50
,~ .1 ~(LD~?5'(_J~ -e '-7~ 0.J_S 1 SAÚDE COMO PROBLEMA o que é saúde, afinal? Para respond r a tal questão, podemos tomar como pressuposto, apenas para inicio de apreciação ana- lítica, que a saúde é um problema simultaneamente filo ófico, científico, tecnológico, político e prático. Diz respeito a uma realidade rica, múltipla e COI11[ lexa, referenciada por meio de conceitos, aprcensivcl ernpiricarnente, analisável metodológica- mente e perceptível por seus efeitos sobre as condições de vida dos sujeitos. Essa linha de problernatizaçào e as hipóteses dela decorrentes se desdobram num debate atual e oportuno a pro- pósito das bases filosóficas, científicas práticas do conhecimen- to sobre fatos e fenômenos, ideia e processo relativos a saúde. Neste capítulo, apresento uma proposta de discussão siste- mática e de problcrnatização desse conceito, começando por "uma introdução histórico-etimológica como fundamento para uma rápida exploração da questão pistemológica da saúde. ETIMOLOGIA E GLOSSÁRIO o que significa 'saúde', do ponto de vista etimológico? , a úde' em português, salud em astclhan , salut em francês e sa/Plte em italiano (CSL s últimos c m uma notação e pecífica de audação) derivam de uma mesma raiz etirnológi a: salus. Proveniente do latim, e e termo designava o atributo principal dos int iros, iru a LO , ínt gr s. el d riva outro radical d intc- r 15

O que é saúde

Embed Size (px)

DESCRIPTION

conceito de saúde; modelo biológico; saúde como ausnência de doença; conceito de saúde perpassada e dado no contexto...

Citation preview

Page 1: O que é saúde

,~ .1~(LD~?5'(_J~ -e '-7~·0.J_S 1 SAÚDE COMO PROBLEMA

o que é saúde, afinal? Para respond r a tal questão, podemostomar como pressuposto, apenas para inicio de apreciação ana-lítica, que a saúde é um problema simultaneamente filo ófico,científico, tecnológico, político e prático. Diz respeito a umarealidade rica, múltipla e COI11[ lexa, referenciada por meio deconceitos, aprcensivcl ernpiricarnente, analisável metodológica-mente e perceptível por seus efeitos sobre as condições de vidados sujeitos. Essa linha de problernatizaçào e as hipóteses deladecorrentes se desdobram num debate atual e oportuno a pro-pósito das bases filosóficas, científicas práticas do conhecimen-to sobre fatos e fenômenos, ideia e processo relativos a saúde.

Neste capítulo, apresento uma proposta de discussão siste-mática e de problcrnatização desse conceito, começando por "umaintrodução histórico-etimológica como fundamento para umarápida exploração da questão pistemológica da saúde.

ETIMOLOGIA E GLOSSÁRIO

o que significa 'saúde', do ponto de vista etimológico?

, a úde' em português, salud em astclhan , salut em francês esa/Plte em italiano (CSL s últimos c m uma notação e pecíficade audação) derivam de uma mesma raiz etirnológi a: salus.Proveniente do latim, e e termo designava o atributo principaldos int iros, iru a LO , ínt gr s. el d riva outro radical d intc-

r 15

Page 2: O que é saúde

"1

16 J

resse para o nosso tema, Ja/l!US, que, já no latim 111 dieval, cono.,tava a situação de superação de ameaças à integridade fisica dossujeitos. Sa/t·1J provém do termo grego bo/os (óAaç), no sentidode todo, totalidade - raiz dos termos holismo, holístico, tão emmoda atualmente - que foi incorporado ao latim clássico pormeio da transição s'o/os. Por sua vez, a raiz indo-germânica eleholos é o vocábulo kailo, também significando total, inteiro.

Sal1té no idioma francês, sanidad em castelhano, juntamentecom o adjetivo 'são' no vernáculo, provêm do latim medieval(circa 1050) samlJ, que portava duas conotaçôcs básicas: 'puro,imaculado, perfeito', aJém de 'certo, correto, verdadeiro'. O termotcm origem no vocábulo grego crua, com o sentido de verdadei-ro. De Janita.f, designativo da condição de sanus; deriva diretamen-te sanidade, sanitário e sanatório, além nat'uralmente de sanidad

(em castelhano) e do vocábulo .ranté, pelo francês arcaico Janitezi.

No idioma alemão, em que saúde é GeSllndheit, observa-se umacuriosa variante semântica. O termo resulta do prefixo ge- e doraclical.ftmd, que significa sólido, firme (como no vocábulo anglo--saxão .fOtmrl), sendo -bei: apenas um su fixo indicativo ele capaci-dade ou faculdade. utros autores propõem urna base etimoló-gica diversa: o vocábulo milenar germânico Ge.rtmdheil implicariadiretamente a ideia d integralidade ou totalidad (Gal1zheif).

Dessa breve exploração semântica, o que ressalta como maisinteressante será certamente a história etimológica do termo health,saúde em inglês. Em sua forma arcaica (healeth) equivale a healed,no sentido de tratado ou curado, pal'licipio passado do verbo lobeal. No trooco escandinavo, como no idioma sueco, por ex rn-plo, aúd é hôl.ra. Todos os vocábulos d ssa família semânticaprovêm d hôl, termo germânico antigo qu d signa inteireza e

ue, por seu Iurno, também refere-se ao radical grego =: Di~-~o de nota ainda é que bo! origina M/ig (germânico antigo), raizdo vocábulo ho!y, c]ue significa 'sagrado' no inglês moderno. Em

tuguês o termo 'são' também aparece como sinônimo depor " . . _'sagrado ou santo', tal como aparece na designação dos funda-dores da [greja Católica_Romana, 'São' Pedro e 'São' Paulo.

Antes de prosseguir, cabe propor um glossário para demarcaçãosemântica no que concerne ao conceit-o de 'doença' e correlatos.

É difícil estabelecer quem foi o primeiro amor a postular, demodo sistemático, uma distinção entre disease, d/17eSJe siceness. Parajustificar uma diferença semântica pelo menos entre os doisprimeiros termos, buscou-se inicialmente a re[erê~ci~ ao sensocomum. No tradicional dicionário Oxford, disease significa "umacondição do corpo, ou de alguma ele suas partes ou órgãos, cujasfunções encontram-se perturbadas ou prejudicadas", e i/lneJ.r édefinida simplesmente como "qualidade ou condição de estarenfermo (em vários sentidos)".

O i liorna inglês, matriz da literatura específica sobre temasde saúde, guarda sutis distinções de sentido em relação aos con-ceitos de doença e correlatos, por meio de uma série significantebas tan te diversi fi cad a:pai b%gy-disea.fe-diJorder-il/nesJ- siceness -ma lacfy.Tal série refere-se a um glossário técnico particular que, em faceda crescente importância no discurso científico contemporâneo,merece algum investimento para a cornunicabilidade imprescin-dível à compreensão desse importante debate.

P r esse motivo, onsiderarnos importam e oportuno pr poruma equivalência terminológica em português (Almeida-Filho,2001), mesmo re' onhe endo aI m grau de arbitrari dade in-completude em proposiçõ s de sa natureza:

l 17

Page 3: O que é saúde

• patholog)' = patologia• disease = doença• disorder = transtorno• illness = moléstia

• siceness = enfermidade• malac!)' = mal-estar

tanto as distintas classes de doença, enfermidade ou moléstiaquanto aqueles eventos, estados e I recessos dificilmente classi-ficáveis como doença ou patologia, tais como transtorno, disfun-ção, dependência, defeito, lesão, trauma etc. Não obstante acorreta intenção da proposta, o conceito de 'mal-estar' nãoaparece no dis urso técnico da clínica, nem no discurso teóricoda sociologia da saúde, sendo referido, na maioria das vezes, comocuriosidade semântica reveladora da insuficiência do conceitogeral de doença.

A escolha dos termos 'patologia' e 'doença' parece óbvia, oprimeiro por sua correspondên ia semântica c ortográfica diretae o segundo peja dominância do designativo no idioma português.O termo 'I ranSlorno' tarnbé rn já está definido como traduçãopara disorder na versão brasileira da ClaJJijit"c/(ão Internacional deDoenças, 10" versão.

A opção pelo vocábulo 'moiést ia' para designar il/11eJS e de'enfermidade' para siceness justifica-se pela etimologia dos termos.A palavra molés: ia refere-se à percepção e à reação individual(sentir-se mal, molestado) ante incômodo e sofrimento; origina--se de 'mal-estar', portanto indicando sentimento ou percepçãosubjetiva do sofrimento, tanto que, no idioma espanhol, molestarguer dizer incomodar. O termo enfermidade traz clara acepçãode controle social da doença, resíduo linguíst i o do tempo emgu a principal pr venção de doenças infectocontagiosas era oisolamento ou confinamento. Remete djretamente ao caráter dereação societal à doença, uma vez que sua etimologia vem deencerrar, aprisionar (no idioma francês,jermer significa fe har).

Buscando alternat'ivas ao uso ampliado do conceito de doen-ça, gue pr piciava confusões de ordem lógi a e semântica, outrosautores de língua ingl sa propu eram um onc ito mais genérico- l11alacjy. Tal on eiro denotaria o universo das ategorias cIr f, 'r' ncia a danos ou ameaças à saú Je do indivíduos, incluindo

SAÚDE: UM PROBLEMA FI LOSÓFICO E CI ENTÍ FICO

Conceitos de saúde-doença sempre despertaram interesse dospensadores de nos a cultura, desde o m mentos fundadores dafilosofia ocidental. Praticamente todo os filósofos clássicos, emum momento ou outro de suas obras, referem-se a questões desaúde. Sem dúvida, a natureza da saúde constitui questão filosó-fica secular, quiçá do porte do Paradoxo de RusseU ou do Pro-blerna de l-lume (Almeida-Filho, 2001). 1 roponho demarcar aquestão da saúde enguanto objeto le conhecimento como oProblema de Kan1"-Gadamer.

O grande Filósofo gr go Platão, num clássico irnitulado ARcJ)tÍb/ica, apres rua um argumento socraticamente formuladopara def nder a proposição d uma oposição conceitual entrevirtude e vício. Virtude significa 'saúde, beleza, boa disposiçãode ânimo'; ao contrário, vício implica 'd eriça, feiúra, fraqueza'.

om a intenção de demarcar uma dif r n a ess ncial entre osonc ito , Platão põ na bo a de Sócrates a seguinte afirmação:

En endrar a saúd é estab lecer, conforme a natureza, relaçõescI omando e submissão entre os diferent s elemento doorpo; en endrar a doen a ' P rmitir-Ihe omandar ou er18 ]

[ 19

Page 4: O que é saúde

20 J

comandados um pejo outro ao arrepio da natureza. (...) Pelamesma razão, engendrar a justiça não significa estabelecer, con-forme a natureza, as relações de comando e submissão entreos diferentes elementos da alma? E engendrar a injustiça nãosignifica pcnnitír-Ihes comandar ou ser comandados um pelooutro ao arrepio da natureza? (Platão, 2004: 146)

Aristóteles apresenta a cliade saúde-doença como ilustração deque opostos se encontram em contradjção não necessariamenteror serem um verdadeiro e outro falso. Para ele, dizer que 'o homemé sadio' significa atribuir-lhe uma qualidade afirmativa; do mesmomodo, dizer 'o homem é doente' trunbém é atribuir-lhe uma qua-lidade afirmativa. Nesse sentido, 'doente' e 'não sadio' não queremdizer a mesma coisa. Assim, Aristóteles conclui que:

por exemplo, saúde e doença são contrários, mas nem um nemoutro é verdadeiro nem falso. (...) o bom é ao mesmo tempobo~ e .não mau; a primeira destas qualidades pertence-lhe poressencia, e a segunda, por acidente, pois só por acidente o bomé mau. (Aristóteles, 1985: 164)

Conforme anansaclo por Canguilhem (1990), na época moder-na, vale a pena destacar os nomes de Rcné Descarr-es e lmmanuelKant, fiJósofos cujas obras sem dúvida constituem marcos estru-turantes da epistemologia da ciência.

Descartes desenvolve duas idéias centrais sobre saúde que pa-recem contestar a visão contemporânea predominante que tomao seu pensamento como mecanicista, reducionista e dualista. Porum lado, defende a idéia de que as sensaçõ s da nfermidade (dor,sofrimento) e das necessidades (sede, fome) - e, conforme indicaimplicitamen1"e, de saúd e de felicidade - resultam da união e da'con-fusão' mente-corpo. Por outro lado, demonstra racionalm n-te a existência da alma ao duvidar que um rn canismo feito ele

ossos, nervos, músculos, veias, sangue e pele possa funcionar de-vido à mera disposição de órgãos e sistemas.

N um pequeno livro reconhecido por estabelecer o conceito deautonomia acadêmica e por ter inspirado a reforma universitáriahumboldtiana - O Conflito das J'acu/dades, publicado em 1798 -, Kanttraz duas interessantes quest-ões relativas ao conceito de saúde: aprimeira postula uma oposição dialética entre terapêutica (clínica,referida à doença) e dietética (preventiva, referida à saúde); a se-gúnda qu stão implica o sentimento de saúde como uma das fa-culdades privadas do ser humano.

Na perspectiva terapêutica, gerada e praticada pela faculdadede medicina, a saúde não tem qualquer relevância, pois o que sepretende é a supressão ou eliminação da doença por fatores eprocedimentos práticos. Na perspectiva da dietética como preven-ção, concebida e tomada potencialmente viável na faculdade defilosofia (nome arcaico das protoescolas de ciências ou filosofianatural), buscava-se aplicar a racionalidade científica para protegera saúde, reduzindo a possibilidade de ocorrência de doenças.

em relação ao segundo ponto, o sentimento de saúde nãopode deixar d ser ilusório, uma aparência fugaz, já que a sensaçãode bem-estar não implic~ que a doença esteja efetivamente au-sente. O sentimento da doença, este sim, será indubitável e ina-pelável: sentir-se mal significaria sempre ausência de saúde. Nãoé difícil concluir que essa visão se coaduna perfeitamente com opensamento le J aru, um sujeito audacioso, sensível e genial,porém corcunda, muito fei fisicamente, hi] condriaco, velho edoente aos 75 anos, e, durante toda a vida, mal pago profes 01'

da vetusta Universi lad Albertina, situada na gelada e úmidacal ital da 1 rússia.

l 21

Page 5: O que é saúde

, 'li

Grandes filósofos contemporâneos se notabilizaram jusramen,

te por escrever sobre temas de saúde e correlatos, como Canguj-

lhern, Ileidcgger, Gadamer e Foucault. Dentre os estudiosos que

mais se ocul aram do tema da saúde, destaca-se o francês Georges

Canguilhem. Em sua obra inaugural, O Normal e o Patológico, publi-

cada em 1943, que se tornou um clássico na filosofia das ciências ,Canguilhem (200ti) havia indicado que a definição médica de nor-

mal provém em grande medida da fisiologia, com base na positi-vidade biológica do conceito 'doença'. Por isso, não se poderia

onsiderar a doença como falO objetivo, pOSIO cluCos métodos da

ciência clínica só tê rn a cap~lcidade de definir variedades Ou dife-renças, descri uva men te.

Nessa perspcct iva, os pares de conceitos normal-patológico

e saúde-doença não seriam simétricos ou equivalerues, na rn di-

da em 9ue normal e patológico não configuram conceitos con-trários ou contraditórios. Pari! Canguilhem, () patológico não

significa ausência de normas, mas a presença de outras normas

vitalmente inferiores, que impossibilitam ao indivíduo viver o

mesmo modo de vida permitido aos indivíduos sadios. As im, o

patológico corresponde diretamente ao conceito de doença,

imllicando o contrário vital do sadio. As possibilidades do esta-

do de aúde são superiores às capacidades normais: a saúde

institui e reafirma uma certa apa idade de ultrapassar as crises

det rminadas pelas forças da doença, permitindo dessa maneirainstalar uma nova ordem nsiológi a.

grand pensador francês Michel 'ou ault (2011), conside-rado discípulo h rd iro de anguilh m, buscou studar orno

surgiram padrões de normalidade no âmbito da m dicinn. No

contexto de re onstrução cultural do século XVHT, buscava-se

. t 'vl'r sobre o indivíduo humano, seu corpo, sua mente, e nãolI1 el '. s sobre o ambiente físico, para com isso recuperá lo paraapena: , . .

a produção. Listar as possibilidades normais de rendimento ~o

homem, suas capacidades, bem como os parâmetros do funcio-

to social normal nassou a ser tarefa da medicina menta],namen , I-

da psicologia e das ciências sociais aplicadas. Nessa perspectiva,

os concci lOSimplícitos na fase inicial da obra de Foucault revelam

sua adesão a uma definição de saúde como capacidade adaptati

va (ou submissão) ;;JOS poderes disciplinares.

Num adendo intitulado Nova.r Reflexões R~ferelJtesao Normal e aoPr/to/óoico,Canguilhem (2006) torna a normalidade como categoria

mais ampla, que engloba a saúde e o patológico como subcate-

gorias distintas. Nesse sentido, tanto saúde.quanto doença são

normalidade, na medida em que amba irnplicarn uma norma de

. I .endo a saúde uma norma de vida superior, e a doença urnaVI( a, S .

de vida inferior A saúde transcende a I erspecuva danorma .1 •.

adaptação, superando a obediência irrest rita ao modo de vida

estabelecido. Ela é mais do que isso, na medida em que se cons-

titui justamente pela transgressão de normas e pela transformação

das funções vitais.

Canguilhern sistematiza suas reAexões sobre conceitos. d.e

saúde numa conferência pouco conhecida, ministrada na Uni-

versidade de Estrasburgo em 1988 e publicada em edição nume-

rada de tiragem reduzida (Canguilhern, 1990). Ness trabalho,

apé s br ve análise etimológica, remontando às ideias hipocráticas,

observa que, ao long da história, a saúde foi tratada orno se

não pudesse s r apreendida p la razão ,por i s , não pert n-

cess ao ampo cieruíf o. Canguilh rn analisa I arti ularm ruea obra de Kant que, como vimos, teria fundam ntaclo a posição

22 ]

I 23

Page 6: O que é saúde

24] _

de que a saúde é um objeto fora do campo do saber e que, poresse motivo, nunca poderia ser um conceilo científico, mas simuma noção vulgar, popular, ao alcance de todos.

A ideia de que a saúde é algo individual, privado, singular esubjetivo tem sido recentemente defendida pelo filÓsofo alemão

Ilans-Georg Gadamer, um dos principais expoentes da herme-

nêutica contemporânea. Segundo esse autor, o mistério da saúde

encontra-se na sua interioridade radical, em seu caráter rigorosa-

mente púvado (1\Jmeida-hJho, 2001). 1\ saúde não se revela àsoutras pessoas nem se abre a instrumentos de medida, com outros

gradientes biológicos. Por esse motivo, não faz sentido pensar

em uma distinção entre saúde e enfermidade. Trata-se de uma

questão que diz respeito somente à pessoa que está se sentindo

enferma e que, por não poder mais lidar com as demandas da

vida ou com os temores da morte, decide ir ao médico. 1\ con-clusão de Gadamer é singela: por seu caráter privado, pessoal,raeucalmente subjetivo, a saúde não constituj questão filosóficae nunca poderá ser reduzida a objeto da ciência.

