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O PROCESSO DE AQUISIÇÃO DA ESCRITA NA EDUCAÇÃO INFANTIL - CONTRIBUIÇÕES DE VIGOTSKY
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MELLO, Suely Amaral. O processo de aquisio da escrita na educao infantil: contribuies de Vigotsky. IN: FARIA, Ana Lcia Goulart e MELLO,
Suely Amaral (orgs.). Linguagens infantis: outras formas de leitura. Campinas: Autores Associados, 2005, p.23-40. Pgina 23 DEBATE DOIS O PROCESSO DE AQUISIO DA ESCRITA NA EDUCAO INFANTIL CONTRIBUIES DE VYGOTSKY
Suely Amaral Mello (Professora do Programa de Ps-Graduao em Educao da UNESP de Marlia. Coordenadora do Grupo de Estudos em
Educao Infantil da Faculdade de Filosofia e Cincias da UNESP e
membro do grupo de pesquisa "Implicaes pedaggicas da teoria histrico-cultural'').
Com base em estudos desenvolvidos por Vygotsky e seus colaboradores
- que pretendo explicitar nesta exposio -, parto da idia de que muito do que temos feito com a educao das nossas crianas pequenas na
escola da infncia e mesmo no ensino fundamental, especialmente no que concerne aquisio da escrita, carece de uma base cientfica e que,
diante dos novos conhecimentos que temos hoje, podemos perceber alguns equvocos nessas prticas e buscar, com base nesses novos
conhecimentos, maneiras de melhorar a forma como trabalhamos para garantir aquilo que todos queremos e que a maior conquista que a
educao pode permitir: a formao e o desenvolvimento mximo da inteligncia e da personalidade das crianas.
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Ao final desta exposio, espero ter convencido o leitor de que at agora temos contaminado, por assim dizer, a educao infantil com as tarefas
do ensino fundamental e de que, de agora em diante, levando em conta os novos conhecimentos sobre o processo de desenvolvimento das
crianas, trata-se de fazer o inverso: deixar contaminar o ensino fundamental com atividades que julgamos tpicas da educao infantil -
ainda que, muitas vezes, nem na educao infantil reservemos tempo para elas. Falo das atividades de expresso como o desenho, a pintura, a
brincadeira de faz-de-conta, a modelagem, a construo, a dana, a poesia e a prpria fala. Estas atividades so, em geral, vistas na escola
como improdutivas, mas, na verdade, so essenciais para a formao da identidade, da inteligncia e da personalidade da criana, alm de
constiturem as bases para a aquisio da escrita como um instrumento
cultural complexo.
Entre as concepes de educao infantil que dirigem as prticas de educao das crianas brasileiras entre 3 e 6 anos, percebo uma
concepo muito forte - muitas vezes sustentada pela presso dos pais, mas sobretudo pela prpria formao dos professores que trabalham com
a educao infantil - que defende a antecipao da escolarizao, e tal escolarizao precoce ocupa o tempo da criana na escola e toma o lugar
da brincadeira, do faz-de-conta, da conversa em pequenos grupos quando
as crianas comentam experincias e conferem os significados que atribuem s situaes vividas. Para esses pais e professores, quanto mais
cedo a criana introduzida de modo sistemtico nas prticas da escrita, melhor a qualidade da escola da infncia.
