo 2) com o escopo de abordar a sua
aplicação e seus limites na seara do regime jurídico dos servidores públicos, no tocante
aos seus direitos e garantias fundamentais (Capítulo 3).
129 Ingo Wolfgang Sarlet, Algumas notas a respeito dos direitos fundamentais sociais e a proibição de
retrocesso: desafios e perspectivas, AMATRA – Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da IV Região, Caderno 13, p. 4-11.
71
Destarte, partir-se-á para o estudo, no capítulo que se segue, do
princípio da vedação ao retrocesso social, em que se trará à baila a doutrina estrangeira
e nacional sobre o assunto, e serão expostos os fundamentos constitucionais do referido
mandamento, tão importante para proteger os retrocessos que se impõem em virtude de
mudanças instituídas na ordem jurídico-normativa brasileira. Também será feita uma
breve análise jurisprudencial sobre a matéria. O intuito da exposição é deixar clara a
presença implícita do princípio da vedação ao retrocesso social na Constituição Federal
de 1988.
72
2
A VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL COMO PRINCÍPIO DO
ESTADO DE DIREITO
SUMÁRIO: 2.1. Princípio da vedação ao retrocesso social: pensamento estrangeiro acerca do tema. 2.1.1. Alemanha. 2.1.2. Itália. 2.1.3. Portugal. 2.2. Brasil. 2.2.1. Pensamento doutrinário a respeito do tema. 2.2.2. Fundamentos constitucionais do princípio da vedação ao retrocesso social. 2.2.2.1. A progressiva ampliação dos direitos fundamentais da sociedade. 2.22.2. A paulatina redução das desigualdades regionais e sociais. 2.2.2.3. A construção de uma sociedade marcada pela solidariedade e pela justiça social. 2.2.2.4. O direito adquirido social e o princípio da vedação ao retrocesso social. 2.2.2.4.1. A controvérsia em torno do conceito de direito adquirido. 2.2.2.4.2. O direito adquirido individual e social. 2.2.2.4.3. Direito adquirido individual e social em face de emenda constitucional. 2.2.2.4.4. Direito adquirido individual e social: as diferentes dimensões de proteção. 2.2.2.5. Os tratados internacionais e a adesão brasileira ao princípio vedação ao retrocesso social. 2.2.3. Entendimento jurisprudencial a respeito do tema.
Ao se debruçar sobre o estudo do princípio da vedação ao retrocesso
social com o fim de examinar referido mandamento, é possível constatar a diversidade
de opiniões acerca do tema. A própria variedade de designações desse primado reflete o
dissenso sobre o assunto. É conhecido por vedação ao retrocesso social, proibição de
retrocesso social,130 princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais,
princípio do não retrocesso social, proibição da contrarrevolução social,131 proibição
da revolução reacionária, princípio do não retorno da concretização, princípio da
proibição da retrogradação, aplicação progressiva dos direitos sociais, entre outros
termos.
A par das diversas denominações, real importância terá, neste capítulo,
o modo de conceber esse primado nos diferentes países que o estudaram e se dedicaram
a desenvolver o seu conteúdo, que, conforme será visto, apresenta matizes
130 Adota essa terminologia Felipe Derbli, O princípio de proibição de retrocesso social na
Constituição de 1988, Rio de Janeiro: Renovar, 2007. 131 J. J. Gomes Canotilho fala em proibição de contrarrevolução social ou da evolução reacionária
(Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 338).
73
diferenciados. Interessa esclarecer que no presente trabalho serão utilizadas as
expressões princípio da vedação ao retrocesso social, da proibição de retrocesso
social, do não retrocesso social, da aplicação progressiva dos direitos sociais e
princípio do progresso social como sinônimas, pois, embora as duas primeiras
terminologias sejam as mais conhecidas no âmbito da doutrina pátria, referido primado,
consoante se verá, guarda íntima relação com a previsão explícita de um dever de
progressiva realização compreendido em cláusulas vinculativas de direito internacional
(como é o caso do Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, de
1966, ratificado pela ampla maioria dos Estados latino-americanos, igualmente
vinculados pela Convenção Americana de 1969 e pelo Protocolo de São Salvador, que,
por seu turno, complementa a Convenção Americana ao dispor sobre os direitos
sociais); nesse sentido, “poder-se-á afirmar que, pelo menos tanto quanto proteger o
pouco que há em termos de direitos sociais efetivos, há que priorizar o dever de
progressiva implantação de tais direitos e de ampliação de uma cidadania inclusiva”.
Isso implica, por conseguinte, “num comprometimento jurídico-constitucional com o
dever de progressiva realização dos direitos sociais e, por via de consequência, com a
correlata proibição de regressividade”.132
Destarte, será de suma relevância verificar quais os fundamentos
constitucionais do referido princípio a fim de evidenciar sua presença implícita no
ordenamento jurídico constitucional brasileiro.
Além do mais, adverte-se que, consoante será visto, a noção de uma
vedação ao retrocesso social é, em certo sentido, comum a todos os direitos
fundamentais.
Vale destacar que o princípio do não retrocesso social começa a ser
pouco a pouco discutido na doutrina e aplicado nas decisões das cortes de justiça
brasileiras. Por influência preponderante dos países europeus, surge em terras pátrias
debate em torno desse princípio, do seu conceito, conteúdo e abrangência.
132 Sarlet, Algumas notas a respeito dos direitos fundamentais sociais e a proibição de retrocesso:
desafios e perspectivas, p. 4-11.
74
Nesse viés, importa analisar o pensamento doutrinário e jurisprudencial
acerca do princípio da aplicação progressiva dos direitos sociais, exame esse vital para a
exposição do que se pretende aqui defender. O estudo do pensamento estrangeiro
referente ao tema inaugura o presente capítulo. Na sequência virá a produção
doutrinária e jurisprudencial brasileira.
2.1 Princípio da vedação ao retrocesso social: pensamento estrangeiro acerca do
tema
Diante do influxo das doutrinas estrangeiras, em especial do
pensamento alemão, italiano e português, no tocante ao tema, serão abordadas as
concepções doutrinárias de estudiosos da Alemanha, Itália e Portugal acerca da matéria,
uma vez que, nesses países, ocorreu um desenvolvimento maior do primado da vedação
ao retrocesso social, sem que, com essa abordagem focada na doutrina de tais países, se
pretenda menosprezar as ideias e formação teórica de outras nações a respeito do
assunto.
Vale ressaltar que nenhum colonialismo cultural é bem-vindo, sob o
risco de se importarem conceitos e fórmulas alienígenas que não são adequados ao
ordenamento jurídico brasileiro, à realidade sociopolítica e econômica que aqui se
vivencia. Portanto, é preciso adaptar o instituto de maneira que ele venha a se
harmonizar com os fundamentos próprios da nação que pretende sua adoção e
aplicação. Feita essa advertência, passar-se-á à exposição do pensamento doutrinário e
do entendimento jurisprudencial estrangeiro, sem o intento de apresentá-los à exaustão,
expondo apenas o suficiente para revelar seu conteúdo e contornos na Alemanha, Itália
e Portugal para posteriormente abordar a temática no Brasil.
2.1.1 Alemanha
Na Alemanha o princípio da vedação ao retrocesso social tem relação
com a discussão que se travou a respeito da eficácia dos direitos fundamentais sociais e
a possibilidade de serem ou não exigíveis em juízo. Segundo as lições de Ernst-
Wolfgang Böckenförde, diversamente dos direitos de liberdade, que devem ser
75
resguardados das ofensivas por parte do Estado, os direitos sociais, ainda que
contemplados na Constituição, não são capazes de “fundamentar diretamente pretensões
reclamáveis judicialmente”, ou seja, não geram direitos subjetivos imediatos para os
indivíduos, necessitando, de tal forma, que haja uma atuação do legislador ordinário
para dar-lhes efetividade. Contudo, o autor pretende salvar ao máximo sua eficácia
jurídica que pode ser alcançada se se conceber “os direitos sociais como mandados
constitucionais, o que permitiria manter uma vinculação jurídica projetada em três
planos”, quais sejam: “1) os órgãos políticos ficam sujeitos ao fim ou ao programa por
eles perseguidos; 2) tendo liberdade na eleição dos meios, não é admissível sua
inatividade ou uma manifesta desatenção no cumprimento de ditos programas”, e,
ademais, “3) as decisões adotadas em um dado momento para a consecução do fim não
podem ser suprimidas definitivamente ou desatendidas de modo manifesto”.133
Nesse sentido, Böckenförde assevera:
[...] as regulações e as medidas tendentes à consecução do fim, uma vez estabelecidas, se mantêm constitucionalmente, de maneira que a via da realização do mandado nelas descrita está protegida diante de uma supressão definitiva ou de uma redução que ultrapasse os limites, chegando a uma desatenção grosseira.134
Destarte, verifica-se que essa doutrina aponta na direção do
desenvolvimento de certa tendência à vedação do retrocesso social na medida em que
entende inconcebível que se suprima lei que regulamente direitos fundamentais sociais.
Todavia, “o enfrentamento da proibição de retrocesso social acabou seguindo rumo um
pouco diverso na Alemanha, principalmente em face da contribuição do Tribunal
Constitucional Federal para a discussão”.135
133 Resenha de Manuel Medina Guerrero sobre a obra de Ernst-Wolfgang Böckenförde: Escritos sobre
derechos fundamentales, prólogo de Francisco J. Bastida, tradução de Juan Luis Requejo Pagés e Ignacio Villaverde Menéndez, Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1993 (Manuel Medina Guerrero, Escritos sobre derechos fundamentales, Revista Española de Derecho Constitucional, n. 41, p. 325, mayo-ago. 1994).
134 Böckenförde citado por Felipe Derbli (O princípio de proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 139).
135 Derbli, O princípio de proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 139.
76
Deveras, o conflito entre a incapacidade do Estado para prestar serviços
à população e a ampliação da demanda por prestações sociais, que acabou por gerar a
crise do Estado de bem-estar, foi responsável por alavancar o progressivo desenvolver
da jurisprudência em torno do princípio da vedação ao retrocesso social na
Alemanha.136
Perante a ausência, na Constituição alemã, de proteção direta e expressa
ao sistema de seguridade social e aos níveis prestacionais vigentes, incluindo também o
entendimento de que dita proteção não sobrevém do princípio geral do Estado Social de
Direito (art. 20, I, e art. 28, I, da Lei Fundamental de Bonn) ou de outras normas de
competência, a doutrina e a jurisprudência alemãs, confrontadas sobre essa questão,
partindo do direito constitucional positivado, optaram por desenvolver ideias destinadas
a proporcionar certo nível de proteção às prestações sociais e ao sistema global de
seguridade social e, dessa maneira, elaboraram o princípio da vedação ao retrocesso
social a partir da garantia fundamental da propriedade (art. 14 da Lei Fundamental de
Bonn).137
Nesse passo, teve-se como ponto de partida o conceito funcional de
propriedade, abalizado na doutrina de Martin Wolf, para quem, com base no art. 153 da
Constituição de Weimar, o conceito de propriedade compreende uma gama de direitos
subjetivos privados de cunho patrimonial, dando azo ao mencionado conceito
funcionalista de propriedade. É dizer, a garantia da propriedade resguarda não somente
a propriedade no campo dos direitos reais, como, igualmente, agasalha a tarefa de
conservar direitos, dado que também tem por escopo “oferecer ao indivíduo segurança
jurídica relativamente aos direitos patrimoniais reconhecidos pela ordem jurídica, além
de proteger a confiança depositada no conteúdo de seus direitos”.138
136 Ingo Wolfgang Sarlet, O Estado social de direito, a proibição de retrocesso e a garantia fundamental
da propriedade, Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador: IBDP, n. 9, mar.-abr.-maio 2007. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-9-MAR%C3%87O-2007-INGO%20SARLET.pdf>. Acesso em: 28 out. 2011, p. 2.
137 Idem, ibidem, p. 2-3. 138 Idem, p. 5. Acrescente-se a essa explicação do autor o seguinte: “Ainda no que diz com a proteção
de posições jurídico-subjetivas de natureza pública por meio da garantia fundamental da propriedade, o Tribunal Federal Constitucional, já em arestos anteriores, entendeu que esta proteção tem por pressuposto a circunstância de que ao titular do direito é atribuída uma posição jurídica
77
A respeito do assunto, Konrad Hesse aclara que o conceito civil de
propriedade teve sua importância diminuída, ao se levar em consideração o fato de que
a sobrevivência do indivíduo estaria menos fundada nos bens que titulariza e mais nos
rendimentos próprios de seu trabalho e, por via de consequência, nos proventos de
aposentadoria e nas prestações de assistência vital e social do Estado.139
Nesse vértice, nota-se que a proteção constitucional da propriedade
abandona o foco do bem considerado em si mesmo para passar a compreender o
aproveitamento econômico de um direito que encerra valor patrimonial, como os
direitos a prestações estatais.
Consoante a lição de Hesse:
Propriedade, no sentido jurídico-constitucional, podem (sic), por conseguinte, também ser outros direitos privados de valor patrimonial que a propriedade da coisa, por exemplo, reivindicações salariais ou quotas sociais que, muitas vezes, assumiram tarefa, cumprida antigamente pela propriedade da coisa, do asseguramento da existência. Na questão, se a proteção da garantia da propriedade também se estende a direitos (subjetivo-) públicos de valor patrimonial, por exemplo, direitos ao salário dos funcionários e soldados, direitos ao seguro social, e coisas semelhantes, existe concórdia fundamental sobre isto, que também tais direitos podem cair sob a proteção da garantia da propriedade porque também eles cumprem funções iguais como antigamente a propriedade da coisa.140
Na esteira dessas ideias, o Tribunal Constitucional Federal alemão
acolheu esse entendimento, ampliando o conceito constitucional de propriedade vigente
no direito privado, na medida em que as posições jurídico-subjetivas de direito público
de caráter patrimonial, igualmente, careceriam ser protegidas, fazendo jus ao mesmo
equivalente à da propriedade privada e que, no caso de uma supressão sem qualquer compensação, ocorreria uma colisão frontal com o princípio do Estado de Direito, tal como plasmado na Lei fundamental. Paradigmática é, portanto, a virtual equiparabilidade das posições subjetivas de direito público com a condição do proprietário. Com a inclusão de direitos subjetivos patrimoniais de natureza pública na esfera da seguridade social no âmbito de proteção da garantia fundamental da propriedade, verificou-se uma ampliação do conceito de propriedade vigente no direito privado, do qual o conceito constitucional de propriedade acabou por se desprender quase que completamente” (O Estado social de direito, a proibição de retrocesso e a garantia fundamental da propriedade, p. 5).
139 Konrad Hesse, Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, Tradução de Luís Afonso Heck, Porto Alegre: Fabris, 1998, p. 339 e ss.
140 Idem, ibidem, p. 341.
78
nível de tratamento conferido às posições jurídico-subjetivas privadas. Nesse passo, a
eliminação do direito subjetivo patrimonial de índole pública, sem a devida
compensação, acarretaria afronta ao princípio do Estado de Direito.141
Todavia, segundo destaca Ingo Wolfgang Sarlet, não foi todo e qualquer
direito subjetivo patrimonial de natureza pública que foi abrangido por essa ideia de
proteção; para tanto, conforme jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal,
necessário se faz que estejam presentes três requisitos, quais sejam:
a) à posição jurídica individual (isto é, ao direito subjetivo a prestação social) deve corresponder uma contraprestação pessoal de seu titular, que necessariamente não pode ser irrelevante, de tal sorte que uma equivalência absoluta entre a prestação estatal e a contrapartida pessoal não tem sido considerada indispensável, sendo tido como suficiente que a pretensão do particular não se encontre embasada única e exclusivamente numa prestação unilateral do Estado; b) deve tratar-se de uma posição jurídica de natureza patrimonial, que possa ser tida como de fruição privada para o seu titular, o que ocorre quando o titular do direito pode partir da premissa de que se cuida de uma posição jurídica pessoal, própria e exclusiva, caracterizada por uma essencial disponibilidade por parte de seu titular; c) a prestação deve servir à garantia da existência de seu titular, já que a propriedade também protege as condições necessárias para uma vida autônoma e responsável, especialmente considerando que a maior parte dos cidadãos alcança a sua segurança existencial menos por meio do patrimônio privado imobiliário e/ou
141 Ingo Wolfgang Sarlet, Proibição de retrocesso, dignidade da pessoa humana e direitos sociais:
manifestação de um constitucionalismo dirigente possível. Disponível em: <http://www.direito doestado.com/revista/RERE-15-SETEMBRO-2008-INGO%20SARLET.pdf>. Acesso em: 30 out. 2011, p. 18. No tocante à questão dos direitos subjetivos, interessa esclarecer que aqui se adota o conceito de direito subjetivo de Luís Roberto Barroso, para quem: direito subjetivo é o poder de ação, assente no direito objetivo, e destinado à satisfação de certo interesse. Há bilateralidade, sendo que uma das partes tem a faculdade de exigir de outra determinado comportamento. O citado autor arrola as seguintes características que o diferem de outras posições jurídicas: a) a ele corresponde sempre um dever jurídico; b) violabilidade, existindo a possibilidade de a parte contrária deixar de cumprir seu dever; c) pretensão – seu titular possui um meio jurídico para exigir-lhe o cumprimento, a ação judicial. Quando a exigibilidade da conduta se verifica em favor do particular em face do Estado, diz-se existir direito subjetivo público. Chega à conclusão de que as normas constitucionais definidoras de direitos enquadram-se neste esquema conceitual: dever jurídico, violabilidade e pretensão. Assim, o jurista dá o conceito de poder jurídico da seguinte maneira: tal como nos direitos subjetivos, existe um direito do sujeito ativo ao qual corresponde um dever do sujeito passivo. A peculiaridade é que este poder é exercido a favor do próprio sujeito passivo ou do grupo social, como no pátrio poder, para o direito privado, ou como o próprio poder estatal, para o direito público (Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da constituição brasileira, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 91-120).
79
mobiliário, do que pelo resultado de seu trabalho e, portanto, por meio de suas posições jurídico-subjetivas patrimoniais.142
Na seara dessas três condições e do seu progressivo desenvolvimento,
como também do alargamento do conteúdo social da propriedade, a salvaguarda das
posições jurídico-subjetivas patrimoniais de caráter público foi admiravelmente
fortalecida, abarcando importante parte das prestações que compõem o sistema público
de seguridade social (destacando-se aposentadorias, pensões, seguro-desemprego,
seguro contra acidentes de trabalho etc.), incluindo ainda o alcance das expectativas de
direitos, de maneira especial “aquelas posições que, mediante o implemento de outras
condições (por exemplo, um certo prazo de espera e/ou carência), tornam-se plenamente
exigíveis”. No entanto, em virtude de exigirem contrapartida no que diz respeito ao
cidadão, têm sido afastadas da proteção as prestações de cunho reabilitatório e
secundário, sem a correspondente contraprestação, bem como prestações
discricionárias, “que não radicam numa posição jurídica similar à propriedade privada,
devendo, portanto, tratar-se de prestações obrigatórias”.143
Sarlet completa dizendo que o primado da vedação ao retrocesso social
ganhou grande destaque na Alemanha, assegurando graus de proteção social muito mais
elevados do que os níveis de garantia brasileiros, não obstante, geralmente, a falta de
expressa previsão dos direitos sociais no âmbito constitucional.144
Ora, em análise ao ponto de vista alemão do princípio do não retrocesso
social, parece claro que o desenvolvimento e a compreensão desse mandamento não
podem ser transpostos para o direito pátrio, pois a Lei Maior brasileira, diferentemente
da Constituição alemã, agasalha de forma explícita um vasto rol de direitos sociais,
resguardados sob o manto das “cláusulas pétreas”. Da mesma maneira, contempla
previsão expressa referente ao direito adquirido, tornando dispensável toda a construção
142 Sarlet, Proibição de retrocesso, dignidade da pessoa humana e direitos sociais: manifestação de um
constitucionalismo dirigente possível, p. 18-19. 143 Idem, ibidem, p. 19. 144 Idem, p. 20.
80
que se elaborou em torno do direito à propriedade (que, aliás, recebe censuras até
mesmo no próprio país onde a teoria foi cunhada).145
2.1.2 Itália
O tema da vedação ao retrocesso social na Itália foi desenvolvido por
Giorgio Balladore Pallieri na seara do Direito Constitucional italiano. Sua doutrina
obteve repercussão em Portugal e também em terras brasileiras, influenciando,
destacadamente, o pensamento de José Afonso da Silva. Dentre as lições do pensador
italiano, relacionadas ao assunto do não retrocesso, destaca-se a temática dos direitos
individuais e dos trabalhos do legislador na sua disciplina infraconstitucional.146
145 Segundo leciona Sarlet, as críticas à concepção do direito de propriedade da doutrina alemã são
embasadas em vários motivos: não se mostra razoável a concepção de que o resguardo outorgado “pela garantia fundamental da propriedade às posições jurídico-subjetivas patrimoniais de direito público deva, necessariamente, estar condicionada a uma contraprestação do titular do direito e, além disso, servir para garantir a sua existência”, pois “os critérios da contraprestação e do caráter existencial – exigidos tratando-se de posições jurídico-prestacionais de natureza pública – assumiriam relevância apenas no que diz com a problemática dos limites à regulamentação legislativa”. Deve-se ressaltar “o fato de que as posições patrimoniais jurídico-privadas alcançam sua força direta e exclusivamente a partir da norma contida no art. 14 da LF (garantia de propriedade)”, de modo que, “se as posições de direito público já obtiveram sua especial força jurídica a partir de outras normas constitucionais, a aplicação supletiva da garantia da propriedade não apenas se revela desnecessária, mas relativizante”, pois, consoante “o art. 14, inc. III, da LF, estaria, em princípio, sujeita a ser desapropriada mediante indenização”. Além disso, outro ponto a ser destacado é o de que, no tocante à “exigência da contraprestação do titular do direito”, encontra-se a “opinião de que no âmbito dos direitos patrimoniais públicos não se cuida do direito a uma parcela do patrimônio global da seguridade social equivalente à soma das contraprestações pessoais do titular”; o que há é a “participação na receita futura da previdência social, de tal sorte que à pretensão do particular corresponde apenas de forma relativa e em tese uma contrapartida pessoal equivalente”. Por fim, “aponta-se oportunamente para a circunstância de que, em decorrência dessa flexibilização e ampliação da noção de propriedade e do âmbito de proteção da respectiva garantia fundamental, corre-se o risco de uma crescente relativização desta proteção, visto que, em virtude das exigências da função social da propriedade, boa parte daquilo que foi concedido poderá acabar sendo retirado”. Nesse sentido, “cumpre ainda citar o entendimento do Tribunal Federal Constitucional, para o qual, ‘na determinação do conteúdo e dos limites de posições jurídicas previdenciárias, o legislador dispõe de uma ampla liberdade de conformação. Isto aplica-se principalmente a normas que se destinam a preservar, aperfeiçoar ou adaptar à realidade econômica em mutação, em benefício da coletividade, a funcionalidade e capacidade prestacional do sistema legal de previdência social. Neste sentido, a norma contida no art. 14, inc. I, da Lei Fundamental também abrange a possibilidade de restringir direitos e expectativas de direitos. Conquanto tal medida sirva ao interesse comunitário e corresponda ao princípio da proporcionalidade, ao legislador não estará, em princípio, vedada a redução de prestações, bem como a alteração da amplitude de pretensões e expectativas, assim como a sua adequação. Todavia, sua liberdade de atuação encontra-se reduzida, na mesma proporção em que os direitos e expectativas estão impregnados pelo vínculo pessoal da contrapartida de seu titular’” (O Estado social de direito, a proibição de retrocesso e a garantia fundamental da propriedade, p. 9-11).
146 Neste sentido: Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 161.
81
Em relação à atividade concreta do legislador sobre os direitos
individuais (e, portanto, não constitucional), existem limites a ela. Esses limites,
segundo Balladore Pallieri, não são limites absolutos para o Estado, porque o ente
estatal sempre tem o poder de removê-los ao remover a norma constitucional que os
contêm. Contudo, de outro lado, deve-se ter presente que tal situação só acontecerá por
intermédio de uma modificação da Constituição.147
Ressalta-se que ditos limites referem-se todos, em última análise, à
atividade legislativa, e assumem formas diversas que podem ser classificadas, consoante
os ensinamentos de Balladore Pallieri,148 da seguinte forma:
1) Algumas vezes a norma constitucional substitui diretamente a lei
ordinária, dispõe no lugar desta, e estabelece as normas que serão observadas por outros
órgãos estatais e pelos sujeitos internos, ou seja, a própria norma constitucional
determina os limites da atividade estatal, não necessitando de lei ordinária para instituí-
los. Exemplifica essa hipótese citando a previsão contida no art. 21 da Carta italiana.
Mencionado dispositivo estabelece que, quando houver absoluta urgência e não for
possível a tempestiva intervenção da autoridade judiciária, o embargo da mídia impressa
pode ser executado por oficial da polícia judiciária que deve imediatamente, e nunca
além de vinte quatro horas, fazer denúncia à autoridade judiciária. Se esta não
convalidar o embargo nas vinte e quatro horas sucessivas, o mesmo entender-se-á
revogado e privado de qualquer efeito. Verifica-se dessa determinação que a norma
constitucional substitui a lei ordinária, disciplinando uma matéria particular, e subtrai do
legislador infraconstitucional a possibilidade de dispor a respeito da questão.149
2) Outras vezes as normas constitucionais estabelecem uma proibição
ao legislador ordinário de legislar em dado sentido. É a situação prevista no art. 7 da
Constituição italiana, em que está estipulado que o legislador ordinário não pode
147 Giorgio Balladore Pallieri, Diritto costituzionale, 8. ed., Milano: Giuffrè, 1965, p. 381. 148 Pallieri, Diritto costituzionale, p. 381-384. 149 Traçando um paralelo com a Constituição brasileira de 1988, pode-se ter como exemplo desse tipo
de norma a previsão contida no art. 5,º, inciso XVI: “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.
82
modificar as leis existentes emanadas em execução dos pactos lateranenses,150 se não se
verificar a particular condição prevista no mesmo dispositivo.151
3) Em outras hipóteses a Constituição prescreve que determinadas
matérias devem ser obrigatoriamente reguladas por lei (assim chamada reserva de lei).
Veja-se como exemplo o último parágrafo do art. 25 da Constituição italiana; este
dispositivo determina que ninguém pode ser submetido à medida de segurança se não
nos casos previstos por lei.152
4) Em outras situações a Constituição dita alguns critérios que devem
ser observados pela lei. É a hipótese do art. 16 da Carta italiana que dispõe que cada
cidadão pode circular livremente em qualquer parte do território nacional, salvo as
limitações que a lei estabelece, como regra geral, por motivos de saúde e de segurança.
É desse mesmo tipo a norma contida no art. 53: “O sistema tributário é informado por
critérios de progressividade”. Nessas hipóteses a lei é inconstitucional se não dispõe nos
modos e nos limites da Constituição.153
5) Em outros casos, enfim, a Constituição manda que se exerça certa
atividade legislativa. Essa é a hipótese mais complexa e que dá lugar a uma maior
dificuldade.
Portanto, pode ser que a lei deva ser emanada para circunscrever e
precisar um princípio já fixado pela Constituição. Cite-se como exemplo o art. 40 da
Constituição italiana que determina que o direito de greve deverá ser exercido no
150 Os pactos lateranenses constituem acordos de reconhecimento mútuo entre o Reino da Itália e a
Santa Sé, assinados em 11 de fevereiro 1929. Um dos documentos que compõem os pactos é o Tratado que reconheceu a independência e soberania da Santa Sé e fundou o Estado da Cidade do Vaticano.
151 Exemplificando essa hipótese com normas constitucionais brasileiras têm-se as disposições previstas nos incisos XXXV e XXXVI da Constituição Federal de 1988: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”; e “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
152 Conforme, v.g., estabelece o art. 5.º, inciso XXXII, da Constituição Federal de 1988: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.
153 Pode-se ter como exemplo dessa situação a previsão contida no art. 5.º, inciso XXVI, da Constituição Federal de 1988: “a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento”.
83
âmbito da lei que o regula; também, exemplificativamente, pode ser mencionado o
último parágrafo do art. 13, o qual estabelece que a lei disporá sobre os limites máximos
da prisão preventiva. Destarte, pode-se dizer que o direito de greve já existe e que a lei
somente pode (e deve) circunscrevê-lo e limitá-lo; afirma o direito do cidadão de não
ser preso preventivamente se não estiver fixado em lei o limite máximo dessa prisão.
Dessa forma, se as leis não são emanadas, o direito de greve será ilimitado, a prisão
preventiva será ilegítima.154
Entretanto, em outros vários casos a norma constitucional dirige-se
exclusivamente ao legislador, determinando-lhe que edite uma dada legislação, hipótese
em que a disposição constitucional não surtirá efeito se a lei reclamada não for
editada.155 Como exemplo está a previsão contida no art. 32 da Constituição italiana: “A
República tutela a saúde como direito fundamental do indivíduo e interesse da
coletividade, e garante cuidados gratuitos aos indigentes”. Veja-se que, conforme
entende Balladore Pallieri, embora esteja prevista na Constituição, referida norma
constitui uma obrigação genérica da República e é dotada de uma eficácia menor do que
as outras; em última análise depende da boa vontade do legislador ordinário. Todavia,
produz um efeito indireto notável, qual seja prescreve um caminho a ser seguido pela
legislação ordinária; não tem juridicamente o condão de constranger o legislador a
seguir por aquela via, mas o constrange, ao menos, a não seguir uma via diversa. Seria
inconstitucional uma lei que dispusesse de modo contrário ao que a Constituição
154 G. Balladore Pallieri influenciou, no Brasil, a doutrina de José Afonso da Silva. Como se sabe, o
tema da classificação das normas constitucionais foi exaustivamente tratado pelo citado constitucionalista brasileiro, em sua obra Aplicabilidade das normas constitucionais, e inspirou outros autores pátrios a se debruçarem sobre o tema, os quais, baseando-se na classificação já elaborada por José Afonso da Silva, desenvolveram e acrescentaram peculiaridades na doutrina desenvolvida pelo jurista. A classificação elaborada por Afonso da Silva dividiu as normas constitucionais em normas de eficácia plena, de eficácia contida e, por fim, de eficácia limitada, com suas respectivas subdivisões. Desse modo, essa primeira situação, dentro da quinta hipótese idealizada por Balladore Pallieri, é semelhante à hipótese que Afonso da Silva denomina norma de eficácia contida, ou seja, são normas constitucionais em que o legislador constituinte regulou suficientemente a matéria, mas possibilitou ao legislador ordinário restringir os efeitos da norma constitucional. Estas normas constitucionais têm aplicabilidade imediata, quer dizer, com a entrada em vigor da Constituição, elas já são aplicáveis, no entanto uma lei posterior poderá restringir, conter seus efeitos (José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 3. ed., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 82).
155 Já nesta segunda hipótese tais normas enquadrar-se-iam, na classificação de José Afonso da Silva, como normas constitucionais de eficácia limitada, constituindo-se naquelas normas que precisam de atuação legislativa posterior para que possam gerar plenamente todos os direitos e obrigações (Ibidem, p. 82-83).
84
determina. E, “uma vez dada execução à norma constitucional, o legislador ordinário
não pode retornar sobre seus passos”.
Na linha dessas ideias, destaca-se essa última hipótese verificada por
Balladore Pallieri, que, ao analisar a disposição constitucional da Carta italiana que trata
do direito à saúde, portanto direito de caráter fundamental social, reconhece caber ao
legislador infraconstitucional a tarefa de editar lei que amplie os efeitos da norma
constitucional que agasalha aludido direito. Ademais, nota-se que o autor condena a
ação do legislador de “retornar sobre seus passos”, visto que o legislador ordinário fica
impedido de elaborar leis que contrariem o disposto pela Constituição, e, uma vez que
tais leis sejam editadas, em consonância com o que dispõe a Lei Maior, vedado está o
recuo do legislador caso ocorra a revogação da legislação dantes emanada (restando um
vazio legal); gerar-se-ia, dessa maneira, uma situação de insuficiência de
regulamentação ordinária, o que é defeso à função legislativa.
Além do pensamento de Balladore Pallieri, em relação ao tema da
proibição de retrocesso social, também se pode trazer à baila a doutrina de outro
constitucionalista italiano, Gustavo Zagrebelsky, que, ao tratar da Corte Constitucional
italiana, em obra referente aos tribunais constitucionais europeus e aos direitos
fundamentais, entende que, ainda que se possa conceber que os direitos sociais
albergados na Constituição não constituam direitos subjetivos, e daí apontarem tão só
um norte ao legislador, isto é, acarretarem somente uma tarefa de cunho político ao
poder encarregado de editar leis, deve-se ter em conta que as normas constitucionais que
estabelecem um desenvolver progressivo e pretendem o incremento dessa espécie de
direitos geram a proibição de que a lei faça um movimento para trás quanto ao patamar
já alcançado, e que se retorne ao nível de materialização antecedente. Desse modo,
Zagrebelsky também vê uma vedação ao retrocesso social no âmbito do Direito
constitucional italiano de forma a não aceitar o regresso a um status que corresponderia
à inércia legislativa.156
156 Gustavo Zagrebelsky, El Tribunal Constitucional italiano, In: Louis Favoreu (Coord.), Tribunales
constitucionales europeos y derechos fundamentales, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1984, p. 450.
85
Vale ressaltar que tal modo de pensar a temática da proibição do
retrocesso social na Itália aproxima-se da doutrina defendida, destacadamente, por J. J.
Gomes Canotilho e pela Corte Superior portuguesa (que, inclusive, chega a expor as
lições de Balladore Pallieri na fundamentação do Aresto 39/1984), conforme a seguir se
verá.
2.1.3 Portugal
O Direito português desenvolveu de modo significativo o princípio da
vedação ao retrocesso social, influenciando, inclusive, o pensamento doutrinário e
jurisprudencial brasileiro a respeito do assunto. Dentre os doutrinadores lusos, talvez
seja Canotilho o autor que alcance maior destaque na defesa da proibição do retrocesso
social.
Na obra Constituição dirigente e vinculação do legislador, ao fazer
referência à dimensão subjetiva dos direitos econômicos, sociais e culturais, Canotilho
explica que referida dimensão resulta da consagração desses direitos como direitos
fundamentais dos cidadãos e de normas infraconstitucionais que possibilitem a
concretização de ditos direitos; a partir dessa concretização, os direitos não podem mais
ser reduzidos ou suprimidos sob pena de se incorrer em verdadeiro retrocesso social.
Nas palavras do doutrinador lusitano:
Dimensão subjectiva, que resulta: a) da consagração constitucional destes direitos como direitos fundamentais dos cidadãos e não apenas como “direito objectivo” expresso através de “normas programáticas” ou de “imposições constitucionais” (direitos originários de prestações); b) da radicação subjectiva de direitos através da criação por lei, actos administrativos, etc., de prestações, instituições e garantias necessárias à concretização dos direitos constitucionalmente reconhecidos. É neste segundo sentido que se fala de direitos derivados a prestações (assistência social, subsídio de desemprego, etc.) que justificam o direito de judicialmente ser reclamada a manutenção do nível de realização e de se proibir qualquer tentativa de retrocesso social157 (grifou-se).
157 José Joaquim Gomes Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a
compreensão das normas constitucionais programáticas, Coimbra: Editora Coimbra, 1994, p. 374.
86
Contudo, a doutrina alemã não deixou de inspirar a doutrina portuguesa
e também o pensamento de Canotilho, que acabou por revisar em parte seu pensamento.
Desenvolvendo melhor o princípio da vedação ao retrocesso social, em obra ulterior,
Canotilho explica aludido mandamento em capítulo dedicado ao princípio da
democracia econômica e social, da seguinte maneira:
Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e económicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo. A “proibição de retrocesso social” nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas (reversibilidade fáctica), mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no ámbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana. [...] O princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas [...] deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa “anulação”, “revogação” ou “aniquilação” pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente autorreversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado158 (destaques do autor).
Portanto, para o professor de Coimbra, os direitos fundamentais sociais
adquirem, após sua concretização infraconstitucional, a condição de direitos subjetivos e
de garantia institucional, não se encontrando mais na esfera de disponibilidade do
legislador, sob pena de clara violação ao princípio da proteção da confiança e do
princípio do Estado de Direito, o que tornariam inconstitucionais quaisquer medidas que
viessem a ameaçar o patamar de prestações já atingido. É de ressaltar que, ao defender
que o princípio da vedação ao retrocesso social destina-se a limitar a reversibilidade dos
direitos adquiridos e das expectativas de direitos, em atenção à proteção da confiança
dos cidadãos em âmbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial dos direitos
158 Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, p. 338-340.
87
fundamentais sociais, concebe tais direitos como “direitos prestacionais de
propriedade”, e é nesse ponto que acolhe a doutrina alemã a respeito do princípio do não
retrocesso social. Por outro lado, se, em um primeiro momento, Canotilho trata do
problema fático da irreversibilidade das conquistas sociais, em momento posterior,
como se expôs supra, passa a falar da sua reversibilidade fática, aceitando que a
proibição de retrocesso social é ineficaz contra as recessões e crises econômicas.
Contudo, uma vez que os direitos sociais constitucionais estejam concretizados em lei,
referida materialização passa a corresponder a uma complementação ou
desenvolvimento do direito constitucional, e, nesse passo, adquire caráter materialmente
constitucional, sendo vedada, por conseguinte, a eliminação dessas posições já
alcançadas no que diz respeito ao núcleo essencial já realizado.
Pensando de forma similar, Jorge Miranda afirma que não é possível
suprimir as normas legais e concretizadoras, abolindo os direitos derivados a prestações,
pois extingui-las consistiria em não conceder eficácia jurídica às correlativas normas
constitucionais.159
Nos dizeres de Cristina Queiroz, a respeito dos direitos e interesses
garantidos pelo direito ordinário infraconstitucional, “A esse domínio parcial poderá
chamar-se o nível legalmente concretizado dos direitos sociais”. E assevera que tal
nível legalmente concretizado dos direitos fundamentais sociais precisa ser
compreendido como “configuração” ou “concretização” de referidos direitos pelo
legislador, o que não diminui, em nada, o caráter constitucional dos mesmos.160
Nesse sentido, Queiroz explica que o Tribunal Constitucional de
Portugal entende que, “uma vez consagradas legalmente as ‘prestações sociais’ (v.g., de
159 Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, Coimbra: Editora Coimbra, 2000, t. IV, p. 397-
398. 160 Cristina Queiroz, O princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais, Coimbra:
Editora Coimbra, 2006, p. 65-66.
88
assistência social), o legislador não poderá depois eliminá-las sem alternativas ou
compensações”.161
Daí a autora concordar com J. Paul Müller e a “tese da
‘irreversibilidade’ dos direitos fundamentais sociais constitucionalmente consagrados”,
na medida em que essa ideia “acaba por assumir a função de ‘guarda de flanco’ desses
direitos e pretensões no seu conjunto, garantindo o grau de concretização já obtido,
transformando-se, por assim dizer, numa espécie de ‘densificação’ de direitos
fundamentais”. Nesse sentido, significa que, “ainda que os direitos de natureza
prestacional não imponham uma obrigação de ‘avançar’, estabelecem, contudo, uma
proibição de ‘retroceder’”; com isso, “(os direitos fundamentais) hão-de assegurar
jurídico-constitucionalmente o status quo alcançado sob o ponto de vista do Estado
social [...]”.162
No tocante à linha de entendimento do Tribunal Constitucional
português, merece especial destaque o caso paradigmático apreciado pela Corte
Superior portuguesa, referente ao Serviço Nacional de Saúde, no Acórdão 39/1984,163
em que se submeteu, ao exame desse Tribunal, requerimento de declaração de
inconstitucionalidade do art. 17.º do Decreto-lei 254/1982, que revogou a maior parte
dos preceitos da Lei 56/1979, a qual criou o Serviço Nacional de Saúde, como uma
forma de realizar um direito fundamental, o direito à proteção da saúde contemplado no
art. 64.º da Constituição, cumprindo, designadamente, a tarefa constitucional
consignada no n.º 2 desse preceito constitucional.164 Entretanto, ao revogar boa parte
dos preceitos da Lei 56/1979, o Governo, por meio do aludido decreto-lei, legislou em
161 Queiroz, O princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais, p. 67. 162 Idem, ibidem, p. 68. 163 Tribunal Constitucional de Portugal. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.
pt/tc/acordaos/19840039.html>. Acesso em: 7 dez. 2011. 164 Assim dispõe o artigo 64.º, 2, da Constituição portuguesa de 1976: “2. O direito à protecção da saúde
é realizado: a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito”; e “b) Pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam, designadamente, a protecção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável”.
89
matéria do direito à saúde e extinguiu, na verdade, o Serviço Nacional de Saúde
instituído por essa lei.
Nas palavras do relator do acórdão, o Ministro Vital Moreira, sobre o
enquadramento da questão em apreço, encontra-se a seguinte exposição ao questionar o
efeito da revogação dos vários artigos da Lei do Serviço Nacional de Saúde pelo
mencionado decreto governamental:
É fácil verificar que foi revogada toda a parte institucional e organizatória da Lei, a qual ficou reduzida a um pequeno conjunto de princípios materiais orientadores da política de saúde e dos serviços de saúde em geral, mas não do Serviço Nacional de Saúde, pois esse deixou de existir. Uma leitura da Lei n.º 56/79, que se limite aos artigos que não foram revogados, mostra imediatamente que o Serviço Nacional de Saúde, enquanto tal, foi efectivamente revogado e que das disposições subsistentes, algumas (como as dos artigos 1.º, 2.º e 3.º, n.º 2) deixaram de ter qualquer conteúdo e as restantes apenas continuam a valer como normas aplicáveis aos serviços públicos de saúde em sentido genérico ou às prestações públicas de saúde em geral, mas não a uma realidade caracterizada como era o Serviço Nacional de Saúde. A instituição Serviço Nacional de Saúde, essa, foi extinta.
E, de acordo com a fundamentação do acórdão e as considerações do
Ministro Vital Moreira, merecem ser destacados os trechos a seguir colacionados, que
bem demonstram a relação da linha argumentativa do magistrado com o princípio da
vedação ao retrocesso social:
A Constituição não se bastou com estabelecer o direito à saúde. Avançou no sentido de enunciar um conjunto de tarefas estaduais destinadas a realizá-lo. À frente delas a lei fundamental colocou a “criação de um serviço nacional de saúde” (artigo 64.º, n.º 2).
A criação de um serviço nacional de saúde é pois instrumento – o primeiro – de realização do direito à saúde. Constitui por isso elemento integrante de um direito fundamental dos cidadãos, e uma obrigação do Estado.
Na tipologia das normas constitucionais de natureza “positiva”, “directiva” ou “dirigente” – isto é, daquelas que, em vez de interdizerem, requerem certa acção do Estado –, a norma que determina a criação de um serviço nacional de saúde assume a natureza de uma verdadeira e própria imposição constitucional, no sentido específico que a doutrina atribui a esta expressão (ver, por todos, J. J. Gomes Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador, Coimbra 1982, pp. 289 e segs.). Trata-se, não de uma
90
simples “norma programática” no sentido corrente da expressão, abstracta e temporalmente indeterminada, mas sim de uma obrigação constitucional do Estado, concreta e permanente. [...]
É que aí a tarefa constitucional a que o Estado se acha obrigado é uma garantia do direito fundamental, constitui ela mesma objecto de um direito dos cidadãos. Quando a tarefa constitucional consiste na criação de um determinado serviço público (como acontece com o Serviço Nacional de Saúde) e ele seja efectivamente criado, então a sua existência passa a gozar de protecção constitucional, já que a sua abolição implicaria um atentado a uma garantia institucional de um direito fundamental e, logo, um atentado ao próprio direito fundamental. A abolição do Serviço Nacional de Saúde não significa apenas repor uma situação de incumprimento, por parte do Estado, de uma concreta tarefa constitucional; uma vez que isso se traduz na revogação da execução dada a um direito fundamental, esse acto do Estado implica uma ofensa ao próprio direito fundamental.
Em grande medida, os direitos sociais traduzem-se para o Estado em obrigação de fazer, sobretudo de criar certas instituições públicas (sistema escolar, sistema de segurança social, etc.). Enquanto elas não forem criadas, a Constituição só pode fundamentar exigências para que se criem; mas, após terem sido criadas, a Constituição passa a proteger a sua existência, como se já existissem à data da Constituição. As tarefas constitucionais impostas ao Estado em sede de direitos fundamentais no sentido de criar certas instituições ou serviços não o obrigam apenas a criá-los, obrigam-no também a não aboli-los uma vez criados.
Quer isto dizer que a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numa obrigação positiva, para se transformar (ou passar também a ser) numa obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a actuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social. [...]
Menos dificuldades tem a doutrina lá onde as respectivas Leis Fundamentais incluem grande número de normas positivas, sobretudo em matéria de direitos sociais. É assim que, na Itália, um autor como G. Balladore Pallieri pôde escrever (aliás referindo-se expressamente à norma da Constituição italiana sobre o direito à saúde):
Existem no nosso ordenamento meios para impedir o legislador de legislar em certas matérias que lhe estejam vedadas; mas não existem para forçá-lo a legislar nos casos em que lhe é imposto que o faça. Estas normas da Constituição têm assim uma eficácia assaz menor do que as outras, dependendo em última análise da boa vontade do legislador ordinário. Todavia produzem um efeito, ao menos indirecto, notabilíssimo.
Elas prescrevem uma via a seguir à legislação ordinária; não conseguem constranger juridicamente o legislador a seguir essa via, mas compelem-no pelo menos a não seguir uma via diferente. Seria anticonstitucional a lei que dispusesse de maneira contrária à que a Constituição ordena. E, além disso, uma vez dada execução à norma constitucional, o legislador ordinário não pode retornar sobre os seus
91
passos. (Autor citado, Diritto Costituzionale, 11. ed., Milão, 1956, pp. 405-6; [...]
Impõe-se a conclusão: após ter emanado uma lei requerida pela Constituição para realizar um direito fundamental, é interdito ao legislador revogar essa lei, repondo o estado de coisas anterior. A instituição, serviço ou instituto jurídico por ela criados passam a ter a sua existência constitucionalmente garantida. Uma nova lei pode vir alterá-los ou reformá-los nos limites constitucionalmente admitidos; mas não pode vir extingui-los ou revogá-los.
Diante dos argumentos utilizados por Vital Moreira para que o Tribunal
Constitucional de Portugal declarasse, por maioria, a inconstitucionalidade do
indigitado art. 17 do Decreto-lei 254/1982,165 é possível observar diferenças entre as
concepções desenvolvidas na Alemanha e em Portugal, e verificar que as ideias
lusitanas assemelham-se muito mais ao pensamento italiano. Cotejando-se a concepção
do princípio da vedação ao retrocesso social desenvolvida nesses países, após exposição
da decisão da Corte Superior portuguesa, notam-se várias diferenças, seja quanto ao
alcance, seja quanto à própria fundamentação.
Nesse viés, o Tribunal português não limitou, tal como fez o
pensamento doutrinário alemão, o princípio do não retrocesso apenas às situações em
que haja uma contraprestação pessoal de seu titular; em vez disso, abarcou também
outras prestações estatais. Verifica-se, ainda, que o aresto português baseou-se nos
limites da ação do legislador e dos mecanismos de controle dos atos comissivos, não
fazendo qualquer relação entre o princípio da proibição de retrocesso social e a
dignidade da pessoa humana ou a proteção da confiança, tratando da problemática dos
limites da atuação “do legislador e do estabelecimento de mecanismo de controle dos
atos comissivos do Poder Legislativo”, que, por fim, “pudessem gerar efeitos similares
aos de sua omissão na tarefa de cumprir determinações constitucionais de editar atos
normativos concretizadores das disposições da Carta Magna”. Em síntese, “Enveredou o
165 O Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, nos termos
e para os efeitos dos artigos 281.º e 282.º da Constituição portuguesa de 1976, do artigo 17.º do Decreto-lei 254/1982, de 29 de junho, na parte em que revogou os artigos 18.º a 61.º e 64.º a 65° da Lei 56/1979, de 15 de setembro. Participaram do julgamento os Ministros: Vital Moreira, José Magalhães Godinho, Jorge Campinos, Luís Nunes de Almeida, Raul Mateus, Mário de Brito, Antero Alves Monteiro Diniz, José Martins da Fon-seca, Joaquim Costa Aroso (com a declaração de voto anexa), José Manuel Cardoso da Costa (vencido, nos termos da declaração anexa), Messias Bento (vencido, em parte, nos termos da declaração de voto que junto), Armando Manuel Marques Guedes.
92
pensamento português, portanto, pela trilha de uma discussão de cunho mais
relacionado com a observância, pelo legislador, das imposições constitucionais
legiferantes”.166 Desta feita, de dita comparação, e do exposto nos tópicos anteriores
(2.1.1 e 2.1.2), é possível notar maior proximidade com o pensamento italiano, até pela
menção, no acórdão, à doutrina de Balladore Pallieri, para quem não é concebível, como
já se viu, que, uma vez alcançada a materialização dos direitos fundamentais previstos
na Constituição, por meio de lei infraconstitucional haja a revogação dessa legislação de
modo a causar retorno a uma situação que equivaleria à omissão do legislador.
Em tempos mais recentes, o Tribunal Constitucional de Portugal
analisou novamente o tema da vedação ao retrocesso social, no Acórdão
509/2002,167 ao reconhecer a inconstitucionalidade da legislação instituidora do
rendimento mínimo garantido (o atual Decreto 18/IX da Assembleia da
República), que revogou a Lei 50/1988, e legislação complementar, que regulava o
subsídio de inserção de jovens na vida activa. Ou seja, o novo regime reconhecia a
titularidade do rendimento social de inserção apenas às pessoas com idade igual ou
superior a 25 anos, ao passo que o regime anterior previa o direito à prestação do
rendimento mínimo aos indivíduos com idade igual ou superior a 18 anos, sem que
com tal revogação do regime anterior tenha havido substituição por qualquer
compensação afim, verificando-se uma desproteção objetiva da generalidade das
pessoas de idade inferior a 25 anos, constituindo, objetivamente, para essa faixa
etária, uma regressão na proteção social correspondente aos tempos anteriores a
1988. No entanto, referida análise foi feita com fundamentação distinta daquela
constante do Acórdão 39/1984, pois nessa nova apreciação admitiu-se a aplicação
do apontado princípio tão só quando a supressão legislativa afetar o mínimo
existencial, de modo a conciliar com a liberdade de conformação do legislador.168
166 Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 151-152. 167 Tribunal Constitucional de Portugal. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.
pt/tc/acordaos/20020509.html>. Acesso em: 12 dez. 2011. 168 O Tribunal Constitucional português pronunciou-se pela inconstitucionalidade da norma constante
do artigo 4.º, n. 1, do Decreto da Assembleia da República n. 18/IX, por violação do direito a um mínimo de existência condigna inerente ao princípio do respeito da dignidade humana, decorrente das disposições conjugadas dos artigos 1.º, 2.º e 63.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República portuguesa.
93
Nesse julgado de 2002, que teve como relator o Conselheiro Luís Nunes
de Almeida, entendeu-se, conforme fragmentos transcritos abaixo, da seguinte forma:
Aí, por exemplo, onde a Constituição contenha uma ordem de legislar, suficientemente precisa e concreta, de tal sorte que seja possível “determinar, com segurança, quais as medidas jurídicas necessárias para lhe conferir exequibilidade” (cfr. Acórdão n.º 474/02, ainda inédito), a margem de liberdade do legislador para retroceder no grau de protecção já atingido é necessariamente mínima, já que só o poderá fazer na estrita medida em que a alteração legislativa pretendida não venha a consequenciar uma inconstitucionalidade por omissão – e terá sido essa a situação que se entendeu verdadeiramente ocorrer no caso tratado no já referido Acórdão n.º 39/84.
Noutras circunstâncias, porém, a proibição do retrocesso social apenas pode funcionar em casos-limite, uma vez que, desde logo, o princípio da alternância democrática, sob pena de se lhe reconhecer uma subsistência meramente formal, inculca a revisibilidade das opções político-legislativas, ainda quando estas assumam o carácter de opções legislativas fundamentais.
Este Tribunal já teve, aliás, ocasião de se mostrar particularmente restritivo nesta matéria, pois que no Acórdão n.º 101/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º vol., págs. 389-390), parece ter considerado que só ocorreria retrocesso social constitucionalmente proibido quando fossem diminuídos ou afectados “direitos adquiridos”, e isto “em termos de se gerar violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito económico, social e cultural”, tendo em conta uma prévia subjectivação desses mesmos direitos. [...]
Todavia, ainda que se não adopte posição tão restritiva, a proibição do retrocesso social operará tão só quando, como refere J. J. Gomes Canotilho, se pretenda atingir “o núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana”, ou seja, quando “sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios”, se pretenda proceder a uma “anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial”. Ou, ainda, tal como sustenta José Carlos Vieira de Andrade, quando a alteração redutora do conteúdo do direito social se faça com violação do princípio da igualdade ou do princípio da protecção da confiança; ou, então, quando se atinja o conteúdo de um direito social cujos contornos se hajam iniludivelmente enraizado ou sedimentado no seio da sociedade.
Daqui se pode retirar que o princípio do respeito da dignidade humana, proclamado logo no artigo 1.º da Constituição e decorrente, igualmente, da ideia de Estado de direito democrático, consignado no seu artigo 2.º, e ainda aflorado no artigo 63.º, n.ºs 1 e 3, da mesma CRP, que garante a todos o direito à segurança social e comete ao sistema de segurança social a protecção dos cidadãos em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho, implica o reconhecimento do direito ou
94
da garantia a um mínimo de subsistência condigna (destaques no original).
Por conseguinte, é possível notar que, com o Aresto 509/2002, a Corte
Constitucional portuguesa aproximou-se da visão alemã do princípio da vedação ao
retrocesso social e, também, da linha de entendimento que passou a ser abraçada por
Canotilho. Diante da argumentação supradestacada, pode-se verificar que essa decisão –
diferentemente do Acórdão 39/1984, cujo foco girou em torno de uma omissão
inconstitucional do legislador –, teve por norte argumentos referentes à dignidade da
pessoa humana, ao mínimo existencial e ao princípio da proteção à confiança. Importa
esclarecer que da leitura do julgado de 2002 nota-se que o Tribunal português seguiu
“uma técnica de pequenos passos (de que dá nota a própria decisão)”, aliada à
“influência de certas raízes históricas”, e, nessa passada, “veio, em sucessivas fases, a
dar corpo a um verdadeiramente novo direito fundamental: o ‘direito ao mínimo de
existência condigna’”. Acrescente-se que: “Tendo sofrido alguns reparos críticos na
doutrina, esta linha jurisprudencial teve a sua projecção máxima nesse ano de 2002
(com os Acórdãos n.ºs 62/2002, 177/2002 e 509/2002)”, ao que depois, “mesmo no
domínio onde a mesma se tinha apresentado mais florescente (o da impenhorabilidade
de salários e de prestações sociais), ela começou a declinar”.169
Nesse diapasão, no Acórdão 590/2004,170 sobre o Crédito bonificado à
habitação – em que estava em apreciação a constitucionalidade do Decreto-lei
305/2003, que havia revogado o regime do crédito bonificado e do crédito jovem
bonificado à habitação –, é possível notar que, após o auge do discurso apresentado no
texto do Aresto 509/2002, “acentuam-se neste acórdão de 2004 diversos sinais de uma 169 Jorge Miranda e José de Melo Alexandrino, As grandes decisões dos tribunais constitucionais
europeus. Disponível em: <http://www.fd.ul.pt/Portals/0/Docs/Institutos/ICJ/LusCommune/ jmjma.pdf>. Acesso em: 16 dez. 2011.
170 Tribunal Constitucional de Portugal. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional. pt/tc/acordaos/20040590.html>. Acesso em: 18 dez. 2011. Questiona-se, no citado acórdão, a inconstitucionalidade das normas constantes dos arts. 1.º e 2.º do Decreto-lei 305/2003, que, “ao revogar os regimes de crédito bonificado e crédito jovem bonificado, relativamente à contratação de novas operações de crédito, destinadas à aquisição, construção e realização de obras de conservação ordinária, extraordinária e de beneficiação de habitação própria permanente”, e, por conseguinte, referida hipótese afrontaria “o disposto na alínea d do artigo 9.º, no n.º 1 do artigo 36.º, no n.º 3 do artigo 65.º e na alínea c do n.º 1 do artigo 70.º, todos da Constituição”.
95
certa reorientação argumentativa a respeito da realização dos direitos fundamentais
sociais e, por conseguinte, do direito à habitação”.171 Segundo o Conselheiro Artur
Maurício, relator do Acórdão 590, “só existirá retrocesso social constitucionalmente
proibido em casos-limite – quando se deixe de assegurar o núcleo essencial de um
direito fundamental consagrado na Constituição”. Desse modo, “em face,
designadamente, da subsistência de outros instrumentos jurídicos de concretização dos
direitos à habitação e à protecção especial dos jovens”, tudo leva a concluir que o
“‘retrocesso social’ que advém da revogação do regime de crédito bonificado não afecta
o conteúdo essencial dos referidos direitos”. Portanto, “A solução consagrada na Lei n.º
305/2003 deve, assim, ser entendida no contexto da revisibilidade das opções
legislativas decorrente do princípio da alternância democrática, não constituindo
violação da Lei Fundamental”.
Portanto, dentre os sinais que se podem anotar da análise do julgado em
apreço, Jorge Miranda e José de Melo Alexandrino assinalam a efetiva adoção do
princípio da “revisibilidade das opções legislativas”, expressamente mencionado no
segmento colacionado supra. Acrescentem-se ainda, segundo ambos os autores, os
seguintes pontos: o abandono da teoria da proibição do retrocesso nos moldes da
formulação alcançada no destacado Acórdão 39/1984, sobre o Serviço Nacional de
Saúde; o abandono tácito da doutrina das cláusulas específicas de proibição do
retrocesso (cujos defensores, os Conselheiros Ribeiro Mendes e Luís Nunes de
Almeida, estamparam-na nos seus votos constantes do Acórdão 148/1994); o recorrer a
um completamente novo argumento de caráter holístico, consistente na empreitada do
legislador de ter de promover “a efetivação de todos os direitos econômicos, sociais e
culturais” (ou, em versão mínima, do conteúdo vital de todos eles), necessitando ainda
harmonizar um real “direito fundamental social com os demais direitos sociais e com os
demais bens e interesses constitucionalmente relevantes”; por fim, o recurso à
“diferenciação a estabelecer entre os próprios direitos fundamentais sociais, uma vez
que alguns de entre eles (‘como o direito a um nível de vida suficiente, ao nível do
direito à alimentação, vestuário, cuidados médicos e serviços sociais básicos’)” teriam
evidente “importância, à luz designadamente da DUDH e por serem decorrência da
171 Miranda e Alexandrino, As grandes decisões dos tribunais constitucionais europeus, p. 23.
96
dignidade da pessoa humana e ainda instrumento de efectivação de outros direitos
fundamentais”.172
Particularmente “quanto ao problema da proibição do retrocesso social,
pode-se afirmar, sem hesitação, que o Tribunal” assumiu inteiramente “a doutrina
fixada nos Acórdãos 509/2002 e 590/2004”.173 Portanto, manteve-se o entendimento
que se firmou por ocasião desses julgados, inclusive nos últimos acórdãos da Corte
Constitucional portuguesa (v.g., Acórdãos 187/10 e 222/11) que continuam fazendo
menção e reportando-se aos citados arestos de 2002 e 2004, em uma linha mais
restritiva da aplicação do princípio.
E, de modo ainda mais recente, o princípio do não retrocesso social
aparece mencionado novamente no Acórdão 396, de 21 de setembro de 2011,174 em que
o Tribunal Constitucional português aprecia a possibilidade de redução remuneratória
para os trabalhadores do setor público por intermédio da Lei 55-A/2010, de 31 de
dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2011). Justamente em um momento de
crise econômica, que assola vários países da União Europeia, dentre eles Portugal, a
Corte portuguesa segue implicitamente o discurso jurídico preconizado por Canotilho,
no tocante ao ponto em que o princípio do não retrocesso nada pode contra os
momentos de crise e de recessão econômica (reversibilidade fática). No entanto, sem
fazer menção expressa a essa doutrina, o discurso jurídico do Tribunal Constitucional é
no sentido de entender que, em face da situação de instabilidade econômica que o país
atravessa, com o intuito de conter os gastos públicos, como medida excepcional e de
caráter temporário, reconhece-se a constitucionalidade da lei orçamentária para o ano de
2011, asseverando que o corte salarial dos funcionários públicos, previsto no OE/2011,
não visa qualquer tipo de retrocesso social, mas sim meio de ação para o alcance da
estabilidade e crescimento econômico, financeiro e social.
Nas palavras do relator do acórdão, o Conselheiro Joaquim de Sousa
Ribeiro, pode-se dizer que:
172 Miranda e Alexandrino, As grandes decisões dos tribunais constitucionais europeus, p. 24. 173 Idem, ibidem, p. 24. 174 Tribunal Constitucional de Portugal. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.
pt/tc/acordaos/20110396.html>. Acesso em: 27 dez. 2011.
97
[...] as medidas de diminuição da despesa pública inscritas no Orçamento de 2011 mais não representam do que uma parcela, uma fase, de um programa cuja realização integral se estende por um horizonte temporal mais alargado. Não tendo o legislador optado, porém, por estabelecer expressamente para as reduções remuneratórias uma vigência correspondente à do PEC (2010-2013), esse dado não invalida a conclusão de que elas vigorarão segundo a sua natureza de medidas de carácter orçamental, ou seja, anualmente, caducando no termo do ano em curso. Apenas leva a dar como praticamente certa, porque necessária para o cumprimento das vinculações assumidas, a repetição de medidas de idêntico sentido, para vigorar nos anos correspondentes aos da execução do programa que as justifica e em que se integram, ou seja, até 2013.
De qualquer forma, a ser tida em conta, esta prognose apenas pode fundar a conclusão de que estas medidas terão uma duração plurianual, sem pôr em causa o seu carácter transitório, de acordo com a sua razão de ser e natureza, de resposta normativa a uma conjuntura excepcional, que se pretende corrigir, com urgência e em prazo o mais breve possível, para padrões de normalidade (destaques no original).
A justificação apresentada para a medida no Relatório que acompanha o Orçamento de Estado é, aliás, clara em salientar que ela se insere num “contexto de excepcionalidade” não visando qualquer tipo de retrocesso social, mas sim o cumprimento das metas resultantes do Pacto de Estabilidade e Crescimento (destacou-se).
Aí se pode ler:
“Uma medida como a da redução remuneratória só é adoptada quando estão em causa condições excepcionais e extremamente adversas para a manutenção e sustentabilidade do Estado Social. Não se pretende instituir qualquer tipo de padrão ou retrocesso social, mas sim assegurar a assumpção das responsabilidades e dos compromissos do Estado português, quer internamente, continuando a prestar um serviço público de qualidade, quer internacionalmente, desde logo na esfera da União Europeia, no quadro do Pacto de Estabilidade e Crescimento” (destacou-se).
Estando estas medidas instrumentalmente vinculadas à consecução de fins de redução de despesa pública e de correcção de um excessivo desequilíbrio orçamental, de acordo com um programa temporalmente delimitado, é de atribuir-lhes idêntica natureza temporária, nada autorizando, no presente, a considerar que elas se destinam a vigorar para sempre. Independentemente dos juízos e dos cálculos previsionais, do ponto de vista económico-financeiro, quanto à evolução das contas públicas e à possibilidade de contenção do défice orçamental nos limites e na data fixados – matéria de que é inarredável um forte grau de subjectividade – o certo é que não se visiona, no momento actual, qualquer base normativa que objectivamente permita dar por assente que as reduções remuneratórias perdurarão indefinidamente.
98
Nessa toada, nota-se que, como consequência da crise do Estado
neoliberal, a fim de ajustar os gastos públicos, justifica-se a reversibilidade fática
anotada por Canotilho. Nesse viés, o Tribunal Constitucional de Portugal reconheceu,
por maioria,175 a constitucionalidade das disposições legais orçamentárias afastando a
ofensa quanto ao nível de garantias já materializadas em relação à renumeração dos
funcionários públicos portugueses. Ao se levar em consideração as lições do dantes
citado mestre português, a bancarrota do Estado é uma realidade contra a qual a vedação
ao retrocesso parece não conseguir ser suficientemente forte para prevalecer,
especialmente diante da realidade orçamentária. A questão, contudo, será mais bem
discutida em momento oportuno (cf. Capítulo 3).
Para concluir o estudo do princípio da proibição de retrocesso social em
Portugal, traz-se à tona o pensamento de Jorge Pereira da Silva, que faz um estudo sobre
175 No entanto, os Conselheiros João Cura Mariano, Carlos Pamplona de Oliveira e J. Cunha Barbosa,
ao apreciarem a constitucionalidade da norma de cunho orçamentário quanto à redução, de imediato, do montante remuneratório dos funcionários, apresentaram declaração de voto divergente do entendimento da maioria, reconhecendo a inconstitucionalidade das normas contidas na OE/2011, na medida em que tais normas afrontam os princípios da segurança jurídica, proteção à confiança, igualdade e proporcionalidade. Por conseguinte, os argumentos mais relevantes colacionados dos votos dos julgadores dissidentes são os seguintes: a) em um Estado Democrático de Direito há a necessidade de se ter um patamar mínimo de certeza e de segurança no que condiz ao direito das pessoas e às expectativas que a elas são juridicamente criadas. Portanto, cabível a proteção constitucional no que diz respeito à expectativa que os administrados legitimamente apresentam quanto à conservação de situações remuneratórias já alcançadas como consequência da ordem normativa em vigor, o que faz com que as normas que, de modo inadmissível e arbitrário, lesem aquele mínimo de certeza e segurança – que a coletividade e o direito devem observar como dimensões essenciais do Estado de direito democrático – sejam entendidas como não aceitas pela Constituição; b) a alegação usada para justificar a aprovação das normas que definem cortes e reduções nos salários dos funcionários mostra que o interesse público que referidas normas almejam resguardar relaciona-se à coletividade como um todo, à generalidade dos indivíduos, e não somente aos funcionários públicos, categoria que, todavia, é unicamente afetada pela dita redução salarial. Não existe, consequentemente, uma particular justificativa para afetar, de forma exclusiva, esses trabalhadores; c) e, ademais, a efetiva redução nas remunerações dos destinatários das normas, sem que se estabeleça qualquer tipo de contrapartida, põe em risco a confiança e a proporcionalidade, uma vez que estas servem como parâmetro para verificação da adequada aplicação do princípio da igualdade, ainda mais que, ao se tratar de medida adotada de maneira unilateral e com reflexos tão só na esfera pessoal dos funcionários, não permite que estes possam compensar tal redução por outra forma e de modo a conseguirem a quota-parte de que foram privados, haja vista a necessidade de satisfazer as possíveis e naturais obrigações que assumiram em virtude da quantia remuneratória precedente, circunstância esta que será ainda mais relevante quando se tratar da exclusividade de funções que se exige com base no estatuto profissional de alguns dos funcionários, que impede o exercício de qualquer outro tipo de atividade (complementar) remunerada, por intermédio de esforço pessoal e com apelo à diminuição das suas horas de descanso e de lazer (Tribunal Constitucional de Portugal. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110396.html>. Acesso em: 27 dez. 2011).
99
o princípio do não retrocesso social buscando delimitar os seus contornos de modo mais
preciso.176 Após contextualizar o princípio de forma a demonstrar como é compreendido
tanto na doutrina quanto na jurisprudência portuguesa, trata de distinguir o primado do
não retrocesso social do princípio da proteção à confiança, da garantia do direito
adquirido e da proibição de revogação, sem substituição, dos regulamentos de execução.
Reconhece que o princípio da proibição de retrocesso social não está
positivado na Constituição portuguesa, mas assevera que se pode falar na positivação de
uma cláusula mais ampla, qual seja a da proibição de recriar omissões legislativas
inconstitucionais.
Assim, nas suas palavras:
Em primeiro lugar, ao contrário do que faz supor a formulação habitual, o princípio da proibição do retrocesso não respeita apenas ao âmbito dos direitos sociais, pelo que o qualificativo “social” não lhe assenta bem, desde logo porque é redutor. O mesmo problema que a doutrina identifica a propósito dos direitos sociais pode colocar-se, de igual modo, a respeito dos direitos, liberdades e garantias contidos em normas constitucionais não exequíveis, em matérias próprias da Constituição econômica ou em relação a normas legais que regulem órgãos, entidades ou institutos constitucionalmente previstos.
Em segundo lugar, o princípio em questão também não proíbe propriamente o retrocesso em matéria de leis ordinárias concretizadoras sobre direitos sociais – ou sobre outras matérias –, pelo que também o termo “retrocesso” não se afigura certeiro. De facto, a proibição em causa consiste tão somente em impedir a “eliminação” daquilo que é caracterizado como o “conteúdo essencial” dos direitos sociais – o mesmo valendo para outros direitos ou institutos com esteio constitucional –, tal como foram regulados pelo direito ordinário. Assim, por exemplo, pode haver lugar a retrocesso em matéria de direitos sociais, contanto que fique incólume o cerne das posições jurídicas e das estruturas concretizadoras do princípio do Estado social.
Em terceiro e último lugar, o dito princípio da proibição do retrocesso social não se funda nem é uma manifestação do princípio da proteção
176 Jorge Pereira da Silva, Dever de legislar e protecção constitucional contra omissões legislativas:
contributo para uma teoria da inconstitucionalidade por omissão, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2003, p. 245-287. Expondo também a lição de Pereira da Silva, está Felipe Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 158-161.
100
da confiança. Na verdade, a supressão dos regimes legais em vigor fica vedada mesmo naquelas situações em que o novo regime legal – entenda-se lei revogatória ou lei que procede à reformatio in pejus – apenas se aplica para o futuro, sem que se vislumbre qualquer sinal de retroactividade ou restrospectividade, mas também quando das normas legais revogadas ou alteradas não se desprendam quaisquer posições jurídicas subjectivas e, portanto, sejam insusceptíveis de gerar uma confiança legítima na respectiva manutenção.177
Com efeito, em síntese, defende que o primado da vedação
constitucional de extinguir a materialização de disposição constitucional efetivada por
lei impede que o legislador atue de modo a eliminar os direitos dantes concretizados
legalmente, independentemente de a norma abrigar ou não um direito de cunho social.
Ademais, é possível verificar que Pereira da Silva refuta a terminologia retrocesso, na
medida em que entende que a proibição contida na Constituição circunscreve-se à
supressão do conteúdo essencial dos direitos ou institutos agasalhados pela
Constituição, e, nesse ponto, afirma não ser concebível retornar a uma hipótese de
omissão legislativa, situação esta que ensejaria o recurso aos meios de controle da
inconstitucionalidade por omissão. Veja-se que, para o autor, somente os direitos sociais
acolhidos constitucionalmente possibilitariam a aplicação da vedação de retorno à
omissão do legislador, uma vez que a eliminação de direitos sociais criados tão apenas
por lei, sem status constitucional, ficaria à margem da proteção conferida para os
direitos que encontram abrigo na Constituição, pois, nesse caso, não estaria configurada
a hipótese de omissão legislativa inconstitucional.178 E, finalmente, diferencia o
primado da vedação de retrocesso social do princípio da proteção à confiança, pois está
proibida a edição de nova lei revogadora que procederia à reforma para pior (não só
com efeitos retroativos, mas também quando voltados somente para o futuro), como, de
igual modo, haveria vedação de retrocesso quando das previsões legais revogadas ou
alteradas não gerem quaisquer posições jurídicas subjetivas e, por conseguinte, sejam
insuscetíveis de propiciar uma confiança legítima na concernente manutenção.
177 Pereira da Silva, Dever de legislar e protecção constitucional contra omissões legislativas:
contributo para uma teoria da inconstitucionalidade por omissão, p. 282-283. 178 Idem, ibidem, p. 284.
101
Após a análise do pensamento doutrinário e jurisprudencial estrangeiro,
caberá agora expor o pensamento da doutrina brasileira referente ao não retrocesso
social.