É certo (lue a perspectiva fenomenológica gadameriana emdefesa da aúde privada, inerente, enigmática, radicalmente sub-jctiva, justificaria considcrar a inviabilidade de uma abordagemcientífica da saúdc. Enu'ctanto, identifico o paradoxo de que uma

das principais proposições ele Gadamer resulm crucial para o

avanço de uma formulação alternativa do objeto científico dasaúde, Apoiando-se, como lhe é característico, num argumento

etimológico, defende a idéia de que a saúde é inapelavelmente

totalizante porque o seu conceito indica diretamente integralida_de u to t-'1]jdade. Por essa via, como v remos adjante, a noçãogadameriana cio 'enigma da saúd 'termina por abrir aminho auma abordag !TI h lí rica do conceito d saúde,

. . I saúde é umalaria com a ideia ( e que aCangujlhem concorc ( c longe do alcance

' fi ' medida em C.lue passa .queslão íilosó rca na J aparelhos da ciência, pOlS se

tos protoco os e ~'IIdos instrumen " .. d (C 110& Almeida-Fi 10,. - ondiciona a oe 1define como livre e nao c, , b " " sem com ela se con-

o "de filosófica reco rtrra,1999), Essa sau '. bi ti a Trata-se nesse. di . I 1 privada e su Je v .fundir, a saúde in IVJ<.ua '. e emerge na relação práxi-

da saúde sem conceito, gu 1caso c um , '. lidada exclusivamente pe ollédico-paclente, va c _

ca do encont ro I . . b _ I' ico Se atribui a missão. . seu médico. O sa Ct c m _sujcuo doente c . , " lc proteçao dessa. . ologia e uma pratica (de aplicar uma tccn ) .

'de subjetiva individual. d ' Isau., _ , lusão a sauc et Canguilhern (1990) opoc-se a exErurctan 0, »« . . I posição

U . '[i o antccipanc o uma1 . ] ) campo crenn IC , licomo o )Jcto c idera or e a saúde se rea za

A' '1 ( damer Ele consl era gu . .antagornca a c.e .a ( '. . . a relação do indi-

,. na história da VIda do sujeito e n 'd00 genotJpo, ( ,. noti que a idéia de uma sau. daí o 1110t1'VO porvíduo com o meio, ( rd orno objeto científico,- , liz tomar a sau( e cfilosófica nao conu ac , clc saú le individual, saúde

fi I ' (j compreen e saucEnquanto saúde 1 oso rca . salubridade que se

' d rblica ou seja uma ccientífica será a sau c pu , ' 'b' ] d Com base nesse

• - à rdeia de mor 1C a e. ~constitui em oposlçao a (_. _ ora apenas a saúde in-

'1 filosófica nao 111C01pargumento, a sauc. e, 1 to reconhecivel como

bérn o seu comp ernen ,dividual, mas tam e, blici da (ou melhor ainda,

'bli melhor pu cizauma saúde pu ca, ou , d ' de coletiva (paim &

liti d) q.ue 00 Brasil chamamos e saupo nza a , .Almeida-Pilho, 2000).

QUESTÕES DE SAQDE

'I digna um con-. e o termo sauc e es c't lo afirmei quN stc capl U.'. " íilosófic , tanto quantoceito de grande Interesse científ o .

[ 25

Page 7: O que é saúde

noções do discurso comum, centrais para o imaginário socialcontemporâneo. A saúde constitui um objeto complexo, referen-ciado por meio de concei10s (pela Linguagem comum c pela filo-sofia do conhecimento), apreensivel empiricamente (pelas ciênciasbiológicas e, em particular, pelas ciências clínicas), analisável (noplano lógico, matemático e probabilístico, pela epidemiologia) eperceptivel por seus efeitos sobre as condições de vida dos su-jeitos (pelas ciências sociais e humanas).

Além disso, argumentei que se trata de uma questão concei-tual de grande importância que nos remete a uma série deperguntas sobre esse lema/problema. Por um lado, é precisopropriamerlle perguntar sobre natureza e propriedades do Con-ceito de saúde, em si, como objeto de conhecimento e comooperador de transformações 00 mundo e na vida dos sujeitosque nele habitam. Eis aí uma questão fundamental: será a saúdeuma coisa? Mas o que é uma 'coisa'? Um aLgocom materialidade,tangível, mensurável? Uma existência sensível (no sentido de capazd ativar nosso aparato sensorial)? Um ente provido de concre-tude? (Não esqueçamos que, por muit o tempo, falava-se de'entidade mórbida' para designar quadros de doença, problemasde saúde ou fenômenos COH latos).

Por outro lado, é preciso questionar o sentido e o lugar daspráticas pessoais, institucionais e sociais que, de modo articula-do, conformam os espaços em que a saúde se constitui. Será asaúde um campo cultural? Campo cientifico, campo de saberes,campo de práticas sociai ? E que natureza, modalidades e con-dições de existência distinguem tal práticas de tantas rão di-ver as práticas da vida humana em so idade? N sse caso, de-signar atos d proteçã ,cuidado e prol ngamento da vida ornoervíços de saúd seria apenas uma metonímia?

26 ]

. _ . f cetas do conceito saúde,,. dimensões ou aEm suma, varras .: . d distintasepresentauvos eid liversos autores, r

reconheCI as por c _ t deste nosso debate:. ompoem a pau aescolas de pensamento, c

, . fato atributo, função orgânica, esta-1. Saúde como fenomeo~, _' . 1 d finido n gativamente

. ivid 1 situaçao SOCla, e 1do viralindivi ua ou . id le ou positivamente

A • d I enças e JncapacJ ac ,como ausencia e c o id I ssidades e demandas.li I d apacJ ac es nececomo funciona l( a es, c ,

_ I 1 odução simbó-'t .. construçao cu tura , pr2. Saúde como meta o~a,. , 'ica estruturant"e da visão delica ou representaçao ideológ ,

d le sociedades concretas.mun o CI

" - I t do de saúde, indicado-lid . avaliação c o es a3 Saúde como rnec J a,. . '1 de risco com-. , '. idemiológicos, ana ogos ,

rcs demograficos e ep .. de salubridade ou. 10 com estimadores economctrtcospeunc

carga de doença. "

caso tanto na forma de procedimen-4. Saúde como valor; nesse , leziti dos indevidamente

. ulados e egltlma, "tos, serviços e atos reg . "a de direito SOCIal," mercadoria, quanto n, . b I

apropriados como .te da cidadania glo a" rblico ou bem comum, parserviço pu

conrernporânea.

. d sociais de cuidado e' " . conjunto e atos I5. Saúde como praXls, A' d 'de e qualidade c e.d d e carencias e sau

atenção a necessi a es b ampos de saberes ec d em campos e su c dvida, conrorrna as 1 d perado em setores e' . . -" " almente regu a os, o ".

praticas insutucion des soci is e insritccionats.de mercados em re es SOCla.governo c ,

_ Sl livro cada um'1 que compoem ,Ao longo dos capltu os . . entado e dis utido,

. .: ucessrvamcnte apredesses concertos sei a s I ando suas nuances.

di .d de de formas e rea çdestacando sua rverst a . _ d concepção holística

I . proposlçao e umaPr ten lo cone uir com a d e e trututasdiv s fac las mo osda saúde, integradora das rversa ,

[ 27

Page 8: O que é saúde

conceituais, respeitosa da complexidade dos f ,, enomenos, eventose processos da saude-doença-cuidado nos did " . c . seus versos pJanose exrstencia, do biomolecular ao ecossociaJ.

2 SAÚDE COMO FENÔMENO

28 J

Concepçôes de saúd , bem sabemos, podem indiciar fenô-menos ou entidades de interesse científico. Desse ponto de vista,a saúde pode er conceituada como fato, evento, estado, situação,condição ou processo. Independentemente da modalidade epis-temológica assumida pelo conceito, saúde como fenômeno podeser entendida tanto em t rrnos da positividade de sua existênciaquanto em relação aos níveis de sua referência como objeto deestudo.

Com base 00 primeiro aspecto, saúde tem sido definida ne-gativamente OLl positivarn nte. Na concepção negativa, o termosaúde implica mera ausência de doenças, riscos, agravos e inca-pacidades. Na vertente positiva, saúde pode denotar desempenho,funcionalidades, capacidades e percepções.

No que se refere ao segundo recorte, que compreende níveisde referência ou planos de existência, fenômenos de saúdeocorrem em níveis coletivos (populacional ou social) e indivi-duais (subjetivo ou clínico). No primeiro nível, em âmbito co-letivo ou agregado, conceitos de saúde têm sido postulados comoestado, situação ou condição atribuída a grupos ou populaçõeshumanas, em espaços geográfica ou politicamente definidos,ecologicamente estruturado e socialm nt 1 terminados. Nes-sa acepção, medidas e indicadores de saúde têm sid desenvol-vi los e apli ados, parucularrn nte nos caml s disciplinares da

[ 29

Page 9: O que é saúde

epidemi~l(~gia e da economia da saúde, com base em referen ia!

metodologJco numérico ou estaúslico. Tal vertente será trar d' 1 a ano capltu o seguinte.

Neste capítulo, pretendo analisar o segundo nível ou plad •. 00~ ocorren~la, saúde em âmbito individual ou singular. Nesse

ruvel, concertos de saúde têm sido considerados como rcfe "" . 11 len-

era a capaCldade, ao estado ou à condição individual n. , uma

pel~specuva predominantemente fisiopatológica que se situa

~als precisamente, nos subcampos do campo científico d:bJologla humana N ~ .

" essa vertente, o termo tem sido relacionadoa uma, ou a mais de uma das seguínres ideias: 1) c _1 -' . runçao regu-ada ou padrao normal de adaptação bioecológica; 2) estado

r,es~lIa~t~ d~ manute~ção ou do restabelecimento de um equi.ll~no dJnamlco orgal11smo-ambiente; 3) controle ou neutraliza-

çao de agentes, estímulos e processos patológicos' 4) co d' _" n Iça0

res~ltante da correção de defeito, lesão, falta ou déficit em or-garusmos vivos.

SAÚDE E EQUI LÍ BRIO

. A mais anti~a teoria naturalista sobre sofrimento, doença,

vida e ~~rte, alnda vrgenre, atribuída a Hipócrates, mítico paida medi ema toma as' d d " ,

, ,.' au e como esta o de equJlIbno vital. Osh~pocraucos consid ravam o homem como um sistema orga-

ruzado e definiam a doença como uma desorganização desse

estado. Compilada no orpes I-Jipocratims, coletânea de tomos

s~bre saúde, doença terapêutica da Escola de Cós, essa dou-rrrna pOstulava a existê . d h '

ncra e quatro umores constituintesdo c.orpo:, ~ile amarela, bile negra, Aeuma e sangue. No m de-lo hJpocratJco, a saúde era iefinida orno !)erCel'to

li quilíbrio

entre os humores e desses com os quatro elementos consu-

tuintes do mundo: ar, fogo, terra e água. O tomo intitulado''Ares, águas, lugares" abordava os fatores ambientais ligados

à saúde e à doença, antecipando um conceito ecológico de

saúde-eo fermidade.

A metáfora da saúde como equilíbrio e da doença como des-compensação persiste em diferentes cosmologias, Nas culturas

asiáticas, as noções de saúde e de doença predominantes ainda

hoje conservam cJ essencial das antigas tradições hipocráLica e

galênica da medicina, Ou seja, n ssas culturas acredita-se em

forças vitais que animam o corpo: quando essas forças operam

de forma harmoniosa, há saúde; caso contrário, sobrevém a

doença. As medidas terapêuticas desses sistemas médicos tradi-

cionais (ventosas, sangrias, acupuntura, ioga) têm por objetivo

restaurar fluxo normal de energia no corpo doente e recup raro equilíbrio na sua relação com o ambiente.

As noções de saúde como harmonia entre ambient s e hu-

mores há muito tempo encontram-se presentes nas teorias mé-

dicas clássicas, dos precursores árabes Avicena e Averróis, nos

séculos X e Xl, aos fundadores da clínica moderna Thornas

ydenham, na Inglaterra, e Xavier Bichat, na França, nos séculos

XVII e XVllI. Entretanto, essa concepção ganha força particu-

lar e embasamento científico no século XIX, com o advento da

medicina experimental de Claude Bernard, quando surgem as

ideias de mei interior e principio de autorregulação. om a 6-

si logia sistêrnica de Bernard, o tema d equilíbrio ganhou novas

formas e forças na rn delagem da bom stase e na r definiçâ

do con eito de equilíbrio hidr letrolítico m bases biornolecu-lares (Coelho & Almeida- -<ilho, 1999).

(I

I

[ 3

Page 10: O que é saúde

Na perspectiva darwiniana da evolução biológica, principalavanço das ciências da vida no século XIX, a doença infeccio_sa significa um acidente na competição entre duas espécies.Num período de tempo suficientemente longo, a espécie hu-mana e os microrganismos patogênicos tendem a adaptar-semutuamente. O patógeno passa gradualmente ela situação deparasita à de comensal. As relações agente-hospedeiro atraves-sam etapas que se iniciam com grandes flutuações epidêmicasvariando ciclicamente em ondas cuja intensidade vai se fazend(~'decrescente até transformar-se em endemia. A par de modifi-

cações quantitativas, ocorrem importantes modificações quali-tativas quanto à gravidade do quadro clínico e à letalidadc. Nocomeço, a enfermidade é grave e mortal, I ara ir se tornandogradualmenLe mais benigna à medida que uma adaptação mútuae processa.

Também as chamadas doenças crônicas degenerativas J odemser interpretadas numa abordagem biológica evolutiva. A ocor-rência de patologias pode significar o preço pago pela espéciehumana em sua ada] tação a novas condições ambientais. Modi-ficações em dieta podem ser responsabilizadas por quadros~eta~ólicos; novas substâncias de alto potencial alergênico,sintetizadas pela indústria e lançadas no ambiente, podem alterarsignificativamente o sistema imunológico humano. A transiçãod .mográfica implica aumento da expectativa de vida, o que per-mite o aparecimento de processos neoplásicos degenerativos. Al~udança cultural provocada pela modernização e a adaptação àvida urbana causam s dentarismo e estr ss ,provocand sobre-carga nsiopatol' gica para o sistema circulatório e aum ntando oris o de transt rnos mentais.

32 ]

A compreensão da doença como excesso ou falta é rnars

evidente quando se trata de sintomas resultantes da exacerbaçãoOU da redução das funções normais, designados por prefixosgreco-latinos referem s a excesso ou falta, como hipergLicem.ia ehipoglicernia, hipertensão e hipoLensão. 'I 'ais abordagens articu-la1'11-seem modelos dinâmicos de paLologia, nos quais a ideia decompensação não se resume a suprimento de carências, masimplica eSLratégiascliagnósticas e terapêuticas de 're-equilibração'dos processos metabólicos e sistêmicos. /\_despeito das diferen-t s interpretações do (.jue seria o conceito de 'equilíbrio" noâmbito da saúd , o que possibilita o tratam nto c o restabeleci-menro de pacientes com doenças crônica não infecciosas, comotranstornos mentais, diabetes e hipertensão, são as noções desaúde como equilíbrio, doença como descompensação e cura

como sinônimo de estabilização.Urna crítica rigorosa do conceito de saúde como quilibrio e

harmonia foi desenvolvida por Christoph r Boorse, filósofonorLe-americano, estudioso da biologia e das ciências biomédicas(Almeida-Filho & jucá, 2002). Em vários artigos publicados emtrês décadas, 1300rse revisa metodicamente abordagens dos con-ceitos de saúde ou de doença como: 1) valor; 2) normalidadeestatística; 3) ausência d dor, sofrimento ou desconforto; 4)ausência de incapacidade; 5) adaptação e equilibrio. Preliminar-mente, assinala que a detecção de lesões e d processos patoló-gicos sem sinais e sintomas, bem como a rrência de dor edesconfoft m processos não paioló icos como parto, mens-truação d nticão, limita a validade do conceito d saúde cornoquadro línico invertido. N sse sentido, reconh ce que o bem--estar e a plena capacidad dos sadi s onrrastarn com a incapa-

I 33

Page 11: O que é saúde

cidade, a dor e () sofrimento dos doentes. No entanto, algumas

doenças não provocam qualquer tipo de incapacidade, e cenas

incapacidades são Fisiologicamente típicas de etapas cio ciclo vital

normal. Finalrnerue, Boorse considera abordagens que articulam

o conceito de saúde com as noções biológicas de seleção, adap-

tação e meio ambiente limitadas, uma vez que existem variações

adaptativas capazes de produzir patogênese. Teorias cle saúde

baseadas no conceito fisiológico de homeostase e na noção eco-

lógica de equilíbrio são refuladas Com base em contraexemplos

de doenças (surdez, paralisia, esterilidade) que não constituemquebra de equilíbrio ou desregulação.

SAÚDE COMO FUNÇÃO

Boorse detalha seu modelo teórico num ensaio intitulado

"Health as a th oretical conc pt " (aJitld Almeida Filho & Jucá,

2002), em que propõe uma P rspectiva íuncionalista fundada

sobre os conceitos de classe de referência e desenho da espécie:

proposições de função referem-se a caractcrrsucas da espécie

ou população, nun a a indivíduos. Daí sua oncepção chamar-

-se também estatística: espécies ou populações admitem média

estatística para conformar seus 'tipos- ideais'. Boor e adverte

também para o [ato de que a categoria não é inconsistente com

a biologia evolucionista e, para justificar o conceito de classes

de referência, consid ra ainda difer nças de sexo e idade irura-

specíficas. Finalmente, propõe o cone ito de des nho da e _

pécie: uniformidade la organização funcional Ou "hi rarquia

típica de sistemas funcionais entr laçados que apoiam a vida

d organismos daquele til o" (Boorse CI/mrl Almeiua-Filho &Jucá, 2002: 882).

34 ]

o filósofo none americano considera qu funções biológicas

operam visando a objetivos determinados - basicamente, sobre-

vivência e reprodução. A queda na eficiência de uma dessas

funções biológi as, completa ou parcialment , s ria determinan-

te de processos patológicos. Para definir o que é esperado de uma

função biológica, Boorse recorre à estatística, segundo a qual

seria possível estabelecer critérios de funcionamento esperados

para uma determinada classe, compreendida como grupo natural

de organismos com desenho funcional uniforme, reralrnente

delimitado pela cspé cic e pelo sexo. Para ele, organislllos orien-

tam- e teleologicamente e são capazes de se ajustar a mudanças

ambienlais para ai ançar uma meta 'programada'. nn(irn, restrin-

ge o escopo da sua análise: diferentes subcarnpos da biologia

reconhecem distintas metas e funções, mas somente o subcampo

da Iisiologia, cujas funções de interesse são sobrevivência indivi-dual e reprodução, tem relevância para a saúde.

Boorse define 'funcionamento normal' pela referência ao

lermo 'eficiência', novamente tornan lo o âmbito da população

como base para sua definição ele 'normalidade estatística'. Aplica

esse conslt:uto tanto para doenças que se manifestam como en-

fermidade quanlo para aquelas condiçõ s latentes ou assinrorná-

úcas (Almeida-Filho & J ucá, 2002). A fim de poder usar o con-

ceito de função para definir saúde, propõe como alternativa o

conceito de funcionamento normal capaz d tornar o funciona-

mento orgâni o m esta lo ou condição d nor malidad (funcio-

nal). Como ilustração, identifica f nA rneno paiológi os qu

propô d scartar corno anomalias t óricas: 1) en fermidac1 s es

trururais - dextrocardia, deformidad menores etc. - não pode-

riam er id ntifi ada om doença porque não representam

I 35

Page 12: O que é saúde

'problemas de saúde'; 2) enfermidades universais - cárie, ateros-

clerose etc. - também não deveriam ser assim classificadas porquetransgridem o critério bioestatístico de saúde.

finalmente, de modo intrigante ou paradoxal, Boorse termi-

na por definir doença como ausência de saúde, agregando co-

mentários quase irônicos sobre conceitos positivos de saúde.