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Essa prtica de antecipao de escolarizao sustenta-se na idia de que
quanto mais cedo a criana se transformar em escolar e se apropriar da escrita, maiores suas possibilidades de sucesso na escola e na vida, e
maior o progresso tecnolgico do pas. No entanto, aprendemos com o dito popular que "de boas intenes o
inferno est cheio" e, por isso, desconfiando das concepes que chamam de desenvolvimento as mudanas vividas pelas crianas pequenas e
entendem esse desenvolvimento como natural - quando, na verdade, ele
resultado do processo de educao -, pretendo buscar as contribuies de Vygotsky sobre os processos vividos pelas crianas at os 6 anos de
idade para compreend-los melhor e pensar as formas mais adequadas da nossa interveno sobre o crescimento e a formao da inteligncia e da
personalidade da criana. Ao mesmo tempo, entendo que necessrio buscar, nos estudos desse autor, contribuies acerca da aquisio da
escrita, elementos que ajudem a compreender esse processo e as condies de sua apropriao pelas crianas at os 6 anos de idade. A
partir da, penso que poderemos propor procedimentos adequados para isto que afinal todos ns pais, professores, estudiosos, militantes da causa da infncia queremos, ou seja, o desenvolvimento harmonioso da personalidade infantil, o que nas palavras de Gramsci significava formar
cada uma das nossas crianas para ser um dirigente. Vygotsky j fazia em seu tempo - dcada de 1920 uma crtica que
permanece atual aos processos de apresentao escolar da escrita para as
crianas, inclusive aquelas em idade escolar. Ele dizia: "Ensinamos s crianas a traar as letras e a formar palavras com elas, mas
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no ensinamos a linguagem escrita" (VYGOTSKY, 1995, p. 183). Queria
dizer, com isso, que, na forma como em geral apresentamos a escrita para a criana, o ensino do mecanismo prevalece sobre a utilizao
racional, funcional e social da escrita. Criticava o fato de que em seu tempo, e tambm ainda hoje, de maneira geral, o ensino da escrita se
baseia em um conjunto de procedimentos artificiais que exigem
enorme ateno e esforos por parte do professor e do aluno e, devido a tal esforo, o processo se transforma em algo independente, em algo que
se basta a si mesmo enquanto a linguagem viva passa a um plano, posterior. [...] Nosso ensino ainda no se baseia no desenvolvimento
natural das necessidades da criana, nem em sua prpria iniciativa: lhe
chega de fora, das mos do professor e lembra a aquisio de um hbito tcnico [idem. ibidem].
E, no entanto, a aquisio da escrita tem um papel enorme no
desenvolvimento cultural e psquico da pessoa, uma vez que dominar a escrita significa dominar um sistema simblico extremamente complexo
que cria sinapses essenciais para outras formas elaboradas de pensamento.
A escrita um simbolismo de segundo grau, uma vez que "se forma por um sistema de signos que identificam convencionalmente os sons e
palavras da linguagem oral que so. por sua vez. signos de objetos e relaes reais" (idem, p. 184). Em outras palavras, a escrita representa a
fala, que, por sua vez, representa a realidade. Por isso, a escrita uma representao de
Pgina 27 segunda ordem. Para que sua aquisio se d de forma efetiva, no
entanto, preciso que o nexo intermedirio - representado pela linguagem oral - desaparea gradualmente e a escrita se transforme em
um sistema de signos que simbolizem diretamente os objetos e as situaes designadas. S assim o leitor ser capaz de ler idias e no
palavras compostas de slabas num texto. Da mesma forma, ao escrever, registrar idias e no apenas grafar palavras.
Deste ponto de vista, creio, j se pode perceber que o domnio deste sistema complexo de signos no pode dar-se por via exclusivamente
mecnica, por uma aprendizagem artificial. Para Vygotsky, a aquisio da escrita resulta de um longo processo de desenvolvimento das funes
superiores do comportamento infantil que o autor chama de pr-histria da linguagem escrita. Esta histria - que , na verdade, a histria das
formas de expresso da criana - constituda por ligaes em geral no
perceptveis simples observao e comea com a escrita no ar, com o gesto da criana ao qual ns, adultos, atribumos um significado.
Entre o gesto e o signo escrito dois elementos se interpem: o desenho e o faz-de-conta.
Se observarmos, perceberemos que o desenho, como uma continuidade do gesto, inicialmente uma representao grfica do gesto. Aos poucos,
ele torna-se uma representao simblica e grfica do objeto. Da mesma forma, no faz-de-conta, a ausncia de alguns objetos
necessrios brincadeira compensada por objetos que passam a representar os ausentes e, aos poucos, se convertem em signos que
representam os objetos ausentes. Nesse caso, o mais impor-
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tante no a semelhana entre o objeto verdadeiro e o representado,
mas a possibilidade de representar, com a ajuda do novo objeto, o gesto representativo do objeto ausente. De fato, o gesto que atribui a funo
de signo ao objeto e, ao longo do exerccio do faz-de-conta, graas ao uso
prolongado, o novo significado transfere-se ao objeto e este passa a representar o novo objeto para a criana, independentemente do gesto.