2.2 Brasil
2.2.1 Pensamento doutrinário a respeito do tema
Quando se aborda o princípio da proibição de retrocesso social no
Brasil, preliminarmente, deve-se fazer menção a José Afonso da Silva, pois, sem
dúvida, é o jurista responsável pelas manifestações iniciais acerca do mencionado
princípio. Sua obra Aplicabilidade das normas constitucionais tornou-se fonte de
consulta imprescindível e referência clássica sobre o assunto da eficácia das normas
constitucionais, sendo precursora no enfrentamento da questão no Direito
Constitucional brasileiro.179 Ao dedicar-se ao estudo da aplicabilidade das normas na
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e tornar consagrada a
classificação das normas quanto à sua eficácia,180 o constitucionalista brasileiro encetou
a abordagem da temática do retrocesso social quando tratou de defender que as normas
definidoras de direitos sociais seriam ainda concebidas como normas programáticas,
subespécie das normas constitucionais de eficácia limitada, que versam “sobre matéria
179 Nesse sentido, Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p.
166. 180 A classificação proposta pelo autor consiste em dividir a eficácia das normas constitucionais em
normas de eficácia plena, contida e limitada. Segundo Silva, “Na primeira categoria incluem-se todas as normas que, desde a entrada em vigor da constituição, produzem todos os seus efeitos essenciais (ou têm a possibilidade de produzi-los), todos os objetivos visados pelo legislador constituinte, porque este criou, desde logo, uma normatividade para isso suficiente, incidindo direta e imediatamente sobre a matéria que lhes constitui objeto. O segundo grupo também se constitui de normas que incidem imediatamente e produzem (ou podem produzir) todos os efeitos queridos, mas preveem meios ou conceitos que permitem manter sua eficácia contida em certos limites, dadas as circunstâncias. Ao contrário, as normas do terceiro grupo são todas as que não produzem, com a simples entrada em vigor, todos os efeitos essenciais, porque o legislador constituinte, por qualquer motivo, não estabeleceu, sobre a matéria, uma normatividade para isso bastante, deixando essa tarefa ao legislador ordinário ou a outro órgão do Estado (José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 3. ed., 3.ª tiragem, São Paulo: Malheiros, 2009, p. 82-83).
102
eminentemente ético-social, constituindo verdadeiramente programas de ação social
(econômica, religiosa, cultural, etc.)”.181
Nota-se que muitas normas de cunho programático evidenciam-se,
consoante Silva, como apenas princípios, ou seja, esquemas genéricos que realçam
programas a serem desenvolvidos posteriormente por meio da atividade legislativa
infraconstitucional.182
A despeito da dificuldade de serem conceituadas, Silva as define do
seguinte modo:
Podemos conceber como programáticas aquelas normas constitucionais através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado183 (destaque do autor).
Mesmo classificando referidas normas como de eficácia limitada,
caracterizadas como “princípios gerais informadores do regime político e de sua ordem
jurídica”, reconhece que é esta sua particularidade que lhes confere “importância
fundamental, como orientação axiológica para a compreensão do sistema jurídico
nacional” possibilitando-se, com isso, reconhecer que elas são dotadas de “uma eficácia
interpretativa que ultrapassa, nesse ponto, a outras do sistema constitucional ou legal,
porquanto apontam os fins sociais e as exigências do bem comum, que constituem
vetores da aplicação da lei”.184
Infere-se, portanto, que as normas constitucionais de princípio
programático, na lição do constitucionalista buscam “configurar os fins sociais a que se
dirigem o Estado e a sociedade, consoante exigências do bem comum”; de tal maneira,
181 José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 3. ed., 3.ª tiragem, p. 84. 182 Idem, ibidem, p. 137. 183 Idem, p. 138. 184 Idem, p. 157.
103
“toda lei ou norma (inclusive as constitucionais) integrante da ordem jurídica nacional
há que conformar-se à pauta de valor indicada, ao menos tendencialmente, pelas normas
programáticas da constituição”.185
Nesse diapasão, extrai outro efeito notável das normas constitucionais
programáticas, com base na lição de Balladore Pallieri, qual seja o de que ditas normas
impõem à legislação infraconstitucional uma via a ser seguida; não têm o condão de
obrigar, juridicamente, o legislador a seguir aquele caminho, mas o impelem a não
abraçar outro diverso. Isso quer dizer que seria considerada inconstitucional a lei que
dispusesse de forma contrária ao que a Constituição estabelece. Ademais, uma vez que
se dê execução à norma constitucional, o legislador infraconstitucional não pode voltar
atrás.186
Não são diferentes os ensinamentos de Luís Roberto Barroso, que
afirma ser a vedação ao retrocesso um princípio que, embora não expresso, decorre do
sistema jurídico-constitucional. Com base nesse primado, “entende-se que, se uma lei,
ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se
incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser absolutamente
suprimido”.187
Como adverte Flávia Piovesan, “O movimento de esfacelamento de
direitos sociais simboliza uma flagrante violação à ordem constitucional, que inclui
dentre suas cláusulas pétreas os direitos e garantias individuais”. Portanto, “Na
qualidade de direitos constitucionais fundamentais, os direitos sociais são intangíveis e
irredutíveis, sendo providos da garantia da suprema rigidez, o que torna inconstitucional
qualquer ato que tenda a restringi-los ou aboli-los”. E pondera que, “à medida que os
direitos humanos são indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados, a violação a
direitos sociais implica, consequentemente, a violação a direitos civis e políticos”.188
185 Sem destaque no original. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 3. ed.,
3.ª tiragem, p. 158. 186 Idem, ibidem, p. 158. 187 Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e
possibilidades da Constituição brasileira, Rio de Janeiro: Renovar, 8. ed., 2006, p. 152. 188 Flávia Piovesan, Não à desconstitucionalização dos direitos sociais, Consultor Jurídico, São Paulo,
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Ressalta Carmen Lúcia Antunes Rocha que “Há de se atentar que
prevalece, hoje, no Direito Constitucional o princípio do não retrocesso”, referindo-se
dito princípio ao fato de que “as conquistas relativas aos direitos fundamentais não
podem ser destruídas, anuladas ou combalidas”, uma vez que se trata “de avanços da
humanidade, e não de dádivas estatais que pudessem ser retiradas segundo opiniões de
momento ou eventuais maiorias parlamentares”. Observa que “Não se há de cogitar em
retroceder no que é afirmador do patrimônio jurídico e moral do homem havido em
conquistas de toda a humanidade, e não apenas de um governante ou de uma lei”. Nesse
sentido, defende que “Os direitos conquistados, especialmente aqueles que representam
um avanço da humanidade no sentido do aperfeiçoamento da sociedade e que se
revelam nos direitos sociais, não podem ser desprezados ou desconhecidos”, e, portanto,
devem, antes, ser encarecidos e ampliados.189
Lenio Luiz Streck, ao analisar o papel do Judiciário no tocante à
implementação das políticas públicas previstas na Constituição, assevera que, “naquilo
que se entende por Estado Democrático de Direito, o Judiciário, através do controle da
constitucionalidade das leis, pode servir como via de resistência às investidas dos
Poderes Executivo e Legislativo”, sempre que estas representarem “retrocesso social ou
a ineficácia dos direitos individuais ou sociais”. Nessa passada, afirma que “a
Constituição não tem somente a tarefa de apontar para o futuro. Tem, igualmente, a
relevante função de proteger os direitos já conquistados”. Por conseguinte, com base na
“utilização da principiologia constitucional (explícita ou implícita), é possível combater
alterações feitas por maiorias políticas eventuais, que legislando na contramão da
programaticidade constitucional, retiram (ou tentam retirar) conquistas da sociedade”.190
O autor menciona, inclusive, o Aresto 39/1984 do Tribunal Constitucional da República
Portuguesa, o qual considerou a cláusula da “proibição do retrocesso social” como
“inerente/imanente ao Estado Democrático e Social de Direito”, e impôs ao Poder
Público, sempre que o Estado impende (total ou parcialmente) as tarefas que lhe são
2000. Disponível em: <www.conjur.com.br/2000-jun-02/conquistas_trabalhistas_preservadas>. Acesso em: 10 jan. 2012.
189 Cármen Lúcia Antunes Rocha, O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Disponível em: <http://www.paf.adv.br/novosite/artigos/index.php?cod_artigo=7>. Acesso em: 10 jan. 2012.
190 Lenio Luiz Streck, Hermenêutica jurídica e(m) crise, Porto Alegre: Livraria do advogado, 1999, p. 38-39.
105
impostas pela Constituição para realizar um direito social, o respeito constitucional que
deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) em uma obrigação positiva para passar,
igualmente, a ser uma obrigação negativa; ou seja, o Estado, que estava compelido a
agir e concretizar o direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a
realização dada ao direito social.191
Ainda, em outra passagem, ao tratar da vedação ao retrocesso social
como norma hermenêutica, Streck destaca: “Neste ponto adquire fundamental
importância a cláusula implícita de proibição de retrocesso social, que deve servir de
piso hermenêutico para novas conquistas”. Sublinha que, “Mais e além de todos os
limites materiais, implícitos ou explícitos, esse princípio deve regular qualquer processo
de reforma da constituição”, na medida em que “Nenhuma emenda constitucional, por
mais que formalmente lícita, pode ocasionar retrocesso social”. Para o autor, “Essa
cláusula paira sobre o Estado Democrático de Direito como garantidora de conquistas”.
Isto significa que “a Constituição, além de apontar para o futuro, assegura as conquistas
já estabelecidas. Por ser um princípio, tem aplicação na totalidade do processo
aplicativo do Direito”.192
Por sua vez, Ana Paula de Barcellos concebe a vedação ao retrocesso
como modalidade de eficácia dos próprios princípios constitucionais, e não princípio
autônomo.193 No entanto, para a autora existe a possibilidade de se declarar inválida a
191 Streck, Hermenêutica jurídica e(m) crise, p. 39. 192 Lenio Luiz Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica. Uma nova crítica do direito, 2. ed., Rio
de Janeiro: Forense, 2004, p. 706. 193 Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade
da pessoa humana, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 59-76. Segundo a jurista, eficácia é um atributo ligado às normas e funda-se no resultado jurídico que deve advir de sua observância, comportando sua exigência na via judicial se necessário. Sinteticamente, a autora classifica a eficácia das normas jurídicas sob as seguintes modalidades, quais sejam: a) simétrica ou positiva, dá-se quando a norma origina direito subjetivo; b) nulidade, diante da declaração de invalidade dos atos realizada em juízo; c) ineficácia, quando se permite que sejam ignorados os atos praticados em desconformidade com a norma; d) anulabilidade, quando o ato estiver eivado de vício declarado judicialmente; e) negativa, que possibilita a declaração de invalidade de todos os atos contrários à finalidade que busca alcançar a norma em questão; f) penalidade, que pode concorrer para influenciar o indivíduo no cumprimento espontâneo da norma, diante da possibilidade da sanção; g) interpretativa; h) outras. No que diz respeito aos princípios constitucionais, entende que existem somente as seguintes eficácias: a) positiva ou simétrica; b) interpretativa; c) negativa; d) vedação de retrocesso. No entanto, discorda-se da autora, na medida em que, consoante se verá no devido tópico, a proibição do retrocesso é princípio autônomo, uma vez que possui conteúdo próprio, tendo o condão de dificultar o mencionado retrocesso, e impedir que se dê marcha a ré em termos de conquistas sociais, buscando garantir o seu patamar já alcançado, almejando, do mesmo modo, ampliar o que já foi concretizado.
106
revogação das normas que disciplinam o desfrute dos direitos fundamentais sem que se
institua uma política que o equivalha, pois, nesse caso, o legislador acabaria por
esvaziar o preceito constitucional, tal como se estabelecesse alguma disposição que o
contrariasse diretamente.194
Consoante a lição de José Vicente dos Santos Mendonça, que faz um
estudo bastante interessante do princípio da vedação ao retrocesso social, podem-se
vislumbrar três significações (ou sentidos) para a vedação do retrocesso social. Na
primeira significação, segundo o autor, advém retrocesso a toda norma que contradiga
o/a juízo/opinião pessoal daquele que a emite; porém, esse sentido não deve ser
considerado perante a ausência de base jurídica. Na segunda acepção, tem-se a vedação
genérica do retrocesso, que acena para a impossibilidade de se revogar pura e
simplesmente a norma infraconstitucional que disciplina ou completa determinada
norma constitucional, sem que ocorra a substituição por outra norma. E, finalmente,
uma terceira significação, denominada vedação específica dos direitos fundamentais,
impede que direitos sociais fundamentais, disciplinados infraconstitucionalmente por
lei, possam ser diminuídos ou enfraquecidos por legislação ulterior, alcançando o
âmago da referida garantia.195 Assim, entre a proibição genérica do retrocesso e a
vedação específica deste, verifica-se que esta última hipótese volta-se para os direitos
sociais fundamentais que, uma vez concretizados, não devem ser suprimidos ou
reduzidos perante a revogação de legislação que os regulamente.
Suzana de Toledo Barros crê que o princípio da proibição de retrocesso
social obstaria o legislador de suprimir o nível de concretização legislativa já
conquistado em relação aos direitos fundamentais. No entanto, vislumbra que a
aceitação do referido princípio entra em conflito com o princípio da autonomia do
legislador.196
194 Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, O começo da história. A nova interpretação
constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Disponível em: <http://www.camara. rj.gov.br/setores/proc/revistaproc/revproc2003/arti_histdirbras.pdf>. Acesso em: 10 jan. 12.
195 José Vicente dos Santos Mendonça, A vedação do retrocesso: o que é e como perder o medo, In: Gustavo Binenbojm (Coord.), Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. 12, p. 218-219.
196 Suzana Toledo de Barros, O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 160-161.
107
Nesse mesmo sentido, encontra-se na doutrina de Paulo Gustavo Gonet
Branco o esclarecimento de que, para quem admite o princípio da proibição de
retrocesso social, este acarretaria a impossibilidade de o legislador revogar o grau de
materialização alcançado pelos direitos fundamentais, regulamentado por lei, pois “A
realização do direito pelo legislador constituiria, ela própria, uma barreira para que a
proteção atingida venha a ser desfeita sem compensações”.197
Branco cita Vieira de Andrade e Afonso Vaz,198 que recusam a
aceitação genérica desse princípio, pois sustentam que o legislador detém liberdade
conformativa dos direitos fundamentais, e que, ao aceitar-se esse primado do não
retrocesso, haveria um choque potencial desse princípio com a autonomia para
legislar.199 Contudo, segundo adverte o jurista, esse conflito, consoante aos que acolhem
a tese da proibição do retrocesso, poderia ser evitado, inclusive impedindo-se o
aniquilamento da autonomia legislativa, se puder haver substituição da legislação
revogada por outra que seja correspondente (equivalente) ou compensatória, respeitado
o mandamento da proporcionalidade.200
Ressalta que, da mesma maneira, o poder de reformar a Constituição
está vinculado aos direitos fundamentais, pelo menos “na medida em que o art. 60, § 4.º,
da Carta, veda emendas tendentes a abolir direitos e garantias individuais”.201
Por sua vez, Rodrigo Goldschmidt entende que a adoção do princípio da
proibição de retrocesso social, em realidade, não se choca com o princípio da autonomia
do legislador, pois, na verdade, acaba, sim, por estabelecer limites à sua atividade, com
o intuito “de evitar que um determinado direito fundamental, já contemplado e
197 Paulo Gustavo Gonet Branco, Aspectos da teoria geral dos direitos fundamentais, In: Gilmar Ferreira
Mendes; Inocêncio Mártires Coelho; Paulo Gustavo Gonet Branco, Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, 1. ed., 2.ª tiragem, Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p. 127.
198 Miguel Afonso Vaz, no entanto, não chega a ponto de negar a existência de alguma manifestação de uma proibição de retrocesso, vez que menciona a proteção da confiança e a necessidade de se justificar a edição de medidas retrocessivas no âmbito da legislação infraconstitucional (Miguel Afonso Vaz, Lei e reserva de lei. A causa da lei na Constituição Portuguesa de 1976, Porto, 1992, p. 383 e ss.). É representante desse pensamento no Brasil Suzana de Toledo Barros, consoante se expôs supra.
199 Branco, Aspectos da teoria geral dos direitos fundamentais, p. 127-128. 200 Idem, ibidem, p. 128. 201 Idem, p. 128.
108
incorporado no sistema jurídico, seja do mesmo extirpado ou inadequadamente
restringido”. Assevera que o princípio da proibição do retrocesso social proporciona um
“critério objetivo com o qual é possível controlar a adequação e a correção da atividade
restritiva dos direitos fundamentais”, consistente em verificar “se o legislador ou o
intérprete, na tarefa restritiva dos direitos fundamentais, respeitou aqueles direitos,
igualmente fundamentais, já definidos e incorporados ao patrimônio jurídico do
homem”. Desse modo, “Se foram respeitados, a atividade restritiva apresenta-se
juridicamente perfeita. Caso contrário, a restrição efetivada configura-se ilegal ou
abusiva, portanto imperfeita”.202
Goldschmidt acrescenta que existem os defensores da ideia de que o
princípio da proibição do retrocesso social encontra-se acolhido pelo ordenamento
jurídico constitucional brasileiro de forma clara, uma vez que dito primado estaria
contemplado no caput do art. 7.º da Constituição Federal de 1988, o qual dispõe que
“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem a melhoria
da sua condição social: [...]”. Por conseguinte, diante dessa previsão constitucional,
destaca que aludido dispositivo “encabeça uma série de direitos fundamentais
trabalhistas, preconizando que tal catálogo está aberto a outros direitos que visem à
melhoria da condição social do trabalhador, logo, permitindo apenas o avanço na
atualização de tais direitos, jamais o retrocesso”. Adere, com isso, à doutrina que
concebe o princípio do não retrocesso como mandamento presente no preceptivo
constitucional supracitado.203
202 Rodrigo Goldschmidt, O princípio da proibição do retrocesso social e sua função protetora dos
direitos fundamentais, Revista Anais do I Seminário Nacional de Dimensões Materiais e Eficaciais dos Direitos Fundamentais, Chapecó: Unoesc, v. 1, n. 1, p. 283, 2011. Disponível em: <http://editora.unoesc.edu.br/index.php/seminarionacionaldedimensoes/article/view/906>. Acesso em: 15 jan. 2012.
203 Idem, ibidem, p. 284. Em relação a esse mencionado dispositivo constitucional, José Afonso da Silva reconhece implicitamente o princípio do não retrocesso social quando da análise de referido preceptivo. Assim, o autor leciona no seguinte sentido: “[...] a Constituição Federal, no art. 7.º, assegura aos trabalhadores os direitos ali enumerados, ‘além de outros que visem à melhoria de sua condição social’. Esta última parte do dispositivo, como já salientamos, é de natureza programática, e, agora, podemos acrescentar que é daquelas que se limitam a indicar certo fim a atingir: melhoria da condição social do trabalhador. A respeito desses outros direitos que podem ser outorgados aos trabalhadores o legislador ordinário tem ampla discricionariedade, mas, assim mesmo, está condicionado ao fim ali proposto – melhoria da condição social do trabalhador. Qualquer providência do Poder Público, específica ou geral, que contravenha a esse fim é inválida e pode ser declarada sua inconstitucionalidade pelo juiz, sendo de notar que este também goza de discricionariedade no determinar o conteúdo finalístico daquela regra programática, já que a
109
Mais adiante, lembra que “os direitos fundamentais estão ao abrigo das
cláusulas pétreas, e, por isso, não podem ser inadequadamente restringidos, e, menos
ainda, suprimidos”. E, desse modo, “o princípio da proibição do retrocesso social
alcança maior importância, posto que amparado por norma constitucional que veda
qualquer modificação legislativa ou interpretativa que tenda a abolir um direito
fundamental reconhecido”.204
Ana Cristina Costa Meireles, de igual maneira, reconhece a presença
explícita do princípio da vedação ao retrocesso social na Constituição brasileira,
extraindo-o do caput do art. 7.º da Lei Maior, parte final, embora defenda que o
primado do não retrocesso foi adotado pelo Estado de bem-estar social, o que por si só
já é suficiente para reconhecê-lo como mandamento constitucional do direito pátrio.205
Fahd Medeiros Awad, ao escrever sobre o tema da proibição do
retrocesso, diz que esse princípio “visa à almejada evolução da sociedade, objetivo
sempre estampado nas cartas constitucionais”. Referido primado representaria “um
específico limite às limitações ou restrições legislativas a direito fundamental,
impedindo que um direito fundamental já regulamentado sofra alterações que reduzam o
significado que lhe fora atribuído pela norma anterior ordinária ou constitucional”. E,
portanto, “Nesse sentido, reconhece-se o poder de conformação do legislador no mister
de quantificar e formatar os direitos fundamentais, autorizando-lhes, inclusive, uma
diminuição das posições jurídicas alcançadas”, contanto “que a norma não aniquile o
direito atingindo o seu mínimo existencial”. Assim, em uma acepção mais restrita,
sustenta que, se a minoração não afetar o núcleo, isto é, não “atingir esse mínimo, não
há retrocesso, mas mera diminuição em quantidade. Afetado o essencial, a norma será
maculada pela inconstitucionalidade, pois derrogou o cerne que caracteriza os direitos
fundamentais”.206
Constituição não deu o sentido do que se deva entender por melhoria da condição social do trabalhador. [...]” (destacou-se) (Aplicabilidade das normas constitucionais, 3. ed., 3.ª tiragem, p. 159).
204 Goldschmidt, O princípio da proibição do retrocesso social e sua função protetora dos direitos fundamentais, p. 284.
205 Ana Cristina Costa Meireles, A eficácia dos direitos sociais, Salvador: JusPodivm, 2008, p.48. 206 Fahd Medeiros Awad, Proibição de retrocesso social diante da garantia do núcleo essencial dos
110
Narbal Antônio Mendonça Fileti concebe o princípio da proibição do
retrocesso social no mesmo sentido do que entende a maioria da doutrina que aborda o
tema, ou seja, para o autor, o mencionado princípio centra-se na “possibilidade de
reconhecimento do grau de vinculação do legislador aos ditames constitucionais
relativos aos direitos sociais”, denotando que, a partir do momento em que se alcançou
certo patamar de materialização de uma norma constitucional que contempla um direito
social “– aquela que descreve uma conduta, omissiva ou comissiva, a ser seguida pelo
Estado e por particulares –, fica o legislador proibido de suprimir ou reduzir essa
concretização sem a criação de mecanismo equivalente ou substituto”.207
Compreende o princípio da proibição do retrocesso social como um
mandamento previsto de modo implícito na Constituição brasileira de 1988, que deriva
“do sistema jurídico constitucional, com caráter retrospectivo”, almejando limitar a
“liberdade de conformação do legislador infraconstitucional, impedindo que este possa
eliminar ou reduzir, total ou parcialmente, de forma arbitrária e sem acompanhamento
de política substitutiva ou equivalente”, o nível de efetivação atingido “por um
determinado direito fundamental social”.208
Igualmente, Eliane Romeiro Costa e Osvaldo Ferreira de Carvalho
concluem que “O princípio da proibição de retrocesso social veda ao legislador subtrair
da norma constitucional definidora de direitos sociais o grau de concretização já
alcançado, prejudicando sua exequibilidade”, o que permite dizer que o princípio requer
sua observância no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, “onde o Estado deve
se abster de atentar contra as normas consagradoras de direitos sociais ao adotar
medidas de cunho retrocessivo que tenham por escopo a sua destruição ou redução”.209
direitos fundamentais, Revista Eletrônica Justiça do Direito, Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, v. 24, n. 1, p. 99, 2010. Disponível em: <http://www.upf.br/seer/index.php/rjd/article/ view/2146>. Acesso em: 15 jan. 2012.
207 Narbal Antônio Mendonça Fileti, A fundamentalidade dos direitos sociais e o princípio da proibição de retrocesso social, Florianópolis: Conceito Editorial, 2009, p. 178.
208 Idem, ibidem, p. 178. 209 Eliane Romeiro Costa e Osvaldo Ferreira de Carvalho, O princípio da proibição de retrocesso social
no atual marco jurídico-constitucional brasileiro, Revista de Direito Constitucional e Internacional, RDCI73, São Paulo: RT, Cadernos de Política Constitucional e Ciência Política, ano 18, n. 73, p. 156, out.-dez. 2010.
111
E ainda Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, na
mesma direção, afirmam em claras palavras que as leis que regulamentam os direitos
sociais nada mais são do que “a explicitação daquilo que já está contemplado na
Constituição”, e, portanto, a omissão legislativa na edição dessas leis seria
inconstitucional. E entoam que, em verdade, se trata de algo mais grave do que omissão
pura e simples, pois se verifica, na realidade, a “supressão de direitos garantidos pela
Constituição, que vinham sendo exercidos” por conta da legislação. Daí que “A
revogação – mesmo tácita – dessa legislação, sem a sua substituição por novos
dispositivos legais que assegurem aqueles mesmos direitos já assegurados, constitui
retrocesso não admitido pelo sistema constitucional”.210
Com efeito, de todos os doutrinadores dantes expostos, muito
provavelmente tenha sido Ingo Wolfgang Sarlet o jurista que mais se dedicou ao exame
da temática da proibição de retrocesso social, demonstrando profundidade na análise
desse assunto ainda tão controverso. Igualmente merece ser considerado o estudo
monográfico dedicado ao tema, realizado por Felipe Derbli, em face do seu aspecto
abrangente e crítico em relação à matéria. Dessa maneira, a visão de ambos os autores
será analisada de forma mais detida. Primeiro Sarlet, depois Derbli.
Ao considerar a doutrina pátria referente ao princípio da proibição de
retrocesso social, Sarlet manifesta-se advertindo que, “Em linhas gerais, o que se
percebe é que a noção de proibição de retrocesso tem sido por muitos reconduzida à
noção que José Afonso da Silva apresenta como sendo de um direito subjetivo
negativo”, o que quer significar “que é possível impugnar judicialmente toda e qualquer
medida que se encontre em conflito com o teor da Constituição (inclusive com os
objetivos estabelecidos nas normas de cunho programático)”, e, de igual modo,
“rechaçar medidas legislativas que venham, pura e simplesmente, subtrair
210 Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, Um projeto de Código Civil na contramão da
Constituição, Revista Trimestral de Direito Civil, Gustavo Tepedino (Org.), Rio de Janeiro: Padma, ano 1, v. 4, out.-dez. 2000, p. 249. Na oportunidade, os autores apresentaram parecer em resposta à consulta feita pelo Deputado Federal Gustavo Fruet, sobre a constitucionalidade do Projeto de Código Civil – atual CC/2002 –, visando a uma conclusão acerca da oportunidade ou não de sua aprovação.
112
supervenientemente a uma norma constitucional o grau de concretização anterior que
lhe foi outorgado pelo legislador”.211
Após tecer essa observação, Sarlet assegura que toda a questão
pertinente à proibição do retrocesso tem íntima relação com a noção de segurança
jurídica,212 abraçando o entendimento doutrinário alemão, uma vez que, pelo menos em
princípio e em certo sentido, um autêntico Estado de Direito é um Estado de Segurança
Jurídica. Dessa maneira, segurança jurídica passaria “a ter o status de subprincípio
concretizador do princípio fundamental e estruturante do Estado de Direito”.213 Essa
verificação decorreria não somente da expressa disposição do art. 5.º, caput, da
Constituição brasileira,214 mas igualmente da “dimensão jurídico-objetiva dos direitos
fundamentais, na condição de expressões de uma ordem de valores comunitária”.215
Para o jurista, a segurança jurídica não se limita à esfera individual,216 abrangendo
211 Ingo Wolfgang Sarlet, Proibição de retrocesso, dignidade da pessoa humana e direitos sociais:
manifestação de um constitucionalismo dirigente possível, p. 21. Neste trecho, Sarlet menciona expressamente os seguintes autores e obras: Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da constituição brasileira, 5. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001; José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 2. ed., p. 147 e 156 e ss.; Streck, Hermenêutica jurídica e(m) crise, p. 31 e ss.; Ana Paula de Barcellos, A eficácia dos princípios constitucionais..., p. 68 e ss.; José Vicente dos Santos Mendonça, Vedação do retrocesso: o que é e como perder o medo, Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 12 (Direitos fundamentais), p. 218 e ss., 2003.
212 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 433. Para o autor, o direito à segurança jurídica é uma das dimensões de um direito geral à segurança, sendo que este abrange também um direito à segurança pessoal e social, além de um direito à proteção, por meio de prestações normativas e materiais, contra atos do poder público e de particulares violadores dos diversos direitos pessoais.
213 Idem, ibidem, p. 433. 214 “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes...” (destacou-se).
215 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 434. Sarlet leciona que os direitos fundamentais não se limitam à função precípua de serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público, mas que constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos, ou seja, constituem-se como um conjunto de valores objetivos básicos e fins diretivos da ação positiva dos poderes públicos. Afirma que este reconhecimento da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais representa uma das mais relevantes formulações do direito constitucional contemporâneo (Idem, ibidem, p. 159-207).
216 Para o autor a segurança jurídica pode ser concebida sob diversas dimensões e manifestações. Nas diferentes dimensões “a segurança jurídica (aqui tomada num sentido propositalmente amplo) assumiu um lugar de destaque na atual ordem jurídico-constitucional brasileira, ao lado da segurança social (igualmente consagrada de modo expresso no âmbito da ordem social e ligada diretamente aos direitos fundamentais à saúde, assistência e previdência social)”. Ademais disso, “o direito à segurança não se restringe, por sua vez, a estas dimensões e abrange”, segundo defende “para além
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também a segurança social (e até um direito geral à segurança), que serve como
couraça protetora para a segunda dimensão dos direitos fundamentais.
Sarlet relaciona o princípio da segurança jurídica com o próprio
princípio da dignidade da pessoa humana. Citando a lição de Celso Antônio Bandeira de
Mello, para quem a segurança jurídica coincide com uma das mais profundas aspirações
do ser humano, segundo Sarlet, ela acaba por viabilizar projetos de vida ao gerar certa
estabilidade das relações jurídicas e da própria ordem jurídica em geral, vinculando-se
também à própria noção de dignidade da pessoa humana. Observa, com efeito, que a
dignidade da pessoa humana não estará suficientemente respeitada e protegida, se não
houver um nível mínimo de estabilidade jurídica, quer nas posições jurídicas subjetivas,
quer mesmo nas instituições jurídicas, incluindo o próprio Direito. Ainda, deve-se levar
em conta “que especialmente o reconhecimento e a garantia de direitos fundamentais
tem sido consensualmente considerado uma exigência inarredável da dignidade da
pessoa humana”, bem como da noção mesma de Estado de Direito, na medida em que
“os direitos fundamentais (ao menos em princípio e com intensidade variável)
constituem explicitações da dignidade da pessoa, de tal sorte que em cada direito
fundamental se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade
da pessoa”. Logo, “a proteção dos direitos fundamentais, pelo menos no que concerne
ao seu núcleo essencial e/ou ao seu conteúdo em dignidade, evidentemente apenas será
possível onde estiver assegurado um mínimo em segurança jurídica”.217
Ademais, dentro do contexto da segurança jurídica, assevera que a
dignidade da pessoa humana “não exige apenas uma proteção em face de atos de cunho
retroativo”, mas, de igual modo, necessita de “uma proteção contra medidas
retrocessivas”, as quais “não podem ser tidas como propriamente retroativas, já que não
alcançam as figuras dos direitos adquiridos, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada”.
E lembra a possibilidade que tem o legislador, “seja por meio de uma emenda
de um direito à segurança jurídica e social, um direito geral à segurança, no sentido de um direito à proteção [por meio de prestações normativas e materiais] contra atos – do poder público e de outros particulares – violadores dos diversos direitos pessoais”. Dentre as manifestações da segurança jurídica destaca a ideia da proteção da confiança e a da proibição de retrocesso (Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 19 jan. 2012).
217 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 434.
114
constitucional [...], seja por uma reforma no plano legislativo, suprimir determinados
conteúdos da Constituição” ou mesmo “revogar normas legais destinadas à
regulamentação de dispositivos constitucionais, notadamente em matéria de direitos
sociais, ainda que com efeitos meramente prospectivos”. E, com isso, insere, no seu
estudo, a questão da proibição (ou vedação) de retrocesso.218
Portanto, ao ingressar no estudo da problemática da proibição de
retrocesso e suas diversas manifestações, ponderando, de início, sobre a proibição do
retrocesso em sentido amplo, Sarlet contempla em seu conceito as noções de direito
adquirido, de ato jurídico perfeito e de coisa julgada, “assim como as demais limitações
constitucionais de atos retroativos ou mesmo as garantias contra restrições legislativas
dos direitos fundamentais”. Além disso, abarca nesse grupo a proteção contra a ação do
poder constituinte reformador, “notadamente no concernente aos limites materiais à
reforma” que, para ele, “igualmente não deixa de constituir uma relevante manifestação
em favor da manutenção de determinados conteúdos da Constituição”, destacadamente
“de todos aqueles que integram o cerne material da ordem constitucional” ou “pelo
menos daqueles dispositivos (e respectivos conteúdos normativos) expressamente tidos
como insuprimíveis (inclusive tendencialmente) pelo nosso Constituinte”.219 Ressalta
que tais previsões, apesar de compreenderem grande parcela das situações que possam
levar a medidas retrocessivas, em sentido amplo, do poder público (em especial na
esfera legislativa, mas não de modo exclusivo), “não esgotam o espectro de situações
carentes de uma proteção em face de um retrocesso”.220
Sarlet critica o posicionamento daqueles que se opõem ao
reconhecimento de uma proibição de retrocesso em matéria de direitos sociais, tal como
o faz Roger Stiefelmann Leal. Para esse autor, que faz um comparativo entre o
pensamento de Zagrebelsky e de Jorge Miranda,221 no tocante ao princípio do não
218 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 435. 219 Idem, ibidem, p. 435. 220 Idem, p. 435. 221 Nesse sentido, Roger Stiefelmann Leal esclarece que: “Enquanto Zagrebelsky propugna pelo
impedimento de redução do grau de concretização conquistado pela norma constitucional, Jorge Miranda defende a vedação da simples supressão da concretização, admitindo modificações – o que presume a aceitação de redução do grau de concretização sem, obviamente, suprimi-la por completo” (Roger Stiefelmann Leal, Direitos sociais e a vulgarização da noção de direitos fundamentais.
115
retrocesso e levanta a questão da eficácia proibitiva de retrocesso social no caso de uma
mudança de prioridades governamentais, é de se questionar a possibilidade de aplicação
do princípio, especialmente quando se fala do deslocamento de recursos públicos de
uma área para outra; exemplifica seu pensamento contrário à tese do não retrocesso,
com a hipótese de uma alternância de governo. Na hipótese, “O governo anterior tinha
por prioridade a prestação de lazer, e, para isso, concretizou de modo muito
pormenorizado a norma constitucional que consagra o direito ao lazer”. Já o novo
governo que assumiu “tem outras prioridades como educação e assistência social”.
Segundo Leal, parece ser “inconcebível considerar inconstitucional a simples revogação
da legislação sobre a promoção de lazer com recursos públicos de modo a transferir tais
recursos para outras áreas como a educação e a assistência social”. E assevera que, a
toda evidência, “nessa hipótese, a supressão da legislação concretizadora do direito ao
lazer há de ser feita, caso contrário, qualquer pessoa poderia pleitear o seu cumprimento
por parte do poder público”, o que inviabilizaria “a concretização de outros direitos
sociais do modo pretendido pelo novo governo”. E conclui que “É exatamente por força
do postulado da democracia pluralista alegado por Jorge Miranda que não parece muito
adequado extrair das normas definidoras de direitos sociais uma vedação ao retrocesso
da concretização adquirida por elas”. Nesse sentido, “A efetivação de direitos sociais é
uma questão governamental que envolve outros fatores como a disponibilidade de
recursos financeiros e a fixação de prioridades políticas”.222
Afastando essa concepção de Leal, esclarece Sarlet que, “em se
admitindo uma ausência de vinculação mínima do legislador (assim como dos órgãos
estatais em geral) ao núcleo essencial já concretizado na esfera dos direitos sociais e das
imposições constitucionais em matéria de justiça social”, chancelar-se-ia uma clara
“fraude à Constituição, pois o legislador – que ao legislar em matéria de proteção social
apenas está a cumprir um mandamento do Constituinte – poderia pura e simplesmente
desfazer o que fez no estrito cumprimento da Constituição”. E, mencionando também
Jorge Miranda, que para Sarlet admite apenas uma proibição relativa de retrocesso,
Disponível em: <http://www6.ufrgs.br/ppgd/doutrina/leal2.htm>. Acesso em: 16 jan. 2012). 222 Leal, Direitos sociais e a vulgarização da noção de direitos fundamentais.
116
propugna que “o legislador não pode simplesmente eliminar as normas (legais)
concretizadoras de direitos sociais”, uma vez que “isto equivaleria a subtrair às normas
constitucionais a sua eficácia jurídica, já que o cumprimento de um comando
constitucional acaba por converter-se em uma proibição de destruir a situação
instaurada pelo legislador”. É dizer que, “mesmo tendo em conta que o espaço de
‘prognose e decisão’ legislativo seja efetivamente sempre variável”, em especial “no
marco dos direitos sociais, não se pode admitir que em nome da liberdade de
conformação do legislador o valor jurídico dos direitos sociais, assim como a sua
própria fundamentalidade, acabem sendo esvaziados”.223
E arremata sua crítica a Leal afirmando que é necessário também
verificar que, se houver “a supressão pura e simples do próprio núcleo essencial
legislativamente concretizado de determinado direito social”, particularmente dos
direitos sociais atrelados ao mínimo existencial, “estará sendo afetada, em muitos casos,
a própria dignidade da pessoa, o que desde logo se revela inadmissível”,
destacadamente se se considerar “que na seara das prestações mínimas (que constituem
o núcleo essencial mínimo judicialmente exigível dos direitos a prestações) para se ter
“uma vida condigna não poderá prevalecer até mesmo a objeção da reserva do possível
e a alegação de uma eventual ofensa ao princípio democrático e da separação de
poderes”.224
Adentrando na defesa do reconhecimento de um princípio implícito da
proibição de retrocesso na ordem constitucional brasileira, Sarlet sustenta que, na seara
do direito constitucional brasileiro, o princípio da proibição de retrocesso decorre dos
seguintes princípios e argumentos de matriz jurídico-constitucional: a) do princípio do
Estado Democrático e Social de Direito, o qual impõe a necessidade de um patamar
mínimo de segurança jurídica, com sua manutenção abrangida pelo princípio da
confiança, oferecendo segurança não só contra medidas retroativas, mas, de certa forma,
contra aquelas de cunho retrocessivo de uma maneira geral; b) do princípio da
223 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 443-444. 224 Idem, ibidem, p. 444.
117
dignidade da pessoa humana, que exige por parte do poder público sejam
implementadas medidas, isto é, prestações positivas de concretização de direitos
fundamentais sociais, com o fim de assegurar existência e vida condigna para todos, não
se permitindo medidas de cunho retrocessivo que possam vir a minimizar dita
concretude; c) do princípio da máxima eficácia e efetividade das normas que definem os
direitos fundamentais (cf. art. 5.º, § 1.º, da Constituição Federal de 1988), e que também
abarca a maximização da proteção dos direitos fundamentais, com otimização da
eficácia e efetividade do princípio da segurança jurídica, que confere sustentáculo
contra medidas retrocessivas; d) as manifestações específicas e expressas na
Constituição, no que dizem respeito à proteção contra medidas de caráter retroativo (art.
5.º, inciso XXXVI, da Constituição Federal de 1988), não dão conta da gama de
situações que integram a noção mais ampla de segurança jurídica, que encontra respaldo
no caput do art. 5.º da Constituição Federal de 1988 e no princípio do Estado Social e
Democrático de Direito; e) o princípio da proteção da confiança, elemento nuclear do
Estado de Direito, que exige do poder público a boa-fé nas relações com os particulares
e o respeito pela confiança depositada pelos indivíduos na estabilidade e continuidade
da ordem jurídica; f) os órgãos estatais, que estão ligados não somente à concretização
das imposições constitucionais, mas, do mesmo modo, sujeitos a uma autovinculação
em relação aos atos anteriores, como corolário do princípio da segurança jurídica e
proteção da confiança; g) negar reconhecimento ao princípio da proibição de retrocesso
expressaria, em última análise, aceitar que os órgãos legislativos (assim como o poder
público de modo geral), a despeito de estarem vinculados aos direitos fundamentais e às
normas constitucionais em geral, dispõem do poder de tomar de forma livre suas
decisões mesmo em flagrante desrespeito à vontade expressa do Constituinte;225 h)
acresça-se um fundamento adicional retirado do direito internacional, notadamente no
plano dos direitos econômicos sociais e culturais, em que se pode dizer que o sistema de
225 Neste ponto, Sarlet menciona Luís Roberto Barroso, que bem destaca que “mediante o
reconhecimento de uma proibição de retrocesso está a se impedir a frustração da efetividade constitucional, já que, na hipótese de o legislador revogar o ato que deu concretude a uma norma programática ou tornou viável o exercício de um direito, estaria acarretando um retorno à situação de omissão” (inconstitucional). E também argumenta com o leading case do Tribunal Constitucional de Portugal que versou sobre o Sistema Nacional de Saúde. E defende que “é correta a percepção de que uma das funções principais do princípio da proibição de retrocesso é a de impedir a recriação de omissões legislativas, ainda que tal função não corresponda, é preciso enfatizar, a integralidade das consequências jurídicas vinculadas à proibição de retrocesso” (Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 447).
118
proteção internacional impõe a progressiva implementação efetiva da proteção social
por parte dos Estados, vedando implicitamente o retrocesso em relação aos direitos
sociais já concretizados.226
Em síntese, Sarlet firma seu pensamento no sentido de o princípio da
vedação ao retrocesso social figurar como autêntico mandamento constitucional
implícito, embasado nos princípios: do Estado Democrático e Social de Direito; da
dignidade da pessoa humana; da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras
de direitos fundamentais (art. 5.º, § 1.º, Constituição Federal); da segurança jurídica; da
proteção à confiança; e da supremacia da Constituição.
Sarlet levanta a questão da controvérsia existente no tocante à amplitude
da proteção outorgada pelo princípio da proibição de retrocesso social. A respeito diz
que, “Se em favor do reconhecimento, em princípio, de uma proibição de retrocesso em
matéria de direitos fundamentais não parecem subsistir maiores dúvidas”, de igual
maneira, “é verdade que há, ainda, considerável espaço para controvérsia no que
concerne à amplitude da proteção outorgada pelo princípio da proibição de retrocesso
social”. Nesse viés, aduz que, “se é correto apontar a existência de elevado grau de
consenso (pelo menos na doutrina e jurisprudência nacional e, de modo geral, no espaço
europeu) quanto à existência de uma proteção contra o retrocesso”, também é certo que
tal consenso abarca “o reconhecimento de que tal proteção não pode assumir um caráter
absoluto, notadamente no que diz com a concretização dos direitos sociais a
prestações”. E, nessa toada, não podendo ter caráter absoluto, sem querer se aprofundar
nas razões que vedam o reconhecimento de uma proibição de retrocesso com natureza
absoluta, isto é, “impeditivas de qualquer redução nos níveis de proteção social”,
destaca como motivos para um não retrocesso de cunho absoluto o fato de que isso
implicaria “a afetação substancial da necessária possibilidade de revisão que é peculiar à
função legislativa”, mas também desconsideraria “a indispensável possibilidade (e
necessidade) de reavaliação global e permanente das metas da ação estatal e do próprio
desempenho na consecução de tais metas, ou seja, a reavaliação mesmo dos meios
226 Todos os princípios e argumentos arrolados integram um rol não exaustivo, como bem dito por
Sarlet (A eficácia dos direitos fundamentais, p. 446-448).
119
utilizados para a realização dos fins estatais”, em especial para a “efetivação dos direitos
fundamentais”.227
Sarlet, ainda compartilhando do entendimento de que a vedação do
retrocesso não pode ser absoluta, explica que, do contrário, haveria redução da atividade
legislativa à execução pura e simples da Constituição e também ocasionaria a
transmutação das normas infraconstitucionais em direito constitucional, além de
inviabilizar seu desenvolvimento. E, uma vez que se trata de princípio (e não de regra),
deverá ser cotejado com os demais, não se admitindo a “lógica do tudo ou nada”
(consoante as lições de Dworkin, Alexy e Canotilho).228 Além do mais, uma vedação
absoluta de retrocesso em matéria de direitos sociais não se sustentaria, em virtude da
dinâmica das relações sociais e econômicas, em especial em relação à demanda da
sociedade em matéria de segurança social; da variabilidade e instabilidade da
capacidade prestacional do Estado, principalmente em um contexto de crise econômica
e incremento dos níveis de exclusão social; e em decorrência de problemas na esfera de
arrecadação de recursos. Isto porque há a necessidade da “promoção de ajustes,
eventualmente até mesmo de alguma redução ou flexibilização em matéria de segurança
social, onde realmente estiverem presentes os pressupostos para tanto”.229
Nesse contexto, Sarlet profere que é necessário estabelecer critérios
materiais para aferição de limites à aplicação do princípio da proibição de retrocesso
social que sejam constitucionalmente adequados. O legislador e o poder público em
geral não poderão, estando concretizado por legislação infraconstitucional determinado
direito social, mesmo que com efeitos puramente prospectivos, voltar atrás e, mediante
uma supressão ou mesmo relativização, afetar o núcleo essencial do direito social.
Referido núcleo encontra-se diretamente interligado ao princípio da dignidade da pessoa
humana, notadamente ao se considerar que os direitos sociais prestacionais formam um
conjunto de prestações materiais imprescindíveis para uma vida com dignidade – o
mínimo existencial. De tal modo, a dignidade da pessoa opera como diretriz jurídico-
material tanto para a definição do núcleo essencial quanto para a definição do que funda
227 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 448-449. 228 Idem, ibidem, p. 449-450. 229 Idem, p. 451.
120
a garantia do mínimo existencial, que, com base na doutrina, compreende bem mais “do
que a garantia da mera sobrevivência física, não podendo ser restringido, portanto, à
noção de um mínimo vital ou a uma noção estritamente liberal de um mínimo suficiente
para assegurar o exercício das liberdades fundamentais”.230
Partindo-se da premissa de que as prestações estatais básicas que se
destinam à garantia de uma vida digna instituem parâmetro necessário para a
justiciabilidade dos direitos sociais prestacionais, “no sentido de direitos subjetivos
definitivos que prevalecem até mesmo em face de outros princípios constitucionais”
(como a reserva do possível e reserva parlamentar em matéria orçamentária) e da
separação dos poderes, fica claro que dito plexo de prestações básicas não poderá ser
abolido ou diminuído “(para aquém do seu conteúdo em dignidade da pessoa), nem
mesmo mediante ressalva dos direitos adquiridos sob pena de uma violação
injustificável do valor (e princípio) máximo da ordem jurídica e social”.231
Sarlet explana que ante o caso concreto, em que estiver em pauta uma
medida retrocessiva, dever-se-á proceder a uma ponderação (ou hierarquização,
seguindo termo utilizado pelo autor), optando “sempre (pois esta será não a única, mas a
melhor resposta hermenêutica) pela solução mais compatível com a dignidade da pessoa
humana”.232 Na esteira dessas ideias, o citado jurista defende que “uma violação do
mínimo existencial (mesmo em se cuidando do núcleo essencial legislativamente
concretizado dos direitos sociais)” constituirá “sempre uma violação da dignidade da
pessoa humana e por esta razão será sempre desproporcional e, portanto,
inconstitucional”.233
Discordando desse entendimento do autor, está Felipe Derbli, que, ao
debruçar-se sobre a temática da vedação do retrocesso social em obra dedicada
especificamente à matéria, assevera ser completamente desnecessário atrelar a proibição
do retrocesso social única e exclusivamente ao mínimo existencial, “cuja proteção
constitucional já é delineada pelo princípio da dignidade humana”. Em outros termos, o
230 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 452. 231 Idem, ibidem, p. 453. 232 Aqui Sarlet apoia-se nos ensinamentos de Juarez Freitas (Ibidem, p. 454). 233 Idem, p. 455.
121
princípio da proteção de retrocesso social concentrará “sua incidência para além do
mínimo essencial, de modo a impedir o retorno na concretização dos direitos sociais,
ainda que não digam com as prestações mínimas indispensáveis à sobrevivência dos
indivíduos”.234
Mais adiante Derbli também critica a ideia de associar o princípio da
vedação ao retrocesso social com o primado da segurança jurídica. Pondera que, se na
doutrina alemã há “a associação entre a proibição de retrocesso social e a segurança
jurídica, mas especificamente no que concerne ao aspecto subjetivo da proteção da
confiança dos cidadãos, no que recebeu a companhia de parte da doutrina lusa”, é
imperioso verificar que a vedação ao retrocesso social e a segurança jurídica não se
confundem, pois “os seus objetos de normatização são inteiramente distintos”.235
Dedicando algumas linhas ao conceito de segurança jurídica, Derbli diz
que esta “se traduz na faculdade do indivíduo de, à luz do ordenamento jurídico, poder
conduzir, planificar e conformar sua vida de maneira autônoma e responsável”.
Ademais, “Congloba a garantia de paz jurídico-social, mediante a estabilidade da ordem
jurídico-social, a certeza no que concerne às normas jurídicas e, ao mesmo tempo, a
confiabilidade no Direito”, isto é, denota “a previsibilidade da conduta do Poder Público
e dos seus efeitos sobre a esfera individual dos cidadãos, de acordo com normas
jurídicas válidas e vigentes”.236 Acresce que a segurança jurídica é comumente vista sob
duas acepções diversas: uma objetiva, embasada na certeza e na previsibilidade do
ordenamento, e uma subjetiva, atrelada à proteção da confiança do indivíduo,
garantindo ser “possível ao cidadão confiar na permanência de sua situação jurídica ao
longo do tempo, diante da alteração frequente do direito positivo, o que envolve a
salvaguarda dos direitos adquiridos e das expectativas legítimas dos cidadãos”.237
Na Alemanha, onde não se têm a previsão constitucional de garantia dos
direitos adquiridos e, portanto, a vedação a leis com efeitos retroativos, surgiu realmente
a necessidade de buscar proteção na segurança jurídica. Entretanto, a Carta
234 Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 210. 235 Idem, ibidem, p. 213. 236 Derbli sustenta-se em Canotilho e Peczenik para tratar do assunto (Ibidem, p. 213). 237 Idem, p. 214.
122
Constitucional brasileira que contempla a previsão, no art. 5.º, XXXVI, de que “a lei
não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”,
certamente consagra a segurança jurídica, nomeadamente no tocante à irretroatividade
das leis.238 Por conseguinte, dispensável essa solução no direito pátrio.
As diferenças entre a segurança jurídica e o não retrocesso social são
bem identificáveis segundo Derbli. Claro é que “a questão da preservação da certeza e
da previsibilidade do ordenamento jurídico não se confunde com o problema da
manutenção do padrão de concretização dos direitos fundamentais sociais atingido por
obra do legislador”; pode ocorrer até de se contrariar “a proibição de retrocesso social
mesmo sem prejuízo à segurança jurídica”.239 De tal maneira, válido é asseverar que a
segurança jurídica protege situação distinta do princípio da proibição de retrocesso
social, visto que este se relaciona com o futuro, vedando a eliminação de conquistas
sociais, que ainda não integraram definitivamente o patrimônio jurídico do cidadão, e
aquela, por sua vez, tem relação com o passado, que, sem evitar a mudança da
legislação, assegura, entretanto, o direito já adquirido.
Nessa toada esclarece Derbli:
Logo, proibição de retrocesso social e segurança jurídica são assuntos que havemos de distinguir com a necessária acurácia, sob pena de enxergar uma fungibilidade (ou mesmo, eventualmente, uma relação de continência) entre princípios que faria do primeiro uma formulação inútil. De fato, seria de pouco ou nenhum proveito destacar a proibição de retrocesso social para a garantia de direitos adquiridos ou expectativas de direito, como se fosse um sucedâneo do princípio da segurança jurídica – nossa contribuição pouco mais faria do que “chover no molhado”.240
Derbli defende uma concepção do princípio da proibição de retrocesso
social mais voltada para a realidade brasileira, baseando-se, para tanto, a primeira
elaboração de Canotilho e o pensamento elaborado pelo Conselheiro Vital Moreira no
Acórdão 39/1984 do Tribunal Constitucional português. Afirma que “a inspiração do
238 Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 215. 239 Idem, ibidem, p. 216. 240 Idem, p. 217.
123
modelo arquitetado pelo Tribunal Constitucional luso no Acórdão 39/1984 é
perfeitamente cabível e justifica, inclusive, a adoção da expressão proibição de
retrocesso social”, abraçada em Portugal, para tratar precisamente da matéria em torno
da qual aborda o presente estudo: “a obrigatoriedade da observância, pelo legislador, do
grau de concretização infraconstitucional dos direitos fundamentais sociais, de modo a
que não se retorne, pela via comissiva, a um grau anterior de ausência inconstitucional
de legislação regulamentadora”.241
Imbuído de tal visão, Derbli critica o Tribunal Constitucional de
Portugal quando esta corte, influenciada pela doutrina germânica, “incorporou à
concepção do princípio da proibição de retrocesso social a sua associação ao mínimo
existencial, aos direitos adquiridos e à proteção da confiança”, o que acarretou, com
isso, uma confusão de elementos “referentes a distintos objetos de proteção
constitucional e praticou, data venia, duplo equívoco”, pois “atribuiu ao princípio da
proibição de retrocesso social missão que já havia sido conferida pela Constituição de
1976 a outras normas constitucionais”, e consequentemente, acabou por esvaziar “seu
conteúdo precisamente no que tinha de mais útil e original”. Daí os “danos à sua
adequada compreensão e aplicabilidade”.242
Com efeito, Derbli adverte que a principal ressalva a fazer quanto à
abordagem do tema é a de que não se devem confundir “a proibição de retrocesso
social, a dignidade da pessoa humana, a segurança jurídica e a proteção da confiança,
sob pena de incorrer no mesmo erro cometido pela própria doutrina lusa e pelo Tribunal
Constitucional Português”. De igual maneira, entende não ser correto “que a segurança
jurídica (especialmente em sua faceta subjetiva, de proteção da confiança) e a dignidade
da pessoa humana sirvam como fundamentos para a proibição do retrocesso ou como
critérios materiais de medida para o retrocesso constitucionalmente admitido”. Dita
“perspectiva esvaziaria o conteúdo material do princípio da proibição do retrocesso
social, o que culminaria no reconhecimento de um caráter meramente instrumental ao
mesmo”. E enfatiza que é imperioso “renunciar a esse ponto de vista, pois, como acima
241 Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 218-219. 242 Idem, ibidem, p. 220.
124
destacado, o princípio de retrocesso social apresenta um elemento finalístico próprio, o
que lhe confere posição, por assim dizer, substantiva”.243
Derbli considera o princípio da vedação ao retrocesso social implícito
na Lei Maior, dedutível de preceitos explícitos na Constituição de 1988. Com o fim de
demonstrar essa sua afirmação, abre parênteses para falar da diferença entre texto e
norma, distinção fundamental para o seu raciocínio, consoante os seguintes termos:
[...] as normas podem resultar da interpretação dos textos, mas é possível que os enunciados, por si sós, exijam mais do que a mera determinação dos sentidos dos signos de linguagem utilizados; haverá casos em que será necessário colher conclusões do espírito da norma e não do texto – cuidar-se-á, ao final, de uma construção. Assim, é possível que um enunciado permita a construção de uma norma, de mais de uma norma ou de norma nenhuma e, por outro lado, é igualmente admissível que uma norma seja construída a partir da interpretação de vários dispositivos conjuntamente. Com isso, entende-se que não existe identidade absoluta entre dispositivo e norma e, portanto, seria um tanto quanto ociosa a distinção entre normas expressas e implícitas – noutras palavras, nenhuma norma, a rigor, é expressa num enunciado, carecendo sempre de atividade interpretativa (ou de construção) para que seja identificada, sem prejuízo de algumas normas demandarem atividade interpretativa mais intensa do que outras para que sejam elaboradas244 (destaques do autor).
Embasado por tais ideias, Derbli enxerga na Constituição de 1988 o
nítido espírito do princípio da vedação ao retrocesso na progressiva ampliação dos
direitos fundamentais (art. 5.º, § 2.º, e art. 7.º, caput), visando à gradativa redução das
desigualdades regionais e sociais e à construção de uma sociedade marcada pela
solidariedade e pela justiça social (art. 3.º, incs. I e III, e art. 170, caput e incs. VII e
VIII). Ademais, avista na Carta Magna o ideal voltado “para o desenvolvimento do grau
de concretização dos direitos sociais nela previstos e para sua máxima efetividade (art.
5.º, § 1.º)”; em consequência, é possível “vislumbrar na Constituição a ordem, dirigida
ao legislador, de não retroceder na densificação das normas constitucionais que definem
tais direitos sociais”. E sintetiza seu entendimento afirmando ser possível “deduzir do
243 Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 220-221. 244 Idem, ibidem, p. 221-222.
125
texto constitucional que a Carta Magna vigente contém entre suas normas o princípio
que impõe ao legislador a observância da concretização sempre progressiva dos direitos
fundamentais sociais”, o que implica lhe ser “defeso atuar comissivamente em sentido
oposto, tanto quanto lhe é proibido deixar de regulamentar, em sede legislativa, uma
norma constitucional que lhe estabeleça tal dever”.245
Depois de realizar amplas considerações sobre as diferenças entre
normas constitucionais definidoras de direitos sociais e normas programáticas,246 Derbli
chega à conclusão de que o princípio da proibição de retrocesso social apenas se aplica
àquela primeira categoria. Defende sua posição ao assegurar que o reclamo de
integração infraconstitucional (obrigação de legislar) não é fator distintivo das normas
programáticas, e que desta não se pode extrair, ao menos, uma posição jurídico-
subjetiva de cunho social, ao contrário do que ocorre com as normas definidoras de
direitos sociais.247
245 Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 222-223. 246 Derbli diz que é possível diferenciar as normas constitucionais definidoras de direitos sociais e as
normas constitucionais programáticas no que concerne ao grau de vinculação imposto pelo legislador. Baseia seu critério distintivo, que considera razoavelmente seguro, no magistério de José Carlos Vieira de Andrade, que reconhece que nem sempre as normas constitucionais definidoras de direitos sociais geram um direito subjetivo, pois necessitam da intervenção do legislador. Todavia, ao menos, conferem ao indivíduo uma posição jurídica subjetiva, que é mais que interesse juridicamente protegido, porque almeja à satisfação de bens ou interesses do particular, conquanto não constitua direitos subjetivos perfeitos, na medida em que não pode ser determinado a priori o seu conteúdo material. Assim, para Derbli, “serão normas constitucionais definidoras de direitos sociais aquelas das quais for possível deduzir, no curso da atividade interpretativa, uma posição jurídico-subjetiva de cunho social. Por conseguinte, quando houver mera previsão de finalidade a ser promovida objetivamente pelo Estado, sem que se possa extrair da disposição constitucional um interesse juridicamente protegido e individualizável, estar-se-á diante de uma norma programática” (Ibidem, p. 233-234).
247 Pensando de modo diverso, tem-se o pensamento de Luís Roberto Barroso que defende a aplicabilidade e eficácia imediata de toda a Constituição. Entende que ainda que nos dias atuais se possa falar em novas formulações doutrinárias, de base pós-positivista (adotadas no presente estudo), sobre o modo de interpretar a Constituição (como se verá no capítulo 4, em especial a doutrina de Ronald Dworkin), a doutrina da efetividade, a qual reconhece força normativa às normas constitucionais, foi responsável por tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e imediatamente, na extensão máxima de sua densidade normativa. Embora tenha se servido de uma metodologia positivista (ou seja, o direito constitucional resumir-se-ia à norma), e se utilizado também de um critério formal para estabelecer a exigibilidade de determinados direitos (isto é, se está na Constituição deve ser cumprido), não se pode negar, todavia, que referida doutrina teve seu mérito (Luís Roberto Barroso, Da falta de efetividade à judicialização excessiva: Direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=52582>. Acesso em: 21 mar. 2012). Segundo Barroso, “Para realizar seus propósitos, o movimento pela efetividade promoveu,
126
Nesse viés, tece o conceito do princípio da vedação de retrocesso social:
Vale dizer, haverá retrocesso social quando o legislador, comissiva e arbitrariamente, retornar a um estado correlato a uma primitiva omissão inconstitucional ou reduzir o grau de concretização de uma norma definidora de direito social; onde não houver imposição legiferante – e, portanto, for mais fluida a delimitação das raias da liberdade de conformação do legislador (o que ocorre no caso das normas constitucionais programáticas), não se poderá falar propriamente em proibição de retrocesso social. [...] Por conseguinte, retrocesso social (ou retorno da concretização, para utilizar a expressão de Jorge Miranda) e omissão inconstitucional são conceitos correlatos, na medida em que significam que uma determinada norma constitucional está concretizada por lei aquém do seu desiderato – no entanto, diferem por que, conforme o caso, o legislador voltou atrás ou deixou de ir aonde devia.248
Nota-se, portanto, que Derbli adota um conceito estrito do princípio da
vedação ao retrocesso social, no sentido de que referido mandamento somente deve se
aplicar aos casos em que a revogação da lei que concretiza um direito social gerar o
retorno equivalente ao estágio anterior, qual seja de uma omissão inconstitucional,
capaz de dar ensejo ao mandado de injunção ou à ação direta de inconstitucionalidade
por omissão.
Mais adiante, explica como opera o princípio da proibição de retrocesso
social, sustentando que, “uma vez concretizadas em sede legislativa as normas
definidoras de direitos fundamentais sociais, tais direitos passam a exibir não somente o
status positivus próprio dos direitos prestacionais, como também o status negativus”
típico dos direitos de defesa. E frisa que se trata do status negativus jusfundamental
com sucesso, três mudanças de paradigma na teoria e na prática do direito constitucional no país. No plano jurídico, atribuiu normatividade plena à Constituição, que passou a ter aplicabilidade direta e imediata, tornando-se fonte de direitos e obrigações. Do ponto de vista científico ou dogmático, reconheceu ao direito constitucional um objeto próprio e autônomo, estremando-o do discurso puramente político ou sociológico. E, por fim, sob o aspecto institucional, contribuiu para a ascensão do Poder Judiciário no Brasil, dando-lhe um papel mais destacado na concretização dos valores e dos direitos constitucionais. O discurso normativo, científico e judicialista foi fruto de uma necessidade histórica. O positivismo constitucional, que deu impulso ao movimento, não importava em reduzir o direito à norma, mas sim em elevá-lo a esta condição, pois até então ele havia sido menos do que norma. A efetividade foi o rito de passagem do velho para o novo direito constitucional, fazendo com que a Constituição deixasse de ser uma miragem, com as honras de uma falsa supremacia, que não se traduzia em proveito para a cidadania” (Luís Roberto Barroso, A doutrina brasileira da efetividade. Temas de direito constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, v. 3, p. 76).
248 Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 240-241.
127
mencionado por Alexy, oponível igualmente ao legislador, de maneira que se lhe
impeça de interferir arbitrariamente na esfera jurídica dos cidadãos. É dizer que se veda
“ao legislador a possibilidade de, injustificadamente, aniquilar ou reduzir o nível de
concretização legislativa já alcançado por um determinado direito fundamental social”,
cabendo ao indivíduo recorrer ao Judiciário, “contra a atuação retrocedente do
Legislativo, que se pode consubstanciar numa revogação pura e simples da legislação
concretizadora ou mesmo na edição de ato normativo que venha a comprometer a
concretização já alcançada”.249
Com base nos ensinamentos de Canotilho, leciona que “a concretização
legal de uma norma constitucional definidora de direito social” pode chegar a alcançar
um determinado nível de consenso básico “e, com isso, radicar na consciência jurídica
geral, que passe a corresponder a uma complementação ou desenvolvimento do direito
previsto na norma constitucional”. Dito de outro modo, o grau de densificação
alcançado “poderá passar a ser considerado como corolário indispensável do próprio
comando constitucional, usufruindo, com isso, sua força normativa”.250 Assim,
considera coerente defender que, “se uma norma constitucional definidora de direito
social atinge certo nível de densidade normativa, por ação do próprio legislador, essa
concretização pode passar a integrar o próprio conteúdo da norma constitucional”, o que
implicaria tornar-se “insuscetível de supressão ou modificação arbitrária por via
infraconstitucional”; porém, “para tanto, é necessário que venha a ser objeto de
consenso profundo, idôneo a permitir que radique na consciência jurídica geral”.251
249 Nesse ponto, Derbli apoia-se nas lições de Sarlet (O princípio da proibição de retrocesso social na
Constituição de 1988, p. 243). 250 Idem, ibidem, p. 244. 251 Idem, p. 244. O autor exemplifica esse seu entendimento citando como exemplo a norma
constitucional referente ao aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, pelo prazo mínimo de trinta dias (art. 7.º, XXI); regulam a matéria os arts. 487 e ss. da CLT. De tal forma, “trata-se de regra constitucional definidora de direito social, na medida em que cria para o trabalhador uma posição jurídico-subjetiva individualizável ao definir, para o empregador, um dever de lhe avisar antecipadamente sobre a rescisão do contrato de trabalho, de modo a aquele possa procurar novo emprego. Mais além, há uma imposição legiferante, pois a norma constitucional, para alcançar grau maior de densidade normativa, exige concretização legislativa, cabendo ao legislador especificar qual será o período correspondente ao aviso prévio (que, por expressa disposição constitucional, será igual ou maior que trinta dias), quais os efeitos sobre a jornada de trabalho do empregado e sua remuneração, quais as penalidades cabíveis para o caso de inobservância do aviso prévio etc.”. E continua: “Assim, portanto, as disposições da CLT acima mencionadas cumprem o papel de concretizar a norma constitucional em sede legislativa. O art. 488 do referido diploma legal e seu
128
Deveras, o pensamento de Derbli destaca-se na medida em que inova
em certo ponto importantíssimo. Adere-se, no presente trabalho, ao entendimento do
doutrinador quando sustenta que o princípio da vedação ao retrocesso social não
encontra seu fundamento, de modo direto, no mínimo existencial, e, por conseguinte, na
dignidade da pessoa humana, e que tem conteúdo autônomo em relação aos princípios
da segurança jurídica e da proteção à confiança.252 No entanto, conforme se verá, se de
um lado é verdade que o não retrocesso é mandamento autônomo – inferido dos
dispositivos constitucionais que estabelecem o progressivo alargamento dos direitos
fundamentais sociais, o que resulta, com toda a lógica, na existência de comando
destinado ao legislador, impondo a este não retroceder na concretização dos direitos
sociais e da justiça social e, acrescente-se, consoante será visto mais à frente, dirige-se
também ao julgador, diante da missão de apreciar matéria relacionada ao tema –, de
outro, não deixa de se relacionar, em certa medida, com a segurança jurídica, não na sua
concepção individualista do século XIX, mas na sua dimensão social,253 em que se tem
o instituto do direito adquirido social embasando o princípio da proibição do retrocesso
social.
parágrafo único, em particular, definem que durante o prazo do aviso prévio oferecido pelo empregador, o trabalhador tem direito à redução de seu horário de trabalho em 2 (duas) horas diárias, sem prejuízo da sua remuneração integral, ou, se preferir, pode ausentar-se do trabalho por 7 (sete) dias corridos”. Nesse passo, “Suponha-se, então, que, por lei ordinária, venham a ser revogados o caput e o parágrafo único do art. 488 da CLT, de modo a que não haja mais possibilidade de decréscimo no horário de trabalho do empregado ou ausência remunerada durante o prazo do aviso prévio apresentado pelo empregador. Pergunta-se: seria esta lei revogadora constitucional?”. E responde: “Quer parecer-nos que não. As normas introduzidas pelo legislador, que concederam ao empregado o direito de redução do horário de trabalho ou de ausência por uma semana no período de aviso prévio, quando oferecido pelo empregador, estão em vigor há décadas e, por todo esse lapso, vêm sendo tidas como de observância inafastável. Sendo certo que seu conteúdo é compatível com a Constituição atual, foram pela mesma recepcionadas, recebendo com isso, novo fundamento de validade. [...]. Por conseguinte, cremos que tal disposição legal alcançou um patamar de consenso básico suficiente para se considerar que radicou na consciência jurídica geral, de tal maneira que seja compreendida como uma complementação indissociável da norma constitucional disposta no art. 7.º, inciso XXI” (O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 246-249).
252 Nesse sentido da autonomia do princípio da proibição de retrocesso social também está o posicionamento de Daniel Oitaven Pamponet Miguel afirmando que não se há de buscar a caracterização do aludido princípio “como uma norma implicitamente derivada de outros princípios, como o da segurança jurídica e o da proteção da confiança, nos moldes do esforço doutrinário já mencionado na introdução deste trabalho – por todos, Sarlet [...]” (Daniel Oitaven Pamponet Miguel, O direito como integridade comunicativa: uma compreensão histórica do princípio da proibição de retrocesso social, São Paulo: Letras Jurídicas, 2011, p. 190-191).
253 Nesse ponto, o que se almeja defender no presente estudo aproximar-se-ia da posição de Sarlet, que concebe a dimensão social da segurança jurídica, quando dela fala em sentido amplo. Entretanto, difere-se do entendimento do jurista, na medida em que se propõe, neste trabalho, uma concepção mais ampla do princípio da vedação ao retrocesso social.
129
No entanto, de outro lado, discorda-se da concepção restrita que Derbli
propõe no estudo do tema, pois, para o jurista, a vedação ao retrocesso social aplica-se
unicamente: às hipóteses correspondentes a uma omissão do legislador
infraconstitucional, e quando houver um consenso básico suficiente para se considerar
que a norma infraconstitucional radicou na consciência jurídica geral de maneira a se
tornar uma complementação indissociável da norma constitucional.
Diversamente do que defende o autor, entende-se que o princípio do não
retrocesso deve ter uma aplicação mais ampla, não somente quando se estiver perante
situações que sejam equivalentes a uma omissão legislativa infraconstitucional (e sua
relação de dependência com o consenso básico associado à consciência jurídica geral).
Mais do que isso, o princípio da vedação ao retrocesso social também se aplica no plano
constitucional aos casos em que houver uma emenda à Lei Maior que venha a
estabelecer um retrocesso em termos de direitos e garantias no ordenamento jurídico
constitucional, tal qual sustenta Sarlet, que defende a proteção também contra a ação do
poder constituinte reformador. E Streck, como se viu, afirma que o princípio do não
retrocesso social deve regular qualquer processo de reforma da Constituição, na medida
em que nenhuma emenda constitucional, por mais que formalmente lícita, pode
acarretar retrocesso social. Se isso fosse admitido, estar-se-ia deixando de fazer
prevalecer os elementos que dizem respeito à moralidade política.254 É o que se
pretenderá demonstrar no trabalho (particularmente no Capítulo 3, em que se falará a
respeito da aplicabilidade do princípio do não retrocesso).
Além disso, segue-se a linha do pensamento de Sarlet quando esse autor
diferencia o retrocesso social da retroatividade da lei. Nesse ponto, o autor tem razão
quando afirma que, se o legislador institui uma medida de cunho retrocessivo, não
254 Para uma compreensão moral da Constituição, referida leitura, de acordo com Dworkin, propõe que
todos nós – juízes, advogados e cidadãos – interpretemos e apliquemos os dispositivos constitucionais que preveem direitos, perante o Estado, em uma linguagem extremamente ampla e abstrata, de maneira a considerar que eles fazem referência a princípios morais de decência e justiça. Assim, a leitura moral vai inserir a moralidade política no próprio âmago do direito constitucional. Diante da incerteza e controvérsia da moralidade política, caberia a determinadas autoridades incorporar aqueles princípios morais, compreendê-los e interpretá-los. No sistema norte-americano, essa autoridade caberia aos juízes e, em última instância, aos juízes da Suprema Corte (Giuliano Fernandes, O sentido da filosofia política: um estudo acerca do debate Dworkin-Hart entre direito como integridade e poder discricionário dos juízes, 2009, Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 75-76). No Brasil, traçando-se um paralelo, dita leitura deve ser feita pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
130
estará atingindo o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, mas, sim,
instituindo um retrocesso quanto aos avanços conquistados em termos de direitos e
garantias fundamentais. Ver-se-á em que medida é possível estabelecer a distinção entre
a proteção que se confere aos direitos e garantias individuais fundamentais em face da
retroatividade da norma e o resguardo, a referidos direitos e garantias, trazido pelo não
retrocesso social.
Diante da exposição do pensamento doutrinário acerca da temática do
princípio da vedação ao retrocesso social, foi possível analisar os diversos
entendimentos dos autores a respeito do assunto e estabelecer alguns pontos importantes
para a delimitação do tema. Destarte, torna-se essencial determinar quais os
fundamentos constitucionais do primado do não retrocesso.
2.2.2 Fundamentos constitucionais do princípio da vedação ao retrocesso social
A título de explicação, com o intuito de expor a diversidade de
entendimentos a respeito do princípio da vedação ao retrocesso social e de estabelecer o
conteúdo do aludido mandamento, do modo como aqui se pretende defender, foi trazida
a lume a construção realizada sobre a matéria tanto no domínio estrangeiro quanto
nacional. Particularmente no âmbito da doutrina pátria (analisada no item 2.1.4.1),
procurou-se colacionar o entendimento dos diversos autores que abordam a temática da
proibição de retrocesso social a fim de que se possa, neste estudo, apontar, tendo como
referência o que já se edificou sobre o assunto, em que termos se substancia o apontado
princípio.