Corretamente associa-os às propostas da medicina preventiva e

da saúde comunitária e, mais corretamente ainda, descobre que

isso ocorre mais no plano retórico e no plano das práticas, porque

nessas tendências ou movimentos o que ,se busca prevenir é adoença (Almeida-Pilho &Jucá, 2002).

Vejamos passo a passo o raciocínio-base da perspectivaboorseana:

1. doença é um conceito teórico;

2. enfermidade constitui uma subclasse (prática) do conceito;

3. portanto, a saúde terá duas definições, ambas negaúvas:

a) oposto de doença (saúde teórica);

b) oposto de enfermidade (saúde prática).

Em sua ofensiva contra a positividade elo conceito ele saúde,

Boorse critica propostas de equivalência entre saúde e 'vida boa'

(no sentido do ideal platônico) caracterizando-as como ingênuas,

expressão de 'vã esperança' de tratar valores pessoais e morais

com objetividade científica. Ele analisa três concepções de saúde

positiva, usando o ex rnplo da capacidade atlética como parâme-

tro extremo d potencial individual (indiIJidf/o/ pOlentiol), de po-l n ial da spécie (speaes potentiol) ele saúde radi almente defi-

n iela (tm/imited uien. of hoollb). Nesse aspecto, qu S' r fere às bases

36 J

lógicas de conceitos de saúde como excelência física, mental ou

moral, Boorse identifica um problema de consistência: "trata-se

de uma tendência a condensar em um único lermo uma noção

de valor neutro, liberdade de doença, e a mais controversa de

todas as prescrições - a receita para um ser humano ideal" (Bo-

orse apud Almeida-Filho & Jucá, 2002: 882).

Vinte anos após a publicação de seus primeiros trabalhos,

revisitando suas r flexões a fim de produzir uma réplica a seus

críticos, Boorse (1997) apresenta um conceito de saúde que me

parece eficaz no sentido de congregar as noções apresentadas

esparsamente em suas publicações:

Saúde teórica é a ausência de doença; (...) então a classificaçãode estados humanos como saudáveis ou doentes é uma ques-tão objetiva, a ser extraída dos fatos biológicos da naturezasem necessidade de juizos de valor. Designemos esta posiçãogeral como naturalismo - o oposto do normativismo, a visãode que juizos de saúde são ou incluem julgamentos de valor.(Boorse, 1997: 4)

Neste trecho, encontramos resumidos os elementos essenciais

da teoria boorseana de saúde-doença, que seriam:

1. Saúde como objeto teóri o.

2. Naturalismo ou objetividade na distinção saúde e doença.

3. Conceito de doença relacionado ao cumprimento deficientede uma função biológica comprometida porque um dos com-ponente dessa função encontra-se [ora ela normalidade es-tatisticarnenre d fluida.

4. Saúde OJnO ausência de doença.

[ 37

Page 13: O que é saúde

Boorse (1997) autocrit icamente admitiu a necessidade de

superar uma concepção negativo-evolurjva (com base no gra-

diente disfunç~o-patologia-enfermidade) da saúde, propondo em

seu lugar a noção de 'graus de saúde' - o que implica uma defi-

nição exlremamente restrita de saúde positiva como grau máximo

de saúde I ossível, em contraponto a qualquer redução da função

normal ótima para a classe de referência. Normalidade, nessa

concepção, teria três níveis de especificação: normal teórico,

norma) diagnóstico e normal terapêutico. O OpOSf"O lógi o do

conceito de patologia seria normalidade teórica (ou conceitual).

Para os outros níveis de normalidade, caberiam os respectivos

antagonistas: anormal diagnóstico e anormal terapêutico. Final-

menre, Boorse considera a situações extremas de illne.r.r (contra-posta a JJJeflness) e de morte-vida.

As relações de pertinência e de oposição estruturantes desseinteressante esquema encontram-se representadas no Quadro 1.

Quadro 1 - Modelo dos graus de saúde de Boorse

_ Saúde subótima J Saúde positiva _

_ _!atologia _J Normalidade teórica

Anormalidade diagnosticad~ Normalidade diagnosticada

Anorma~e terapêutica J Normalidade terapêutica

Doença 1 ~m __-e_S_la_t_·-------1VidaMorte

Fonte: Boorse, 1997.

A P rspectiva boorseana pr rend 'oferecer uma anális isen-

ta de valor ' orno ba e para um conceito t óri o de saúde, no

mesmo registro da antinomia biológi a de vida-morte. Como38 ]

eixo de est ruturação de uma teoria da saúde, propõe usar o termo

I, no lugar de 'saúde' e patológico em subsuruição a'norma )'doença' - porque doença constituiria noção tendencialmente

bi a ou con fusa dada a sua grande abrangência. O termoam Jgu . , ..'patológico' seria mais precis~ por sua c~r~elação com as l~eJasde função biológica e normalidade stan uca. Dessa maneira, a

ectiva boorseana reafirma uma relação linear de implicaçãopersp ~ ." _entre quatro conceitos I ásicos: 'classe de referência', função

I' 'patologia' 'saúde' A classe de referência consiste nonorma , ,"universo de membros de uma espécie biológica, do mesmo sexo

e faixa etária,

A Punção normal se define pela contribuição individual, 'es-

taListicamenle típica' em relação à classe de referência, para a

sobrevivência e a reprodução da espécie. Patologia: redução da

'eficiência típica' implicada na função normal. Saúde significa

simplesmente ausência de patologia. Sendo o conceito de 'con-

dição patológica' formulado nesses termo, aparentemente jus-

tifica-se no plano lógico uma definição de saúd como ausência

de doença. Assim, Boorse termina indicando gue, além da ine-

xistência de patologia, o conceito de saúde poderá implicar

simplesmente normalidade, sempre no sentid de ausência de

condições patológicas (Almeida-Pilho & Jucá, 2002).

O conceito de saúde teórica de Boorse permite estabelecer,

de modo incondicional, um conceito negativo de saúde absoluta.

Ademais, restringe seu enfoque ao niv ] individual, refere-se ao

nível sistêrnico ubindividual apena como subsidio à teoria da

função e ao nível supraindividual som nte quando trata brev -

mente do lema da aúde da spécie como condi ionante da

evolução biológica (Almeida-Filho & Jucá, 2002).

[ 39

Page 14: O que é saúde

SAÚDE COMO AUSÊNCIA DE DOENÇA

A definição de saúde elaborada por Boorse chama a a.tençãopor sua insistente negatividade. Em toda a sua obra, uma defini-ção positiva de saúde é propositadamente evitada, embora oautor reconheça a xist A ncia, na atualidade, de um movimentoforte no sentido da prevenção e da promoção da saúde e daqualidade de vida, inclusive em níveis mais coletivos. Boorsejustifica seu afastamento de uma concepção positiva de saúdepelo fato de que tal abordagem apresentaria sérias inconsistências.

Em primeiro lugar, argumenta que qualquer concepção po-sitiva trata de modo substaruivista a saúde e, mais ainda, a eleva-ria a um plano ideal, insuportável para um naturalista convicto.Em segundo lugar, restaria uma dificuldade em der rrninar umponto ao qual a saúde deveria ser promovida dada a ausência dequalquer meta fixa de perfeita saúde para se alcançar, ou mesmode urna única direção onde se identificar um sentido para a saú-

d (Almeida-Pilho & Jucá, 2002). Por último, como desdobra-mento do segundo ponto, seria necessário leger os objetivospara os quais o homem saudável deveria convergir, implicandoescolhas valorativas.

No geral da ciência e no particular da biomedicina, defenso-res típicos do naturalismo tenderiam a se filiar a uma tradiçãoernpirista e não aceitariam d bom grado o primado da teoria.Ao se autodesignar como naturalista, Boorse cria a expectativade que a clínica médica seria o local privilegiado de construçãole conceitos médicos como doença e enfermidade. Entretanto,

r jeita a experiência clíni a como r ferência teórica viável rea-firma com veern A ncia que somente a bi logia e a pat logia podemser admitidas como base teórica da saúde-doença.

40 ]

Enfim, Boorse insiste na proposta de uma teoria negativa dard a qual o fenômeno da saúde poderia ser definido comosau e, n _

A • de doença (Almeida-Pilho &Jucá, 2002). Nao obstante,ausencJa . _ , 'A •

reafirma sua conceituação da doença como reduçao da e~C1en~latípica' implicada na função normal: ~o11Siderando a .aruculaçao

" de tais noções surge uma dúvida: na perspectiva boorse-teorlca . ',' .é a saúde que se encontra negativamente definida ou, naana, . _

realidade, a doença é que seria assim apresentada? Sena entao aA • d ' 1 ;ldoença ausencra e sauue:

Ao contrário da sua postulação naturalista, Boorse nunca abor-da descritivamente o que é doença, pois rejeita a metodologiasem.iolÓgicada clínica. Em sua obra, define doença como o es-tado interno do organ.ismo resultante do funcionamento subnor-mal de alguns dos seus órgãos ou subsistemas. Algumas dessasdoenças podem evoluir para enfermidade caso provoquem limi-tações ou incapacidades qlle preencham os seguintes critérios:

1. Sejam indesejáveis para o sujeito.

2. Sejam consideradas elegíveis para intervenções.

3. onstiruam justificativa para comportamentos SOClaJSnor-malmente reprováveis.

Apesar da clara inspiração funcionalista (numa linhagem durkhei-miaria inadvertida), não há, na proposta original de Boorse, umaposição sp cial para o termo enfermidade - siceness. ~a teoriaboorseana, moléstia - iliness-: constitui um mero subconjunto daord m das doenças, aquelas que produzem con equências psico-lógicas e sociais para o indivíduo.

Por conseguinte, Boorse vê-se D rçado a definir saúde nostermos funcionais (ou 'bioestatísti os') la fisi logia onde doença

[ 41

Page 15: O que é saúde

/I

paradoxalmente é vista como ausência de saúde. Emerge do

contraponto lógico deste argumento a forrnulaçâo de que a

doença pode ser definida como não cumprimento (lotai ou par-

cial) de função biológica, compromet ida porc]ue um de seus

componentes encontra-se fora da normalidade 'bioestatistica_I

mente' definida. Afinal, na teoria biológica de função (e seu

desdobramentos), saúde pode ser entendida como eficiência

funcional, enquanto doença ou parologia se define por faJha,

d feito, desvio ou déficit ele função, sendo, portanto, rigorosa-mente, 'ausência de normalidade'.

Porém, a concepção de doença corno ausência de saúde não

se restringe a modelos bioJógicos ou naturalistas de patoJogia.

'raleou Parsons, o famoso teórico social norte-americano, cuja

obra concede aos fenômenos da saúde notável centralidade para

a compreensão do sistema social, havia definido illness como

"estado de transtorno no funcionamento normal do indivíduo

humano total, incluindo tanto o organismo como um sistema

biológico quanto o seu ajustamento pessoal e social" (Parsonsapttd Almeida-Filho, 2001: 754).

A teoria parsoniana do I apel de doente (sick role) con utui a

primeira referên ia onceitual, robusta e consistente, para defi-

niçõe de enfermidade - siceness - corno componen te ocictal do

objeto complexo doença (o qu veremos adiante). A teoria fun-

cionalista parsoniana serviu de matriz teórica para abordagens

da saúde individual como papel social,peiformance, funcionamen-

to, atividad e capacidade, entre outras, gLl foram P steriorrnen-

t cond nsada na concepção da saúde com bem-estar social,

cara terísri ca da retóri a corucmporân 'a sobre 'qualidade de vida'.

Ne s quadro, saúd impli a função so iaI, estad de apacidade

42 ]

ótima para desempenho efetivo de tarefas socialmente valoriza-

das. Curiosamentc, Parsons não destaca o termo disease na sua

teoria, utilizando os vocábulos illness e disorder mesrno quando

necessária a referência aos aspectos objetivos da doença (Alrnei-

da-fiJho, 2001).

A teoria Pórn-Nordcnfeld, desenvolvida como parte do es-

forço de justificativa econômica e filosófica do Estado de bem-

-estar social, propunha-se a recup [ar uma definição pragmática

da saúde mediarue a atualização e a retificação da abordagem

bioestatíst-i a de Boorse, num sentido claramente influenciado

pela perspectiva parsoniana. Numa formulação autodcfinida

como 'fenomenologia ela saúde', essa teoria estabelece distinção

ent re doença objetiva e doença subjetiva que, como corisequên-

cia lógica do continuto» saúde-doença, desemboca no conceito-

-espelho de 'saúde subjetiva'. A doença objetiva é definida pelo

potencial de capacidade funcional não atingido por causa da

doença, enquanto a saúde objetiva correspond ria ao efetivo

exercício dessa capacidade funcional. A moléstia (ou 'não-saúde')

subjetiva teria dois comi onentes: a consciência de doença (merebelie] or aiuareness tbat son/eone is ill- mera crença ou consciência

de: que alguém está doem ) e o sentimento de doença (se: qfmental states associated mith ilhtess - conjunto de estados mentais

as ociados à doença). Dessa maneira, 1 ostula Nordenfeld (1995),

uma pessoa P é ou está sub] tivamente sadia se e somente se:

1. Não se encontra subjetivamente enferma.

2. Acr dita ou sabe c.lueestá sadia.

3. Não xp rirnerua um estado rn nral asso iado a alguma molés tia obj uva porventura exi t nt .

l 43

Page 16: O que é saúde

Cabe Desse momento um balanço parcial dessa questão. Ini-cialmente, deve-se assinalar que a quase totalidade dos autores eescolas cobertos na presente seção apreseru arn propostas mar-cadas por uma referência predominantemente biológica. Daídecorrem, quase que inevitavelmente, teorias não da saúde, mas

Idos processos patológicos e seus correlatos, em que saúde évista necessariamente como ausência de doença. Como conse-quência, observa-se uma ênfase nos níveis subinclividual e indi-vidual, em que efetivamente operam os processos patológicos evivenciais. Essa cadeia lógica de omissões, que implica foco re-duzido sobre conceito de doença e papel de doente, impossibi-lita uma conceituação coletiva da saúde (a não ser, é claro, comosomatório das ausências individuais de doença). Trata-se de fla-grante ironia: apesar da abertura parsoniana, a sociologia médicanão se mostrou capaz de construir uma teoria social da saúdecapaz de superar o modelo biomédico dominante.

A insistência desses autores em postular uma 'medicina teó-rica' parece contraditória com uma autêntica postura 'naturalista'.Na perspectiva médica clássica, o naturalismo encontra-se inti-mamente vinculado à atividade clínica (Good, 1994). O olhar eo toque clínico, ao agirem sobre a realidade corpórea, decifrariamo processos patológicos, traçando uma diferenciação entre es-tados de doença e estados saudáveis. empre no referencial donaturalismo, recentemente cresce o movimento denominado'medicina baseada em evidências', que desloca a fonte de refe-rência da eficácia da biornedicina da experiência clínica para ademonstração experimcntal.

Uma anotação c mplementar: de acordo com Canguilhem(J 990), saúde como perfeita ausência de do nça situa- e no

44 ]

ela anormalidade. O limiar entre saúde e doença é singu-campo .. d ue influenciado por planos que transcendem o estn-lar, ain a q. , .

re individual como o cultural e o socioeconorruco. Emtamen .. , "I . in stância a inf uência desses contextos da-se no nívelú uma c , • ,

. di id al Entretanto tal influência não determinaria diretarnen-111 Vl U . ~, , _

te resultados (saúde, vida, do rica, morte) dessa .111teraçao,namedida em que seus efeitos encontram-se subordinados a pr~-cessas normativos de padronização. Voltaremos a essa questaono capítulos seguintes.

PROCESSO SAÚDE-DoENÇA

o principal modelo processual dos [etlôtneno~ pat~16gicos,desenvolvido no seio das ciê ncias biorné dicas, [01 batizado demodelo de História Natural da Doença (HND). Nas palavras dosprincipais sisternatizadores desse modelo, denomina-se

história natural da doença ao conjunto de process s interativosque criam o estímulo patológico no meio ambiente, ou emqualquer outro lugar, passando pela resposta d? h~me~ aoestímulo até às alterações que levam a um defeito, invalidez,recuperação ou morte. (Leavell & lark, 1976: 7)

O modelo da 1 JND (Figura 2) abrange a determinação dedoenças em dois domínios (ou meios) mutuamente exc]~sivos,consecutivos e complementares: 'meio externo', em que intera-

, .. , e se desen-tuarn determinante e agentes, e meio Interno, m quvolve a doença. No 111 io ext rno (ou meio ambiente), desenvol-vem-se as etapas ncces árias à determinação da d ença. Dentreos clcrncnt s qu contribu m para os proccssos mórbid s ncssmeio, indu rn-s fatores ext riores de 'natureza física, bi lógicae sociopolítico-cultural. O meio interno seda Iocus no qual se

[ 45

Page 17: O que é saúde

p.roce~sa~ia, de forma progressiva, toda LIma série de modificaçõesbloqUlmlcas, fisiológi as e histológicas, próprias de urna deter_m.lOada enfermidade. Nesse meio aluam el rnentos de '. , ' carater1l1trInseco, fatores her dit.ários ou congênilOs, ausência ou abati_

mento das defesas especificas, alterações orgânicas consideradascomo consequência de doenças anteriores, entre outros.

hgura 2 _ O modelo de I j istória Natural da Doença

Período Patogenese--+-

B) VertenteC) Desenlace

Morte

_. InvalidezI•....---i~Tempo

Período de Cura

Patológica ª t-------+-lo .~ Sinais e SlIltomas"'õo ~.~ ~ HOrizonte Clínico~ ~

A) Vertente .E ~ Alterações BIoquímICas

Epidemiológica fi. FIsiológicas e Histológícas

Período Pré-Patogênese~ r--"---- I.Interação EstímulO-Suscetível

Hemoção de fatores ~

---)o- Tempo

-----. lempo

t---- ...•. Tempo

Ne.sse m,odelo, inclui-se a evolução dos processos paLOlógicosem dOISpenodos consecutúos que se articulam se omplemen-

tarn. Os períodos são: 'pré-patogênese', quando manifesta õespatológicas ainda não se manifestaram, e 'palOg'nese', m quepr c S os I atológi os já se encon I rarn a tivos.

46 ]

Fonte: adaptado de Leavcl c Clark, 1976.

A pré-palogênese compreende a evolução das inter-relaçôes

dinâmicas ent re condicionantes ecológicos e socioeconômico-

_culturais e condições intrínsecas do sujeito, até ° estabelecimen-

to de uma configuração de fatores propícia à instalação da

doença. Envolve interações entre elementos ou fatores que esti-

mulam o desencadeamento da doença no organismo sadio c

condições <"Juepermitem a existência desses [atores.