Assim, a criana, ao longo da idade pr-escolar, com a ajuda do desenho e do faz-de-conta, vai tornando mais elaborado o modo como utiliza as
diversas formas de representao. Desta maneira, entende-se que a representao simblica no faz-de-conta e no desenho uma etapa
anterior e uma forma de linguagem que leva linguagem escrita: desenho e faz-de-conta compem uma linha nica de desenvolvimento que leva do
gesto - a forma mais inicial da comunicao - s formas superiores da linguagem escrita. Esta forma superior da linguagem escrita deve ser
entendida como o momento em que o elemento intermedirio entre a realidade e a escrita - a linguagem oral - desaparece e a escrita se torna
diretamente simblica, ou seja, percebida como uma forma de representao direta da realidade.
Por isso, o tempo dedicado ao desenho e ao faz-de-conta, na escola da
infncia, precisa ser revisto no intuito de receber uma ateno especial do professor. Ao tratar dessas atividades, no tratamos de atividades de
segunda categoria, mas de atividades essenciais na formao das bases necessrias ao desenvolvimento das formas superiores de comunicao
humana. Ou seja, se quisermos que as crianas se apropriem efetivamente da escrita - no de forma mecnica, mas como uma lin-
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guagem de expresso e de conhecimento do mundo-, precisamos garantir
que elas se utilizem profundamente do faz-de-conta e do desenho livre, vividos ambos como forma de expresso e de atribuio pessoal de
significada quilo que a criana vai conhecendo no mundo da cultura e da natureza.
Para alm disso, duas teses da teoria histrico-cultural contribuem para
pensarmos sobre os procedimentos que levam aquisio da escrita: a tese sobre como se d o processo de conhecimento humano e a tese
sobre os momentos mais adequados para a influncia do professor no processo de desenvolvimento infantil.
A primeira tese - acerca do processo de conhecimento humano - aponta que as novas geraes se apropriam dos instrumentos culturais criados
pelos homens ao longo da histria como, por exemplo, a linguagem escrita - medida que realizam com esses instrumentos as atividades
para as quais esses foram criados. No caso da escrita, necessrio utiliz-la considerando o fim social para o qual foi criada - para escrever ao
registrar vivncias, expressar sentimentos e emoes, comunicar-se.
Com isso, j se percebe que as atividades que em geral so utilizadas para ensinar a escrever pecam por sua finalidade e pelo sentido que
imprimem atividade. Em geral, ensinam-se letras e slabas para as crianas na educao infantil e no processo inicial de alfabetizao no
ensino fundamental. Parece que, ante a complexidade da escrita, se buscou uma forma de tornar o processo mais simples.
O problema que, ao tornar o processo mais simples buscando ensinar
primeiro as letras para ento
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chegar aos processos de comunicao e expresso, se perdeu de vista a funo social da escrita, ou seja, o fim mesmo para o qual a escrita foi
criada. Os exerccios de escrita, que, de um modo geral, preenchem boa parte do tempo das crianas nos ltimos anos da educao infantil e no
incio do ensino fundamental, so, em geral, tarefas de treino de escrita de letras, slabas e palavras que no constituem atividade de expresso.
De um modo geral, insiste-se no reconhecimento das letras - com as quais a criana no l nada. Esse trabalho com letras e slabas dificulta a
percepo pela criana de que a escrita um instrumento cultural. Escrever, em lugar de expressar uma informao, uma emoo ou um
desejo de comunicao, toma para a criana o sentido de atividade que se
faz na escola para atender a exigncia do professor. Da mesma forma se d com a leitura. E esse sentido marca a relao que a criana vai
estabelecer com a escrita no futuro: ao enfatizar o aspecto tcnico comeando pelo reconhecimento das letras e gastando um perodo longo
numa atividade que no expressa informao, idia, ou desejo pessoal de comunicao ou expresso, a escola acaba por ensinar criana que
escrever desenhar as letras, quando, de fato, escrever registrar e expressar informaes, idias e sentimentos.