Ante o que se viu, torna-se capital analisar os fundamentos
constitucionais do princípio, particularmente: (a) a progressiva ampliação dos direitos
fundamentais da sociedade, (art. 5.º, § 2.º, e art. 7.º, caput), visando (b) à paulatina
redução das desigualdades regionais e sociais e (c) à construção de uma sociedade
marcada pela solidariedade e pela justiça social (art. 3.º, I e III, e art. 170, caput, VII e
VII), (d) o instituto do direito adquirido social, e (e) os tratados internacionais, a adesão
131
brasileira e o princípio da vedação ao retrocesso social.255 De tal modo, tratar-se-ão
desses tópicos daqui por diante, comportando a exposição do direito adquirido social
divisão em alguns subtópicos, como exigência da própria sistematização e abordagem
da matéria.
E, ademais, pode-se ter, também, por fundamento do primado do não
retrocesso, (f) o Estado Democrático e Social de Direito e suas diretrizes
fundamentalmente voltadas ao plano social,256 já abordado no primeiro capítulo.
2.2.2.1 A progressiva ampliação dos direitos fundamentais da
sociedade
A progressiva ampliação dos direitos fundamentais da sociedade
significa que a Constituição incorporou a cláusula de não taxatividade no seu art. 5.º, §
2.º, tendo por legítima a existência de direitos fundamentais além daqueles contidos no
próprio art. 5.º. Isso significa que referida cláusula não somente possibilitou reconhecer
a existência de direitos fundamentais ao longo de todo o texto constitucional, como
também admitiu que do conceito de direitos fundamentais fizesse parte determinado
bem jurídico que a sociedade assim considerasse no progressivo caminhar do Direito,
constituindo-se, de tal modo, instrumento de alargamento do rol dos direitos
fundamentais, podendo ser chamada de cláusula de ampliação interpretativa ou cláusula
255 Nesse sentido ver também a dissertação de mestrado de Eduardo Rivera Palmeira Filho, O princípio
da proibição de retrocesso social: aplicabilidade e limites na reforma da aposentadoria por tempo de contribuição do Regime Geral de Previdência Social, 2008, Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Luterana do Brasil, Canoas, p. 50-72. O autor também propõe um conceito amplo do princípio da vedação ao retrocesso social, com base no instituto do direito adquirido social, todavia desvincula tal instituto do primado da segurança jurídica, afastando-se, nesse ponto, do pensamento de Sarlet, para quem o não retrocesso tem como um de seus fundamentos o princípio da segurança jurídica a dar-lhe sustentáculo.
256 Consoante anota Daniel Oitaven Pamponet Miguel, “Da mesma maneira que a compreensão do Estado brasileiro como fundado no regime democrático, diante do processo que originou a nossa Constituição, não precisaria estar registrada expressamente na Carta Constitucional, não precisamos de maiores esforços dogmáticos para depreender que o caráter dirigente de nossa Constituição impõe um mandamento de não retrocesso em matéria de concretização de direitos sociais. Nomear um princípio da proibição de retrocesso social, no máximo, constitui um refinamento da dimensão artificial da linguagem mediante um esforço de sintetização [...], nessa expressão, do sentido progressista, sempre orientado para um acontecer futuro mais democrático, que nossa situação hermenêutica nos impõe reconhecer à Constituição” (O direito como integridade comunicativa..., p. 191).
132
especial de abertura.257 Por conseguinte, quando se diz que os direitos fundamentais são
aqueles previstos no ordenamento jurídico constitucional, está-se fazendo menção à
ideia da não taxatividade e, igualmente, daquilo que está implícito na Lei Maior, o que
requer não só o amparo a outros direitos fundamentais espalhados em suas disposições
normativas, bem como, da mesma forma, àqueles decorrentes do alargamento
conceitual de um determinado direito fundamental explícito no Texto Fundamental, o
que permitiria afirmar que referidos direitos fundamentais estariam expressos na Carta
Política brasileira, ainda que de modo indireto ou decorrente (isto é, direitos
subentendidos nas normas definidoras de direitos e garantias e os decorrentes do regime
e dos princípios).
Consoante ensina Ingo Wolfgang Sarlet, a norma do art. 5.º, § 2.º, da
Constituição Federal 1988 exprime a noção de que, afora o “conceito formal de
Constituição (e de direitos fundamentais) há um conceito material, no sentido de
existirem direitos que, por seu conteúdo, por sua substância, pertencem ao corpo
fundamental da Constituição de um Estado, mesmo não constando no catálogo”. Diante
desse contexto, cabe ressaltar que “o rol do art. 5.º, apesar de analítico, não tem cunho
taxativo”.258 Explicando seu pensamento, o autor assevera que o conceito materialmente
aberto de direitos fundamentais consagrado pelo art. 5.º, § 2.º, da Lei Maior “é de uma
amplitude ímpar, encerrando expressamente, ao mesmo tempo, a possibilidade de
identificação e construção jurisprudencial de direitos materialmente fundamentais não
escritos (no sentido de não expressamente positivados)”, como também “de direitos
257 Consoante expõe Cristina Queiroz, “os direitos fundamentais surgem no Estado constitucional como
‘reação’ às ameaças fundamentais que circundam o homem e o cidadão. As funções específicas de perigo mudam historicamente, tornando-se necessários novos instrumentos de combate, que devem ser desenvolvidos, sempre de novo, em nome do homem e do cidadão. Isso significa uma abertura de conteúdos, de funções e de formas de proteção, de modo a que todos esses direitos possam ser defendidos contra os novos perigos que possam surgir no decurso do tempo. Este caráter aberto do catálogo e da garantia dos direitos fundamentais, seja no aspecto pessoal, seja no aspecto institucional ou coletivo, vem expresso numa multiplicidade de formas de proteção jurídica [...] Não existe numerus clausus de dimensões de tutela, do mesmo modo que não existe um numerus clausus de perigos. Daí a origem da expressão proteção dinâmica dos direitos fundamentais, utilizada pelo Tribunal Constitucional Federal alemão” (Cristina Queiroz, Direitos fundamentais sociais: questões interpretativas e limites de justiciabilidade, Interpretação constitucional, São Paulo: Malheiros, 2005, p. 49).
258 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 78-79.
133
fundamentais constantes em outras partes do texto constitucional e nos tratados
internacionais”.259
Sarlet sustenta, melhor esclarecendo suas ideias, que existem dois
grandes grupos ou classes de direitos fundamentais, de maneira especial os direitos
expressamente positivados (ou escritos) e os direitos fundamentais não escritos, de
forma genérica “considerados aqueles que não foram objeto de previsão expressa pelo
direito positivo (constitucional ou internacional)”. No que diz respeito ao primeiro
grupo, não há maiores dificuldades para identificar a existência de duas categorias
diferentes, “quais sejam, a dos direitos expressamente previstos no catálogo dos direitos
fundamentais ou em outras partes do texto constitucional (direitos com status
constitucional material e formal)”, como, de igual maneira, “os direitos fundamentais
sediados em tratados internacionais e que igualmente foram expressamente positivados”
(sobre os tratados internacionais cf. item 2.2.5). No tocante ao segundo grupo, podem-se
distinguir também duas categorias. A primeira é representada pelos direitos
fundamentais implícitos, “no sentido de posições fundamentais subentendidas nas
normas definidoras de direitos e garantias fundamentais”; a segunda, por sua vez,
“corresponde aos direitos fundamentais que a própria norma contida no art. 5.º, § 2.º, da
CF denomina de direitos decorrentes do regime e dos princípios”.260-261
259 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 86. 260 Idem, ibidem, p. 87. 261 Diante dessa classificação quanto aos direitos fundamentais, a categoria dos direitos expressamente
positivados (ou escritos), aí inseridos os direitos fundamentais fora do catálogo, mas com status constitucional formal e material, deve-se verificar que referida categoria, segundo Sarlet, “não facilita em muito a tarefa de sua correta identificação, inobstante a sua condição de direito constitucional no sentido formal possa diminuir os riscos de equívoco”. Adverte o autor que os exemplos encontrados na doutrina existem em pequena quantidade e que para localizá-los não se deve esquecer a “circunstância de que também os assim designados direitos ‘dispersos na Constituição’ comungam do mesmo regime jurídico (da fundamentalidade material e formal) dos direitos constantes do Título II” da Carta Maior. E arrisca alguns exemplos. Assim, entrariam nessa hipótese, entre outros, o direito de igual acesso aos cargos públicos (art. 37, I), os direitos de associação sindical e de greve dos servidores públicos (art. 37, VI e VII), assim como o direito dos servidores públicos à estabilidade no cargo (art. 41) que, conforme afirma, “constitui verdadeira garantia da cidadania”. Além desses, podem-se trazer como exemplos o direito à aposentadoria dos servidores públicos (art. 40) e o direito à irredutibilidade de vencimentos dos servidores públicos (art. 37, XV) na seara social. Sarlet não menciona esses dois exemplos, mas seguindo sua linha de raciocínio é possível identificá-los como direitos sociais fora do catálogo, com status constitucional formal e material.
134
Diante dessa classificação de Sarlet quanto aos direitos fundamentais,
interessa destacar a categoria dos direitos expressamente positivados (ou escritos), aí
inseridos os direitos fundamentais fora do catálogo, mas com status constitucional
formal e material. Com base nessa classificação, o jurista observa que “A mera posição
constitucional dos direitos fundamentais fora do catálogo não facilita em muito a tarefa
de sua correta identificação, inobstante a sua condição de direito constitucional no
sentido formal possa diminuir os riscos de equívoco”. Adverte que os exemplos
encontrados na doutrina existem em pequena quantidade e que para localizá-los não se
deve esquecer a “circunstância de que também os assim designados direitos ‘dispersos
na Constituição’ comungam do mesmo regime jurídico (da fundamentalidade material e
formal) dos direitos constantes do Título II” da Carta Maior. E arrisca alguns exemplos.
Assim, entrariam nessa hipótese, entre outros, o direito de igual acesso aos cargos
públicos (art. 37, inc. I), os direitos de associação sindical e de greve dos servidores
públicos (art. 37, incs. VI e VII), assim como o direito dos servidores públicos à
estabilidade no cargo (art. 41) que, conforme afirma, “constitui verdadeira garantia da
cidadania”.262 Além desses, pode-se trazer como exemplos o direito à aposentadoria dos
servidores públicos (art. 40) e o direito à irredutibilidade de vencimentos dos servidores
públicos (art. 37, XV) na seara social.263
Ainda, a progressiva ampliação dos direitos fundamentais da sociedade
encontra respaldo no art. 7.º, caput, da Constituição Federal (cuja redação estabelece
que “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à
melhoria de sua condição social”), abrindo o catálogo de direitos dos trabalhadores, não
se restringindo ao texto constitucional e deixando nítida a preservação da cláusula de
não retrocesso social por meio da concepção da progressividade do direito e da
irreversibilidade ou da vedação da regressão social.
Diante dessas considerações, verifica-se que, no tocante aos direitos
fundamentais individuais e sociais,264 a Constituição de 1988 inseriu-os expressa e
262 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 116-117. 263 Sarlet não menciona esses dois exemplos, mas seguindo sua linha de raciocínio é possível identificá-
los como direitos sociais fora do catálogo, com status constitucional formal e material. 264 A inclusão dos direitos sociais (e demais direitos fundamentais) no rol das “cláusulas pétreas”,
segundo defende Sarlet, ocorre porque já no preâmbulo da Constituição Federal encontra-se menção explícita “no sentido de que a garantia dos direitos individuais e sociais, da igualdade e da justiça
135
implicitamente no seleto rol das assim designadas “cláusulas pétreas”, tornando-os
limites materiais ao poder de reforma constitucional (art. 60, § 4.º, inc. IV, da CF).
2.2.2.2 A paulatina redução das desigualdades regionais e sociais
No que concerne à redução das desigualdades sociais e regionais (arts.
3.º, III, e 170, VII, da CF), segundo José Afonso da Silva, tem relação com o
desenvolvimento nacional equilibrado, que possibilite elevar as condições de vida da
população, melhor distribuir a riqueza por qualquer método, mas especialmente pela
oferta de trabalho bem remunerado, o que, com isso, resultará na pretendida redução das
desigualdades sociais e regionais.265
Deveras, o que norteia a ideia referente à previsão constitucional quanto
à redução das desigualdades sociais e regionais, consoante Celso Ribeiro Bastos, é que
“Até mesmo por razões de unidade nacional não é possível tolerar-se o desnível de
constitui objetivo permanente” do Estado brasileiro. Além do mais, não há como descurar o fato de que a Lei Maior pátria consagra a ideia de que o Brasil constitui-se em um Estado Democrático e Social de Direito, o que se revela nitidamente em boa parte dos princípios fundamentais, sobretudo no art. 1.º, incisos I a III, assim como no artigo 3.º, incisos I, III e IV. Por conseguinte, diante destas breves considerações, constata-se, desde já, a íntima vinculação dos direitos fundamentais sociais com a concepção de Estado consagrada pela Constituição Federal, sem esquecer que tanto o princípio do Estado Social quanto os direitos fundamentais sociais integram os elementos essenciais, ou seja, a identidade da Constituição brasileira, motivo pelo qual os direitos sociais (assim como os princípios fundamentais) podem ser considerados – mesmo não estando previstos de maneira expressa no rol das “cláusulas pétreas” – “autênticos limites materiais implícitos à reforma constitucional”. Ademais, “Poder-se-á argumentar, ainda, que a expressa previsão de um extenso rol de direitos sociais no título dos direitos fundamentais seria, na verdade, destituída de sentido, caso o Constituinte, ao mesmo tempo, lhes tivesse assegurado proteção jurídica diminuída”. Além disso, uma interpretação que restringe a abrangência das “cláusulas pétreas” aos direitos fundamentais dispostos no art. 5.º da Constituição Federal “acaba por excluir também os direitos de nacionalidade e os direitos políticos, que igualmente não foram expressamente previstos no artigo 60, § 4.º, inc. IV, de nossa lei Fundamental”. Por fim, impende recordar que o papel precípuo das assim denominadas “cláusulas pétreas” é o de anteparar o aniquilamento dos elementos essenciais da Constituição, encontrando-se, neste sentido, a serviço da manutenção da identidade constitucional, composta precisamente pelas decisões fundamentais tomadas pelo constituinte. Isto se evidencia com particular inteligência no caso dos direitos fundamentais, já que sua supressão, ainda que tendencial, resultaria, em boa parte dos casos, em uma agressão (em maior ou menor grau) ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, da CF). Logo, uma interpretação restritiva da abrangência do art. 60, § 4.º, IV, da Constituição Federal não parece ser a melhor solução, ainda mais quando os direitos fundamentais (individuais e sociais), de forma inequívoca, integram o cerne da ordem constitucional brasileira (Ingo Wolfgang Sarlet, Os direitos sociais como direitos fundamentais: contributo para um balanço aos vinte anos da Constituição Federal de 1988, p. 15-16. Disponível em: <www.stf.jus.br/.../artigo_Ingo_DF_sociais_PETROPOLIS_final_01_09_08.pdf>. Acesso em: 30 jul. 2012.
265 José Afonso da Silva, Comentário contextual à Constituição, 6. ed., São Paulo: Malheiros, 2009, p. 48.
136
desenvolvimento existente entre as diversas regiões do País”. Destarte, “A preocupação
com o desenvolvimento mais acelerado das regiões menos desenvolvidas deve ser uma
diretriz fundamental da política do país”. Nesse passo, é imperioso notar, entretanto, que
esse empenho no desenvolvimento regional “não pode levar a um deslocamento tão
acentuado da poupança e do investimento para regiões menos desenvolvidas a ponto de
colocar em risco a continuidade do processo de desenvolvimentista nas regiões mais
avançadas”.266
Sem dúvida, o intuito do legislador constituinte originário foi o de
prever, na Lei Maior, mecanismos que se voltassem à redução das desigualdades
regionais a fim de anteparar a existência e continuidade de regiões em evidente
diferença de nível no que diz respeito a outras regiões do País, admitindo políticas
públicas vocacionadas a conferir tratamento distinto a certas regiões ou certas atividades
econômicas como forma de incentivar e implementar o desenvolvimento o mais
equilibrado possível.
2.2.2.3 A construção de uma sociedade marcada pela solidariedade e
pela justiça social
A construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3.º, I, CF),
nas lições de José Afonso da Silva, vem de inspiração buscada no Preâmbulo da
Constituição portuguesa. Segundo o autor, “‘Construir’, aí, tem sentido contextual
preciso. Reconhece que a sociedade existente no momento da elaboração constitucional
não era livre, nem justa, nem solidária”. Desse modo, “é signo linguístico que impõe ao
Estado a tarefa de construir não a sociedade – porque esta já existia –, mas a liberdade, a
justiça e a solidariedade a ela referidas”. É dizer: o que a Constituição pretende, com
esse desígnio fundamental, é que a República Federativa do Brasil edifique “uma ordem
de homens livres, em que a justiça distributiva e retributiva seja um fator de
dignificação da pessoa e em que o sentimento de responsabilidade e apoio recíprocos
solidifique a ideia de comunidade fundada no bem comum”. Dessa maneira, “Surge aí o
signo do Estado Democrático de Direito, voltado à realização da justiça social, tanto
266 Celso Ribeiro Bastos, Direito econômico brasileiro, São Paulo: Celso Bastos, 2000, p. 145-146.
137
quanto a fórmula liberdade, igualdade e fraternidade o fora no Estado liberal
proveniente da revolução Francesa”.267
E a exigência da ordem econômica fundada nos ditames da justiça
social (art. 170, caput, da CF), conforme esclarece o constitucionalista, está prevista de
modo incisivo na Constituição de 1988, para o fim de assegurar a todos existência
digna. Nesse sentido, a Carta Maior “Dá à justiça social um conteúdo preciso”. Ou
seja, contempla alguns princípios da ordem econômica – a defesa do consumidor, a
defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e pessoais e a busca
do pleno emprego – que permitem compreender que o “Capitalismo concebido há de
humanizar-se (se é que isso seja possível) com a efetivação da justiça social”.
Apresenta, “por outro lado, mecanismos na ordem social voltados à sua efetivação.
Tudo depende da aplicação das normas constitucionais que contêm essas determinantes,
esses princípios, esses mecanismos”.268
Em verdade, é necessário construir uma sociedade pautada na
democracia, que prime pela solidariedade e pela justiça social, pois só há
verdadeiramente democracia quando se respeitam esses valores, tão essenciais para a
realização dos direitos fundamentais.
2.2.2.4 O direito adquirido social e o princípio da vedação ao
retrocesso social
2.2.2.4.1 A controvérsia em torno do conceito de direito adquirido
Antes de adentrar propriamente no estudo do direito adquirido social e
do princípio da vedação ao retrocesso social, será feita uma breve exposição do instituto
do direito adquirido, na sua formulação tradicional, voltada à esfera individualista, para
que, após, se possa tratar do direito adquirido social, até mesmo para que se tenha um
comparativo entre suas acepções (individual e social).
267 Silva, Comentário contextual à Constituição, p. 46-47. 268 Idem, ibidem, p. 710.
138
Pois bem, o direito adquirido tem sido abordado tradicionalmente sob
um prisma essencialmente individualista, por meio de uma perspectiva própria da seara
privada, isto é, por uma visão desenvolvida mais de acordo com a ótica civilista e a
teoria geral do direito (teoria esta que, consoante afirmam Marcus Orione Gonçalves
Correia e Érica Paula Barcha Correia, vem sendo tratada como teoria geral
nomeadamente do direito privado).269 E nesse campo privatístico a doutrina ainda não
precisou com exatidão o seu conceito.
No que diz respeito ao conceito de direito adquirido, dois doutrinadores,
com suas respectivas teorias, influenciaram grandemente os legisladores e os estudiosos
do tema. Um deles foi Carlo Francesco Gabba, jurista italiano, defensor da clássica
teoria subjetiva do direito adquirido. O outro foi o francês Paul Roubier e sua teoria
objetiva do instituto. O curioso é que também à época desses autores o tema era gerador
de controvérsias.
Gabba entende que sempre que, houver um conflito de leis no tempo, a
lei nova poderá retroagir desde que se respeite o direito adquirido, que ele conceitua
como: “1) consequência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo no
qual o fato foi realizado, ainda que a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado
antes da atuação de uma lei nova a respeito do mesmo”; e que “2) nos termos da lei sob
o império da qual ocorreu o fato de onde se originou, passou imediatamente a fazer
parte do patrimônio de quem o adquiriu”.270
Já Roubier prefere utilizar a expressão “situação jurídica”, que crê
espelhar superioridade em relação à designação “direito adquirido”, na medida em que
aquela designação, segundo concebe, não tem caráter subjetivo. A teoria de Roubier
fundamenta-se na diferenciação entre efeito retroativo e efeito imediato. O primeiro
constituir-se-ia na aplicação da lei ao passado, enquanto o segundo seria a aplicação da
lei ao presente. Nesse sentido, se o intento fosse o de aplicar a lei às situações
concretizadas (facta praeteria), ela seria retroativa; se a intenção fosse a de aplicá-la às
269 Marcus Orione Gonçalves Correia e Érica Paula Barcha Correia, Curso de direito da Seguridade
Social, 5. ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 91. 270 Carlo Francesco Gabba, Teoria della Retroattivitá delle Leggi, 3. ed., Torino: UTET, 1891, v. 1, p.
190-191.
139
situações em andamento (facta pendentia), seria indispensável delimitar a fronteira que
aparta o que é precedente à modificação do legislador e o que é posterior a essa
alteração, permitindo, dessa maneira, que se determine a situação em que a nova lei
poderia ter incidência. No que concerne às situações futuras (facta futura), de forma
evidente a lei não poderia ser retroativa.271
Deveras, a matéria continua suscitando intensas discussões e fortes
polêmicas, especialmente no campo doutrinário, muito mais porque a Constituição de
1988 não deu a significação do que seja direito adquirido, embora tenha adotado o
princípio da irretroatividade das leis como regra em respeito a esse instituto.272
Destarte, o legislador infraconstitucional assumiu a responsabilidade de
conceituar o instituto. Assim, encontra-se na Lei de Introdução ao Código Civil (LICC)
o conceito de direito adquirido, em seu art. 6.º, § 2.º. Entretanto, essa tarefa avocada
pelo legislador da LICC acabou por contrariar parte da doutrina, como, destacadamente,
Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, que tecem crítica à hipótese de normas
infraconstitucionais conceituarem termos constitucionais, sobretudo quando são
empregados para assegurar direitos e garantias individuais, como o caso em tela, uma
vez que, nessa empreitada, corre-se o risco de apoucar o conceito ou de reduzir sua
grandeza constitucional.
Sob essa ótica, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, em obra
conjunta, explicam seu entendimento asseverando que, quando o constituinte quis
proteger o direito adquirido (valendo o mesmo para o ato jurídico perfeito e à coisa
julgada) “contra as investidas do legislador é porque pressupôs que a expressão ‘direito
adquirido’, de per si, trouxesse um teor de significação não passível de ser restringido
pelo legislador ordinário”. Nesse passo, “Não haveria nexo lógico algum em se tutelar o
direito adquirido, mas, simultaneamente, deixar-se exclusivamente à lei comum o papel
de dizer quando o direito adquirido ocorre.” Com efeito, “Em síntese, este existe, ou
271 Paul Roubier, Droits Subjectif et Situation Juridique, Paris: Dalloz, 1933, p. 177-181. 272 Carlos Roberto Gonçalves, apoiando-se no jurista italiano Carlo Francesco Gabba, assevera que a
Constituição Federal e a Lei de Introdução ao Código Civil teriam adotado o princípio da irretroatividade das leis como regra, em respeito ao direito adquirido (Carlos Roberto Gonçalves, Direito civil, São Paulo: Saraiva, 2002, v. 1, p. 27).
140
deixa de existir, segundo critérios que não remanescem ao alcance da norma
subconstitucional interferir, ao menos para reduzir a sua dimensão constitucional”.273
Embora tenham razão os doutrinadores, de todo modo, a LICC
(Decreto-lei 4.657, de 4 de setembro de 1942, com a redação determinada pela Lei
3.238, de 1.º de agosto de 1957) conceituou o instituto do direito adquirido da seguinte
forma:
Art. 6.º [...]
§ 2.º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.
Da análise da redação do citado preceptivo legal é possível verificar que
é a concepção de Gabba que norteia sua conceituação. No entanto, embora a Lei de
Introdução ao Código Civil tenha estabelecido citado conceito de direito adquirido, a
doutrina entende que tal definição não tem muita utilidade no que diz respeito aos seus
precisos contornos.
Consoante as lições de José Eduardo Martins Cardozo, poder-se-ia
dizer, sem exagerar, “que aproximadamente uma centena de formulações conceituais
diversas se tornaram públicas através dos tempos e, em muitos casos, sem qualquer
possibilidade de harmonização de aspectos havidos como essenciais”. Nesses termos,
ainda hoje, “a exata definição do que sejam ‘direitos adquiridos’ consiste em um dos
principais problemas daqueles que optam por trilhar este peculiar campo de abordagem
teórica do fenômeno da intertemporalidade jurídica”.274
Contudo, mesmo sendo árdua a tarefa de conceituar o direito adquirido,
os autores brasileiros lançaram-se ao desafio de elaborar um conceito sobre o tema
nitidamente voltado à dimensão individual do instituto.
273 Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em
5 de outubro de 1988, São Paulo: Saraiva, 1989, v. 2, p. 188. 274 José Eduardo Martins Cardozo, Da retroatividade da lei, São Paulo: RT, 1995, p. 113.
141
No entanto, adverte-se que, não sendo a perspectiva do direito adquirido
tradicional (individual) o foco que se pretende dar quanto à abordagem do tema, será
feita a exposição da conceituação realizada por alguns doutrinadores sobre essa acepção
do direito adquirido, sem o intuito de aprofundar-se muito na questão, apenas o
suficiente para evidenciar a distinção do viés individualista do instituto da sua dimensão
social. Nessa toada, o próximo tópico tratará desses dois aspectos distintos.
2.2.2.4.2 O direito adquirido individual e social
Destarte, importa principiar a análise com a doutrina do direito
adquirido na sua visão clássica (individual).
Segundo De Plácido e Silva, o direito adquirido retira seu motivo de
existir “dos fatos jurídicos passados e definitivos, quando o seu titular os pode exercer”.
Todavia, “não deixa de ser adquirido o direito, mesmo quando seu exercício dependa de
um termo prefixo ou de uma condição preestabelecida inalterável ao arbítrio de
outrem”. Assim sendo, sob o prisma da retroatividade das leis, não apenas são
considerados adquiridos “os direitos aperfeiçoados ao tempo em que se promulga a lei
nova, como os que estejam subordinados a condições ainda não verificadas, desde que
não se indiquem alteráveis ao arbítrio de outrem”.275
Caio Mário da Silva Pereira conceitua direito adquirido como aquele
que, “in genere, abrange os direitos que o seu titular ou alguém por ele possa exercer,
como aquele cujo começo de exercício tenha termo prefixo ou condição preestabelecida,
inalterável ao arbítrio de outrem”. Assim sendo, “São os direitos definitivamente
incorporados ao patrimônio do seu titular, sejam os já realizados, sejam os que
simplesmente dependem de um prazo para o seu exercício, sejam ainda os subordinados
a uma condição inalterável ao arbítrio de outrem”. Ou seja, “A lei nova não pode atingi-
los, sem retroatividade”.276
275 De Plácido e Silva, Vocabulário jurídico, 8. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 77-78. 276 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, Rio de Janeiro: Forense, 1961, v. 1, p. 125.
142
Celso Bastos e Ives Gandra Martins entendem que “O direito adquirido
consiste na faculdade de continuar a extraírem-se efeitos de um ato contrário aos
previstos pela lei atualmente em vigor, ou, se preferirmos, continuar-se a gozar dos
efeitos de uma lei pretérita mesmo depois de ter ela sido revogada”.277
Manoel Gonçalves Ferreira Filho doutrina que para um direito ser
considerado adquirido ele deve apresentar duas características. A primeira é de que
todos os requisitos que a lei exige devem estar preenchidos, ou cumpridos. A segunda é
que sobrevenha uma das seguintes hipóteses: “a) o direito já poder ser exercido; ou b)
ter ele termo inicial de exercício prefixado; ou c) estar sujeito à condição que não pode
ser alterada por outra pessoa”.278
Para José Eduardo Martins Cardozo,
[...] a regra do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, nada mais é do que um princípio que assegura a sobrevivência da lei velha ou, em outras palavras, a ultratividade desta. Com efeito, nestas hipóteses, mesmo após o término de sua vigência, a lei revogada continua a disciplinar tais situações ao longo do próprio período de vigência da lei nova. O direito antigo “sobrevive”, em última instância, ante a impossibilidade do novo diploma vir a prejudicar estas realidades pré-constituídas.279
E José Afonso da Silva explana que o direito adquirido é a
transformação do direito subjetivo por deixar de ser exercido, permanecendo não
obstante o advento de lei nova.
Nas suas palavras:
Para compreendermos um pouco melhor o que seja o direito adquirido, cumpre relembrar o que se disse acima sobre o direito subjetivo: é um direito exercitável segundo a vontade do titular e exigível na via jurisdicional quando seu exercício é obstado pelo sujeito obrigado à prestação correspondente. Se tal direito é exercido,
277 Bastos e Martins, Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988, p.
193. 278 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Anotações sobre o direito adquirido do ângulo constitucional,
Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Guarulhos, Guarulhos, v. 1, p. 197, 1999. 279 Cardozo, Da retroatividade da lei, p. 326.
143
foi devidamente prestado, tornou-se situação jurídica consumada (direito consumado, direito satisfeito, extinguiu-se a relação jurídica que o fundamentava). Por exemplo, quem tinha o direito de se casar de acordo com as regras de uma lei, e casou-se, seu direito foi exercido, consumou-se. A lei nova não tem o poder de desfazer a situação jurídica consumada. A lei nova não pode descasar o casado porque tenha estabelecido regras diferentes para o casamento. Se o direito subjetivo não foi exercido, vindo a lei nova, transforma-se em direito adquirido, porque era direito exercitável e exigível à vontade de seu titular. Incorporou-se ao seu patrimônio, para ser exercido quando lhe convier. [...]. Vale dizer – repetindo: o direito subjetivo vira direito adquirido quando lei nova vem alterar as bases normativas sob as quais foi constituído.280
Diante dos conceitos vistos acima, verifica-se a manifesta influência do
conceito proposto por Gabba (que, por sua vez, influenciou a disposição contida na
LICC sobre o direito adquirido, como se viu). Nesse sentido, segundo Correia e Correia,
constata-se que o conceito proposto pelo jurista italiano “vem sendo o parâmetro, com
algumas poucas ressalvas, admitido pela doutrina pátria”.281
Contudo, esses doutrinadores censuram o conceito de direito adquirido
enunciado por Gabba. Para eles, em realidade “a preocupação do autor, bem como dos
civilistas e dos doutrinadores da teoria geral do direito, refere-se à proteção específica
do indivíduo, cuja incorporação de direitos ao patrimônio jurídico, na vigência de
determinada lei, deve ser preservada”. E lembram que, “em se tratando de obra escrita
no final do século XIX, nada mais natural que sofresse um forte influxo do liberalismo
que então dominava a concepção de mundo – inclusive no universo do direito”. Com
isso, a ideia básica “seria a de que o Estado de Direito, ao qual estaria ligado
intimamente o liberalismo, com a conservação dos efeitos da lei e a incorporação dos
direitos nela previstos de forma definitiva e incorruptível”, prestar-se-ia à “maximização
da proteção do indivíduo, mormente em face dos eventuais abusos do Estado”. Destarte,
“incorporado determinado direito, segundo a lei vigente, ao patrimônio jurídico da
pessoa, evita-se o despotismo de se despojar das pessoas aquilo que havia ingressado no
seu patrimônio a partir da normatização vigente”. Essa visão permaneceu intacta,
280 José Afonso da Silva, Comentário contextual à Constituição, 2. ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p.
133-134. 281 Marcus Orione Gonçalves Correia e Érica Paula Barcha Correia, Curso de direito da seguridade
social, 5. ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 92.
144
mesmo com o advento dos novos modelos de Estado, nas distintas concepções dos
civilistas e estudiosos da teoria geral do direito no Brasil. Assim sendo, nem o
surgimento do Estado social ou do Estado Democrático de Direito foram suficientes, em
terras pátrias, para submetê-la a uma nova apreciação.282
É de ressaltar, na esteira dessas ideias, que a visão tradicional do direito
adquirido, por conseguinte, deve se abrir para comportar, de igual modo, a dimensão
social desse instituto, na medida em que a ótica “do direito adquirido do século XIX,
obviamente, não deve ser aquela que deve permear o fenômeno para o século XXI”.283
Se se fala em direitos de segunda dimensão, para fazer alusão aos direitos fundamentais
sociais, desenvolvidos no Estado de Bem-Estar, também é possível se referir a uma
segunda dimensão do direito adquirido ou direito adquirido social, condizente com o
modelo de Estado Social e com os postulados básicos da Constituição de 1988. No
entanto, ainda mais, o direito adquirido social suplanta a abrangência e proteção aos
direitos sociais, constituindo-se em amparo a um estágio evolutivo de conquistas de
uma dada sociedade.
Dentro desse contexto, abraça-se a crítica feita por Correia e Correia,
que se revela de todo pertinente, na medida em que é plenamente defensável conceber
um novo conceito acerca do direito adquirido, conceito este que envolva a evolução do
Estado moderno, que, conforme exposto no capítulo precedente, a partir do Estado de
Bem-Estar, transpôs o plano do individual para o plano social, o que significou um
marco para o desenvolvimento não só dos direitos sociais, em que se ultrapassou a seara
individualista (do direito privado), como também um marco ao plexo de conquistas
alcançadas pela sociedade, incorporadas ao ordenamento jurídico, dentro de um plano
evolutivo, como expressão civilizatória dessa sociedade. Nesse sentido, se o modelo
estatal brasileiro que se vivencia hoje é de um Estado neossocial, não se pode mais
282 Correia e Correia, Curso de direito da seguridade social, p. 93. 283 Idem, ibidem, p. 96. Nesse diapasão, Correia e Correia asseveram: “[...] parece óbvio que há de
rechaçar uma leitura exclusivamente individualista do fenômeno do direito adquirido, já que historicamente o componente social também passou a fazer parte do constitucionalismo – tendo comovido, inclusive, a interpretação de todos os conceitos constitucionais, inclusive aqueles forjados tipicamente no advento do liberalismo. Logo, os direitos fundamentais de primeira geração (dentre estes os direitos adquiridos) devem ser vislumbrados também a partir dos influxos que os direitos de segunda geração têm na sua atual situação. O olhar de quem busca entender conceitos tipicamente talhados no liberalismo deve se voltar, nos dias de hoje, para o século em que estamos inseridos (e não para o século XIX, ao qual sequer pertencemos)” (Idem, p. 96).
145
conceber o instituto do direito adquirido nos moldes originários que inspiraram a sua
noção. No atual estágio, a interpretação que deve dar o tom ao art. 5.º, XXXVI, da
Constituição Federal é a interpretação em sentido lato, uma vez que o momento
contemporâneo requer uma releitura do aludido dispositivo constitucional, em que se
torna necessário contemplar a ideia de que a lei não deverá prejudicar o direito
adquirido individual e social.
Por conseguinte, ao ultrapassar o aspecto restrito, que se refere tão só ao
indivíduo, o instituto do direito adquirido deve ser concebido como não somente aquele
que se “incorporou ao patrimônio jurídico do seu titular, em vista da incidência da
norma aplicável à época do fato (o que se pode denominar direito adquirido
individual)”. Deve-se ir mais além, considerando-o, “também, a partir da perspectiva da
sociedade, como tudo o que incorporou o patrimônio jurídico desta, em vista da luta
diária pela aquisição de seus direitos (o que se chama, neste estudo, de direito adquirido
social – termo herdado de Anníbal Fernandes)”.284 Deveras, “muito mais do que apenas
os direitos sociais, todos os direitos fundamentais que incorporaram o patrimônio
jurídico de certo povo, como conquista civilizatória inconteste deste, devem ser
preservados no plano constitucional”.285 Dessa maneira, e assim compreendido,
284 Correia e Correia, Curso de direito da seguridade social, p. 100. No tocante ao assunto do direito
adquirido, especialmente em matéria de Previdência Social, a melhor definição é de Anníbal Fernandes, por ocasião do 10.º Congresso Brasileiro de Previdência Social, realizado em São Paulo, no ano de 1997. Apregoou na ocasião que: “Qualquer alteração da lei ou emenda à Carta não pode sobrepor-se ao respeito aos direitos já adquiridos ou àqueles em formação. Grife-se que, na maioria dos casos, o que se apelida expectativa de direito é direito em formação. Integra o tipo de direito adquirido, porque este é garantido contra mudança unilateral, motivada pelo arbítrio de outrem (inclusive lei etc.) [...]”. Tecendo críticas vorazes às reformas na Previdência Social, Fernandes bem se expressou ao afirmar que: “O que se faz é tratar de direito coletivo e/ou direito social (seguridade, previdência), como se fora fazenda, gado nelore, quando não significam direitos de primeira geração”. E, antes de finalizar sua intervenção, asseverou que: “O equilíbrio da sociedade produzido pelos direitos sociais, nomeadamente os previdenciários, decorre do respeito ao direito em formação, quanto mais ao já completado. Se fulano trabalha e contribui, não se modifique o sistema legal para surrupiar-lhe o benefício [...]” (Sérgio Pardal Freudenthal, Regras de Transição e a Aposentadoria por Idade. Disponível em: <http://www.pardaladvocacia.com.br/site/ html/content/artigos/ Detalhe.aspx?id=17&pag=1>. Acesso em: 2 fev. 2012).
285 Correia e Correia, Curso de direito da seguridade social, p. 101. Daí dizerem os autores que com essa afirmação não se pretende engessar o direito, pois, em verdade, o mesmo “continuará com o seu processo no sentido da evolução, no âmbito normativo restrito daquela sociedade, de novas conquistas civilizatórias expressas na sua Constituição – que, às vezes, até mesmo já se encontram consolidadas para outros povos” (Idem, ibidem, p. 101).
146
verifica-se que se trata “da preservação de patamares civilizatórios, incorporados às
relações sociais por meio do direito, que não podem mais ser objeto de retrocesso”.286
Nesse diapasão, se o nível do patrimônio jurídico conquistado pela
sociedade deve ser preservado, visto que passou a integrar o patrimônio da coletividade,
como resultado dos progressos alcançados pela humanidade em sua evolução social, é
possível entender que o direito adquirido social é extraído do art. 5.º, XXXVI, da
Constituição Federal, tomando-se por base a acepção lata do direito adquirido,
conforme já destacado, a fim de ser um efetivador da segurança social. Se assim não for,
no plano dos direitos de segunda dimensão, que fazem parte do direito social,
“diversamente dos ramos do direito privado, o impacto do descumprimento do que foi
inicialmente acordado pode, até mesmo pela maior proporção numérica dos envolvidos,
trazer grandes prejuízos à sociedade”.287
Diante do exposto, é válido defender que o princípio da proibição do
retrocesso social está presente na Constituição por intermédio do instituto do direito
adquirido social. Além desse fundamento, aludido primado pode ser inferido também
das previsões constitucionais vislumbradas por Derbli, que assinalam no sentido da
progressiva ampliação dos direitos fundamentais da sociedade (art. 5.º, § 2.º, e art. 7.º,
caput), visando à paulatina redução das desigualdades regionais e sociais e à
construção de uma sociedade marcada pela solidariedade e pela justiça social (art. 3.º,
I e III, e art. 170, caput, VII e VIII).288 E, somando-se a isso, podem-se ter também, por
286 Correia e Correia, Curso de direito da seguridade social, p. 101. Segundo os autores, é possível
pensar assim, v. g., “dentro de uma situação de não ruptura – em que há atuação de poder constituinte originário apenas decorrente de mera evolução social, e não revolução ou contrarrevolução –”, em que “não haveria como se admitir que se constasse de um texto constitucional o direito de um homem submeter o outro à escravidão”. Obviamente, “O fim da escravidão foi uma conquista civilizatória, incorporada culturalmente pelo direito, que não pode ser mais despojada do direito constitucional” (Idem, ibidem, p. 101).
287 Idem, p. 103. 288 Construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3.º, I, CF), segundo José Afonso da Silva, vem
de inspiração buscada no Preâmbulo da Constituição portuguesa. Segundo o autor, “‘Construir’, aí, tem sentido contextual preciso. Reconhece que a sociedade existente no momento da elaboração constitucional não era livre, nem justa, nem solidária. Portanto, é signo linguístico que impõe ao Estado a tarefa de construir não a sociedade – porque esta já existia –, mas a liberdade, a justiça e a solidariedade a ela referidas. Ou seja: o que a Constituição quer, com esse objetivo fundamental, é que a República Federativa do Brasil construa uma ordem de homens livres, em que a justiça distributiva e retributiva seja um fator de dignificação da pessoa e em que o sentimento de responsabilidade e apoio recíprocos solidifique a ideia de comunidade fundada no bem comum. Surge aí o signo do Estado Democrático de Direito, voltado à realização da justiça social, tanto
147
fundamento do primado do não retrocesso, o Estado Democrático e Social de Direito e
suas diretrizes essencialmente voltadas ao plano social.
Pois bem, uma vez alcançados, por ora, os fundamentos constitucionais
do princípio da vedação ao retrocesso social, com destaque para o direito adquirido
social, já que importava expor a faceta do instituto condizente com o modelo de Estado
(neo)social, é de relevo examinar o direito adquirido individual e social em face de
emenda constitucional, e, após, ainda que brevemente, as diversas esferas de proteção
(individual e social) no tocante a referido instituto.
2.2.2.4.3 Direito adquirido individual e social em face de emenda
constitucional
No que concerne ao poder de reforma, Canotilho explica a doutrina de
Sieyés, que distinguiu o poder constituinte dos poderes constituídos. Estes últimos – os
poderes constituídos – consistem no “poder de modificar a constituição em vigor
segundo as regras e processos nela prescritos, e movem-se dentro do quadro
constitucional criado pelo poder constituinte”. Nesse viés, o poder de revisão
constitucional (também denominado de poder constituinte derivado, poder de revisão,
poder constituinte em sentido impróprio) é, “consequentemente, um poder constituído
tal como o poder legislativo”. Em verdade “o poder de revisão constitucional só em
quanto a fórmula liberdade, igualdade e fraternidade o fora no Estado liberal proveniente da Revolução Francesa”. Já a redução das desigualdades sociais e regionais (arts. 3.º, III, e 170, VII, da CF) tem relação com “[...] o desenvolvimento nacional equilibrado, que proporcione elevação das condições de vida da população, a melhor distribuição da riqueza por qualquer método, mas especialmente pela oferta de trabalho bem remunerado, resultará na pretendida redução das desigualdades sociais e regionais”. E a exigência da ordem econômica fundada nos ditames da justiça social (art. 170, caput, da CF) está prevista de modo incisivo na Constituição de 1988, para o fim de assegurar a todos existência digna. Nesse sentido, a Carta Maior “Dá à justiça social um conteúdo preciso. Preordena alguns princípios da ordem econômica – a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e pessoais e a busca do pleno emprego – que possibilitam a compreensão de que o Capitalismo concebido há de humanizar-se (se é que isso seja possível) com a efetivação da justiça social. Traz, por outro lado, mecanismos na ordem social voltados à sua efetivação. Tudo depende da aplicação das normas constitucionais que contêm essas determinantes, esses princípios, esses mecanismos” (Silva, Comentário contextual à Constituição, 6. ed., p. 46-48).
148
sentido impróprio se poderá considerar constituinte; será, quando muito, ‘uma paródia
ao poder constituinte verdadeiro’”.289
Raymundo Faoro esclarece que “o poder revisor, que se expressa na
emenda, não se confunde, formal ou materialmente, com o Poder Constituinte”, pois “A
principal distinção entre ambos não depende de uma demonstração, graças ao seu apelo
axiomático: o titular do Poder Constituinte não será nunca o titular do poder de
emenda”. E, desse modo, “O poder reformador, por ser um poder instituído ou derivado,
se baliza necessariamente pela letra e pela significação do documento que pretende
alterar”.290
Segundo Michel Temer, o poder de reforma291 também cria normas
constitucionais; contudo, no caso, “a produção, dessa normatividade não é emanação
direta da soberania popular, mas indireta, como também ocorre no caso da formulação
da normatividade secundária (leis, decretos, sentenças judiciais)”. Destaca o autor que,
na hipótese “da edição de lei, por exemplo, também há derivação indireta da soberania
popular”. Entretanto, não há falar em um “Poder Constituinte Originário”. Para Temer,
é “mais conveniente reservar a expressão ‘Poder Constituinte’ para o caso de emanação
normativa direta da soberania popular”. O que aí não se enquadrar será, então, fixação
de competência: “a reformadora (capaz de modificar a Constituição); a ordinária (capaz
de editar a normatividade infraconstitucional). É apropriado, assim, denominar a
289 J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, 6. ed., Coimbra: Almedina, 1993, p. 95 290 Raymundo Faoro, Assembleia Nacional Constituinte: a legitimidade recuperada, São Paulo:
Brasiliense, 1981, p. 75. 291 Importa aclarar que podem existir dois tipos de poder de reforma, quais sejam o poder de revisão e o
poder de emenda. O primeiro é um poder extraordinário, em que há data prevista para a sua ocorrência. O segundo é um poder ordinário, que comporta atuação a qualquer momento, desde que observados os limites temporais acaso instituídos e obedecidos todos os demais limites. Ainda, a emenda constitucional seria uma modificação pontual e a revisão uma reforma mais abrangente para se alterar a Constituição (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Aspectos do direito constitucional contemporâneo, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 77). O Poder de Revisão no Brasil veio previsto no art. 3.º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (“A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral”), e após o seu exercício ele acabou exaurindo-se. Seu trabalho resultou nas emendas de revisão promulgadas (EC 1/1994 a 6/1994). Já o poder de emenda encontra-se previsto nos arts. 59 e 60 da Constituição da República Federativa do Brasil.
149
possibilidade de modificação parcial da Constituição como competência
reformadora”.292
Na esteira dessa linha de pensamento – em que se deve deixar a
designação de “Poder Constituinte” apenas para o Poder Constituinte Originário, pois
tão somente este é fruto direto da vontade popular, concordando com Temer que no
caso da possibilidade de alteração em parte da Constituição o que existe é o exercício de
competência reformadora –, é válido afirmar que a emenda constitucional, como
emanação indireta da soberania popular, está sujeita às balizas impostas pelo direito
adquirido social, devendo respeitar e observar referido instituto.
Na medida em que a Lei Fundamental de 1988 agasalha o direito
adquirido social, como acima exposto, em seu art. 5.º, inciso XXXVI, integrando o rol
dos direitos e garantias fundamentais, o mesmo não pode ser abolido por intermédio de
emenda constitucional (art. 60, § 4.º, CF), dado que as conquistas progressivas
alcançadas pela sociedade passam a constituir seu patrimônio de forma que o poder de
emendar a Constituição não pode infringir tal preceito, devendo respeitar as diretrizes
traçadas pelo Poder Constituinte.
Desse modo, as emendas, “Para serem válidas, estão referenciadas à
própria Constituição que modificam e é nela que encontram a fonte de validade para
promoverem as alterações que façam”. Por conseguinte, “é porque a Constituição
permite ser tocada, mexida, que as emendas constitucionais podem ser validamente
produzidas”.293 Infere-se, por conseguinte, que as reformas constitucionais, fruto de
emendas, para serem válidas, devem ficar restritas aos “limites ontológicos daquilo que
é uma simples emenda”,294 pois do contrário extrapolariam os limites materiais e
formais explícitos e implícitos da nossa Lei Maior.295 E, por via de consequência,
feririam, entre outros direitos e garantias, o direito adquirido individual e social.
292 Michel Temer, Elementos de direito constitucional, 22. ed., 2.ª tiragem, São Paulo: Malheiros, 2008,
p. 36. 293 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 331-332. 294 Idem, ibidem, p. 332. 295 Sobre os limites ao poder de emendar a Constituição, Bandeira de Mello ensina que: “No caso da
Constituição de 1988, são limites materiais os que constam do art. 60 § 4.º, no qual se estabelece que
150
Necessário ressaltar e esclarecer, de outro canto, que, para a crítica que
se possa fazer de que a limitação da competência reformadora por normas estabelecidas
pelo Constituinte Originário significaria conferir um sumo poder à geração constituinte
e recusá-lo às demais, responde-se com a noção de pré-compromisso constitucional.
Explica-se: “quando o povo é chamado a atuar ativamente no processo político
(qualidade intrínseca à deliberação constitucional)”, ou seja, nas ocasiões em que
ocorrem “momentos de política constitucional (constitutional politics), verifica-se não
apenas o exercício de uma cidadania ativa”, mas, notadamente, “que o povo logra se
desvencilhar da tendência natural de perseguir os seus interesses particulares e
imediatos, de agir passional e irracionalmente, atuando, ao revés, tendo em vista a
realização do bem comum e de expectativas de longo prazo”. É dizer: “nos raros
momentos constitucionais, o ambiente de insegurança e de incerteza que os cerca torna
mais factível a concretização da aspiração republicana da virtude ética dos cidadãos em
sua atuação política”. De tal modo, referido processo deliberativo eticamente superior
põe a salvo “princípios básicos de justiça do alcance de maiorias conjunturais, as quais,
atuando no âmbito da política ordinária (normal politics), estarão sujeitas a sucumbir à
atuação autointeressada, em prejuízo aos direitos das minorias”.296
Vê-se, por conseguinte, que os pré-compromissos constitucionais
consistem “em estratégias de autoincapacitação, extraídas dos pré-compromissos
‘não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais’”. Já os limites formais são aqueles que estão previstos tanto no § 1.º do mesmo artigo quanto no do § 5.º. No § 1.º está disposto que “A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio”. O § 5.º, por sua vez, contém a seguinte disposição: a “matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de proposta na mesma sessão legislativa”. Ressalta-se que “Uma segunda ordem de limites, também material e formal, é a dos limites implícitos que resultam do Texto Constitucional ou advêm da própria natureza essencial daquilo que é uma emenda constitucional” (Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 333) (destacou-se).
296 Brandão, Rigidez constitucional e pluralismo político, Revista Direitos Fundamentais e Justiça, n. 5, p. 86, out.-dez. 2008. O autor diz que a noção de pré-compromisso constitucional foi desenvolvida por Jon Elster, e se evidencia no conto de Ulisses e as Sereias, narrado por Homero no Livro XII da Odisseia, consoante o qual, Ulisses, ao ser avisado por Circê de que, se passasse pela ilha das sereias, não conseguiria deixar de ceder ao canto irresistível desses seres mitológicos, deu ordens aos seus subordinados que o amarrassem ao mastro e lhe tapassem os ouvidos com cera, possibilitando, dessa maneira, que resistisse à tentação. Por conseguinte, nas palavras de Sarmento, “o pré-compromisso de Ulisses, que limitou o poder de sua vontade no futuro para evitar a morte, poderia ser comparado àquele que se sujeita o povo quando dá a si uma constituição, e limita seu poder de deliberação futura, para evitar que, vítima de suas paixões e fraquezas momentâneas, possa pôr em risco o seu destino coletivo” (Idem, ibidem, p. 91).
151
individuais”,297 por intermédio dos quais “um indivíduo ou um povo, em um momento
de lucidez, afasta a possibilidade de adotar decisões míopes a que estaria
tendencialmente sujeito em momentos de debilidade da vontade ou de racionalidade
distorcida”, conseguindo, dessa maneira, “afastar-se de tentações ou fraquezas e, via de
consequência, atingir os seus verdadeiros interesses”.298 Nesse passo, aplicando os pré-
compromissos individuais ao domínio dos limites materiais ao poder de reforma,
sustenta-se que (após o povo ter exercido o poder constituinte originário) a competência
reformadora não poderá retirar determinados conteúdos constitucionais essenciais,
como os direitos fundamentais da Constituição, pois é vital perenizar a tutela jurídica
destas prerrogativas inerentes à dignidade humana, conferidas dantes pelo Poder
Constituinte.299
Nota-se, portanto, que o pré-compromisso constitucional, que protege
de qualquer insanidade futura os direitos fundamentais dos cidadãos perante uma
emenda à Constituição, é mais um forte indicativo de que a competência reformadora
deve limitar-se a modificar tão somente aquilo que o constituinte originário lhe
possibilitou, preservando-se o núcleo fundamental protegido pela Lei Maior.
De outra banda, interessa advertir, todavia, sobre a existência do
pensamento que defende a tese de que o direito adquirido ficaria protegido de qualquer
ofensa praticada por meio de lei, mas que nada poderia em face do advento de uma
emenda constitucional, na medida em que o inciso XXXVI do art. 5.º estabelece que “a
lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”;
procede-se, na hipótese, a uma interpretação literal e stricto sensu do texto
constitucional.
297 Por exemplo, na hipótese de uma pessoa com dificuldades para acordar cedo, coloque seu
despertador longe da cama para evitar que o desligue e continue a dormir (Brandão, Rigidez constitucional e pluralismo político, p. 91, nota 17).
298 Idem, ibidem, p. 91, nota 17. 299 Rodrigo Brandão, Direitos fundamentais, cláusulas pétreas e democracia: uma proposta de
justificação e de aplicação do art. 60, § 4.º, IV, da CF/88, Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, n. 10, p. 15, abr.-maio-jun. 2007. Disponível em: <www.direitodoestado.com.br/rede.asp>. Acesso em: 20 maio 2012.
152
Não obstante essa interpretação em sentido estrito ou formal, esse tem
sido o entendimento asilado pelo Supremo Tribunal Federal.300
Afirma a Corte mais alta do País que:
[...]. A Constituição é lei em sentido material; em sentido formal, excede às leis ordinárias, gozando de supralegalidade, vale dizer, eficácia inaugural e sobranceira na ordem jurídica. A Constituição não conhece limites anteriores ou posteriores aos constantes dos seus próprios comandos. Disto se vale a Constituição tanto para atribuir quanto para retirar a base de validade de disposições legislativas ordinárias e limitar ou ampliar situações jurídicas individuais, não ficando de modo algum condicionada pelas normas infraconstitucionais que lhe desdobram o conteúdo, sejam ou não declaratórias de direitos ou obrigações. [...].301
No entanto, embora se deva reconhecer o devido peso da posição
acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, diverge-se desse pensamento, visto que o
termo lei na disposição estabelecida pela Lei Maior há que ser entendido na sua acepção
lata, englobando também a emenda à Constituição, posto que uma emenda é
decorrência da competência reformadora da Carta Magna. Logo, é condicionada pelo
Poder Constituinte e, por conseguinte, lhe é vedado ferir a proteção que este poder 300 Paulo Modesto colaciona, em artigo referente ao tema, diversos julgados do Supremo Tribunal
Federal em que se afirma expressamente ser inadmissível opor direito adquirido a normas da Constituição Federal, resultem ou não de emendas constitucionais (Paulo Modesto, Reforma administrativa e direito adquirido, Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. 1, n. 8, nov. 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 7 fev. 2008). Transcrevem-se aqui os seguintes:
“[...] Quando sucede alteração constitucional que modifique a estrutura de um instituto jurídico, não se tem como admitir a persistência das leis ordinárias que se encontrem a contraditar a nova estrutura, pois, no pormenor, é a vontade inovadora do constituinte que prevalece. Recurso extraordinário provido” (STF, RE 84.797-SP, Rel. Min. Antonio Neder, j. 10.08.1976, RTJ 80/944) (grifou-se).
“[...] Não se há de invocar direito adquirido contra o que posto induvidosamente na nova ordem constitucional, em modificação não apenas do texto mas do próprio sistema, até porque as garantias do direito adquirido se dirigem à lei ordinária e não à Constituição. [...]” (STJ, REsp 506/RJ, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo, j. 25.09.1989, R. Sup. Trib. Just., Brasília, 2(06)/p. 360, 1990) (grifou-se).
“Mandado de segurança. Servidor público. Acumulação de cargos. Constituição Federal de 1988. Direito adquirido. Inexistência. Inexiste direito adquirido contra o texto constitucional, em especial no que se refere a regime jurídico de servidores públicos. Precedentes do STF. Impossibilidade de se entender estável o servidor que incida em acumulação de cargos, vedada constitucionalmente” (STJ, Mandado de Segurança 7/DF, Rel. Min. Miguel Ferrante, j. 12.12.1989, R. Sup. Trib. Just. 2(7)/p. 173, 1990) (grifou-se).
301 Modesto, Reforma administrativa e direito adquirido.
153
conferiu ao direito adquirido, até porque, conforme já se mencionou anteriormente,
estando o Poder Constituinte Originário limitado por princípios de justiça social e pela
ordem internacional, essa limitação é transferida em maior grau à competência
reformadora.
Ao recriminarem essa interpretação estrita, acerca da qual aqui se
discorda, Correia e Correia advertem que “Não se pode reduzir a interpretação da
disposição constante do art. 5.º, XXXVI, da Constituição Federal, entendendo que esta
disposição volta-se apenas à lei infraconstitucional (‘A lei não prejudicará o direito
adquirido...’)”. Com efeito, “Partir-se desta exegese meramente gramatical corresponde,
no nosso entender, a uma simplificação da interpretação constitucional”, conflitante
com a própria “ideia exposta no texto de que a interpretação da Constituição é bastante
mais complexa do que a simples compreensão do que vem gramaticalmente exposto”. É
dizer: “O conceito constitucional supera o mero conceito formal constante da palavra,
que, embora não seja totalmente desprezado, deve assumir o seu verdadeiro significado
no contexto político-social”, sem que haja rompimento “com o pacto original
estabelecido constitucionalmente”. Nesses termos, portanto, não pretendem aderir ao
pensamento reducionista da previsão constitucional, pois entendem que isso seria “mera
simplificação de um processo hermenêutico altamente complexo e sofisticado”.302
Conclui-se, pois, que uma emenda constitucional, não sendo “expressão
do poder constituinte propriamente dito”, ou seja, não sendo “poder originário (logo,
não é constituinte), e por isso não pode desconstituir direitos individuais” – e também
os direitos fundamentais todos que foram incorporados ao patrimônio jurídico da
sociedade como decorrência da sua evolução303 –, “ainda que implícitos, menos ainda
poderá desconstituir os explícitos sem com isto estar ofendendo, às escâncaras, os
limites ao poder de emenda constantes da própria Constituição”. Diante do exposto e de
referidos motivos, deve ser considerada “impertinente, resultante de interpretação
puramente literal – e, além disto, incapaz de enfrentar os diferentes aspectos que foram
302 Correia e Correia, Curso de direito da seguridade social, p. 97, nota 11. 303 Bandeira de Mello não trata do direito adquirido social, mas somente do direito adquirido individual.
O acréscimo nos ensinamentos do jurista é de inteira responsabilidade desta autora.
154
mencionados – a alegação de que a proteção de direito adquirido é contra a lei e não
contra emenda constitucional”.304
Logo, diante dessa análise, quanto ao direito adquirido, é válido
defender que qualquer mudança na Constituição, perpetrada por intermédio de uma
emenda constitucional que vá contra direito adquirido individual e social, ultrapassa a
competência reformadora legítima para implicar uma ofensa fatal ao espírito protetor
dos direitos e garantias fundamentais agasalhados pela Lei Maior.
Nesse viés, do que se disse sobre o direito adquirido individual e social
e do que se expôs acerca do exercício de competência constitucional reformadora, ainda
é preciso esclarecer um ponto importante: a dimensão de proteção conferida aos direitos
e garantias já incorporados ao patrimônio jurídico dos indivíduos difere-se da dimensão
de proteção atribuída aos direitos e garantias integrantes do patrimônio jurídico da
sociedade. Ou seja, enquanto o direito adquirido individual, perante o advento de uma
emenda constitucional, protege o indivíduo da vinda de uma norma retroativa, o direito
adquirido social funda (ao lado de outros fundamentos) o primado do não retrocesso
social, impedindo que se retroceda quanto ao patamar alcançado pela coletividade no
tocante a todos os direitos fundamentais que integram seu patrimônio. Se essas ideias já
foram expostas, de certo modo faz-se necessário torná-las ainda mais nítidas. Este
intuito tem o tópico a seguir, pretendendo melhor clareá-las.
2.2.2.4.5 Direito adquirido individual e social: as diferentes
dimensões de proteção
Consoante o pensamento doutrinário preconizado por Sarlet, linhas
atrás colacionado, o princípio da proibição do retrocesso social é uma proteção contra
medidas retrocessivas, as quais não podem ser tidas como propriamente retroativas visto
que não alcançam as figuras do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa
julgada.305 Tendo-se por base essa assertiva, pode-se assegurar, por conseguinte, que, se
uma medida alcançar o direito adquirido (individual), será fulminada pelo vício da
304 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 339-340. 305 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 435.
155
inconstitucionalidade, e não há falar no direito adquirido social que fundamenta, entre
outros alicerces, o aludido princípio. Daí se infere que a proteção em face da
retroatividade é diversa do resguardo proporcionado pelo princípio da proibição do
retrocesso social. De tal modo, pode-se afiançar que: o não retrocesso social incide
quando há uma norma de cunho retrocessivo e o direito adquirido individual atua
protetoramente quando há retroatividade.
Melhor explicando: o direito adquirido individual e social tem em
comum o mesmo fundamento normativo constitucional (art. 5.º, XXXVI, da CF); no
entanto, efetivam dimensões diferentes de direitos (uma individual e outra social).
Assim, um determinado direito adquirido pelo indivíduo estará protegido da
retroatividade legal (normativa), assegurando-se, no tempo, a manutenção de direitos
oriundos de previsão anterior contida na lei (norma); e paralelamente, mais do que o
direito social, todos os direitos fundamentais que fizeram parte do patrimônio jurídico
de determinada nação, como resultado do progresso da humanidade em sua evolução
social, agregados às relações sociais por meio do Direito, acharão acolhida no direito
adquirido social e, por conseguinte, no princípio da vedação ao retrocesso social. Esse
primado surge da necessidade de uma maior proteção à totalidade dos direitos
fundamentais conquistados pelo povo, precisamente porque o resguardo a tais direitos
requer não só a manutenção do nível alcançado, como, de igual maneira, o seu
adensamento, decorrência lógica, aliás, da própria evolução do Estado, do Direito e da
maneira de interpretá-lo e aplicá-lo.
Deveras, o primado da vedação ao retrocesso social, fundado no direito
adquirido social, nasce pela necessidade de amparo ao grau de direitos e garantias
fundamentais que determinada sociedade (povo) alcançou e que se vê ameaçado por
medidas de caráter minimizante e redutoras de ditos direitos e garantias. Nesse passo, a
precisão de colocar todo um plexo de direitos conquistados pelo povo a salvo dessas
medidas faz brotar no constitucionalismo contemporâneo (neoconstitucionalismo) a
necessidade de elaborar maneiras de se proteger esse somatório dos direitos e garantias
que a sociedade obteve legitimamente para si ao longo do tempo, o que originou o
princípio do não retrocesso social.
156
Nesse viés, o titular do direito adquirido individual está, em princípio,
protegido de futuras modificações legislativas (emendas e leis infraconstitucionais) que
poderiam reger o ato pelo qual fez originar seu direito, justamente porque referido
direito já se acha agregado ao seu patrimônio jurídico (no plano normativo), ainda que
não tenha sido exercitado ou gozado (no plano ontológico). O direito adquirido
individual é um limite à retroatividade da lei. Tem-se aí a proteção do art. 5.º, XXXVI,
c/c com o art. 60, § 4.º, IV, da Constituição Federal. Em uma outra dimensão, a
sociedade (povo), como titular do direito adquirido social, estará resguardada de futuras
mudanças normativas (emendas e legislação infraconstitucional), por intermédio da
aplicação do princípio da vedação ao retrocesso social, em virtude do alcance de certo
nível de direitos e garantias obtido e incorporado ao seu patrimônio jurídico diante da
sua própria evolução social. O direito adquirido social é um limite à retrocessão
social.306
Portanto, analisada a importância das diferentes dimensões de proteção
quanto à temática do direito adquirido individual e social (este como um dos
fundamentos do princípio da proibição de retrocesso social), além do exame do papel
protetivo que têm ambas as dimensões no tocante às mudanças instituídas por emendas
à Carta Constitucional e à legislação infraconstitucional, torna-se essencial, a seguir,
analisar outro ponto importante para estabelecer o embasamento do primado do não
retrocesso: a sua previsão em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, o que
fortalecerá, ainda mais, sua presença na Constituição Federal.
2.2.2.5 Os tratados internacionais e a adesão brasileira ao princípio
da vedação ao retrocesso social
Sem dúvida alguma, outro forte argumento a favor da presença
constitucional do princípio da vedação ao retrocesso social encontra-se nos tratados
internacionais que enunciam direitos sociais e a adesão brasileira tratados. Nesse
sentido, tem-se o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
306 A vedação ao retrocesso social funda-se no art. 5.º, XXXVI, da Constituição Federal e também nos
arts. 3.º, I e III, 5.º, § 2.º, 7.º, caput, e art. 170, caput e VII e VIII, além de se basear na própria concepção de Estado Democrático e Social de Direito e, também, nos tratados internacionais, conforme será visto em sequência.
157
(PIDESC), adotado pela Resolução 2.200-A (XXI) da Assembleia-Geral das Nações
Unidas, em 16 de dezembro de 1966, e ratificada pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992,
com o escopo de garantir juridicidade e eficácia, no plano interno dos países-membros,
aos preceitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos,307 especialmente no que
diz respeito aos direitos sociais.
Sobre a questão Flávia Piovesan esclarece que o processo de
“‘juridicização’ da Declaração começou em 1949 e foi concluído apenas em 1966, com
a elaboração de dois tratados internacionais distintos”, quais sejam “o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, que passavam a incorporar os direitos constantes da
Declaração Universal”. Destaca que, “Ao transformar os dispositivos da Declaração em
previsões juridicamente vinculantes e obrigatórias, esses dois Pactos Internacionais
constituem referência necessária para o exame do regime normativo de proteção
internacional dos direitos humanos”.308
Como bem leciona Antonio Augusto Cançado Trindade, “Com os dois
Pactos em vigor, concretizava-se a Carta Internacional dos Direitos Humanos”,
intensificava-se a ideia “de generalização da proteção internacional dos direitos
humanos e abria-se o campo para a gradual passagem da fase legislativa à de
implementação dos tratados e instrumentos internacionais de proteção”.309
307 Consoante esclarece Clarice Seixas Duarte, “O sistema internacional de proteção dos direitos
humanos é formado pelo sistema normativo global (composto de instrumentos de alcance geral e especial) e pelo sistema regional, este último integrado pelos sistemas americano (no qual o Brasil está inserido), o europeu e o africano. Os organismos que integram o sistema ONU – Organizações das Nações Unidas são responsáveis pelo monitoramento global dos direitos humanos. O Sistema Global de Proteção foi inaugurado pela Carta Internacional dos Direitos Humanos (International Bill of Rights), integrada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, pelo Pacto Internacional de Proteção dos Direitos Civis e Políticos e pelo Pacto Internacional de Proteção dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966”. E acresce que: “Além de instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos de alcance geral, o sistema global é também composto por instrumentos de alcance específico, pertinentes a determinadas violações, tais como genocídio, tortura, discriminação racial e contra a mulher, violação dos direitos das crianças, direito à educação, entre outras, que oferecem enorme potencial de proteção à pessoa humana” (Clarice Seixas Duarte, Os documentos internacionais de proteção aos direitos humanos e a legislação brasileira. Disponível em: <www.acaoeducativa.org.br/opa/opa02.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2012).
308 Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 152.
309 Antonio Augusto Cançado Trindade, Tratado de direito internacional dos direitos humanos, Porto Alegre: Fabris, 1997, v. 1, p. 40.
158
Com particular ênfase, neste estudo, para o Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,310 destaca-se o seu Preâmbulo, em que dispõe
que o ideal do homem livre não pode ser concretizado sem a criação de condições que
possibilitem a cada um gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, assim
como de seus direitos civis e políticos, atribuindo aos Estados a obrigação de promover
o respeito universal e efetivo dos direitos e das liberdades da pessoa humana.
O Pacto impõe aos Estados, em seu art. 2.º, § 1.º, a obrigação de adotar
medidas até o máximo de seus recursos disponíveis, de modo a assegurar
progressivamente o pleno exercício dos direitos nele reconhecidos. Nesse passo, a
interpretação oficial sobre a natureza das obrigações impostas pelo PIDESC aos
Estados-partes é oferecida no Comentário Geral 03, de 1990, do Comitê de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, segundo o qual, de acordo com as Nações
Unidas, o conceito de progressividade indica a plena realização dos direitos
econômicos, sociais e culturais, de modo geral, que não poderá ser atingida em um curto
período de tempo. Com efeito, consoante “essa posição, as obrigações impostas diferem
significativamente daquelas contempladas no art. 2.º do Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos, que prevê obrigação imediata de se respeitarem e se assegurarem os
direitos nele previstos”.311
Observa-se, contudo, segundo Clarice Seixas Duarte, que:
Entretanto, para o Comitê, a progressividade não deve ser interpretada como uma justificativa para que o Estado deixe de implementar os direitos econômicos, sociais e culturais, ou “como uma forma de esvaziar a obrigação de conteúdo substantivo concreto”. Ela seria apenas uma forma de levar em conta a realidade e as dificuldades envolvidas na plena realização dos direitos econômicos, sociais e culturais. Por outro lado, a expressão deve ser iluminada pelo objetivo geral ou razão de ser do Pacto, qual seja, o estabelecimento de obrigações claras para os Estados-partes, visando à plena realização dos direitos em questão. De acordo com a própria ONU, portanto, o Pacto impõe, de fato, aos Estados, a obrigação de mover-se efetiva e prontamente em direção àquele objetivo. Além do mais, qualquer medida retroativa deliberada requereria a mais
310 Interessa aqui ressaltar que o PIDESC, até 2007, contava com 157 Estados-partes (Flávia Piovesan,
Tratados internacionais de proteção dos direitos humanos: jurisprudência do STF. Disponível em: <http://iedc.org.br/REID/?CONT=00000034>. Acesso em: 19 fev. 2012).
311 Duarte, Os documentos internacionais de proteção aos direitos humanos e a legislação brasileira.
159
cautelosa consideração e precisaria ser plenamente justificada312 (destacou-se).
É de ver que, segundo o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais da ONU, “enquanto o objetivo de plena realização dos direitos enunciados no
Pacto só pode ser implementado a longo prazo”, a progressividade, de outra banda,
“impõe ao Estado o dever de tomar medidas concretas e delimitadas da forma mais clara
possível em direção às obrigações assumidas (obrigações de conduta e não de resultado,
propriamente ditas)”, o que necessita ser comprovado em breve espaço de tempo, a
partir da entrada do Pacto em vigor.313
Nesse condão, diante do primado da aplicação progressiva dos direitos
previstos no PIDESC, dimana o dever, por parte dos Estados, de efetuar “avanços
concretos em prazos determinados, o que, na prática, constitui um empecilho ao
retrocesso da política social do Estado”, pois, uma vez que se alcançou um determinado
patamar de proteção dos respectivos direitos, não é possível que se volte atrás e se
rebaixe o padrão de vida da coletividade.314
Com efeito, mantendo-se referida questão da progressividade em mente,
vital para a noção que se pretende estabelecer neste item, volta-se, agora, para o exame
da matéria no âmbito interno, analisando-se a Constituição Federal de 1988. Consoante
o ordenamento jurídico pátrio, verifica-se que o Brasil deve cumprir integralmente o
conteúdo dos Tratados Internacionais por ele ratificados, na medida em que ditos
instrumentos normativos internacionais são recepcionados pelo ordenamento jurídico
brasileiro.315
312 Duarte, Os documentos internacionais de proteção aos direitos humanos e a legislação brasileira. 313 Idem, ibidem. 314 Idem. 315 Conforme expõe Flávia Piovesan, “no que se refere à posição do Brasil em relação ao sistema
internacional de proteção dos direitos humanos, cabe realçar que somente a partir do processo de democratização do País, deflagrado em 1985, é que o Estado brasileiro passou a ratificar relevantes tratados internacionais de direitos humanos”. Acrescenta que: “Assim, a partir da Carta de 1988 foram ratificados pelo Brasil: a) a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em 20 de julho de 1989; b) a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 28 de setembro de 1989; c) a Convenção sobre os Direitos da Criança, em 24 de
160
O caráter obrigatório de tal cumprimento pode ser inferido do conteúdo
normativo dos seguintes dispositivos constitucionais:
(i) Do disposto no art. 4.º, inciso II, da Constituição Federal, o qual
disciplina que o Brasil é regido nas suas relações internacionais pelo princípio da
“prevalência dos direitos humanos” (entre outros que arrola nos demais incisos do
citado preceptivo constitucional).