Na pré-patogênese, o conjunto resultante da estruturação

sinérgica das condições c influências indiretas _' proximais ou

distais - constitui ambiente gerador ela doença. Fatores que pro-

cluzem efeitos direto sobre as funções vitais elo ser vivo, pcrtur-

b~lncl()-as e assim produzindo doença, são denominados agentes

patogênicos. Tais agentes levam estímulos do meio ambiente ao

meio interno cio homem, operando como transmissores de uma

pré-patologia gerada e desenvolvida no ambiente. Por sua pre-

sença ou ausência, atuam também como iniciadores e mantene-

dores de uma patologia gue passará a existir no ser humano. Ao

se onsiderarem as condições ideais para que urna doença tenha

início num indivíduo suscetível, nesse modelo, nenhum agente

será por si só suficiente para desencadear o processo patológico.

A eclosão da doença depende da articulação de fatores contri-

buintes (ou determinantes parciais), de tal forma que se pode

pensar em uma configuração de mínima probabilidade ou míni-

mo risco; uma configuração de máxima probabilidade ou máximo

risco; e configurações intermediárias d risco variando entre os

dois extremos. Quanto mais estruturados for m os fatore de-

terrninan res, om maior força atuará o e rímu 10 patológico.

Quanto mais diver ificados forem tais determinam s.rnais am-

plexo será o I ro sso de determinação ela saúde das doença.

I 47

Page 18: O que é saúde

Nesse aspecto, determinantes da saúde podem ser biológicosou socioculturais. Os deterrninan tes biológicos em geral se clas-sificam como genéticos ou ambientais. Os determinantes socio.culturais podem ser econômicos, sociais propriamente ditos

I 'culturais e psicológjcos.

Determinantes biológicos fazem parte do ecossistema defi-nidor do meio externo onde atuam como agente etiológico, comoVetor biológico ou como reservatório. Por sua vez, algumas pa-tologias são determinadas por fatores biológicos do meio int mode natureza genética. Fatores genéticos det erminam ainda maiorou menor SLlSC tibilidade das pessoas quanto à aquisição eledoenças ou manutenção da saúde. Em siruaçôcs ecológicas des-favoráveis (algumas produzidas por fatores naturais, outrasproduzidas artificialmente pela ação do homem, algumas perma-nentes, outras contingentes), atuam fatores físicos, químicos ebiológicos do meio externo, que, por terem acesso ao meio in-terno de seres vivos, podem funcionar corno agentes patogên.icos.

Determinantes econômicos da saúde são poderosos. Grupossociais econornicamente privilegiados são menos sujeitos a váriostipos de doenças cuja incidência, em contrapartida, é acintosa-mente elevada em grupos social e economicamente desj rotegidos,Não somente pobreza ou privação determina problemas desaúde mediante precárias condições de vida ou pouco acesso aserviços de saúde; desigualdad s econômicas ou iniquidadessociais constituem importante fat r de risco para a maioria dasdoenças conhecidas. Também dei rrninanies socioculturais ex-,pressas como prec nceitos, hábitos alim mares, rendiccscomportamentos, são contribuintes para a determinação, a difu-são e a manutenção de doenças e para a adoçá ) de formas d

48 J

proteção e promoção da saúde em grupo humanos. Além disso,vários problemas de saúde são específicos de determinados gru-pos étnjco-culturais, como os transtornos mentais designadoscomo 'sLndromes ligadas à cultura', por exemplo.

Determinantes que atuam sobre o psiquismo humano, porsua presença ou ausência, são capazes de produzir estímulospatogênicos, assim como podem aumentar a resistência dos su-jeitos, constit uindo-se em fatores de proteção da saúde. A açãod sses [atores se exerce diretamente sobre o aparelho psíquico,por meio de r laçôes intcrsubjetivas, desencadeando alteraçõesmentais, ou indiretamente sobre o organismo, provocando trans-tornos psicossomáticos. Além disso, determinantes psicossociais,awando como estressores, podem comprometer o sistema imu-nológico, aumentando a suscetibil.idade a loenças orgâni as.Assim, falta de cuidados maternos na infância, carências afetivasde modo geral, comp Lição, agressividade, desemprego e isola-mento social em grandes centros urbanos são exemplos dessestipos de determinantes.

;\ estruturação de fatores determinantes da doença não cons-titui mero resultado de justaposição ou somatório de efeitos. Aassociação de fatores pod ser sinérgica,isto é, fatores articuladospodem aumentar o risco de doença mais do que faria a simplessoma de seus efeitos isolados. Os estados, situações ou condiçõesde saúde ou de doença resultam, portanto, da interação de umamultiplicidade de d terrninant s ec nórnicos, políticos, sociais,culturais, psicológicos, genéticos, bi lógi os, físicos e químicos,

• Ne e modelo processual, a ILND t rn seguimento com od senvolvimeruo d proc ssos I aiológicos no ser humano. Éo p .ríodo denominado patogênese. Ess stágio s rrucia com as

[ 49

Page 19: O que é saúde

I·primeiras alterações que agentes patogênicos provocam no su-jeito afetad . Seguem-se perturbações bioquímicas em nível ce-lular, que continuam como distúrbios na forma e função de órgãose sistemas, evoluindo para defeito permanente (ou sequela),

\

cronicidade, morte ou cura. Esse modelo considera quatro níveisde evolução da doença no período de paiogên se:

1. INTERAÇAoACENTI!-SUIEITO:nesta elapa, alguns fatores agempredispondo o organismo à ação subsequenre de outrosagentes parógenos.

2. AI;nmAçeI!S1·'ISIOPATOLÓCICi\S:embora não se percebam ma-nifestações línicas, nessa etapa já ocorrem alterações celula-res e bioguímicas, com lesões hisrológicas e anatômicas emnív I subclínico, percebidas mediante exames diagnósticosespeci ficamenie orientados.

3. ESTÁClO Cl.íNICO:quando urna massa críti a de alteraçõesFuncionais no organismo acometido transformam os sinaisiniciais da doença em sintomas. A doença se ncarninha entãoa um desfecho: evolui para a cronicidade, passa ao período decura ou progride para invalidez ou morte,

4. RONt_IDADE: a evolução clínica da doença pode conduzir odoente a um estado de cronicidade ou a um dado nível deincapacidade física por tempo variável. Pode também produ-zir lesões que serão, no futuro, limitantes do estado de saúdedo sujeito após a doença,

em dúvida, o modelo HND representa um grande avançoem relação ao modelo biomédico clássico, na medida em quereconh ce que estad de saúde ou de do nça implica proces-so d múltipla complexas determinações, A vantagem heu-risti a principal d s modelo consiste m dar n tido a s di fe-

50 ]

rentes métodos de prevenção e controle de doenças e problemas

de saúde.

REPENSANDO OS MODELOS

Para alcançar algum grau de eficácia explicativa, modelosteóricos de saúde doença não podem se limitar à causalidade dosprocessos patológicos. Necessitam, antes de tudo, ampliar-se (ouabrir-se) aos processos de promoção, proteção, manutenção erecuperação da saúde individual e coletiva.

Não obstante seu valor para a constituição de novas práticasde cuidado em saúde, urna avaliação geral desses modelos reve-la um enfoque necessariamente arbitrário, c1escrição apenasaproximada da realidade, sem pretensão nem capacidade defuncionar como reprodução esquemática dela. Deste ponto devista, esse modelos nada mais são gue matrizes ou quadros

gerais dentro dos quais múltiplas e diferentes enfermidades po-dem ser descritas e formalizadas reoricamerue. Em termos maispropriamente conceituais, podemos criticá-los em pelo menosdois aspectos fundamentais. Por um lado, a determinação elosfenômenos da saúde concretamente não se restringe à causali-dade das patologia (patogênese). Por outro, meras ferramentaheurísticas como de fato são, modelos não podem reproduzir arealidade concreta como tal. Assim, objetos de conhecimento ed intervenção como saúde e enfermidad não constituem entestangíveis portadores ele ontologia própria; exp iativas d qui-lfbrio e ordem não são princípios reguladores de um mundoIn rto e aórico; a 'história natural das d enças' pode ser histó-rica, mas d' maneira alguma é natural.

[ 51

Page 20: O que é saúde

Enfim, em todas as etapas e para todos os elementos da pro-blemática da saúde-doença como questão científica e tecnoJógi-a, ressalta o seu caráter histórico e poli tico. Portanto.rserá cer-

tamente mais adequado se falar em 'história social da saúde', emprocessos da saúde-doença-cuidado e em objeto complexo dasaúde, visando a estend r o escopo de estudo dos fenômenosrelativos a saúde, ação e vida, assim como sofrimento, dor, afliçõese morte de seres humanos, transcendendo o âmbito biológicorestrito para uma abordagem dos sistemas ecossociais e culturais.

52 ]

3 SAÚDE COMO MEDIDA

Neste capítulo, analisarei mais detidamente estratégias demedida da saúd . Em primeiro lugar, discutirei limites e l??ssi-hilidades de tratamento quantitativo dos fenômenos da saúdeno plano individual e singular que, em nossa cultura científica,praticamente tem sido considerado como território privilegiadoou privativo de abordagens clinicas. Em segundo lugar, proponhoavaliar o potencial de uma das vertentes de quantificação dasaúde na sociedade de maior expressão atualmente, a epidernio-

logia, para estimar probabilidades condicionais de ocorrêncianão de doenças, mas de saúde. Em terceiro lugar, também noplano agregado ou coletivo, pretendo introduzir o leitor nasabordagens econornétricas da saúde, analisando impasses edesdobramentos de propostas de análise quantitativa da situaçãode saúde como se fosse um recurso econômico das sociedadesmodernas.

ABORDAGEM CLÍNICA DA SAÚDE

Analisemos a questão da saúde como medida primeiram nteem relação ao plano individual ou singular que, no que concerneaos temas da pesquisa sobre saúde-doença, tem sido convencio-nalmente bjeto da clinica. Partam s do princípio d qu saúdepod ser tornada como atributo individual de seres humanos e,como tal, ncorura-se vulnerável a proc S os de mensuração.

[ 53

Page 21: O que é saúde

0111 vistas a uma formalização pr liminar da saúde nesse

nível, devemos consid rar as seguint s proposições:

1. Nem todos os sujeitos sadios acham-se isentos de doença.

2. Nem todos os isentos de doença são sadios.

Sabemos que indivíduos funcionais e produtivos podem ser

portadores de doen as, rnostrando-s muitas vezes profusamen-

te sintomáticos ou portadores de sequelas e inca: acidades parciais.

Outros sujeitos apresentam limitações, omprometimentos, in-

capacitações c sofrimentos sem qualquer evidência clínica de

doença. Além da mera presença ou ausência de patologia ou lesão,

precisamos considerar a questão do grau ele severidade das doen-

ças e complicações resultantes, com repercussões sobre a quali-

dade de vida dos sujeito. Em uma perspectiva rigorosamente

clínica, portanto, saúde não seria oposto lógico da doença, por

isso estado de saúde não poderia de modo algum ser definido

como 'ausência de doença'. Estado de saúde individual difere de

patologia, fatores de risco ou etiologia, bem como de acesso a

serviços ele saúde ou intervenções.

Estado de saúde é um atributo multidimensional dos seres

humanos que reflete o seu nível de saúde em vários com[ onen-

t ou domínio. O estado de saúde de um dado indivíduo pode

s r avaliado por um observador gue realiza um exame ao longo

d várias dimen ões, incluindo presença ou ausência de doença,

fatores de risco para morte prematura, gravidad da doença,

risco de vida condição fí ica em geral. A avaliação resultante,.será estado de saúde individuai em uma de duas ai ordag ns:

negauvarn me, pela au ência d doença LI ndições de déficit

íun i nal; ou positivarn nt , p la presença de apaci lad fun io- t54 ]

nal ou níveis de clesempenho. Neste caso, seria necessário iden-

tificar os elementos constitutivos de uma 'síndrome ela saúde', afim de verificar presença ou ausência, além de nível, freguênciaou grau de pertinência dos indivíduos em relação a um constru-

to empírico defin.ido de modo sistemáLico e estável. Isto implica

um tratamento simétrico do problema geral da identificação da

doença numa investigação epidemiológica convencional, com a

ressalva de que sinais e sintomas de 'saúde' não podem, nesse

caso, expressar mera ausência de doença (Almeida-Filho, 2000a).

Estados individuais de saúd podem também ser avaliados

pedindo à pessoa para relatar sua perc pção de aúde em dimen-

sões diferentes, tais orno desempenho, condição física, mobi-lidade, bem-estar emocional, humor, incapacidade, dor ou

desconforto. Metodologicamente, tal abordagem implica desen-

volvimento de instrumentos que buscam informações sobre os

c..lomínios de saúde considerados. Derivadas inicialmente da

definição original da OMS, as primeiras tentativas para tratar

ernpiricarnente essa questão tomaram ao pé da let ra a suposição

de que a 'saúde' seria composta por três dimensões de bem-

-estar: físico, mental, social. Como já se dispunha de qu stioná-

rios le detecção ele casos em inquéritos de morbidade psiquiá-

trica, os pesquisadores engajados nessa linha concentraram-se

no aperfeiçoamento destes e na criação de instrumentos capazes

c1emedir a capacidade física e o bem-estar social. No primeiro

caso, buscou-se r cuperar conceitos d comprometimento, li-

mitação, incapacidade e desvantagem, já rev sridos d certa

positividade na forma de indicadores de funçã , habilidad ,

capacidade desempenho. No segund ca o, a teoria do capital

social passou a s r considerada c mo base c nceirual rara a

medida da chamada 'saúde ocial' por m io dos seus ompo-

I 55

Page 22: O que é saúde

nentes principais: interações interpessoais e participação social.

Como veremos no capítulo a seguir, formulações subsequentes

buscaram reconfigurar as cümensões n~ saúde positiva individu_

al com base em um referencial etnossemioLógico, porém a es-t ratégia inicial permaneceu su bs tantivamente inalterada.

Em suma, para menir diretamente o estado ou grau de saúde

dos indivíduos, de forma semelhante aos procedimentos de

triagem para diagnóstico da doença, foram desenvolvidos e

testados instrumentos p~clronizados cipa7.es de reconhecer ()

estado de 'complet o bem-estar físico, mental e social'. Esses

instrumentos, em alguns casos, são longos e detalhados, espe-

cialrn nte aqueles relacionados ao bem-estar e à qualidade de

vida, que, aI esar da cxten ão, muitas vezes refletem apenas uma

dimensão da vida do sujeito. Notável é a disponibilidade atual de

escalas e inventários com essa finalidade, conformando as mai

diversas características metodológicas. Para dar uma idéia dessa

extraordinária proliferação, pouco antes do ano 2000 já existiam

mais de setenta diferentes tipos de escalas e questionários para

a medição do estado de saúde individual, dos pioneiros CorneJJ

Medicallndex (CM1) e General I1ealtb Questionnaire (GJ 1Q),

desenvolvidos respectivamente em 1962 e 1973, ao EuroQol e

Quality of WeU-Being cale (QWBS) da era contemporânea(Almeida-Filbo, 2000a).

À guisa de balanço crítico dessa vertente, eu gostaria de assi-nalar os seguintes pontos:

1. No niv 1individual, a saúde não constitui análogo oposto Ll

simétrico inverlido da doença. e, para cada doença, observa--se um mod prototípico de adoecer (cujo reconhe imentoimplica urna s rniol gi~ clínica), há inllnitos modos de vi la

56 I

coro saúde, tanto quanto a infinidade de seres sadios queexistiram, que existem ou que virão a existir.

2. Ainda está por se estabelecer a validade conceitual de cons-trutas tomados orno pro:>':_1' da saúde. A persistir tal lacuna, ainvestigação do desempenho operacional dos instrum.entoscorrespondentes encontrará, com Frequência, sérias dificul-dades metodológica.s, principalmente em relação ao desenhode estudos de validade.

LIMITES DA EPIDEMIOLOGIA DA SAÚDE

o aporte clínico cont ribui para a aI ordagcrn epidemiológica

com critérios c operações de identificação de caso, determinando

quem é e quem não ' portador de uma dada I atologia ou espé-

cime de certa condição, na amostra ou na população estudada.

Por esse motivo, o conceito de risco constitui uma aproximação

de segunda ordem do fenômeno da doença em populações, em

última instância mediada pela clínica como definidora da hetero-

geneidade primária do subconjunto [doentes], Ora, se a clínica

desenvolve-se C0l110 sab r justificado P la noção de patologia,

incapaz de reconh ccr positivamente a pres nça ou a ocorrência

da saúde nos sujeitos individuais, pouco poderá fazer para cola-

borar na constituição de uma epidemiologia da saúd . Dessa

maneira, o fracasso da clínica em subsidiar medida positivas de

saúde individual, como vimos, em princípio inviabilizaria a defi-

nição da heterogeneidade primária do subconjunto [sadi sJ,

irn] rescindível para qualquer aborda.gem epidemiológica da

saúd col tiva, caso d Iinida d modo rig roso.

.omo tendência dominante, o rnáxirn de aproximação que

a ciência epid miológica tem se P rrnitido con iste em definir

l 57

Page 23: O que é saúde

f.'

l'III

III

saúde como atributo do grupo de não doentes, entre os expostos

C:: os não XpOSlOS a fatores de risco, em uma população definida.Na prática, a maioria dos manuais epidemiológicos é até bem

menos sutil, chegando-se a definir a saúde diretament-e como

'ausência de doen a'. Na mesma medida em que o contingente

de acometidos I or uma dada patologia constitui o subconjunto

populacional de referência para o cálculo do risco, uma 'saúde

epidemiológica' implicaria, por conseguinte, meramente o C()I1-

lradominio desse subconjunto:

Saúde = 1- (risco)

Não obstante :-1S evidências e.:111favor da complexidade das

situações de saúde, os e tudos epidemiológicos normalmen-

te cobrem doenças específicas, buscando determinar o perfil

sociodemográl1co dos doentes d uma dada 1 atologia e dos ex-

postos ao risco de adoecer, mais do LJue.:propriamente descrever

o 'perl1l patológico' (repertório de doenças e de condições rela-

cionadas à saúde) de um dado grupo social. A soma de todos os

casos de todas as doenças aparentemente não interessa muito àinvestigação epidemiológica. É quase irônico constatar que so-

mente nesse caso seria possível visualizar uma verdadeira (porém

trivial) definição negativa de saúde, da seguinte maneira:

Saúde = 1 - L (riscos)

Para melhor compreender essa questão, é preciso também

discutir o ~ nôrneno da cornorbidad . O termo tem sido usado

na clínica para d signar a exisiên ia concomitante de diferente

c ndiçõe patológi as em um m smo indivíduo. No âmbito

epid miológi o, é bastante conhecido o pro esso equivalente de

ctnstering. de riscos em ertos sujeitos e grupo populacionais,

58 ]

quando a presença de uma dada patologia aumenta a probabili-

dad de ocorrência de outras doenças naquele grupo suscetivel.

Na sua prática de produção de informação, a epidemiologia

tem instrumentalizado 1.Im repertório de 'indicadores de saúde'

que na verdade se baseia em contagem de do ntes (indicadores

de morbidade) ou de falecidos (indicadores cle mortalidade).

Apesar das promessa de uma 'epidemiologia da saúde', dentre

os indicadores ditos de saúde, apenas a medida denominada

'Esperança de Vicia' e seus su edâneos suportam uma definição

não residual de saúde. Mesmo listados nos manuais mais respei-

táveis da ciência epidemiológica, t-rata- e de indicadores mais

demográficos que epidemiológicos, ainda assim rarnbérn calcu-

lados com base em dados de mortalidade. A bordam 'anos de vida

vivid s', em geral sem considerar o estado ou nível de saúde

desses anos ou, para incluir um conceito em moda atualmente,sem nada referir sobre a qualidade de vida dos sujeitos.