O conjunto de tarefas de treino de escrita, tpico dos processos iniciais de apresentao da escrita para a criana na escola infantil e no ensino
fundamental - felizmente h excees -, faz com que a criana passe longos perodos sem se expressar na escola: para as formas pelas quais
ela poderia expressar-se - a fala, o desenho, a pintura, a dana, o faz-de-conta... que formam, alis, as bases ne-
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cessrias para a aquisio da escrita -, no h tempo, uma vez que ela est ocupada com o treino de escrita, e pela escrita ela no pode
expressar-se ainda, porque est ainda aprendendo as letras. Sem exercitar a expresso, o escrever fica cada vez mais mecnico, pois sem
ter o que dizer, a criana no tem por que escrever. Alm disso, essa forma de trabalho que enfatiza letras e slabas dificulta
a concentrao da criana, uma vez que no faz sentido para ela. Com isso, esse exerccio de treino acaba por tomar o maior tempo da atividade
da criana na escola infantil e todo o tempo no ensino fundamental.
Como se tudo isso no bastasse, como a criana, em geral, no tem ainda as bases para essa aprendizagem complexa que a escrita - nem
na escola infantil, quando o trabalho educativo deve formar essas bases, nem na escola fundamental, j que a antecipao de escolaridade para a
escola infantil impede que estas se formem -, as atividades de treino propostas na escola exigem um esforo enorme da criana e tm poucas
chances de responder s expectativas da professora. A criana erra
porque no tem as bases necessrias para dar conta da tarefa que lhe proposta. Com isso, vai acumulando uma histria de fracasso e de
cansao em relao escola que condiciona sua expectativa e sua relao futura com a escola.
Percebendo a situao no seu conjunto, podemos dizer que o treino para a escrita toma o lugar de todas as atividades que privilegiam a expresso,
inclusive a atividade de escrita, que muito diferente do mero treino. Essa mesma tese de Vygotsky mencionada anteriormente, acerca do
processo como o sujeito se apropria da cultura, aponta o carter ativo da criana que aprende.
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Hoje sabemos que, para aprender, a criana precisa ser ativa no
processo. Precisa ser sujeito e no um elemento passivo do processo de
ensino. A partir do conhecimento sobre as crianas pequenas que viemos acumulando e sobre o processo de humanizao de um modo geral,
passamos a entender o processo de aprendizagem de forma mais complexa: aprender envolve atribuir um sentido ao que se aprende. S a
criana que entende o objetivo do que lhe proposto e que atua motivada por esse objetivo capaz de atribuir um sentido que a envolva na
atividade. Os fazeres propostos para as crianas na escola tm mais possibilidades de se estabelecer como atividade quanto maior for a
participao da criana na escola dando a conhecer suas necessidades de conhecimento - que podero ser aproveitadas ou transformadas pela
escola conforme seu grau de humanizao ou alienao -, trazendo elementos para dar corpo atividade [nota: 1], realizando ela prpria as
tarefas propostas e buscando a ajuda do educador num processo que caracteriza o ensino colaborativo. Por isso, no se trata de garantir que a
criana receba uma quantidade de informao sem que ela tenha tempo
para se apropriar dela e se objetivar a partir de sua apropriao. Ao contrrio, a informao vai ser apropriada apenas se a criana puder
interpret-la e express-la na forma de uma linguagem - que pode ser a fala, um texto escrito, um desenho uma maquete, uma escultura, um jogo
de faz-de-conta, uma dana que torne objetiva
Nota 1 Pgina 32. Ver Antonio Gariboldi (2003), "As modalidades do fazer educativo: a atividade negociada", em E. Becchi e A. Bondioli,
Avaliando a pr-escola: uma trajetria de formao de professores. Campinas, Autores Associados.
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essa sua compreenso [nota: 2]. um processo de dilogo que se estabelece entre a criana e a cultura, processo este que, na escola,
mediado pela professora e pelas outras crianas. Isso implica, essencialmente, dar voz criana e permitir sua participao na vida
escolar, num projeto que feito com elas e no para elas ou por elas.
Alm disso, percebemos tambm a importncia da escola na criao de novas necessidades humanizadoras [nota: 3] nas crianas - como a
necessidade de conhecer mais, de ler, de expressar-se por meio de diferentes linguagens.