(ii) Do art. 5.º, § 2.º, da Constituição Federal que estabelece: “Os
direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte”.316
setembro de 1990; d) o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em 24 de janeiro de 1992; e) o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 24 de janeiro de 1992; f) a Convenção Americana de Direitos Humanos, em 25 de setembro de 1992; g) a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 27 de novembro de 1995; h) o Protocolo à Convenção Americana referente à Abolição da Pena de Morte, em 13 de agosto de 1996; i) o Protocolo à Convenção Americana referente aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), em 21 de agosto de 1996; j) o Estatuto de Roma, que cria o Tribunal Penal Internacional, em 20 de junho de 2002; k) o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, em 28 de junho de 2002; e l) os dois Protocolos Facultativos à Convenção sobre os Direitos da Criança, referentes ao envolvimento de crianças em conflitos armados e à venda de crianças e prostituição e pornografia infantis, em 24 de janeiro de 2004. A esses avanços soma-se o reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em dezembro de 1998”. E conclui que: “Logo, faz-se clara a relação entre o processo de democratização no Brasil e o processo de incorporação de relevantes instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, tendo em vista que, se o processo de democratização permitiu a ratificação de relevantes tratados de direitos humanos, por sua vez essa ratificação permitiu o fortalecimento do processo democrático, através da ampliação e do reforço do universo de direitos fundamentais por ele assegurado” (Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, Caderno de Direito Constitucional, Escola da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, p. 27-28, 2006).
316 Por fugir do âmbito de estudo deste tópico e do que se pretende analisar, não se adentrará na polêmica referente ao status ou hierarquia dos tratados internacionais incorporados ao ordenamento jurídico interno. Importa apenas esclarecer que, diante do que dispõe o § 2.º do art. 5.º da Constituição Federal, “Atualmente, destacam-se quatro correntes interpretativas acerca da hierarquia dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, que sustentam: a) a hierarquia supraconstitucional destes tratados; b) a hierarquia constitucional; c) a hierarquia infraconstitucional, mas supralegal; e d) a paridade hierárquica entre tratado e lei federal” (Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 29). Para um estudo mais aprofundado a respeito de cada qual destas correntes, ver Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, 6. ed. rev., ampl. e atual., São Paulo: Max Limonad, 2004, p. 75-98. Deve-se ressaltar que a matéria não é pacífica nem na Suprema Corte brasileira, embora se tenha chegado a um entendimento prevalente. Nesse viés, “Da análise das decisões proferidas pelo pleno do STF que discutiram a matéria referente à hierarquia dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro, conclui-se que, no STF, predomina o entendimento de que: a) os tratados internacionais não podem versar sobre matérias reservadas pela Constituição à lei complementar, sob pena de serem
161
(iii) E do art. 5.º, § 3.º, da Constituição Federal, incluído pela Emenda
Constitucional 45/2004, que determina: “Os tratados e convenções internacionais sobre
direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois
turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais”.
Avaliando o art. 5.º, §§ 2.º e 3.º, da Carta Constitucional, Flávia
Piovesan defende que o “Direito brasileiro faz opção por um sistema misto, que
combina regimes jurídicos diferenciados: um regime aplicável aos tratados de direitos
humanos e um outro aplicável aos tratados tradicionais”. Assim, “Enquanto os tratados
internacionais de proteção dos direitos humanos – por força do art. 5.º, § 2.º –
apresentam natureza de norma constitucional, os demais tratados internacionais
apresentam natureza infraconstitucional”. Depreende-se, por conseguinte, que, nesta
conjuntura, “a inclusão do parágrafo 3.º ao art. 5.º objetiva, ao seu modo, responder à
polêmica doutrinária e jurisprudencial concernente à hierarquia dos tratados
internacionais de proteção dos direitos humanos”.317 E acresça-se ao pensamento de
Piovesan que este dispositivo (art. 5.º, § 3.º) também vem reforçar o disposto no art. 4.º,
inciso II, da Constituição Federal, o qual enuncia que, nas suas relações internacionais,
o Brasil deve reger-se (além de outros princípios) pela prevalência dos direitos
humanos.
Piovesan assevera que o art. 5.º, § 3.º, vem evidenciar de maneira
expressa o caráter materialmente constitucional dos tratados referentes aos direitos
humanos. No entanto, para que os tratados de direitos humanos alcancem assento
formal na Constituição, exige-se que se observe o quórum qualificado de três quintos
dos votos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos –
exatamente o quórum necessário para a aprovação de emendas à Carta Maior, consoante
dispõe o art. 60, § 2.º, da Constituição de 1988. Neste caso, os tratados de direitos
inconstitucionais; b) todos os tratados são subordinados à Constituição; c) os tratados internacionais que não versarem sobre direitos humanos possuem paridade hierárquica com as leis ordinárias [...]” (Germana Assunção Trindade, A posição hierárquica do tratado à luz do STF. Disponível em: <www.faete.edu.br/revista/Prof.%20Germana.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2012).
317 Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 31.
162
humanos formalmente constitucionais podem ser nivelados às emendas à Constituição,
ou seja, passam a integrar formalmente o texto constitucional.318
Isto significa que, com o advento do § 3.º do art. 5.º da Constituição
Federal, têm-se duas categorias de tratados de direitos humanos: a) os materialmente
constitucionais; e b) os material e formalmente constitucionais, isto é, “todos os tratados
internacionais de direitos humanos são materialmente constitucionais, por força do
parágrafo 2.º do artigo 5.º”. Ademais, “Para além de serem materialmente
constitucionais, poderão, a partir do parágrafo 3.º do mesmo dispositivo, acrescer a
qualidade de formalmente constitucionais, equiparando-se às emendas à Constituição,
no âmbito formal”.319
Segundo Piovesan, ao aceitar-se o caráter constitucional de todos os
tratados de direitos humanos, deve-se observar que os direitos que integram os tratados
internacionais, tais como os demais direitos e garantias individuais albergados pela
Constituição, constituem “cláusula pétrea” e não podem ser suprimidos por meio de
emenda à Constituição, conforme estabelece o art. 60, § 4.º, da Lei Maior. Note-se que
318 Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 33. Nesse sentido, Daniel
Augusto Mesquita aclara que: “O quorum de aprovação trazido pelo § 3.º do artigo 5.º (três quintos, em dois turnos, em cada Casa do Congresso Nacional) é exatamente o mesmo previsto para a aprovação de emenda constitucional. A única diferença que se pode apontar entre esse dispositivo e o previsto no artigo 60, § 2.º, da Constituição é que as emendas constitucionais aprovadas conforme este procedimento transladam-se para o texto constitucional, ou seja, integrarão o corpo da Constituição. Já os tratados, integrados conforme o referido § 3.º, por serem ‘equivalentes’ às emendas constitucionais, não integrarão o corpo do texto constitucional. Continuarão, assim, com a forma estabelecida nos pactos internacionais, mas serão incorporados ao ordenamento interno como se emendas constitucionais fossem”. Ainda: “Essa diferença, entretanto, não provoca aplicações distintas entre as emendas constitucionais inscritas no corpo da Constituição e os tratados integrados ao ordenamento com o quorum especial. A expressão ‘equivalentes’, trazida na EC 45/2004, afirma que esses tratados terão todas as características de uma emenda” (Daniel Augusto Mesquita, Incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos ao ordenamento jurídico brasileiro: interpretação da Constituição Federal pelo Supremo Tribunal Federal e consequências da Emenda Constitucional 45/2004 na proteção dos direitos fundamentais. Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasília, ago. 2005. Disponível em: <www.idp.org.br/download.php?arquivo= wo9j2g36jqh1.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2012).
319 Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 33. Esclareça-se que, conforme leciona Piovesan, “Ainda que todos os tratados de direitos humanos sejam recepcionados em grau constitucional, por veicularem matéria e substância essencialmente constitucional, importa realçar a diversidade de regimes jurídicos que se aplica aos tratados apenas materialmente constitucionais e aos tratados que, além de materialmente constitucionais, também são formalmente constitucionais. E a diversidade de regimes jurídicos atém-se à denúncia, que é o ato unilateral pelo qual um Estado se retira de um tratado. Enquanto os tratados materialmente constitucionais podem ser suscetíveis de denúncia, os tratados material e formalmente constitucionais, por sua vez, não podem ser denunciados” (Idem, ibidem, p. 33).
163
as “cláusulas pétreas” protegem o núcleo material da Constituição, que fazem parte dos
valores fundamentais da ordem constitucional. Portanto, os direitos proclamados em
tratados internacionais em que o Brasil seja parte ficam abrigados pela cláusula pétrea
“direitos e garantias individuais”, prevista no art. 60, § 4.º, inciso IV, da Carta
Constitucional.320 E acrescenta, acerca dos direitos sociais, que, “Na qualidade de
direitos constitucionais fundamentais, os direitos sociais são direitos intangíveis e
irredutíveis, sendo providos da garantia da suprema rigidez, o que torna inconstitucional
qualquer ato que tenda a restringi-los ou aboli-los”.321
Dessa forma, os direitos sociais, econômicos e culturais, enunciados em
tratados internacionais subscritos pelo Brasil, exigem o mesmo status hierárquico
conferido aos direitos e garantias fundamentais individuais incorporados ao
ordenamento jurídico brasileiro. Nessa passada, resgatando-se a ideia supramencionada
de que os direitos previstos no PIDESC reclamam o dever, por parte dos Estados, de
executar progressos efetivos em prazos determinados, representando assim um
obstáculo ao retrocesso da política social do ente estatal, uma vez que, a partir do
momento em que se atingiu um determinado nível de proteção dos respectivos direitos,
não é concebível que se faça um movimento de marcha para trás e se rebaixe o padrão
de vida da comunidade, ignorando-se a aplicação progressiva de tais direitos, pode-se
então constatar que a afirmação de que a progressividade resultante da cláusula de
vedação ao retrocesso social realmente tem força para tornar inconstitucionais quaisquer
medidas que, sem a criação de esquemas alternativos ou compensatórios, traduzam na
prática em uma anulação, revogação ou aniquilação desses direitos. Tendo sido o
PIDESC ratificado pelo Brasil, suas normas têm natureza constitucional e, portanto,
impõem que se obedeça ao princípio da aplicação progressiva dos direitos sociais (cf.
art. 2.º, § 1.º, do PIDESC), o que implica a observância do princípio da proibição do
retrocesso social.322-323
320 Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 33. 321 Piovesan, Não à desconstitucionalização dos direitos sociais. 322 Nesse sentido é a lição de Piovesan: “Logo, em face do Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, que os Estados-partes (dentre eles o Brasil), no livre e pleno exercício de sua soberania, ratificaram, há que se observar o princípio da aplicação progressiva dos direitos sociais, o que, por si só, implica no princípio da proibição do retrocesso social” (Flávia Piovesan, Proteção em jogo. Proteção internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais,
164
Importante ainda fazer referência à assinatura procedida pelo Brasil
quanto ao Protocolo de San Salvador, concluído em 17 de novembro de 1988 –
passando a vigorar, para o Brasil, em 16 de novembro de 1999 –, como instrumento
adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (designada de Pacto
de San José da Costa Rica), contendo, de igual modo, normas protetivas em matéria de
direitos econômicos, sociais e culturais.
No tocante a esse Protocolo, Piovesan profere:
Além do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, há que se mencionar o Protocolo de San Salvador, em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais, que entrou em vigor em novembro de 1999. Tal como o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, este tratado da OEA reforça os deveres jurídicos dos Estados-partes no tocante aos direitos sociais, que devem ser aplicados progressivamente, sem recuos e retrocessos, para que se alcance sua plena efetividade. O Protocolo de San Salvador estabelece um amplo rol de direitos econômicos, sociais e culturais, compreendendo o direito ao trabalho, direitos sindicais, direito à saúde, direito à previdência social, direito à educação, direito à cultura, [...] Este Protocolo acolhe (tal como o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) a concepção de que cabe aos Estados investir o máximo dos recursos disponíveis para alcançar,
Revista Consultor Jurídico, 26 ago 2002. Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/ static/text/10798,1#null>. Acesso em: 20 fev. 2012.
323 Em relação aos tratados internacionais ratificados pelo Brasil e ao status constitucional que as suas disposições passam a ter, deve-se levar em conta que referidos tratados podem, em caso de conflito com uma norma constitucional menos benéfica, fazer com que não se utilize o dispositivo constitucional prejudicial, aplicando-se o texto do tratado que traz disposição sobre a mesma matéria, de forma mais favorável ao indivíduo. André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros lecionam, no tocante à expressão “não excluem”, que consta do § 2.º do art. 5.º da Carta Constitucional brasileira, que não lhe “pode ser concedido um alcance meramente quantitativo: ela tem de ser interpretada como querendo significar também que, em caso de conflito entre as normas constitucionais e o Direito Internacional em matéria de direitos fundamentais, será este que prevalecerá. [...] Quanto aos demais tratados de Direito Internacional Convencional particular, aí, sim, pensamos que eles cedem perante a Constituição, mas têm valor supralegal, isto é, prevalecem sobre a lei interna, anterior e posterior. Ou seja, adoptamos a posição que se encontra expressamente consagrada nas Constituições francesa, holandesa e grega” (André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, Manual de direito internacional público, 3. ed., Coimbra: Almedina, 1993, p. 117 e 121). Por conseguinte, o status do produto normativo incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro, originário de um tratado internacional de direitos humanos, não pode ser outro que não o de verdadeira norma materialmente constitucional. Adverte-se, entretanto, que, na hipótese de um tratado enunciar normas tendentes a rebaixar um direito constitucional fundamental, deve prevalecer a cláusula prevista originalmente na Constituição Federal. Isto porque, como é lógico, “Se o artigo 60, § 4.º, da Constituição proíbe proposta de emenda constitucional tendente a abolir um direito petrificado em um tratado internacional, o mesmo artigo 60, § 4.º, proíbe a integração de um pacto internacional equivalente à emenda constitucional, se este pacto castrar o direito apresentado em uma cláusula pétrea já esculpida na Constituição” (Mesquita, Incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos ao ordenamento jurídico brasileiro...).
165
progressivamente, a plena efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais. Este Protocolo permite o recurso ao direito de petição a instâncias internacionais para a defesa de dois dos direitos nele previstos – o direito à educação e os direitos sindicais.324
Logo, como se vê, o Protocolo afirma novamente a tarefa imposta ao
Estado de investir a maior quantidade possível de recursos disponíveis, até atingir,
progressivamente – ou seja, sem retrocessos –, a integral efetividade dos direitos
econômicos, sociais e culturais. Referida tarefa representa um dever que, se
descumprido, acarreta violações aos direitos sociais, podendo resultar na
responsabilização do Estado perante o sistema internacional de proteção aos direitos
humanos.
Assim, o PIDESC e o Protocolo de San Salvador, uma vez ratificados
pelo Brasil – e, portanto, passando a ostentar, no ordenamento jurídico brasileiro, o
caráter constitucional dos tratados de direitos humanos –, cominam a obrigação de não
retroceder em termos de concretização dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Desse modo, diante do que se expôs, pode-se concluir, e agora de
maneira completa, após a análise realizada neste item do capítulo, que o princípio da
vedação ao retrocesso social encontra assento constitucional no instituto do direito
adquirido social e, igualmente, nos dispositivos constitucionais que assinalam no
sentido da progressiva ampliação dos direitos fundamentais da sociedade (art. 5.º, § 2.º,
e art. 7.º, caput), visando à paulatina redução das desigualdades regionais e sociais e à
construção de uma sociedade marcada pela solidariedade e pela justiça social (art. 3.º,
I e III, e art. 170, caput e VII e VIII), além de se fundar na própria concepção de Estado
Democrático e Social de Direito (sobre o qual já se falou no capítulo 1) e suas diretrizes
e valores essencialmente voltados ao plano social e, também, estribar-se nos tratados
internacionais supramencionados.
Por conseguinte, demonstrada a presença implícita do princípio da
vedação ao retrocesso social na Constituição Federal, importa examinar, em seguida, o
324 Piovesan, Proteção em jogo. Proteção internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais.
166
entendimento jurisprudencial das Cortes mais altas de Justiça do País a respeito da
aplicabilidade do princípio da vedação ao retrocesso social. O intento é apresentar,
ainda que de modo sucinto, como é feito o controle jurisdicional pelo Supremo Tribunal
Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça no que concerne à matéria do não retrocesso
social.
Ademais, se é possível defender que a cláusula do não retrocesso social
é mandamento constitucional dirigido, em um primeiro momento, ao legislador,
impedindo-o de instituir reduções no tocante aos direitos e garantias fundamentais,
também é válido asseverar que aludido princípio se dirige também ao julgador, que, em
momento ulterior, por intermédio do controle jurisdicional, ao analisar o caso que
perante ele se apresenta, deverá respeitar a comunidade de princípios, e, nesse sentido,
reconhecer, caso vislumbre rebaixamento no patamar mais alto de garantias dantes
conquistadas, que determinada norma fere o primado da vedação ao retrocesso social
(cf. item 3.4.3).325
2.2.5 Entendimento jurisprudencial a respeito do tema
No que diz respeito à jurisprudência existente sobre o princípio da
vedação ao retrocesso social, verifica-se que nas Cortes Superiores de Justiça do Brasil
as decisões fundadas no não retrocesso ainda representam um pequeno número,
325 Pensando de forma diversa, Miguel afirma que o princípio da vedação ao retrocesso social dirige-se
em especial ao julgador, e não ao legislador. Assim, segundo defende, “[...] Tal princípio não consistiria na impossibilidade de que o legislador reduza o grau de concretização infraconstitucional de direitos fundamentais, justamente porque esse tipo de aferição só pode ser realizado na experiência de uma situação concreta. De tal maneira, o intérprete/aplicador, ao deparar-se com um problema a respeito do qual lhe demandam solução jurisdicional, inspirado pela nossa construção histórica de direitos fundamentais, não deve meramente buscar um cotejo entre os dispositivos constitucionais para investigar se o legislador reduziu o grau de concretização de direito fundamental e, em caso de concluir por uma resposta positiva, decidir pela inconstitucionalidade da atuação legislativa com base no princípio da proibição de retrocesso social, como se tal resposta fosse prima facie aplicável para quaisquer casos que envolvessem matéria semelhante. Ao contrário, a noção de proibição de retrocesso social constitui especial mandamento ao juiz, a quem cabe realizar, com fundo na situação-problema e orientado pelas normas (sentidos) dos textos (entes) constitucionais e infraconstitucionais, uma atividade crítico-reflexiva a respeito de eventual necessidade de uma mudança no nosso romance em cadeia, em respeito à integridade do direito em uma dada cadeia comunicativa” (O direito como integridade comunicativa..., p. 189-190). Concorda-se com o autor, no entanto, quando ele afiança que o julgador não deve proceder a uma ponderação de princípios como se estivesse negociando bens, sendo que um seria preferível em relação ao outro, devendo decidir a questão com base no direito como integridade.
167
resultado, talvez, da própria divergência da doutrina quanto ao fundamento, conteúdo e
alcance do princípio.326 Contudo, mesmo em pequena quantidade, as decisões que
envolvem o primado da proibição do retrocesso são importantes para o estudo que aqui
se propõe.
Adverte-se que o exame que se inicia neste tópico, conquanto seja
breve, é feito com base nas decisões do Supremo Tribunal Federal que tratam do tema,
justamente pela posição mais alta desta Corte de Justiça no País. Após, serão expostas
as decisões do Superior Tribunal de Justiça que abordam a matéria; proceder-se-á dessa
maneira, pois a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já servirá para espelhar o
entendimento jurisprudencial da matéria no âmbito inferior à Constituição, na
disposição hierárquica jurídica.327
De tal modo, do Supremo Tribunal Federal serão analisados, no
presente item, os seguintes julgados: ADI 1.946/DF, ADI 2.065-0/DF, ADI 3.104/DF,
ADI 3.105-8/DF, ADI 3.128-7/DF, ARE 639337/SP e ADC 29/DF.328 Na sequência, do
Superior Tribunal de Justiça serão comentados os arestos: REsp 567.873/MG, REsp
302.906/SP e AI nos EREsp 727.716/CE.329
Na ADI 1.946/DF, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por
unanimidade, decidiu “dar ao art. 14 da Emenda Constitucional n.º 20, de 15.12.1998,
interpretação conforme a Constituição, excluindo-se sua aplicação ao salário da licença-
gestante, a que se refere o art. 7.º, inciso XVIII, da Constituição Federal”. Por não ter
sido revogado por norma constitucional derivada, o art. 7.º, inciso XVIII, da
Constituição Federal não poderia ser tornado insubsistente pela mera aplicação do art.
14 da Emenda Constitucional 20/1998, sob pena de ocorrer um retrocesso histórico em
326 Chegando à mesma conclusão está Palmeira Filho (O princípio da proibição de retrocesso social:
aplicabilidade e limites na reforma da aposentadoria por tempo de contribuição do Regime Geral de Previdência Social, p. 66).
327 Os precedentes encontrados no sítio eletrônico do STF e do STJ são resultado da busca pela expressão “retrocesso social”, por intermédio da ferramenta de pesquisa jurisprudencial disponibilizada no Portal das aludidas Cortes de Justiça brasileiras até a data de 06.09.2012.
328 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28 retrocesso+social%29&base=baseAcordaos>. Acesso em: 21 fev. 2012.
329 Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre= retrocesso+social&b=ACOR>. Acesso em: 22 fev. 2012.
168
matéria social-previdenciária, que não se pode presumir desejado; assim, resguardou-se
a possibilidade de o benefício em apreço ser concedido em valor acima do teto
previdenciário.
Nota-se, com base nessa decisão, que a Corte mais alta de Justiça do
País valeu-se do princípio da vedação ao retrocesso social quando enfrentou a questão
das alterações realizadas pelo advento de emenda constitucional, acabando por se
distanciar da prevalência do pensamento doutrinário defensor da ideia de que o primado
do não retrocesso social aplica-se tão somente às leis infraconstitucionais contrárias ao
texto constitucional. Também é importante registrar que o Supremo Tribunal Federal
não faz qualquer ressalva quanto à aplicação do aludido princípio, no caso de a
revogação alcançar o núcleo essencial de direito social já conquistado, como igualmente
concebe parte da doutrina. Veja-se que a decisão resguarda o direito social dantes
garantido no seu nível mais alto, reconhecendo-se a legitimidade de pagamento do
benefício previdenciário superior ao teto do Regime Geral de Previdência Social
(RGPS). Prevalece a disposição constitucional originária perante uma emenda
constitucional, que rebaixa ou suprime o direito já obtido. É essa linha de entendimento
que se defende no presente estudo, embora o princípio do não retrocesso social não
possa ser considerado absoluto.
Na análise da questão objeto da ADI 2.065/DF, o Pleno não conheceu a
ação direta, por maioria de votos, vencido o relator, Ministro Sepúlveda Pertence, que
entendeu que se devia aplicar o princípio da vedação ao retrocesso social em relação à
Medida Provisória 1.911-8, que extinguiu órgãos de deliberação colegiada, revogando
dispositivos das Leis 8.212/1991 e 8.213/1991, que dispunham sobre o caráter
democrático da gestão da Seguridade Social. Nesse sentido, verifica-se que, com a
derrogação da mencionada lei, no que diz respeito aos arts. 6.º e 7.º da Lei 8.212 e arts.
7.º e 8.º da Lei 8.213, “altera-se a estrutura previdenciária baseada em órgãos de
deliberação colegiada em nível federal, estadual e municipal”, e, por conseguinte, “se
retira destas esferas as suas competências constitucionais de também participar e assim
influir na gestão da Seguridade Social e, especificamente, da Previdência Social”.
Embora vencido, o relator, no entanto, seguido pelos Ministros Marco Aurélio, Néri da
Silveira e Carlos Velloso, intentou conferir eficácia negativa mínima às normas
programáticas, asseverando que: “Inconstitucional é exatamente gerar omissão
169
inconstitucional que já não existia”. E que se caracteriza “Mora inconstitucional quando
inexiste a lei integradora; quando esta já existe, não se pode voltar ao status quo anterior
de vazio normativo e de ineficácia consequente da norma constitucional”. Na esteira
dessas ideias quer-se “dizer que a implementação da Constituição não pode sofrer
retrocesso”.
Não obstante o Supremo Tribunal Federal, nesse julgado, entender pela
impossibilidade de o legislador infraconstitucional revogar o grau de materialização
alcançado pelos direitos fundamentais e, com isso, aderir ao entendimento de grande
parte da doutrina de que o primado do não retrocesso social só deve ser aplicado quando
há uma situação de retorno equivalente a uma omissão legislativa, um ponto merece
destaque nesse aresto, qual seja o de que é admissível a aplicação do princípio da
proibição de retrocesso a normas programáticas, filiando-se ao entendimento de que as
normas constitucionais têm plena aplicação e efetividade.
A ADI 3.104/DF, terceiro julgado aqui colacionado, de relatoria da
Ministra Cármen Lúcia, teve como resultado a sua improcedência por decisão da
maioria do Plenário do Supremo Tribunal Federal, vencidos os Ministros Carlos Britto,
Marco Aurélio e Celso de Mello. Nessa ação questionava-se a validade constitucional
do art. 2.º e da expressão “8.º” do art. 10, da Emenda Constitucional 41/2003, referente
ao regime de aposentadoria dos servidores públicos federais. Pleiteava-se que fosse
reconhecido aos servidores que tomaram posse até 16.12.1998 o direito, considerado
adquirido, à regra de transição prevista na Emenda Constitucional 20/98. Entendeu o
Supremo Tribunal Federal que apenas os servidores públicos que preenchiam os
requisitos instituídos na Emenda Constitucional 20/1998, durante a vigência das normas
por ela fixadas, poderiam reclamar a aplicação das normas nela contida, com alicerce no
art. 3.º da Emenda Constitucional 41/2003. Fundamentou a relatora, ao se pronunciar
acerca das sustentações orais realizadas pelos amici curiae, que haveria afronta ao
princípio da proibição de retrocesso social se tivesse sido extinta a possibilidade de
aposentadoria, este sim um direito social, não incidindo o acenado princípio quando se
tratar de “adaptação dos critérios de transição para o novo modelo previdenciário que se
veio a estabelecer”. Todavia, o Ministro Carlos Britto, no seu voto vencido, focaliza a
matéria do não retrocesso social, evocando as cláusulas pétreas e asseverando que um
dos seus sentidos é impedir o retrocesso, isto é, garantir o progresso. Ademais, “A nova
170
Constituição traz uma conquista política, social, econômica e fraternal, de que natureza
for, e a petrealidade passa a operar como uma garantia do avanço, então obtido. Uma
interdição ao retrocesso”.
Prevaleceu, na hipótese, o entendimento reiterado do Tribunal de que
não há falar em direito adquirido a regime jurídico no tocante aos servidores públicos
estatutários. Cabe anotar também que há evidenciada na argumentação do Ministro
Carlos Britto, exatamente o que se almeja defender mais adiante, qual seja a tese de que
a proteção conferida pelo princípio da proibição do retrocesso social soma-se ao abrigo
que emana das “cláusulas pétreas” aumentando o grau de proteção que estas conferem
aos direitos e garantias fundamentais (item 3.4.2). Portanto, o referido primado não se
resume à dita proteção. Ante a relevância do ponto em que toca, referidos argumentos
serão analisados novamente no capítulo 3.
Na ADI 3.105-8/DF e na ADI 3.128-7/DF, julgadas conjuntamente pelo
Supremo Tribunal Federal, o pedido de declaração de inconstitucionalidade do caput do
art. 4.º da Emenda Constitucional 41/2003 foi julgado improcedente, por maioria de
votos. Nesses julgados discutia-se a cobrança de contribuição previdenciária dos
servidores públicos aposentados e dos pensionistas perpetrada pela Emenda
Constitucional 41/2003. Ao final das ações, a aludida cobrança foi conservada, porém
atribuiu-se tratamento isonômico para servidores aposentados e pensionistas anteriores e
posteriores à referida Emenda, bem como entre aposentados e pensionistas da União,
Estados, Distrito Federal e Municípios, uma vez que, consoante constou em trecho da
Ementa do referido aresto, “Tratamento discriminatório entre servidores e pensionistas
da União, de um lado, e servidores e pensionistas dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, de outro”, acarreta “Ofensa ao princípio constitucional da isonomia
tributária, que é particularização do princípio fundamental da igualdade”. Entendeu-se,
portanto, ser devida a cobrança de contribuição previdenciária dos servidores públicos
federais aposentados.
É de sublinhar, contudo, que nesses julgados o Ministro Carlos Britto,
em seu voto vencido, assevera que as “cláusulas pétreas” desempenham o papel de
serem “impeditivas de retrocesso, ou seja, garantem o progresso. O progresso então
obtido é preciso ser salvaguardado”, pois não se pode negar que a Constituição de 1988
171
tem o caráter de uma Constituição avançada, que fez do indivíduo alguém
hipossuficiente perante o Poder Público e o trabalhador hipossuficiente perante o
empregador. Nesse diapasão, uma emenda só será constitucional se robustecer esse teor
de proteção ao hipossuficiente. Isso quer dizer que “A petrealidade não chega ao ponto
de impedir que uma norma protetiva receba adensamento”. Por tudo, opina que a ação
deve ser julgada procedente.
Nesse sentido, o Ministro Celso de Mello expõe acerca da matéria,
referindo-se, por conseguinte, ao princípio da proibição do retrocesso, “que, em tema de
direitos fundamentais de caráter social, e uma vez alcançado determinado nível de
concretização de tais prerrogativas (como estas reconhecidas e asseguradas, antes do
advento da Emenda Constitucional n.º 41/2003, aos inativos e aos pensionistas)”, tem o
condão de impedir “que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão
ou pela formação social em que ele vive”.
Conclui que, em realidade, “a cláusula que proíbe o retrocesso em
matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa
pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional”, fazendo com que se impeça,
consequentemente, que os patamares “de concretização dessas prerrogativas, uma vez
atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos, exceto nas hipóteses – de todo
inocorrente na espécie – em que políticas compensatórias venham a ser implementadas
pelas instâncias governamentais”.
O ministro também cita a lição de Canotilho sobre o referido primado e
menciona o Acórdão 39/1984, do Tribunal Constitucional de Portugal, acerca do
princípio em tela e, por fim, faz referência à observação do Ministro Carlos Britto na
sessão de 26.05.2004, em que na oportunidade esse magistrado afirmou que as cláusulas
pétreas “na Constituição de 1988 não cumprem uma função conservadora, mas, sim,
impeditiva de retrocesso, ou seja, garantem o progresso”, e advertiu, a título de
conclusão, que “O progresso então obtido é preciso ser salvaguardado”.
Assim, Carlos Britto e Celso de Mello defendem a inconstitucionalidade
de emenda que venha a afrontar os valores albergados pela Constituição Federal e
172
reduza o nível de direitos dantes obtido, sem instituir compensações, diminuindo o
patamar de concretização já alcançado pelos direitos sociais.
Dessa forma, no tocante a esses argumentos, o entendimento dos
ministros, nesses julgados, aproxima-se da concepção que se defende neste trabalho, ou
seja, a de que o princípio da vedação ao retrocesso social tem como um de seus
fundamentos constitucionais o direito adquirido social que robustece a proteção à norma
revogada, a qual agasalhava um grau mais elevado de direitos sociais, além de adensar a
proteção que as cláusulas pétreas conferem aos direitos e garantias fundamentais dos
servidores públicos. Aqui, também em virtude da importância de aludidos argumentos,
voltar-se-á a examiná-los novamente no próximo capítulo. E também será analisada a
matéria objeto de discussão das aludidas ações diretas de inconstitucionalidade.
No Agravo em Recurso Extraordinário 639.337/SP, o Supremo Tribunal
Federal obrigou o Município de São Paulo a matricular crianças em unidades de ensino
infantil próximas de sua residência ou do endereço de trabalho de seus responsáveis
legais, sob pena de multa diária por criança não atendida. Nesse aresto, deu-se
efetividade ao direito assegurado pelo próprio texto constitucional (Constituição
Federal, art. 208, IV, na redação dada pela Emenda Constitucional 53/2006) no que diz
respeito ao direito à educação, visto que este direito impõe um dever jurídico ao poder
público, especialmente ao município (Constituição Federal, art. 211, § 2.º), de executá-
lo, conferindo legitimidade constitucional ao Poder Judiciário para intervir em caso de
omissão estatal na implementação de políticas públicas previstas na Constituição.
O agravo improvido teve como relator o Ministro Celso de Mello, que,
acerca do primado da vedação ao retrocesso social aplicado ao caso, deixou claro, em
trecho da ementa do julgado, que:
O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma
173
vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados.
[...]
O caráter programático da regra inscrita no art. 208, IV, da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – impõe o reconhecimento de que as normas constitucionais veiculadoras de um programa de ação revestem-se de eficácia jurídica e dispõem de caráter cogente.
Nessa linha de entendimento, confere-se importância ao princípio do
não retrocesso social sempre que se intentar uma ofensa aos direitos fundamentais
agasalhados pela Constituição Federal. O Judiciário legitima-se a controlar as políticas
públicas sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos
político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer,
com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados
de estatura constitucional. Vê-se que ficou patente a ideia de que não se pode voltar
atrás para reduzir ou suprimir o patamar de direitos e garantias anteriormente
concretizado. Infere-se, também, que as normas programáticas merecem a proteção do
princípio da vedação ao retrocesso social.
Por sua vez, na Ação Direta de Constitucionalidade 29/DF, de relatoria
do Ministro Luiz Fux, questionou-se a constitucionalidade da conhecida “lei da ficha
limpa”, julgando-se conjuntamente as ações declaratórias de constitucionalidade e ação
direta de inconstitucionalidade, em que o Supremo Tribunal Federal decidiu, por
maioria, julgar procedente a ação, contra os votos dos Senhores Ministros Luiz Fux
(relator), que a julgava parcialmente procedente, e Gilmar Mendes, Marco Aurélio,
Celso de Mello e Cezar Peluso (presidente), que a julgavam improcedente. Na
oportunidade, o Supremo Tribunal Federal deliberou que “A elegibilidade é a
adequação do indivíduo ao regime jurídico – constitucional e legal complementar – do
processo eleitoral”, motivo pelo qual “a aplicação da Lei Complementar n.º 135/10 com
174
a consideração de fatos anteriores não pode ser capitulada na retroatividade vedada pelo
art. 5.º, XXXVI, da Constituição”, mercê de inoportuna a “invocação de direito
adquirido ou de autoridade da coisa julgada (que opera sob o pálio da cláusula rebus sic
stantibus) anteriormente ao pleito em oposição ao diploma legal retromencionado”;
tem-se “a mera adequação ao sistema normativo pretérito (expectativa de direito)”.
Nesse passo, a presunção de inocência sagrada no art. 5.º, LVII, da Constituição Federal
deve ser tida “como uma regra e interpretada com o recurso da metodologia análoga a
uma redução teleológica”, que torne a aproximar “o enunciado normativo da sua própria
literalidade, de modo a reconduzi-la aos efeitos próprios da condenação criminal (que
podem incluir a perda ou a suspensão de direitos políticos, mas não a inelegibilidade)”,
sob pena de fracassar “o propósito moralizante do art. 14, § 9.º, da Constituição
Federal”. Observa-se, de igual modo, que se entendeu que a Lei Complementar
135/2010 não infringe o primado “constitucional da vedação de retrocesso, posto não
vislumbrado o pressuposto de sua aplicabilidade concernente na existência de consenso
básico, que tenha inserido na consciência jurídica geral a extensão da presunção de
inocência para o âmbito eleitoral”.
Por conseguinte, no tocante ao princípio do não retrocesso, referido
julgamento tratou da questão no âmbito infraconstitucional, ou seja, a relação vertical
entre a Constituição e a lei, em que não se reconheceu ofensa ao citado primado
(seguindo-se pensamento na linha do que propõe Felipe Derbli), pois este somente
estaria infringido se estivesse presente o consenso básico enraizado na comunidade
jurídica a respeito de determinada questão que se alterou, reduziu, suprimiu no plano
infraconstitucional (não se podendo dizer, na hipótese, que a presunção de inocência
estendeu-se para a seara eleitoral). O tribunal então afastou a afronta ao primado da
proibição de retrocesso social no caso.
Passando para a análise dos julgados do Superior Tribunal de Justiça,
no Recurso Especial 567.873/MG, cujo relator foi o Ministro Luiz Fux (à época em
que era ministro dessa Corte), o Tribunal apontou o primado da vedação ao
retrocesso social, ao considerar inconstitucional (e ilegal) a denegação do benefício
da isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para os portadores de
deficiência física, quando da aquisição de automóvel adaptado às suas condições e
175
necessidades pessoais. Concedeu-se a isenção de IPI para que fosse possível a
compra de automóvel a fim de que terceiros pudessem conduzi-lo em prol da pessoa
deficiente. Questionava-se se o benefício de isenção fiscal na compra de veículos
poderia ser estendido a terceiros. O Superior Tribunal de Justiça considerou que
deve incidir a isenção de IPI à hipótese.
Nessa decisão, um dos fundamentos utilizados na argumentação do
julgado, entre outros, foi o de que o Código Tributário Nacional, por ter status de lei
complementar, não faz distinção no tocante aos casos de aplicabilidade da lei mais
benéfica ao contribuinte, o que afasta a interpretação literal do art. 1.º, § 1.º, da Lei
8.989/1995, incidindo a isenção de IPI com as alterações introduzidas pela Lei 10.754,
de 31 de outubro de 2003, aos fatos futuros e pretéritos por força do princípio da
retroatividade da lex mitior consagrado no art. 106 do CTN. De tal forma, a concessão
da isenção do IPI para efeitos de aquisição de veículos especiais por deficientes, ao
mesmo tempo em que é uma concretização dos direitos sociais, é também uma
materialização do princípio da isonomia na sua faceta substantiva, que veda não
somente atos discriminatórios em face dos deficientes, mas, ainda, e de igual modo,
determina a efetivação e, por conseguinte, proíbe que sejam suprimidas medidas que
garantam a sua inclusão no âmbito da sociedade e do mercado de trabalho,
caracterizando-se, dessa maneira, uma aplicação do princípio da vedação ao retrocesso
social.
No Recurso Especial 302.906/SP, de relatoria do Ministro Herman
Benjamin, o primado do não retrocesso é aplicado à questão ambiental. A Corte
decidiu pela não continuidade da obra de um prédio de oito andares em área
conhecida como City Lapa, bairro-jardim do Alto da Lapa, em São Paulo (SP). Por
três votos a dois, os ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça
entenderam que são válidas as limitações à construção de mais de dois pavimentos
no bairro. As normas para a ocupação da área foram instituídas pela Companhia City
há cerca de 70 anos.
176
Consoante trecho da ementa do aludido aresto, verifica-se a aplicação
do não retrocesso na seara ambiental, com o fim de garantir os avanços já conquistados
sem que ocorra a sua diluição ou destruição, nos seguintes termos:
A Administração não fica refém dos acordos “egoísticos” firmados pelos loteadores, pois reserva para si um ius variandi, sob cuja égide as restrições urbanístico-ambientais podem ser ampliadas ou, excepcionalmente, afrouxadas.
[...]
O exercício do ius variandi, para flexibilizar restrições urbanístico-ambientais contratuais, haverá de respeitar o ato jurídico perfeito e o licenciamento do empreendimento, pressuposto geral que, no Direito Urbanístico, como no Direito Ambiental, é decorrência da crescente escassez de espaços verdes e dilapidação da qualidade de vida nas cidades. Por isso mesmo, submete-se ao princípio da não regressão (ou, por outra terminologia, princípio da proibição de retrocesso), garantia de que os avanços urbanístico-ambientais conquistados no passado não serão diluídos, destruídos ou negados pela geração atual ou pelas seguintes.
Nota-se que, conquanto inserido no contexto específico do Direito
Ambiental, a essência do princípio é a mesma, isto é, preservar o nível de avanços e
garantias já alcançado sem que sobrevenha minimização ou supressão desse patamar
conquistado.
Na AI nos EREsp 727.716/CE (Arguição de Inconstitucionalidade nos
Embargos de Divergência em Recurso Especial 2005/0098940-3) discutia-se a
preliminar de inconstitucionalidade do art. 16, § 2.º, da Lei 8.213, de 24 de julho de
1991, na redação dada pela Medida Provisória 1.523, de 11 de outubro de 1996,
convertida na Lei 9.528, de 10 de dezembro de 1997. Na hipótese, a discussão girava
em torno da possibilidade de concessão de pensão por morte a menor sob guarda
quando o óbito do segurado ocorre após a alteração que a Lei 9.528/1997 provocou no §
2.º do art. 16 da Lei 8.213/1991. Na redação atual, o menor sob guarda não é mais
equiparado a filho para efeito de dependência de segurado do Regime Geral de
Previdência Social (RGPS). Ao final, acolheu-se a preliminar de não conhecimento da
arguição de inconstitucionalidade, vencidos os Ministros Celso Limongi, Luiz Fux, João
177
Otávio de Noronha e Castro Meira, sob o argumento de que não é cabível incidente de
inconstitucionalidade, no caso, porque não há inconstitucionalidade a ser declarada,
uma vez que a lei superveniente não negou o direito à equiparação, mas apenas omitiu-
se em prevê-lo e, além disso, tal declaração é desnecessária ao julgamento da causa,
considerando que eventual vazio normativo deve ser colmatado pelo próprio preceito
constitucional.
Relevante, no entanto, quanto à temática da vedação ao retrocesso, é o
voto vencido do relator, o Ministro Celso Limongi (desembargador convocado do
Tribunal de Justiça de São Paulo), em que se afastou a aplicação da norma
previdenciária por implicar retrocesso social e vilipêndio aos direitos assegurados pela
Lei Fundamental. Nesse sentido, o Ministro assim se posicionou:
Não possui eficácia o disposto no art. 16, § 2.º, da Lei 8.213/1991, na redação dada pela Medida Provisória 1.523/1996, convertida na Lei 9.528/1997, na parte em que suprimiu do menor sob guarda a condição de dependente de segurado do Regime Geral de Previdência Social, tendo em vista que afasta a proteção integral assegurada ao menor pela CF/88, além de caracterizar retrocesso social e violação aos princípios da dignidade da pessoa humana, bem como da isonomia, dada a semelhança entre a situação do menor sob guarda e do menor tutelado.
Segundo se pode depreender da argumentação do julgador, por
intermédio da proibição de retrocesso social impede-se que o legislador
infraconstitucional elimine ou reduza, total ou parcialmente, o nível de concretização
atingido por um direito fundamental social, sem acompanhamento de política
substitutiva ou equivalente, coadunando-se com o pensamento da doutrina majoritária a
respeito do assunto. Deve-se notar também que, para o magistrado, o princípio da
proibição do retrocesso social está relacionado ao princípio da dignidade da pessoa
humana. Contudo, conforme se entende nesta tese, além de o princípio ter uma
aplicação ampla e não se restringir à esfera da legislação infraconstitucional, ele
também não se funda diretamente na dignidade da pessoa humana.
178
Pois bem, após exame da jurisprudência nas Cortes de Justiça mais altas
do País a respeito da aplicação dada ao princípio da vedação ao retrocesso social como
fecho das ideias que se quis expor neste segundo capítulo, importa, agora, partir para a
análise, a seguir, no terceiro e último capítulo do presente estudo, do aludido primado
aplicado ao regime jurídico dos servidores públicos.
179
3
O PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL
E SUA APLICAÇÃO AO REGIME JURÍDICO
DO SERVIDOR PÚBLICO
SUMÁRIO: 3.1. Os Servidores Públicos: terminologia e classificação. 3.2. Regime estatutário ou institucional do servidor público. 3.3. Regime constitucional dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos. 3.3.1. Alterações instituídas no tocante à estabilidade, ao sistema remuneratório e ao regime previdenciário. 3.3.1.1. Garantia da estabilidade. 3.3.1.1.1. Efeitos decorrentes da estabilidade: direitos à reintegração, à disponibilidade, ao aproveitamento e à recondução. 3.3.1.2. Sistema remuneratório dos servidores públicos. 3.3.1.2.1. Normas constitucionais pertinentes à remuneração ou vencimento. 3.3.1.2.2. Regime de Subsídios. 3.3.1.2.3. Normas comuns à remuneração e aos subsídios. 3.3.1.3. Aposentadoria e proventos. 3.3.1.3.1. O regime previdenciário e as Emendas Constitucionais n.ºs 20/1998 e 41/2003e 47/2005. 3.3.1.3.2. Emenda Constitucional n.º 20 de 1998. 3.3.1.3.3. Emenda Constitucional n.º 41 de 2003. 3.3.1.3.4. Emenda Constitucional n.º 47 de 2005. 3.4. O princípio da vedação ao retrocesso social e o regime jurídico constitucional do servidor público ocupante de cargo efetivo. 3.4.1. O papel do Supremo Tribunal Federal no controle dos direitos e garantias dos servidores públicos. 3.4.1.1. A tese dos princípios – os argumentos de princípio e os argumentos de política. 3.4.1.2. O emprego de argumentos de política pelo Supremo Tribunal Federal e a teoria da reserva do possível. 3.4.2. O papel das “cláusulas pétreas” na democracia e a proteção aos direitos e garantias dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos. 3.4.3. O princípio da vedação ao retrocesso social e a proteção que confere aos direitos e garantias dos servidores públicos. 3.4.4. O regime jurídico do servidor público ocupante de cargo efetivo e a proteção do direito adquirido social 3.4.5. A vedação ao retrocesso social e a equivalência jurídica.
3.1 Os servidores públicos: terminologia e classificação
Primeiramente, antes de adentrar propriamente no tema referente ao
regime jurídico do servidor público estatutário, seus direitos e garantias, faz-se
necessário firmar o conceito que se tem de servidor público como premissa para o que
se deseja tratar e examinar daqui por diante.
180
Conforme as lições de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, ao fazer menção
à terminologia empregada pela Constituição de 1988, no tocante aos servidores
públicos, é possível notar que:
[...] “servidor público” é expressão empregada ora em sentido amplo, para designar todas as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício, ora em sentido menos amplo, que exclui os que prestam serviços às entidades com personalidade jurídica de direito privado. Nenhuma vez a Constituição utiliza o vocábulo funcionário, o que não impede seja este mantido na legislação ordinária330 (destaque da autora).
Afora essa diversidade no modo de empregar a nomenclatura “servidor
público” pela Lei Maior, ora com acepção lata, ora com significação restrita, a
expressão é igualmente utilizada para designar pessoas que exercem função pública sem
terem vínculo empregatício com o Poder Público, e que são denominadas, em sentido
bastante amplo, do mesmo modo, de servidores. Assim sendo, diante do grande número
de sentidos conferidos ao vocábulo “servidor”, surgiu a necessidade, no campo
doutrinário, de adotar um conceito que agasalhasse suas distintas significações, falando-
se, então, na terminologia “agentes públicos”.331
Em meio às diferentes classificações doutrinárias existentes, prefere-se
adotar a sistematização realizada por Celso Antônio Bandeira de Mello, que, inspirado
na lição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, adaptou os ensinamentos desse jurista
aos tempos atuais em virtude do advento da Carta de 1988.332 Nesse sentido, C. A.
Bandeira de Mello leciona que a expressão agente público “é a mais ampla que se pode
conceber para designar genérica e indistintamente os sujeitos que servem ao Poder
Público como instrumentos expressivos de sua vontade ou ação, ainda quando o façam
apenas ocasional ou episodicamente”.333
330 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., p. 584. 331 Idem, ibidem, p. 585. 332 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 251. 333 Idem, ibidem, p. 248.
181
Diante do exposto, podem-se dividir os agentes públicos em três grupos
ou categorias:
a) os agentes políticos, que “são os titulares dos cargos estruturais à
organização política do País, ou seja, ocupantes dos que integram o arcabouço
constitucional do Estado, o esquema fundamental do Poder”, e mantêm com o Estado
um vínculo de caráter político;334
b) os servidores estatais, que se subdividem em servidores públicos e
servidores das pessoas governamentais de Direito Privado: b1) os servidores públicos
(conceito que mais de perto interessa ao presente estudo) mantêm vínculo de natureza
profissional com o ente estatal e ocupam cargos ou empregos na Administração direta e
indireta (nas autarquias e fundações públicas); b2) os servidores das pessoas
governamentais de Direito Privado “são os empregados de empresas públicas,
sociedades de economia mista e fundações de Direito Privado instituídas pelo Poder
Público, os quais estarão todos, obrigatoriamente, sob regime trabalhista”;335 e
c) os particulares, que colaboram com o Poder Público que e são
aqueles exercentes de “função pública, ainda que às vezes apenas em caráter
episódico”.336
Com efeito, exposta a sistematização como um todo no tocante aos
agentes públicos, tratar-se-ão, a partir de agora, mais exatamente, dos servidores
públicos, sendo essencial estabelecer quais as suas espécies e qual delas será foco do
que se desenvolverá ao longo deste capítulo, como parte importante do presente estudo.
334 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 251-252. Esse autor enumera os agentes
políticos. Nas suas palavras: “[...] São agentes políticos apenas o Presidente da República, os Governadores, Prefeitos e respectivos vices, os auxiliares imediatos dos Chefes de Executivo, isto é, Ministros e Secretários das diversas Pastas, bem como os Senadores, Deputados federais e estaduais e os Vereadores” (Ibidem, p. 252).
335 Idem, ibidem, p. 253-255. 336 Nessa categoria, C. A. Bandeira de Mello cita: os requisitados para prestar serviço militar, os
jurados, aqueles que trabalham nas eleições públicas, os que prestam serviço militar obrigatório etc., exercendo um munus público; os que sponte propria assumem a gestão da coisa pública diante de situações excepcionais e quando houver necessidade pública em jogo; os contratados por locação civil de serviços; e os concessionários e permissionários de serviços públicos e também os delegados de função ou ofício público (Idem, p. 255-256).
182
Nesse viés, consoante já se fez alusão, os servidores públicos podem ser
ocupantes de cargos ou de empregos públicos. Estes últimos (os servidores ocupantes de
empregos) mantêm com o Estado um vínculo empregatício sob regime da legislação
trabalhista, em razão de um dos seguintes motivos: a) foram “admitidos sob vínculo de
emprego para funções materiais subalternas”; b) o pessoal remanescente “do regime
anterior, no qual se admitia (ainda que muitas vezes inconstitucionalmente) amplamente
o regime de emprego”; e, também, c) os que foram “contratados, nos termos do art. 37,
IX, da Constituição, sob vínculo trabalhista, para atender a necessidade temporária de
excepcional interesse público”. Por sua vez, os servidores titulares de cargos públicos,
da Administração Direta (que eram chamados outrora, na vigência da Constituição
anterior, de funcionários públicos, como adverte C. A. Bandeira de Mello) e Indireta de
natureza de direito público (autarquias e fundações públicas), bem como do Judiciário e
da esfera administrativa do Legislativo, estão sujeitos ao regime estatutário estabelecido
em lei por cada uma das unidades da federação.337
Por conseguinte, são os servidores do Estado, titulares de cargo público,
que se submetem ao regime estatutário ou institucional, cuja natureza do vínculo com o
Poder Público é de caráter não contratual, que estão, portanto, sujeitos às mudanças
legislativas. Serão eles, seu regime jurídico, e a aplicação do princípio do não retrocesso
social aos seus direitos e garantias, o tema central do presente capítulo. Dessa forma,
importa expor esse regime jurídico que liga o servidor ao Estado, diante da relevância
que assume para a discussão da matéria.
3.2 Regime estatutário ou institucional do servidor público
A par da discussão que se travou no âmbito do Direito Administrativo a
respeito da natureza jurídica da relação estabelecida entre o Estado e o servidor público
– em que se têm de um canto a teoria bilateral (contratual) e, de outro, fazendo-lhe
oposição, a teoria unitária, comportando esta última uma subdivisão entre a teoria do ato
administrativo e a legal, ou do estatuto –, pode-se asseverar que, em tempos atuais, não
é o contrato nem o ato administrativo que formam e regem o vínculo que une o servidor
337 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 254-255.
183
público ocupante de cargo ao ente estatal, mas sim o ato legislativo, em sentido formal,
bastando uma simples apreciação das Seções I e II, do Capítulo VII, do Título III, da
Constituição, que relacionam os princípios que se aplicam às funções e aos servidores
públicos, para que se constate tal afirmação.338
Com a promulgação da Constituição de 1988, travou-se uma discussão
para saber se o art. 39, caput, que determinou que se adotasse o “regime jurídico único”
para os servidores das Administrações Públicas Direta, autárquica e fundacional
(pública), de qualquer esfera de poder, reclamava o regime estatutário, ou se poderia
caber a opção pelo regime celetista. Em que pese o debate sobre a questão, a Lei Federal
8.112/1990, definiu que o regime jurídico dos servidores da União seria o estatutário. A
Corte Superior de Justiça do País também se manifestou nesse sentido. Portanto, mesmo
diante de algumas vozes em contrário, os servidores ocupantes de cargos efetivos
sujeitaram-se a um estatuto (lei) que regeria seu vínculo laborativo com o ente estatal.
338 Diogo de Figueiredo Moreira Neto explica o assunto da seguinte forma: “O conceito particularizado
de função pública, bem como os que lhe são correlatos, de funcionário público e de servidor público, se constrói sobre a natureza do vínculo estabelecido entre o Estado e os indivíduos que desempenham atividades estatais”. Nesse viés, observa que “O assunto se tem prestado a extensas discussões doutrinárias, que hoje parecem quase bizantinas, mas que, na perspectiva histórica do Direito Administrativo, valem para ilustrar como se processou a evolução conceptual do instituto”. Desse modo, “Destacam-se dois grandes grupos de conceitos sobre a natureza do vínculo típico do serviço público: o das teorias bilaterais e o das teorias unilaterais”. Esclarece que “As teorias bilaterais são as mais antigas, ligadas historicamente ao surgimento do liberalismo, fundando, por isso, a relação jurídica da função pública no contrato, que se firmaria entre o indivíduo e o Estado”. Aclara que, “De modo geral, todas essas teorias contratualistas tinham, como comum fundamento, um princípio inaplicável à teoria da função pública, o da autonomia da vontade, dificilmente conciliável com o princípio antípoda, da imperatividade, inerente ao Estado”. No tocante às teorias unilaterais da função pública, estas entendem que “apenas à luz do princípio da imperatividade teria fundamento a imposição de alterações unilaterais pelo Poder Público, como aquelas relativas à remuneração, às condições de serviço, às atribuições e, principalmente, às hipóteses de modificação e de extinção unilateral do vínculo, consentâneas com a indisponibilidade do interesse público”. Observa que “Essa concepção levou a doutrina a assentar o fundamento da relação jurídica da função pública apenas na vontade unilateral do Estado. Mas, ainda assim, como essa vontade tanto poderia ser emitida por ato legislativo quanto por ato administrativo, subdividiram-se duas correntes unilaterais: a do ato administrativo e a legal, ou do estatuto”. Aquela “funda no ato administrativo a criação, modificação e extinção da função pública, defendida por Otto Mayer e Marcelo Caetano”, e “concebe uma total submissão do servidor à Administração”. Já a teoria do estatuto “fundamenta na lei o vigamento da função pública e da relação entre administração e servidor, não sendo nem a vontade das partes, pelo contrato, nem a vontade da Administração, pelo ato administrativo, que estabelecem e regem o vínculo, mas a vontade da lei”. É essa teoria a prevalente nos Estados contemporâneos e a adotada pelo nosso ordenamento jurídico constitucional (Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial, 14. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 286-287).
184
Se assim o é, pode-se dizer que o regime jurídico dos servidores
públicos constitui-se no conjunto de normas que disciplinam a relação do servidor com
o Estado, composto por preceitos legais referentes: ao acesso aos cargos públicos, à
investidura em cargo de provimento efetivo (por intermédio de prévia aprovação em
concurso público) e de provimento em comissão, às nomeações para funções de
confiança; aos direitos e aos deveres dos servidores; à promoção e seus atinentes
critérios; ao sistema remuneratório (composto pelo regime de subsídios ou
remuneração, abrangendo os vencimentos, com as especificações das vantagens de
ordem pecuniária, os salários e as reposições pecuniárias); às penalidades e sua
aplicação; ao processo administrativo; e, também, à aposentadoria.339
Assevera José dos Santos Carvalho Filho que, “para o regime
estatutário, há um regime constitucional superior, um regime legal contendo a disciplina
básica sobre a matéria e um regime administrativo de caráter organizacional”. No que
diz respeito às características do regime estatutário, explica que esse regime não pode
incluir normas que denunciem a existência da figura contratual, entendendo que o
regime estatutário tem característica dúplice. Nesse passo, destaca que a primeira
peculiaridade “é a da pluralidade normativa, indicando que os estatutos funcionais são
múltiplos”. Por conseguinte, “Cada pessoa da federação, desde que adote o regime
estatutário para os seus servidores, precisa ter a lei estatutária para que possa identificar
a disciplina da relação jurídica funcional entre as partes”. Dessa maneira, “Há, pois,
estatutos funcionais federal, estaduais, distrital e municipais, cada um deles autônomo
em relação aos demais, porquanto a autonomia dessas pessoas federativas implica,
necessariamente, o poder de organizar seus serviços e seus servidores”. Já o outro traço
peculiar “à natureza da relação jurídica estatutária” consiste no fato de que “Essa
relação não tem natureza contratual, ou seja, inexiste contrato entre o Poder Público e o
servidor estatutário”.340
Com isso, defende-se, portanto, que o liame institucional ou estatutário,
que vincula o servidor ocupante de cargo na Administração Direta, autárquica e
fundacional pública (e igualmente os servidores do Judiciário e os ocupantes de cargos 339 Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo brasileiro, 35. ed., São Paulo: Malheiros, 2009, p. 419. 340 José dos Santos Carvalho Filho, Manual de direito administrativo, 25. ed., São Paulo: Atlas, 2012,
p. 593.
185
administrativos do Legislativo), é aquele que é passível de alteração, ou seja,
diferentemente do que sucede nas relações decorrentes do regime contratual (celetista),
o Estado (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios), observadas as
determinações constitucionais que obstam certas mudanças, pode alterar unilateralmente
(por intermédio de lei) o regime jurídico de seus servidores, o que acarreta modificação
nas normas concernentes a esta espécie de agente público, não permanecendo as
mesmas disposições que vigoravam quando da sua investidura, podendo ser alteradas
dali por diante. De tal modo, entende-se que um benefício antes concedido poderá
posteriormente ser abolido, não havendo que se cogitar de afronta ao primado da
legalidade. Da mesma forma, um dever que dantes não era previsto pode passar a ser,
exigindo a sua observância, situação que não é passível de convivência com o regime
celetista, pois neste não se pode ordenar imperiosamente o que não foi acordado.
Nos dizeres de C. A. Bandeira de Mello, sobre esse regime é possível
verificar que, “no liame de função pública, composto sob a égide estatutária, o Estado,
ressalvadas as pertinentes disposições constitucionais impeditivas, deterá o poder de
alterar legislativamente o regime jurídico de seus servidores”, de forma que inexistirá “a
garantia de que continuarão sempre disciplinados pelas disposições vigentes quando de
seu ingresso. Então benefícios e vantagens, dantes previstos, podem ser ulteriormente
suprimidos”.341
Destarte, consoante diz Marçal Justen Filho, é característica própria do
regime jurídico aplicável ao cargo público a “mutabilidade por determinação unilateral
do Estado, que pode ampliar, alterar ou suprimir encargos, atribuições e benefícios, nos
limites constitucionalmente permitidos”.342
Afirma-se, nessa toada, por via de consequência, que “Não há direito
adquirido a um regime jurídico, o qual pode ser alterado na forma da Constituição
Federal”343, de acordo com “o interesse público, sem que o servidor a isso possa se
opor”344. Todavia, adverte Hely Lopes Meirelles que, “quando o servidor preencher
341 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 261. 342 Marçal Justen Filho, Curso de direito administrativo, 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 702. 343 Meirelles, Direito administrativo brasileiro, p. 420. 344 Diógenes Gasparini, Direito administrativo, 13. ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 204.
186
todas as exigências previstas no ordenamento jurídico vigente para a aquisição de um
direito, este se converte em direito adquirido e há de ser respeitado pela lei nova”.345
No entanto, não obstante o regime jurídico estatutário ser mutável, C.
A. Bandeira de Mello explana que “a Constituição e as leis outorgam aos servidores
públicos um conjunto de proteções e garantias tendo em vista assegurar-lhes condições
propícias a uma atuação imparcial, técnica, liberta de ingerências” que aqueles que
ocupam o Poder eventual e transitoriamente, ou seja, os agentes políticos, “poderiam
pretender impor-lhes para obtenção de benefícios pessoais ou sectários, de conveniência
da facção política dominante no momento”.346
Ainda, consoante os ensinamentos do autor:
Tal regime, atributivo de proteções peculiares aos providos em cargo público, almeja, para benefício de uma ação impessoal do Estado – o que é uma garantia para todos os administrados –, ensejar aos servidores condições propícias a um desempenho técnico isento, imparcial e obediente tão só a diretrizes político-administrativas inspiradas no interesse público, embargando, destarte, o perigo de que, por falta de segurança, os agentes administrativos possam ser manejados pelos transitórios governantes em proveito de objetivos pessoais, sectários ou político-partidários – que é, notoriamente, a inclinação habitual dos que ocupam a direção superior do País. A estabilidade para os concursados, após três anos de exercício, a reintegração (quando a demissão haja sido ilegal), a disponibilidade remunerada (no caso de extinção do cargo) e a peculiar aposentadoria que se lhes defere consistem em benefícios outorgados aos titulares dos cargos, mas não para regalo destes e sim para propiciar, em favor do interesse público e dos administrados, uma atuação impessoal do Poder Público.
É dizer: tais proteções representam, na esfera administrativa, função correspondente à das imunidades parlamentares na órbita legislativa e dos predicamentos da Magistratura no âmbito jurisdicional347 (destaques do autor).
Além do mais, “o regime do funcionalismo consagra restrições quanto
ao exercício de outras atividades, seja no próprio serviço público (regras de
345 Meirelles, Direito administrativo brasileiro, p. 420. 346 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 262. 347 Idem, ibidem, p. 266-267.
187
acumulação), seja na iniciativa privada (exercício de atividade comercial)”, e, ainda,
“impõe um regime disciplinar específico”.348 Por isso, os direitos e garantias dos
servidores merecem ser defendidos “como instrumento de proteção do próprio Estado e
da sociedade”, na medida em que permitem aos servidores exercer suas funções com
maior autonomia, sem se sujeitarem a uma série de pressões políticas.349
Infere-se, portanto, que os direitos e garantias conferidos aos servidores
públicos sob a égide do regime jurídico estatutário são fundamentais para que estes
funcionários possam exercer e desempenhar suas atividades protegidos dos mandos e
desmandos dos governantes, dos abusos e violações que possam vir a sofrer, o que,
destaca-se, é essencial para a manifestação plena dos princípios da igualdade em relação
aos administrados, da impessoalidade, da moralidade e da eficiência na prestação dos
serviços públicos. Sem esse plexo de direitos e garantias, referidos servidores estariam à
mercê dos interesses político-partidários, dos conchavos e conluios, e toda sorte de
arbitrariedades que ocorressem no âmbito da Administração.
Contudo, conforme se expôs, embora estejam previstos aos servidores
ocupantes de cargos públicos determinados direitos e garantias, compreende-se que não
há a sua inalterabilidade, uma vez que referidos direitos e garantias compõem o regime
estatutário (legal) e, de tal modo, sujeito a alterações. Daí afirmar que não há direito
adquirido a regime jurídico. A lei pode ser alterada, desde que observe os parâmetros
constitucionais. E, dessa maneira, benefícios, vantagens, direitos e obrigações dos
servidores, que dantes lhes foram estabelecidos, podem ser modificados (quanto a esse
ponto, ressalta-se, adiante será feita uma apreciação crítica sobre o tema – item 3.4.4).
Necessário esclarecer, todavia, que a Emenda Constitucional 19/1998
alterou o caput do art. 39 da Constituição Federal que falava em regime jurídico único
para os servidores da Administração Pública Direta, das autarquias e das fundações
públicas, fazendo prevalecer, com isso, a interpretação de que havia findado a
348 Eduardo Rocha Dias e José Leandro Monteiro de Macêdo, Nova Previdência do servidor público, 3.
ed., Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2010, p. 127. 349 Idem, ibidem, p. 127.
188
obrigatoriedade do regime jurídico único (estatutário),350 dado que a emenda deixava de
fazer expressa menção a este regime na redação da cabeça do citado artigo. Por
conseguinte, defendeu-se que a Emenda Constitucional 19/1998 acabou por colocar fim
à obrigatoriedade de adoção do regime estatutário na Administração Direta, suas
autarquias e fundações públicas, deixando a critério da Administração, consoante suas
conveniências, a possibilidade de optar pelo regime contratual no âmbito desses entes
públicos, à exceção daquelas carreiras que desempenham atividades exclusivas de
Estado (cf. art. 247 da CF/1988). Tornou-se admissível, então, a contratação de novos
servidores por regimes diferentes.
Em que pese a discussão em torno da questão, o Supremo Tribunal
Federal reconheceu o vício formal que se deu na votação do art. 39 e decidiu, ao menos
em caráter liminar, com efeitos ex nunc – em agosto de 2007, depois de sete anos do
ingresso da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2135/2000 pelos partidos
políticos que à época faziam parte da oposição (PT, PDT, PC do B e PSB) –, que o texto
original do art. 39, caput, da Constituição de 1988 deveria ser restabelecido, mantendo-
se, por conseguinte, o regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da
Administração Pública Direta, das autarquias e das fundações públicas.351 De tal modo,
embora ainda pendente de julgamento definitivo, a partir da publicação da decisão
350 Dentre os autores que defenderam esse pensamento estavam Diógenes Gasparini, Hely Lopes
Meirelles e Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Segundo o ensinamento de Meirelles a citada emenda “suprimiu a obrigatoriedade de um regime jurídico único para todos os servidores públicos”. Afirmava o autor, nesse sentido, que o “regime jurídico pode ser estatutário, celetista (o da CLT) e administrativo especial”; este para os servidores públicos contratados por tempo determinado, conforme previsto no art. 37, IX, da Constituição (Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo brasileiro, 28. ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 392-393).
351 O julgamento no Supremo Tribunal Federal restringiu-se ao aspecto formal, referente ao processo de votação da emenda, disciplinado pelo art. 60, § 2.º, da Constituição, segundo o qual a Lei Maior só pode ser alterada por 3/5 (três quintos) dos votos dos deputados e senadores, em duas votações separadas, em cada Casa do Congresso. É de ver que o texto proposto no substitutivo do relator da Proposta de Emenda à Constituição, Deputado Moreira Franco (PMDB-RJ), para o caput do art. 39 da CF/1988 foi objeto de destaque para votação em separado e não alcançou, no primeiro turno, os 308 votos para sua aprovação, o que acarretaria como efeito, consequentemente, a permanência do texto original da Constituição. Ao elaborar o texto enviado para votação em segundo turno, a comissão especial de redação da Câmara dos Deputados teria deslocado o § 2.º do art. 39, que havia sido aprovado, para o lugar do caput do art. 39, cuja proposta de alteração havia sido rejeitada no primeiro turno. Isto é, transformou-se um texto que tinha sido aprovado como § 2.º do art. 39, no caput do mesmo artigo, em uma fraude evidente ao processo de votação. Diante dessa manobra excluiu-se da Lei Fundamental o caput original do art. 39 da Constituição, sem que sua supressão tivesse sido aprovada. Eliminou-se do texto constitucional exatamente a disposição que tratava do regime jurídico único e dos planos de carreira.
189
liminar, não deverá mais haver a contratação pelo regime de emprego (celetista) na
Administração Direta, autarquias e fundações públicas; apenas e exclusivamente o
vínculo que regerá os servidores ocupantes de cargo público será o estatutário ou
institucional.
Se assim o é, uma vez restabelecida pelo Supremo Tribunal Federal a
obrigatoriedade do regime jurídico único para a Administração Direta, autárquica e
fundacional pública, conforme já se destacou, a questão que se põe, e que será objeto
de análise e discussão, é a de saber se é admissível emenda à Constituição que reduza,
minimize, abrande, minore direitos e vantagens anteriormente concedidos aos
servidores, estipulados em um grau mais elevado, em um nível mais alto do que,
posteriormente, certas emendas passaram a instituir. Não se trata apenas de abordar a
questão sob o prisma do direito adquirido individual ou do próprio direito adquirido a
regime jurídico; muito mais do que isso, importa analisar a problemática sob o prisma
do direito adquirido social (dimensão social) e, ainda mais, sob a ótica da vedação ao
retrocesso social.
3.3 Regime constitucional dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos
3.3.1 Alterações instituídas no tocante à estabilidade, ao sistema remuneratório e ao
regime previdenciário
Diante das disposições constitucionais estabelecidas pelo constituinte
originário, referentes aos servidores ocupantes de cargos efetivos, previstas na
Constituição Federal de 1988, no Capítulo VII, da Administração Pública,352 e ante as
352 Dentre os direitos constitucionalmente previstos para os servidores ocupantes de cargos efetivos
estão vários direitos previstos aos trabalhadores (empregados) em geral que também se aplicam aos servidores. Assim, alguns direitos previstos no art. 7.º da CF, relativos aos trabalhadores da esfera privada e aos empregados públicos são garantidos, de igual maneira, aos servidores públicos ocupantes de cargos, quais sejam: salário mínimo (inc. IV); remuneração nunca inferior ao salário mínimo para quem recebe remuneração variável (inc. VII); décimo terceiro salário (inc. VIII); remuneração de trabalho noturno superior à do diurno (inc. IX); salário-família para os dependentes (inc. XII); duração do trabalho diário normal não superior a 8 horas e não superior a 44 horas semanais (inc. XIII); repouso semanal remunerado (inc. XV); remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em 50% à do normal (inc. XVI); férias anuais remuneradas com, pelo menos, 1/3 a mais do que a remuneração normal (inc. XVII); licença à gestante com duração de 120 dias (inc. XVIII; veja-se que a Administração Pública poderá prorrogar este prazo por 60 dias, com base
190
alterações feitas nas aludidas disposições, pelo legislador reformador, por intermédio de
várias emendas, constrói-se este tópico com o objetivo de tratar dos direitos e garantias
fundamentais dos servidores públicos e as modificações sobrevindas ao seu regime
jurídico em decorrência da série de emendas constitucionais promulgadas no tocante à
matéria. Portanto, como ponto central dos comentários atinentes a ditas mudanças, serão
expostas as alterações instituídas pela competência reformadora no tocante à
estabilidade, ao sistema remuneratório e ao regime previdenciário dos servidores
efetivos, procedendo-se a uma análise objetiva para posteriormente realizar uma
apreciação crítica a respeito do tema.
Adverte-se, no entanto, que, no que concerne às mudanças instituídas,
várias considerações já serão tecidas, ao longo da exposição do tema, acerca da
dimensão individual dos direitos e garantias dos servidores. Isto é, a partir do advento
das alterações constitucionais, algumas das mudanças acabaram ofendendo o âmbito
individual dos direitos e garantias fundamentais dos servidores públicos e, quanto a essa
esfera do servidor, pontualmente serão feitos comentários a respeito do assunto.
Contudo, no que diz respeito à dimensão social das modificações, a análise a ser
realizada ocupará a parte final do trabalho, a partir do item 3.4 do presente estudo.
3.3.1.1 Garantia da estabilidade
Em sua previsão original o caput do art. 41 da Constituição Federal
trazia a seguinte redação: “São estáveis, após dois anos de efetivo exercício, os
servidores nomeados em virtude de concurso público”.
Diante do advento da Emenda Constitucional 19/1998, o legislador
reformador manteve a exigência do concurso e do período de prova para o servidor
no art. 2.º da Lei 11. 770/2008); licença-paternidade, nos termos previstos em lei (inc. XIX); proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos previstos em lei (inc. XX); redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (inc. XXII); proibição de diferença de remuneração, de exercício de funções e de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil, com ressalva da adoção de requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir (inc. XXX). Não houve alteração que tenha afetado os servidores públicos titulares de cargos.
191
tornar-se estável, mas incluiu alterações na redação do art. 41, acrescentando novas
exigências para a aquisição de dita garantia.
No contexto pós-emenda, a redação atual do mencionado dispositivo
contém a seguinte determinação: “São estáveis após 3 (três) anos de efetivo exercício os
servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso
público”.
E o § 4.º do art. 41, que foi acrescentado pela dita emenda, dispõe que:
“Como condição para a aquisição da estabilidade, é obrigatória a avaliação especial de
desempenho por comissão instituída para essa finalidade”.