Não obstante, ré cnicas de avaliação da saúde individual podem

ser empregadas como fontes de dados [ ara mensuração de níveis

coletivos de saúde tornados como somatório de estados indivi-

duais de saúde. Propõe-se então, nesse caso, incluir entre as s-

iratégias da epidemiologia a contagem de indivíduos sadios, para

i so desenvolvendo ou adaptando tecnologias pertinentes, no

sentido analisado na seção anterior. Desse procedimento poderá

resultar a derivação de indicadores de 'salubridade', equivalentes

aos clássicos indicadores de morbidade. N sse aso, contar-se-iam

sadios para o cáJcul d um certo ri o de saúde, do mesmo 111 do

como se mpulam doentes ou óbitos para a produção de indi-

ador s de risco de doenças ou de mortalidade. Tal cstraté gia

efetivamente não tem sido nfaiizada no ampo da inv tigação

[ 59

Page 24: O que é saúde

epidemiológi a, .limitando-se a poucas avaJiações de inquéritosdomiciliares locais ou nacionais.

Na década de 1980, no contexto de avaliação do impacto d. esistemas nacionais de saúde, especialmente em países europeusganhou relativa proeminência o conceito de 'qualidade de vidsrelati~a à saúde' (conforme assinalado no capítulo anterior).Qualidade de vida implica abordagem do curso de vida, de acor-do com episódios que podem afetá-lo, incluindo deficiênciasatividad s, participação social, influenciados pela" saúJe-doenç~ou estado funcional. lnstrument s para medir qualidade de vidarelaLivaà saúde podem ser genéricos (perfil de saúde e Indices desaúde) ou específicos (qualidade de vida em determinadas con-dições, populações ou ciclos de vida). Juntos, esses indicadorescontribuem 1 ara construtos específicos, com medição de dimen-sões ou domínios c nstituiotes de saúde que incluem, entreoutros fator s, capa idade física, funcionalidade, satisfação epercepção de bem-estar e papel social (Almeida-Filho, 2000a).

Embora seja teoricamente atraente argumentar que a medidada saúde deve consistir na combinação de lodos os componentesde um instrumento mais impressões subjetivas do indivíduo na

, . '. 'pratJ.ca, as pnncJpais dimensões/ domínios ciosinstrumentos para.medlr a saúde individual referem-se a variáveis comI ortamentais.Normalmente, tais avaliações são feitas com base em presença--ausência de deficiências nessas dimensões (e em suas subdimen-s~es). No final, é atribuída uma pontuação (escore, grau, escala,ruvel) ou estado (conceito, d scrição, classe) de acord com ospres~upostos de cada instrum ru ; portanto, os suj it s sãoclaSSIficados como mais ou menos omprom tido. ( u 'doentes'), por negação, mais ou menos saudáveis.

60 I

Recentemente, ganha espaço o conceito d saúde autorrefe-rida (SAR) , o qual compreende um construto complexo queincorpora diversos aspectos da saúde fisica e outras peculiarida-des individuais e s ciais que resultam em um indicador da per-cepção subjetiva de bem-estar e salubridade. Em geral, SAR re-úne vários componentes da perce[ ção do sujeito sobre suaprópria vida. Portanto, quando o respondente classifica a saúdenuma escala, é induzido a construir uma medida resumo dosvários aspectos ela sua vida e funcionalidade. Do ponto de vistaoperacional, a S/\ R permite simplicidade na aplicação, e a maio-ria dos estudos emprega uma única pergunta: 'No geral, comovocê avaüaria sua saúde?' Na respost::l, o entrevistado define seuestado de saúde numa escala nominal, geralrneruc com cincocategorias (muito ruim, ruim, boa, muito boa e excelente), ounuma escala numérica de 4, 7 ou 10 pontos.

Para resumir um J onto de vista crítico em relação a essa es-tratégia de medida da saúde coletiva, eu gostaria de considerar oseguinle:

1. Deve-se questionar se haverá fundamentação lógica na apli-cação em nível agregado de construtos supostos como ex-pre são da saúde de sujeitos individuais (função, desempenho,qualidade de vida, satisfação, bem-estar, felicidade etc.).

2. Mesmo considerando a hipótese de uma demonstração con-vincente da validade dessa transposição, é licito supor que asaúde coletiva signiúcará sempre mais do que o somatório das'saúdes' individuais.

3. A ideia de 'risco d aúdc' não é simétrica em r lação à n çãode risco I I eriças porque, le a ordo om o chamado racio-ínio epidemiológi o, as doenças são tomadas orno eventos

II I

[ 61

Page 25: O que é saúde

ou episódios, mensuráveis por meio de l)robabilidades cdici . ( on.icronais le ocorrência.

I~nfim, rara a estimativa de indicadores de níveis coletivo, d

saúde, será imperativo superar uma limit'ação primordial da abor~

dagem epidemiológica, originalmente restrita à avaliação dos riscos

de doenças ou de agravos, o que impli a duas estratégias distintas.

. No prim.eir~) ~aso, avaliar 'risco cle saúde' pode significartratamento srrnetrico ao problema geral da identificação d asos

de doença na pesquisa epidemiológica onvcncional, com a r ssal-

va de que sinais e sintomas de 'saúde' não podem, nesse caso, ex-

pressar mera ausên ia de doença. '1rata-se evidentemente ele de-

senv,ol~er métodos e técnicas c:lpncs de avaliar positivamenteos nrveis de salubridade numa dada população.

N~ segundo aso, deve se desenvolver ou aperfeiçoar meto-

dologias e tecnologias para abordar a saúde como inverso da

mo.r~idade, entendida como 'volumetria populacional de pato-

~ogla ou, para usar uma terminologia recente, porém consagrada,arga global elas doenças'. Ou seja, propõe-se o desenvolvimen-

to ~e mediJas. do 'capital sanitário' ou do burde), qf disease de popu-

laçoes ou sO~ledades. Em outras palavras, trata-se de aprimorar

nossa. capacJdade de estimar medida do grau c1e 'rnorbidade

negauva' ou de mensurar saúde como um análogo econométricotema da seção seguinte. '

ABORDAGENS ECONOMÉTRI CAS DA SAÚDE

s e~on mi~tas da saúde também contrjbuirarn para umacon 1çao coleuva ele saúde, realizando uma aproximação .iI1S-

trumerual ao assunto que, a I ropósiro, tipicamente on me malmensuração que t oriza ão,

62 I

J ~m 1992, no processo de preparação do polêmico J,I'l'oridDelJelojJment Report 1993: inve.rtillg in health, O Banco Mundial con-traLOUuma equip da Escola de Saúde Pública da Universidade

de Harvard para viabilizar uma metodologia destinada a medir a

'carga global de doença' (global burden of disease) das populações.

Como pré-requisito fundamental, estabeleceu-se que os compo-

nentes de rnorbidade e mortalidade deveriam estar integrados em

um mesmo indicador. Essa metodologia seria também capaz de

empregar da los epidemiológicos e estaríst icas vitais em geraldisponíveis, mesmo em países ditos subdesenvolvidos, de modo

a permitir comparações internacionais, além de po ssibiliiar ava-

liações do impacto cios investimentos internacionais e das poli-

ricas e programas de saúde. Ostensivamente inspirado no con-

ceito do quali!y-arfjusted lijé yearJ (QALY), o novo indicador foi

batizado de disabiliry-a{!Jtfsted lije }ears (DAL Y) e definido como

uma medida do tempo vivido com incapacidade e do tempo

perdido devido à mortalidade prematura (Murray & J .opez, 1996).

() DAIS constitui um indicador composto na medida em

que combina dados de mortalidade (anos de vida perdidos por

óbito precoce) com dados de morbidacle (grau e tempo ele inca-

pacidade devido a uma dada patologia). ], sumam-se os anos de

vida perdidos devido à mortalidade precoce tomando como

padrão as expectativas de vida média de 80 anos para homens e

82,5 anos para mulheres. O tempo vivido sob incapacidade é

calculado por meio de um conjunto d pondera õ s que supos-

tamente refletem uma redução na capacidad funcional, por sua

vez r sultant de estudo de carga-de-doença spe ífi os para

cada morbidad . Para acla ól iro ou caso regi irado, omputam-

-se o DALYs correspondentes a cada individuo a serem acumu-

lados para a estimativa elas argas-d -d en a neces sárias para

[ 63

Page 26: O que é saúde

calcular os DALYs de patologias específicas referentes a agrega_dos geopolíticos, como regiões, países ou continentes (Murray &LOI ez, 1996).

A principal novidade da proposta do DALY consistia na in-tegração dos indicadores 'anos vividos com incapacidade' /years/ived llJith disabifiry (AVI/YLD) e 'anos de vida perdidos' /years oj ,/ife los: (AVP/YLL) em uma {mica medida de 'carga-de-doença'.O conceito de 'incapacidade' passa a ser, portanto, crucial parao novo indicador proposto. Recuperando o modelo de progres_são linear (doença, patologia, manifestação, deficiência, incapa_cidade, desvantagem), o conceito do D!\LY baseia-se na definiçãole incapacidade como impacto da doença ou agravo sobre o

desempenho individual.

Na sua proposta original, o componente incapacidade doDALY cobria quatro domínios da vida jndividual (procriação,ocupação, educação e recreação) e seis graus de severidade. Asavaliações de grau de incapacidade por patologias selecionadascorno 'marcadores' eram realizadas por grupos de consenso,deexperts (primeiramente, alunos internacionais de r larvard, e lepois,profissionais de saúde). Posteriormente, após avaliações pornovos grupos de consenso internacionais, empregando-se ométodo do person trade-ifI, ampliou-se a definição para 'sequelasincapacitantes de qualquer natureza' e acrescentou-se mais umgrau de severidade da incapacitação (Murray & Lopez, 1996).

Entretanto, vi ando a reforçar as propri dade con metrLcasdo indicador, os formuJadores da concepção do DI\LY decidiramincorp rar dois tipo de função de corr ção: 1) um desconto paraan s ain la não vividos, equivalente à n ção d taxa d juros parapagament s futuro; 2) uma ponleração por idade, d stinada a

64 ]

J'01,'ro valor dos anos vividos em relação a cada etapa do ciclocorr b-

de vida.Em artigo publicado na Rwisfa Brasileira de Epidemiologia

(Almeida-Filho, 2000a),. revisei em d~talhes algun~ su.postosmetodológicos do conceito de DALY Esse destaque [ustificava-

por um lado pela enorme influência que tal proposta vem-se, 'exercendo no panorama atual da politica de saúde em todo omundo. Por outro lado, a proposta do DALY representa a maisimportante tentativa recente de avançar a metodologia epidemio-lógica para superar () conceito de risco e seus correlatos.

Nos termos dos seus forrnuladorcs, o DALY representariatanto uma medida de carga de doença (rnorbidade e mortalidade)quanto um indicador de saúde mais transparente do ponto devista ético. Ao avaliar globalmente a questão, considerei que essaproposta significava um recuo ao modelo biomédico de cuidadoà saúde. F nfim, questionei se efetivamente a metodologia DALYatingia os objetivos propostos, na medida em que pretendia mui-to mais do que estimar impacto de políticas Ou programas desaúde, C01110, por exemplo, tornar-se a base técnica de uma revo-lução no conceito de política de saúde, designado pomposamen-te como etndence-based heaftbpoliry, por meio da avaliação da 'cargaglobal de doença' de uma dada sociedade (Almeida-Filho, 2000a).

No contexto de um ambicioso programa de avaliação tecno-lógica destinado a orientar as P líticas de alocação de recursospara o National Health ervice (NHS) da Inglaterra, uma equipede pesquisa em economia la saúde da Universidade d York, soba liderança de AJan Willjams, desenvolveu c n ei t 1 'quali-dade d vida ligada à saúde' (health-related quafi(J1 of life), assumi-darn nt vinculado a uma teoria utilitari ta da aúd .

[ 65

Page 27: O que é saúde

A a~ordag~m ~etodológica correspondente (WiUiams, 1996)produziu um wdJcador de saúde positiva denominado QALY(qJlaliry-acfjusted life.years), estimado com base no cálculo aCumu_lado (por área geográfica ou divisão geopolítica) dos anos Comqualidade de vida não vividos por motivo de doença, incapa-],dade ou morte. Para as estimativas devidas, foi preciso classi-ficar e ponderar distintas combinações de níveis de desconfor_to ~ incapacitação, por meio de um instrumento de avaliaçãoaplicado a 'julgadúres' da comunidade. A dimensão 'descon-forto' divide-se em quatro níveis, variando de 'nenhum deScon-forto' a 'descon[orLo evero', enquanto a dimensão 'incapaci-tação' classifica oito estágios, desde 'plena capacidade' até'inconsciência'.

Com base nesses parâmetros, podia-se estimar o excedentede Q~LYs produzjdos por uma dada intervenção de saúde com-parativamente em relação a outra tecnologia ou à ausên ia deintervenção. Assim, a efetividade de procedimentos destinadosa restabelecer níveis satisfatórios de saúde com quaijdade de vidapoderia ser avaliada com maior precisão, empregando-se a uni-dade de medida proposta. Um QA LY significa um ano emperfeita saúde (nenhum desconforto; plena capacidade), porémpode também corresponder a dois anos com 0,50 QALY ouquatro anos com 0,25 QALY do desempenho potencial do su-jeito (equivalente a 'saúde', caso aceitemos uma definição utili-tarista d ss conceito).

. No artigo citado (Almeida-Filho, 2000a), avaliei que, sem dú-viela, trata-se de uma proposição teori am nte bem fundamenta-da, considerando uma definição positiva d saú I qualitativamen-te distanciada d qualquer concepção n gativa da saúde r Gtida

66 ]

à noção de patologia. O próprio \X1ilJiams(1996: 1.80 I) explicitá

o problema central:

Um tópico Fundamental para esclarecer o que está em questãoé o que se entende por 'saúde'. No contexto do QALY, trata--se de qualquer aspeclo relativo à qualidade de vida gue sejavalioso para as pessoas, além da duração daqu la vida. Issodeve ser claramente diferenciado de uma estrita definiçãoclínica de saúde.

I~m minha OI inião, é preciso considerar que, por um lado, oDAI _y realmente representa uma simplificação no sentido de queopera com uma única dimensão de medida individual de saúde,o nível le comprometimento funcional, em lugar de uma escalasubjetiva de valores combinados de desconf rto e incapacidade.Por outro lado, a abordagem DALY implica também ampliaçãode escopo da metodologia proposta, na medida em que se apre-senta sem hesitação como um quantificador macroeconômicode 'volurnetria' da morbimortalidade.

Ambos, QALY t: DA LY, constitu m medidas glob::tis simpli-ficadoras da complexidade da situação de saúde em contextoscom alto nível de agregação, como estados, naçõ s e regiõ s.Porém, distinguem-se na medida em que o DALY, di ferenternen-te do QALY, não produz indicadores do estoque de saúde deuma dada sociedade. Mas sejamos pelo menos justos com osobjetivo dos criadores e promotores dessa abordagem. O termo'carga global de doença' é bastante claro e preciso no sentido dedefinir a doença e não a saúde como objeto: de modo alguminduz a falsas promessas.

.uri sament , ambas as abordag ns utilizam an vividoscom qualidade d vida OLl sem incapacidade (que é um índi e

I 67

Page 28: O que é saúde

grosseiro de saúde) para avaliar o impacto social de patologias e

das tecnologias d stinadas à sua prevenção, controle ou erradi.

cação. Trata-se de uma aplicação da esquisita noção boorseana

ele doença = ausência de saúde, invertida da concepção conven_cional de saúde como ausência de doença.

E quais são as limitações de tais abordagens? No limite, tomam

renda, produção, consumo e outros indicadores econômicos

orno o parâmetro principal (e talvez ideal) para medidas de

desigualdade na sociedade. Daí deriva, de modo mais evjdente ,o desdobramento de duas falácias:

1. FALÁ lA I? ONOC(~NTRICÁ: implica supor que a esfera da co-nornia pode ser tornada como referência dominante da socie-dade e que, portanto, dispositivos de explicação da djnâmicaeconôrni a das sociedades seriam adequados para compreen-der processos e objetos de conhecimenro sobre a saúde e avida social. Mesmo gue tal posição possa ser relativamenteadequada para economias de mercado industriais (agudas domítico pleno emprego, antes das crises), renda não parecerepresentar medida válida e plena de acesso ao bem-estarsocial e aos recursos de vida (saúde incluída) em países pobres.Mediante estruturas e dinâmicas próprias, além da concentra-ção de riqueza, outras desigualdades independentes ou cor-relatas ao ranqueamenro social encontram-se ativas em socie-dades flageladas pela pobreza, desemprego e exclusão s cia!.

2. FALÁC1A ECONOMI~TIU J\: implica considerar que processos deprodução de saúde, de relações sociais e de mercadorias sãorelativamente isonômicos e que, portanto, metodologias eco-nométricas seriam ad quadas para apreender variações edisparidades m d terminantes e efeitos sobre a saúde nas ciedade. Embora ai ordagens dirn nsionais p sam serválidas para produtos outros recursos d mer ad ,os fenô-

68 ]

menos da saúde-doença-cuidado têm atribui s e propriedadesde realização e distribuição totalmente di Ierentes da renda (enão redutíveis a ela).

A refutação de ambas as falácias baseia-se na constatação,

uase rrivial, de que saúde não pode ser linearmente produzida,

;rmazenada ou investida, nem pode ser redistribuída do mesmo

modo que a renda (mesmo nas versões neokeynesianas chamadas

de Robin Hood Policie.r; isio é: retirada de riqueza dos mais ricos e

redistribuição para os mais pobres, por meio de subsídios ou

taxação). Não obstante, saúde ainda pode ser tratada conceit-ual-

mente como uma espécie peculiar de capital humano, compre-

endendo as noções de endotumen! de Rawls ou ele capabili!J de Sen,

como veremos no capítulo 5.

[ 69

PARA A CRÍTICA DO OBJETIVISMO EM SAÚDE

. I

Recorrendo a Canguilhern (2006), devemos admitir que o

oposto da patologia é a normalidade, de modo al m a saúde.

Numa perspectiva lógica 'rigorosa, portanto, o oposto simétrico

da doença não seria saúde, por isso estado de saúde não implicaria'ausência de doença'. Estado ele saúde individual difere de patolo-

gia, fatores de risco ou etiologia, bem como de acesso a serviços

de saúde ou intervençõ s. Como corolário, tem-se que os e tados

individuais de saúde não são excludentes vis-à-viS a ocorrência de

doença. Portanto, podemos admitir a possibilidade de coocorrên-

cia de saúde e doença num mesmo sujeito individual, ao mesmo

tempo. Creio que nesse aspecto podemos mesmo parafrasearaetano Veloso, constatando que 'de perto ninguém ' sadio'.

Nessa P rspeciiva, concluimos ser I ssível ,portanto, viável

identif ar sinais sintomas da 'síndr me saúde', mediam um

Page 29: O que é saúde

construto empírico definido como 'estado de saúde'. A questãocorrelata eria, então, como viabilizar metodologicamente estra-tégias, ré nicas, instrumentos e procedimentos de produção dedados, informação e conhecimcruo com base na medida dasaúde. Neste capítulo, avaliei as perspectivas de fazê-lo por meioda metodologia epidemiológica, com a análise de 'riscos de saú-de' e, em seguida, com o recurso a medidas de saúde como umconstruto econométrico.