Isto implica que a criana no se apropria da escrita apenas porque o educador deseja imensamente ensin-la, mas apenas quando a escrita faz
sentido para ela, quando o resultado da escrita responde a uma necessidade criada na criana. Como afirma Vygotsky, da mesma forma
que a linguagem oral apropriada pela criana naturalmente, a partir da necessidade nela criada no processo de sua vivncia social numa
sociedade que fala, a escrita precisa fazer-se uma necessidade natural da criana numa sociedade que l e escreve.
Nesse sentido, amplia-se o carter do trabalho do professor da educao infantil e do ensino fundamental. Em lugar de apresentar s crianas
exerccios de treino de escrita, a preocupao do professor deve orientar-
se para a criao de novas necessidades nas crianas - entre elas a necessidade de escrita - a partir do que as aprendizagens possam se
efetivar num nvel mais elevado.
Nota 2 Pgina 33. Para a teoria histrico-cultural, essa dinmica apropriao/objetivao responsvel pelo processo de humanizao.
Nota 3 Pgina 33. As necessidades humanizadoras - por oposio s necessidades de consumo - so aquelas que aproximam o ser humano de suas mximas possibilidades de realizao.
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Ao considerar a necessria interveno dos professores sobre o processo
de desenvolvimento das crianas. Vygotsky considera que esta influncia
ser mais adequada se considerar o momento do desenvolvimento psquico e cultural da criana. Como afirma esse autor, a influncia da
educao sobre determinada funo psquica ser mais efetiva no momento em que esta funo estiver em desenvolvimento. Este o
momento adequado para influenciar e potencializar seu desenvolvimento: no quando uma determinada funo j est plenamente desenvolvida - o
que implicaria retomar um desenvolvimento j cristalizado, desfazer processos e recuperar desvios - e tampouco quando a funo no tem
ainda as bases necessrias para seu desenvolvimento. Em outras palavras, preciso considerar as regularidades do desenvolvimento
infantil percebendo os perodos sensitivos nesse desenvolvimento. Deste
ponto de vista, a criana seletiva em relao quilo que aprende. Por isso, a deciso pela proposio de atividades que levem aquisio de um
novo instrumento cultural ou uma nova habilidade ou capacidade nas crianas precisa considerar o nvel de desenvolvimento daquilo que
constitui as bases necessrias para tal aquisio. Mais que isso, o professor da infncia precisa considerar a forma da atividade atravs da
qual a criana, nas diferentes etapas de seu desenvolvimento psquico, se
apropria do mundo. Conforme estudos da teoria histrico-cultural, ao longo do processo de
desenvolvimento psquico do ser humano, existe uma atividade que se considera principal em cada etapa desse desenvolvimento, uma vez que
aquela que mais motiva o desenvolvimento de outras atividades que abrem o conhecimento do mundo para o sujeito, que mais
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exercita a organizao e reorganizao dos processos psquicos e a que
mais favorece mudanas na personalidade. Esses mesmos estudos apontam que na idade pr-escolar - entre 3 e 6 anos - o brincar livre
constitudo basicamente do faz-de-conta essa atividade por permitir a experimentao de inmeras outras atividades que descortinam o mundo
dos objetos da natureza e da cultura para a criana, por favorecer o
exerccio do pensamento infantil atravs de suposies e conjecturas que, se confirmadas, permitem a criao de teorias temporrias ou no e,
se rechaadas, apontam para outras hipteses e, finalmente, por favorecer as principais mudanas psicolgicas na personalidade infantil,
uma vez que, ao se colocar no papel de outro, a criana assume um com-portamento compatvel com o personagem representado, em geral de
mais idade que ela e com atitudes mais complexas e intencionalmente controladas. Ao controlar o "querer fazer" ante o "poder fazer" delimitado
pelo papel assumido, a criana exercita o aprendizado do controle da conduta e o domnio da vontade.