Desse modo, pela leitura do dispositivo em apreço, conjugando-se as
disposições contidas no caput e no citado parágrafo, pode-se conceituar o benefício da
estabilidade como a garantia prevista na Lei Fundamental que só diz respeito aos
servidores públicos, que tiveram aprovação em concurso público (com exceção dos
servidores beneficiados com a estabilidade excepcional),353 nomeados para ocuparem
cargos de provimento efetivo, aprovados em seu desempenho, depois de serem
avaliados por comissão instituída para tal finalidade, no exercício do cargo durante o
período de três anos. 354
No que diz respeito às hipóteses de perda da aludida garantia, a referida
emenda também estabeleceu modificações no art. 41, § 1.º, da Constituição Federal,
dispondo:
O servidor público estável só perderá o cargo:
I – em virtude de sentença judicial transitada em julgado;
353 Sobre o tema Di Pietro leciona: “Excepcionalmente, a Constituição de 1988, a exemplo de
Constituições anteriores, conferiu estabilidade a servidores que não foram nomeados por concurso, desde que estivessem em exercício na data da promulgação da Constituição há pelo menos cinco anos continuados (art. 19 das Disposições Transitórias). O benefício somente alcançou os servidores públicos civis da União, Estados, Distrito Federal, Municípios, da Administração Direta, autarquias e fundações públicas. Excluiu, portanto, os empregados das fundações de direito privado, empresas públicas e sociedades de economia mista. […]” (destaque da autora) (Direito administrativo, 26. ed., p. 654-655).
354 Sparapani, A estabilidade do servidor público civil após a Emenda Constitucional n.º 19/98, 2008, Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p. 131.
192
II – mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa;
III – mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa.
As duas primeiras hipóteses já estavam previstas na redação original da
Constituição Federal (no § 1.º do art. 41). Veja-se que a novidade veio pela inserção da
avaliação periódica de desempenho do servidor público estável no inciso III do aludido
dispositivo. Embora referida avaliação conste pela primeira vez no texto constitucional,
após a Emenda Constitucional 19/1998, que a incluiu como uma das hipóteses de perda
do cargo, a avaliação esteve presente em legislações infraconstitucionais, fazendo parte
da experiência de determinados entes e órgãos da Administração Pública brasileira.355
Segundo a doutrina, a avaliação não constitui grande novidade, como foi alardeado na
época da “reforma administrativa”, pois se entendeu que a perda do cargo por
insuficiência de desempenho sempre existiu em virtude da previsão contida nos 355 A avaliação de desempenho dos servidores públicos surgiu no cenário brasileiro na década de 1930,
mais precisamente no ano de 1936 com a Lei do Reajustamento, e, ao regular promoções, tentou instituir a avaliação de desempenho dos servidores no âmbito federal. Entretanto, tal sistema não obteve os resultados esperados em virtude, especialmente, da falta de preparo dos responsáveis por procederem à avaliação. A Lei 3.780, de 10.07.1960, que implantou o Plano de Cargos na Administração Federal, tentou instituir, por meio de critérios de promoção por antiguidade e merecimento, a avaliação de desempenho. Esta era feita por meio de um “Boletim de Merecimento”, em que o superior imediato avaliava o seu subordinado semestralmente. No entanto, por falta de um compromisso sério com o método implantado, não foi possível constatar a realidade das avaliações, pois todos os avaliados tinham um resultado muito positivo, além da média que poderia ser efetivamente. Após um período de abandono do tema, os integrantes do Plano de Classificação de Cargos, tiveram o desenvolvimento em carreira previsto na Lei 5.645/1970, disciplinada por meio do Decreto 80.602/1977. Este Decreto regulamentou a progressão funcional e definiu o aumento por mérito (mudança de referência dentro da mesma classe). Posteriormente, veio o Decreto 84.669/1980, alterando o Decreto 80.602/1977, passando a definir a progressão horizontal (mudança ocorrida dentro da mesma classe) e vertical (mudança de classe). A progressão horizontal dependeria da avaliação de desempenho, baseada em fatores subjetivos, por parte do superior, e era expressa em conceitos que determinariam o interstício a ser cumprido pelo servidor. Este método também não obteve êxito, na medida em que se mostrou falho ao comparar funcionários entre si e distribuí-los em grupos de desempenho, tornando-se apenas um sistema formal a ser seguido. Em 1985 e também em 1993 com a Lei 8.627, ficou estabelecida a progressão automática em relação às referências atribuídas aos servidores, sem nenhuma vinculação à promoção por mérito (Luiz Alberto dos Santos e Regina Luna Santos Cardoso, Sistemas de remuneração baseada em desempenho no Governo Federal do Brasil: o caso dos gestores governamentais, VII Congreso Internacional Del CLAD sobre la Reforma Del Estado y de la Administración Pública, Lisboa, Portugal, 8-11, Oct. 2002. Disponível em <http//:unpan1.un.org/intradoc/groups/public/documents/CLAD/clad0044001.pdf>. Acesso em: 11 ago. 2012). Agora com a reforma de 1998, estabelece a Lei Fundamental que a União, os Estados e o Distrito Federal deverão manter escolas de governo com a finalidade de promover a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos, sendo que a promoção na carreira tem por um dos requisitos a participação em tais cursos (§ 2.º do art. 39). Com isto, exige a criação de sistemas para avaliação e análise do mérito do serviço desempenhado pelos servidores.
193
estatutos, de que o servidor comprovadamente desidioso no cumprimento de suas
funções poderia perder o cargo, tratando-se a hipótese, por conseguinte, como se a
desídia e a ineficiência fossem equivalentes.356
Todavia, com o devido respeito à doutrina que assim se posiciona, não
se pode entender a desídia como um conceito equivalente à ineficiência. O próprio
significado gramatical das palavras chama a atenção para o fato de que se trata de
termos distintos. Desídia significa ociosidade, desleixo, preguiça, inércia; já ineficiência
quer dizer defeito de quem não produz um resultado esperado, desejado ou suficiente.
Com efeito, um servidor pode ser zeloso no cumprimento de suas funções, pode ser
assíduo, responsável, pontual, atuante e, mesmo assim, não produzir o que dele se
espera, e, por conseguinte, ele não será considerado desidioso, mas sim ineficiente.
Portanto, a previsão contida no inciso III do § 1.º do art. 41 da Magna Carta, em
verdade, não condiz com a previsão infraconstitucional que prevê a hipótese de perda do
cargo pelo servidor comprovadamente desidioso; em verdade, constituem hipóteses
diversas.
Sobre a questão Romeu Felipe Bacellar Filho ensina que, quando o
servidor for estável e o seu desempenho for reputado insuficiente, poderá ocorrer a
perda do seu cargo e da sua estabilidade já conquistada, e isto será uma medida
punitiva, e não somente um meio para avaliar a eficiência da atividade que desenvolve
356 Nesse passo, afirma Ana Luísa Celino Coutinho que não havia necessidade de a EC 19/1998 incluí-
la no rol do citado parágrafo do art. 41, uma vez que “O procedimento desidioso por parte do servidor já estava listado pela Lei 8.112/1990 como comportamento ensejador de demissão, desde que fosse apurado em processo administrativo e que fosse garantida ao servidor a ampla defesa” (Ana Luísa Celino Coutinho, Servidor público: reforma administrativa, estabilidade, empregado público, direito adquirido, 1. ed. (2003), 4.ª tiragem, Curitiba: Juruá, 2006, p. 132). É o que defende igualmente Lúcia Valle Figueiredo, no mesmo sentido, afirmando que, mesmo antes do advento da EC 19/1998, a legislação infraconstitucional implicitamente admitia a avaliação periódica de desempenho, “na medida em que, mediante processo administrativo disciplinar, o servidor desidioso poderia perder o cargo”. Entretanto, faz a ressalva de que, “[...] certamente, a obrigatoriedade da avaliação fará com que haja permanente controle sobre o cumprimento dos deveres do cargo” (Lúcia Valle Figueiredo, Curso de direito administrativo, 8. ed. rev., ampl. e atual. até a Emenda Constitucional 52/2006, São Paulo: Malheiros, 2006, p. 603). Márcio Cammarosano, em comentário sobre a inclusão da avaliação de desempenho no precitado dispositivo constitucional pela “reforma administrativa”, destaca que a possibilidade de o servidor estável perder o cargo por insuficiência de desempenho sempre existiu em virtude da previsão contida nos Estatutos, que é a perda do cargo pelo servidor comprovadamente ineficiente ou desidioso no cumprimento de suas funções (Márcio Cammarosano, Servidor público: um enfoque atual, Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, n. 7, ano XXI, p. 763, jul. 2005).
194
no serviço público. Nesse caso, considera-se que o servidor estável é acusado, uma vez
que a Administração lhe imputará uma acusação de ineficiência. No que diz respeito ao
servidor em estágio probatório (que deverá passar por uma avaliação especial de
desempenho, após a Emenda Constitucional 19/1998), no entanto, a configuração de
desempenho precário não terá a natureza de punição, o que não descarta, contudo, o
litígio.357 Não obstante, sendo medida punitiva para o servidor estável, a avaliação
periódica representa uma diminuição na força protetiva da estabilidade.
Ainda, o servidor público poderá perder a estabilidade pelo
descumprimento do limite de despesa com o pessoal previsto no art. 169, § 4.º, da
Constituição Federal. Essa alteração trazida com a Emenda Constitucional 19/1998
estabeleceu outra nova hipótese de perda do cargo para quem já é estabilizado, e
quebrou a sistemática constitucional tradicional, por dois motivos: primeiro, por estar
fora das hipóteses de perda do cargo previstas no art. 41, § 1.º, da Constituição Federal;
e, segundo, por determinar (com a insuficiência de desempenho) situação de
desinvestidura do cargo diversa daquelas instituídas nos incisos I e II do citado
dispositivo constitucional – e que antes da Emenda Constitucional 19/1998 eram
previstas conjuntamente no mesmo parágrafo (quais sejam: perda do cargo mediante
sentença judicial transitada em julgado e demissão decidida em virtude de processo
administrativo disciplinar, consoante já se disse).358
Para atingir os limites estipulados nos §§ 3.º e 4.º do art. 169 da
Constituição Federal, tem-se que diminuir os cargos em comissão ou funções de
confiança (em pelo menos 20%). Se assim procedendo não se atingir o limite previsto,
deverão ser exonerados os não estáveis (servidores em estágio probatório e os que estão
fora da estabilidade excepcional concedida pelo art. 19 do ADCT); e, se esgotadas as
exonerações anteriores sem terem sido suficientes, o estável poderá ser desligado do seu
cargo.
357 Quando a Administração reputa insuficiente o desempenho do servidor estável, o procedimento de
avaliação periódica, segundo Bacellar, “configura espécie de processo administrativo disciplinar porque, a partir do momento em que a Administração imputa ao servidor uma conduta ineficiente, está procedendo a uma acusação”. Aqui, o servidor é considerado acusado (Romeu Felipe Bacellar Filho, Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar, São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 110-111).
358 Sparapani, A estabilidade do servidor público civil após a Emenda Constitucional n.º 19/98, p. 169.
195
Veja-se que os §§ 5.º e 6.º do citado artigo ainda determinam que o
servidor que perder o cargo na forma do § 4.º (perda do cargo pelo servidor estável) fará
jus à indenização correspondente a um mês de remuneração por ano de serviço. E o
cargo objeto da redução de pessoal será considerado extinto, vedada a criação de cargo,
emprego ou função com atribuições iguais ou assemelhadas pelo prazo de quatro anos.
Quanto a esse ponto, C. A. Bandeira de Mello anota que “A
determinação da perda dos cargos por parte dos servidores estáveis, com indenização
correspondente a um mês de remuneração por ano de serviço”, é, a toda evidência,
“flagrantemente inconstitucional, por superar os limites do poder de emenda”, pois “Tal
perda só poderia ocorrer com a extinção do cargo e colocação de seus ocupantes em
disponibilidade remunerada, como previsto na Constituição (art. 41, § 3.º)”. Nesse viés,
“Salta aos olhos que uma simples emenda não poderia elidir o direito adquirido dos
servidores estáveis a somente serem desligados do cargo em razão de faltas funcionais
para as quais fosse prevista pena de demissão”, tudo embasado “em regular processo
administrativo ou judicial, consoante estabelecido no art. 41, antes de ser conspurcado
pelo Emendão”.359
Com efeito, elencando todas as hipóteses de perda da estabilidade, após
a Emenda Constitucional 19/1998, tem-se que o desligamento do cargo poderá
acontecer em virtude de: (1) sentença judicial com trânsito em julgado (art. 41, § 1.º, I);
(2) mediante decisão em processo administrativo em que seja assegurada ampla defesa
(art. 41, § 1.º, II);360 (3) mediante desempenho insatisfatório apurado em procedimento
de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada
ampla defesa (art. 41, § 1.º, III); e (4) a possibilidade de perda do cargo pelo servidor
estável prevista no art. 169 da Constituição, que é a hipótese de excesso de despesas
com pessoal.361
359 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 273-274. 360 Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari conceituam processo administrativo como “uma série de atos,
lógica e juridicamente concatenados, dispostos com o propósito de ensejar a manifestação de vontade da Administração” (Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, Processo administrativo, São Paulo: Malheiros, 2003, p. 25).
361 Sparapani, A estabilidade do servidor público civil após a Emenda Constitucional n.º 19/98, p. 146.
196
Pois bem, considerando essas hipóteses acima e o posicionamento de C.
A. Bandeira de Mello, é possível fazer a seguinte afirmação: as situações (3) e (4) ferem
direito adquirido individual do servidor, pois a Administração estaria sujeitando-o a
novo regime jurídico.362 Assim ocorre porque, no tocante aos servidores públicos
efetivos e estáveis, a perda do seu cargo somente poderia se dar pelas hipóteses
previstas originariamente na Carta de 1988, quais sejam: mediante decisão proferida em
sentença judicial com trânsito em julgado ou em processo administrativo em que seja
assegurada ampla defesa, não se aplicando nem a hipótese da demissão por excesso de
despesas com pessoal, nem o critério da insuficiência de desempenho.
E isso deve valer mesmo para aqueles que entendem que o
procedimento de avaliação de desempenho é espécie de processo administrativo, à qual
o servidor sempre esteve sujeito como hipótese de perda do cargo (por intermédio de
decisão em que se apurou a desídia no processo administrativo), pois, uma vez que a
Carta prevê a hipótese da avaliação no inciso III do § 1.º do art. 41, separada da hipótese
do inciso II (decisão em processo administrativo), o novo critério para perda da garantia
de permanência no cargo constitui hipótese específica.
Além do mais, referidas hipóteses (3) e (4) desrespeitam o nível mais
alto de direitos e garantias conquistados pela comunidade de servidores públicos,
acabando por ofenderem o princípio do não retrocesso social. Na medida em que o
direito à estabilidade é um direito fundamental que não envolve uma prestação estatal,
quando o legislador reformador estabelece novas hipóteses de perda do cargo, institui
um retrocesso em comparação ao grau mais elevado originariamente previsto. Fere
desse modo o primado da vedação ao retrocesso social e o direito adquirido social (cf.
adiante item 3.4.5).
362 Nesse ponto, vale advertir, com Carlos Ayres Britto e Valmir Pontes Filho, que “a desconsideração
ao direito adquirido implica fragilizar o teor protetivo do princípio da segurança, princípio que, como sabido, confere às relações jurídicas um estado de firmeza ou de estabilidade perante o Direito futuro”. Com efeito, “Hoje é a estabilidade dos funcionários que se lesa por efeito de emenda, amanhã serão as prerrogativas dos membros da Magistratura e do Ministério Público”, e assim, paulatinamente, “de emenda em emenda, o princípio da segurança jurídica perderá de vista todo e qualquer direito adquirido” (Carlos Ayres Britto e Valmir Pontes Filho, Direito adquirido contra as emendas constitucionais, in: Celso Antônio Bandeira de Mello (Org.), Direito administrativo e constitucional: estudos em homenagem a Geraldo Ataliba, São Paulo: Malheiros, 1997, p. 159).
197
Em síntese, a Emenda Constitucional 19/1998 trouxe várias alterações
no intento de modificar o instituto da estabilidade da seguinte forma:
a) Em vez de dois anos, passou a exigir três anos de efetivo exercício
para ser estável (caput do art. 41);363
b) Determinou expressamente no art. 41 que a estabilidade só é garantia
dos servidores nomeados para cargo em provimento efetivo;364
c) Previu no § 4.º do art. 41 que para adquirir a estabilidade o servidor
terá que ser aprovado em avaliação especial de desempenho, devendo ser avaliado por
uma comissão para tanto instituída;365
d) Estabeleceu como hipótese de perda do cargo pelo servidor estável a
insuficiência de desempenho, caso haja reprovação depois de ter sido avaliado
periodicamente, conforme disposto no art. 41, § 1.º, inciso III, sendo assegurada ampla
defesa;366
363 No que diz respeito aos servidores que estavam cumprindo o estágio probatório quando a EC 19 foi
promulgada, o próprio legislador deu a solução para a hipótese, por intermédio da previsão contida no dispositivo do art. 28 da Emenda, assegurando o prazo de dois anos de efetivo exercício para aquisição da estabilidade aos servidores que estivessem em estágio probatório. Para o servidor público que se encontrava, por ocasião da promulgação da citada emenda, com dois ou mais anos de efetivo exercício no serviço público, portanto já tendo transposto o período do estágio probatório, foi conferido o direito à estabilidade.
364 Tal previsão não deixou margem à interpretação de que outros servidores possam beneficiar-se da estabilidade, como os servidores estatais ocupantes de emprego público, contratados pelo regime celetista e que igualmente ingressam nos quadros da Administração por meio de concurso público.
365 Em relação à avaliação de desempenho, do mesmo modo que o constituinte reformador previu a aplicabilidade do prazo de dois anos aos servidores em estágio probatório, também explicitou a obrigatoriedade de avaliação instituída pela Emenda para os estágios que estivessem em andamento (art. 28 da Emenda 19, parte final).
366 A Lei 11.784, de 22 de setembro de 2008, trata, entre outras matérias, da avaliação de desempenho dos servidores públicos no art. 140 e ss.:
“Art. 140. Fica instituída sistemática para avaliação de desempenho dos servidores de cargos de provimento efetivo e dos ocupantes dos cargos de provimento em comissão da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, com os seguintes objetivos:
I – promover a melhoria da qualificação dos serviços públicos; e
II – subsidiar a política de gestão de pessoas, principalmente quanto à capacitação, desenvolvimento no cargo ou na carreira, remuneração e movimentação de pessoal”.
198
e) Dispôs sobre outra hipótese de perda do cargo por quem é estável, ou
seja, aquela que ocorre quando não é respeitado o limite com gasto de pessoal previsto
no § 4.º do art. 169;
f) Acrescentou o art. 247 na Carta Magna, o qual determina que devem
ser estabelecidos por lei critérios e garantias especiais para a perda do cargo pelo
servidor público estável que, em decorrência das atribuições de seu cargo efetivo,
desenvolva atividades exclusivas de Estado.367
Assim, adquirida a estabilidade pelo ocupante de cargo público efetivo,
acenada garantia produz determinados efeitos que merecem ser analisados.
3.3.1.1.1 Efeitos decorrentes da estabilidade: direitos à reintegração,
à disponibilidade, ao aproveitamento e à recondução
Referidos direitos estão previstos nos §§ 2.º e 3.º do art. 41 da
Constituição Federal.368
O direito à reintegração é aquele que permite ao servidor, que foi
demitido pela Administração, reingressar no mesmo cargo, quando sua demissão for
reconhecida como ilegal, seja por sentença emanada pelo Judiciário, seja por decisão
administrativa, assegurando-se-lhe “o pagamento integral dos vencimentos e vantagens
do tempo em que esteve afastado”.369
367 As leis são as previstas no inciso III do § 1.º do art. 41 e no § 7.º do art. 169. 368 A redação dos parágrafos mencionados, após a EC 19/1998 é a seguinte:
“Art. 41. [...]
§ 2.º Invalidada por sentença judicial a demissão do servidor estável, será ele reintegrado, e o eventual ocupante da vaga, se estável, reconduzido ao cargo de origem, sem direito a indenização, aproveitado em outro cargo ou posto em disponibilidade com remuneração proporcional ao tempo de serviço.
§ 3.º Extinto o cargo ou declarada a sua desnecessidade, o servidor estável ficará em disponibilidade, com remuneração proporcional ao tempo de serviço, até seu adequado aproveitamento em outro cargo”.
369 Meirelles, Direito administrativo brasileiro, p. 523.
199
Nesse caso, diante da determinação do § 2.º do art. 41 da Constituição
Federal, de acordo com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional 19/1998,
se outro servidor está ocupando o cargo e também é estável, deve ser reconduzido ao
cargo de origem, sem direito à indenização, aproveitado em outro cargo ou posto em
disponibilidade com remuneração proporcional ao tempo de serviço. E se o servidor não
for estável, como muito bem observado por H. L. Meirelles, “a solução de sua situação
funcional fica a critério da Administração”.370
A disponibilidade é o direito que assiste ao servidor estável de receber
remuneração proporcional ao tempo de serviço, quando não esteja no exercício de suas
funções, sempre que se estiver diante da hipótese de extinção do cargo ou da declaração
da sua desnecessidade. E, como ressalta C. A. Bandeira de Mello, o servidor também
ficará em disponibilidade pelo fato de o cargo ser ocupado por outrem em decorrência
de reintegração. Em todo caso, isso ocorre sem que o desalojado provenha de cargo
anterior ao qual possa ser reconduzido e sem que exista outro da mesma natureza para
alocá-lo.371
Um ponto que gerou controvérsia foi a questão da remuneração do
servidor público posto em disponibilidade com o advento da Lei Fundamental de 1988
em sua redação original. O texto da Carta de 1988 não foi claro sobre qual deveria ser a
solução adotada em relação ao tema. Assim, dispunha o § 3.º do art. 41 que: “Extinto o
cargo ou declarada sua desnecessidade, o servidor estável ficará em disponibilidade
remunerada, até seu adequado aproveitamento em outro cargo”. Com base nessa
disposição, houve divisão doutrinária a respeito do assunto. Adilson Abreu Dallari, que
por sua vez citava Di Pietro372 e C. A. Bandeira de Mello posicionavam-se no sentido de
que o servidor em disponibilidade deveria receber proventos proporcionais, baseados
em uma interpretação sistemática da Constituição. Por sua vez, Lúcia Valle Figueiredo
colocava-se em sentido oposto, defendendo os proventos integrais, também com base 370 Meirelles, Direito administrativo brasileiro, p. 523. 371 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 296. 372 No tocante ao tema, em comentário à redação original referente à disponibilidade do servidor
estável, a autora diz que se pode inferir da norma do art. 40, § 3.º, que a remuneração é proporcional ao tempo de serviço, “pois esse dispositivo manda contar o tempo de serviço público federal, estadual ou municipal para fins de aposentadoria e disponibilidade, o que não seria cabível, em relação a esta última, se a remuneração fosse sempre integral” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito administrativo, 4. ed., São Paulo: Atlas, 1994, p. 378).
200
em interpretação sistemática da Lei Maior. Todavia, com o novo texto, determinado
pela Emenda Constitucional 19/1998, essa controvérsia doutrinária perdeu sentido, uma
vez que o texto agora diz expressamente que os proventos deverão ser proporcionais ao
tempo de serviço.373-374
O aproveitamento, segundo Di Pietro, é “o reingresso, no serviço
público, do funcionário em disponibilidade, quando haja cargo vago de natureza e
vencimento compatíveis com o anteriormente ocupado”.375
Como lembra Tercio Sampaio Ferraz Junior, nas Cartas de 1946 e 1967
constava a expressão “obrigatório aproveitamento”. Ressalta que “Na Emenda n.º 1, de
69, nada se dizia”. E adverte que, “na atual, fala-se em ‘até o seu adequado
aproveitamento em outro cargo’”.376
Segundo o jurista, no que diz respeito a essa redação da Carta de 1988,
“A palavra ‘até’ não se limita no tempo. Significa em algum momento no futuro. O que
determina este tempo é a possibilidade de ‘adequado aproveitamento’”. Com efeito,
“‘Adequado’ significa aproveitamento conforme as qualificações do servidor – sentido
373 Lúcia Valle Figueiredo, Curso de direito administrativo, p. 633-635. Figueiredo explica o seu
posicionamento, que, fundado exatamente na interpretação sistemática da Carta de 1988, lhe levava a posicionar-se em sentido oposto. Defende a jurista que a disponibilidade gera um desligamento provisório do servidor, “(ou pode ser provisório por força do § 3.º do art. 41 da Constituição Federal)”. Daí dizer a autora que, de acordo com a previsão que o citado parágrafo agasalhava, “[...] parecia-nos indubitável que devesse o servidor continuar recebendo a mesma quantia percebida na ativa (chame-se de vencimento, provento ou remuneração)”. Robustece seu argumento tratando da disponibilidade dos magistrados prevista no inciso VIII do art. 93 da CF, esta, sim, segundo Figueiredo, deve gerar o recebimento de proventos proporcionais, uma vez que se submete a outro regime jurídico, já que tem a natureza de pena. E, neste caso, “[...] não seria admissível penalizar-se o magistrado com a disponibilidade e continuar a percepção de vencimentos integrais”.
374 Entretanto, entendendo-se, no presente trabalho, com os doutrinadores que assim defendiam, que os proventos eram proporcionais ao tempo de serviço para quem estava em disponibilidade, aqui não se verifica afronta ao primado da vedação ao retrocesso social pela determinação da EC 19/1998 em estabelecer os proventos proporcionais para a hipótese, dado que aí não houve rebaixamento do nível superior que dantes se tinha quanto à remuneração decorrente da disponibilidade.
375 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., 2013, p. 658. 376 Tercio Sampaio Ferraz Junior, Interpretação e estudos da Constituição de 1988: aplicabilidade;
congelamento, coisa julgada fiscal, capacidade contributiva, ICMS, empresa brasileira, poder constituinte estadual, medidas provisórias, justiça e segurança, servidor público, São Paulo: Atlas, 1990, p. 109.
201
subjetivo – mas também conforme as necessidades da Administração – sentido
objetivo”.377
E, por fim, cabe falar da recondução, que nas palavras de C. A.
Bandeira de Mello significa “o retorno do servidor estável ao cargo que dantes
titularizava”, seja “por ter sido inabilitado no estágio probatório relativo a outro cargo
para o qual subsequentemente fora nomeado”, seja “por haver sido desalojado dele em
decorrência de reintegração do precedente ocupante”.378
3.3.1.2 Sistema remuneratório dos servidores públicos
A Emenda Constitucional 19/1998 introduziu mudanças expressivas no
sistema remuneratório dos servidores públicos. Afora ter eliminado do art. 39 o
princípio da isonomia de vencimentos, instituiu em paralelo ao regime de remuneração
(ou vencimentos) o regime de subsídios para certos grupos de agentes públicos.
Entretanto, é válido destacar que:
A Constituição de 1988, seguindo a tradição das Constituições anteriores, fala ora em remuneração, ora em vencimentos para referir-se à remuneração paga aos servidores públicos pelas entidades da Administração Pública direta ou indireta. Por vezes, o mesmo dispositivo usa os dois vocábulos, a exemplo do que ocorre no artigo 37, incisos XIII e XV. A legislação infraconstitucional incumbe-se de dar o conceito legal.
A regra que tem prevalecido, em todos os níveis de governo, é a de que os estipêndios dos servidores públicos compõem-se de uma parte fixa, representada pelo padrão fixado em lei, e uma parte que varia de um servidor para outro, em função de condições especiais de prestação do serviço, em razão do tempo de serviço e outras circunstâncias previstas nos estatutos funcionais e que são denominadas, genericamente, de vantagens pecuniárias; elas
377 Ferraz Junior, Interpretação e estudos da Constituição de 1988..., p. 109. O autor, dando
continuidade ao seu ensinamento sobre o tema, explica: “Não se pode, assim, aproveitar o servidor para um cargo inadequado às suas qualificações (um médico tornar-se enfermeiro-chefe), mas também não exige que a administração se transforme e se altere apenas para reaproveitar o servidor (criar-se um cargo de médico só para reaproveitar o médico em disponibilidade). No primeiro caso teríamos uma inadequação subjetiva. No segundo, uma inadequação objetiva. [...]” (Idem, ibidem, p. 109).
378 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 317.
202
compreendem, basicamente, adicionais, gratificações e verbas indenizatórias.
A mesma sistemática tem sido adotada para os membros da Magistratura, Ministério Público e Tribunal de Contas. Para o Chefe do Executivo e para os Parlamentares, a Constituição falava em remuneração nos artigos 27, §§ 1.º e 2.º, 29, incisos V, VI e VII, e 49, incisos VII e VIII.379
A Constituição de 1988, em seu texto original, nada dispunha sobre o
regime de subsídios em relação aos agentes públicos, seja no tocante aos agentes
políticos, seja no que diz respeito aos servidores públicos. Deveras, a Constituição de
1988 não adotou a retribuição por subsídio para qualquer agente público. No entanto, a
Emenda Constitucional 19 estabeleceu referido regime para algumas categorias de
agentes públicos. Dessa forma, criou-se uma coexistência de sistemas remuneratórios no
que concerne aos servidores: o habitual, em que a remuneração é constituída por uma
parte fixa e uma variável, formada por vantagens pecuniárias380 de variada natureza, e o
novel sistema, em que o pagamento corresponde ao subsídio, composto por parcela
única, que afasta a possibilidade de percepção de vantagens pecuniárias variáveis. O
primeiro sistema é denominado, pela Emenda, de remuneração ou vencimento, e o
segundo, de subsídio.381
379 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., 2013, p. 606. 380 Segundo define Meirelles, “Vantagens pecuniárias são acréscimos ao vencimento do servidor,
concedidas a título definitivo ou transitório, pela decorrência do tempo de serviço (ex facto temporis), ou pelo desempenho de funções especiais (ex facto officii) ou em razão das condições anormais em que se realiza o serviço (propter laborem), ou, finalmente, em razão de condições pessoais do servidor (propter personam). As duas primeiras espécies constituem os adicionais (adicionais de vencimento e adicionais de função), as duas últimas formam a categoria das gratificações (gratificações de serviço e gratificações pessoais). Todas elas são espécies do gênero retribuição pecuniária, mas se apresentam com características próprias e efeitos peculiares em relação ao beneficiário e à administração, constituindo os “demais componentes do sistema remuneratório” referidos pelo art. 39, § 1.º, da CR. Somadas ao vencimento (padrão do cargo), resultam nos vencimentos, modalidade de remuneração (destaques no original) (Direito administrativo brasileiro, p. 543).
381 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., 2013, p. 607.
203
3.3.1.2.1 Normas constitucionais pertinentes à remuneração ou
vencimento
Consoante se expôs, a Emenda Constitucional 19 aboliu do art. 39, §
1.º, a disposição que garantia isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais
ou semelhantes do mesmo Poder ou entre servidores dos Poderes Executivo, Legislativo
e Judiciário. Referida previsão, todavia, “não impedirá que os servidores pleiteiem o
direito à isonomia, com fundamento no art. 5.º, caput e inciso I”.382-383
Ademais, conserva-se a norma do art. 37, inciso XII, a qual prevê que
os vencimentos dos cargos do Poder Legislativo e do Poder Judiciário não poderão ser
superiores aos pagos pelo Poder Executivo. Referida regra versa sobre a paridade de
vencimentos, sempre interpretada no sentido de igualdade de remuneração para os
servidores dos três “Poderes”.384 Isso significa que “há um teto entre os vencimentos
dos cargos pertencentes aos Poderes, que corresponde àqueles pagos pelo Executivo”.385
Entretanto, “o art. 37, XI, da CF, com as alterações que sofreu, aponta conteúdo diverso:
o teto genérico pertence a cargos do Judiciário, no caso os dos Ministros do STF.
Assim, os vencimentos do Judiciário poderão ser superiores aos do Executivo”.386
Aos inativos e aos pensionistas (dependentes do servidor falecido), era
garantida a isonomia, como se podia verificar pelo § 8.º do art. 40, com a redação dada
382 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., 2013, p. 607. 383 Veja-se, consoante anota José dos Santos Carvalho Filho, que a abolição da isonomia de
vencimentos, em verdade, abre mais portas para que efetivamente se desrespeite o primado da isonomia remuneratória. E essa afirmativa não é descabida, uma vez que “o próprio regime de isonomia foi sempre desrespeitado e fraudado pelas diversas instituições da República, a despeito de seu caráter de justiça, pelo qual igualaria a remuneração de servidores com funções idênticas ou semelhantes”. Se assim era praxe, “imagine-se tendo agora o Estado, nas mais diversas esferas de Poder e da federação, liberdade para proceder à avaliação de natureza e complexidade de cargos e suas peculiaridades...”. Desse modo, “Se as disparidades já existiam com o princípio da isonomia”, parece ser “irreversível que se tornarão mais profundas e injustas com o novo sistema, sabido que as Administrações não apenas têm se mostrado deficientes para tal avaliação, como também porque, constantemente, têm sido pressionadas pelo impulso” desencadeado por certos interesses escusos de determinadas autoridades, “situação de imoralidade que só se extinguirá com a mudança de consciência dos administradores públicos” (Carvalho Filho, Manual de direito administrativo, p. 741).
384 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., p. 607. 385 Meirelles, Direito administrativo brasileiro, p. 535. 386 Carvalho Filho, Manual de direito administrativo, p. 744.
204
pela Emenda Constitucional 20/1998. O dispositivo determinava a revisão dos
proventos de aposentadoria e pensão, na mesma proporção e na mesma data, sempre
que se modificasse a remuneração dos servidores em atividade, sendo também
estendidos aos inativos e aos pensionistas quaisquer benefícios ou vantagens
posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da
transformação ou reclassificação do cargo ou função em que ocorresse a aposentadoria.
Entretanto, diante do advento da Emenda Constitucional 41, de 19 de
dezembro de 2003, os §§ 7.º e 8.º sofreram alteração em sua redação. No que diz
respeito aos servidores inativos, o § 8.º tão só garante o reajustamento dos benefícios
para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real, conforme critérios
estabelecidos em lei. Ou seja, a isonomia ou paridade com os servidores em atividade
foi extinta.
Contudo, o art. 7.º da mencionada Emenda conservou a isonomia ou
paridade nos mesmos moldes em que era assegurada pelos §§ 7.º e 8.º, de acordo com
redação anterior, para os servidores já aposentados e os pensionistas que já recebiam a
pensão na data da publicação da Emenda, bem como para os servidores e seus
dependentes que, na mesma data, já tinham cumprido os requisitos para concessão dos
benefícios, conforme previsto no art. 3.º. A Emenda Constitucional 47/2005 estendeu o
referido benefício aos que ingressaram no serviço público até 16 de dezembro de 1998
(data da entrada em vigor da Emenda 20/1998) e que tenham cumprido os requisitos
previstos no art. 6.º da Emenda Constitucional 41/2003 ou no art. 3.º da Emenda
Constitucional 47/2005.
É importante ressalvar, porém, que o fim da paridade de proventos e
pensões com a remuneração de quem está na ativa representa uma grande perda para os
servidores. Contudo, dita mudança no regime jurídico não poderia mesmo alcançar os
direitos já incorporados ao patrimônio jurídico dos servidores aposentados e
pensionistas. Uma vez que o servidor se aposentou ou começou a perceber pensão, fez
jus a continuar beneficiário da paridade ou isonomia em relação aos proventos e
pensões com os vencimentos de quem está na ativa.
205
Quanto à fixação e alteração da remuneração dos servidores públicos,
somente poderá ser perpetrada por lei específica, observando-se a iniciativa privativa
em cada caso, segundo o art. 37, X, da Constituição Federal (alterado pela EC 19/1998).
Veja-se que a iniciativa das leis é dividida entre o Chefe do Executivo (art. 61, § 1.º, II,
“a”), Tribunais (art. 96, II, “b”), Ministério Público (art. 127, § 2.º) e Tribunal de Contas
(art. 73, c/c o art. 96). Cada um desses órgãos envia ao Legislativo projeto de lei, seja de
criação de cargos, seja de fixação de vencimentos de seus servidores, cabendo a todos
obedecer aos limites impostos para os servidores do Executivo (art. 37, XII).
E o inciso XIII do art. 37, modificado pela Emenda 19, impede a
vinculação ou equiparação de quaisquer espécies remuneratórias para o efeito de
remuneração de pessoal do serviço público. O objetivo desse dispositivo é evitar os
reajustes automáticos de vencimentos, o que sucederia se, “para fins de remuneração,
um cargo ficasse vinculado ao outro, de modo que qualquer acréscimo concedido a um
beneficiaria a ambos automaticamente”; isso igualmente aconteceria “se os reajustes de
salários ficassem vinculados a determinados índices, como o de aumento do salário
mínimo, o de aumento da arrecadação, o de títulos da dívida pública ou qualquer
outro”.387 Note-se, entretanto, que a regra original proibia a vinculação ou equiparação
de vencimentos, mas ressalvava a hipótese do art. 39, § 1.º, que previa a isonomia de
vencimentos (conforme já se comentou supra).
3.3.1.2.2 Regime de subsídios
No tocante ao subsídio, C. A. Bandeira de Mello diz que aludida
modalidade retributiva foi criada “Com o intuito de tornar mais visível e controlável a
remuneração de certos cargos, impedindo que fosse constituída por distintas parcelas
que se agregassem de maneira a elevar-lhes o montante”. Conceitua o subsídio como a
designação conferida “à forma remuneratória de certos cargos, por força da qual a
retribuição que lhes concerne se efetua por meio dos pagamentos mensais de parcelas
387 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., p. 608-609.
206
únicas, ou seja, indivisas e insuscetíveis de aditamentos ou acréscimos de qualquer
espécie”.388
Observa-se que Di Pietro faz uma crítica ao fato de que a chamada
Emenda da Reforma Administrativa (Emenda Constitucional 19/1998) tenha
introduzido na Constituição de 1988 a terminologia subsídio, afirmando que essa
alteração significa “um retrocesso do ponto de vista terminológico”,389 uma vez que o
vocábulo subsidium, no dicionário latim-português, “designa tropa auxiliar, gente que
vem em socorro, e também significa ajuda, socorro”. Acontece, entretanto, que “Não é
com essa conotação que o servidor público quer ver interpretada a importância que
recebe como forma de retribuição do serviço que presta”. Anota que, “No entanto,
apesar do sentido original do vocábulo, é evidente que ele vem, [...], substituir, para
algumas categorias de agentes públicos, a palavra remuneração ou vencimento”, com a
finalidade de “designar a importância paga em parcela única, pelo Estado, a
determinadas categorias de agentes públicos, como retribuição pelo serviço prestado”.
Destarte, “não tem a natureza de ajuda, socorro, auxílio, mas possui caráter retribuitório
e alimentar”.390
O dispositivo essencial para se apreender a ideia de subsídio é o § 4.º do
art. 39, introduzido pela Emenda Constitucional 19/1998, que o estabelece como parcela
única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de
representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto
no art. 37, incisos X e XI. Com isso, ficam derrogadas, para os agentes que percebam
subsídios, todas as normas legais que prevejam vantagens pecuniárias como parte da
remuneração.
Consequentemente, de igual forma, para remunerar de modo
diferenciado os ocupantes de cargos de direção, chefia, assessoramento e os cargos em
comissão, terá a lei que fixar, para cada qual, um subsídio composto de parcela única. O
388 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 277. 389 A autora esclarece que “O vocábulo subsídio tinha sido abandonado na Constituição de 1988 como
forma de designar a remuneração dos agentes políticos, mas volta agora com a chamada Emenda da Reforma Administrativa (Emenda Constitucional n.º 19/98), o que é lamentável, sob o ponto de vista terminológico” (Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., p. 610).
390 Idem, ibidem, p. 610.
207
mesmo se diga quanto aos vários níveis de cada carreira abrangida pelo sistema de
subsídio.391
Importa advertir que o art. 39, § 4.º, da Constituição Federal não pode
ser interpretado de maneira literal, pois deve ser conjugado com o § 3.º do mesmo
artigo, que determina que sejam aplicados aos servidores vários direitos concedidos aos
trabalhadores da esfera privada, dentre eles o adicional de férias, o décimo terceiro
salário, o acréscimo de horas extraordinárias, o adicional de trabalho noturno etc., pois
“São direitos sociais que não podem ser postergados pela Administração. Por
conseguinte, é induvidoso que algumas situações ensejarão acréscimo pecuniário à dita
‘parcela única’”.392
Serão obrigatoriamente remunerados por subsídios todos os agentes
públicos mencionados no art. 39, § 4.º, a saber: membro de Poder (o que compreende os
membros do Legislativo, Executivo e Judiciário da União, Estados e Municípios), o
detentor de mandato eletivo (já alcançado pela expressão membro de Poder), Ministros
de Estado e Secretários Estaduais e Municipais; os membros do Ministério Público (art.
128, § 5.º, I, c, com a redação da EC 19); os integrantes da Advocacia-Geral da União,
os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal e os Defensores Públicos (art. 135,
com a redação da EC 19); os Ministros do Tribunal de Contas da União (art. 73, § 3.º);
os servidores públicos policiais (art. 144, § 9.º, na redação da Emenda 19). Além desses
servidores arrolados, poderão, facultativamente, ser remunerados mediante subsídios os
servidores públicos organizados em carreira, conforme previsto no art. 39, § 8.º, o que
constituirá opção para o legislador de cada uma das esferas de governo.
O § 11 do art. 37 da Constituição Federal, acrescentado pela Emenda
Constitucional 47, determina que não serão computadas, para efeito dos limites
remuneratórios de que trata o inciso XI, as parcelas de caráter indenizatório previstas
em lei.393
391 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., p. 611. 392 Carvalho Filho, Manual de direito administrativo, p. 730. 393 Sobre esse ponto, Meirelles diz que não deverão ser computados, nos limites do inciso XI do art. 37,
os gastos de transporte, diárias, ajuda de custo, presença em sessão extraordinária (Direito administrativo brasileiro, p. 537).
208
Quanto a essa forma de remuneração, isto é, a paga do trabalho dos
servidores públicos por subsídios, pode-se afirmar que é inaceitável qualquer
interpretação que permita desconsiderar os direitos adquiridos individuais dos
servidores públicos, quando se instituir o regime de subsídios, em especial no que diz
respeito às vantagens pessoais incorporadas de modo regular aos seus vencimentos, e,
por conseguinte, que fazem parte de maneira definitiva de seu patrimônio. Por outro
ângulo, de igual modo, a mudança no regime remuneratório da comunidade de
servidores só será admissível, sem o desrespeito ao primado da vedação ao retrocesso
social, se se estiver diante de situações que requerem uma justa repartição de recursos
(consoante será visto no item 3.4.5). Afora essas situações, as mudanças estabelecidas
no regime remuneratório ofenderão o não retrocesso social.
3.3.1.2.3 Normas comuns à remuneração e aos subsídios
Pelo inciso X do art. 37, alterado pela Emenda Constitucional 19/1998,
a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4.º do art. 39
somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa
privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem
distinção de índices (v.g., IPC para uns, IGPM para outros, salário mínimo para outra
categoria etc.).
Segundo Di Pietro, com a Emenda Constitucional 41/2003, tenta-se
novamente impor um teto, devolvendo-se ao Congresso Nacional, com a sanção do
Presidente da República, a competência para fixar os subsídios dos Ministros do
Supremo Tribunal Federal (art. 48, XV). Alterou-se, mais uma vez, o art. 37, XI, que,
lido de modo conjugado com outros dispositivos da Constituição, permite as seguintes
conclusões:394
a) o teto abrange tanto os que continuam sob o regime remuneratório
como os que passarem para o regime de subsídio;
394 A autora arrola as hipóteses elencadas nas letras “a” a “i” (Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed.,
p. 617-620).
209
b) compreende os servidores públicos ocupantes de cargos, funções e
empregos públicos, o que significa que o teto independe do regime jurídico, estatutário
ou trabalhista, a que se submete o servidor;
c) alcança os servidores da Administração Direta, autárquica e
fundacional; quanto às empresas públicas, sociedades de economia mista e subsidiárias,
somente são alcançados pelo teto se receberem recursos da União, dos Estados, do
Distrito Federal ou dos Municípios para pagamento de despesas de pessoal ou de
custeio em geral, conforme decorre do § 9.º do art. 37;
d) o teto, no âmbito federal, é o mesmo para todos os servidores,
correspondendo ao subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. No âmbito
estadual, é diferenciado para os servidores de cada um dos três Poderes do Estado,
sendo representado pelos subsídios dos Deputados, do Governador e dos
Desembargadores, incluindo-se no teto destes últimos algumas categorias do Executivo
(membros do Ministério Público, Procuradores e Defensores Públicos).395 No âmbito
municipal o teto é igual para todos os servidores, sendo representado pelo subsídio de
Prefeito;
e) para os parlamentares dos Estados e dos Municípios, o entendimento
do art. 37, XI, deve ser conjugado ao disposto nos arts. 27, § 2.º, 29, VI e VII, e 29-A. O
subsídio é limitado a 75% da remuneração dos Deputados Federais, e para os
parlamentares municipais o subsídio máximo varia entre 20%, 30%, 40%, 50%, 60% e
75% do subsídio dos Deputados Estaduais, em função do número de habitantes do
Município. Em razão do disposto no inciso VII do art. 29 da Constituição Federal, o
total de despesas com a remuneração dos vereadores não pode ultrapassar o limite de
5% da receita do Município, observados, outrossim, os limites totais de despesa com
pessoal;
395 Pela Emenda Constitucional 47/2005, foi acrescentado o § 12 ao art. 37, permitindo que, para fins do
teto previsto no inciso XI do caput, os Estados e o Distrito Federal fixem, por emenda à Constituição e Lei Orgânica, como limite único, o subsídio dos Desembargadores do respectivo Tribunal de Justiça, limitado a 90,25% do subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, não se aplicando o disposto nesse parágrafo aos subsídios dos Deputados Estaduais, Distritais e Vereadores.
210
f) para os membros da magistratura, a norma do art. 37, XI, tem que ser
combinada com o art. 93, V, que estabelece, para os ministros dos Tribunais Superiores,
o montante de 95% do subsídio mensal fixado para os ministros do Supremo Tribunal
Federal; para os demais magistrados, a fixação será feita em lei, observado um
escalonamento em níveis federal e estadual, conforme as categorias da estrutura
judiciária nacional, não podendo a diferença entre uma e outra ser superior a 10% ou
inferior a 5%, nem exceder 95% do subsídio mensal dos ministros dos Tribunais
Superiores. Contudo, o Supremo Tribunal Federal decidiu que os membros da
magistratura devem submeter-se a teto único, independentemente da esfera da federação
à qual pertençam;396
g) o teto atinge os proventos dos aposentados e a pensão devida aos
dependentes do servidor falecido; essa norma se repete com a redação dada ao § 8.º do
art. 40 pela Emenda Constitucional 20, de 15 de dezembro de 1998;
h) o servidor que esteja em regime de acumulação está sujeito a um teto
único que abrange a soma da dupla retribuição pecuniária; sobre a aplicação do teto
remuneratório constitucional e do subsídio mensal dos membros da magistratura,
excluiu do teto remuneratório, com base em decisão administrativa do Supremo
Tribunal Federal adotada em 5 de fevereiro de 2004 (Proc. 319269), “remuneração ou
provento decorrente do exercício do magistério, nos termos do art. 95, parágrafo único,
inciso I, da CF”.397
Note-se, entretanto, que não são apenas os magistrados que devem ser
excluídos do teto quando ocuparem cumulativamente um cargo com uma função de
magistério. Nesse passo, verifica-se que “O artigo 48, inciso XV, da Constituição
atribui ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, ‘a fixação do
396 Esse entendimento do Supremo Tribunal Federal se deve ao fato de ter considerado
inconstitucionais, em sede cautelar, o art. 2.º da Resolução 13/2006 e o art. 1.º, parágrafo único, da Resolução 14/2006, ambas do Conselho Nacional de Justiça.
397 Conforme preleciona Di Pietro, “[...] O argumento utilizado é o de que o artigo 95, parágrafo único, inciso I, ao permitir a acumulação do cargo de juiz com outro cargo ou função de magistério, não faz remissão ao inciso XI do artigo 37, ao contrário do que acontece em relação aos servidores públicos em geral, para os quais o inciso XVI do mesmo artigo 37, ao indicar as hipóteses de acumulação permitida, remete ao inciso XI, que trata do teto salarial” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito adquirido: comentário a acórdão do STF, Revista Fórum Administrativo – Direito Público – FA, Belo Horizonte: Fórum, ano 1, n. 1, p. 14, mar. 2001).
211
subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, observado o que dispõem os arts.
39, § 4.º; 150, II; 153, III; e 153, § 2.º, I’”. Se assim está disposto, quer dizer que “o art.
39, § 4.º, ao definir o subsídio como parcela única, faz expressa referência aos membros
de Poder (sem nenhuma exceção) e, na parte final, manda obedecer, ‘em qualquer caso’
o disposto no art. 37, X e XI”. Afora isso, “o artigo 93, ao definir os critérios para
fixação dos subsídios dos membros do Judiciário, manda observar o disposto nos arts.
37, XI, e 39, § 4.º”. Desse modo, “Não há qualquer razão aceitável para que apenas os
Ministros do Supremo Tribunal Federal tenham o privilégio de acumular suas funções
com uma de magistério, sem somar as duas remunerações para fins de aplicação do
teto”. Ressalta-se que “Inúmeros outros servidores, do próprio Judiciário, por receberem
pelo teto salarial ou com pequena diferença em relação ao teto salarial, estariam
privados de igual privilégio”. Por referido motivo, “tal privilégio é contrário aos
princípios da razoabilidade, da moralidade e da isonomia”.398
Em verdade, não há razão alguma para que a Resolução 13/2006 do
Conselho Nacional de Justiça não alcance também os demais servidores públicos que
estiverem na mesma situação. É dizer, sob a ótica da proteção do direito adquirido
individual, “os servidores que já acumulavam licitamente com base na redação original
da Constituição têm o direito de continuar a fazê-lo, sem aplicação da restrição contida
no artigo 37, XI, da Constituição”. Dita conclusão coaduna-se com a ideia de que “a
cláusula pétrea protege os direitos adquiridos com base na Constituição em sua redação
original”.399
i) o dispositivo faz referência também a “outra espécie remuneratória”,
já com a intenção de impedir a instituição de alguma outra forma de remuneração cujo
intuito seja o de escapar ao teto.
Continuando a análise da temática referente à irredutibilidade de
vencimentos e subsídios versus o teto remuneratório, o inciso XV do art. 37, na redação
398 Di Pietro, Direito adquirido: comentário a acórdão do STF, p. 14. 399 Idem, ibidem, p. 14. A autora, nesse ponto, assevera que a ideia defendida de cumular licitamente
cargo público com outro de magistério, constituindo direito adquirido com permissão concedida pelo texto constitucional em sua redação original, coaduna-se com a tese do STF contida no MS 24.875-1/DF (Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 06.10.2006), de que “a cláusula pétrea protege os direitos adquiridos com base na Constituição em sua redação original” (Idem, p. 14).
212
dada pela Emenda Constitucional 19/1998, estabelece que o subsídio e os vencimentos
dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis,400 ressalvado o disposto
nos incisos XI e XIV deste artigo e nos arts. 39, § 4.º, 150, II, 153, § 2.º, I.
As ressalvas contidas na parte final do dispositivo significam que não
contrariam a regra da irredutibilidade as normas dos dispositivos constitucionais
expressamente referidos, ou seja:
a) a irredutibilidade de vencimentos e subsídios não impede a
observância do teto fixado pelo inciso XI; equivale a dizer que não se poderá invocar a
irredutibilidade para manter remunerações que hoje superam o teto;401-402
400 Explica José dos Santos Carvalho Filho que “O sentido da irredutibilidade, porém, não é absoluto.
Protege-se o servidor apenas contra a redução direta de seus vencimentos, isto é, contra a lei ou qualquer outro ato que pretenda atribuir ao cargo ou à função decorrente de emprego público importância inferior à que já estava fixada ou fora contratada anteriormente. E adverte que, “Contudo, os Tribunais já se pacificaram no sentido de que não há proteção contra a redução indireta, assim considerada aquela em que: (1) o vencimento não acompanha pari passu o índice inflacionário; ou (2) o vencimento nominal sofre redução em virtude da incidência de impostos”. Aliás, é nessa linha que “o art. 37, XV, da CF ressalva expressamente os arts. 150, II, 153, III, e 153, § 2.º, I, que retratam, respectivamente, o princípio da igualdade dos contribuintes, a incidência do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza e os critérios da generalidade, universalidade e progressividade, inerentes ao referido tributo” (Manual de direito administrativo, p. 738). No entanto não se concorda com a parte final aduzida pelo autor, pois, se o servidor, por meio do tributo, sofrer alguma redução nos seus vencimentos ou subsídio, terá o direito de reclamar afronta ao seu direito adquirido individual.
401 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., p. 621. 402 Conforme será analisado mais adiante, ver-se-á que certas mudanças instituídas pelas emendas
constitucionais que instituíram alterações nos direitos e garantias dos servidores públicos, integrantes do seu regime jurídico, afrontam ostensivamente a Constituição. Sob esse vértice, a respeito da “flexibilização” da garantia da irredutibilidade de vencimentos dos servidores, Bandeira de Mello é enfático em dizer que: “[...] nem a Emenda 19, em 98, nem a Emenda 41, agora em 2003, podiam rebaixar vencimentos determinando que ficariam sujeitos a limites estatuídos primeiramente por uma e ao depois por outra, em novas redações que atribuíram ao art. 37, XI. Também não é de admitir [...] que este resultado seja alcançado pelo expediente, aparentemente astuto, adotado no art. 9.º da Emenda 41. Nele se declara que o art. 17 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição aplicar-se-ia a todas as modalidades de retribuição dos servidores da Administração direta, autárquica e fundacional, bem assim aos agentes políticos em geral, tanto como a proventos de aposentadoria e pensões. A solução é juridicamente incabível, pois o art. 17 se remetia a um texto distinto do que viria a ser implantado pela Emenda 19 e do que foi recentemente implantado pela Emenda 41. Logo, não se lhe pode dar o alcance pretendido, pois isto implicaria pretender colher dele a força constituinte, mas com um alcance descoincidente a uma norma que nela reside, e não na Constituição. Acresce que o art. 17 estava reportado a um texto que foi revogado pela Emenda 19 e que, de seu turno, também foi revogado pela Emenda 41, de tal sorte que não mais existe como termo de referência no universo jurídico” (Curso de direito administrativo, p. 338-339).
213
b) igualmente, a irredutibilidade de vencimentos e subsídios não impede
a aplicação da norma do inciso XIV, segundo a qual os acréscimos pecuniários
percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados para fins de
concessão de acréscimos ulteriores; isso significa que, embora o servidor estivesse
percebendo vantagens pecuniárias calculadas por forma que se coadunava com a
redação original no dispositivo, poderá sofrer redução para adaptar a forma de cálculo à
nova redação;403
c) a referência ao art. 39, § 4.º, seria desnecessária, porque ele manda
respeitar o disposto no art. 37, X e XI; o primeiro cuida da fixação dos subsídios por
meio de lei, e o segundo, do teto, já referido com a menção ao inciso XI;404
d) não fere a regra da irredutibilidade de vencimentos ou subsídios a
aplicação do art. 150, II, da Constituição, que veda à União, Estados, Distrito Federal e
Municípios “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em
situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou
função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos,
títulos ou direitos”; como também não conflita com a irredutibilidade a incidência do
imposto de renda, previsto no art. 153, II, ou a aplicação da norma do § 2.º, I, do art.
153, segundo a qual o imposto de renda será informado pelos critérios da generalidade,
da universalidade e da progressividade, na forma da lei. Por outras palavras, o teto
salarial corresponde ao valor bruto, não impedindo que o valor líquido seja inferior ao
teto, em decorrência da incidência do imposto de renda.405
Deve-se ressaltar, porém, conforme adverte Figueiredo, que não é
possível que se relativizem as remunerações daquelas hipóteses que ultrapassem o
referido “teto”, pois resta inadmissível ignorar direitos que foram “validamente
incorporados como adicionais, quinquênios, incorporações essas permitidas antes da
Emenda, ou, então, em virtude de situações adquiridas por sentença transitada em
julgado, portanto, pela coisa julgada material e formal”. Assim se defende porque ditas
403 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., p. 621. 404 Idem, ibidem, p. 621-622. 405 Idem, p. 622.
214
incorporações, previstas constitucional e legalmente, gozam “da proteção do direito
adquirido, garantia constitucional inscrita no inciso XXXVI do art. 5.º da Carta Magna,
ainda que ultrapassem o mencionado ‘teto’”. E assim é preciso ser entendido por que
não se está “diante do Poder Constituinte originário, que não tem limites, tudo pode”.
Não é dado olvidar-se que “a Emenda 19/1998 deriva da competência de reforma
estabelecida no art. 60, com os limites pela própria Constituição assinalados”.406-407
Não é diferente o entendimento de C. A. Bandeira de Mello, anotando
que:
[...] uma vez que o Texto Constitucional inadmite emenda que fira direitos e garantias individuais (art. 60, § 4.º, IV) – e não somente os arrolados no art. 5.º, inclusive por assegurar, ainda, no § 2.º deste preceptivo, que os direitos expressos não excluem outros decorrentes do regime e de seus princípios –, é forçoso concluir que os vencimentos dos atuais servidores validamente constituídos (portanto, os conformados aos limites impostos no art. 17 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1988) não podem ser afetados pelo “Emendão”, porque, se tal se desse, haveria: a) ofensa a direito adquirido, cuja proteção estava e está assegurada no art. 5.º, XXXVI, da Constituição, dada a irredutibilidade que lhes conferia o § 2.º do art. 39, em sua primitiva redação; b) ofensa a um direito e garantia individual, pois a garantia expressa da irredutibilidade de vencimentos, naqueles termos, era, para além de qualquer dúvida ou entredúvida, um direito individual de cada servidor.
406 Figueiredo, Curso de direito administrativo, p. 623-624. 407 Anote-se que, no tocante aos servidores ocupantes de cargo em comissão e à irredutibilidade de
remuneração desses agentes, Figueiredo pontua que as vantagens por eles adquiridas podem ser retiradas, uma vez que ao seu titular não se dá qualquer direito à permanência no serviço público. Explica que “Não há, pois, situação constituída a ser preservada, direito subjetivo já adquirido. Pode-se, sem dúvida, falar da inoportunidade da Emenda, porém não em sua inaplicabilidade como texto integrante da Constituição, já que não está a ferir direitos já incorporados” (Curso de direito administrativo, p. 624). De outro lado, sobre o mesmo ponto, Carvalho Filho pondera em sentido contrário, asseverando que: “Como o mandamento constitucional não distingue, a garantia da irredutibilidade alcança, da mesma forma, os cargos em comissão. Resulta, pois, que, se o titular de cargo em comissão for afetado por força de novo plano de cargos e vencimentos, não poderá sofrer decréscimo remuneratório, devendo ser-lhe assegurada a percepção como vantagem pessoal, de parcela que corresponda à diferença entre a remuneração que vinha percebendo e a nova. Tal parcela, contudo, sujeita-se à absorção integral ou gradativa em decorrência de futuros aumentos de remuneração, e tem sido nominada de diversas formas, como ‘parcela absorvível’, ‘vantagem pessoal nominalmente identificável’, ‘direito pessoal’, ‘diferença individual’, e outras do gênero – todas indicativas do direito do servidor de não sofrer redução em seus vencimentos” (Manual de direito administrativo, p. 739).
215
Donde, por estes dois ângulos, resulta óbvio que simples emenda constitucional jamais poderia afetá-los sem, com isto, ofender cláusula pétrea.408
Realmente, têm razão ambos os doutrinadores, pois evidentemente as
situações que ultrapassam o teto, sob a ótica do direito adquirido individual, devem ser
preservadas, sendo vedado à Administração proceder a reduções nos vencimentos e
subsídios dos servidores, devendo ser preservado o direito já incorporado ao patrimônio
jurídico do funcionário.
Nessa linha de ideias, ainda importa considerar a imposição do teto
remuneratório que foi trazida pelo art. 9.º da Emenda Constitucional 41/2003,409 a qual
ordenou a aplicação do disposto no art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias,410 da Constituição Federal/1988, aos vencimentos, remunerações e
subsídios dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos e aos proventos,
pensões ou outra espécie remuneratória. Todavia, o art. 17 do ADCT determinou a
imediata redução dos vencimentos que eram percebidos em desacordo com a
Constituição, sem que houvesse a possibilidade de invocar a proteção do direito
adquirido quanto ao recebimento do excedente.411
Ora, da análise do art. 9.º da aludida emenda não se pode deixar de dizer
que esse dispositivo é frontalmente inconstitucional. Referida disposição é fruto da
competência reformadora, que é condicionada, subordinada e limitada pelo constituinte
408 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 339. 409 Art. 9.º da EC 41/2003: “Aplica-se o disposto no art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias aos vencimentos, remunerações e subsídios dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza”.
410 Art. 17 do ADCT: “Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título”.
411 Adverte-se que, no tocante ao ponto em que o Poder Constituinte Originário não é tão ilimitado como se costuma dizer, faz-se necessário recordar que ele encontra limites nos princípios de justiça social e de direito internacional, o que torna possível indagar sobre a legitimidade dessa disposição contida no art. 17 do ADCT, dado que o patamar mais alto de vencimentos e seu plexo de garantias representa direito fundamental da comunidade de servidores.
216
originário. Nesses termos, a aludida competência deve-se conformar às normas
imutáveis da Constituição, ou seja, às “cláusulas pétreas”, que preveem proteção aos
direitos e garantias fundamentais dos servidores, tal como a hipótese de constituir um
direito adquirido do servidor a irredutibilidade de vencimentos.412 É inconstitucional no
que diz respeito à determinação quanto aos vencimentos, remunerações e subsídios e
também no tocante aos proventos, pensões ou outra espécie remuneratória.
Não é compatível com o ordenamento jurídico constitucional, por
conseguinte, que imediatamente após o advento de uma emenda à Constituição sejam
reduzidas as remunerações dos servidores “a limite remuneratório fixado posteriormente
ao momento em que nasceu o direito à sua percepção”.413
No entanto, conforme bem observa Carvalho Filho, o Supremo Tribunal
Federal “parece não ter adotado esse entendimento e, consequentemente, jogou por terra
a garantia constitucional da irredutibilidade”. E o fez porque “considerou abrangida pelo
teto (e, pois, redutível) a gratificação de tempo de serviço, quando se sabe que se trata
de vantagem que o servidor incorpora pro tempore, configurando-se como direito
adquirido”. Ora, “Reduzir tal tipo de vantagem é o mesmo que reduzir a remuneração –
isso contra mandamento expresso na Carta da República”. De outra banda “– e
revelando-se incoerente, concessa venia, o julgamento –, considerou suscetível de
preservação determinada parcela de acréscimo ao valor dos proventos prevista em
estatuto funcional (embora sujeita à absorção por futuros aumentos do subsídio)”.414
Com isso, deixa-se transparecer “pois a impressão de que a Corte mais se apegou a
critérios políticos – no caso relativo ao teto remuneratório – do que a critérios jurídicos,
412 Quanto a esse ponto, Carvalho Filho diz que “não há qualquer dúvida de que a irredutibilidade de
vencimentos constitui direito adquirido dos servidores, como transparece do art. 37, XV, da CF. Outra conclusão, assim, não se pode extrair senão a da inconstitucionalidade do citado art. 9.º da EC 41/2003. Desse modo, o servidor que, com amparo na legislação pertinente, percebe remuneração superior ao teto fixado no art. 37, XI, da CF (ou provisoriamente no art. 8.º da EC 41), não pode sofrer redução em seu montante. O direito do Poder Público, no caso, será apenas o de manter irreajustável a remuneração até que as elevações remuneratórias subsequentes possam absorver o montante. Na verdade, o correto é considerar no caso a percepção de duas parcelas, uma correspondente ao teto e outra equivalente ao excesso remuneratório. Assim, à medida que for sendo reajustada a parcela relativa ao teto, estará sendo reduzida a parcela referente ao excesso. Em certo momento futuro, esta última parcela será totalmente absorvida e, a partir daí, a remuneração do servidor – agora nos limites do teto – estará em condições de ser reajustada normalmente” (Manual de direito administrativo, p. 745).
413 Carvalho Filho, Manual de direito administrativo, p. 746. 414 MS 24.875-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 11.05.2006 (Informativo STF n. 426, maio 2006).
217
pelos quais caberia o respeito ao direito adquirido e à irredutibilidade de
vencimentos”.415 Adverte-se que sobre os argumentos políticos e o controle
jurisdicional realizado pelo Supremo Tribunal Federal quanto à questão dos direitos e
garantias dos servidores voltar-se-á a falar mais adiante (item 3.4.1).
3.3.1.3 Aposentadoria e proventos
A Constituição prevê o direito à previdência social como um direito
social (art. 6.º) que compõe uma realidade mais ampla chamada seguridade social (art.
194). A seguridade abrange a previdência social, instituída no art. 201, de caráter
contributivo e profissionalista em regra (a exceção é representada pelos segurados
facultativos); a assistência social, tratada nos arts. 203 e 304, de caráter não
contributivo, destinada aos que se encontram em situação de necessidade, e a saúde,
definida como um direito de todos, de caráter universal, e independente de contribuição
(arts. 196 a 200).416
Contudo, a previdência social não é um sistema homogêneo, pois
comporta diferentes subsistemas. Nesse passo, paralelamente ao Regime Geral da
Previdência Social, estabelecido no art. 201 da Constituição Federal,417 existe o regime
específico dos servidores públicos titulares de cargo efetivo, disciplinado no art. 40 da
Lei Maior, conhecido como Regime Próprio de Previdência Social. E são as regras que
compõem referido regime e regem a aposentadoria dos servidores efetivos que
interessam ao estudo que aqui se faz.
Consoante leciona Odete Medauar, “Aposentadoria, no setor público,
significa a cessação do exercício das atividades junto a órgãos ou entes estatais, com o
415 Carvalho Filho, Manual de direito administrativo, p. 746. 416 Nesse sentido, Dias e Macêdo, Nova Previdência do servidor público, p. 119. 417 Estão sujeitos a esse regime os empregados, regidos pela CLT, os trabalhadores avulsos, os
domésticos, os contribuintes individuais (antigos autônomos, equiparados a autônomo e empresário), os trabalhadores rurais em sentido amplo, que compreendem o segurado especial, o empregado rural pessoa física, e os segurados facultativos.
218
recebimento de retribuição denominada proventos. Daí empregar-se o vocábulo inativo
para designar o servidor aposentado”.418
Deveras, a aposentadoria constitui-se em um direito fundamental do
servidor público de passar à inatividade remunerada, garantido de modo vitalício, em
decorrência da prestação de serviços ao Estado, sujeito a regime jurídico normativo
próprio do servidor inativo, em hipótese de invalidez, idade ou condições combinadas
de tempo de exercício no serviço e no cargo, idade mínima e tempo de contribuição.
Em decorrência de regras próprias, específicas e diferentes daquelas
relativas aos demais trabalhadores no tocante às aposentadorias e pensões, a
Constituição Federal de 1988 estabeleceu as regras referentes à aposentadoria dos
servidores públicos em seu art. 40. Consoante as disposições originárias do Texto
Constitucional, a aquisição do direito à aposentadoria tinha por base, em essência, o
tempo de serviço ou a idade dos servidores públicos, a aposentadoria especial dos
professores, a aposentadoria por invalidez e a pensão por morte.419 Em síntese, a
previsão compreendia como modalidades de aposentadoria: a aposentadoria por
invalidez, a compulsória e a aposentadoria por tempo de serviço.
A aposentadoria por invalidez permanente dava direito a proventos
integrais quando fossem decorrentes de acidente em serviço, moléstia profissional ou
doença grave, contagiosa ou incurável, especificadas em lei; nos demais casos, dava
direito a proventos proporcionais ao tempo de serviço.420
418 Odete Medauar, Direito administrativo moderno, 12. ed., São Paulo: RT, 2008, p. 281. 419 A exceção à norma geral era devida a legislação dos militares das Forças Armadas, contida na Lei
6.880/1980 ainda em vigor, que basicamente conta como requisito o cumprimento de trinta anos de serviço militar para o gozo da aposentadoria.
420 O Estatuto do Servidor Público Federal (Lei 8.112/1990), que instituiu o regime jurídico único para os servidores da União, aponta no art. 186, § 1.º, as doenças que ensejam a aposentadoria por invalidez permanente, com proventos integrais. Assim, dispõe o referido preceptivo legal: “Consideram-se doenças graves, contagiosas ou incuráveis [...], tuberculose ativa, alienação mental, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira posterior ao ingresso no serviço público, hanseníase, cardiopatia grave, doença de Parkinson, paralisia irreversível e incapacitante, espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, estados avançados do mal de Paget (osteíte deformante), Síndrome de Imunodeficiência Adquirida – AIDS, e outras que a lei indicar, com base na medicina especializada”. Por sua vez, o art. 212 define o acidente em serviço “o dano físico ou mental sofrido pelo servidor, que se relacione, mediata ou imediatamente, com as atribuições do cargo exercido”. E equipara as seguintes situações ao acidente em serviço: o dano “decorrente de agressão sofrida e não
219
Por seu turno, a aposentadoria compulsória alcançava (e alcança) o
servidor que completasse 70 anos de idade, e lhe dava o direito a receber proventos
proporcionais ao tempo de serviço; seus proventos seriam integrais apenas se o
funcionário tivesse completado 35 ou 30 anos de serviço, conforme se tratasse de
servidor do sexo masculino ou feminino respectivamente; sem essa condição, os
proventos seriam proporcionais ao tempo de serviço.421
No tocante à aposentadoria voluntária, a Constituição aumentou as suas
hipóteses, para abarcar, no art. 40, III, os seguintes casos:
a) aos 35 anos de serviço, se homem, e aos 30 se mulher, com proventos integrais;
b) aos 30 anos de efetivo exercício em funções de magistério, se professor, e 25 anos, se professora, com proventos integrais;
c) aos 30 anos de serviço, se homem, e aos 25 se mulher, com proventos proporcionais a esse tempo;
d) aos 65 anos de idade, se homem, e aos 60 se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de serviço.
Diante de tais previsões é possível notar que a Constituição Federal de
1988 estabeleceu referidos regramentos “modificando um pouco o que havia
anteriormente (Constituição de 1967 com a Emenda 1, de 1969)”. Nesse sentido,
“Acrescentou a aposentadoria voluntária proporcional por implemento de idade (65
anos para o homem e 60 para a mulher), como também proporcional por tempo de
serviço (art. 40, inciso III, alíneas ‘c’ e ‘d’, antes da Emenda 41)”. No entanto, “As
outras, referentes à compulsoriedade do desligamento aos setenta anos e à voluntária,
com trinta e cinco anos de serviço para homens e trinta para mulheres, já eram expressas
na Constituição anterior”.422
provocada pelo servidor no exercício do cargo”; e aquele “sofrido no percurso da residência para o trabalho e vice-versa”. Já o art. 188, § 1.º, diz que “A aposentadoria por invalidez será precedida de licença para tratamento de saúde, por período não excedente a 24 (vinte e quatro) meses”.
421 Determina o art. 187 da Lei 8.112/1990 que: “A aposentadoria compulsória será automática, e declarada por ato, com vigência a partir do dia imediato àquele em que o servidor atingir a idade-limite de permanência no serviço ativo”.
422 Figueiredo, Curso de direito administrativo, p. 637-638.
220
É de ver que, no que diz respeito à aposentadoria voluntária, o art. 40, §
1.º, dispunha sobre a possibilidade de que fossem criadas exceções com o escopo de
reduzir o tempo de serviço, no caso de atividades consideradas penosas, insalubres ou
perigosas.
Sobre a questão da contagem de tempo, o art. 40, § 3.º, estipulava que o
tempo de serviço público federal, estadual ou municipal seria computado integralmente
para os efeitos de aposentadoria e de disponibilidade. E no art. 202, § 2.º, estabelecia
que, para efeito de aposentadoria, era assegurada a contagem recíproca do tempo de
contribuição na Administração Pública e na atividade privada, rural e urbana, hipótese
em que os diversos sistemas de previdência social seriam compensados
financeiramente, segundo critérios determinados em lei.
No que concerne à aposentadoria em cargos ou empregos temporários
(que compreendia os cargos e empregos em comissão), a norma do art. 40, § 2.º,
determinava que ficaria a cargo do legislador dispor sobre ela.423
E, por fim, quanto à aposentadoria, o art. 40, § 4.º, previa que os
proventos da aposentadoria deveriam ser revistos, na mesma proporção e na mesma
data, sempre que se modificasse a remuneração dos servidores em atividade, sendo
também estendidos aos inativos quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente
concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação
ou reclassificação do cargo ou função em que se deu a aposentadoria, na forma da lei.424
Destaca-se que o art. 20 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias fixou
423 Segundo Di Pietro, comentando à época referida disposição constitucional, “Dificilmente se poderá
entender que quis abranger a hipótese de ‘contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público’, a que se refere o artigo 37, IX, e dependente de lei que estabeleça os casos em que é cabível. A única hipótese de aposentadoria conciliável com um serviço dessa natureza seria a que se dá por invalidez, em especial a que decorra de acidente no serviço ou doença profissional. Quanto à aposentadoria por tempo de serviço, dificilmente poderá ser cabível para a função que a própria Constituição define como temporária e de excepcional interesse público” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito administrativo, 4. ed., São Paulo: Atlas, 1994, p. 376). Adverte-se que apenas neste tópico (3.3.1.3) será utilizada a 4.ª edição da obra da autora. Nos outros tópicos, o presente trabalho se baseia na 26.ª edição do livro Direito administrativo.