I.m minha opinião, o debate em torno dos indicadores desaúde originados na economia constitui a principal controvérsiaepidemiológica dos anos 90, talvez equivalente aos debates emtorno da causalidade nos anos 70 e à polêmica sobre a epidemio-logia clíni a na década de 1980 (Almeida-Filho, 2000b). Nãoobstante importantes limitações de medidas quantitativas desaúd reveladas nessa discussão, é inegável sua contribuição aoestudo das condições de saúde e seus determinantes sociais,políticos e econômicos.

Abordagens econométricas da saúde, interessantes sem dúvi-da, revelam-s potencialmente úteis para os objetivos primáriosde incorporar rigor e sofisticação à análise de custo-efetividade.Além (USSo,sua concepção propiciou importante desenvolvimen-to na teoria da mensuração em saúd ,consid rando as possibi-lidades do seu emprego para medidas posi tivas e negativas dasaúde coletiva C0l110 capacidade vital e qualidade d vida, decerto modo aí reduzidas a uma 'unidade monetária' de troca,perrnitind comparação e avaliação do valor diferencial de pro-cedimentos r stauradore ou promotores de saúde.

Ap saí disso, medidas do tipo DALY c QAl Y SIão suj irasa sérias ríticas, d base política, so iológi a, antropológica e

70 ]

ética (Williams, 19%). Tais restrições dizem respeito especial-mente à sua aplicação em contextos sanitários com reduzido graude desenvolvimento político e institucional, caracterizados porrecários istemas de informação em saúde. Justamente tais

~ontexlOs são os que mais sofrem os efeitos das diversidadesétnico-culturais e da desigualdades sociais. Em outras palavras,os conceitos de valor, utilidade, desconforto, incapacidade equalidade de vida apresentam-se tão 'ligados à cultura' e social-mente determinados que se pode questionar a validade teórica eo potencial comparativo de estratégias de medida da saúde como

valor econômico.

Aparentemente, esgotam se os argumentos que validam heu-rística e eticamente o repertório das I ropostas de abordagensmetodológicas destinadas à avaliação direta dos níveis coletivosde saúde por meio da panacéia dos indicadores unificados. Pre-cisamos, enfim, demandar das abordagens numéricas (epidemio-lógica e cconométrica) da saúde o que elas têm de melhor aoferecer, principalmente no que se refere ao estudo da sit uaçãode saúde, acesso e utilização de serviços e sistemas de saúde, bemcomo nas ár as d avaliação tecnológica e microeconornia emsaúde. Tal atitude significa compreender impasses e aceitar limi-tações dessas metodologias e dos seus instrumentos de mensu-ração do grau de salubridade (ou saúde coletiva posit-iva) e da'carga global de saúde' (e não de doença) de uma dada população,respectivamen te.

l 71

Page 30: O que é saúde

4 SAÚDE COMO IDElA

Mesmo no campo das ciências humanas e sociais aplicadasà saúde, desde meados do século XX tem-se buscado com insis-tênóa definir objetivamente o conceito de doença e correlatos,com vistas à formulação de 'l orias culturais da saúde'. N sseconlexlO, emergem perspectivas teóricas que, com base na criti-ca aos modelos convencionais ele doença, constituem modelosmetabiológicos de saúde-enfermidade. Trata-se, em muitos casos,de uma elaboração mais sofisticada e talvez dissimulada da con-cepção negativa de saúde como ausência de enfermidade.

Neste capítulo, proponho analisar concepções de aúde comoidéia ou dispositivo ideológico. Para isso, procuro explorar teoriasgue tomam saúde-doença e correlatos como objet-o heurístico,formulação explicativa, representação social, rede semântica,construro cultural ou outras modalidades de produção de imagense lermos (signos e significantes) providos de sentido, o que im-plica revisar, de modo resurnid e certamente superficial, mode-los linguísticos ou simbólicos de saúde-enfermidade. Algumasd ssas propostas, oriundas principalmente da antropologia mé-dica angl -saxônica, buscam valorizar elementos psicossociais eculturais da saúde.

A gu stão dos modelos de saúd -do nça tem sido também trata-da do P rito d vista etn ssemiológico, convergindopara uma pro-posta integradora dos conc itos de do nça, moléstia enfermidade.

[ 73

Page 31: O que é saúde

COMP LEXO DOENçA-MoLÉsTI A- ENFERM IDADE

Arthur Kleinman e Byron Good, pesquisa lorcs da Universi_dade de I-Jarvard, buscaram aprofundar e enriquecer a análise dos

componentes não biológicos dos fenômenos da saúde-doença

no contexto de uma 'r forma crítica' do ensino médico. Comesse objetivo, sistematizaram um modelo cjue concedia especial

importância teórica iI noção d enfermic1ade-sickne.r.r, com ênfase

nos aspectos sociais c uliurais que paradoxalmente haviam sido

desprezados pelas abordagens sociológicas aru riores. O mode-

lo de Kleinrnan-Cood encontra-se esquematizado na Figura 3,em que se destaca a (ainda implicira) definição negativa de saúc.lecomo ausência de doença.

rigura 3 - Modelo de Kleinrnan-Good

Enfermidade: Doença + Moléstia

Saúde

Doença~----IEnfermidade - - - - --

Moléstia

Fonte: Almeida-I 'ilho, 200 I.

Um dos IOlHOS centrais dess mod lo consiste na distinção

entre d ença, moléstia e enfermidade (ver s ção Etimologia e

glos ário, n ar ítulo 1), com base na difer nciação entre di-

mensões biol ' gica c cultural da saúde. Nesse e qu ma gráfico,do nça ref r -se a alterações ou disfunção de pro essos bioló-

gIco / u psi ológicos, definido de a or lo orn a conc pção

74 I

biomédica. Trata-se do objeto privilegiado do saber íisiopatoló-gico e da prática clíni 3. Nessa perspectiva, o funcionamento

fisiológico ou pa tológico dos órgãos e sistemas corporais ocor-

reria independentemente do seu reconhecimento ou percepção

pelo indivíduo ou interação com o ambiente social.

A calegoria moléstia, por sua vez, incorpora a experiência e

a percepção individual relativa aos problemas decorrentes da

doença, bem como à rea ão social, nesse caso, ant a enfermida-

de. Quer dizer, moléstia implica, sem mediações, no plano sub-

jerivo individual, cadeias de sentimentos (sofrimento, aflição,mal estar, desespero) constituintes da doença. O conceito de

enferll1idade diz respeito, num plano rcJacional ou inicrpcssoal,

aos processos de significação social da doença. Nessa dimensão,

além dos significados culturais das respostas interacionais com-

ponentes da r ação socictal à doença (rotulação, isolam ruo,

esrigma), incidiriam aspectos simbólicos particulares formadores

da própria molé tia no âmbito psicológico individual, tanto

quanto os significados criados pelo paciente rara gerenciar o

processo patológico. Moléstia refere-se à forma com que o su-

jeito doente pcrc be a doença; como sofre e expressa o processo

de adoecirn nto e lida com ele, Num sentido mais rigoroso, a

enfermidade é anterior à doença, que é produzida a partir da

reconstrução técnica do discurso profissional no encontro mé-

dico-paciente, com base em uma cornuni ação rn liada pelo

idioma culturalmente compartilhado da nfermiclade.

Kleinrnan defende a id ia d que saúde, enfermidade e UJ-

dado são panes cI um ist ma cultural e, orno tal, devem ser

entendidas em suas mút uas rclaçõe (Almeida-Filho, 2001).lixaminá-las isoladamente disiorce a compreensão da natureza

r 75

Page 32: O que é saúde

76 ]

de cada uma delas e de como funcionam num dado contextoPara esse autor, é preciso considerar modelos capazes de con~ceber a s~ú~e e a doença como resultantes da interação comple_xa de múloplos fatores, nos niveis biológico, psicológico e so-ciológico, com uma terminologia não limitada à biomedicinP a

ara a construção de tais modelos, deve-se recorrer a novosmétodos interdisciplinares, trabalhando simultaneamente C011)

dados etnográficos, clínicos, epidelniológicos, históricos, sociaispolíticos, econômicos, tecnoJógicoS-e 1sicológicos. '

Byron Good e Mary-Jo Good, discípulos de 1 leinman, pro-puseram um 'modelo hermenêutico cultural' para compreendera racionalidade médica ocidental. Segundo esses autores, a inter-pretação dos sintomas como manifestação da 'realidade biológi_ca' subjacente é característica da racionalidade clínica, por ser estafundamentada epistemologicamente em uma teoria empiricistada linguagem. A atribuição do 'significado de sintoma' a um es-tado fisiológico alterado mostra-se insuficiente como fundamen_to para a prática clínica, uma vez que fatores psicológicos, sociaise culturais influenciam a experiência da doença, sua manifestaçãoe a expressão dos sintomas. Segundo o modelo biomédico dadoença-saúde, a prática clínica baseia-se no conhecimento decadeias causais que operam 00 nível biológico, seguindo umroteiro de decodificação das queixas dos pacientes, a fim deidentificar o processo patológico somático ou psicológico sub-jacente. Dessa forma, o modelo hermenêutico cultural pretendeatingir um duplo objetivo: estabelecer o diagnóstico da doença epropor uma terapên tica eficaz e racional..

Reforçando a perspectiva do r lativismo cultural da enfermi-dade, Byr 11 o d e Mary-Jo ood postulam que fronteiras

. r

entre normal-patológico e saúde-doença seriam estabelecidas

1 experiências de enfermidade em diferentes culturas, pelosr= as . . .modos com os quais elas são narradas e pelos ntuais empregadosara reconstruir o mundo que o sofrimento destrói ( -ood, 1994).

~oença (e, por extensão, saúde) não constitui uma coisa em si,nem mesmo a representação dessa coisa, mas um objeto semân-tico fruto dessa interação, capaz de sintetizar múltiplos significa-dos. Enquanto o processo patológico correlacioná-se com/ou écausado por alteraçõ s biológicas psicológicas, a enfermidadesitua-se no domínio da linguagem e do significado e, por isso,constitui-se como uma experiência humana. Scgund esses au-tores, a enfermidade é fundamentalmente semântica. A transfor-mação da do nça em uma experiência humana e em objeto deatenção médica dá-se por meio de processos de atribuição de sen-tido. Desse modo, não só a enfermidade mas também a doençaconstituem uma construção cultural, nesse caso com base m teoriase redes ele significados que compõem as diferentes subculturasmédicas (Good, 1994).

Nessa perspectiva, a moléstia compreende uma experiênciadotada ele sentido para cada sujeito particular. Mesmo assim, é

importante considerar a relação existente entr os sentidos in-dividuais e a rede de significados inerentes a cada contextocultural mais amplo, ao qual pertencem os indivíduos. Daí deri-va a idéia da enfermidade como uma 'rede semântica', n enti-do de uma realidade construida por meio do processo de inter-pretação/ significaçã , a qual fundamen ta-se na trama designificados que estrutura a própria cultura e suas subculturas .

s sintomas, dotados de significad s pelo menos individuais,possibilitam o acesso à red semântica da bi medi ina, ou seja,

[77

Page 33: O que é saúde

aos signos de doença culturalmente estabelecidos e legitimadosinstitucionalmen Ic.

AlJan Young (1982), pesquisador da Universidade McGill n, oCanadá, critica a teoria semioJógica de doença de KJeinman_-Good, desenvolvendo uma abordagem da determinação dasdoenças nas sociedades com base numa análise das relações sociaisde produção. Por um lado, reconhece o seu avanço em relaçãoao modelo biomédico, mas considera qu a distinção entre doen-ça, moléstia e enfermidade mostra-se insuÍlciente para dar contaela dimensão social do processo de adoecimento. Por outro ladopostula que () modelo do grupo de f Iarvard con idcra corno

objeto e arena dos eventos significativos la enfermidade apenaso indivíduo, não abordando os modos pelos quais as relaçõessociais conformam e ressignificam os fenômenos da saúde.

Para superar essas limitações, Young (1982) defende a subs-tituição do esquema de l(.Jeinman-Good Idoença = moléstia +enfermidade] por uma série tripla de categorias de nível hierár-quico equivalente [doença, moléstia e enfermidade], mesmoconcedendo maior relevância teórica ao componente 'enfermi-dade'. No presente livro, proponho designar o modelo de Youngcomo Complexo doença- moléstia-enferrllidade (DML.), confor-me representado na Figura 4.

1

I

78 ]

Figura 4 - Modelo de Young

Complexo DME(Moença-Moléstia-Enfermidade)

Saúde

Fonte; Almeida-Filho, 2001.

Young (1982) considera ainda que, embora Kleinman tenhaenfatizado os determinantes sociais dos modelos explanaróriose Good tenha ressaltado as relações de pocler nos discursos epráticas médicas, não empreenderam, efetivamente, uma análisedesses aspecl"Osem seus Irabalhos. As práticas médicas revelamimportantes componentes políticos e ideoJógicos, estruturando--se com base em relações de poder que justificam uma distribui-ção social desigual das doenças e cios tratamentos, bem como clesuas consequências. Por esse motivo, os elementos do ComplexoDME não são lermos neutros, mas sim compreendem um pro-ces o circular por meio do qual signos biológicos e comp rta-mentais são significados socialmente como sintomas. D ac rdocom Young, "a enfermidade é um process de ocializaçã dadoença e da rnolé lia" (Young, 1982: 270 - tradução livr ). E s ssintomas, por sua vez, são interpretados por uma semioJ gia queos associa a certas tiologias e que justifica iru rvenções cujos

[ 79

Page 34: O que é saúde

resultados terminam por legiLimá-los como signos diagnósticosde certas doenças.

O autor diz ainda que, em sistemas médicos plurais, um COn_

junto de signos pode designar diferentes doenças e práticas tera-pêuticas gue não se superpõem. As forças sociais é gue determi_nam quais pessoas são acometidas por determinadas doenças,sofrem certas moléstias, exibem certas enfermidades e têmacesso a determinados tratamentos. A depender da posição so-cioeconômica do enfermo, uma mesma doença implica diferen-tes enfermidades. e moléstias e diversos processos de cura.

Young (1982) afirma que a dimensão ideológica da enfermi-dade rei reduz visões específicas da ordem social, por meio dossaberes e 1 táticas de saúde que atuam no sentido da sua manu-tenção. As representações sobre a doença constituem, em últimainstância, elementos de mistificação de sua origem social e dascondições sociais de produção do conbecimento. A tradução deformas de sofrimento (enfermidades) derivadas das relações eleclasse em termos médicos constitui um processo de neutralizaçãoc.]uesegue os interesses da classes hegemônicas. Ou cja, pormeio do processo de medicalização, a condição de enfermo ficareduzi la ao nível biológico individual, desconsiderando-se as suasdimensões social, 1 olítica e histórica.

De fato, o foco sobre a dimensão da enfermidade permitesuperar a ênfase n s níveis individual ou microssocial (caracte-rística do enfoque de Kleinrnan, por exemplo). O modelo do

omplexo DME de Young, no entanto, apesar de significar umimportante avanç perante s seus 1 redec ssores, abr umaúnica possibilidade de incorporar a questão ela saúde: ainda e elenovo a mera ausência d doença-enfermidade-mol' stia.

80

Esse referencial teórico mostra-se bastante congruente coma abordagem de Boorse, no que concerne à distinção entre usoteórica e uso prático do conceito de saúde, a fim de diferenciardoença (disease) de enfermidade (il/ness). Compreendendo queuma conceituação valorativa de saúde implica o gue se consi-dera desejável para o indivíduo ou para a sociedade, Boorsedefende a tese de que, se soubermos discriminar doença deenfermidade, encontraremos uma noção de saúde 'estritamen-te análoga' à condição mecânica de um artefato ou sistema fí-sico. A saúde prática, oposto da enfermidade, herdaria o cará-ter normativo do seu conceito-espelho ,portanto, seriadesprovida de qualquer in teres heurístico para uma teoriaformal da saúde.

Por sua vez, enfermidade implica julgamento valorativo so-mente na medida em gue se caracterizaria como incapacitante,objeto de tratamento especial e justificativa para comportamen-tos em geral socialmente reprováveis, garantindo ao portadorrelativa isenção de respon abilidades. Essa formuJação corres-pende rigorosamente à noção de enfermidade (sickness) da teoriaparsoniana do sick role, como veremos adiante. Porém, curiosa-mente, Boorse não faz nesse momento (nem depois) qualquerreferência à obra de Talcou Parsons, fundador da sociologiamédica de base estrutural-funcionalista.

MODELOS SEMIOLÓGICOS

Evoluindo em sua t orização, Byron G od (1994) desenvol-ve uma perspectiva de crítica s miológi a para a anális dosmodelos de saúde-do nça, reavaliando a concepção de rede se-rnânti a nela ai ornando duas lirnitaçô s.

l 81

Page 35: O que é saúde

A primeira limit-ação diz respeito à redefinição do Complexo

DME à luz da teoria linguística, dada a insuficiência da perspec_

riva clássica segundo a qual um símbolo ondensa múlLiplos

significados. Para Good, é preciso reconhecer a diversidade de

linguagens nacionais, étnicas, religiosas e profissionais no mun-

do contemporâneo, tanto quanto a multiplicidade de vazes

presentes na constituição dos discursos sobre a saúde-doença.

A moléstia não é só constituída pelo ponto de vista individual,

mas l'{)r múltiplos caminhos frequentemente confluarues; ela é

nesse sentido dialógica. Ao mesmo tempo que a eníermidade ésintetizada em narrativas familiares, carregadas de políticas de

gênero c de parentesco, é também objetivaria como doença no

sentido de uma forma especifica de desordem fisiológica nas

a[ resentaçõ s de caso e conversas entre os médicos, ainda que

essas objeLÍvações possam ser subvertidas ou rejeitadas pelos

pacientes. A doença encontra se imersa numa teia social em que

todo negociam a const ituição do objeto médico e a direção docorpo material.

A segunda limitação da análise das redes semânticas refere-se

à reduzida 1 ossibilidacle de representar a diversidade das formas

de autoridade e resistência asso iadas aos elementos centrais do

sistema médico. Rede semânticas, mesmo produzidas por estru-

turas de poder e de autoridad , formas hegemôni as de discurso

organizadas e reproduzidas insLÍrucionalmente sã culturalrn n-

t enraizadas e sust ntam sab res e práticas. Entretanto, reco-

nhec Good (1994) que a relação entre estrut-uras sernânti as e

relações hegemônicas d poder não t m sido suf i rucrncnte

desenvolvida pelos I rinci] ais autores dessa linha te' ri a, confor-me a rítica de Young.

82 1

A noção de rede semâni ica deve ser então ampliada para in-

dicar que o signihcado da doença não é unívoco, mas sim um

roduto de interconexões. Nâo mais apenas síndrome Je signi-p .flcados, mas também síndrome de experiências, palavras, senti-

mentos e ações dos diferentes membros de uma sociedade. Esse

conjunto de elementos é condensado nos símbolos essenciais do

léxico médico, o que implica (]ue tal diversidade pode ser sinte-

tizada e objetivada culturalmente.