Tais atitudes e capacidades formam as bases necessrias para a apropriao da escrita. Por isso, quando defendo a necessidade de a
criana - seja na educao infantil, seja no ensino fundamental - expressar-se por meio das muitas linguagens possveis na escola, no
quero com isso excluir a linguagem escrita. Ao contrrio, quero inclu-la
de modo que se torne mais uma linguagem de expresso das crianas. O fato que essas linguagens no podem estar separadas, nem entre si,
nem separadas de experincias significativas que tragam contedo expresso das crianas nas diferentes linguagens. Se as crianas puderem
conviver com a escrita e
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com a leitura - realizadas inicialmente pela professora enquanto vivem muitas experincias significativas - por exemplo, conhecendo o espao por
meio de passeios pelos arredores da escola, pelo bairro, pela cidade:
conhecendo pessoas por meio de visitas, de aproximao com as pessoas que trabalham na escola, de visita dos pais, mes e avs da turma
escola, de leitura de histrias, de poesias, de audio de msica, de filmes: se puderem conhecer mais sobre os assuntos que chamam sua
ateno por meio de observao e experimentao na natureza, leitura, vdeo, conversa com especialistas... e se puderem comentar essas
experincias e registr-las por meio de desenho, pintura, colagem,
modelagem, brincadeiras e teatro de fantoches-, a leitura e a escrita constituiro o prximo passo que a criana vai querer dar em seu
processo de apropriar-se do mundo. Com isso, quero dizer que se queremos que nossas crianas leiam e
escrevam bem e se tornem verdadeiras leitoras e produtoras de texto - o que, de fato, uma meta importantssima do nosso trabalho como
professores -, necessrio que trabalhemos profundamente o desejo e o exerccio da expresso por meio de diferentes linguagens: a expresso
oral por meio de relatos, poemas e msica, o desenho, a pintura, a colagem, o faz-de-conta, o teatro de fantoches, a construo com retalhos
de madeira, com caixas de papelo, a modelagem com papel, massa de modelar, argila. necessrio que a criana experimente os materiais
disponveis, que a escola e o educador tenham como responsabilidade ampliar e diversificar sempre. Essa necessidade de expresso - sempre
importante lembrar - surge a partir do que as crianas vem, ouvem,
vivem, descobrem
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e aprendem. Quando essas experincias so registradas por escrito por meio de textos que as crianas produzem e a professora registra com as
palavras das crianas, garantimos a introduo adequada da criana ao mundo da linguagem escrita.
Entretanto, comeamos no por propor atividades de escrita para a criana, mas por estimular e exercitar seu desejo de expresso. Fazemos
isso quando a deixamos contar suas histrias de vida e de imaginao para o grupo - e tambm contando histrias para ela, histrias que ela vai
recontar depois. Tambm estimulamos e exercitamos seu desejo de expresso quando estimulamos sua observao, quando solicitamos
rotineiramente sua participao na soluo de problemas e na discusso
de temas apresentados na sala, quando avaliamos o dia vivido na escola junto com todo o grupo, quando chamamos sua participao para o
estabelecimento das regras e dos combinados que definem a vida na escola e na turma, para a organizao da rotina diria e do espao.
Tambm estimulamos sua expresso quando deixamos no horrio dirio um tempo para uma atividade livre que a criana vai escolher entre as
possibilidades existentes na sala ou na escola e depois, numa atividade coletiva, relata para a turma sua experincia.
Em breves palavras: uma questo de permitir criana exercitar seu papel de protagonista neste seu processo de aprender e tornar-se cidad.
Isto implica dar-lhe voz, trat-la como algum que, se no sabe, capaz
de aprender. Desse ponto de vista, enfrentamos vrios desafios ao mesmo tempo: permitimos, em primeiro lugar, que ela forme uma imagem
positiva de si mesma, condio emocional fundamental para apren-
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der qualquer coisa. Ao trazer sua histria para a escola, ao formular e
expressar opinies, ao propor solues para os problemas vividos no grupo, ao expressar suas idias, angstias e seus sentimentos, a criana
deixa de ser annima e passa a ser algum que tem uma identidade no grupo. Em segundo lugar, possibilitamos que se sinta parte da escola.