424 Conforme observa Di Pietro, “o dispositivo é mais benéfico do que o correspondente, na Constituição de 1967, que somente exigia a extensão aos inativos, com caráter de obrigatoriedade, das revisões motivadas pela alteração do poder aquisitivo da moeda (art. 102, § 1.º)” (Direito administrativo, 4. ed., p. 376).
221
prazo de 180 dias para que se fizesse a revisão dos direitos dos servidores públicos
inativos e pensionistas e à atualização dos proventos e pensões a eles devidos, a fim de
ajustá-los ao disposto na Constituição.
Nesse viés, constata-se que satisfazia as exigências constitucionais o
servidor público que adquirisse o tempo de serviço mínimo, o que o tornaria, portanto,
apto para ser destinatário do direito a se aposentar pela regra instituída pela Constituição
Federal, recebendo proventos da aposentadoria com base no cargo efetivo que exercia,
como se não tivesse existido a cessação na atividade desempenhada.425 Desse modo,
gratificações, adicionais, aumento de estipêndios e qualquer outra vantagem, pela regra
então editada, em 5 de outubro de 1988, prevista no art. 40, § 4.º, da Constituição
Federal, estendia-se ao servidor aposentado, abolindo-se a regra do art. 102 da
Constituição Federal de 1969, a qual impunha vedação que impedia que o aposentado
recebesse mais na inatividade do que na atividade. Essa paridade do inativo com o
servidor ativo foi uma conquista mais do que bem-vinda, em que se reconheceu o valor
do servidor inativo, evitando-se que este se transformasse em alguém esquecido pela
sociedade depois de tantos anos prestando serviços ao Estado; referida disposição foi
um anteparo à corrosão, pelo tempo, dos seus proventos sem que ocorresse uma justa e
adequada recomposição.
3.3.1.3.1 O regime previdenciário e as Emendas Constitucionais
20/1998, 41/2003 e 47/2005
Interessa destacar que tradicionalmente, no ordenamento jurídico pátrio,
a aposentadoria do servidor público efetivo não era um direito de natureza
previdenciária dependente de contribuição, mas sim um direito vinculado ao exercício
do cargo público, financiado totalmente pelo Poder Público, sem contribuição do
servidor.426 Foi somente com a Emenda Constitucional 3, de 1993, que se introduziu o
425 No que diz respeito aos membros do Ministério Público, da Magistratura e do Tribunal de Contas, a
Constituição trouxe-lhes normas mais benéficas quanto à aposentadoria, consoante os arts. 93, inciso VI, 129, § 4.º, e 73, § 3.º. Para essas categorias de servidores, as três modalidades de aposentadoria eram com proventos integrais, qualquer que fosse o tempo de serviço; e a aposentadoria voluntária se dava aos 30 anos de serviço, com a única exigência de que, em qualquer caso, tivessem cinco anos de exercício efetivo na função. Não se aplicavam a eles as previsões do art. 40 da CF/1988.
426 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., 2013, p. 630.
222
§ 6.º no art. 40 da Constituição, para prever que “as aposentadorias e pensões dos
servidores públicos federais serão custeadas com recursos provenientes da União e das
contribuições dos servidores na forma da lei”, que se deu o primeiro passo rumo à
modificação das regras referentes à aposentadoria dos servidores. Passou-se a exigir,
por conseguinte, também a contribuição dos servidores, além dos recursos advindos do
Poder Público, para que estes pudessem receber o benefício da aposentadoria.427
No entanto, a partir das Emendas Constitucionais 20/1998, 41/2003 e
47/2005, deu-se o grande salto para a reforma da Previdência, que veio com a ambição
de afastar, adicionar e modificar normas que disciplinam o sistema previdenciário
brasileiro, notadamente no que diz respeito às aposentadorias, alcançando o servidor
público titular de cargo efetivo. Realizou-se uma reforma profunda no Regime Próprio
de Previdência Social.
Destarte, aclara-se que serão expostas as principais mudanças atinentes
às aludidas emendas quanto à matéria, sem o escopo de esgotar o assunto, por ser o
tema bastante amplo e rico em minudências. Nesse viés, seu estudo mais aprofundado
comportaria uma análise monográfica própria acerca da matéria. O intuito é trazer à
colação as modificações que mais se destacam sobre o assunto.
3.3.1.3.2 Emenda Constitucional 20 de 1998
As diretrizes para a designada reforma previdenciária foram
estabelecidas pela Emenda Constitucional 20/1998. O escopo foi o de modificar o
Regime Próprio de Previdência Social dos servidores públicos e seus dependentes, a fim
de que, de forma gradual, ficassem submetidos aos mesmos padrões vigentes do regime
geral da previdência social, ao qual estão sujeitos os trabalhadores da iniciativa privada
e os servidores que não ocupam cargos efetivos. A intenção, em verdade, é tornar una a
previdência social. E nesse passo, como observa Maria Sylvia Zanella Di Pietro, não
podendo ser transformado o regime público para um regime assemelhado ao dos
427 No tocante aos servidores estaduais e municipais, o art. 149, parágrafo único, da Constituição
dispunha que “os Estados, o Distrito Federal e os municípios poderão instituir contribuição, cobrada de seus servidores, para o custeio, em benefício destes, de sistemas de previdência e assistência social”.
223
trabalhadores da esfera privada, de imediato, “tendo em vista as situações consolidadas
com base na legislação vigente, pretende-se alcançar esse objetivo de forma paulatina”.
Por conseguinte, já foram “promulgadas duas Emendas Constitucionais instituidoras de
‘reformas previdenciárias’ e já se fala em outras futuras reformas da mesma
natureza”.428
Nesse vértice, a Emenda Constitucional 20 de 1998 modificou a
disposição contida no art. 40 da Lei Maior, garantindo aos servidores ocupantes de
cargo em provimento efetivo regime previdenciário de cunho contributivo, desde que
obedecidos os critérios responsáveis pela manutenção do equilíbrio financeiro e
atuarial.429 Além disso, afora o caráter contributivo, estabeleceu-se a regra da idade
mínima para a aposentadoria somada ao tempo de permanência no serviço público. Mas
não foi só.
Logo, os principais objetivos da reforma definidos na Emenda
Constitucional 20/1998, e que merecem ser analisados, são os seguintes:
a) Previsão de regime previdenciário de natureza contributiva para os
servidores que ocupam cargos efetivos,430 conquanto se observem os critérios
responsáveis por preservar o equilíbrio financeiro e atuarial (art. 40, caput); no tocante
428 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Aposentadoria dos servidores públicos efetivos, in: Maria Sylvia
Zanella Di Pietro, Fabrício Motta e Luciano de Araújo Ferraz, Servidores públicos na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 2011, p. 152-153.
429 Importa verificar que o sistema de previdência social do servidor público, ocupante de cargo efetivo, passou a ser organizado com base em critérios que assegurem o seu equilíbrio financeiro e atuarial. Isso quer dizer que o “equilíbrio financeiro é alcançado quando o que se arrecada com contribuições é suficiente para manter os benefícios assegurados”. Nesses termos, “Visualiza-se a despesa com benefícios sob a perspectiva do direito financeiro, isto é, considerando o orçamento da seguridade social, que é anual nos termos do art. 165, § 5.º, da Carta Magna”. Assim, “Devem as receitas arrecadadas ser suficientes para fazer face às despesas fixadas”. Por sua vez, “o equilíbrio atuarial leva em conta uma série de variáveis que vão determinar o nível de contribuição para viabilizar o sistema em uma perspectiva de longo prazo”. Podem ser consideradas, dentre as variáveis, “a expectativa de vida, o número de contribuintes, o nível de crescimento econômico e outros”. Com efeito, “A técnica de seguro social, subjacente à previdência, aconselha a realização de estudos atuariais para definir a viabilidade do sistema” (Dias e Macêdo, Nova Previdência do servidor público, p. 137).
430 Como a emenda constitucional fala em servidores titulares de cargo efetivo, abrange aqueles que ingressaram na Administração mediante concurso, bem como aqueles sem concurso público, antes da CF/1988, e foram estabilizados em virtude da regra contida nos art. 19 do ADCT, desde que sejam ocupantes de cargos públicos.
224
aos Estados e Municípios, a instituição desse regime foi mantida em caráter facultativo
(art. 149, § 1.º).
Diante dessa mudança, não foi conservada a redação do § 3.º do art. 40,
que estabelecia o regime contributivo para o servidor federal, mas se preservou com
igual redação o art. 149, § 1.º, de maneira que se pode asseverar que, em face dessa
Emenda, não era obrigatória a instituição desse regime para o servidor.431 A hipótese
instituiu uma faculdade para o Poder Público, que podia exercê-la conforme escolha do
legislador de cada esfera de Governo. Nesse viés, a maior parte dos Estados e
Municípios não instituiu regime previdenciário para os servidores, salvo, em alguns
destes entes, com o fim de prover a pensão dos dependentes do servidor falecido. Essa
foi exatamente a situação do Estado de São Paulo, onde se permaneceu adotando o
regime contributivo para a pensão, em conformidade com a Lei Complementar 180, de
12 de maio de 1978. Apenas em tempos mais recentes, por intermédio da Lei
Complementar 943, de 23 de junho de 2003, é que foi instituída a contribuição para fins
de aposentadoria.432-433
Interessa verificar que o caráter contributivo significa, em termos
práticos, que, a partir da Emenda Constitucional 20/1998, o regime próprio de
previdência é financiado pela contribuição do ente público instituidor e dos servidores
que estão na ativa. No que diz respeito à contribuição de aposentados e pensionistas na
vigência do Texto Constitucional, alterado pela citada emenda (prevista nas Leis
9.917/1998 e 9.783/1999), foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal
Federal.
A contribuição dos entes públicos para o Regime Próprio de
Previdência Social não pode ser inferior à contribuição do servidor ativo nem superior
ao dobro desta; contudo, o encargo financeiro do Tesouro pode ser maior, e, em alguns
431 A regra dispunha que “Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir contribuição,
cobrada de seus servidores, para o custeio, em benefício destes, de sistemas de previdência e assistência social”.
432 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., 2013, p. 630. 433 Observa Maria Sylvia Zanella Di Pietro que, a não ser pela edição da norma atinente aos novos
requisitos para a aposentadoria voluntária, nada se cumpriu acerca das regulamentações legais reclamadas pela reforma (Aposentadoria dos servidores públicos efetivos, p. 153).
225
planos, o é, uma vez que existe a obrigatoriedade de cobertura de eventuais
insuficiências financeiras dos regimes decorrentes do pagamento de benefícios
previdenciários do serviço passado. A alíquota de contribuição dos servidores ativos da
União, fixada em 11% pela Lei 9.783/1999, é a mesma cobrada dos servidores ativos
dos Estados, Distrito Federal e dos Municípios para os seus regimes próprios.434
Registre-se que, ao se instituir o regime previdenciário de caráter
contributivo, pretendeu-se que os servidores públicos, como futuros beneficiários,
observem o encargo de arcar paulatina e sucessivamente com contribuições
previdenciárias ao longo de seu vínculo laboral com a Administração Pública.
b) Os servidores ocupantes exclusivamente de cargos em comissão ou
de outros cargos temporários e os servidores ocupantes de empregos públicos foram
incluídos no regime geral de seguridade social (art. 40, § 13).435
Com efeito, afastou-se a possibilidade de incluir entre os beneficiários
do sistema próprio de previdência social os servidores ocupantes exclusivamente de
cargos em comissão, declarados em lei de livre nomeação e exoneração, bem como de
cargos temporários (art. 37, IX, da CF e Lei 8.745/1993) e de empregos públicos (Lei
9.962/2000), aos quais se aplica o Regime Geral de Previdência Social (art. 40, § 13, da
CF). Referidos servidores serão enquadrados no Regime Geral de Previdência Social
como empregados.436
434 Irene da Conceição de Freitas, Previdência do servidor público: reformas e perspectivas, São Paulo:
LTr, 2012, p. 95. 435 Quanto ao ocupante de função, o dispositivo não fez qualquer referência ao regime previdenciário
desses servidores. Nesse caso, há que distinguirem as funções de confiança (art. 37, V) dos contratados temporariamente com base no art. 37, inciso IX da CF. Para as funções de confiança é justificável a omissão quanto ao seu regime previdenciário, porque, pelo inciso V do art. 37, elas só podem ser exercidas por servidor ocupante de cargo efetivo e este está necessariamente inserido no regime previdenciário previsto no art. 40. Quanto aos servidores contratados temporariamente com base no art. 37, IX, tem-se que incluí-lo, por analogia, no regime geral da previdência, dado que o art. 40, § 13, faz referência a “outro cargo temporário”. Trata-se de aplicação do princípio geral de direito segundo o qual onde existe a mesma razão, deve aplicar-se o mesmo dispositivo), que justifica a aplicação da lei por analogia (Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., 2013, p. 635-636).
436 Ponderam Eduardo Rocha Dias e José Leandro Monteiro de Macêdo a respeito dos servidores exclusivamente comissionados o seguinte: “Convém questionar, de toda sorte, se no tocante aos sistemas próprios de previdência instituídos antes do advento da Emenda Constitucional 20/1998, em que se tenha admitido os exclusivamente comissionados como segurados, estabelecendo-se relações jurídicas merecedoras de proteção, não existiria óbice representado pelo princípio do ato jurídico
226
c) Em relação à aposentadoria voluntária dos servidores ocupantes de
cargos efetivos houve alteração nos requisitos para a concessão do benefício de maneira
a estender a permanência desses servidores no serviço público e, de modo paralelo,
retardar a sua dependência em relação ao seguro social (art. 40, § 1.º, III).
Diante das modificações inseridas, o servidor passou a se aposentar
quando configuradas as hipóteses estabelecidas pela Emenda Constitucional 20/1998,
que são:
(i) por invalidez permanente, sendo os proventos proporcionais ao
tempo de contribuição, exceto se decorrente de acidente em serviço, moléstia
profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, especificada em lei; aqui, a
Constituição Federal em sua redação original, consoante demonstrado, previa proventos
integrais na aposentadoria por invalidez;
(ii) compulsoriamente, aos setenta anos de idade, com proventos
proporcionais ao tempo de contribuição; nesse caso, os proventos originariamente
perfeito a impedir a transferência deles ao Regime Geral de Previdência Social, com o consequente pagamento de contribuições ao INSS e não mais aos respectivos regimes próprios”. Muito embora Eduardo Rocha Dias tenha se manifestado anteriormente em sentido afirmativo quanto à existência de tal impedimento (Eduardo Rocha Dias, As novas regras das aposentadorias e das pensões no direito previdenciário brasileiro, Revista Interesse Público, Sapucaia do Sul, ano 3, n. 9, p. 68, jan.-mar. 2001), depois de uma maior meditação chegou ao entendimento contrário, ou seja, “mesmo os comissionados investidos em seus cargos antes da Emenda Constitucional 20/1998 passaram a se sujeitar ao Regime Geral de Previdência Social. Isso em virtude de competir à União Federal a elaboração de normas gerais em matéria de previdência social, até mesmo as relativas aos servidores públicos (art. 24, XII, da Carta Magna). Ademais, conforme iterativa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não detêm os servidores públicos direito adquirido a regime jurídico, o que alcança, inclusive, o conjunto de normas atinentes ao seu regime contributivo. Obviamente, só existirá direito adquirido se o servidor, antes da Emenda Constitucional 20/1998, tiver preenchido os requisitos para se aposentar segundo as normas vigentes à época, por aplicação da Súmula 359 do STF. O argumento de que a sujeição ao Regime Geral de Previdência Social não poderia alcançar os comissionados nomeados antes de tal alteração normativa, em virtude de ser necessário assegurar a viabilidade atuarial e financeira do regime próprio, também não pode ser invocado. Isso porque, com a exclusão dos comissionados, deixam os sistemas próprios de ser responsáveis pelo pagamento de seus benefícios, responsabilidade que passa ao INSS. Por outro lado, na quase maioria dos sistemas próprios, para não dizer na sua totalidade, não foi efetuado cálculo atuarial prévio algum, com a inclusão da contribuição dos comissionados” (Nova Previdência do servidor público, p. 134). Todavia, discorda-se do pensamento dos autores. Além de terem direito adquirido à aposentadoria pelo Regime Próprio se preencheram os requisitos para se aposentar antes da EC 20/1998, a alteração para o RGPS para quem já estava sob a égide do RPPS configura verdadeiro retrocesso.
227
proporcionais ao tempo de serviço foram alterados para proventos com base na
proporcionalidade quanto ao tempo de contribuição;
(iii) voluntariamente, desde que cumprido tempo mínimo de dez anos de
efetivo exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a
aposentadoria, observadas as seguintes condições: (iii-a) sessenta anos de idade e trinta
e cinco de contribuição, se homem, e cinquenta e cinco anos de idade e trinta de
contribuição, se mulher; (iii-b) sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta
anos de idade, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição.
Nota-se clara, nesse ponto, a mudança de paradigma da aposentadoria
por tempo de serviço para a aposentadoria por tempo de contribuição, com um limite de
idade para os servidores e as servidoras. Agora o requisito fundamental a ser
comprovado pelo servidor passou a ser a contribuição ao regime de previdência a que o
servidor estiver vinculado, e não apenas o exercício de suas atribuições. O servidor
permanece no serviço público por mais tempo e ainda tem que contribuir para receber
seus proventos de aposentadoria.
No que concerne à aposentadoria do professor, os requisitos de idade e
de tempo de contribuição serão reduzidos em cinco anos, em relação ao disposto no §
1.º, III, a, do art. 40, desde que comprove exclusivamente tempo de efetivo exercício
das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio.
Entretanto, na redação original da Lei Maior, para os professores a Constituição Federal
previa aposentadoria aos trinta anos de efetivo exercício em funções de magistério, se
professor, e vinte e cinco, se professora, com proventos integrais. Não havia a exigência
do tempo de contribuição nem a ressalva quanto ao efetivo exercício no magistério
infantil, fundamental e médio. Isto é, não era necessária a comprovação de uma idade
mínima na ocasião, tampouco a comprovação de que o tempo de exercício seria
exclusivamente no exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino
fundamental e/ou médio.
d) Desde que seja instituída a chamada previdência complementar é
possível que as aposentadorias e pensões se sujeitem aos mesmos limites estabelecidos
para os segurados do regime geral de previdência social (art. 14, § 14); o intuito é o de
228
que a previdência social arque com os aludidos benefícios dentro do limite estabelecido
para a seguridade social em geral, ficando eventuais diferenças por conta da previdência
complementar, também de caráter contributivo.
Em verdade, os §§ 14, 15 e 16 do art. 40 da Constituição Federal de
1988 foram incluídos no referido dispositivo para regular a possibilidade de instituição
pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, de regime de previdência
complementar para seus servidores titulares de cargos efetivos, hipótese que os submete
ao teto previdenciário semelhante ao previsto para o Regime Geral da Previdência
Social no tocante às aposentadorias e pensões concedidas por seus sistemas próprios de
previdência.
Sob esse prisma, os servidores deverão contribuir para seu sistema
próprio de previdência, o que lhes garantirá um benefício de valor máximo equivalente
ao teto do Regime Geral de Previdência Social, e poderão contribuir para o sistema de
previdência complementar tratado nos aludidos dispositivos, que lhes possibilitará
complementar o valor dos proventos. Nos dizeres de Di Pietro, “A ideia é de que a
previdência social, como encargo do Poder Público, remanesça apenas para cobrir os
benefícios limitados a esse valor, ficando para a previdência complementar a cobertura
de valores maiores”.437
Vale destacar que a previdência complementar foi objeto do Projeto de
Lei Complementar 9/1999, o qual, no entanto, deixou de ter sentido e importância em
decorrência de modificação trazida ao § 15 do art. 40, pela Emenda Constitucional
41/2003, passando a exigir apenas lei ordinária, de iniciativa do Chefe do Executivo de
cada nível de Governo, para a instituição de previdência complementar. Destarte, após a
aprovação de dita lei, e a instituição do sistema de previdência complementar, os
servidores que ingressarem no serviço público ficarão sujeitos a essa sistemática de
contribuição.438 Quanto aos servidores que ingressaram anteriormente à instituição dos
437 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., 2013, p. 651. 438 No tocante à previdência complementar para novos servidores, “O novo regime previdenciário será
obrigatório para os servidores que ingressarem no serviço público a partir do início de funcionamento de cada uma das novas entidades. A obrigatoriedade, no entanto, trata da adoção do novo regime, mas não da adesão a essas entidades. Do novo servidor será descontado no contracheque 11% sobre R$ 3.916,20. Esse será o limite tanto para a contribuição quanto para a
229
regimes de previdência complementar, a referida sistemática só poderá ser aplicada se
houver prévia e expressa opção por parte do servidor. Ressalta-se, porém, que, enquanto
o sistema de previdência complementar não for instituído por lei, não pode ser aplicado
o limite do teto previdenciário do Regime Geral.
e) Prevista a possibilidade de se instituírem fundos de aposentadoria e
pensão para a administração dos recursos referentes ao regime previdenciário próprio
dos servidores (art. 249).
Consoante observam Eduardo Rocha Dias e José Leandro Monteiro de
Macêdo, a aludida previdência complementar “não se confunde com a possibilidade de
instituição de fundos, integrados pelos recursos provenientes de contribuições e por
bens, direitos e ativos de qualquer natureza”, voltados “a assegurar recursos para o
pagamento de proventos de aposentadorias e pensões concedidas aos respectivos
servidores e dependentes, prevista pelo art. 248 da Constituição, acrescido pela Emenda
Constitucional 20/1998”. Ou seja, “Esses fundos têm a finalidade de desonerar o
Tesouro do aporte de recursos para o funcionamento dos sistemas próprios de
previdência de seus servidores e dependentes, até mesmo para o fim de limitar suas
despesas com tais gastos”.439
Os fundos previdenciários deverão obedecer certos requisitos
enumerados na Lei 9.717/1998. De início, terão autonomia financeira, e, em sua
aposentadoria e pensão – semelhante ao modelo já adotado para os trabalhadores da iniciativa privada, abrigados no RGPS. Quem ganha acima desse valor e desejar aposentadoria ou pensão correspondente à sua remuneração deverá contribuir com o fundo de pensão do Poder para o qual trabalha. Haverá uma contrapartida do empregador, seja Executivo, Legislativo ou Judiciário, no mesmo percentual do empregado. A contrapartida do empregador, no entanto, será limitada a 8,5% da parte do salário que exceder os R$ 3.916,20. Quem ganhar menos do que R$ 3.916,20 poderá contribuir com o fundo e, assim, conquistar o direito a uma previdência complementar, mas sem a contrapartida da União. Os atuais servidores e aqueles que ingressarem no serviço público até o dia anterior à entrada em vigor do novo regime também poderão optar por ele, se for de seu interesse. Para isso terão prazo de 24 meses para se decidir. A migração para o novo modelo, porém, será irrevogável. Em compensação, os que migrarem terão direito a receber, quando se aposentarem, uma parcela referente ao período em que contribuíram pelo antigo regime previdenciário. Denominada de benefício especial, essa parcela equivalerá à diferença entre a remuneração média do servidor e o teto do RGPS, calculada proporcionalmente ao tempo de contribuição que ele tem no regime previdenciário da União (Disponível em: <http://www.assfapom.com/portal/index.php? option=com_content&view=article&id=464:retrocesso-senado-aprova-novo-regime-previdenciario-para-servidores-publicos-federais&catid=40:noticia-foto&Itemid=50>).
439 Dias e Macêdo, Nova Previdência do servidor público, p. 150-151.
230
organização, necessitarão possuir estrutura técnico-administrativa dotada de conselhos
de administração e fiscal. Estará vedada a utilização de recursos do fundo de bens,
direitos e ativos para empréstimos de qualquer natureza, inclusive à União, aos Estados,
ao Distrito Federal e aos Municípios, a entidades da administração indireta e aos
respectivos segurados. Haverá vedação também quanto à aplicação de recursos em
títulos públicos, com exceção de títulos do Governo Federal. A aplicação de recursos
será feita conforme estabelecido pelo Conselho Monetário Nacional. Nesse ponto,
observa José dos Santos Carvalho Filho que a tentativa aí “é a de evitar a malversação
dos recursos dos fundos pelas autoridades administrativas, fato que, lamentavelmente,
tem ocorrido em outras situações”. E destaca que é por essa razão que a lei reguladora
atribui responsabilidade direta aos dirigentes da entidade gestora e aos integrantes dos
conselhos administrativo e fiscal, sujeitando-os, inclusive, no que couber, ao regime
repressivo previsto na Lei Complementar 109, de 29 de maio de 2001, e legislação
complementar (art. 8.º).440
f) Aproximação com o regime geral de previdência social (art. 40, § 12).
Estabelecendo uma aproximação entre o Regime Próprio de Previdência
Social e o Regime Geral de Previdência Social, o § 12 do art. 40 da Constituição
Federal dispõe que o regime de previdência dos servidores públicos titulares de cargo
efetivo observará, no que couber, além das disposições constantes do art. 40, os
requisitos e critérios fixados para o Regime Geral de Previdência Social. A
determinação manda, portanto, aplicar em caráter supletivo as normas referentes ao
Regime Geral de Previdência Social, caso não exista norma específica no âmbito do
sistema próprio de previdência dos servidores. À União se atribui competência para
editar normas gerais em matéria de previdência social (art. 24, XII, da CF). Aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, por seu turno, cabe suplementar a
legislação federal (art. 24, § 2.º, e art. 30, II, da CF). Por conseguinte, não havendo
norma geral federal sobre uma determinada matéria, nem norma específica na esfera da
legislação estadual ou municipal, a aplicação de normas do Regime Geral de
Previdência Social pode servir para suprir as lacunas porventura existentes.
440 Carvalho Filho, Manual de direito administrativo, p. 686.
231
Não há de negar que referida aproximação mostra a penetração de
regras do Regime Geral de Previdência Social no Regime Próprio de Previdência Social
dos servidores (antes um regime tipicamente público). Não somente recebe o influxo de
regras próprias da seara do regime geral de previdência (como o caráter contributivo),
como também passa a ser complementado por tais regras em caso de lacuna normativa.
Abre-se, por conseguinte, esse regime para que, progressivamente, passe a ser
disciplinado por normas que o deixam mais perto do Regime Geral de Previdência
Social.
• Direito adquirido
No tocante ao direito adquirido, o art. 3.º da Emenda Constitucional
20/1998 estabeleceu a regra do direito adquirido dos servidores e dependentes que, até a
data da publicação da emenda (16.12.1998), tenham cumprido os requisitos para a
obtenção de aposentadoria e pensão com base na legislação então vigente, até quanto à
forma de cálculo fixada na legislação em vigor à época em que foram atendidas as
prescrições nela estabelecidas para a concessão desses benefícios. Note-se que para
aqueles servidores que preencheram os requisitos para se aposentar até a data da
publicação da emenda eles poderão utilizar o tempo fictício, em atenção ao direito
adquirido. Quem, entretanto, não atender a tais requisitos para se aposentar, na referida
data, inclusive com tempo fictício, não mais poderá utilizá-lo posteriormente.
Dessa forma, sobre as regras de transição, os servidores públicos que
até a publicação da Emenda Constitucional 20/1998 não haviam completado os
requisitos necessários à aposentadoria, obrigatoriamente ficam sujeitos às regras de
transição do sistema, a teor do disposto no art. 8.º da Emenda Constitucional 20/1998.441
441 Art. 8.º Observado o disposto no artigo 4.º desta Emenda e ressalvado o direito de opção à
aposentadoria pelas normas por ela estabelecidas, é assegurado o direito à aposentadoria voluntária com proventos calculados de acordo com o artigo 40, § 3.º, da Constituição Federal, àquele que tenha ingressado regularmente em cargo efetivo na Administração Pública, direta, autárquica e fundacional, até a data de publicação desta Emenda, quando o servidor, cumulativamente:
I – tiver 53 (cinquenta e três) anos de idade, se homem, e 48 (quarenta e oito) anos de idade, se mulher;
II – tiver 5 (cinco) anos de efetivo exercício no cargo em que se dará a aposentadoria;
III – contar tempo de contribuição igual, no mínimo, à soma de:
a) 35 (trinta e cinco) anos, se homem, e 30 (trinta) anos, se mulher;
232
Em suma: foram assegurados aos servidores que preencheram todos os requisitos legais
até 15 de dezembro de 1998 os direitos para aposentadoria, exigidos pela legislação
então vigente. A partir de 16 de dezembro de 1998, as regras de transição introduzidas
pela Emenda Constitucional 20/1998 em seu art. 8.º deverão ser observadas para as
novas aposentadorias.
Como normalmente acontece quando do advento de uma emenda
constitucional, fazem-se presentes regras que preservam o direito de quem já o tinha
adquirido com base nas disposições precedentes, e também se instituem regras de
transição para disciplinar quem havia ingressado no Poder Público sob a égide das
normas anteriores, mas que ainda não havia preenchido os requisitos necessários para
adquirir o direito a ser modificado. Nesse passo, a Emenda Constitucional 20/1998 não
foi diferente, preservando o direito adquirido dos servidores e dependentes até a data da
sua publicação, e também fixando as regras de transição para os servidores que ainda
não haviam obtido o direito à aposentadoria quando da sua entrada em vigor.
Entretanto, ressalta-se que o direito adquirido preservado o foi na sua dimensão
individual. Sob esta acepção, poder-se-ia dizer que não houve ofensa ao direito de o
servidor se aposentar nas condições anteriores em que completou as exigências
necessárias para tanto.
b) um período adicional de contribuição equivalente a 20% (vinte por cento) do tempo que, na data da publicação desta Emenda, faltaria para atingir o limite de tempo constante da alínea anterior.
§ 1.º O servidor de que trata este artigo, desde que atendido o disposto em seus incisos I e II, e observado o disposto no artigo 4.º desta Emenda, pode aposentar-se com proventos proporcionais ao tempo de contribuição, quando atendidas as seguintes condições:
I – contar tempo de contribuição igual, no mínimo, à soma de:
a) 30 (trinta) anos, se homem, e 25 (vinte e cinco) anos, se mulher;
b) um período adicional de contribuição equivalente a 40% (quarenta por cento) do tempo que, na data da publicação desta Emenda, faltaria para atingir o limite de tempo constante da alínea anterior;
II – os proventos da aposentadoria proporcional serão equivalentes a 70% (setenta por cento) do valor máximo que o servidor poderia obter, de acordo com o caput, acrescido de 5% (cinco por cento) por ano de contribuição que supere a soma a que se refere o inciso anterior, até o limite de 100% (cem por cento).
233
3.3.1.3.3 Emenda Constitucional 41 de 2003
Deveras, a Emenda Constitucional 41, de 19 de dezembro de 2003, teve
como missão completar a reforma previdenciária iniciada pela Emenda Constitucional
20/1998 no que diz respeito à previdência social do servidor público.
Buscando implementar, por conseguinte, a nova sistemática trazida pela
Emenda Constitucional 20/1998, a Emenda Constitucional 41/2003 manteve
essencialmente os mesmos objetivos dantes definidos por aquela emenda, com algumas
novidades:442
a) No que concerne ao regime previdenciário de caráter contributivo
institui-se a sua obrigatoriedade para todos os níveis de governo (redação dada ao art.
149, § 1.º).
Com o advento da Emenda Constitucional 41/2003, foi modificada a
disposição do art. 149, § 1.º, dispondo que os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios deverão instituir contribuição, cobrada de seus servidores, para o fim de
custeio, em benefício destes, do regime previdenciário de que trata o art. 40, cuja
alíquota não será inferior à da contribuição dos servidores titulares de cargos efetivos da
União.
De tal forma, pode-se afirmar que o regime previdenciário de cunho
contributivo, dantes aplicado aos servidores federais, consoante a Emenda
Constitucional 3/1993, restou impositivo para Estados e Municípios, em afronta à
autonomia estadual e municipal e, por conseguinte, com ofensa ao princípio
federativo.443
442 Di Pietro, Aposentadoria dos servidores públicos efetivos, p. 153-154. 443 Em sentido contrário, está o posicionamento de Carvalho Filho. Para o autor, o caso parece que,
contudo, “não é de inconstitucionalidade, eis que, a nosso ver, a norma não ofende nenhuma cláusula imutável (cláusula pétrea) prevista no art. 60, § 4.º. A opção do Constituinte é que não se nos afigura razoável; a definição da alíquota, na verdade, deveria caber a cada ente federativo, que o faria atendendo a suas próprias peculiaridades e em respeito à sua própria autonomia” (Manual de direito administrativo, p. 681).
234
b) Regime previdenciário com caráter solidário, determinado
expressamente pelo art. 40, caput, em que se almejou dar fundamento à contribuição
dos inativos e pensionistas.
c) Apontam-se as fontes de custeio, incluindo contribuição do ente
público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas (art. 40, caput).
Sobre essas duas letras “b” e “c” podem ser trazidos à colação alguns
argumentos importantes.
Nos dizeres de Carvalho Filho, “A solidariedade em relação ao regime
está a indicar que a contribuição previdenciária não se destina apenas a assegurar
benefício ao contribuinte e à sua família, mas, ao contrário, assume objetivo também de
caráter social”, requerendo que pessoas já favorecidas “pelo regime continuem tendo a
obrigação de pagar a contribuição previdenciária, agora não mais para o exercício de
direito próprio, mas sim em favor do sistema do qual são integrantes, ainda que já
tenham conquistado seu direito pessoal”. De tal modo, “É exatamente nesse aspecto, em
que o contribuinte socorre o sistema, que se deve entender ser solidário o regime de
previdência”.444 Assim, é de ressaltar que a Emenda Constitucional 41/2003, em
realidade, por meio da instituição do regime solidário, pretendeu que as contribuições
previdenciárias sejam efetuadas pelo ente federativo, pelos servidores que estão na ativa
e pelos servidores inativos e pensionistas, ampliando, por conseguinte, o universo de
contribuintes.445
444 Carvalho Filho, Manual de direito administrativo, p. 682. 445 No que se refere aos servidores inativos, a lei anterior (Lei 9.783/1999) não só previa contribuições
previdenciárias diferenciadas conforme a faixa remuneratória do servidor, como também impunha a contribuição de servidores inativos. O Supremo Tribunal Federal, contudo, em ação direta de inconstitucionalidade, suspendeu, em medida cautelar, a eficácia de tais dispositivos (ADI 2010-MC, j. 30.09.1999). No entanto, a Lei 10.887/2004 determinou no seu art. 5.º que os aposentados e os pensionistas de qualquer dos Poderes da União, incluídas suas autarquias e fundações, contribuirão com 11%, incidentes sobre o valor da parcela dos proventos de aposentadorias e pensões concedidas de acordo com os critérios estabelecidos no art. 40 da Constituição Federal e nos arts. 2.º e 6.º da Emenda Constitucional 41, de 19 de dezembro de 2003, que supere o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social. E o art. 6.º dispôs que os aposentados e os pensionistas de qualquer dos Poderes da União, incluídas suas autarquias e fundações, em gozo desses benefícios na data de publicação da Emenda Constitucional 41, de 19 de dezembro de 2003, contribuirão com 11%, incidentes sobre a parcela dos proventos de aposentadorias e pensões que supere 60% do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social.
235
Sobre a questão da contribuição previdenciária incidente sobre os
inativos e pensionistas, José Afonso da Silva defende que ela se afigura inconstitucional
sob o argumento de que a imposição configuraria verdadeiro tributo sem causa, indo
contra o postulado segundo o qual as contribuições só são legítimas enquanto causais,
ou seja, na medida em que vinculadas a contraprestação futura em favor do contribuinte,
como a aposentadoria remunerada e a pensão à família do servidor.
Também há quem defenda que estaria vedada a determinação de
contribuição aos já aposentados e pensionistas, uma vez que estes estão abrigados pelo
direito adquirido, que protege os servidores de serem alcançados pela disposição do art.
4.º da Emenda Constitucional 41/2003.446-447
Essa é a posição de C. A. Bandeira de Mello que, ao analisar as
mudanças referentes ao regime jurídico previdenciário, mais uma vez aponta sua
discordância em relação à competência reformadora da Constituição, na medida em que
fica evidente a “delirante pretensão, constante do art. 4.º da Emenda 41, de considerar
obrigados à contribuição previdenciária os inativos e os pensionistas que já estavam
fruindo dos correspondentes benefícios quando do advento dela”, bem como os
446 Art. 4.º da Emenda Constitucional 41/2003: “Os servidores inativos e os pensionistas da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, em gozo de benefícios na data de publicação desta Emenda, bem como os alcançados pelo disposto no seu art. 3.º, contribuirão para o custeio do regime de que trata o art. 40 da Constituição Federal com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos.
Parágrafo único. A contribuição previdenciária a que se refere o caput incidirá apenas sobre a parcela dos proventos e das pensões que supere:
I – cinquenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da Constituição Federal, para os servidores inativos e os pensionistas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
II – sessenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da Constituição Federal, para os servidores inativos e os pensionistas da União”.
447 Afonso da Silva, em parecer para a Conamp, na ADI 3,105/DF. Discordando de Afonso da Silva, Carvalho Filho anota que diverge desse pensamento, pois “O argumento de que haveria tributação sem causa cede terreno à instituição do regime de previdência solidário implantado pela EC n.º 41, [...] regime esse que não se caracteriza como causa individual, mas sim como causa social. Também não nos parece acertada a salvaguarda dispensada aos aposentados e pensionistas, e isso porque, conforme já inúmeras vezes reconhecido, inexiste direito adquirido a regime jurídico futuro e, se não há, nenhuma ilicitude existirá na imposição contributiva introduzida pela aludida Emenda. É claro que há um desconforto no seio social sobre tal imposição; de outro lado, é razoável reconhecer que não foi uma solução jurídica adequada e justa para resolver a antiga e repugnante má gestão do sistema de previdência. Uma coisa, porém, é a infelicidade da solução implantada, e outra, inteiramente diversa, é considerá-la inconstitucional, julgamento que, a nosso ver, tem maior componente emocional do que jurídico” (Manual de direito administrativo, p. 683).
236
abarcados “pelo art. 3.º (isto é, os que já haviam cumprido com base em legislação
precedente requisitos para lhes obter concessão)”. Veja-se que, segundo o jurista, “O
dispositivo é teratológico e revelador de mentalidade autoritária, obscurantista, para
quem o Direito nada vale”. Além do mais, diz o administrativista, “É de solar clareza
que ditos sujeitos encontravam-se assegurados por direito adquirido, e os já
aposentados, tal como os que percebiam pensão, têm ainda em seu favor os atos
jurídicos perfeitos, nos quais se estratifica uma situação juridicamente conclusa. [...]”.448
Não é outro o entendimento de Valmir Pontes Filho, ao tratar do tema,
asseverando que não há dúvida de “que a ofensa aos institutos do ato jurídico perfeito,
direito adquirido e da coisa julgada importa a derruição dos princípios da
irretroatividade das leis e da segurança jurídica e, com ele, do próprio Estado
Democrático de Direito”. Nessa linha, o autor aceita a retroatividade apenas em matéria
penal (art. 5.º, XL, da Constituição), para beneficiar o réu. No seu entender, nem
emenda constitucional pode atingir dita garantia. E menciona precedente do Supremo
Tribunal Federal, no sentido de existir direito adquirido em favor do servidor no tocante
à manutenção do valor de seus proventos, segundo a lei da época de sua concessão.449
Concorda-se com C. A. Bandeira de Mello e com Pontes Filho, quando
asseveram que o art. 4.º da Emenda Constitucional 41/2003 feriu a esfera individual do
direito adquirido do servidor e daquele que percebia pensão e que passaram a arcar com
a contribuição previdenciária estabelecida, causando-lhes gravames ulteriores, que não
poderiam atingir-lhes a esfera do direito incorporado ao seu patrimônio. Adverte-se, no
entanto, que a discussão quanto à afronta ou não ao direito adquirido social terá uma
análise mais aprofundada, em especial quanto à norma modificadora (emendas
constitucionais) e as mudanças por ela trazida no que concerne aos direitos
fundamentais dos servidores, nos itens 3.4.3 e 3.4.4, mais adiante.
448 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 340. 449 Nesse condão, o jurista transcreve o acórdão da Suprema Corte brasileira, que contém o seguinte
teor: “As situações jurídicas constituídas ao ensejo da aposentação, acordes com a ordem legal então vigente, passam a integrar o patrimônio do inativo, com status de direito adquirido, imunes a quaisquer alterações introduzidas por diplomas posteriores. É direito líquido e certo, do servidor público aposentado, exercitável via mandado de segurança, manter inalterada a base de cálculo de seus proventos, sem os efeitos redutivos da lei nova” (AI 253.644-4/CE, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 08.02.2000) (Valmir Pontes Filho, Curso fundamental de direito constitucional, São Paulo: Dialética, 2001, p. 96-104).
237
d) São definidos os critérios para fixação, em lei, do valor da pensão
dos dependentes do servidor falecido (art. 40, § 7.º)
e) Elimina-se, respeitados os direitos adquiridos, a paridade entre, de
um lado, os proventos e pensões, e, de outro, os vencimentos dos servidores em
atividade (nova redação dada aos §§ 7.º e 8.º do art. 40).
f) Foi garantido o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, de
modo permanente, o valor real, consoante critérios a serem estabelecidos em lei (nova
redação do § 8.º do art. 40).
No tocante às letras “d”, “e” e “f”, apontam-se alguns aspectos
relevantes.
A paridade, critério de reajuste das aposentadorias e pensões, segundo o
qual os reajustamentos concedidos para os servidores ativos seriam automaticamente
repassados para os aposentados e pensionistas, de igual forma, foi abolida pela Emenda
Constitucional 41/2003. Antes disso, até 31 de dezembro de 2003 vigorava a regra de
que os proventos de aposentadoria e as pensões deveriam ser revistos na mesma
proporção e na mesma data, sempre que se alterasse a remuneração dos servidores em
atividade, sendo igualmente estendidos aos aposentados e aos pensionistas quaisquer
benefícios ou vantagens posteriormente conferidos aos servidores em atividade,
inclusive quando forem fruto da transformação ou reclassificação do cargo ou função
em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão,
na forma da lei (art. 40, § 8.º, da CF). Com efeito, o servidor aposentado tinha direito à
integralidade de reajustes que fossem concedidos, como se estivesse na ativa.
A atual redação, trazida pela Emenda Constitucional 41/2003, dispõe
que é garantido o reajustamento dos benefícios para conservar-lhes, em caráter
permanente, o valor real, consoante critérios estabelecidos em lei. Veja-se que a
competência reformadora de 2003 pôs fim ao critério da paridade e tão só determinou a
diretriz, a ser seguida pelo legislador, da preservação permanente do valor real dos
238
benefícios.450 Estes deverão ser periodicamente reajustados de maneira que conservem
permanentemente o seu poder real de compra, segundo os critérios definidos em lei.451
O art. 7.º da Emenda Constitucional 41/2003 preservou o critério da
paridade para quem já era aposentado e pensionista em 31 de dezembro de 2003 e para
quem já adquirira o direito à aposentadoria e à pensão até essa data, nos termos do art.
3.º da Emenda Constitucional 41/2003. No entanto, após 31 de dezembro de 2003 para
obter pensão ou aposentadoria (na forma do art. 40 da CF ou na forma do art. 2.º da EC
41/2003) após a publicação da aludida emenda, dever-se-á obedecer o novo critério de
reajustamento.
Acerca do tema, novamente é cabível a observação ponderada de C. A.
Bandeira de Mello, o qual destaca que o § 4.º do art. 40 da Constituição de 1988, antes
da sobrevinda Emenda Constitucional 19, assegurava a igualdade de proventos em
relação aos vencimentos da ativa, “devendo-se, pois, entender que configuravam
igualmente direitos e garantias individuais dos já aposentados”. Destarte, “também e
por equivalentes razões, o mesmo se dirá no que concerne às pensões, em conformidade
ao que dispunha o § 5.º do art. 40 da Lei Maior”.452
g) Extingue-se o direito de perceber proventos integrais, em que se
estabelece que o cálculo dos proventos de aposentadoria deverá levar em consideração a
remuneração utilizada como base para as contribuições do servidor ao regime de
previdência social a que estiver sujeito (regime geral ou regime próprio do servidor,
conforme o caso), em consonância com o que for definido em lei (art. 40, § 3.º); isso
450 Dias e Macêdo, Nova Previdência do servidor público, p. 189. 451 Dias e Macêdo explicam que “A Medida Provisória 167/2003 não trouxe nenhuma disposição sobre
o critério de reajuste das aposentadorias e pensões da previdência funcional, nem mesmo para a União federal. Já a Lei 10.887/2004 inovou em relação à citada medida provisória, ao estabelecer, em seu art. 15, que os proventos de aposentadorias e as pensões, não amparados pela regra da paridade, serão reajustados na mesma data em que se der o reajuste dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. A Lei 11.784, de 22.09.2008, por sua vez, alterou o art. 15 da Lei 10.887/2004, estabelecendo que ‘Os proventos de aposentadoria e as pensões de que tratam os arts. 1.º e 2.º desta Lei serão reajustados, a partir de janeiro de 2008, na mesma data e índice em que se der o reajuste dos benefícios do regime geral de previdência social, ressalvados os beneficiados pela garantia de paridade de revisão de proventos de aposentadoria e pensões de acordo com a legislação vigente’. Assim, as aposentadorias e pensões não amparadas pela regra da paridade serão, a partir de janeiro de 2008, reajustadas na mesma data e índice em que se der o reajuste dos benefícios do regime geral de previdência social (Ibidem, p. 189).
452 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 340.
239
denota que, ao instituir o regime previdenciário próprio do servidor, cada ente da
federação terá que determinar a remuneração sobre a qual incidirá a contribuição, que
deverá obrigatoriamente ser levada em consideração no cálculo dos proventos; a
limitação ao teto de R$ 2.400,00 (atualizado em 2013 para R$ R$ 4.159,00), continua
condicionada à instituição da previdência complementar por lei de cada esfera de
governo (art. 40, § 14, não alterado pela EC 41/2003).453
Esta alteração em que se abandonou a regra, segundo a qual as
aposentadorias são calculadas com base na remuneração do cargo efetivo (quebra da
integralidade), foi uma dentre as principais estabelecidas no que diz respeito à
aposentadoria do servidor público.
Dispunha o § 3.º, antes de promulgada a Emenda Constitucional
41/2003, que “os proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão
calculados com base na remuneração do servidor no cargo efetivo em que se der a
aposentadoria e, na forma da lei, corresponderão à totalidade da remuneração”. Com
isso, o servidor público tinha os proventos de aposentadoria calculados em função da
remuneração integral do cargo efetivo em que se aposentava, independentemente do
tempo de contribuição nesse cargo.
453 A Lei 12.618, de 30 de abril de 2012, institui o regime de previdência complementar para os
servidores públicos federais titulares de cargo efetivo, inclusive os membros dos órgãos que menciona; fixa o limite máximo para a concessão de aposentadorias e pensões pelo regime de previdência de que trata o art. 40 da Constituição Federal; autoriza a criação de três entidades fechadas de previdência complementar, denominadas Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Executivo (Funpresp-Exe), Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Legislativo (Funpresp-Leg) e Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Judiciário (Funpresp-Jud). É de notar que a partir da referida lei os novos servidores que ingressarem no funcionalismo público federal não terão mais a garantia de aposentadoria integral. Assim, “De acordo com a norma sancionada, os servidores públicos federais que têm salários até o teto da Previdência, hoje R$ 3.916,20, vão contribuir com 11%, e o governo com 22%. Sobre o valor que exceder esse limite, a União pagará até 8,5%. A contribuição da União é paritária, o que significa que se o servidor pagar um percentual de 5%, a União pagará a mesma porcentagem. Ficam garantidos os valores das aposentadorias até o teto da Previdência. O servidor interessado em receber acima do teto do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) terá de pagar uma contribuição à parte, aderindo à Funpresp ou a fundo de pensão privado. A nova regra não vale para os atuais servidores. A mudança só vale para os servidores nomeados a partir da sanção da lei. [...]. O novo modelo é uma tentativa do governo para diminuir o déficit da Previdência Social. [...]. Os atuais servidores também poderão optar pela permanência no regime de aposentadoria integral ou pelo regime de previdência complementar” (Disponível em: <http://www2.planalto.gov.br/imprensa/noticias-de-governo/dilma-sanciona-lei-que-cria-a-funpresp>. Acesso em: 26 ago. 2012).
240
Pela nova redação dada ao aludido dispositivo, o qual determina que
“para o cálculo dos proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão
consideradas as remunerações utilizadas como base para as contribuições do servidor
aos regimes de previdência de que tratam este artigo e o art. 201, na forma da lei”, tem-
se, agora, que observar que, diante da nova disposição, os proventos de aposentadoria
serão calculados com base nas remunerações de contribuição do servidor, não só no
Regime de Previdência Social, como no Regime Próprio de Previdência Social, caso
tenha se filiado a esse Regime no período básico de cálculo do benefício. Quer isso
significar “que a base de cálculo das aposentadorias da previdência funcional passa a
espelhar o esforço contributivo do segurado durante a sua permanência na previdência
social (tanto no Regime Geral como no Regime Próprio de Previdência Social)”.454
Ademais, além de a remuneração do cargo efetivo deixar de ser a base
de cálculo das aposentadorias, o valor dos respectivos proventos, por ocasião de sua
concessão, não poderá ultrapassar a remuneração do servidor no cargo efetivo em que se
deu a aposentadoria, consoante determina o art. 40, § 2.º, da Constituição Federal.455
• Direito adquirido
Além do que já se mencionou no tocante à questão do direito adquirido,
perante a promulgação da Emenda Constitucional 41/2003 (que inaugurou a segunda
reforma da previdência), pode-se falar em ofensa ao direito adquirido em decorrência da
vinda de novas normas sobre fatos pretéritos. Aludida emenda introduziu diversas
mudanças nas disposições trazidas pela Emenda Constitucional 20/1998. Uma das
modificações foi a revogação do art. 8.º desta última emenda, que dispunha, consoante
já aludido, das regras transitórias aplicáveis aos servidores que, tendo ingressado no
454 Dias e Macêdo, Nova Previdência do servidor público, p. 180. 455 Dias e Macêdo anotam acerca dessa disposição no sentido de que a “adoção do novo critério de
cálculo das aposentadorias não tem razoabilidade”. Ou seja, uma vez que os proventos de aposentadoria necessitarão “refletir a média das remunerações sobre as quais incidiu contribuição previdenciária, para premiar o esforço contributivo, não faz sentido limitar o valor do benefício à remuneração do cargo efetivo em que se deu a aposentadoria”. Assim se afirma porque na hipótese de aposentadoria com proventos integrais (100%) do servidor que recebia remuneração do cargo efetivo em que se deu a aposentadoria no valor de R$ 4.000,00, caso o esforço contributivo do segurado lhe possibilite uma média de R$ 4.500,00, o valor final dos proventos será de R$ 4.000,00, nos termos do art. 40, § 2.º, da CF. Em outras palavras: “a previdência funcional estará pagando ao servidor proventos em valor inferior ao seu esforço contributivo” (Ibidem, p. 180).
241
serviço público quando da sua promulgação, ainda não tivessem reunido as condições
necessárias para poderem se aposentar voluntariamente nos termos da disciplina
anterior. Ao revogar, no art. 10, o citado dispositivo (art. 8.º, EC 20), a Emenda
Constitucional 41/2003 substituiu-o pelo art. 2.º, o qual dispôs sobre a matéria, trazendo
normas mais severas no que diz respeito ao cálculo dos proventos e à fórmula de sua
revisão.
Logo, diante da revogação do art. 8.º da Emenda Constitucional 20/1998
pela Emenda Constitucional 41/2004, pode-se considerar, consoante pondera Silva, que
houve ofensa a direito adquirido individual dos servidores em virtude dessa
modificação, pois, quando se deu esse processo de revogação, o que seria expectativa de
direito converteu-se em direito subjetivo a “ser exercido no futuro sob a condição do
preenchimento dos requisitos indicados”, de forma que o advento de novéis regras não
tem o condão de desfazer o direito, dantes subjetivo, e agora demudado em adquirido
em decorrência da normatização advinda posteriormente.456 Portanto, sendo o direito
adquirido, não é possível que seja ofendido por emenda constitucional.
3.3.1.3.4 Emenda Constitucional 47/2005
Por fim, no que diz respeito à Emenda Constitucional 47/2005 acerca da
aposentadoria, as modificações trazidas no tocante aos servidores foram as seguintes:
a) Determinou, no § 11 do art. 37, que as parcelas de cunho
indenizatório não serão computadas para efeito do teto previsto no art. 37, inciso XI, da
Constituição.
b) Facultou, no § 12 do art. 37, aos Estados e ao Distrito Federal, em
seu âmbito, mediante emenda às respectivas Constituições e Lei Orgânica, para fins de
teto remuneratório e de proventos, fixar como limite único o subsídio mensal dos
desembargadores do respectivo Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e
cinco centésimos por cento do subsídio mensal dos ministros do Supremo Tribunal
456 Esse é o entendimento de José Afonso da Silva constante de parecer exarado para instruir a ADI
3.105/2003, ajuizada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp).
242
Federal, não se aplicando o disposto no parágrafo aos subsídios dos Deputados
Estaduais e Distritais e dos Vereadores.
c) Alterou-se a redação do art. 40, § 4.º, para dispor que fica vedada a
adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos
servidores abrangidos pelo regime próprio de previdência, ressalvados, nos termos
definidos em leis complementares, os casos de servidores portadores de deficiência, os
que exerçam atividades de risco e aqueles cujas atividades sejam exercidas sob
condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física. Estendeu, portanto,
a possibilidade de aposentadoria especial para os servidores que se encontram nessas
situações.
d) Acrescentou ainda o § 21 ao art. 40, determinando que a contribuição
dos inativos, no caso de o beneficiário ser portador de doença incapacitante, incidirá
apenas sobre as parcelas de proventos de aposentadoria e de pensão que superem o
dobro do teto estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social.
e) E trouxe regra transitória para quem era servidor, na data da Emenda
Constitucional 20/1998, aposentar-se voluntariamente com base na remuneração
integral e mantendo a paridade de reajuste com idades inferiores às previstas nas regras
permanentes (60 anos, se homem, e 55 anos, se mulher).
Assim, o servidor da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, que tenha ingressado no serviço
público até 16 de dezembro de 1998, poderá aposentar-se com proventos integrais,
desde que preencha, cumulativamente, as seguintes condições: (i) trinta e cinco anos de
contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher; (ii) vinte e cinco anos
de efetivo exercício no serviço público, (iii) quinze anos de carreira; (iv) cinco anos no
cargo em que se der a aposentadoria; (v) idade mínima resultante da redução,
relativamente aos limites do art. 40, § 1.º, inciso III, alínea “a”, da Constituição Federal,
de um ano de idade para cada ano de contribuição que exceder a condição prevista na
alínea “a”.
243
Referida regra transitória autoriza a quem era servidor público, em 16
de dezembro de 1998, aposentar-se embasado na integralidade da remuneração do cargo
efetivo em idade inferior a 60 anos, se homem, e 55 anos, se mulher. A aposentadoria,
pela norma do art. 3.º da Emenda Constitucional 47/2005, garante, ainda, a manutenção
da paridade nos reajustes das aposentadorias e das pensões geradas pelos servidores
aposentados dessa forma.
Mencionada emenda teve sua tramitação no Congresso Nacional em
paralelo à tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 40/2003 (que
resultou na EC 41/2003), motivo pelo qual ficou conhecida como “PEC paralela”. E
assim foi porque “O Senado Federal, para não alterar o texto da PEC 40/03 aprovado na
Câmara dos Deputados, o que faria com que a matéria voltasse à casa de origem,
introduziu as alterações que entendia necessárias, em acordo com a liderança do
Governo Federal”, por intermédio dessa “PEC paralela”, “ficando acertado que a
Emenda Constitucional, assim promulgada, teria efeitos retroativos à data de publicação
da Emenda Constitucional 41/2003 (31.12.2003). De tal modo, “todos os dispositivos da
Emenda Constitucional 47/2005, de natureza transitória ou permanente, retroagem a
31.12.2003, de acordo com o art. 6.º da Emenda Constitucional 47/2005”.457
Verifica-se, portanto, que os direitos e garantias dos servidores, que
compõem o seu regime jurídico constitucional, sofreram profundas mudanças em
decorrência do advento de várias emendas à Constituição (EC 03/1993, 19/1998,
20/1998, 41/2003 e 47/2005). A garantia da estabilidade, o sistema remuneratório, o
regime previdenciário próprio dos servidores públicos, destacadamente, foram os mais
modificados, tornando-se alvo de uma série de alterações que buscaram transformar
aludidos direitos e garantias. E, apesar da mantença da previsão dos direitos e garantias
fundamentais dos servidores na Lei Maior, justamente porque foram introduzidas
alterações nos direitos conquistados pela comunidade de servidores, é vital para se
entender a problemática aí gerada, que se proceda à análise da aplicação do princípio da
vedação ao retrocesso social a essa situação.
457 Dias e Macêdo, Nova Previdência do servidor público, p. 165-166.
244
3.4 O princípio da vedação ao retrocesso social e o regime jurídico constitucional
do servidor público ocupante de cargo efetivo
De início importa aclarar que foram eleitos abaixo, sinteticamente,
cinco pontos importantes a serem analisados no que diz respeito ao regime jurídico dos
servidores públicos, seus direitos e garantias fundamentais e o papel protetivo do
princípio da vedação ao retrocesso social, no tocante às mudanças que possam ser
instituídas por emendas constitucionais em relação a referidos direitos e garantias.
Perante tantas modificações, sempre ao argumento de que o servidor
não tem direito adquirido a regime jurídico e que é necessário reduzir o déficit
orçamentário público, diminuir os gastos do governo com a sua folha de pagamento, ou
com a previdência social (dos servidores sujeitos ao regime próprio da previdência
social), ou que a estabilidade e eficiência muitas vezes se contrapõem, as alterações,
como se viu acima, acabaram por transformar intensamente a feição originariamente
atribuída ao plexo de direitos e garantias dos servidores estatutários. Dessa forma, a
preocupação deste último capítulo é examinar e evidenciar as alterações estabelecidas
nos direitos e garantias fundamentais que compõem o regime jurídico dos servidores e
se há ou não a possibilidade de retroceder, no que concerne a tais direitos e garantias,
quando se tem como modelo estatal o Estado (Neo)Social e Democrático de Direito.
Nesse passo, a discussão que se propõe centrar-se-á nas seguintes
questões:
1) O papel do Supremo Tribunal Federal no controle dos direitos e
garantias dos servidores públicos (item 3.4.1);
2) A importância das “cláusulas pétreas” na democracia e a proteção aos
direitos e garantias dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos (item 3.4.2);
3) O princípio da vedação ao retrocesso social e a proteção que confere
aos direitos e garantias dos servidores públicos (item 3.4.3);
245
4) O regime jurídico do servidor público ocupante de cargo efetivo e a
proteção do direito adquirido social (item 3.4.4);
5) O princípio da vedação ao retrocesso social e a equivalência jurídica
(item 3.4.5).
Esses, portanto, são essencialmente os temas que merecem uma
apreciação mais aprofundada. E assim, e em face do objetivo do trabalho desenvolvido
até aqui, pretende-se discutir os mencionados pontos supralevantados com o auxílio do
que se expôs nos capítulos anteriores, o que permitirá, ao menos, um suporte crítico em
relação às questões que se ambicionam examinar.
3.4.1 O papel do Supremo Tribunal Federal no controle dos direitos e garantias dos
servidores públicos
Quanto a este primeiro ponto a ser analisado, verifica-se atualmente
uma tendência do Supremo Tribunal Federal em empregar argumentos político-
econômicos para justificar as mudanças regressivas nos direitos e garantias que
integram o regime jurídico dos servidores públicos. De tal modo, o intuito é examinar o
controle jurisdicional e a argumentação utilizada em julgados emanados pela Corte de
Justiça mais alta do País acerca dos direitos e garantias fundamentais dos servidores, em
que se cogita a aplicação do princípio da vedação ao retrocesso social. E para iniciar a
análise da temática ora proposta será trazido a lume o pensamento jusfilosófico de
Ronald Dworkin.458 Para tanto, a título de melhor estruturar a exposição, o primeiro
458 Dworkin é o autor que, por meio de sua filosofia jurídica, melhor suporte oferece ao caminho que se
segue neste estudo, independentemente de o seu trabalho contextualizar-se no âmbito dos países de origem anglo-americana, do Common Law. Suas ideias influenciam os juristas e filósofos do direito brasileiro, porquanto, ainda que o sistema jurídico pátrio seja de tradição romano-germânica, a leitura do direito constitucional brasileiro a partir dos princípios, notadamente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, vem ganhando cada vez mais força e importância e, com isso, teorias da decisão judicial, como a de Dworkin, construídas dentro da tradição anglo-americana, proporcionam novas formas de interpretação e novos olhares acerca da jurisdição constitucional e, por conseguinte, novos fundamentos para as decisões judiciais, especialmente para as decisões do Supremo Tribunal Federal. Além do mais, a própria concepção de Estado Social e Democrático de Direito tem convergido para um novo papel de controle jurisdicional das atividades estatais; novas técnicas legislativas (como, v.g., as cláusulas gerais presentes no Código Civil de 2002 que ressaltam o poder criativo do julgador) apontam para a importância do julgador dentro de um contexto fortemente influenciado por um novo paradigma constitucional.
246
item tratará da tese dos princípios do autor, o que é vital para as ideias que se pretende
defender.
3.4.1.1 A tese dos princípios – os argumentos de princípio e os
argumentos de política
Pois bem, afastando-se do positivismo jurídico459 e do apego à
textualidade legal, Dworkin reconhece uma íntima ligação entre direito e moralidade,
propondo a ideia de que o ordenamento jurídico é composto não somente por normas,
mas, de igual modo, por princípios, nos quais se embasa a concepção de direito como
integridade.460
Nesse passo, à luz de um ordenamento jurídico que contemple não
apenas um conjunto de regras, mas também de princípios jurídicos, é indispensável que
o julgador proceda a uma interpretação que reconheça a importância desses princípios
para fundamentar e guiar suas decisões. Quando se adota uma concepção de Direito
preocupada efetivamente com a legitimidade democrática de suas decisões, surge o
compromisso do juiz em aplicar os princípios jurídicos de determinada comunidade a
459 Nota-se hoje, em tema de controle jurisdicional, que em muitos julgados há um apego ao positivismo
jurídico e à legalidade textual. É graças à metodologia do positivismo jurídico (legalista e analítico-linguístico) que o Judiciário brasileiro deixa de exercer, em muitos casos, o real papel que deveria desempenhar no resguardo do ordenamento jurídico brasileiro, além de fazer crer que esta é não só a metodologia que deve ser observada pelo juiz na solução do caso concreto, mas também aquela que é de fato empregada (José Antonio Savaris defende essa opinião apoiado também nos ensinamentos de Dworkin, Uma teoria da decisão judicial da Previdência Social: contributo para superação da prática utilitarista, 2010, Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 130).
460 Destaca que o primado jurídico de integridade orienta “os juízes a identificar direitos e deveres legais, até onde for possível, a partir do pressuposto de que foram todos criados por um único autor – a comunidade personificada –, expressando uma concepção coerente de justiça e equidade”. Consoante a tese do direito como integridade, “as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade.” É dizer: Dworkin crê que existem, na teoria política, determinados ideais que necessitam ser seguidos bem de perto, quais sejam, “os ideais de uma estrutura política imparcial, uma justa distribuição de recursos e oportunidades e um processo equitativo de fazer vigorar as regras e os regulamentos que os estabelecem”. Para ser breve, chama-os “de virtudes da equidade, justiça e devido processo legal”. Existe ainda para Dworkin um quarto ideal, que se põe ao lado destes e com eles se relaciona, denominado integridade. E aponta duas formas de integridade: a integridade na legislação e a integridade na deliberação judicial. A primeira forma restringe aquilo que os legisladores e outros partícipes de criação de direito podem fazer corretamente ao expandir ou alterar as normas públicas. E a segunda requer que, até onde seja possível, que os juízes tratem o “atual sistema de normas de modo a descobrir normas implícitas entre e sob as normas explícitas” (Ronald Dworkin, O império do direito, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 199-200; 261-262; 271-272).
247
fim de reconhecer direitos aos sujeitos. Por conseguinte, a vigência dos princípios
morais não emanará de um “teste de pedigree”,461 como diz Dworkin, mas de
exigências da própria moral (jurídica), compreendida na Constituição, e que gera efeitos
no plano concreto.
Assim, o foco da questão constitucional (apreciada pela Corte
Constitucional) deve deslocar-se da discussão das normas para a discussão dos direitos.
E, partindo da tese dos direitos, Dworkin afirma que os indivíduos podem ter outros
direitos para além daqueles especificados pela legislação, ou seja, existem direitos
provenientes de princípios jurídicos (é dizer, deixa à evidência que princípio é um modo
argumentativo de lidar com os direitos e que estes se manifestam por princípios).
Dworkin conceitua princípio como um “padrão que deve ser observado,
não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social
considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma
outra dimensão da moralidade”.462 E, diante dessa conceituação, objetiva distinguir
princípios e regras.
Nesse viés, Dworkin assegura existir uma distinção de natureza lógica,
em que as regras são aplicáveis de modo disjuntivo, isto é, segundo o sistema do tudo
ou nada; quer dizer, “Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e
461 O positivismo jurídico, na concepção de Hart, encerra um teste fundamental designado por Dworkin
de teste de origem ou pedigree, derivado da regra de reconhecimento, que atribui validade às regras. Dworkin questiona se o teste pode ser também aplicado aos princípios. Explica que, para Hart, “a maioria das regras de direito são válidas porque alguma instituição competente as promulgou. Algumas foram criadas por um poder legislativo, na forma de leis outorgadas”. E outras “foram criadas por juízes, que as formularam para decidir casos específicos e assim as instituíram como precedentes para o futuro”. No entanto, Dworkin afirma que “esse teste de pedigree não funciona para os princípios”, pois “A origem desses princípios enquanto princípios jurídicos não se encontra na decisão particular de um poder legislativo ou tribunal, mas no (sic) compreensão do que é apropriado, desenvolvida pelos membros da profissão e pelo público ao longo do tempo”. Portanto, confiar na correção do teste de pedigree é anuir ao positivismo jurídico, que concebe o Direito como um conjunto de regras. No entanto, é precisamente nessa parte que Dworkin assevera que não existem apenas as regras, mas, de igual modo, existem princípios, que não podem ser identificados por sua origem, mas sim por seu conteúdo e coerência argumentativa (Ronald Dworkin, Levando os direitos a sério, Tradução de Jefferson Luiz Camargo, 2. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 63-64).
462 Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 36.
248
neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em
nada contribui para a decisão”.463
Outra particularidade das regras é que, ao menos em tese, um enunciado
correto da regra levaria em conta todas as exceções e, se assim não se fizesse, o
enunciado da regra seria incompleto.464 As regras não possuem a dimensão de peso ou
importância. Pode-se dizer que as regras são funcionalmente importantes ou
desimportantes, isto é, “uma regra jurídica pode ser mais importante do que outra
porque desempenha um papel maior ou mais importante na regulação do
comportamento”. Todavia, não se pode dizer “que uma regra é mais importante que
outra enquanto parte do mesmo sistema de regras, de tal modo que se duas regras estão
em conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua importância maior”. Além disso,
“Se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida”.465
No tocante aos princípios jurídicos, são eles identificados por Dworkin
como tipos particulares de padrões, distintos das regras jurídicas. Os princípios
“parecem atuar de maneira mais vigorosa, com toda a sua força, nas questões judiciais
difíceis”, desempenhando “um papel fundamental nos argumentos que sustentam as
decisões a respeito de direitos e obrigações jurídicos particulares”.466
Os princípios possuem uma dimensão de peso ou importância, ausente
nas regras. De tal modo, ocorrendo o conflito entre dois ou mais princípios em um
determinado caso, deve o intérprete levar em consideração o peso relativo de cada um
deles e verificar, naquela situação concreta, qual deve prevalecer, afastando o princípio
incompatível. Deve-se destacar, porém, que os princípios orientam a decisão dos juízes
e conservam-se intactos, ainda que não prevaleçam. Como os princípios são uma
463 Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 39. 464 Idem, ibidem, p. 39. 465 Idem, p. 43. O autor continua sua explicação: “A decisão de saber qual delas é válida e qual deve ser
abandonada ou reformulada, deve ser tomada recorrendo-se a considerações que estão além das próprias regras. Um sistema jurídico pode regular esses conflitos através de outras regras, que dão precedência à regra promulgada mais recentemente, à regra mais específica ou outra coisa desse gênero. Um sistema jurídico também pode preferir a regra que é sustentada pelos princípios mais importantes. (Nosso sistema jurídico [norte-americano] utiliza essas duas técnicas.)” (Idem, p. 43).
466 Idem, p. 46.
249
aproximação entre o Direito e a moral, teriam lugar na resolução dos casos difíceis.467
E, para decidir os hard cases, os juízes devem ter em conta os princípios políticos, e não
os argumentos de política.468 Os juízes não podem deixar de tomar decisões em
determinadas hipóteses, em relação às quais não exista uma regra clara, entretanto lhes é
defeso tomar decisões arbitrárias, ou seja, elas não podem ser decididas sem um
fundamento (baseado em princípios).
Dworkin considera necessário que o juiz, ao solucionar o caso concreto,
se mostre coerente não somente no que diz respeito às normas do sistema jurídico, bem
como, e fundamentalmente, no tocante aos princípios erigidos pela comunidade política.
É dizer, segundo o pensamento dworkiniano, uma determinada sociedade é
compreendida como composta por pessoas que concordam que sua prática é governada
por princípios comuns, e não apenas por regras cunhadas em consonância com um
acordo político.469 Juízes, por conseguinte, “devem assumir que suas decisões trazem
em si uma carga de responsabilidade política, exigindo dos mesmos uma coerência de
princípios”.470
467 Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 127 e ss. 468 Dworkin entende que não cabe aos juízes legislar. Daí, como já se disse, o autor diferenciar
argumentos políticos – aqueles utilizados para justificar uma decisão política, demonstrando que vai ao encontro de certa meta coletiva – de princípios políticos – que justificam uma decisão política indicando que tal decisão respeita ou assegura algum direito. Os legisladores devem se munir de argumentos políticos, e sobre eles legislar; contudo, tribunais e juízes – como delegados da legislação – devem decidir, ainda que a respeito de casos difíceis, em obediência a princípios, e não em atenção a diretrizes políticas.
469 Dworkin, O império do direito, p. 254. De tal maneira, o modelo da comunidade de princípios concorda “[...] com o modelo das regras que a comunidade política exige uma compreensão compartilhada, mas assume um ponto de vista mais generoso e abrangente da natureza de tal compreensão. Insiste em que as pessoas são membros de uma comunidade política genuína apenas quando aceitam que seus destinos estão fortemente ligados da seguinte maneira: aceitam que são governados por princípios comuns, e não apenas por regras criadas por um acordo político. Para tais pessoas, a política tem uma natureza diferente. É uma arena de debates sobre quais princípios a comunidade deve adotar como sistema, que concepção deve ter de justiça, equidade e justo processo legal e não a imagem diferente, apropriada a outros modelos, na qual cada pessoa tenta fazer valer suas convicções no mais vasto território de poder ou de regras possível” (Idem, ibidem, p. 254).
470 Nesse sentido, Flávio Quinaud Pedron, Esclarecimentos sobre a tese da única “resposta correta”, de Ronald Dworkin, Revista CEJ, Brasília, ano XIII, n. 45, p. 104, abr.-jun. 2009. Ao fazer referida observação, Pedron baseia-se nas palavras de Dworkin, quando este diz que “Um argumento de princípio pode oferecer uma justificação para uma decisão particular, segundo a doutrina da responsabilidade, somente se for possível mostrar que o princípio citado é compatível com decisões anteriores que não foram refeitas, e com decisões que a instituição está preparada para tomar em circunstâncias hipotéticas” (Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 138).
250
É de ver que essa responsabilidade política dos julgadores existe quando
os juízes proferem uma decisão adequada, uma decisão correta à Carta
Constitucional,471 não centrada na legalidade textual, mas fundada nos princípios. No
Estado Social e Democrático de Direito, o indivíduo tem um direito fundamental à
obtenção de respostas corretas ou à possibilidade de dizer que uma resposta é correta e a
outra é incorreta; uma é constitucional e a outra é inconstitucional.472 Essa ideia é
essencial para uma nova visão da decisão judicial, própria de um Estado que se
preocupa com a democracia e que se centra na noção dos direitos. Aludida noção,
todavia, precisa ser embasada em argumentos de princípio, e não em argumentos de
política.