Avançando nessa perspectiva crítica, Gilles Bibeau e Ellen

Corio, pesquisadores resp ciivarnente da Universidade de Mon-

treal da Universidade McGill, confirmam que a antropologia

contemporânea, em suas vertentes interpretativa e fenomenoló-

gica, tem se mostrado incapaz de abordar a complexidade dos

processos de saúde e doença. Tal incapacidade resulta da pouca

ên fase concedida ao es tudo das experiências u bjet ivas de adoe-

cimento e da reiíicaçâo das narrativas sobre a doença, tomadas

como textos autônomos, sem estabelecer, em qualquer cios casos,

relações nem com o contexto sociocultural global nem com a

dimensão 'objetiva' da doença.

Are ar d reconhe erern a influência da concepção de rede

semântica em seu trabalho, esses autores reafirmam a necessida-

de de uma abordagem macrossocial e histórica para a compreen-

são dos contextos lo ais. Isto significa estabelecer uma conexão

epistern lógica, teórica e metodológica ntre diferentes dirn nsões

da realidade, articulando uma teoria rnetassinté Li a que tem mo

preten ão int grar el mentos serniológico , inter] ret at ivos e

pragmáLi o ssenciais para um modelo ultural da saúde-doeu-ça- uidado (Bib ali & Corin, 1994). Na e fera particular da

saúde, trata-se de explorar as relaçõ de sistema semiológi o

[ 83

Page 36: O que é saúde

de significação e condições externas de produção (contextoeconômico-político e sua determinação histórica) com a expe,

riência do adoecimento.

Ao analisar a problemática dos diferentes níveis de determi-nação dos fenômenos da saúde, esses autores propõem um es-quema analítico fundado em duas categorias centrais: condiçõesestruturantes e experiências organizadoras coletivas. Pretendemcom esses c nceitos representar os diferentes elementos contex-tuais (sociais e culturais) que se articulam para formar os sistemasd respostas sociais ante os 'dispositivos patogênicos estruturais'./\s condições estruturantes abrangem o macrocontexto, ou seja,as restrições ambientais, as redes de poder político e as bases dedesenvolvimento econômico, as heranças históricas e as condiçõescotidianas de existência (ou moelos ele viela). Ou seja, trata-se elecondicionantes que atuam como elemento de modulação dacultura e como limitadoras da liberdade de função ela espécie eda ação individual.

Desse modo, ao postular qu os sistemas semiológicos e osmodos de produção articulam-se para produzir a experiência doadoecimento, s autores retomam a pretensão de Young d con-siderar o contexto socioeconôrnico, político e histórico nosprocessos de saúde-doença-cuidado.

Nessa perspectiva, Bibeau e or111efetivamente apontampara uma abertura de sentido no campo da saúde, que implicaum novo olhar sobre o omplexo DME, propondo a compreen-são da experiência de ado cimen to na 'perspectiva global' men-cionada, c nstruindo uma articulação entre trajetórias individu-ais, códigos culturai , contexto macrossocial e determinaçãohistórica. Com essa finalidade, prop - m um quadr referencial

84 ]

antropológ1co, serniológico e fenomenológico para o estudo dosmodelos de signi Ílcação e de ação social em relação aos proble-mas de saúde que denominam 'sistema de signos, significados epráticas de saúde' (sspS). Esses sistemas enraízam-se nas dinâ-micas sociais e nos valores culturais centrais do grupo e funda-mentam as construções individuais da experiência de adoeci-mento e as construções coletivas de representação de

enfermidades.

Os' spS' confi~uram uma semiologia popular conrextualizadados problemas de saúd . Para abordá-la de modo sistemático, seusautores propõem procurar além dos critérios diagnósticos profis-sional do modelo biorné dico, documentando-se os casos parti-culares que concretamente constituem as variações culturais.Nessa perspectiva, espaços de produção simbólica das comuni-dades, signos corporais, Iinguísticos e cornportarnentais sãotransformados em sintomas de uma dada enfermidade, adquirin-do significados causais specíficos c gerando determinadas reaçõessocietais. J\ semiologia popular e os modelos culturais de inter-pretação I1?íO existem como corpo sistematizado e formalizadode conhecimento, mas são formados por um conjunto variado deelementos imaginários e simbólicos, ritualizados como racionais.

As categorias componentes dos sistemas 'sspS' são fragm n-tadas, contraditórias, parcialmente compartilhadas e construídaslocalmente, organizadas em múltiplos istemas semânticos epraxiológicos (isto é, estruturados em práticas), historicamentecontextualizados e acessíveis s mente em situaçõe con retas-vent ,cdmportam ntos e narrativa. No processo tidiano

de definição de categorias reconhecim nto de casos, as pe soas'comuns' não necessariamente funcionam identificando dernar-

l 85

Page 37: O que é saúde

IIII

caçôes nítidas de pensamento, mas percebendo semelhanças,

al:alogias e estabelecendo uma continuidade entre os casos deacordo com uma rica e Autuante variedade de critérios.

I~m processo ele construção, ainda incompleta, com lacunas

e inconsistências, a teoria dos 'sspS' representa inegável avanço.

Djstanciando-se das abordagens anteriormente analisadas ,apresenta-se sem hesitação como fundamento para uma teorja

social da saúde. I~ntretanto, mesmo (lue de forma indireta e ate.

nuada, essa teoria continua centrada na enfermidade, justificada

neste aspecto pela constatação de que a semiologia popular

também se estnltura em torno do conceito ele doença e seus

orrcJatos. Por um lado, ao considerar apenas parcial e fragmen-

tariam me o carnpr, biológico subjacente ao Complexo DME, a

abordagem dos 'sspS' corre o risco de se estruturar abstratamen,

te como um antinaturalismo, prjvjlegiando aspectos sociais,

culturais e linguísticos da doença em detrimento dos elementos

materiais e objetivos da doença, captados pela moderna tecno-

logia médica. Certamente tomar o conhecim rito médico e a,prática clínica COmo construções culturais (que de fato o são), e

por con eguinte objetos de inquirição anrropológica, não deslo-

ca a questão da materialidade dos processos e fenômenos da

saúde-doença-cujdado. Por outro lado, essa teoria apenas esboça

uma definição abrangente dos 'dispositivos [ atogênicos estrutu-

rais' ao desenvolver uma análise dos diferentes níveis de operaç~o

dos 'sspS' restrita às polaridades local-global e micro-macro social,

caract risticas do debate antropológico contemporâneo.

86 1

ATUALIDADE DAS TEORIAS CULTURAIS DA SAÚDE

Apesar de representarem evidentes avanços em relação aosmodelos biomédicos de doença, Kleinman, Good, Young e outros

anu'opólogos médicos realmente perma~ecem limitados pe~as't'cas curativas focalizando o retorno do enfermo ao funcio-pra J {, '.

enro normal e à vida sadia sem problematizar () que senanam ,essa normalidade e sem efetivamente explicitar a qual conceito

de saúde se vinculam. Mesmo considerando a importância con-

cedida a crenças e signifi ados culturais e a glossários pessoais

dos pacientes, bem como a proposla de integração dos diversos

componentes dos sistemas de cuidado à saúde c seus respectivosmodelos cxplanatórios, a visão desses teóricos sobre a questão

conceitual da saúde não teria sido suficientemente interdisciplinar.

De fato, restrita à perspectiva da saúde como ausência de enfer-

midade, pouco teriam contribuído para ampliar o escopo daabordagem médico-antropológica.

Como vimos, uma nova pauta de análise das redes semânticastrata os fenômenos da saúde-doença como narrativa, ao mesmo

tempo natural e cultural, resultante de processos concretos elecnferrnidadc parcialmente indeterminados, verdadeiro texto

marcado por tramas de diferente perspectivas. Nessa linha, redes

semânticas constitu m est ruturas profundas que ugam a enfer-

midade a valore simbólicos fundamentais, permanecendo, ao

mesmo tempo, fora do conhecimento cultural explícito e ela

consciência dos membros que compõem a soei dade, apresen-

tando-se como naturais.

Nesse sentido radi alment inológi o, o conh irnento da

prol I mática simbólica ela saúd ( seus contrapontos) I errnirearti ular e eXI ressar sist 'mas de pensam nto, linguagem a ão

r 87

Page 38: O que é saúde

produzidos social e historicamente numa I erspectiva muito maisenriquecedora que os modelos de determinação estruturaJ pre-dominantes no discurso teórico das ciências da saúde (Almeida_-Filho, 2000b, 2001).

Aplicando essa abordagem ao nosso tema, proponho que oespaço social da saúde compreende processos e vetores que nãopodem ser referenciados pela noção convencional de determinj.

ção social da saúde, mas serão mais bem compreendidos pelascategorias 'produção cultural' de práticas e 'invenção simbólica'de sentidos de saúde. O diferencial semântico corresponde, nUmaperspectiva epistemológica mais consistente, a diferentes planose efeitos da estrutura social em que operam os processos Con-cretos da saúde- loença-cuidado.

88 ]

5 SAÚDE COMO V ALaR

Neste capítulo, proponho avaliar as bases lógicas, teóricas emetodológicas da concepção de saúde como valor: valor de uso,valor d troca, valor de vida. Ao indicar essa abordagem, eviden-temente não srou a propor uma concepção anistórica dos dife-rentes sentidos da saúde, em abstrato, idealmente fundada emalgum valor int rínseco, misterioso, metafísico. De fato, conceitosde saúde como 'valor-em-si', na perspectiva de estado ou situaçãoaltamente desejável para () ser humano, têm sido criticados porvários autores devido a seu caráter idealista ou utó] ico.

Abordagens da doença e da saúde como objetos impregnadosou investidos de valor pela prática médica são classificadas porBoorse (1997) como 'um tipo de positivismo rn êdico'. A ideia desaúde como valor positivo e ela doença como lcsvalor é por elerefutada com base em dois contra-argumentos. Por um lado, amedicina trata muitas condições que não d fine como doença,como por exemplo intervenções cirúrgicas c m fins estéticos.Em reforço a essa constatação, no polo quase oposto, existemsituações indesejáveis (como a fome e o frio intenso) qu tambémnão con tituern doença, mas cujas consequências, complicaçõese scquela exig m tratamento, Por outro lado, problemas desaúde não tratáveis, condi ões terminais, traumas transtornosde comportamento são considerados com doença, m smo forado ai ao e da tecnologia biorné dica.

I 89

Page 39: O que é saúde

Pa~·a e~capar de im~asses conceituais desse tipo, ao atribuirvalor ~ saucJe.e seus .efeltos, defrontamo-nos de imediato Com aquestao da distribuiçâo desigual c muitas vezes perversa d

. J Osentes provJClos d valor na sociedade capitalista Vida 1. . ongeva eplena, com qualidade e desempenho, produtividade e satisfação

representa o ideal platôni o da saúde como valor social e potíLi~

c~ qu.e, J~uma sociedacle estruturalmente desigual e injusta, im-plicaria dJsparidadcs cle acesso, distJ-ihuição e controle de recursob . s,ens e servrços.

Portanto, a problematização da s3Lltle da maneira a [ui pro-

posta pre~cnde reafirmar que os gradientes socialmente perversos

reproduzidos em nossas sociedades refletem interações entre

~if~r~nças biológicas, distinções sociais, inequidades no plano

junc.IJco-político e iniquidades na esfera ético moral, tendo sem-

pre como expressão concreta, empiricamente conslatáveis, desi-

gualdades m saúde. Tratar essa questão do ponto de vista da

crítica t órica significa um esforço inicial no sentido de conhecer

com mais profundidade, para superar com efetividade, raízesestrutura e efeitos das desigualdades sociais no campo da saúde:

RAWLS, SEN E A SAÚDE

A mais importam- matriz teórica sobre o conceito de saúde

como valor é s m dúvida a t oria da justiça d John Rawls, pro-fessor da Universidade de I Iarvard na segunda metade lo sécu-

lo x:x.. Trata-se também do principal marc t órico que tem

sub idia lo a produção acadêmica sobre o I" ma desigualdades emsaúd n s país s de envolvidos (AJmei 13-[OiJl1o,2009).

A te ria da justiça de Rawls propõe igualdade d oportunida-

des também de di tribui ão de valores, bens e erviços referen-90 ]

res a necessidades básicas socialmente referenda las. Entretanto,

a saúde não é listada pelo autor como uma das liberdade básicas.Pelo contrário, Rawls define a saúde como um bem natural na

medida em que d pende dos recursos (el1dOJl'J7le1zts) individuais da

saúde, ::10 tempo que demarca conceitualmente a justiça (jtt.ftice)como uma categoria instirucionalizada de justeza (jairne.rJ) e uti-

liza () termo 'diferença' (difference) para designar soluções norma-

úvas que tomam a justiça como distribuição social compensató-ria de bens e recursos.

De certo modo, a noção rawlsiana de equidacl implica umcomponenl"e estrutural do sistema de valores coruraiuais da so-

ciedade burguesa, resultando em equivalência entre os conceitosde cquidade e justiça e, correlativamente, entre a falta de equida-

de e a noção de injustiça. A despeito da referência a noções

positivas de justiça (jtIJtice) e justeza (jairne.r.r), a problematização

metodológica dos gradientes sociais em saúde prjoriza estratégias

de definição pela negação, operando conceito de desigualdade

e diferença em lugar de igualdade e eguidacle (Almeida-Filho,20(9). Tal padrão mostra-se simétrico e consistente em relação

ao modo predominante de definição da saúde como ausência d

doença no campo da pesquisa em saúde individual e coletiva,

como vimo no capítulo 2. Em suma: equidade = ausência de

injustiça; saúde = ausência de doença.

Dando sequência a essa Linha de pensamento, vários autoresd senvolveram variantes dessa abordagem neoutilirarisia ao

problema das desigualdades em saúde. Dentre sses, lestaca-seAmartya n, prêmio Nob I de conornia de 1998, C.luetraz umaalternativa crítica à teoria rawlsiana de justiça, considerando que

a economia t ria sido criada historicament para ervir d Instru-

mento social de satisfá ão da n c sidades humanas.

r 91

Page 40: O que é saúde

Nas Radc/if! Lecltlres ministradas na Universidade de Warv;ick,

em 1972, Sen propôs revisar a teoria das escolhas sociais, Susten_

tado por uma formalização matemática rigorosa em sequência àcontribuição de John Nash (outro prêmio Nobel, protagonista

do filme Uma Mente Bnlhante). Como plataforma conceitual prag-

mática, a partir da crítica das abordagens utilitaristas do bem-

-estar econômico, Sen elabora uma concepção metodológica

integrativa das desigualdades, com duplo escopo (objetivo e

normativo). Do ponto .de vista da desiguallade objetiva _ equi-valente à variação r lativa de valor (monetário ou social) de

yualquer bem ou serviço por meio de um dado indicador eco-

nômico -, a questão da desigualdade entre dois elementos x e yimplica apenas comparabilidade em escalas cardinais de ordem

equivalente, Nesse caso, não haverá maior problema em formu-lar descritivamente as desigualdades x > y ou x < y.

No entanto, ao buscar fundamentar sua proposta teórica, Sendefine o 'bem-estar social' como vinculado a padrões de distri-

buição da riqueza e não como efeito da renda bruta ou riquezaapropriada, introduzindo aí a noção da renda relativa ou renda

distribuida. A noção de desigualdade normativa - referente ao

conceito de bem-estar social (social JlJe!fare)- remete portanto àdistribuição de um dado valor (rcnda, mas pode ser saúde) entre

dois elementos x e y, de modo equânime. Esta categoria de de-

sigualdade permite formalizar a questão da justiça distributiva

c mo solução otirnizada para criar equidad entre desiguais.

Trata-se de um problema lás ico de escolha social (social choice)para o problema da equidade redistributiva com o bjetivo derem:ediar desigualdades prcexisteni s. Entretant ,d ponto ele

i ta normativo, o problema nã e resolv apenas fixan lo cri-

tério abstrato d valor; de fato, depende da a ciiabilidade ou92 J

legitimação social da solução distributiva escolhida. om~ c~n-, ia devem-se considerar os aspectos de valor econorrucoseguenc ,

-sus leo-itirnidade social.!)el.'" lY

Sen atualiza e detalha essas ideias em obras posteriores sobre

ma principalmente em Desigualdade Reexaminada, de 1992. Ao te, . '. . . d A;>

nta crucial do pnmeiro desses textos e: Igualdade e que.pergu . . _ , . . dNuma perspectiva de aplicação metodológica, esse autor J~ltrO uz

v~riáveis focais relevantes (como, por exemplo, rendas, nqLlezas,

utilidades, recursos, lih rdades, direitos, qualidad de vi~a e.te.) e

ouU'as complementares. Concedendo em sua resposta significa-

iivo destaque à qu stâo da saúde, ao justificar paradoxos apareJ~-

res no tratamento dessa questão, Sen (2001) considera. que desi-

gualdade em termos de uma variável (por exe~plo, renda) pode

]cvar-nos a um sentido muito diferente d desigualdade no espa-

ço de outra variável (por exemplo, habilidade funcional, desem-

penho produtivo, bem-estar ou saúde). Em suas palavras:

Passem todas as pessoas exatamente similares, igualdade emum espaço (por exemplo, nas rendas) tenderia a ser.c~ngrueotecom as igualdades em outros (saúde, bem-estar, fe.lJcJdad~). (...)Uma das consequências da diversidade humana e que a Igual-dade num espaço tende a corresponder, de fato, a desigualdadeem outro. ( en, 200 l: 20)

Do ponto de vista conceitual, tal posicionamento implica

considerar uma questão complementar: igualdade onde? Para

resp nder a ela, ' en explícita a interessante concepção de :e~pa~

ço para a igualdade' sua noção orrelata de 'espaço avaliativodas desigualdades.

.No eixo principal ele sua obra, mas também em vários texto

secundários specíf )s, o autor utiliza numero s xernplo do

I 93

Page 41: O que é saúde

campo da saúde, em dois sentidos. Em primeiro lugar, para ca-racterizar necessidades distintas, propôs considerar linhas de basediferentes para a avaliação das desigualdades a escolha socialde estratégias redistributivas. Nesse caso, deixa espaço para sedefinir a saúde individual no âmbito do que chama de capahilities.Tal conceito, de difícil tradução para o português, algo entre'capacidades potenciais' e 'competências', constitui valiosa indi.ação no sentido da construção do conceito de saúde, nUma

direção apenas esboçada na fase mais tardia da abordagem par-soniana, conforme indicamos adiante.

lim segundo lugar, Sen propôs tomar a esfera da saúde, co-letivamente definida no plano socioinstitucional, como campode sist mas possíveis de compensação visando à equidade, den-tro do aparato do 1lle!lare state. Sugere então que um serviço na-cional de saúde poderia fazer parte de um sistema de justiçadistributiva indireta, comparável a outros sistemas de justiçadefinidos Iela distribuição direta de subsídios. O problematornar-se-ia potencialmente mais complexo, por exemplo aoconsiderar outras diferenças de base individual além da capahili!Jchamada saúde.

Essa abordagem v 10 a se tornar o principal marco teóricosobre o conceito de saúde como valor social, focalizando prin-cipalmente a questão da distribuição desigual d r nda e desaúde (Alm ida-hlho, 2009). Em 1990, Margareth Whitehead,consulLora-sênior da OM , elaborou um documento que se tornoua principal r ferência conceitual sobre equidade m aúdc na lite-ratura internacional. orno premissa básica, cquidade em saúdeequival ria a ju tiça no {.Iue·e refer à situação de saú le, qualidadede vida e sobrevivência, posto qu , idealmente, t dos e todas têm

94 ]

direito a uma justa possibilidade d realizar seu pleno potencial desaúde e ninguém estará em desvantagem para realizar esse direito.Em termos prát icos, essa aproximação conduziria a uma reduçãodas diferenças em saúde e no acesso a serviços de saúde.