Essa sensao de pertencimento condio essencial para a disciplina das crianas no grupo. De um modo geral, pensamos a indisciplina como
decorrncia da pobreza ou da desagregao da famlia tradicional. Ao contrrio disso, quando buscamos a essncia do problema, descobrimos
que sua causa primeira o sentimento de excluso. Em terceiro lugar, esse envolvimento da criana na vida da escola promove sua expresso
oral, que condio essencial para o desenvolvimento da inteligncia. As palavras so a matria com que trabalha o pensamento; se faltam as
palavras, falta o pensamento. A palavra estabiliza um sentido, organiza o mundo para aquele que passa a ver e conhecer a cultura humana e a
natureza: com ela, amplia-se a memria, o conhecimento do mundo, o
controle da prpria conduta que se exerce pela linguagem interna. Pesquisas tm demonstrado que, sob condies adequadas de vida e de
educao, as crianas desenvolvem intensamente - e desde bem pequenas - diferentes capacidades prticas, intelectuais e artsticas. No
entanto, isso no deve levar a pensar que se pode abreviar a infncia para apressar o desenvolvimento da inteligncia e da personalidade. Em cada
idade da vida h uma forma explcita da relao do ser humano com o mundo e esta a forma por meio da qual o sujeito mais aprende. J
apontamos que, na idade pr-escolar, essa atividade o brin-
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car e todas as formas de expresso que a criana aprende. Na idade escolar, essa atividade ser o estudo, cuja compreenso e interpretao
precisa ser sempre objetivada, expressa pela criana. No h qualquer
razo cientfica que justifique que essa expresso deva ser restrita a uma nica linguagem. Ao contrrio, do exerccio de mltiplas linguagens que
a expresso se fortalece. Ao mesmo tempo, importante lembrar que a passagem do brincar ao
estudar como atividade por meio da qual a criana mais aprende no acontece como num passe de mgica, de um momento para o outro. Ao
contrrio, um processo por meio do qual, aos poucos, a criana vai deixando de se relacionar com o mundo por meio da brincadeira e comea
a fazer do estudo a forma explcita de sua relao com o mundo. Enquanto esse processo acontece, respeitamos um tempo livre na escola
fundamental para que a criana possa viver ainda um tempo de brincar, de fazer-de-conta, de ser criana.
Por tudo isso, defendo a idia de que devemos com urgncia "descontaminar" a escola da infncia dos procedimentos tpicos do ensino
fundamental e "contaminar" o ensino fundamental com procedimentos -como as atividades de expresso - que devemos ter como tpicos da
escola infantil e que, para o bom desenvolvimento da inteligncia e da
personalidade das crianas, devem estar presentes tambm nas sries iniciais do ensino fundamental.
Retomando Vygotsky e suas contribuies para o processo de apresentao da escrita criana de modo que a escrita se torne um
instrumento de expresso e conhecimento do mundo para uma criana leitora e produtora de textos, vale destacar as diretrizes por ele
apontadas:
1. que o ensino da escrita se apresente de modo que a criana sinta necessidade dela.
2. que a escrita seja apresentada no como um ato motor, mas como uma atividade cultural complexa.
3. que a necessidade de aprender a escrever seja natural, da mesma forma como a necessidade de falar.
4. que ensinemos criana a linguagem escrita e no as letras.
Para finalizar, eu gostaria de trazer esta reflexo para o contexto da
discusso que envolve hoje os conceitos de alfabetizao e de letramento. Se entendermos o conceito de letramento como se referindo ao processo
de insero do sujeito no mundo da cultura escrita de forma que perceba a escrita como um instrumento cultural complexo, ou seja, letramento no
como sinnimo de aprendizagem de letras, slabas ou palavras, mas como compreenso da funo social da escrita que possibilite sua utilizao no
como uma tcnica, mas como um instrumento da cultura que permite a comunicao e o registro da expresso e do conhecimento, eu diria que
Vygotsky defenderia o letramento para as crianas at 6 anos, e para as crianas entre 6 e 10 anos, a alfabetizao com letramento.
Referncias Bibliogrficas
LURIA. A. R. (1988). "O desenvolvimento da linguagem escrita". ln: LEONTlEV. A. N.; LURIA. A. R. & VYGOTSKI. L. S. Linguagem,
desenvolvimento e aprendizagem. So Paulo, cone/EDUSP.
VYGOTSKY, L. S. (1995). El desarrollo del lenguaje escrito". In: Obras Escogidas. Madrid, Visor, v. 3.