Dworkin entende que argumentos de política (ou de procedimento
político) não devem servir de base às decisões judiciais, pois o suposto bem-estar social,
não pode se converter na fundamentação de uma decisão judicial, na medida em que é
resultado de uma eventual maioria congressual (decisão parlamentar). Os juízes devem
atuar em conformidade com os princípios políticos eleitos pela sociedade, em particular
aqueles reunidos no documento constitucional. Assim, os argumentos de princípio
mostram que a decisão protege um direito dos indivíduos ou de um grupo específico.473
Os princípios descreveriam direitos, enquanto as políticas, objetivos.474 O Judiciário
471 Dworkin argumenta que há duas dimensões ao longo das quais se deve julgar se uma teoria fornece a
melhor justificação dos dados jurídicos disponíveis: a dimensão da adequação e a dimensão da moralidade política. A dimensão da adequação supõe que em um sistema moderno, desenvolvido e complexo, a probabilidade de duas teorias políticas diferentes poderem fornecer justificativas igualmente boas para uma controvérsia é muito pequena. [...] Será raro que muitos juristas concordem que nenhuma [teoria] fornece uma adequação melhor que a outra. Já a segunda dimensão, chamada de dimensão da moralidade política, parte do pressuposto de que, se duas justificativas oferecem uma adequação igualmente aos dados jurídicos, uma delas, não obstante, apresenta uma justificativa melhor que a outra se for superior enquanto teoria política ou moral, isto é, se apreendem melhor os direitos que as pessoas realmente têm (Ronald Dworkin, Uma questão de princípio, Tradução de Luis Carlos Borges, São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 213).
472 Nesse sentido está o pensamento de Streck, Hermenêutica, Constituição e autonomia do direito, p. 70.
473 Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 129. 474 Idem, ibidem, p. 142. Sobre a temática do objetivo político e do direito político Dworkin assim
aclara: “Começarei pela ideia de um objetivo político como uma justificação política genérica. Uma teoria política considera um determinado estado de coisas como um objetivo político se, para essa teoria, ele conta a favor de uma decisão política que tem a probabilidade de promover ou proteger tal estado de coisas, e contra uma decisão que irá retardar sua ocorrência ou colocá-la em perigo. Um direito político é um objetivo político individuado. Um indivíduo tem direito a uma oportunidade, a um recurso ou a uma liberdade se esse direito conta a favor uma decisão política que promove ou protege o estado de coisas no qual ele desfruta de tal direito, mesmo que com isso nenhum outro objetivo político seja servido e algum objetivo político desservido, e se esse direito contar contra a
251
está legitimado para decidir baseando-se nos princípios, de modo a resguardar os
direitos individuais e sociais garantidos pela Constituição.
Consoante o pensamento de Dworkin, a política é “aquele tipo de
padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral, uma melhoria em algum
aspecto econômico, político ou social da comunidade”.475 A política traz em seu bojo
uma série de interesses vinculados às metas coletivas e objetivos sociais da comunidade.
Não trata, em sentido estrito, de direito e de situações de igualdade, mas sim de
situações político-econômicas desejáveis em face das condições concretas e factuais de
determinado grupo.
Logo, diante dessas ideias apresentadas, é possível verificar como o
Supremo Tribunal Federal deverá embasar suas decisões, em especial quando apreciar
questões que envolvam os direitos e garantias dos servidores públicos.
3.4.1.2 O emprego de argumentos de política pelo Supremo Tribunal
Federal e a teoria da reserva do possível
Pois bem, tendo o pensamento jusfilosófico supraexposto em mente,
verifica-se que, quando os ministros do Supremo Tribunal Federal, verbi gratia, nas
Ações Diretas de Inconstitucionalidade 3.105 e 3.128, empregam no fundamento de
suas decisões argumentos como: o que afirma que a contribuição previdenciária
instituída está relacionada “à solvabilidade do sistema” (Ministro Gilmar Mendes);476
decisão que retardar ou colocar em perigo esse estado de coisas, mesmo que com isso algum outro objetivo político possa ser atingido. Uma meta é um objetivo político não individuado, isto é, um estado de coisas cuja especificação não requer a concessão de nenhuma oportunidade particular, nenhum recurso ou liberdade para indivíduos determinados” (Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 142-143).
475 Idem, ibidem, p. 36. 476 Assevera o Ministro Gilmar Mendes, acerca da questão, que da leitura da expressão “equilíbrio
financeiro e atuarial” se pode extrair a legitimidade de se tributarem servidores inativos: para o alcance do equilíbrio financeiro (receitas no mínimo equivalentes aos gastos) é preciso respeitar o equilíbrio atuarial (correlação entre contribuição e benefícios que os segurados receberão futuramente). Portanto, para a cobertura de uma receita ideal para o custeio das despesas, há um limite factual e normativo para a contribuição dos servidores em atividade, ou seja, esta não pode assumir valores exorbitantes, que tornem insustentáveis as suas vidas financeiras, nem pode ser do valor que não justifique, relacionalmente, o valor que lhe será pago em benefício futuramente. Assim sendo, “evidencia-se a importância de que todos os beneficiários do regime de previdência social do servidor público, inclusive os servidores inativos, concorram para a solidez e manutenção do sistema
252
ou o que assevera que o direito à aposentadoria e à pensão “lamentavelmente custam
dinheiro” (Ministro Sepúlveda Pertence);477 ou mesmo o que se funda em explicações
de matemática atuarial, para proferir que a aludida contribuição serve para “resolver as
questões deficitárias do sistema” (Ministro Nelson Jobim);478 estão fazendo uso de
típico argumento de política.
Note-se que o julgador pode até entrar na questão orçamentária para
fundamentar a sua decisão, mas esse tipo de argumento de política, no entanto, não deve
prevalecer no sentido de haver só a política permeando a argumentação do magistrado.
É aí que Dworkin assevera que ao juiz não cabe valer-se (somente) de argumentos de
procedimento político. O problema é existirem apenas argumentos de política dentro de
um quadro de moralidade política.479 Nesse sentido, a questão econômica tem que ser
previdenciário”, garantindo-lhe “tanto o equilíbrio financeiro entre receitas e despesas quanto o equilíbrio atuarial entre contribuições e benefícios”.
477 Ponderando sobre o argumento do Ministro Carlos Britto de que “a seguridade social, compreendendo um conjunto integrado de ações de iniciativa do poder público da sociedade, destina-se a garantir direitos, não a subtraí-los ou mutilá-los”, diz que, “lamentavelmente, esses direitos custam dinheiro”. Logo, crê o Ministro Sepúlveda Pertence que o art. 195 vem para “dizer que essas ações integradas serão financiadas por toda a sociedade”, considerando específico o art. 195, que fala do financiamento da seguridade social.
478 Talvez tenha sido o Ministro Nelson Jobim o que mais se preocupou com argumentos político-econômicos na fundamentação do seu voto. Afirma que: o Ministro explica, segundo a matemática atuarial, que: “A visão que prepondera no equilíbrio atuarial não é a individual, ou seja, o direito individual de receber aquilo que pagou, mas a do sistema como um todo e a sua necessidade de ser autossuficiente, de ser viável financeiramente. Equilíbrio atuarial é a necessidade de existir equivalência entre o ativo líquido do sistema e a sua reserva matemática, na linguagem dos atuários. Essa reserva significa a diferença entre as obrigações do plano para com os seus segurados, isto é, o valor atual dos benefícios futuros ou custo previdenciário – trazem-se os benefícios futuros, chamados custos previdenciários, para o momento atual – e as obrigações dos segurados para com o plano, o valor atual das contribuições. Se a previsão atual de arrecadação futura é maior do que a previsão atual do pagamento de benefícios futuros, o sistema reflete superávit. Se, ao contrário, a previsão atual de arrecadação futura é menor do que a previsão atual de pagamento de benefícios futuros – essa diferença não se compensa com o patrimônio líquido atual do sistema –, o sistema está com déficit. É isto que significa o princípio do equilíbrio atuarial: um cálculo matemático com regras de probabilidade, ou seja, uma especialidade da matemática que trabalha exatamente com as ações de futuro, absolutamente nada a ver com as relações entre haver pago e ter direito a receber. Se fosse verdadeira a tese à qual me referi, teríamos a impossibilidade total de resolver as questões deficitárias do sistema, porque, se tivéssemos que ter, a todo aumento ou criação de contribuições e tributo, um benefício subsequente, é evidente que não teríamos, em hipótese alguma a possibilidade de trabalhar nesse sentido”.
479 O papel da moralidade política é orientar o julgador no trânsito dos argumentos de princípio político e/ou procedimento político. Dworkin não ignora a hipótese de o juiz decidir cosoante este último argumento, todavia em seu pensamento jusfilosófico a justiça é melhor efetivada quando embasada nos princípios políticos, uma vez que são centrados nos direitos morais dos indivíduos, e, portanto, estão além de qualquer risco de escolhas arbitrárias da coletividade, não providas da necessária isonomia. Empregando os argumentos de princípio político, a jurisdição é legitimada e se afirmam os direitos que os indivíduos têm, direitos estes que são revestidos de conteúdo moral.
253
apreciada em termos de justiça social a fim de reaproximar o Direito e a moral. Donde
Dworkin dizer que deve haver a prevalência dos princípios que estão ligados à tese dos
direitos e à ideia de moral (jurídica).480
Contudo, verifica-se que a efetividade dos direitos fundamentais, em
especial dos direitos sociais, comumente encontra-se relacionada a argumentos políticos
(tal qual nos argumentos colhidos dos votos dos ministros do Supremo Tribunal
Federal). Dessa forma, pelo fato de os direitos fundamentais sociais serem direitos que
requerem prestações estatais ligadas de modo direto à destinação, distribuição (e
redistribuição) de recursos, aponta-se para sua dimensão economicamente relevante.
Destarte, observa-se que os julgados supracitados preocupam-se com o
gasto que se tem com os direitos fundamentais sociais, alinhando-se ao entendimento de
parte considerável da doutrina que assevera que a efetiva concretização das prestações
demandadas “não é possível sem que se aloque algum recurso, dependendo, em última
análise, da conjuntura econômica, já que aqui está em causa a possibilidade de os órgãos
jurisdicionais imporem ao poder público a satisfação das prestações reclamadas”.481 De
tal maneira, essa questão gira em torno da denominada reserva do possível, seu
conteúdo, e os limites da atuação jurisdicional nesse tema, especificamente quando esta
tropeça em carência de recursos, limitações orçamentárias e entraves de outra
natureza.482 Assim, parece ser necessário expor algumas linhas acerca da reserva do
480 Para Dworkin a moral baseia-se na ideia de que as pessoas devem ser tratadas como iguais. Esta
norma fundamental irá se introduzir na prática judicial, pois Dworkin a considera como capaz de absorver conteúdos normativos.
481 Sarlet, Os direitos sociais como direitos fundamentais..., p. 20-21. 482 Nas palavras de Sarlet esclarecendo a reserva do possível: “A utilização da expressão ‘reserva do
possível’ tem, ao que se sabe, origem na Alemanha, especialmente a partir do início dos anos de 1970. De acordo com a noção de reserva do possível, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos. A partir disso, a ‘reserva do possível’ (Der Vorbehalt des Möglichen) passou a traduzir (tanto para a doutrina majoritária quanto para a jurisprudência constitucional na Alemanha) a ideia de que os direitos sociais a prestações materiais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado, disponibilidade esta que estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público. Tais noções foram acolhidas e desenvolvidas na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, que, desde o paradigmático caso numerus clausus, versando sobre o direito de acesso ao ensino superior, firmou entendimento no sentido de que a prestação reclamada deve corresponder àquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade. Com efeito, mesmo dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável. Assim, poder-se-ia sustentar que não haveria como impor ao Estado a prestação de
254
possível a fim de verificar se a citada teoria é compatível com a vedação ao retrocesso
social.
Com isso, abre-se espaço, após várias ideias expostas, sem querer com
tal abertura cair em contradição na exposição do tema, para apresentar a problemática
que ora se coloca, de acordo com a doutrina da reserva do possível, que, como se disse,
tem conteúdo nitidamente econômico-financeiro e, por conseguinte, constitui-se em um
argumento político que não encontra espaço no pensamento de Dworkin quando este
jusfilósofo trata da fundamentação da decisão judicial. No entanto, conforme já se
alertou, a questão dworkiniana, nesse aspecto, não é tanto a limitação de adentrar na
análise de conteúdos político-econômicos por parte do julgador, mas de este empregar
de modo prevalente tais argumentos na fundamentação das decisões judiciais para
sustentar a única resposta correta.
Portanto, esclarecido esse ponto, será falado, ainda que brevemente, da
reserva do possível e da sua aplicação, quando o tema envolver a questão econômica e
orçamentária do Poder Público e os direitos fundamentais, pois parece ser algo que
merece enfrentamento no presente estudo, na medida em que é argumento
constantemente levantado pelo Estado-Administração quando se trata de efetivar
direitos sociais fundamentais.
Destarte, referida teoria tem origem na Alemanha,483 como viabilidade
lógica de efetivação de direitos fundamentais, não tendo sido utilizada como norma
assistência social a alguém que efetivamente não faça jus ao benefício, por dispor, ele próprio, de recursos suficientes para seu sustento. O que, contudo, corresponde ao razoável também depende – de acordo com a decisão referida e boa parte da doutrina alemã – da ponderação por parte do legislador” (Os direitos sociais como direitos fundamentais..., p. 23-24).
483 Na discussão acerca das restrições à efetivação de direitos fundamentais sociais, a assim denominada cláusula da reserva do possível é constantemente invocada. Tal hipótese foi mencionada em julgamento promovido pelo Tribunal Constitucional alemão, em decisão conhecida como Numerus Clausus (BverfGE 33, S. 333). No caso, a Corte alemã analisou demanda judicial proposta por estudantes que não haviam sido admitidos em escolas de medicina de Hamburgo e Munique em face da política de limitação do número de vagas em cursos superiores adotada pela Alemanha em 1960. A pretensão foi fundamentada no art. 12 da Lei Fundamental daquele Estado, segundo a qual “todos os alemães têm direito a escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu centro de formação”. Ao decidir a questão, o Tribunal Constitucional entendeu que o direito à prestação positiva – no caso aumento do número de vagas na universidade – encontra-se sujeito à reserva do possível, no sentido daquilo que o indivíduo pode esperar, de maneira racional, da sociedade. Ou seja, a argumentação adotada refere-se à razoabilidade da pretensão. Na análise de Sarlet, o Tribunal alemão entendeu que “[...] a prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode
255
principiológica. Quando de sua criação pelo Tribunal Constitucional Federal alemão,
não foi compreendida como reserva do financeiramente possível, mas sim como um
limite fático, tanto financeiro quanto estrutural, daquilo que o indivíduo pode
razoavelmente exigir da sociedade e do Estado. No entanto, a partir do momento em que
foi transportada para o Brasil, sob a influência do pensamento de Canotilho,484 veio
como limite orçamentário à implementação dos direitos fundamentais sociais, passando
a ensejar, em terras pátrias, análises econômicas sobre a efetivação dos direitos
fundamentais.
Entretanto, essa interpretação e transposição que se fizeram de tal
teoria, especialmente em solo brasileiro, como teoria da reserva do financeiramente
possível, consideraram como limite absoluto à efetivação de direitos fundamentais
sociais (i) a suficiência de recursos públicos e (ii) a previsão orçamentária da respectiva
despesa.485 Contudo, ultimamente, sobretudo como resultado de um posicionamento
incisivo da jurisprudência, a teoria da reserva do financeiramente possível não tem sido
aplicada como pretenso remédio universal para todos os males, capaz de afastar a
obrigatoriedade de efetivação dos direitos fundamentais sociais pelo Estado, pois as
decisões judiciais passaram a exigir prova da inexistência de recursos públicos, ou seja,
a comprovação da falta de recursos, igualmente designada de esgotamento
orçamentário.486-487
razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo dispondo o Estado de recursos e tendo poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável” (Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 287).
484 Andreas Joachim Krell, Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”, Porto Alegre: Fabris, 2002, p. 51-52.
485 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 288. 486 Fernando Borges Mânica, Teoria da reserva do possível: direitos fundamentais a prestações e a
intervenção do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas, Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, ano 5, n. 18, p. 181, jul.-set. 2007.
487 Nesse ponto importa destacar a decisão do STF na ADPF 45, Rel. Min. Celso de Mello, j. 29.04.2004, acerca do tema: “[...] É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em
256
Nesse viés, Sarlet explica que a doutrina sustenta que a chamada reserva
do possível, notadamente se concebida em uma acepção mais ampla, exibe ao menos
três dimensões,488 que podem ser assim compreendidas: a) os recursos devem estar
realmente (faticamente) disponíveis para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a
disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que mantém estreito
atrelamento com a repartição das receitas e competências tributárias, orçamentárias,
legislativas e administrativas, entre outras, e que, ademais, requer equacionamento,
especialmente no caso do Brasil, diante do sistema constitucional federativo brasileiro;
c) por sua vez, sob o prisma (também) do eventual titular de um direito a prestações
sociais, a reserva do possível relaciona-se com o problema da proporcionalidade da
prestação, com destaque para a questão referente à sua exigibilidade e, nesta quadratura,
de igual forma, da sua razoabilidade. Todos os sentidos aludidos conservam liame
estreito entre si e com outros princípios constitucionais (v.g., os da igualdade e
subsidiariedade), determinando, além disso, um equacionamento sistemático e
constitucionalmente apropriado, para que, na perspectiva do princípio da máxima
eficácia e efetividade dos direitos fundamentais, possam funcionar não como obstáculo
intransponível, mas até mesmo como instrumento para a garantia também dos direitos
sociais de caráter prestacional.
Todavia, ainda que existam diferentes dimensões acerca da temática da
reserva do possível, a ideia em destaque é o custo dos direitos sociais que o Estado é
obrigado a prestar, ou seja, até que ponto se pode exigir do Estado o cumprimento de
prestações que estão inteiramente ligadas a maior ou menor carência de recursos
disponíveis para o atendimento das demandas em termos de políticas sociais. Nesse
viés, tem-se presente o seguinte dilema: a reserva do possível alegada pelo Estado-
Administração versus a efetivação progressiva dos direitos fundamentais sociais,
exigida pela Constituição.
favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da ‘reserva do possível’ – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade”.
488 É o caso de Sarlet (Os direitos sociais como direitos fundamentais..., p. 24; A eficácia dos direitos fundamentais, p. 287).
257
Deveras, consoante a doutrina que trata da reserva do possível, a
aplicação da aludida teoria resulta no reconhecimento, de um canto, da ideia de que os
direitos fundamentais não são dotados de supremacia absoluta em todo e qualquer caso;
de outra banda, reconhece-se a “inexistência da supremacia absoluta do princípio da
competência orçamentária do legislador e da competência administrativa
(discricionária) do Executivo como óbices à efetivação dos direitos sociais
fundamentais”. Nesse diapasão, “Isso significa que a inexistência efetiva de recursos e
ausência de previsão orçamentária são elementos não absolutos a serem levados em
conta” no processo de decisão do magistrado. Por conseguinte, “o custo direto
envolvido para a efetivação de um direito fundamental não pode servir como óbice
instransponível para sua efetivação”, embora não possa ser totalmente ignorado no
processo decisório realizado pelo julgador.489 Conquanto a reserva do possível seja um
argumento político-econômico, não deixa de consistir também em uma limitação lógica
e fática à possibilidade de efetivação judicial dos direitos socioeconômicos,
atravessando o iter do juiz no processo que ele percorre para chegar à correção da
decisão.
De tal forma, a reserva do possível está longe de ser um argumento
(político) absoluto para barrar a efetivação dos direitos fundamentais em sentido
progressivo. Ainda que se argumente com essa teoria na fundamentação da solução
judicial – contrariando o pensamento jusfilosófico de Dworkin para quem argumentos
político-econômicos não devem ser (tão só ou de modo prevalente) empregados para
fundamentar decisões jurisdicionais –, ela não pode constituir óbice para a efetivação
dos direitos fundamentais econômicos, sociais e culturais.
Por conseguinte, mesmo que a reserva do possível colida prima facie
com o princípio do não retrocesso social, os gastos com a materialização desses direitos
não importam em permissão concedida ao Estado para regredir em termos de conquistas
sociais.
489 Mânica, Teoria da reserva do possível: direitos fundamentais a prestações e a intervenção do Poder
Judiciário na implementação de políticas públicas, p. 184-185.
258
Com isso não se está a negar que a falta de recursos exista como fator
limitador da efetividade dos direitos sociais e possa ser alegada (e provada) pelo Estado-
Administração (ou mesmo considerada como parâmetro inspirador para a edição de
normas financeiras e orçamentárias). Todavia, em razão de a Constituição Federal de
1988 agasalhar um modelo de Estado Social, não se pode permitir que o Estado
brasileiro abra mão de conquistas sociais já alcançadas para justificar retrocessos sociais
que contrariam o desenvolvimento social em que se deve primar por modificações
ampliadoras de direitos. De tal modo, em situação de reserva orçamentária (ainda que
finita), o Estado não se exime de ter de cumprir as prestações a que está obrigado pelo
ordenamento jurídico-constitucional. Portanto, nessas condições, se for para retroceder,
a justificativa da reserva do possível não deve prosperar, pois o princípio do não
retrocesso social tem o efeito de blindar as conquistas sociais perante a reserva do
possível.
Sendo realmente argumento típico – e, de certa maneira, até esperado –
do Executivo e do Legislativo dizer que mudanças na Constituição são essenciais para a
contenção/redução dos gastos com os servidores públicos, de outro canto, pautar-se em
argumentos que analisem questões sob a tese dos princípios é argumento que cabe ao
Judiciário. Por conseguinte, a resposta correta do julgador deverá ser embasada em
argumentos de princípio. Ao magistrado não cabe proceder no lugar daqueles
“poderes”, ou seja, não cabe ao juiz argumentar com base em argumentos próprios de
governante ou de legislador. O juiz não deve basear-se em argumentos metajurídicos
(político-econômicos) para resolver o caso sub judice.
Concorda-se com Dworkin quando profere que é da competência do
magistrado decidir os casos jurídicos em que há litígios, aplicando as soluções que o
Direito exige, pois, do contrário, o Judiciário estaria indo além de sua cota de
legitimidade democrática.490 Contudo, fazer uso de argumentos político-econômicos
490 Conforme explicam Vera Karam de Chueiri e Joanna Maria de Araújo Sampaio, “Os argumentos
políticos só são legítimos para os poderes executivo e legislativo, pois, como representantes da maioria, podem decidir o que seria melhor para ela. Ao judiciário cabe aplicar coerentemente as normas – em uma acepção aberta, a qual compreende regras e princípios –, para isso, deve se fundamentar em um argumento de princípio, isto é, deve garantir que, na aplicação de uma norma ou política pública, nenhum princípio eleito pela constituição seja descumprido” (Vera Karam de Chueiri e Joanna Maria de Araújo Sampaio, Como levar o Supremo Tribunal Federal a sério: sobre a suspensão de tutela antecipada n. 91, Rev. Direito GV, São Paulo, v. 5. n. 1, jan.-jun. 2009. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1808-24322009000100003>. Acesso em: 8 mar. 13).
259
(unicamente ou de forma prevalente) em hipóteses em que o julgador tenha de apreciar
a efetividade de algum direito fundamental social, torna-se, em muitos casos, difícil de
evitar, uma vez que o viés econômico-financeiro pode clamar pela atenção do julgador
quanto a esse aspecto.
No entanto, embora exista uma preocupação de que a ausência de recursos
seja fator limitador da plena aplicação da vedação ao retrocesso social, fazendo com que o
julgador adentre na seara econômico-financeira em suas decisões, a reserva do possível não
poderá impedir, enfatiza-se, a efetivação progressiva de um direito, pois, mesmo diante da
falta de recursos491 e da necessidade de moralização dos recursos, o enfraquecimento dos
direitos dependerá de um juízo de adequação do julgador, amparando-se na equivalência
jurídica (adiante estudada – item 3.4.5), que deverá ser observada, por intermédio de criação
de medida que possa equilibrar suficientemente essa ausência de recursos.492 E, assim, o
aspecto econômico será enfrentado em termos de justiça social por meio da justa
distribuição de recursos, sendo imperioso, por conseguinte, que o juiz atenda as
necessidades e as realidades jurídicas, tendo, como foco argumentativo, a preocupação com
os direitos dos administrados (no caso, dos servidores).
3.4.2 A importância das “cláusulas pétreas” na democracia e a proteção aos direitos
e garantias dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos
Segundo Dworkin, o constitucionalismo e a democracia são
perfeitamente compatíveis.493 Conforme suas lições, a democracia constitui-se em regra
491 Nos dizeres de Ada Pellegrini Grinover: “Observe-se, em primeiro lugar, que não será suficiente a
alegação de falta de recursos pelo Poder Público. Esta deverá ser provada, pela própria Administração, vigorando nesse campo quer a regra da inversão do ônus da prova (art. 6.º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor), aplicável por analogia, quer a regra da distribuição dinâmica do ônus da prova, que flexibiliza o art. 333 CPC, para atribuir a carga da prova à parte que estiver mais próxima dos fatos e tiver mais facilidade de prová-los” (Ada Pellegrini Grinover, O controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário, Revista do Curso de Direito da Faculdade de Humanidades e Direito, v. 7, n. 7, p. 24, 2010).
492 Mesmo nessas situações (do item 3.4.5), o enfraquecimento dos direitos e garantias dependerá de um juízo de adequabilidade, pois é dever de o ente estatal seguir uma progressão contínua para efetivar, cada vez mais, os direitos fundamentais. Essa progressiva ampliação, dentro de um crescimento econômico e de uma suficiência de recursos, não pode ter como empecilho, portanto, a alegação da reserva do possível.
493 Dworkin explica que, para ele, constitucionalismo significa “um sistema que estabelece direitos jurídicos individuais que o legislador dominante não tem o poder de anular ou comprometer”. Com efeito, “O constitucionalismo, assim entendido, é um fenômeno político cada vez mais popular”. E
260
da maioria legítima,494 significando que o simples fator majoritário não institui a
democracia. No entanto, é possível asseverar que certo tipo de estrutura constitucional
que uma maioria não possa modificar é seguramente um pré-requisito para a
democracia.
Assim sendo, além de normas constitucionais possibilitadoras, “que
constroem um governo da maioria estipulando quem deve votar, quando as eleições
devem se realizar, como os representantes são designados para os distritos eleitorais,
que poderes cada grupo de representantes tem, e assim por diante”, é necessário que
sejam estabelecidas normas constitucionais protegendo um núcleo de direitos e
garantias dos indivíduos, colocando-o a salvo de uma maioria capaz de alterá-lo.495 É
exatamente esse o papel das “cláusulas pétreas” na Constituição de 1988.
Ditas cláusulas podem ser enquadradas naquilo que Dworkin denomina
de normas constitucionais limitadoras, sendo, de modo pleno, vitais à democracia, dado
que uma maioria poderia extingui-la quase que de forma efetiva ao retirar de uma
diz: “Vem se tornando cada vez mais comum supor que um sistema jurídico respeitável deve incluir a proteção constitucional de direitos individuais” (Ronald Dworkin, Constitucionalismo e democracia, p. 1. Tradução de Emílio Peluso Neder Meyer. Publicado originalmente no European Journal of Philosophy, n. 3:1, p. 2-11, 1995. Disponível em: <http://pt.scribd.com/ doc/44585350/Ronald-Dworkin-Constitucionalismo-E-Democracia>. Acesso em: 24 abr. 2012).
494 No seu entender, “Um voto da maioria não alcança a legitimidade requerida a menos que, primeiro, todos os cidadãos tenham a independência moral necessária para participar da decisão política como agentes morais livres, e a menos que”, conforme, “o processo político seja tal que trate todos os cidadãos com igual consideração e respeito”. Logo, “Se isto está certo, os pressupostos da democracia incluem alguns direitos – quais deles é uma questão para se debater – tendentes a assegurar tais condições”. Defende ser necessário “incluir a liberdade de consciência e religião, assim como a liberdade de expressão política, e deve-se garantir que decisões políticas não estabeleçam preconceito contra qualquer grupo, desdenhando-os ou não os diferenciando na medida em que seja necessário” (Dworkin, Constitucionalismo e democracia, p. 5-6).
495 Como diz Dworkin sobre esse ponto: “algum tipo de estrutura constitucional que uma maioria não pode mudar é certamente um pré-requisito para a democracia”. Desse modo, “Devem ser estabelecidas normas constitucionais estipulando que uma maioria não pode abolir futuras eleições”, v. g., “ou privar uma minoria dos direitos de voto”. Tais regras, denominadas por Dworkin de normas constitucionais limitadoras, são plenamente essenciais à democracia, pois “Uma maioria destruiria a democracia quase que efetivamente retirando de uma minoria o direito de livre expressão do mesmo modo que se negasse voto à mesma, por exemplo”. Até porque, ao se fazer uma distinção entre normas constitucionais possibilitadoras, “que constroem um governo da maioria estipulando quem deve votar, quando as eleições devem se realizar, como os representantes são designados para os distritos eleitorais, que poderes cada grupo de representantes tem, e assim por diante”, e normas constitucionais limitadoras, “que restringem os poderes dos representantes que as normas possibilitadoras definiram”, não se pode “dizer que apenas as normas possibilitadoras são pré-requisitos da democracia, porque algumas normas constitucionais que possam, aparentemente, ser normas limitadoras são plenamente essenciais à democracia (Idem, ibidem, p. 2-3).
261
minoria, e.g., os direitos e garantias fundamentais. Além do mais, a Constituição
defende não só os objetivos da maioria, mas também os direitos das minorias. A
Constituição resguarda as minorias do excesso de poder da maioria e compete ao juiz
dar efetividade a essa proteção.496
Desse modo, no tocante à questão das cláusulas constitucionais,
reconhecidas na concepção dworkiniana, se de um lado são estabelecidas as normas
constitucionais possibilitadoras, referentes ao governo da maioria, que poderiam ser
entendidas, na Constituição de 1988, como, v.g., as regras referentes ao voto,
determinando quem deve votar (art. 14, caput e § . ,da CF), as condições de
elegibilidade (art. 14, §§ 3.º a 8.º, da CF) e quando as eleições devem se realizar (art.
28, caput; e art. 77, caput), de outro, é vital para a democracia que normas
constitucionais limitadoras (“cláusulas pétreas”) existam no corpo da Carta Maior para
restringirem os poderes dos representantes que as normas possibilitadoras definiram, e,
por conseguinte, não devem ser relativizadas.
Nota-se, portanto, que as duas espécies de normas constitucionais
(possibilitadoras e limitadoras) constituem pré-requisito para a democracia,
representando as duas faces da mesma “moeda democrática”. De tal maneira, é
essencial que se respeite o alto nível de proteção que o Poder Constituinte Originário
conferiu ao núcleo normativo constitucional limitador.
Logo, sendo tão essenciais para a democracia, não se podem aceitar
argumentos como os do Ministro Joaquim Barbosa, nas Ações Diretas de
Inconstitucionalidade 3.105/DF e 3.128/DF, que pretendam atribuir às “cláusulas
pétreas” o papel de “vilãs” no ordenamento jurídico constitucional.
Segundo o pensamento do citado ministro, embora se possam enxergá-
las “como instrumento poderoso, de extrema utilidade para a preservação de um núcleo
essencial de valores constitucionais”, não se pode negar que elas ganharam hoje uma
amplitude desmesurada. Vê as “cláusulas pétreas” como uma teoria de “construção
496 Para Dworkin, os juízes são também atores principais da transformação social, participando
positivamente na democracia contemporânea, por ser um poder estratégico capaz de afirmar e proteger os princípios democráticos.
262
intelectual conservadora, antidemocrática, não razoável, com uma propensão
oportunista e utilitarista a fazer abstração de vários outros valores igualmente protegidos
pelo nosso sistema constitucional”.
Afirma que, se forem “acolhidas de forma absoluta, sem qualquer
possibilidade de limitação ou ponderação com outros valores igualmente importantes,
tais como os que proclamam o caráter social do nosso pacto político, a teoria das
cláusulas pétreas terá como consequência a perpetuação” da desigualdade. Em outros
termos, representaria um formidável instrumento de perenização de certos traços da
organização social brasileira.
Assevera que “A Constituição de 1988 tem como uma das suas metas
fundamentais operar profundas transformações em nosso quadro social. É o que diz seu
art. 3.º, incisos III e IV”. Com isso, ao se interpretar de modo absoluto as “cláusulas
pétreas”, haveria um forte obstáculo para a concretização desse objetivo. Daí infere “o
caráter conservador da sua pretendida maximização”.
Anota que a “petrealidade” das cláusulas seria antidemocrática porque
impediria “que o povo, por intermédio de seus representantes legitimamente eleitos,
promova de tempos em tempos as correções de rumo necessárias à eliminação paulatina
das distorções, dos incríveis e inaceitáveis privilégios que todos conhecemos”.
E acrescenta, ademais, que as “cláusulas pétreas” teriam cunho ilusório,
pois no “constitucionalismo moderno, somente por intermédio dos procedimentos da
emenda constitucional e da jurisdição constitucional, fenômeno jurídico hoje quase
universal, é que se consegue manter a sincronização entre a Constituição e a realidade
social”, em que se tem uma evolução contínua e em ritmo avassalador. É insensato
“conceber que o constituinte originário possa criar aquilo que o Professor Canotilho
qualifica como uma “constituição imorredoira e universal”. Nesse sentido, “A evolução
do pacto constitucional deve ser a regra, sob pena de se criar um choque de gerações,
263
que pode até mesmo conduzir à esclerose do texto constitucional e do pacto político que
ele materializa”.497
Ora, em que pesem os argumentos do ministro, não é aceitável que em
um Estado Democrático de Direito sejam possíveis várias das suas afirmações. Nesse
sentido, a exposição feita no presente tópico, além de deixar evidente a ideia de que,
mesmo com caráter limitador, as “cláusulas pétreas” são vitais para a democracia
(consoante já se introduziu inicialmente), procurará esclarecer a importância protetiva
que conferem aos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos (representados, no
presente trabalho, pelos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos).
Com efeito, a competência reformadora da Constituição Federal é
exercida pelo Congresso Nacional, por meio das emendas constitucionais. Além de
derivado e subordinado (conforme visto no Capítulo 2) referido “poder” é, de igual
modo, condicionado, encontrando limitações procedimentais (art. 60, incisos I, II e III,
da CF), circunstanciais (art. 60, § 1.º, da CF), temporais (art. 60, § 5.º, da CF) e
materiais (art. 60, § 4.º, incisos I, II, III e IV), sendo estas últimas (as limitações
materiais) as denominadas “cláusulas pétreas”. Estas funcionam como garantia de
“conservação da identidade e dos princípios fundamentais da Constituição”,498
resguardando-a, por ser ela “mãe e guardiã da democracia”.499 Dentre as “cláusulas
pétreas”, tem-se o respeito aos direitos e garantias fundamentais (individuais e sociais)
como barreira às emendas à Constituição, impedindo-se que a competência para
reformar a Lei Maior brasileira afronte ditos direitos e garantias, os quais receberam
explicitamente do Poder Constituinte Originário a atribuição de
superconstitucionalidade.500
497 Esses são os argumentos expostos pelo Ministro Joaquim Barbosa, no julgamento conjunto das ADI
3.105 e ADI 3.125, movidas para questionar a constitucionalidade da contribuição previdenciária incidente nos proventos de aposentadoria dos servidores inativos.
498 Adriano Sant’Ana Pedra, A Constituição viva: poder constituinte e cláusulas pétreas, Belo Horizonte: Mandamentos, 2005, p. 94.
499 Ronald Dworkin, O império do direito, p. 476. 500 Termo usado por Brandão ao referir-se às “cláusulas pétreas” (Direitos fundamentais, cláusulas
pétreas e democracia: uma proposta de justificação e de aplicação do art. 60, § 4.º, IV, da CF/88).
264
No entanto, relativizando essa proteção limitadora das emendas à
Constituição, vem o citado pensamento do Ministro Joaquim Barbosa, que se aproxima
claramente das ideias preconizadas por Robert Alexy, para quem a ponderação de
valores serve para relativizar todos os direitos e garantias fundamentais, repelindo,
dessa forma, a hipótese da edificação de uma lista abstrata de precedências ou de uma
disposição hierarquizada de referenciais interpretativos. Ao adotar referido pensamento
jusfilosófico, deixa-se evidente o propósito de justificar que as necessidades coletivas
ou estatais devem se sobrepor aos direitos fundamentais dos indivíduos, ou seja, o peso
e a necessidade dos interesses de muitos, e do próprio Estado, devem sempre prevalecer
em relação ao peso e à necessidade de interesses dos indivíduos.501
No aludido voto, adere-se à maneira de tratar os princípios
constitucionais sob nítida influência da tradição alemã, isto é, como “comandos
otimizáveis”,502 o que significaria submeter as normas a uma estimativa de tipo
custo/benefício.503 Com efeito, sob a perspectiva alexyana, a prevalência de certo
501 No sentido de criticar a ponderação de valores proposta por Robert Alexy está o pensamento de
Álvaro Ricardo de Souza Cruz (Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Jurisdição constitucional democrática, Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 196-199).
502 Consoante entende Robert Alexy, “os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferente grau e que a medida devida de seu cumprimento não depende só das possibilidades reais, mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado por princípios e regras opostos” (Robert Alexy, Teoría de los derechos fundamentales, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1993, p. 86). Nesse viés, diante de uma colisão de princípios Alexy explica que as colisões devem ser solucionadas de maneira distinta das regras. Ou seja, “Quando dois princípios entram em colisão – tal como é o caso quando segundo um princípio algo está proibido e, segundo outro princípio, está permitido, um dos princípios tem que ceder ante o outro. Mas isto não significa declarar inválido o princípio desprezado, nem que o princípio desprezado tenha que introduzir uma cláusula de exceção. O que sucede é que, sob certas circunstâncias, um dos princípios precede ao outro. Sob outras circunstâncias, a questão da precedência pode ser solucionada de maneira inversa. Isto é, o que se quer dizer quando se afirma que nos casos concretos os princípios têm diferente peso e que prevalece o princípio com maior peso” (Idem, ibidem, p. 89).
503 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, em uma linha crítica quanto às ideias de Alexy e a acolhida que o STF deu a elas, assevera: “A nova hermenêutica constitucional na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, chamou de “relativização do princípio da supremacia do interesse público”, com base em uma nova compreensão, segundo a qual o raciocínio jurídico deve ser compreendido como uma “ponderação de valores”, em que os princípios constitucionais passam a ser tratados, seguindo a tradição da jurisprudência dos valores na Alemanha, como “comandos otimizáveis”, que colidem entre si para reger um caso concreto (Alexy). Esses “princípios” devem ser aplicados em diferentes graus, mediante a utilização de “regras de prioridade” e do princípio da proporcionalidade, a uma mesma decisão judicial, vista como um meio preferível, conveniente ou ótimo para a realização de um ideal totalizante de sociedade, que estaria pressuposto à Constituição: uma pretensa ordem concreta de valores, supostamente compartilhados por todos os membros da nossa sociedade política”. No entanto, acrescenta: “Esse entendimento judicial, que pressupõe a possibilidade de aplicação gradual de normas, ao confundi-las com valores, nega exatamente o caráter obrigatório do
265
princípio sobre outro ocorreria por uma questão de importância; explica-se: se
determinado comando de otimização se reveste de maior importância, ele deve ser
preferido ante outro.
Todavia, conceber os princípios tal como ambiciona Alexy é sujeitar o
Direito, “e sua aplicação, a uma questão de preferências perante fins que não seguem
uma ótica capaz de ser defendida como válida diante de um sistema de direitos
fundamentais”. Dessa maneira, “a operação de ponderação é assim, alheia a qualquer
critério de racionalidade normativa, transformando-se em uma discussão que chega,
para Habermas, a resultados discricionários ou arbitrários”.504 Há, por conseguinte, um
problema nesse entendimento defendido por Alexy: “corre-se o risco de confundir
direitos com bens, podendo ter sua aplicação negociada”.505
Direito. E tratar a Constituição como uma ordem concreta de valores é pretender justificar a tese segundo a qual compete ao Judiciário definir o que pode ser discutido e expresso como digno desses valores, pois só haveria democracia, desse ponto de vista, sob o pressuposto de que todos os membros de uma sociedade política compartilham de um modo comunitarista os mesmos supostos axiológicos, os mesmos interesses, uma mesma concepção de vida e de mundo” (Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, A teoria discursiva no debate constitucional brasileiro: para além de uma pretensa dicotomia entre um ideal transcendental de Constituição e uma cruel e intransponível realidade político-social. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp? codigo=60>. Acesso em: 27 maio 2012).
504 Lúcio Antônio Chamon Júnior, Tertium nom datur: pretensões de coercibilidade e validade em face de uma teoria da argumentação jurídica no marco de uma compreensão procedimental do Estado Democrático de Direito, In: Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (Coord.), Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado Democrático de Direito, Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 112-113. Nesse mesmo sentido, esclarecendo a possibilidade de se emanar uma decisão judiciária arbitrária, se esta tiver por base o pensamento alexyano, está Daniel Barile da Silveira, que assim pondera: “Como em cada magistrado residem concepções diferentes da realidade social, um valor possui mais valor do que outro em seu íntimo, vislumbrando na questão prática diferentes hierarquizações axiológicas impossíveis de serem objetivadas universalmente. Nestes casos, abrir-se-ia uma janela fecunda para o extravasamento da subjetividade, o que deveras exsurge como pano de fundo o questionamento sobre a própria racionalidade desse procedimento decisório. Como consequência lógica, um princípio excluiria o outro, trazendo graves incoerências na vida cotidiana. Ademais, se partirmos do princípio que uma colisão entre princípios deve ser dirimida a partir de seu balanceamento, apenas poderemos ponderá-los se os concebermos em seu ponto ótimo, em sua maximização, o que inviabiliza na prática sua validade como veículo de aplicação. Isto se justifica na medida em que, como se verifica empiricamente, tais princípios sofrem interferências e minimizações por outros princípios, quase nunca se vislumbrando a otimização de princípios, como quer Alexy. Assim entendido, o conteúdo normativo dos princípios acaba não recebendo a devida atenção, esvaziando o texto da Constituição dessa força mandamental” (Daniel Barile da Silveira, Paradigmas de interpretação constitucional: desafios ao entendimento das sociedades modernas, Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 1, n. 1, p. 56, mar. 2006. Disponível em: <www.ufsm.br/revistadireito/eds/v1n1/a4.pdf>. Acesso em: 8 set. 2012).
505 Flávio Quinaud Pedron, Comentários sobre as interpretações de Alexy e Dworkin, Revista CEJ, Brasília, n. 30, p. 75, jul.-set. 2005.
266
Nessa toada, importa fazer um alerta para o risco que é próprio de um
modelo de valores: se um tribunal adotar essa posição estará concebendo os princípios
não como direitos, mas como bens que podem ou não interessar ao intérprete, a
depender de este fazer parte ou não de um determinado círculo de pessoas. No entanto,
“interpretar o Direito legitimamente não implica transformar-nos em pregadores de
nossa concepção ética [...]”.506
Se acaso o “poder” reformador da Constituição for de encontro aos
limites de reforma, em especial das “cláusulas pétreas”, estará atuando de modo
inconstitucional, por ofensa aos direitos fundamentais dos administrados garantidos
pelo Poder Constituinte Originário. Referidas limitações têm o intento de impedir a
eliminação de matérias que formam um núcleo constitucional que não pode ser tocado
se o objetivo do legislador reformador for o de enfraquecê-lo; logo, pode ser
considerado tangível (dentro de uma situação de regularidade e de moralidade de
recursos) tão só se for para receber adensamento.507 Isto porque este núcleo protegido é
fruto de uma escolha soberana e limitativa realizada pelo Constituinte Originário,
servindo de filtro para eventuais opções da competência reformadora se esta se esquecer
de promover o compromisso que lhe foi imposto de instituir medidas progressivas com
relação aos direitos e garantias fundamentais.508
Quanto à afirmação de que as “cláusulas pétreas” seriam
antidemocráticas por impedirem que o povo tenha o direito de definir o seu futuro,
diretamente ou por meio de representantes ungidos com o voto popular, contra-
argumenta-se referida asseveração com a ideia de que a Lei Maior confere aos
indivíduos o resguardo de seus direitos e garantias fundamentais contra o arbítrio
estatal, em um extenso rol protetivo e acautelador, resultado de uma conquista que só
poderia acontecer exatamente porque se tem a democracia presente em um Estado
506 Chamon Júnior, Tertium nom datur..., p. 120. 507 Portanto, exceto em situações de déficits orçamentários, falta de recursos comprovada e imoralidade
quanto aos recursos, as “cláusulas pétreas” somente podem ser modificadas para serem adensadas no seu grau protetivo, conforme mais adiante se verá – item 3.4.5.
508 Argumento usado pelo Ministro Celso de Mello no julgamento das ADI 3.105 e ADI 3.128. Nesse sentido, portanto, verifica-se que o Ministro Celso de Mello adota uma visão profundamente mais protetiva, no tocante aos direitos e garantias fundamentais, do que o Ministro Joaquim Barbosa.
267
Social de Direito, constituindo o denominado Estado Social e Democrático de Direito
brasileiro.
As “cláusulas pétreas”, portanto, existem no intuito de proteger direitos
dos indivíduos e não se ocupam com a proteção das normas; nesse viés, não colidem
com a democracia ou com o constitucionalismo; ao contrário, elas têm um papel
importante no contexto democrático. E, conforme se mencionou acima, acerca do
pensamento de Dworkin referente ao constitucionalismo e à democracia, se esta quer
dizer regra da maioria legítima, o que implica a hipótese em que o mero fator
majoritário não constitui democracia, engana-se aquele que diz que os representantes
eleitos pelo povo tomarão decisões sempre em consonância com a ordem jurídico-
constitucional e protetivas dos direitos; é bem provável que muitas vezes não o façam.
Exatamente por isso, repita-se, é que a Constituição traz consigo as “cláusulas
pétreas”.509 Referidas normas constitucionais limitadoras, como já apontado, mostram-
se inteiramente vitais à democracia e precisam ser observadas e aplicadas.
Consoante doutrina Canotilho, a discricionariedade do legislador estará
sempre limitada pela Constituição na medida em que todos os atos são a ela vinculados;
o que se determina é a apuração do nível da vinculação positiva instituída pela
Constituição. Assevera o autor que o legislador, na sua liberdade de conformação, não
pode se equiparar a um agente administrativo, que para atuar necessita de autorização
legal, posto que a atividade legiferante já é uma autorização global da Constituição, que
prevê as competências e as funções constitucionais de seus órgãos.510 No entanto, não
deixa de estar pautado pelas balizas constitucionais, uma vez que referidas
competências e funções estão determinadas na Lei Maior.511
509 Dessa forma, é essencial que se estabeleçam normas constitucionais determinando que uma maioria
(legislador) não pode abolir “a forma federativa de Estado”, “o voto direto, secreto, universal e periódico”, “a separação dos Poderes” e “os direitos e garantias fundamentais”.
510 J. J. Gomes Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador, Coimbra: Almedina, 1999, p. 245.
511 Assim, no tocante à vinculação constitucional é irrefutável que, no Estado Constitucional e Democrático de Direito, todos os “poderes” e funções do ente estatal estão juridicamente vinculados às normas constitucionais, de hierarquia superior, carecendo então que se determinem o conteúdo e a extensão de referida vinculação (Idem, ibidem, p. 249). Consoante explica Canotilho, a ponderação de interesses, apreciação de situações de fato ou juízos de valor feitos pelo legislador nada têm a ver com a “existência de limites jurídicos objetivos que se possam determinar inequivocamente numa
268
Para o jurista lusitano, a vinculação jurídico-constitucional do legislador
é uma afirmativa contra o poder supremo e absoluto da lei. Dita vinculação, bem como
a liberdade do legislador, estão atreladas tanto à hierarquia substancial das normas
constitucionais quanto a um controle judicial. Do mesmo modo que a Administração é a
executora da lei, competindo aos tribunais desempenhar o controle da legalidade dos
seus atos e decisões, o legislador é o executor da Constituição (embora não realize
somente uma pura e simples execução da Lei Maior), cabendo aos tribunais, ou a uma
jurisdição constitucional, fiscalizar a conformidade formal e material dos atos
legislativos.
Nesse passo, critica-se o controle de constitucionalidade na medida em
que este poderia ferir a democracia, quando, nessa empreitada, não se mantém a devida
independência entre os “poderes”. No entanto, no constitucionalismo democrático, se de
um lado cada “poder” tem seu papel dentro do Estado e sua independência deve ser
respeitada, de outro, conquanto se saiba que o Judiciário, em tese, ao realizar o controle
de constitucionalidade não poderia criar o Direito, criar a lei, pois esta seria a função do
legislador, é sabido também que essa separação seria o ideal, mas, por diversas razões,
não pode ser plenamente concretizada,512 pois as normas do Direito requerem
interpretação e, por conseguinte, devem ser interpretadas antes de aplicá-las aos novos
casos. Destarte, incumbe ao juiz interpretar o Direito instituído ou, mesmo diante de
casos novos em relação aos quais não há nenhum precedente, o magistrado é obrigado a
criar o Direito.
Assim sendo, suas ações, em certas situações, legitimamente, acabam
por ultrapassar os limites do Poder Judiciário e desempenhar papéis que são próprios de
outros poderes – do Legislativo e do Executivo. E isto só acontecerá com o fim de
proteger a democracia e fazer cumprir os direitos constitucionais. Consoante entende
decisão judicial” e que seriam pressupostos apenas de “justiciabilidade de uma medida”. Infere-se daí que o controle judicial não pode transformar-se em um controle político (juridicização do político). O que seria admissível, então, é “apenas um controle dos limites externos dos atos legislativos, mas não já de uma devassa das considerações políticas subjacentes ao ato legislativo” (Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador, p. 240).
512 Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 128.
269
Dworkin, o Judiciário só invade outros poderes quando é imperioso que se faça cumprir
a Constituição.513
Com efeito, não se nega que compete ao Poder Legislativo a missão de
criar as leis. Todavia, essa missão passa a constituir um problema quando leis são
editadas com argumentos de defesa do interesse geral olvidando-se os direitos
fundamentais das minorias. Do mesmo modo que se deve evitar uma tirania do
Judiciário, diante de um ativismo intenso, também se deve impedir que o controle de
constitucionalidade fique a cargo do Legislativo, pois, nesse caso, a maioria seria o
único juiz de suas próprias decisões.514
Ainda, rebate-se a ideia de que as “cláusulas pétreas” seriam ilusórias.
Segundo aqueles que assim pensam, no constitucionalismo moderno, somente por
intermédio dos procedimentos de emenda constitucional e de jurisdição constitucional é
que se conseguiria manter a sincronização entre a Constituição e a realidade social.
Referido argumento evidencia o entendimento de que a existência das
“cláusulas pétreas”, protetivas de direitos fundamentais individuais e sociais,
antepararia uma sincronicidade entre a Lei Maior e a realidade social, na medida em que
seria impeditiva de determinadas mudanças no que diz respeito aos direitos e garantias
que as cláusulas resguardam.
A proteção que conferem seria irreal, pois as “cláusulas pétreas”
cederiam perante emendas constitucionais, uma vez que estas teriam o condão de
prevalecer perante determinados direitos agasalhados pela “petrealidade”, cabendo ao
tribunal constitucional garantir esse prevalecimento por meio da interpretação e
aplicação do Direito, mediante a ponderação de valores, corroborando, por conseguinte,
para que a Constituição se mantenha em sincronia com o que pede a realidade social.
Portanto, uma emenda constitucional, fruto da democracia, entendida como vontade da
513 Dworkin entende que só se justifica a interpretação da Constituição ficar nas mãos do Poder
Legislativo, poder democrático representante da maioria, se se deixar de lado a ideia de que a Constituição protege a minoria contra possíveis abusos de poder da maioria.
514 Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 225.
270
maioria, prevaleceria, dependendo da hipótese, sobre direitos resguardados pelas
“cláusulas pétreas”.
No entanto, embora se reconheça que a proteção conferida pelas
“cláusulas pétreas” não é absoluta (cf. itens 3.4.3 e 3.4.5), pensa-se ser inaceitável que o
abrigo que conferem seja ilusório, ao menos no sentido colocado pelo Ministro Joaquim
Barbosa, que transforma direitos e garantias em bens/valores, mensurados conforme
padrões de melhor ou pior, consoante um critério de preferibilidade;515 os valores são
ponderados em uma graduação escalonada, ofendendo a premissa de que todos os
direitos devem ser igualmente assegurados.516 Nesse sentido, a aplicação das normas
não garante a justiça social.
Reconhece-se que as mudanças na Constituição podem ser realizadas,
porém precisam permanecer fiéis às limitações impostas à competência reformadora
contidas na Carta Maior. Isto inclui manter-se leal às disposições previstas nas
“cláusulas pétreas”. Nesse passo, ao Judiciário cabe levar a sério os direitos e garantias,
marcados pelo traço da fundamentalidade, protegidos pela Constituição Federal. E,
nessa tarefa, ficaria afastada do julgador a possibilidade de considerar como apenas uma
miragem o amparo conferido pela Constituição Federal de 1988 aos direitos e garantias
fundamentais dos administrados diante de emendas que lhes sejam ofensivas, dando
margem a relativismos e ponderações que almejam afastar referidos direitos.
Além disso, outro argumento para rebater solidamente a ideia de que as
“cláusulas pétreas” concederiam uma proteção aparente encontra-se na noção de pré-
compromisso constitucional, em que se tem a limitação da competência reformadora da
Constituição, por normas previstas pelo Constituinte Originário, barrando ofensas aos
direitos e garantias fundamentais e afrontas à continuidade da democracia.
Destarte, a competência reformadora da Constituição possui menor
qualidade deliberativa do que a existente na Assembleia Nacional Constituinte, na
515 Lúcio Antônio Chamon Júnior, Teoria constitucional do direito penal: contribuições a uma
reconstrução da dogmática penal 100 anos depois, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 61. 516 Contudo, consoante essa visão, os valores equivalem a códigos morais, que são sempre individuais,
e, nesse viés, olvida-se que são os princípios (e não os valores) aqueles impregnados de validade jurídica, de normatividade em virtude de sua forma própria de conformação.
271
medida em que longínqua do povo, sobrepujada pelos poderes constituídos, Legislativo
e Executivo, sendo estes os mais suscetíveis às inconstâncias da política corriqueira e
banal, isto é, repita-se, sofrem influência de interesses políticos momentâneos. Dessa
forma, é essencial respeitar a ordem constitucional originária para que o Judiciário não
caia (como têm feito o Executivo e o Legislativo) na tentação de ouvir “o canto
irresistível” das vontades político-econômicas de ocasião, opondo-se bravamente a essas
pretensões, tal qual Ulisses enfrentou amarrado e com o ouvido tapado o canto das
sereias.517
Nessa linha, voltando à temática referente à competência reformadora,
uma vez que esta consiste em uma “faculdade normativa que se situa em um ponto
intermediário entre o poder constituinte originário e o poder legiferante”, ao produzir
“normas constitucionais, consubstancia-se em uma prerrogativa extraordinária – uma
competência de competências”.518 E assim não pode ser equiparada ao Poder
Constituinte Originário. A competência reformadora busca fundamento de validade na
Constituição do que decorre a sua natureza juridicamente balizada pela ordem
normativa constitucional.
Consoante já se explanou acima, os direitos e garantias individuais e
sociais não podem ser abolidos por meio de emenda (art. 60, § 4.º, CF), evidenciando,
de forma clara, a impossibilidade de a competência reformadora infringir mencionado
preceito. Ademais, não se pode olvidar que a competência para reformar a Constituição,
como decorrência de um poder constituído, é limitada, e, como tal, precisa acatar as
diretrizes abalizadas pelo Poder Constituinte Originário.
E para que as “cláusulas pétreas” não sejam ofendidas, isto é, para que
não se profira uma decisão limitativa de direitos e garantias fundamentais, é imperativo
que o desenlace do tema ocorra com embasamento em uma coerência ético-jurídica do
sistema constitucional como um todo. Por via de consequência, ao pronunciar uma
solução, o julgador não deve proceder à interpretação do dispositivo constitucional
ignorando-se a complexidade do processo de interpretação constitucional. O
517 Referida ideia faz alusão ao que já se explicou na nota de rodapé 296 do presente estudo. 518 Brandão, Direitos fundamentais, cláusulas pétreas e democracia: uma proposta de justificação e de
aplicação do art. 60, § 4.º, IV, da CF/88, p. 13-14.
272
magistrado, portanto, deve-se ater, na sua decisão, ao resguardo dos direitos
fundamentais dos indivíduos (no caso, à proteção aos direitos fundamentais dos
servidores).
Veja-se que é exatamente porque, em muitas situações, não se observa
essa ampla proteção que o Poder Constituinte conferiu às “cláusulas pétreas”,
especialmente o não reconhecimento de que sua força protetiva clama no sentido de se
tornar mais denso o abrigo conferido aos direitos e garantias fundamentais, que surge a
necessidade de aplicação do princípio da vedação ao retrocesso social. Nesse ponto, por
conseguinte, torna-se relevante deixar evidente a função do primado do não retrocesso
social no panorama jurídico-constitucional contemporâneo.
3.4.3 O princípio da vedação ao retrocesso social e a proteção que confere aos
direitos e garantias dos servidores públicos
Neste tópico, de início, resgatam-se os argumentos dos Ministros Carlos
Britto e Celso de Mello, dantes expostos nas já referidas Ações Diretas de
Inconstitucionalidade 3.105/DF e 3.128/DF (item 2.1.4.2), visando, por meio das razões
dos seus votos, expor a fundamentação realizada acerca da temática aqui abordada,
fundamentação essa que servirá como norte para o que se pretende afirmar no presente
item.
E, apesar de ambos os ministros terem considerado inconstitucional a
contribuição previdenciária dos servidores inativos, indo contra a maioria da Corte de
Justiça mais alta do País, que decidiu pela constitucionalidade da cobrança (como se viu
no final do Capítulo 2), o que interessa para a exposição que se fará neste tópico são os
trechos das argumentações dos citados ministros, cujos entendimentos quanto ao tema
da vedação ao retrocesso social serão a seguir colacionados, uma vez que bem
demonstram a proteção que o primado do não retrocesso social confere aos direitos e
garantias dos servidores públicos.519
519 Ainda que mais adiante o presente trabalho analise a questão da contribuição previdenciária dos
servidores inativos, reconhecendo a sua justificação, os argumentos dos ministros serão utilizados como passo inicial para a matéria a ser tratada neste tópico.
273
Destarte, o Ministro Carlos Britto afirma que as “cláusulas pétreas”
desempenham o papel de serem “impeditivas de retrocesso, ou seja, garantem o
progresso. O progresso então obtido é preciso ser salvaguardado”. E assim o é porque
não se pode negar que a Constituição de 1988 tem o caráter de uma Constituição
avançada, que fez do indivíduo alguém hipossuficiente perante o Poder Público e o
trabalhador hipossuficiente perante o empregador. Nesse diapasão, uma emenda só será
constitucional se for para robustecer esse teor de proteção ao hipossuficiente. De tal
forma, “A petrealidade não chega a ponto de impedir que uma norma protetiva receba
adensamento”.
Nessa passada, o Ministro Celso de Mello, nos mesmos julgados,
pondera sobre a matéria, tratando da questão do princípio da proibição do retrocesso
social nos seguintes termos: “em tema de direitos fundamentais de caráter social, e uma
vez alcançado determinado nível de concretização de tais prerrogativas (como estas
reconhecidas e asseguradas, antes do advento da EC n.º 41/2003, aos inativos e aos
pensionistas)”, referido primado tem o condão de impedir “que sejam desconstituídas as
conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive”.
E arremata sua argumentação acerca do princípio dizendo que, em
realidade, “a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de
sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de
natureza prestacional”, fazendo com que se impeça, consequentemente, que os
patamares “de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser
reduzidos ou suprimidos, exceto nas hipóteses – de todo inocorrente na espécie – em
que políticas compensatórias venham a ser implementadas pelas instâncias
governamentais”.
Do que se vê, desses argumentos pode-se destacar o reconhecimento de
que o primado da vedação ao retrocesso social faz parte da comunidade de princípios.
Portanto, o Direito não fica adstrito ao plexo de decisões proferidas em âmbito
institucional, ultrapassando-o, e daí necessitar ser tomado em termos gerais como um
274
sistema de princípios edificados a partir da interpretação da história das práticas sociais,
premissa vital que carece estar presente nas decisões institucionais.520
Nesse viés, os direitos e deveres políticos dessa comunidade não estão
conectados tão somente às decisões particulares proferidas no passado, mas são
dependentes de um sistema de princípios que essas decisões pressupõem ou endossam.
Nessa toada, a fim de chegar a uma única resposta correta (juízo de adequabilidade ou
correção) para cada caso controverso, o juiz não deve se esquecer de se pôr na
perspectiva de sua comunidade, concebida “como uma associação de coassociados
livres e iguais perante o Direito, assumindo uma compreensão crítica do Direito positivo
como esforço dessa mesma comunidade, para desenvolver da melhor maneira possível o
‘sistema de direitos fundamentais’”.521 Portanto, o não retrocesso social, como
integrante da comunidade de princípios, faz com que sua aplicação se mostre de grande
importância, nomeadamente para somar-se à proteção que as “cláusulas pétreas”
conferem aos direitos e garantias fundamentais.
Consoante já se ressaltou no Capítulo 2, o primado do não retrocesso
social é autônomo e tem conteúdo próprio, diferente do mínimo existencial e da
dignidade da pessoa humana. Tem substância independente, diversa da proteção à
confiança e distinta da segurança jurídica na sua faceta individual, podendo-se falar em
uma segurança ao nível da coletividade, isto é, aquilo que se incorporou ao patrimônio
jurídico da sociedade, como conquista sua, e não pode ser suprimido, rebaixado ou
diminuído (e aí se está falando do direito adquirido social como um de seus
fundamentos); em última instância, por intermédio dele, resguarda-se o sentido de
caminhar rumo ao desenvolvimento, ao progresso (buscando consolidar o progressivo
alargamento dos direitos fundamentais), almejando a consolidação da democracia.
Destarte, como postulado constitucional autônomo, tendo sedes materiae nas
disposições constitucionais mencionadas no tópico 2.2, pode ser aplicado de per si, para
solucionar um determinado caso; assim, assume o status de princípio constitucional
implícito, dotado de força normativa eficacial.
520 Flávio Quinaud Pedron, É possível uma resposta correta para casos controversos? Uma análise da
interpretação de Robert Alexy da tese dworkiana, Rev. Trib. Reg. Trab. 3.ª Reg., Belo Horizonte, v. 40, n. 70, p. 46, jul.-dez. 2004.
521 Pedron, Esclarecimentos sobre a tese da única “resposta correta”, de Ronald Dworkin, p. 106.
275
Deveras, o primado do não retrocesso tem aplicação ampla quanto às
medidas de cunho retrocessivo que possam ofender as normas constitucionais protetivas
dos direitos e garantias fundamentais – aqui evidenciados pelos direitos e garantias
fundamentais dos servidores dantes expostos –, sempre que a medida retrocessiva atinja
o nível mais elevado em relação aos direitos fundamentais constitucionalmente
protegidos. Por conseguinte, o princípio da proibição do retrocesso social terá aplicação
como forma de impedir que se enfraqueça, revogue ou minimize direitos fundamentais
por intermédio de uma emenda constitucional (ou por legislação infraconstitucional em
situação que equivalha a uma omissão legislativa). Ainda que a garantia e o direito já
tenham amparo natural por meio de algum princípio constitucional (ou alguns
princípios), o princípio da vedação ao retrocesso social juntar-se-á a este princípio (ou a
estes princípios) na tentativa de manutenção do grau já alcançado quanto aos direitos
fundamentais.
De tal modo, o princípio do não retrocesso social é justamente o
adensamento, tão bem colocado pelo Ministro Carlos Britto, em termos de agasalho aos
direitos fundamentais, em que referidos direitos encontram abrigo no primado da
vedação ao retrocesso social, que representa um reforço ao grau de resguardo a tais
direitos. E acrescente-se: prima pelo desenvolvimento social do ponto de vista de uma
sociedade moderna, agasalhando o plano mais alto alcançado, protegendo as
modificações ampliadoras de direitos.
Veja-se que a previsão (existência) dos direitos e garantias
fundamentais na Constituição, definitivamente, não pode ser excluída ou extinta por
emenda constitucional exatamente por estar protegida pelas “cláusulas pétreas”. No
entanto, diante de interpretações restritivas que podem ser conferidas à dita proteção
(pelo legislador, pelo administrador e, inclusive, pelo julgador), esta deixa de ser
suficiente para obstar a redução do grau mais elevado alcançado pelos direitos e
garantias fundamentais, especialmente quando se tem a edição de emendas
constitucionais que determinem aos servidores novas exigências redutoras e
minimizantes dos seus direitos fundamentais sem observar-se a equivalência jurídica
(cf. item 3.4.5).
276
Daí tornar-se preciso que o grau mais elevado e benéfico obtido em
termos de direitos e garantias fundamentais esteja protegido pelo não retrocesso
social.522 Note-se, nessa passada, que a vedação ao retrocesso operará como
complementação necessária apta a aprimorar e fortalecer o sistema de proteção dos
direitos fundamentais que possam implicar a diminuição do plexo de direitos e garantias
da comunidade de servidores. Visa-se, dessa maneira, por meio da proibição do
retrocesso, manter o nível de proteção social já consagrado, preservando as conquistas
sociais alcançadas pela coletividade de servidores, buscando evitar, com isso, a redução,
diminuição, minimização dos direitos e garantias fundamentais.
Contudo, segundo alguns posicionamentos, diante do advento de uma
emenda, desde que fique mantida a presença em si do direito fundamental no
ordenamento jurídico constitucional, não haveria falar em ofensa ao art. 60, § 4.º, da
Constituição Federal, mesmo que ocorram mudanças minimizantes nas normas
protetivas dos direitos e garantias fundamentais. Não se vislumbraria, ante essa
circunstância de diminuição, ultraje às “cláusulas pétreas”.523 Entretanto, de outro lado,
conquanto não se reconheça ofensa propriamente ao núcleo intocável da Lei Maior, uma
vez que reste nítido que a força do direito e da garantia é esvaziada, minimizada,
reduzida com a emenda que foi promulgada, ainda assim ter-se-á afronta aos direitos e
garantias fundamentais e permanecerá a ofensa à Carta Política brasileira.
Portanto, para que se impeça esse insulto, torna-se necessário o amparo
do princípio da proibição de retrocesso social a fim de vedar esse
estreitamento/rebaixamento do expressivo grau de conquistas alcançado pela
comunidade de servidores, refletido em um plexo de direitos e garantias instituído em
decorrência de todo um processo evolutivo.
522 Com a promulgação de uma emenda constitucional pode-se ter o seguinte: mantida a previsão do
direito fundamental, não se fere a cláusula pétrea. Mantida a previsão, mas reduzido o patamar anterior mais alto alcançado pelos direitos e garantias fundamentais, sem compensações, não se desrespeita a proteção do núcleo do direito conferida pela cláusula pétrea, mas se ofende o primado do não retrocesso social.
523 Esse é o tom da fundamentação exarada pela Ministra Cármen Lúcia na ADI 3.104/DF. Nessa ação, em que foi relatora, entendeu a magistrada, ao se pronunciar acerca das sustentações orais realizadas pelos amici curiae, que haveria afronta ao princípio da proibição de retrocesso social se tivesse sido extinta a possibilidade de aposentadoria, este sim um direito social, não incidindo o acenado princípio quando se tratar de “adaptação dos critérios de transição para o novo modelo previdenciário que se veio a estabelecer”.
277
Logo, é possível verificar o papel que esse princípio tem: se no plano
infraconstitucional ele garante a não revogação de leis concretizadoras das normas
constitucionais que prevejam direitos e garantias fundamentais sem que se instituam
medidas equivalentes àquela que foi revogada, evitando que se recaia em uma situação
de vazio normativo ou omissão legislativa (cf. Capítulo 2), no plano constitucional, no
tocante às alterações instituídas, aludido primado deve ser visto como um complemento
protetivo densificador em relação à proteção conferida pelas “cláusulas pétreas” no que
concerne aos direitos e garantias fundamentais, formando, desse modo, uma barreira
contra modificações que visem deprimir, diminuir, aviltar o grau mais alto já
conquistado, particularmente quanto aos direitos e garantias fundamentais dos
servidores públicos efetivos.
E, uma vez que referida situação acabe sendo objeto de apreciação pelo
Judiciário, caberá ao julgador analisar a problemática que chega a suas mãos, com base
no Direito entendido como uma ordem de princípios marcada pela sua “integridade”,
como diz Dworkin.524 Ou seja, diante de um caso difícil,525 o juiz optará por diferentes
decisões de acordo com sua interpretação. No entanto, sua decisão final e suas
conclusões pós-interpretativas devem ser extraídas de uma interpretação que se adapte
aos fatos anteriores e os justifique, até onde isso seja possível. A teoria da integridade
524 Sobre a sua teoria da integridade Dworkin explica: “Estabeleci uma distinção entre duas formas de
integridade ao arrolar dois princípios: a integridade na legislação e a integridade na deliberação judicial. A primeira restringe aquilo que nossos legisladores e outros participantes da criação do direito podem fazer corretamente ao expandir ou alterar nossas normas públicas. A segunda requer que, até onde seja possível, nossos juízes tratem nosso atual sistema de normas públicas como se este expressasse e respeitasse um conjunto coerente de princípios e, com esse fim, que interpretem essas normas de modo a descobrir normas implícitas entre e sob as normas explícitas. Para nós, a integridade é uma virtude ao lado da justiça e da equidade (fairness) e do devido processo legal, mas isso não significa que, em algumas das duas formas assinaladas, a integridade seja necessariamente, ou sempre, superior a outras virtudes. O legislativo deveria ser guiado pelo princípio legislativo da integridade, [...] [sendo que] nunca deve, sejam quais forem as circunstâncias, tornar o direito mais incoerente em princípio do que ele já é. [...] O princípio da integridade na prestação da justiça não é de modo algum superior ao propósito do que os juízes devem fazer cotidianamente. Esse princípio é decisivo para aquilo que um juiz reconhece como direito. Reina, por assim dizer, sobre os fundamentos do direito [...]. O juiz que aceitar a integridade pensará que o direito que esta define estabelece os direitos definitivos que os litigantes têm a uma decisão dele. Eles têm, em princípio, de ter seus atos julgados de acordo com a melhor concepção daquilo que as normas jurídicas da comunidade exigiam ou permitiam na época em que se deram os fatos, e a integridade exige que essas normas sejam consideradas coerentes, como se o Estado tivesse uma só voz” (O império do direito, p. 261-263).
525 Os casos difíceis são aqueles em que se está diante de um caso controverso, isto é, casos nos quais o juiz não conseguiria resolver a questão por meio da simples aplicação da lei, isto é, da mera subsunção do fato concreto à norma geral e abstrata.
278
exige que os juízes, na medida do possível, considerem ser o Direito estruturado por um
conjunto coerente de princípios sobre a justiça, a equidade e o devido processo legal, e
pede-lhes que os apliquem aos novos casos que se lhes apresentem, de tal modo que a
situação seja sempre justa e equitativa.
A ideia de integridade para Dworkin representa a virtude do Direito por
intermédio da qual o juiz decide sempre em conformidade com a comunidade de
princípios, de modo que se pode esperar que o magistrado decida de maneira
semelhante os casos análogos (a não ser que vislumbre erro na decisão anterior).
Dworkin pondera que a integridade é um corolário do igual tratamento e, de tal modo, é
uma das pilastras do Estado de Direito, ao lado da equidade ou do devido processo
legal, como já destacado. A decisão judicial fundada na comunidade de princípios é
vital para a ideia de integridade no Direito. E, a fim de chegar à resposta correta para o
caso, o juiz não deve se esquecer de se pôr na perspectiva dessa comunidade.
Nesse passo, se o princípio da vedação ao retrocesso social integra a
comunidade de princípios do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, conforme
já se demonstrou, o magistrado pode aplicá-lo para resguardar direitos fundamentais dos
servidores, sendo (em situações normais) um mandamento protetivo densificador.
E, para aqueles que poderiam se opor ao grau de proteção que aqui se
defende no que concerne aos aludidos direitos e garantias, afirmando que pela aplicação
do primado do não retrocesso social, com o papel que se lhe atribui no presente trabalho
(o de adensar a proteção conferida pelas “cláusulas pétreas” e primar pelo
desenvolvimento social), estar-se-ia engessando a Constituição, impedindo a Carta
Política de adequar-se aos tempos atuais, cabe o contra-argumento de que não é o caso
de engessamento da Lei Maior, mas sim da preservação do progresso, do nível mais
alto conquistado, e qualquer mudança deve respeitar esse grau mais elevado de
evolução adquirido pela comunidade de servidores públicos. O problema não é de
mutabilidade normativa, mas de imutabilidade do nível superior alcançado no que toca
aos direitos e garantias fundamentais.
Contudo, obviamente que referida proteção atribuída pelo primado da
proibição de retrocesso social não pode ser entendida de modo irrestrito, pois, se assim
279
fosse, as previsões normativas não poderiam sofrer qualquer tipo de alteração que
dissesse respeito aos requisitos e condições para aquisição e perda dos direitos e
garantias dos servidores.526
Mudanças podem ocorrer quanto ao nível elevado que alcançou o plexo
de direitos e garantias fundamentais dos servidores, em regra, para que sofram
adensamento. No entanto, o contrário somente acontecerá se se estiver vivenciando
déficit orçamentário ou carência de recursos devidamente demonstrada e imoralidade
quanto aos recursos. Nestas hipóteses, no entanto, haverá necessidade de se criarem
medidas jurídicas equivalentes, como exigência da própria proibição de retrocesso
social, para evitar minimizações ou revogações que possam abalar profundamente os
direitos e garantias fundamentais (é o que será visto no item 3.4.5 que tratará
especificamente da equivalência jurídica).
Não obstante reconhecer que o primado da vedação ao retrocesso social
não é absoluto, o que virá a ser examinado no último tópico deste estudo, ainda merece
ser analisado, antes do derradeiro ponto, o campo protetivo do princípio do progresso
social, especialmente a proteção que o direito adquirido social, como um dos
fundamentos desse mandamento, desempenha no regime jurídico do servidor público.
3.4.4 O regime jurídico do servidor público ocupante de cargo efetivo e a proteção do
direito adquirido social
Quanto a este terceiro ponto a ser examinado, no que diz respeito à
temática do direito adquirido social, vale destacar que o assunto do direito adquirido na
sua dimensão social foi, de maneira implícita, abordado nos votos dos Ministros Carlos
526 Aqui cabe aproveitar as colocações trazidas por Pontes Filho, quando trata do direito adquirido ao
regime jurídico previdenciário do servidor público, mas que se aplicam também às possíveis mudanças que possam ser introduzidas no regime jurídico do funcionário, sem que sejam ofensivas ao não retrocesso social. Nesse passo, para exemplificar, no plano infraconstitucional, alterações que advenham sem ferir o aludido primado, pode-se, consoante diz o autor, verificar que “Nada obsta, por exemplo, que a carreira a que pertença seja reestruturada, que seu horário de trabalho se modifique [...], ou mesmo que gratificações que perceba sejam modificadas ou extintas (desde que respeitada a irredutibilidade remuneratória que a Constituição lhe assegura)” (Valmir Pontes Filho, Direito adquirido ao regime de aposentadoria, Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. 1, n. 8, nov. 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 8 set. 2012, p. 6).
280
Britto e Celso de Mello (ADIs 3.105 e 3.128), quando mencionam o princípio da
vedação ao retrocesso social, sobretudo na questão destacada quanto ao progresso pelo
Ministro Carlos Britto e na fundamentação do voto do Ministro Celso de Mello, quando
este julgador diz que o princípio impede que sejam desconstituídas as conquistas já
alcançadas pela formação social em que vive o cidadão – conteúdo exato da noção de
direito adquirido social, um dos fundamentos do primado do não retrocesso social.
Não obstante presentes na mesma matriz constitucional (art. 5.º,
XXXVI, da CF), o direito adquirido individual e social diz respeito a dimensões
diferentes de proteção. Por conseguinte, quando o direito já se incorporou ao patrimônio
jurídico do servidor (quanto aos seus direitos e garantias), fica clara a ofensa perpetrada
ao direito adquirido individual quando há retroatividade da norma; entretanto, quando o
ultraje acontece pelo rebaixamento/enfraquecimento do nível mais alto antes obtido pela
comunidade de servidores públicos, quanto aos seus direitos e garantias, haverá afronta
ao direito adquirido social.
Pois bem, é entendimento consolidado no Supremo Tribunal Federal de
que não há direito adquirido a regime jurídico (como também diante de emenda
constitucional), uma vez que o vínculo que liga o servidor com a Administração
Pública, como visto alhures, é de caráter institucional ou estatutário, portanto decorrente
de lei. E, nesse ponto, o estatuto que rege essa ligação, tendo o Estado-Administração
de um lado e o servidor público de outro, pode ser modificado diante do interesse
público que cabe à Administração defender, incluindo os direitos e garantias que
compõem referido regime.
No entanto, em que pese essa tese preconizada pelo Supremo Tribunal
Federal de que não há direito adquirido a regime jurídico,527 a ideia não é a de rebatê-la,
527 A tese do Supremo Tribunal Federal de que não há direito adquirido a regime jurídico não será
rebatida no presente trabalho. Em verdade, entende-se que a ideia do direito adquirido a regime jurídico significa que os direitos fundamentais dos servidores estariam, em termos de nível de proteção, acobertados com um “plus” em relação à proteção conferida pelo direito adquirido individual. Explica-se: o resguardo oferecido pelo direito adquirido a regime jurídico teria o condão de fazer incorporar ao patrimônio jurídico do servidor um determinado conjunto normativo, responsável por reger o vínculo Estado-servidor, sendo que este plexo de normas não mais poderia ser alterado pelo ente estatal, livremente, em nome do interesse público. As mudanças normativas, para pior, que viessem a ser instituídas após o ingresso do servidor (ocupante de cargo efetivo), nos quadros da Administração, não lhe alcançariam. Veja-se que a esfera de abrigo nessa hipótese
281
mas de mostrar que o exame a ser feito deve sê-lo sob dois prismas diversos,
merecendo, de tal modo, ser realizada uma análise acerca da proteção aos direitos
adquiridos dos servidores públicos estatutários, tanto na sua acepção individual quanto
na sua dimensão social. A despeito de não ser o direito adquirido individual o ponto
central do estudo que aqui se faz tratar, consoante já se alertou, não há como fugir dos
comentários a essa dimensão do direito adquirido precisamente por ser inerente à visão
tradicional do tema. Nesse passo, começar-se-á por essa dimensão para, em seguida,
tratar do prisma social do instituto.
Nesse viés, afirma-se, como já se viu, que o vínculo que disciplina a
relação entre o servidor estatutário e o Estado pode sofrer alterações exatamente porque
é um liame que decorre da lei e, assim sendo, como decorrência da própria mutabilidade
das leis, não há a garantia de que permanecerá sendo regido pelas disposições vigentes
quando do ingresso do servidor nos quadros da Administração.
Todavia, a partir do momento em que o servidor público preenche os
requisitos legais para a concessão do benefício que lhe é garantido, este passa a ser um
direito próprio seu, um direito que o servidor passa a fazer jus em virtude de disposição
normativa, conforme o sistema normativo vigente à época em que completa as
condições necessárias para poder gozar do benefício. Portanto, mesmo que a norma seja
alterada após o preenchimento pelo servidor das exigências legais para adquirir o
direito, as alterações normativas, quanto a este seu direito, não lhe alcançarão
justamente porque protegido pelo direito adquirido individual. Em outras palavras, “os
direitos já incorporados ao patrimônio jurídico dos servidores, ou seja, os direitos
adquiridos, continuarão a existir no âmbito individual da relação de cada servidor (que
tenha adquirido o direito) com o poder público”.528 Desse modo, mesmo que
sobrevenha qualquer alteração no regime jurídico do servidor, dever-se-á respeitar a
aquisição de certo direito.
ultrapassa a proteção conferida pelo direito adquirido individual, que requer o preenchimento das exigências necessárias para a obtenção do direito e incorporação do mesmo ao patrimônio jurídico dos servidores públicos (daí ser um “plus”). No entanto, ainda se leva em conta o direito adquirido a certo nível de garantias em relação a cada servidor, nível este que posteriormente poderá ser rebaixado desde que não afete o servidor que já tenha estabelecido o vínculo (legal) com o Estado. Contudo, os demais servidores que ingressarem no Poder Público, após as mudanças, não estariam livres do enfraquecimento nesse nível elevado de direitos.
528 Ana Luísa Celino Coutinho, Servidor público..., p. 162.
282
Aliás, nesse ponto, o Supremo Tribunal Federal sumulou entendimento,
quanto à aposentadoria do servidor, pacificado na Súmula 359, seguindo essa linha de
ideias, lembrado pelo Ministro Marco Aurélio em seu voto nas Ações Diretas de
Inconstitucionalidade 3.105 e 3.128, quando o julgador recorda a todos os ministros que
“a aposentadoria é regida pela legislação em vigor na data em que são atendidos os
requisitos fixados em lei, constantes da legislação ordinária e, acima de tudo, da
Constituição Federal, que está no ápice da pirâmide das normas jurídicas”.
Entretanto, nas aludidas ações diretas de inconstitucionalidade, a Corte
de Justiça mais alta do País quebrou o romance em cadeia,529 nos termos propostos por
Dworkin, quanto à tese da integridade e coerência no Direito, precisamente no que diz
respeito ao direito do servidor aposentado de não precisar contribuir com a previdência,
decidindo pela constitucionalidade da cobrança incidente sobre os proventos de
aposentadoria dos servidores inativos. Na concepção dworkiniana, ao decidir um novo
caso, o julgador deve ter por parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do
qual as várias decisões anteriores são a história, o romance; o trabalho do juiz é dar
continuidade a essa história no futuro por meio do que ele faz presentemente. Ele deve
interpretar o que aconteceu antes porque tem a responsabilidade de levar adiante a
incumbência que tem em mãos e não partir em alguma nova direção.530
529 Desse modo, a história e os precedentes são reconstruídos pelo intérprete para que a próxima decisão
seja coerente com a tradição que a antecede. O intérprete, contudo, pode inovar e até mesmo construir uma nova interpretação, ainda que radicalmente nova, desde que coerente com a história que o precede, para adequar a situação a uma nova compreensão da realidade social amparada em uma nova leitura moral dos princípios constitucionais em que se deve buscar a única decisão adequada para o caso concreto. E esta única decisão correta decorre da melhor leitura moral dos princípios para o caso concreto.
530 Por conseguinte, para explanar sua teoria do direito como integridade, Dworkin faz uso da analogia com o exercício literário de criação. Para o autor, o direito como integridade pode ser explicado por um romance em cadeia, em que se tem uma variedade de autores escrevendo um romance conjuntamente. Esclarece que, “Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve um romance em série; cada romancista da cadeia interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante”. Isto implica que “Cada um deve escrever seu capítulo de modo a criar da melhor maneira possível o romance em elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso difícil de direito como integridade”. Nessa trajetória, “Cada romancista pretende criar um só romance a partir do material que recebeu, daquilo que ele próprio lhe acrescentou e (até onde lhe seja possível controlar esse aspecto do projeto) daquilo que seus sucessores vão querer ou ser capazes de acrescentar”. Com isso, “Deve tentar criar o melhor romance possível como se fosse obra de um único autor, e não, como na verdade é o caso, como produto de muitas mãos diferentes”. Referido processo “exige uma avaliação geral de sua parte, ou uma série de avaliações gerais à medida que ele escreve e reescreve”. Consequentemente é preciso seguir um ponto de vista no que diz respeito ao
283
No entanto, pode ser que, às vezes, um argumento jurídico reconheça
explicitamente determinados erros e, nessa hipótese, se a decisão anterior foi errônea,
então ela não deve ser seguida.531 Portanto, um princípio que escorou uma decisão no
passado pode não ter mais o mesmo peso hodiernamente. Por conseguinte, faz-se
imperiosa uma teoria do erro que esclareça a quebra de continuidade das decisões no
mesmo sentido do praticado no passado.
Nesse vértice, se o Supremo Tribunal Federal chegou a sumular
entendimento a respeito do reconhecimento do direito adquirido de servidor em fase de
aposentação, dando prevalência à lei anterior mais benéfica, quando do preenchimento
das condições necessárias para a aposentadoria, em confronto com o advento de norma
posterior mais desfavorável, isso significa que o Supremo Tribunal Federal deu
sequência ao romance em cadeia e, portanto, não deveria quebrá-lo, a menos que
vislumbrasse determinado erro no argumento jurídico anterior, o que, somente nessa
hipótese, diante de decisão antecedente errônea, autorizaria os julgadores a não mais
seguirem-na.
Todavia, não é esse o caso na hipótese da contribuição previdenciária
dos servidores inativos, que mereceria a continuidade da aplicação da Súmula 359. Ao
romance “que se vai formando aos poucos, alguma teoria que lhe permita trabalhar elementos como personagens, trama, gênero, tema e objetivo, para decidir o que considerar como continuidade e não como um novo começo” (Dworkin, O império do direito, p. 275-277). De tal maneira, a incumbência de interpretar a obra escrita em conjunto alcança já o primeiro escritor, como, de igual modo, o gênero que se dispõe a escrever. Assim, os romancistas que elaboram a obra, individualmente considerados, não possuem liberdade criativa, uma vez que existe um dever de eleger a interpretação que, para cada qual, torne a continuação da obra a melhor possível. Acredita-se que, nesse exercício literário, o romance seja redigido como um escrito único, interligado, e não se revele uma mera série de narrativas separadas e autônomas, que têm como único elo tão só os nomes dos personagens. A fim de que isso não se dê, torna-se vital ter como ponto de partida o texto que seu precursor lhe entregou, como também aquilo que ele mesmo acresceu e, na medida do possível, relacionar-se com o que seus sucessores vão desejar ou ser capazes de acrescentar. É possível aplicar essa mesma ideia ao Direito, pois há similitude do exercício literário com a atividade decisória dos juízes, especialmente “quando nenhuma lei ocupa posição central na questão jurídica e o argumento gira em torno de quais regras ou princípios de Direito ‘subjazem’ a decisões de outros juízes, no passado, sobre matéria semelhante” (Dworkin, Uma questão de princípio, p. 236-238).
531 Idem, ibidem p. 240. Dworkin adverte que pode parecer que essa flexibilidade destrói a diferença entre interpretação e uma decisão nova sobre o que o Direito deve ser; no entanto, diz ele: “essa restrição superior existe. O senso de qualquer juiz acerca da finalidade ou função do Direito, do qual dependerá cada aspecto de sua abordagem da interpretação, incluirá ou implicará alguma concepção da integridade e coerência do Direito como instituição, e essa concepção irá tutelar e limitar sua teoria operacional de ajuste – isto é, suas convicções sobre em que medida uma interpretação deve ajustar-se ao Direito anterior, sobre qual delas, e de que maneira. (O paralelo com a interpretação literária também é válido aqui.)” (Idem, p. 240-241).
284
desconsiderar o direito adquirido dos servidores, já na inatividade, de não arcarem com
a contribuição previdenciária advinda por meio do art. 4.º da Emenda Constitucional
41/2003, tem-se uma demonstração evidente de que o Supremo Tribunal Federal acaba
por legitimar formalmente a quebra de continuidade das decisões no mesmo sentido do
praticado no passado, decidindo pela “constitucionalização” de norma posterior que
conflita materialmente com a norma anterior. Esta, inclusive, fundada na norma pétrea
do art. 60, § 4.º, IV, que em hipótese alguma haveria de ser transgredida. Sob essa
acepção do direito adquirido, torna-se imperioso permanecer intocável a situação
jurídica que resulta do ato de aposentadoria, cuja produção de efeitos não pode ser
atingida por determinações normativas ulteriores dimanadas do Estado.
O direito adquirido (bem como o ato jurídico perfeito e também a coisa
julgada) existe exatamente em virtude de o ordenamento jurídico ser um sistema
dinâmico, que requer uma consideração especial para os problemas do tempo na
sucessão ou convivência de situações normadas, em que se faz necessário enfrentar a
questão da decidibilidade de conflitos no que diz respeito às situações subjetivas quando
do câmbio de normas ou da simultaneidade da eficácia de normas em contradição.532 É
justamente para proteger a situação de titular já adquirida que se fala no direito
adquirido individual. Dessa forma, é inaceitável ignorar a existência desse instituto
protetivo contemplado na Constituição Federal em seu núcleo central.
O ultraje ao direito adquirido (individual) e ofensa aos direitos e
garantias individuais, tanto na hipótese da contribuição previdenciária dos servidores
inativos como também no tocante à redução dos vencimentos quando estes ultrapassem
o teto remuneratório, e ao desligamento do servidor estável dos quadros da
Administração por insuficiência de desempenho na avaliação periódica e no excesso de
despesas com pessoal (entre outros desrespeitos), para quem já gozava dos aludidos
direitos, são situações claramente atentatórias aos direitos e garantias fundamentais dos
servidores públicos, em que se vê desrespeitadas a irretroatividade normativa e a
segurança jurídica. E, como anota Tercio Sampaio Ferraz Júnior, “A doutrina da
irretroatividade serve ao valor da segurança jurídica: o que sucedeu já sucedeu e não
532 Nesse sentido, Tercio Sampaio Ferraz Junior, Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão,
dominação, 4. ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 249.
285
deve, a todo momento, ser juridicamente questionado, sob pena de se instaurarem
intermináveis conflitos”. Dita doutrina, “portanto, cumpre a função de possibilitar a
solução de conflitos com o mínimo de perturbação social”.533
Entretanto, é possível verificar que, para além da ofensa ao direito
adquirido na acepção individual do instituto, ou da afronta a um direito individual de
cada servidor, existe uma ofensa, em um plano mais amplo, ao direito adquirido pela
comunidade de servidores a um grau elevado em relação aos seus direitos e garantias,
que ultrapassa o âmbito individualizado, sendo justamente o direito adquirido na
dimensão social.
Com efeito, quanto à proteção conferida pelo direito adquirido social, se
a norma posterior não pode desconstituir o nível dantes conquistado no que diz respeito
aos direitos e garantias incorporados ao patrimônio jurídico da comunidade de
servidores em virtude da evolução da sociedade – como decorrência do Estado Social e
Democrático de Direito agasalhado pela Constituição Federal de 1988 –, isso equivale a
dizer que haveria um direito adquirido ao plano mais alto de garantias, aplicado aos
benefícios todos que integram o regime jurídico do servidor, sendo este resguardo
diverso da proteção que vem do direito adquirido individual.
Nesse sentido, uma emenda à Constituição (ou uma nova legislação no
plano infraconstitucional) pode alterar os requisitos dantes estabelecidos para a
concessão de direitos ou vantagens dos servidores, mas não é legítimo que o faça de
modo a reduzir, minimizar ou mesmo revogar referidos direitos e vantagens previstos
em grau mais alto.
Isso significa que o direito ou garantia fundamental resguardado,
consoante essa construção normativa originária, assegura aos servidores beneficiarem-
se daquele cenário jurídico formado pelas disposições constitucionais mais elevadas.
Consequentemente, aquele dado conjunto normativo fica protegido de eventuais
alterações revogadoras ou minimizantes. Com isso, pode-se falar que resta garantido, à
comunidade de servidores, o direito a um plexo normativo que independe da ocorrência
533 Ferraz Junior, Introdução ao estudo do direito..., p. 252.
286
de fato específico previsto na norma para que o direito possa incorporar-se ao
patrimônio jurídico dos servidores, na medida em que esse direito existe já no plano da
abstração, como fruto das conquistas sociais. Trata-se de direito adquirido a um
conjunto jurídico normativo que pertence ao patrimônio da coletividade de servidores.
De tal modo, só o direito adquirido social (como um dos fundamentos
do não retrocesso) constitui obstáculo apto a barrar um caminhar para trás que se pode
querer instituir em relação aos servidores; somente ele fortalece o plexo de normas que
instituem os direitos e garantias fundamentais dos servidores como um todo,
favorecendo o direito adquirido às normas todas reunidas, que dispõem acerca dos
citados direitos e garantias em um grau mais altivo.
Com efeito, comparando-se as dimensões diferentes de proteção, pode-
se verificar e entender o seguinte:
a) O direito adquirido individual ampara o direito pessoal de
determinado servidor aos direitos e benefícios que lhe são previstos; entretanto, é
imprescindível, como se disse, que o servidor preencha os requisitos normativos
exigidos para que possa adquirir o direito a se aposentar, ou o direito à estabilidade, ou
a determinadas verbas que compõem seus vencimentos, nas condições previstas pela
norma mais favorável; não tem o poder de impedir retrocessos, mas apenas o de evitar
que a norma retroaja para alcançar situações jurídicas constituídas e que integram o
patrimônio jurídico do servidor.
b) O direito adquirido social, por seu turno, tem aptidão para obstar um
eventual rebaixamento do grau mais elevado de direitos e garantias fundamentais
conquistado pela comunidade de servidores no seu processo evolutivo; referido grau
vem estampado na Carta Política de 1988, não admitindo que se dê marcha a ré nessa
evolução alcançada. logo, por ele, as situações gerais (institucionais) da comunidade de
servidores públicos ocupantes de cargos efetivos ficam protegidas de aviltamento
descabido. Logo, verifica-se que o direito adquirido na sua dimensão social tem larga
amplitude, pois implica que o nível mais alto alcançado pela coletividade de servidores,
em termos de conquistas sociais, deve ser conservado na escala evolutiva mais
favorável.
287
Com isso, os servidores passam a fazer jus ao conjunto de normas mais
benéficas em termos de direitos e garantias que lhes dizem respeito, não podendo tal
plexo ser ofendido pelas ações do legislador reformador da Constituição. Ressalta-se,
por conseguinte, que o direito adquirido social tem um vasto campo de proteção,
garantidor de direitos em sua expressão mais altiva, que impede retrocessos.
Contudo, entende-se que esse conjunto normativo, garantido em mais
alto grau, assim permanecerá enquanto não houver a necessidade de que o Estado
realize uma justa distribuição de recursos. Nesse caso, ante essa necessidade, o ente
estatal estará autorizado a instituir mudanças em termos de justiça social, que poderão
acarretar reduções e enfraquecimentos no tocante aos direitos e garantias fundamentais
dos servidores e, por via de consequência, nesse plexo normativo elevado.
Reconhecendo-se de tal forma as mudanças, importará saber quais critérios serão usados
pelo julgador para que ele verifique a justificação (legitimidade) das alterações
(conforme será exposto no próximo item).
c) O ponto de conexão entre a dimensão social e a individual é a
expectativa de direito do servidor. Embora sejam dimensões distintas, elas não
permanecem isoladas uma da outra e, nesse sentido, a proteção conferida pelo direito
adquirido social reflete na esfera individual dos servidores resguardando dita esfera em
um ponto que o próprio direito adquirido individual não consegue proteger: a
expectativa de direito do servidor.
Ou seja, em virtude de o direito adquirido, na dimensão social, requerer
que se preserve o grau mais elevado no que concerne aos direitos e garantias da
coletividade de servidores, surge para o servidor a expectativa, na esfera individual, de
que ele poderá adquirir os direitos e as garantias nesse nível mais alto previsto pela
ordem jurídico-constitucional. E, desse modo, o servidor fica na espera de os referidos
direitos (nesse altivo patamar) passem a integrar, posteriormente, o seu patrimônio após
o preenchimento dos requisitos exigidos para tanto. Obviamente que, se ele ainda não
adquiriu os direitos, porque não completou as condições necessárias estabelecidas pela
norma, ele só tem expectativa de direito e, com isso, ainda não goza da proteção do
direito adquirido individual. No entanto, essa sua expectativa é protegida pela larga
cobertura do direito adquirido social quando se pensa que ele garante o grau mais
288
benéfico para toda a coletividade de servidores e, também, para o servidor que integra
essa comunidade.534
Portanto, embora a expectativa de direito possa ser considerada, na
dimensão individual, um não direito-ainda, ou seja, um “vir-a-ser-direito independente
da vontade daquele que espera”,535 ela fica protegida, consequentemente, pelo amplo
agasalho do direito adquirido social.
No entanto, o resguardo conferido pelo princípio do não retrocesso
social não é irrestrito, segundo já se advertiu. Perante certas situações, o princípio do
progresso social não deixa de ser aplicado, mas será admissível uma aplicação fraca do
primado do não retrocesso social. Contudo, é importante, nesses casos, que se observe a
equivalência jurídica. E essa será a questão debatida no item seguinte, que finaliza o
presente trabalho e analisa as principais mudanças no tocante aos direitos e garantias
dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos perante o mandamento do
progresso social.
3.4.5 O princípio da vedação ao retrocesso social e a equivalência jurídica
No que diz respeito às medidas equivalentes e o princípio da vedação ao
retrocesso social, pode-se dizer que aludidas medidas devem ser levadas em
consideração ao se analisarem as alterações referentes aos direitos e garantias
534 Nesse sentido, uma vez que o direito adquirido na sua dimensão social possibilita o direito adquirido
ao conjunto jurídico normativo mais elevado, essa proteção repercute na esfera individual dos direitos e garantias dos servidores, pois acaba protegendo não o direito adquirido individual (visto que este por si só encontra a proteção do art. 5.º, inciso XXXVI, da CF, conforme exposto no Capítulo 2), mas sim a expectativa de direito dos servidores (no plano individual) a gozarem do sistema remuneratório, do sistema previdenciário e das regras referentes à estabilidade, tudo em nível mais elevado. É dizer: haverá a proteção aos servidores que estão em vias de adquirir direitos e garantias, ou que têm a expectativa de adquiri-los, em conformidade com o patamar mais alto.
535 Conforme explica Filipe Antônio Marchi Levada, “Enquanto o direito adquirido integra o patrimônio do titular, a expectativa depende de acontecimento externo para que venha a sê-lo. É um não direito-ainda, com as características de que: (1) para que seja expectativa, deve independer da vontade do sujeito, senão não seria esperança, mas faculdade não exercida; (2) para que seja de direito, deve objetivar a aquisição de um direito, pois senão tal expectativa não seria jurídica, mas mero capricho do ser. Logo, expectativa de direito pode ser conceituada como um vir-a-ser-direito independente da vontade daquele que espera” (Filipe Antônio Marchi Levada, O direito intertemporal e os limites da proteção do direito adquirido, 2009, Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 85-86).
289
fundamentais. Ou seja, quando se instituir modificação nas normas constitucionais que
contemplem direitos e garantias fundamentais (e, de igual maneira, na legislação
infraconstitucional que concretiza referidos direitos e garantias), será necessário
verificar se foi criada alguma medida equivalente, isto é, que tenha uma finalidade
preservacionista, buscando resguardar um núcleo essencial de direitos.
Logo, a esta altura, parece relevante examinar como seria possível
identificar a ofensa ao princípio da vedação ao retrocesso social. Para tanto, o presente
estudo propõe, neste último tópico, a existência de um critério de justificação
denominado equivalência jurídica, que pode servir como parâmetro para identificar a
ocorrência de uma modificação justificada (legítima) das normas que contemplem
direitos e garantias fundamentais dos servidores. A consideração desse critério aponta
para a observância do princípio da vedação ao retrocesso social. De outro lado, a
ausência desse critério permite identificar a afronta ao primado do não retrocesso social
e, nesse caso, a alteração realizada se mostrará injustificável.
Nesse sentido, para identificar a ofensa torna-se importante, então,
analisar a questão sob dois planos distintos: o plano dos meios e o plano dos fins da
modificação normativa. No plano dos meios, a identificação acontece quando se verifica
a instituição de medida equivalente, ou seja, se foi ou não prevista uma medida em si
(por exemplo, a previdência complementar para os servidores públicos federais seria
uma medida equivalente). No plano dos fins, a identificação se dá quando se constata
que a medida equivalente criada é capaz de preservar a coerência ético-jurídica da
Administração Pública por intermédio de medida que mantenha equilíbrio suficiente
ante a necessidade de mudança (enfraquecimento) de um lado e o imperativo de
progressão social de outro (como exemplo, a aposentadoria complementar manterá o
equilíbrio nos proventos dos servidores inativos equilibrando a revogação da
aposentadoria com proventos integrais).536
536 Nesse ponto, a verificação da medida de equivalência jurídica não se dará apenas por meio de um
cálculo de custo/benefício. Em uma democracia a cada dia mais legitimada pela via do Judiciário, cada vez mais haverá juízes determinando o Direito Administrativo (o “Novo Direito Administrativo” ou o “Direito Administrativo Democrático” ou o “Direito Administrativo Judicializado”), e juízes não devem se limitar a cálculos de custo/benefício (senão deixam de ser juízes e viram simples administradores e perdem a especificidade que lhes permite julgar juridicamente a Administração Pública).
290
Portanto, apresentados os diferentes planos, parte-se agora para o exame
da temática que ora se propõe. Nessa tarefa, importa recordar o que se viu com
Canotilho (no Capítulo 2) acerca do primado da vedação ao retrocesso social e a criação
de medidas compensatórias.
Segundo o autor, o primado da proibição de retrocesso social não resiste
diante de recessões e crises econômicas (reversibilidade fática). No entanto, afirma que
dito princípio é capaz de limitar a reversibilidade dos direitos adquiridos, em nítida
violação ao princípio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no domínio
econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao
respeito pela dignidade da pessoa humana. Isto quer dizer, conforme leciona o jurista,
que será ferido o princípio da proibição de retrocesso social quando houver uma medida
legislativa que não preserve o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais já
realizado e efetivado, devendo-se considerar como inconstitucional aludida medida
estatal que, sem a implementação de outros planos alternativos ou compensatórios,
revelem-se na praxis em uma “anulação”, “revogação” ou “aniquilação” pura e simples
desse núcleo essencial. Este, por sua vez, limita a liberdade de conformação do
legislador e suas opções político-legislativas.537
Pois bem, partindo dessa ideia da medida compensatória ou alternativa
apontada por Canotilho, verifica-se que o mestre português define como parâmetro apto
para se constatar a não ocorrência de retrocesso, no que diz respeito aos direitos e
garantias fundamentais (e, nesse sentido, obediência ao princípio do não retrocesso
social), a presença de outros planos alternativos ou compensatórios na norma estatal
editada que revoga ou modifica a medida prevista na norma anterior. Referida presença
(de outras medidas alternativas ou compensatórias que ocupam o espaço das anteriores)
é o instrumento (plano dos meios) de que se vale o aplicador para averiguar se não
houve ultraje à proibição de retrocesso social. Diante da constatação da medida criada,
esta deve ter aptidão para conservar o núcleo essencial já realizado e efetivado dos
direitos fundamentais sociais, sem que se revele, no plano prático, em uma anulação,
revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial. Aludida conservação
537 Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador, p. 374.
291
do núcleo essencial por meio de sua “não anulação”, “não revogação” ou “não
aniquilação” (plano dos fins) evidencia a observância do primado da vedação ao
retrocesso social.
Nesse passo, será aproveitada a ideia do autor quanto à importância do
plano dos meios e dos fins para a apreciação da ofensa (ou não) ao princípio da
progressiva ampliação dos direitos sociais. No entanto, essa visão, adverte-se, sofrerá
adaptação para o que se convencionou designar, no presente estudo, de equivalência
jurídica.
De tal modo, é relevante ressaltar que a medida equivalente não
corresponde exatamente à medida compensatória apontada por Canotilho. O que a
medida compensatória e a medida equivalente têm em comum é o fato de que ambas
servem para verificar se ocorreu afronta ao princípio do não retrocesso social. Todavia,
o modo como o intérprete procederá para fazer essa verificação é distinto em cada
medida. Assim, diferem-se quanto ao conteúdo e à maneira de identificar a preservação
ou a ofensa aos direitos e garantias fundamentais e, por conseguinte, diferenciam-se na
forma de alcançar a constatação da observância ou inobservância do primado da
vedação ao retrocesso social.
Enquanto Canotilho deixa a questão da identificação a cargo da
verificação de que houve a salvaguarda do núcleo essencial do direito sem que haja
anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo, no estudo que aqui se
faz, a identificação ocorre mediante a preservação da coerência ético-jurídica do sistema
(no caso, o sistema jurídico constitucional-administrativo) que contempla as normas
protetivas dos direitos e garantias fundamentais.538 E isso ocorre quando a mudança
normativa faz valer o equilíbrio suficiente entre a necessidade de modificação
minimizante (que introduz atenuação no grau protetivo dos direitos e garantias
fundamentais) e o imperativo de progressão social. Referido equilíbrio é atendido
538 A coerência ético-jurídica procura identificar os princípios que podem dar coerência e justificar a
ordem jurídica vigente. Compete ao intérprete guiar-se pelo arcabouço ético-social, fomentando, historicamente, a reconstrução do Direito, com base nos valores morais agasalhados pelos princípios jurídicos (Dworkin, Uma questão de princípio, p. 235-246).
292
quando se observa uma justa repartição dos recursos, uma igualdade na repartição dos
recursos.
Na esteira dessas ideias, a equivalência jurídica se dá do seguinte modo:
excepcionalmente, quando for caso de déficit orçamentário comprovado, carência de
recursos devidamente provada ou, também, diante da necessidade imperiosa de
moralização dos recursos públicos (para a correção de distorções),539 deverá o ente
estatal proceder a uma justa distribuição de recursos, a qual poderá acarretar, por via de
consequência, a necessidade de se instituírem modificações nos direitos e/ou nas
garantias fundamentais. Se essas alterações resultarem em enfraquecimento dos direitos
e garantias (em virtude da referida repartição de recursos) deve-se ter instituída uma
medida (um instrumento) que possibilite algum tipo de retorno à própria comunidade de
servidores, contrapesando (equilibrando juridicamente) os direitos e as garantias
afetados.
Com efeito, a equivalência jurídica não trata de querer assegurar um
nível idêntico ao que anteriormente era garantido, mas de preservar um grau de
suficiência, em termos jurídicos, assegurado quando o ordenamento jurídico-
constitucional acolhe os direitos e garantias dos servidores, proporcionando-lhes
proteção, ainda que sobrevenham modificações normativas minimizantes.
Pode-se dizer, desse modo, que a equivalência jurídica está relacionada
à aplicação do primado da vedação ao retrocesso social como medida (que deve estar
presente na nova previsão normativa) a ser considerada pelo julgador quando o
princípio do não retrocesso social conflitar com outros princípios.
E a análise do julgador quanto à existência da medida na norma
modificadora acontecerá diante do exame da situação que se impõe ao juiz para
apreciação. No entanto, além desse primeiro passo (exame do caso), há outro aspecto
(ou segundo passo) que precisa ser igualmente considerado pelo julgador, que
corresponde à verificação da validade finalística da norma modificadora, em que não é
539 E, segundo defende Canotilho, poderiam ser considerados também os quadros de diminuição da
atividade econômica de um país, evidenciados pelas recessões e crises econômicas (Constituição dirigente e vinculação do legislador, p. 374).
293
possível desvincular os meios dos fins (pois a medida presente deve ser apta para o fim
que se pretenda alcançar).
Canotilho trata da questão dos fins da norma modificadora, mas busca a
menor restrição a direitos fundamentais e, por isso, para o autor, a análise dos fins acaba
sendo a verificação de “não anulação”, “não revogação” ou “não aniquilação” do núcleo
essencial de direitos fundamentais (devendo-se proceder, portanto, a uma verificação
negativa, no sentido de identificar o que deve ser evitado pela Administração).
Entretanto, o que o presente estudo propõe é uma ampliação da questão
do plano dos fins, para abarcar também a verificação da preservação da coerência ético-
jurídica do sistema de Direito Administrativo (em especial o sistema jurídico
constitucional-administrativo) por meio da manutenção da noção de igualdade/justa
distribuição de recursos (devendo-se proceder, por conseguinte, a uma verificação
positiva, no sentido de constatar o que deve ser feito pelo Estado-Administração quando
se estiver perante situação de déficit orçamentário, falta de recursos ou necessidade de
moralização dos recursos). E, como exemplo, diante da imoralidade em relação aos
vencimentos de alguns servidores que percebiam quantias altíssimas como remuneração
na Administração, o que o ente estatal pode fazer para moralizar a percepção desses
vencimentos dos servidores públicos é, por meio de uma justa repartição dos recursos,
instituir um teto remuneratório. Quem verificará positivamente essa medida e o fim
alcançado será o julgador (ou seja, analisará se por meio dela foi mantida a coerência do
sistema jurídico).
Assim, o exame da situação (primeiro passo) não anda sozinho. Ele não
é a única dimensão da análise da justificação. Além dele, ainda existe a consideração da
coerência do sistema jurídico constitucional-administrativo como um todo.540
Portanto, diante de todo o exposto, é possível sintetizar algumas das
ideias referentes às mudanças instituídas no tocante aos direitos e garantias
540 Certamente, ainda se poderia dizer que essa ampliação não elimina algum tipo de cálculo de
custo/benefício. No entanto, o importante é que o exame da situação e o cálculo estratégico de custos não se encontram sós. Eles não são os únicos aspectos da “análise da justificação”. Afora eles, tem-se também a consideração da coerência do sistema constitucional-administrativo, como se ressaltou supra.
294
fundamentais dos servidores públicos e, de igual modo, acrescentar outras conclusões,
além de análises das principais modificações estabelecidas pelas emendas
constitucionais (dantes estudadas), da seguinte forma:
(a) No que concerne aos direitos e garantias fundamentais que não
dependem diretamente da situação econômica vivenciada pelo Poder Público e dos
gastos públicos realizados, a competência reformadora, ao instituir emendas à
Constituição, deve se ater aos limites que tem o poder de emendar a Lei Maior; se for
além das balizas constitucionais, enfraquecendo ou mesmo revogando ditos direitos e
garantias, estará afrontando o mandamento do progresso social. Defende-se uma
aplicação forte do princípio do não retrocesso social, que tem uma dimensão de peso ou
importância (forte) e que deve prevalecer (ante outro).541
É o caso da garantia da estabilidade dos servidores públicos. Referida
garantia não está diretamente relacionada ao cenário econômico-financeiro vivido pelo
País ou aos gastos públicos.542 Nesse caso, têm-se como ilegítimas as mudanças
instituídas no tocante à acenada garantia, pois as alterações estabelecidas pela Emenda
Constitucional 19/1998 acarretaram o enfraquecimento do instituto, conforme dantes já
apontado e, consequentemente, causaram um caminhar para trás no que diz respeito à
força originariamente conferida à estabilidade pela Constituição de 1988. Seja por
intermédio da avaliação periódica de desempenho, seja mediante a exoneração por
excesso de despesas com pessoal, o que se tem é a afronta ao princípio da vedação ao
541 Quando se diz que a competência reformadora “não deve enfraquecer” ou mesmo “revogar” direitos
e garantias fundamentais, não se está seguindo, nesse ponto, o pensamento de Canotilho, voltado à “verificação negativa” dos fins da medida compensatória no sentido de se preocupar com a menor restrição a direitos fundamentais, e, por isso, para o jurista, a análise dos fins acaba sendo a “verificação de anulação, revogação ou aniquilação de núcleo essencial de direitos fundamentais”. O que se quer dizer com a referida afirmação, na hipótese desta letra (a), e mesmo quando se assevera que deve haver uma “aplicação forte” do princípio do não retrocesso social, é que este mandamento está presente no sistema jurídico-constitucional, e, tratando-se de proteger direitos e garantias fundamentais conferidos ao servidor, que independem diretamente da questão orçamentária, aludido primado deverá ser levado em consideração (aplicado) na decisão do julgador de modo prevalente.
542 Nesse ponto, verifica-se que o legislador reformador, com a EC 19/1998, acabou por relacionar, em parte, a garantia da estabilidade ao orçamento público, na medida em que instituiu a possibilidade de exoneração do servidor estável diante da hipótese de excesso de despesas com pessoal. No entanto, a garantia em si, cuja essência consiste em proteger os servidores da alternância do poder, dos mandos e desmandos dos governantes, não se vincula, estando o servidor dentro do limite previsto com pessoal, aos gastos públicos. O que sucede é que, por meio da estabilidade, têm-se os gastos com remuneração dos servidores e, posteriormente, com os proventos de aposentadoria e com as pensões.
295
retrocesso social com abrandamento da segurança que tem o servidor de permanecer nos
quadros da Administração.
(b) No que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais que estão
atrelados diretamente à situação econômica do ente público, aos gastos governamentais
e ao orçamento público, além da necessidade imperiosa de moralização dos recursos
(para a correção de distorções):
(b1) quando se estiver vivenciando situação de certa suficiência de
recursos543 e exista uma situação de moralidade em relação a eles, o legislador
reformador deve respeitar o nível mais alto de garantias originariamente estabelecido na
Carta Constitucional e, por conseguinte, obedecer ao princípio da vedação ao retrocesso
social. Defende-se uma aplicação forte do primado da vedação ao retrocesso social;
(b2) quando se estiver diante de déficit orçamentário ou falta de
recursos devidamente comprovados, ou diante de necessidade de moralização dos
recursos públicos, o princípio do não retrocesso social não deixará de ser aplicado;
todavia, sua aplicação será em um grau de menor força desde que se observe a
equivalência jurídica no que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais
afetados.544 Entende-se que haverá uma aplicação fraca do princípio, pois o julgador,
543 Não obstante finitos, como se sabe, diante da realidade no âmbito público, mas aptos a garantirem
direitos fundamentais que satisfaçam a comunidade de servidores. 544 No plano infraconstitucional devem-se fazer as seguintes distinções: (i) em certas situações em que a
Constituição contemple uma determinação para legislar, bastante precisa e concreta, de forma que seja possível estabelecer, seguramente, os meios jurídicos indispensáveis para tornar a ordem constitucional exequível, o legislador terá um espaço muito reduzido de liberdade para retroceder no tocante ao patamar de proteção já alcançado, uma vez que somente poderá atuar nos exatos termos em que a mudança legislativa ambicionada não acarrete como consequência uma inconstitucionalidade por omissão ou retrocesso quanto à determinada configuração normativa existente; (ii) em outras hipóteses, quando a previsão para legislar contida na Constituição contemplar uma determinação menos precisa, mais aberta ou orientadora ao legislador, este terá um espaço de liberdade maior ao editar normas, prevalecendo o princípio da alternância democrática com a possibilidade de revisão das opções político-legislativas. Entretanto, quando estas disserem respeito a opções legislativas fundamentais, o primado do progresso social agirá como barreira impeditiva de retrocesso; (iii) em caso de normatividade constitucional mais aberta, mas estando-se a vivenciar um cenário de crise econômica comprovada e de recursos insuficientes para cobrir os gastos com o custeamento dos serviços e políticas sociais, admitir-se-á uma legislação ulterior mais limitativa. Todavia, só não haverá violação ao princípio da proibição de retrocesso social, nesse caso, se for observada a equivalência jurídica. Logo, se houver respeito a essa medida, legítima será a vontade popular manifestada pela revisibilidade das opções legislativas fundamentais (havendo, por conseguinte, certo espaço de liberdade ao legislador no que concerne às opções, ao tipo de concretização e à própria margem para retroceder).
296
ao apreciar a norma modificadora (e aí verificar que se trata de situação enquadrável na
presente letra b2), deverá saber mensurar a força relativa que terá, no caso, o primado da
vedação ao retrocesso social.
Assim, se o mandamento do não retrocesso social tiver aplicação fraca à
hipótese, embora de um lado a dimensão social sofra certo abalo, de outro, sob o prisma
individual, é fundamental que se protejam o direito adquirido e, também, as situações
em que se tenha a expectativa de aquisição do direito por parte dos servidores. Logo, há
a necessidade de que o legislador reformador faça constarem, diante do advento de
emenda constitucional, regras que preservem o direito de quem já o tinha adquirido com
base nas disposições precedentes e, igualmente, a existência de normas de transição
referentes aos servidores que já ingressaram no serviço público, mas que ainda não
preencheram os requisitos necessários para adquirir o direito a ser alterado até a
publicação da emenda modificadora.
Enquadram-se na letra (b) o regime previdenciário próprio dos
servidores (com as aposentadorias e pensões), bem como o regime remuneratório dos
servidores (que contempla os vencimentos e subsídios). Veja-se que nessas hipóteses há
relação direta entre os direitos e garantias fundamentais dos servidores com os gastos
públicos e a moralização dos recursos.
E assim é porque remunerar os servidores e pagar-lhes proventos de
aposentadoria e pensão onera os cofres públicos a ponto de este ônus ser responsável
por levar a competência reformadora a instituir, em relação ao regime remuneratório e
ao regime previdenciário, a maior parte das mudanças constitucionais efetivadas no
tocante ao regime jurídico dos servidores públicos. De tal forma, importa verificar,
ainda (a título de encerramento deste tópico e do capítulo), como se dá a equivalência
jurídica no tocante às principais modificações estabelecidas em relação a ditos direitos e
garantias.
Nesse sentido, viu-se que a aposentadoria dos servidores públicos
efetivos passou a ser dependente de contribuição. No caso, deve-se proceder ao seguinte
raciocínio (válido para as demais mudanças): o julgador, ao apreciar a demanda que
chega até ele, precisará verificar se a redução/minimização prevista na norma
297
modificadora prejudicou a coerência ético-jurídica do Direito Administrativo brasileiro;
se a modificação não trouxer prejuízo à coerência do sistema jurídico como um todo, e a
igualdade/justa repartição de recursos foi respeitada, resultando em uma alteração que
traz equilíbrio suficiente em termos de retorno à comunidade de servidores, então o juiz
tem justificativa para aceitar racionalmente a norma modificadora. A medida é
justificável se, para realizar a justiça social, for necessário fazer uma justa distribuição
de recursos.545 Destarte, em nome de uma justiça distributiva de recursos, é possível que
o magistrado verifique, na hipótese, a existência de uma medida que observa a
equivalência jurídica. E aqui, no regime previdenciário contributivo, é defensável que
exista referida observância.
Pode-se explicar melhor a ideia do parágrafo acima por intermédio da
alteração que instituiu a contribuição previdenciária dos servidores inativos, em que a
equivalência jurídica se deu de maneira semelhante à instituição do regime contributivo,
só que, em vez de ter estabelecido a contribuição somente dos servidores ativos, passou-
se a exigir a cobrança da contribuição dos servidores já em inatividade. De qualquer
modo, o raciocínio nas duas situações é análogo. Logo, diante de uma justa distribuição
de recursos no campo da previdência social, diante da “crise da previdência”,
distribuíram-se os encargos inerentes ao custeio do sistema entre seus participantes,
incluindo os inativos. Desse modo, instituiu-se um meio justificador para o alcance do
equilíbrio suficiente entre a necessidade de modificação e o imperativo de progressão
social. Note-se que o retorno acontece em relação à comunidade de servidores, pois com
a medida equivalente garante-se a continuidade do benefício percebido (aposentadorias
e pensões); mantém-se, então, a coerência do sistema e, com isso, os servidores uns
pelos outros, juntos (ativos, e agora também inativos e pensionistas contribuindo),
permitem garantir a observância da justiça social.
545 Darlei Dall’Agnol observa que para Dworkin, “uma distribuição justa de recursos é atingida quando
todos podem usufruir igualmente daquelas condições que são necessárias para a sua forma de vida. Consequentemente, as desigualdades de recursos (terras, casas etc.) devem ser retificadas pela simples transferência e as desigualdades pessoais (diferenças de talentos e saúde) devem ser compensadas por um sistema de impostos redistributivos. Como pode ser visto, o igualitarismo liberal de Dworkin não está fundado apenas numa noção formal de igualdade” (Darlei Dall’Agnol, O igualitarismo liberal de Dworkin, Kriterion: Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 46, n. 111, p. 67, jan.-jun. 2005. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0100-512X2005000100005>).
298
O mesmo ocorre no tocante ao reajuste dos proventos de aposentadoria.
Antes havia o critério da paridade quanto aos reajustes; agora o legislador reformador
definiu a linha quanto à preservação permanente do valor real dos benefícios, que
deverão ser periodicamente reajustados de modo a conservarem permanentemente o seu
poder real de compra, de acordo com os requisitos legais. Por conseguinte, foi
eliminada a paridade de vencimentos criando-se um mecanismo que estabelece uma
medida equivalente (reajustes), que retorna à comunidade de servidores preservando a
coerência ético-jurídica do sistema, sem ofensa à vedação ao retrocesso social, por
intermédio de uma distribuição justa de recursos.
Além dessas mudanças, outra importante alteração no regime
previdenciário do servidor público foi a que determinou que o benefício da
aposentadoria estaria sujeito ao teto previdenciário do Regime Geral da Previdência
Social. Percebe-se, assim, mais uma medida estabelecida em decorrência de uma justa
distribuição de recursos. E com a limitação ao teto, criou-se a aposentadoria
complementar instituída para os novos servidores públicos federais diante do cenário de
possível colapso futuro da previdência social, em que se cunhou, na hipótese, uma
medida equivalente juridicamente em substituição à aposentadoria integral dos
servidores públicos.
Em vez de se aposentarem ganhando os proventos equivalentes àquilo
que percebiam na atividade, os servidores efetivos sujeitos ao teto previdenciário, terão
em seu retorno, como forma de equilibrar suficientemente referida alteração, a
possibilidade de que os servidores possam contribuir complementarmente para sua
aposentadoria. Embora o novel regime previdenciário seja obrigatório para os novos
servidores federais (sujeição ao teto previdenciário do Regime Geral da Previdência
Social), a adesão às entidades de previdência complementar será opcional; entretanto,
verifica-se que a possibilidade de contribuir de maneira complementar é a medida
equivalente criada, e a partir do início da contribuição tem-se o exercício do benefício,
que será usufruído com a aposentação do servidor. Com isso, garante-se a preservação
ético-jurídica do sistema constitucional-administrativo.
Quanto ao sistema remuneratório dos servidores, outras tantas
alterações, conforme dantes exposto, foram determinadas pela competência reformadora
299
da Constituição. As que mais se destacam são as seguintes: aboliu-se a garantia da
isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou semelhantes do mesmo
Poder ou entre servidores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; determinou-
se a instituição do regime de subsídios por parcela fixa; estabeleceu-se o teto
remuneratório, inclusive para as hipóteses de cumulação de cargos constitucionalmente
permitidas (nessa situação o servidor está sujeito a um teto único que abrange a soma da
dupla retribuição pecuniária).
No que diz respeito a ditas mudanças, a fim de evitar repetições
desnecessárias, e consoante o que já se anotou neste item a respeito das modificações
concernentes ao regime previdenciário dos servidores, pode-se asseverar que as aludidas
alterações referentes à remuneração obedecem, igualmente, a uma repartição justa de
recursos públicos e a uma moralização destes preservando-se a coerência ético-jurídica
do sistema constitucional-administrativo.
Destaca-se, contudo, quanto ao teto remuneratório que, prima facie, a
redução de vencimentos ao limite do teto poderia conflitar com a irredutibilidade de
vencimentos. Todavia, a redução da remuneração, em virtude de ela ultrapassar o teto
estabelecido, trouxe medida equivalente em grau de suficiência quanto ao nível
remuneratório e, de igual modo, moralizadora dos recursos. Nesse vértice, na dimensão
social, a irredutibilidade de vencimentos tem que conviver com a igualdade na
distribuição de recursos.546
O mesmo raciocínio vale para as hipóteses de cumulação de cargos
constitucionalmente previstas. O teto (como medida equivalente) é uma maneira de
moralização dos próprios gastos públicos que retorna à comunidade de servidores de
modo a manter a remuneração dos servidores públicos dentro de um limite (legal), de
forma a permitir um equilíbrio suficiente entre o controle dos gastos e a remuneração
546 Nesse viés, “A instituição de um teto remuneratório máximo para os servidores públicos buscou
exatamente criar um controle dos gastos com o funcionalismo público em todos os poderes e em todas as esferas governamentais. Buscou-se manter a remuneração dos servidores públicos dentro de um limite legal, de forma a permitir um correto e melhor controle dos gastos públicos com a remuneração de seus servidores, além de evitar distorções no sistema que permitiam servidores perceberem salários estratosféricos e totalmente distorcidos da realidade pública, e mesmo econômica” (Henrique Rocha Fraga, Teto remuneratório: aspectos controvertidos, Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Espírito Santo, Vitória, v. 10, n. 10, p. 266, 2.º sem. 2010).
300
dos servidores ocupantes de cargos efetivos. Destarte, nas hipóteses em que a
Constituição Federal permite a possibilidade de acumular cargos, o retorno também
deve ser suficientemente equilibrado.547 Uma vez que a equivalência jurídica ocorre
também em casos de moralização dos recursos, é indispensável que se observe essa
moralização na hipótese da cumulação legítima.
No entanto, adverte-se que é necessário remunerar equilibradamente
uma coletividade de servidores que desempenham dois cargos no serviço público, pois
remunerar apenas minimamente um deles seria uma imoralidade e caracterizaria uma
injusta distribuição de recursos,548 e, de tal modo, haveria ofensa à coerência do sistema
jurídico constitucional-administrativo e ultraje à vedação ao retrocesso social.
Logo, examinadas as principais modificações instituídas pelas emendas
constitucionais no que dizem respeito aos direitos e garantias fundamentais dos
servidores públicos, nota-se que a equivalência jurídica é um padrão decisional apto a
fornecer ao julgador subsídios para proferir uma decisão que analise se a norma
modificadora que altera direitos e garantias fundamentais é justificável ou injustificável
por observar ou ofender o princípio da vedação ao retrocesso social, respectivamente. E
ao mesmo tempo, por meio dessa medida, pode-se ter uma aplicação forte ou fraca do
princípio do progresso social dependendo do seu peso ou importância para a hipótese
em apreço.
Em suma, a equivalência jurídica constitui-se em critério de
justificação utilizado pelo julgador para analisar se as modificações referentes aos
direitos e garantias fundamentais dos servidores observaram o equilíbrio entre a
diminuição e a progressão social, sendo, portanto, um parâmetro de decidibilidade a ser
considerado na aplicação do princípio da proibição de retrocesso social, pois, uma vez
instituída a alteração na normatividade que agasalha os direitos e garantias
547 Em alguns casos, somadas as remunerações, em virtude da cumulação permitida, uma delas pode se
tornar mínima ou chegar a quase nada, pois a outra já se aproxima (sozinha) do valor estabelecido como teto remuneratório.
548 Embora seja a legislação infraconstitucional que estabeleça o quantum remuneratório recebido pelos servidores ocupantes de cargos públicos, em situação de cumulação, remunerar justamente é uma exigência da própria ideia de equivalência jurídica inferida do texto constitucional, em especial quando se considera a garantia da irredutibilidade de vencimentos.
301
fundamentais, será necessário constatar se há a criação de medida que tenha o condão
de trazer um retorno à comunidade de servidores de modo a preencher equilibrada e
suficientemente a ausência/mudança do benefício antecessor, propiciando uma
contrapartida suficiente para não abolir, ou mesmo não enfraquecer em demasia, os
direitos e garantias fundamentais.
Portanto, encerra-se o presente estudo, cabendo, por fim, tecer as
devidas conclusões.
302
CONCLUSÃO
1. A evolução do Direito Administrativo mescla-se com a ideia de
evolução e transformação sofrida pelo próprio Estado. Essa disciplina jurídica tem
ligação direta com as mudanças de modelo estatal, como também com as modificações
introduzidas no seu aparelho. Somente se pode afirmar que o Direito Administrativo
passou a existir quando o plexo de normas disciplinadoras da organização e função
administrativa tornou-se imperioso para as autoridades e compôs-se em um corpo
coerente e sistemático de princípios e regras que possibilitaram afirmar a existência de
um ramo especializado do Direito.
2. Viu-se que o Estado liberal despontou com a preocupação de deixar
as práticas do absolutismo para trás, sendo possível verificar que no plano institucional
o liberalismo significou a construção de um Estado em que o poder se fazia em função
do consenso, e a divisão de poderes se tornava princípio obrigatório. Além disso, o
direito prevalecia em seu sentido formal e a ética social repudiava as intervenções
governamentais. Imperava a ideia de que o Estado que governa melhor é aquele que
governa menos. Nesse modelo de Estado, o Direito Administrativo encontra terreno
fértil para o seu nascimento. Graças a uma soma de vários acontecimentos, alguns dos
quais remonta a séculos, com origens e experiências estatais diversas, essa disciplina
surge. Nasce da confluência das experiências constituídas do tipo estrutural ad actum
principis e do direito de polícia com os princípios constitucionais introduzidos pela
Revolução Francesa, e ainda do espírito de racionalidade dos legistas franceses,
italianos e alemães da época.
3. Demonstrou-se que o Estado social superou o Estado liberal,
buscando instituir a justiça social em vários setores por meio da criação de condições
vitais básicas de existência, traduzidas na prestação de bens, serviços e infraestrutura
materiais. Atenuou as desigualdades sociais causadas pelo liberalismo. Referido modelo
de Estado se constitui fundamentalmente em uma forma de organização política que
marcou fase de grande valor na história da humanidade, pois é o primeiro sistema
político de grandes dimensões que tentou conjugar democracia (no sentido mais geral de
abertura potencial do governo a grande número de pessoas) à ideia de liberdade
303
individual. Desse modo, o Estado social retrata perfeitamente a fórmula Estado Social e
Democrático de Direito. E foi nesse modelo que o Direito Administrativo assumiu
papel fundamental em relação ao rumo do Estado e destino da coletividade. As
fronteiras tradicionais com o Direito Constitucional se romperam e houve uma forte
interpenetração entre esses dois ramos jurídicos, sucedendo o processo de
constitucionalização do Direito Administrativo.
4. Com o Estado social apontado como agigantado e burocratizado,
abriu-se espaço para o Estado neoliberal que se caracterizou pela transformação do ente
estatal pautada nomeadamente pela redução das suas dimensões em todos os setores. E
o Direito Administrativo modificou-se também, atravessando a margem da imposição e
obediência, em que se dava primazia ao público e coletivo para a de maior
consensualidade.
5. No entanto, a crise do neoliberalismo deixou evidente que, diante do
panorama de crise no mundo, a política neoliberal não era a solução definitiva para o
capitalismo. Nesse sentido, surgiu a necessidade de superação do Estado neoliberal.
Nesse viés, por mais verdadeira que seja a realidade de que o Direito Administrativo
incorporou as diretrizes neoliberais, também é verdade que ele sofreu uma forte
constitucionalização. Assim sendo, contemporaneamente, toda ação governamental só
deve ser exercida na medida em que atender às balizas e condições constitucionalmente
previstas, além de atuar tão só em consonância com o sentido e o espírito da
Constituição. É imprescindível, por conseguinte, que o Direito Administrativo
incorpore, em tempos atuais, a tese de que representa o “Direito constitucional
concretizado”, em que se tem a força da Constituição a modelá-lo de modo decisivo.
6. Afirmou-se que, embora se tenha implantado um modelo neoliberal
no Brasil, não é descabido asseverar que o Estado conservou, no fundo, sua alma
prestacional e interventiva. Desse modo, fala-se no surgimento do Estado neossocial
brasileiro. Uma vez que as forças de mercado não foram capazes de se autossustentar e
evidenciou-se a impossibilidade de se ignorar o domínio social que clamava (e clama)
pela proteção estatal, o Estado social no Brasil reacendeu sua chama. Como um todo, o
Direito Administrativo passou por mutações decorrentes do final da década de 90 e
começo do século XXI: fala-se então no primado da juridicidade administrativa; o
304
Direito Administrativo sofre o impacto de sua maior aproximação com o campo do
Direito Privado; incorporam-se ao Direito Administrativo a previsão e a utilização de
instrumentos contratuais em uma clara contratualização nas relações entre Estado e
particulares e também entre órgãos públicos; são incentivadas as técnicas de fomento
acarretando o alargamento do Terceiro Setor; ocorrem a regulação e o controle dos
serviços públicos por parte das agências reguladoras; discutem-se o papel e a aplicação
do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado; acontece o fenômeno
conhecido como judicialização das políticas públicas; e se efetivam políticas de
flexibilização quanto aos direitos e garantias dos administrados.
7. No que diz respeito ao princípio da vedação ao retrocesso social, seu
estudo foi feito com base na doutrina e jurisprudência estrangeiras desenvolvidas na
Alemanha, Itália e Portugal acerca da matéria, uma vez que nesses países ocorreu um
desenvolvimento maior do primado da proibição de retrocesso social. Em terras pátrias
o exame da matéria foi realizado com base no pensamento doutrinário brasileiro,
destacando-se os principais autores que abordaram o assunto. De todo o exposto firmou-
se posicionamento no sentido de entender que o princípio do não retrocesso deve ter
uma aplicação mais ampla, não somente quando se estiver perante situações
equivalentes a uma omissão legislativa infraconstitucional, mas também aplicado ao
plano constitucional, foco principal, aliás, do estudo desenvolvido na presente tese.
Assim, o exame centrou-se na aplicação do princípio aos casos em que houver uma
emenda à Lei Maior que venha a estabelecer um retrocesso, em termos de direitos e
garantias, no ordenamento jurídico constitucional.
8. Como um dos fundamentos constitucionais do princípio da vedação
ao retrocesso social, argumentou-se que é plenamente defensável conceber um novo
conceito acerca do direito adquirido, conceito este que envolve a evolução do Estado
moderno, que a partir do Estado de bem-estar transpôs o plano do individual para o
plano social, o que representou um marco para o desenvolvimento não só dos direitos
sociais, em que se ultrapassou a seara individualista (do direito privado), como também
para o plexo de conquistas alcançadas pela sociedade, incorporadas ao ordenamento
jurídico, dentro de um plano evolutivo, como expressão civilizatória dessa sociedade.
305
9. Nesse sentido, se o modelo estatal brasileiro que se vivencia hoje é de
um Estado neossocial, não se pode mais conceber o instituto do direito adquirido nos
moldes originários que inspiraram a sua noção. No atual estágio, a interpretação que
deve dar o tom ao art. 5.º, inciso XXXVI, da Constituição federal é a interpretação em
sentido lato, uma vez que o momento contemporâneo requer uma releitura do aludido
dispositivo constitucional, em que se torna necessário contemplar a ideia de que a lei
não deverá prejudicar o direito adquirido individual e social.
10. Foi demonstrado que o direito adquirido social ultrapassa o aspecto
restrito, que se refere tão só ao indivíduo, devendo ser concebido como não somente
aquele que se incorporou ao patrimônio jurídico do seu titular, em vista da incidência da
norma aplicável à época do fato (o que se pode denominar direito adquirido individual).
Avançou-se mais além, para considerá-lo a partir da perspectiva da sociedade, como
tudo o que incorporou o patrimônio jurídico desta, em vista da luta diária pela aquisição
de seus direitos, representando, de tal modo, muito mais do que apenas os direitos
sociais, e sim todos os direitos fundamentais que incorporaram o patrimônio jurídico de
certo povo, como conquista civilizatória inconteste deste, e que, portanto, devem ser
preservados no plano constitucional. Dessa maneira, e assim compreendido, verificou-se
que se trata da preservação de patamares civilizatórios, incorporados às relações sociais
por meio do direito, que não podem mais ser objeto de retrocesso.
11. No tocante à competência reformadora da Constituição Federal, que
tradicionalmente não é inicial, nem incondicionada nem ilimitada, mas subordinada ao
Poder Originário, defendeu-se que qualquer mudança na Constituição, perpetrada por
intermédio de uma emenda constitucional que vá contra direito adquirido individual e
social, ultrapassa a competência reformadora legítima para implicar uma ofensa ao
espírito protetor dos direitos e garantias fundamentais agasalhados pela Lei Maior.
12. Expôs-se que o âmbito de proteção do direito adquirido individual e
social é diferente. Embora tenham em comum o mesmo fundamento normativo
constitucional (art. 5.º, XXXVI, da CF), o direito adquirido individual e social efetivam,
no entanto, dimensões diferentes de direitos (uma individual e outra social). Assim, um
determinado direito adquirido pelo indivíduo estará protegido da retroatividade legal
(normativa), assegurando-se, no tempo, a manutenção de direitos oriundos de previsão
306
anterior contida na lei (norma); e paralelamente, mais do que o direito social, todos os
direitos fundamentais que fizeram parte do patrimônio jurídico de determinada nação,
como resultado dos progressos da humanidade em sua evolução social, agregados às
relações sociais por meio do Direito, acharão acolhida no direito adquirido social e, por
conseguinte, no princípio da vedação ao retrocesso social.
13. O princípio do não retrocesso social surge da necessidade de uma
maior proteção à totalidade dos direitos fundamentais conquistados pelo povo,
precisamente porque o resguardo a tais direitos requer não só a manutenção do nível
alcançado, como, de igual maneira, o seu adensamento, decorrência lógica, aliás, da
própria evolução do Estado, do Direito e da maneira de interpretá-lo e aplicá-lo. Além
do mais, o aludido mandamento volta-se à proteção do desenvolvimento social, em que
se deve primar por preservar medidas ampliadoras de direitos, nomeadamente em uma
sociedade moderna.
14. Estabeleceram-se como fundamentos constitucionais do princípio da
vedação ao retrocesso social: o instituto do direito adquirido social e, igualmente, os
dispositivos que assinalam no sentido da progressiva ampliação dos direitos
fundamentais da sociedade (art. 5.º, § 2.º, e art. 7.º, caput), visando à paulatina redução
das desigualdades regionais e sociais e à construção de uma sociedade marcada pela
solidariedade e pela justiça social (arts. 3.º, I e III, e 170, caput e VII e VIII), além da
concepção de Estado Democrático e Social de Direito e suas diretrizes e valores
essencialmente voltados ao plano social e, também, os tratados internacionais.
15. No que diz respeito à jurisprudência existente sobre o princípio da
vedação ao retrocesso social, verificou-se que nas Cortes Superiores de Justiça do Brasil
(Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça) as decisões fundadas no não
retrocesso social ainda representam um pequeno número, resultado, talvez, da própria
divergência da doutrina quanto ao fundamento, conteúdo e alcance do princípio.
16. Quanto aos direitos e garantias fundamentais dos servidores
públicos foram analisadas as modificações sofridas em decorrência de uma série de
emendas constitucionais advindas com o fim de alterar várias previsões referentes a tais
direitos e garantias. Portanto, como ponto central dos comentários atinentes a ditas
307
mudanças, expuseram-se as alterações instituídas pela competência reformadora no
tocante à estabilidade, ao sistema remuneratório e ao regime previdenciário dos
servidores, com a preocupação de mostrar, além das modificações, as ofensas ao direito
adquirido individual dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos. A
preocupação com o plano social do instituto foi analisada a partir do ponto em que se
passou a examinar o princípio da vedação ao retrocesso social e o regime jurídico
constitucional do servidor público ocupante de cargo efetivo, por intermédio dos cinco
pontos destacados na segunda parte do Capítulo 3.
17. No primeiro ponto de destaque viu-se que os juízes devem atuar em
conformidade com os princípios políticos eleitos pela sociedade, em particular aqueles
reunidos no documento constitucional. Assim, os argumentos de princípio mostram que
a decisão protege os direitos dos indivíduos. O Judiciário está legitimado para decidir
baseando-se nos princípios, de modo a resguardar os direitos individuais e sociais
garantidos pela Constituição. Não lhe cabe decidir (somente ou preponderantemente)
com base em argumentos de política. Contudo, com o intento de controlar os gastos
públicos, por vezes o julgador escapa do jurídico, acabando por valer-se de argumentos
econômico-financeiros para avaliar situações que envolvem um viés político-
econômico.
18. Em relação às “cláusulas pétreas”, destacou-se que, se o “poder”
reformador da Constituição for de encontro aos limites de reforma, em especial às
citadas cláusulas, estará atuando de modo inconstitucional, por ofensa aos direitos
fundamentais dos administrados garantidos pelo Poder Constituinte Originário.
Referidas limitações têm o intuito de impedir a eliminação de matérias que formam um
núcleo constitucional que não pode ser tocado se o objetivo do legislador reformador for
o de enfraquecê-lo; logo, pode ser considerado tangível (dentro de uma situação de
regularidade e de moralidade de recursos) tão só se for para receber adensamento, pois
esse núcleo protegido é fruto de uma escolha soberana e limitativa realizada pelo
Constituinte Originário, servindo de filtro para eventuais opções da competência
reformadora se esta se esquecer de promover o compromisso que lhe foi imposto de
instituir medidas progressivas concernentes aos direitos e garantias fundamentais.
308
19. No entanto, asseverou-se que é exatamente porque, em muitas
situações, não se observa essa ampla proteção que o Poder Constituinte conferiu às
“cláusulas pétreas”, especialmente, o não reconhecimento de que sua força protetiva
clama no sentido de se tornar mais denso o abrigo conferido aos direitos e garantias
fundamentais, é que surge a necessidade de aplicação do princípio da vedação ao
retrocesso social.
20. Nessa linha, afirmou-se que o princípio da vedação ao retrocesso
social integra a comunidade de princípios do ordenamento jurídico-constitucional
brasileiro. Nesse vértice, o magistrado pode aplicá-lo para resguardar direitos
fundamentais dos servidores, e é sempre, no plano constitucional, um fator protetivo
densificador da proteção conferida pelas “cláusulas pétreas”, representando a
preservação do progresso, do desenvolvimento social, do plano mais alto alcançado, e
qualquer mudança deve respeitar esse grau mais elevado de evolução conquistado pela
comunidade de servidores públicos.
21. Foram comparadas as diferentes dimensões de proteção conferidas
pelo direito adquirido e se verificou que: a) o direito adquirido individual ampara o
direito pessoal de determinado servidor aos direitos e benefícios que lhe são previstos;
entretanto, não tem o poder de impedir retrocessos, mas apenas o de evitar que a norma
retroaja para alcançar situações jurídicas constituídas e que integram o patrimônio
jurídico do servidor; b) o direito adquirido social é o único que tem aptidão para obstar
um eventual rebaixamento do nível mais elevado de direitos e garantias conquistado
pela comunidade dos servidores estatutários no seu processo evolutivo. Contudo,
entende-se que esse conjunto normativo, garantido em mais alto grau, assim
permanecerá enquanto não houver a necessidade de que o Estado realize uma justa
distribuição de recursos; c) o ponto de conexão entre a dimensão social e a individual é
a expectativa de direito do servidor. Embora sejam dimensões distintas, elas não
permanecem isoladas umas da outras e, nesse sentido, a proteção conferida pelo direito
adquirido social reflete na esfera individual dos servidores resguardando dita esfera em
um ponto que o próprio direito adquirido individual não consegue proteger: a
expectativa de direito do servidor.
309
22. No último ponto da tese, examinou-se a equivalência jurídica como
medida apta a proporcionar um equilíbrio suficiente diante de uma mudança em relação
aos direitos e garantias fundamentais, sempre por meio de uma justa repartição de
recursos.
23. No que concerne aos direitos e garantias fundamentais que não
dependem diretamente da situação econômica vivenciada pelo Poder Público e dos
gastos públicos realizados, a competência reformadora, ao instituir emendas à
Constituição, deve se ater aos limites que tem o poder de emendar a Lei Maior; se for
além das balizas constitucionais, enfraquecendo ou mesmo revogando ditos direitos e
garantias, estará afrontando o mandamento do progresso social. Defende-se uma
aplicação forte do princípio do não retrocesso social, que tem uma dimensão de peso ou
importância (forte) e que deve prevalecer (ante outro). Essa ideia aplica-se à garantia da
estabilidade dos servidores públicos. E em relação a essa aludida garantia defendeu-se
que houve ofensa ao princípio da vedação ao retrocesso social ante todas as mudanças
por ela sofridas.
24. No que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais atrelados
diretamente à situação econômica do ente público, aos gastos governamentais e ao
orçamento público, além da necessidade imperiosa de moralização dos recursos (para a
correção de distorções): 1) quando se estiver vivenciando situação de certa suficiência
de recursos e existir uma situação de moralidade em relação a eles, o legislador
reformador deve respeitar o nível mais alto de garantias originariamente estabelecido na
Carta Constitucional e, por conseguinte, obedecer ao princípio da vedação ao retrocesso
social. Defende-se uma aplicação forte do primado da vedação ao retrocesso social; 2)
quando se estiver diante de déficit orçamentário ou falta de recursos devidamente
comprovados, ou diante de necessidade de moralização dos recursos públicos, o
princípio do não retrocesso social não deixará de ser aplicado; todavia, sua aplicação
será em um grau de menor força desde que se observe a equivalência jurídica no tocante
aos direitos e garantias fundamentais afetados. Entende-se que haverá uma aplicação
fraca do princípio, uma vez que o julgador, ao apreciar a norma modificadora, deverá
saber mensurar a força relativa que terá, no caso, o primado da vedação ao retrocesso
social.
310
25. Nessas situações podem ser enquadrados os direitos e garantias que
integram o sistema remuneratório e o sistema previdenciário dos servidores públicos.
Quanto às mudanças instituídas e analisadas sob a ótica da equivalência jurídica,
constatou-se, pelo menos em relação às principais alterações examinadas, que a medida
equivalente foi observada e, portanto, não houve ofensa ao princípio da vedação ao
retrocesso social.
26. Assim, é possível notar que a equivalência jurídica é um padrão
decisional apto a fornecer ao julgador subsídios para proferir uma decisão que analise se
a norma modificadora que altera direitos e garantias fundamentais é justificável ou
injustificável, por observar ou ofender o princípio da vedação ao retrocesso social
respectivamente. E ao mesmo tempo, por meio dessa medida, pode-se ter uma aplicação
forte ou fraca do princípio do progresso social dependendo do seu peso ou importância
para a hipótese em apreço.
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