Vários autores seguiram essa linha teórica, considerando que o .acesso a recursos de saúde constitui uma liberdade básica rawlsianaque, combinada com os endononents da saúde, compreende umacapacidade de gerar saúde (Almeida-Pilho, 2009). Desse modo,criticam implicitamente a proposta c1eSen corno inconsistentecom a noção bási a de distribuição justa ou quitariva de saúde.Enfim, uma abordagem ampliada da teoria de jusri a pod ria serútil para definir a distribuição da saúde na sociedade igualit·áriaideal como aquela em que o acesso à saúde não foi determinadopelo status ou pela renda socioeconôrnica.

DESIGUALDADES EM SAÚDE

Apesar da insistente referência a noções positivas de justiça,justeza e escolha social, a problernatizaçâo teórica e metodológi-ca dos gradientes sociais em saúd priorizá a negação, operandoconceitos de d sigualdacle diferença em lugar de igualdade eequiclade. Tal padrão mostra-se irnétrico e consistente em relaçãoao modo predominante de definição da saúde como ausência dedoença no campo da pesquisa em saúde individual e coletiva.Enfim, mediante os termos injustiça e do nça, tanto a ju tiçaquanto a saúde são tratadas como negatividade.

A prolífica literatura sobre determinantes so iais da saúdepadece de pobreza t órica na medi la em que raramente se ex-plicitam pressupostos epistemológicos e te rias ociais ru iaispara a oml reen: ão do significad dos on eito rela ionado

[ 95

Page 42: O que é saúde

96 )

às diferenças na saúde-doença-cuidado em populações . .Exceçãoparece ser a contribuição de Jume Breilh, epidemiólogo egu t. a~rta~o, _que compreende uma análise do significado político devanaçoes e desigualdades na saúde e na doença ante as dimen _. •• . c soesindividuais e coletivas, situando-as historicamente em relação aagendas específicas.

Breilh (2003) parte de um conceito-chave, diverszdad, que cor-r spooderia à variação em características ou atributos de urnauacla população (gênero, nacionalidade, etnia, geração, culturaetc.). A desigualdade, para esse autor, corresponderia a evidênciaselllpi.ri~amente observáveis da diversidade. Tais con eiros podemadquirir um sent ido positivo em sociedades em que predominemrelações sol idárias e de cooperação ent re gêneros e grupos étnj.c.os. Ne, ~ereferencial, a ineguidade (ineqllidad) seria uma catego-fI.aa~aJJtJca da diversidade lluC marca a essência do problema daU,.st.nb~Ção de bens na sociedade. Quando surge historicamente,a ,nequJuade constitui lado negativo da diversidade, tornando--se veículo de exploração e suboruinação. O termo 'iniquidade',l~or sua vez, seria sinônimo de injustiça. As di íerenças constitui-riam a expressão, nos indivíduos, ou da diversidade, em socieda-des solidárias, ou da inequidade, em sociedades em que hajaconcentração de poder (BreiJh, 2003).

~ distinção entre ineguidade e iniguidade proposta porB~·eJ~ mostra-se de grande interesse, tendo em vista que a dis-tn.buJçãO desigual de bens numa sociedade não teria ap nas umaraiz po~tica diretamente referida à justiça social (iniguidade),mas seria sobredeterminada estruturalmente (inequidade). Nãoobstante, os elementos estrutural e jurídico-político das d si-gualcla 1st [nado dis oosi . . ,., s quase c mo ISpOSIUVOSulagnosucos,

a.U1danão recobrem plenamente o complexo de questões vin-culadas à superação das alienações sociais. De fato, é precisoconsiderar os elementos simbólicos referidos à ética política eà moral social, expressos nos sentimentos de indignação e ver-gonha que, coletivamente organizados, constituem °eixo motrizdos processos de transformação radical das sociedades para aeguidade.

No processo de construção de subjetivida les e de identidadesindividuais, mediante a interação de diferenças e semelhançasindividuais e homogeneidade e diversidade coletiva,seres hurna-noS procuram mostrar-se diferentes de outros membros degrupos e classes sociais. Considerar tal questão significa trazer aopresente debate o conceito de 'distinção', tal como definido porPierre Bourdicu, influente teórico social francês rcc ntementefalecido. Referindo-se a práticas culturais vinculadas ao cstiJo eao gosto, Bourdieu (2007: 9) prOl õe o conceito de c stratégiasde distinção', quando a "definição dominante da 'distinção' cha-ma de distintas as condutas que listinguem lo sujeito] do comum,do vulgar, mesmo sem intenção de distinção".

No plano específico da saúde, é preciso consid rar diferençasediversidades que, por se situarem predominantement no planosimbólico, apareciam como hobi/I-1S (outra categoria da sociologiade Bourdieu) ou como mero resíduo da vida social dos sereshumanos, como gostos, estilos elevida, condutas de risco e idios-sin rasias de base étnico-cultural, t or ex mpl . Tal ponto devista implica incorporar, nas séries semânticas t madas comembasamento linguísti o do conceitos, um comp nente eU10-lógico essencial para a cornpr nsão da dinâmica das d sigualda-d s m saúde na soei dacl .

l 97

Page 43: O que é saúde

Consideremos () conceiro de 'disparidade' como forma gera]

de variações ou diferença individuais que ganham expressão

coletiva nas sociedades humanas. As formas particulares desse

conceito podem ser articuladas numa cadeia significante de pares

ou díades: semelhança/diferença; igualdade/ desiguaJdade; egui-

dadelinequidade. Outras manifestações das disparidad s assu-

mem definições tão peculiares que se sustentam em positividades

próprias, compre ndendo uma cadeia significante compOsta

pelos conceitos ele diversidade, distinção e iniquidade. Com base

nesses fundamentos, podemos articular as duas séries semânticas,selecionando algu ns signi fican Iés-chave.

A ocorrência ele 'variação' natural ou genética, cxpressa em

'diferenças' individuais, advindas da interação de processos so-

ciais e biológicos, produz 'diversidade' nos e paços coletivos

SOClalS 'desigualdad s' nas populações humanas. Por sua vez,

estruturas sociais, processos políticos perversos c poLíLicas de

governo sem equidade geram desigualdades relacionadas à ren-

da, à educação e à classe social, portanto 'inequidades', corres-

I ondcndo a injustiça social. Algumas dessas desigualdades, além

de injustas, são iníquas e, portanto, moralmente inaceitáveis;

constituem iniquidades que geram indignação e potencialmente

m bilização social. lim paralelo, nos planos simbólico-culturais,

ao construirem identidades sociais baseada na interação entre

diferenças individuais e padrões coletivos, ser humanos afir-

mam, na maioria das v zes por m io de mecanismos nã cons-

cientes, sua 'distinção' de outros como membro d segmentos,

grupo e classes sociai .

I srn su ma, ret orna ndo a idéia d quase-ordena men lO em es-

[a s u dimcnsões simultâneas de Sen, trata-se lc considerar

98 J

s fenômenos da disparidade social em planos 01.l campos dis-

~ . o conceito diversidade remete primordialmente à espécie,tintos. _ ,.diferença ao plano individual, desigualdad à eslera economl.co-

ial inequidade ao campo da justiça, iniquiclade ao político,-soc ,distinção ao simbólico.

Consideremos essa série semântica aplicada à questão geral

das disparidades em saúde. Por um lado, desigualdades (variação

quantitativa em coletividades ou populações) p_~c~emser expres-

sas por indicadores dcrnográ ficos ou epiderniol gico (no campo

da saúde) como 'evidência empírica de diferenças' em estado de

'ele e acesso ou LISO ele recursos assist nciais. Nesse caso, saú-sau

de pode onsriruir uma capa!Ji/i!y, no sentido de Scn, c não neces-

sariamente corr sponder ao produto de injusúças, como no uso

da noção de 'saúde real', conforme visto. Por outro lado, desi-

gualdades de saúde elet errninadas por desigualdades rcla~i~na~as

à renda, à educação e à classe social são produto de injustiça

social; na medida rn que adquirem sentido no campo político

como produto dos conflitos relacionados com a repartição da

riqueza na sociedade, devem ser consideradas orno incquidade

em saúde. Por sua vez, as incquidades em saúde que, mais que

evitáveis injustas, são vergonhosas, indignas, e nos despertam

sentimento de aversão, conformam iniquidade em aúde.

A dimensão da desigualdade em saúde constitui uma questão

bioéiica fundamental. Nessa perspectiva, ]isLinguir inequidade

d iniquidade não expressa um mero ex rcí io sernânti o. Signi-

fica introduzir, no proc sso de teorização, pr t nsarnern ncutr

e impc soai, elern ntos dê in ]ign~ção moral e polít ica. Tomar

corno referência apenas a dimensã da justiça, na esfera da equi-

dade ( do eu opo to, a in .quidad ) m I arece insuf ciente no

I 99

Page 44: O que é saúde

que diz respeito ao tema da dignidade humana. A proteção dosdireitos básicos de um criminoso ou a garantia das prerrogativasjurídicas de um suspeito de corrupção é certamente uma questãode equidade, posto que evoca o fundamento democrático dejustiça igual para todos. Entretanto, um óbito infantil por desnu_trição, uma negação de cuidado por razões mercantilistas ou umamutilação decorrente de violência racial ou de gênero conformameloqüentes exemplos de iniquidade em saúde.

Conforme argumentei em artigo citado (Almeida-Pilho, 2009),rejeito frontalmente qualquer possibilidade de considerar saúdecomo bem privado, commodity, produto, mercadoria ou serviçocornercializável, atribuindo-lhe valor monetário e, por conseguin-te, posição e preço num mercado de trocas econômicas. Visandoa subsidiar tal posição, proponho algumas questões epistemoló-gicas, teóricas e metodológicas sobre o tema desigualdades ernsaúde capazes de alimentar um debate que precisa, nesse mo-m nto de crises e transições, ser ampliado e aprofundado. Agora,tomando o referencial apresentado, entr as questões teóricaspertinentes com repercussões metodológicas, Prol onho destacaras seguintes: quais são as fomes de desigualdade, inequidade einiquidade em saúde? Como operam a opressão e a injustiça napr m ção persistência das iniquidades em saúde? Como abor-dar, de modo conceitualmente consistente em todoJogicamenterigoroso, tais questões?

Um primeiro pas consiste em recorrer a teorias críticas dasociedade e da politica capazes de explicar a práti as dos su jeitosno espaço social. Aqui, a demanda conceitual c ncentra-se nac nst rução e na validação de modelos explicativos Iicientes dospro essos hist 'ri os e sociais definidores d bjet de conheci-

100 )

menta em pauta, tendo como referência teorias de equidade ejustiça. De qualquer modo, qualificar desigualdades como sociaisdemanda definir o sentido de 'social'. No plano próprio da cons-trução metodológica, que ordem de determinantes seria impor-tante para compreender gênese e efeitos das iniquidades emsaúde? Em outras palavras, para compreender o papel das desi-gualdades na produção de doença, morbidade e mortalidade,tanta quanto saúde, qualidade e extensão da vida humana, éimperativo abordafa questão 'do que' (estados, processos, even-tos), antes de tudo, determina ocorrência, forma e atuação dosgradientes sociais.

QUESTÕES COMPLEMENTARES

Neste capítulo, busquei analisar o conceito de saúde comoum valor social e politico das sociedades modernas. Como amoeda, a saúde não constitui um 'valor-em-si', mas se torna defato um valor nos processos de intercâmbio. Dessa maneira, asaúde não é um poder qu s encontra no corpo, sequer se refe-r ao organismo individual, e sim é um mediador ela interaçãocotidiana dos sujeitos sociais. Nesse aspecto, encontro na obraeleTalcott Parsons intrigante antecipação elas noções foucaultia-nas de biopoder e cuidado de si, efeitos da geração difusa e pe-riférica de micropoderes.

No últim dos seus trabalhos, sobre a relação entre práticasocial e condição humana, Parsons (ajJlfd Almeida-Filho 2001:768) retoma l ma da aúd ,redefinindo-a etc mo um meio decirculaçã simbólica que regula a ação humana e outros proces-sos da vida", no contexto de uma curiosa analogia com o con-ceito econômico de riqueza (hea/th = })lealth). Nessa perspectiva,

. I

[101

Page 45: O que é saúde

a saúde não é algo que se pode 'armazenar', existe apenas en-

(.Juaruo circula, quando é 'usufruída'. A saúde

é a capacidade releonórnica do sistema vivo individual (...)sua capacidade de lidar com distúrbios (...) advindos tantoda operação interna do sistema vivo quanto da sua interaçãocom um aLI mais dos seus ambientes. (Parsons apuel Almeida-Filho, 2001: 768)

Enfim, a saúde parsoni.ina nao será eruâo () inverso ou a

ausência de doença; e sim ~I rnolést ia (sempre illnes.r, para Parsons)

deve ser o 'obverso' da saúde (o vocábulo 'obverso' encontra-se

registrado no Dicionário IJré/io como termo técnico da botânica,

designando um formato especial de folha reLiculada). Parsons

emprega essa curiosa analogia provavelmente buscando referir-se

a uma r lação hierárquica entre lados distintos e nem sempre

OI ostos de uma mesma figura.

Corno desdobramento, é necessário consid rar os efeitos dos

proc~ssos de cletcrrninaçâo social da saúde-doença e da produção

social da atenção-cuidado, expressos como desigualdades sociais

na qualidade de vida, diversidade no estilo de vida e inequidad s

na condições de saúde dos sujeitos. Penso que, n sse caso, vi-

sando a superá-la, precisamos nos engajar num trabalho sério

de construção con eitual e metodológica capaz de ubsidiar a

necessária mobilização política 00 sentido de t mar as difer nças

mais iguais ( u menos desiguais); ou seja, de promover igualdade

na diversidade, fazendo orn que se reduza o papel das diferenças

de gênero, geração, éini o-ra iais, cul turais e de clas e so ial omo

determinantes de desigualdades, inequidade e iniquidades eco-

né micas, so iais e de saúde.

1021

C0l11 prioridade, precisamos estabelecer fontes e origens das

desigualdades de modo distinto, mas compl mentar, à aproxima-

ção necessária aos ternas de natureza, estrutura e componentes

das desigualdades sociais em saúde do ponto de vista metodoló-

gico. Nesse sentido, desigualdades sociais podem se referir COI1-

crerarnenre a dis] aridades em propriedades, renda, educação,

poder político, saúd ,r sultantes de relações de poder econômi-

co e político entre sujeitos sociais.

Ainda orno desdobramento desse plano de articulação, será

irnpres indível investigar efeitos dos processos sociais de produ-

ção da saúde doença cuidado. Penso clue, nesse caso, importa

explorar o impacto elas desigualdades na qualidade de vida, no

estilo de vida e nas condições de saúde dos sujeitos. Teoricam n-

te, falamos da necessidade de uma abordagem das relações entre

'modo de vida' e saúde, que pode aproveitar bastante de concep-

ções não dimensionais das práticas sociais - por exemplo, o

conceito de habitusàe Bourdieu. Tal abordagem significa focalizar,

numa imersão et nográfica na coticlianidade, as práticas da vicia

diária c, nelas, o efeit o da dist-ribuição desigual dos determinantes

da. saúde-doença- uidado. Finalmente, o ref rencial das desigual-

dades sociais em saúd ' rode muito b .m incorporar a ideia de

vulnerabilidade social como um dos seus focos, agregando cate-

gorias orrelatas, d finidas de acordo com o plano de realidade

considerado, como, por exemplo, fra ilidade, vulnerabilidade,

suscetibilidade, d bilidade.

1103

Page 46: O que é saúde

6 SAÚDE COMO CAMPO DE PRÁTICAS

Neste GlJ ítulo, eu pretendo explorar concepções de saúdecomo práxis. Por questões históricas e políticas, a construçãoteórica (e retórica) da saúde tem sido realizada mediante o abun-dante recurso à metáfora d campo: a 'saúde' é um campo, ocampo da saúde coletiva, o campo científico da saúde etc. Pensoque nesse momento será oportuno revisar circunstância e efeitosdo uso de metáforas dessa ordem na construção teórica do con-ceito de saúde e dos objetos da saúde-doença-cuidado. .nfim,tomar a saúde como campo d saberes e de práLicas, resultado dacomplexa e rica trama de atos humanos e instituições socialmen-te organizadas e coletivamente estabelecidas para enfrentar, nosplanos simbólico e concreto, os efeitos de fenômenos, eventos,fatores e processos relativos a vida e morte, a satisfação e sofri-mento, normalidade e patologia, enfermidade e saúde.

Nessa perspectiva, retomando argumentos analisados ante-riormente (Almeida-Filho, 2000b), pretendo mostrar como umaanálise histórico-epistemológica revela ou denuncia campos desaberes recortados por paradigmas, do ponto de vista da críticateórico-conceitual, e setores de I ráticas conflagrados por lutas edi putas próprias das crises paradigmáLicas e sua transição-supe-ração. Para. isso, inicialrn nt ,apresento de modo breve objeti-vo alguns lcmcnios intr dutórios aos conceitos de 'paradigma'e' ampo social', cruciais para a discussão de alcanc e efeito da

llOS

Page 47: O que é saúde

I. ,

saúde como práxis institucional. Em !:>el-,rundolugar, pretendo

analisar a saúde como um campo geral de saberes e pdticas So-

ciais, capaz de art icular modelos de ações preven rivas de riscos ,doenças e morte, além de medidas de proteção e promoção dasaúde-do nça m indivíduos e na comunidade, em que principiosprecaucionários são cada vez mais valorizados.

PARADIGMAS E CAMPO

Originário cio grego antigo, categoria chave da ontologia

platônica, o termo 'paradigma' denota um s .ruido ra.:Loavclmen_

te estabelecido no campo teórico da filosofia da ciência. I,'m Al-i.ftmtttra das F...ezJolttfõc.rCic1ttiflca.r, sua obra mais divulgada, Thornn,

Kuhn propõe dois onjuntos de sentidos para o termo. Por um

lado, como categoria epistemológica, o paradigma constitui um

instrumento de abstração, uma 'ferramenta' auxiliar para o pen-

samento sistemático ela ciência, Nesse caso, trata-se de uma

construção destinada à organização do raciocínio, fonte de cons-

trução lógica das c:xl)lic(lções, firmando as rezras elementares de

uma dada sintaxe do pensamento científico e assim tornando-se

em matriz para os modelos teóricos. Por outro lado, o paradigma

constitui uma visão de mundo peculiar, própria do campo ocial

científico. Nesse sentido, implica um conjunto de 'generalizações

simbólicas', geralmente na forma de metáforas, figuras analogias,

configurando-se de certo modo como a subcultura de uma dadacornunidad científica (Almeida-Filho, 2000b).

A teoria kuhniana do paradigma científico (e suas variantes)

rejeita clarament o sentido do senso comum para o termo 'para-

digma', na acepção de padrão d referência ou modelo ~I er segui-

do, como ao se dizer Llue 'o sistema de saúde inglês ' () paradigma

rII,

J

I 106 ]

elamedicina social', por exemplo. No nível semântico, a categoria

paradigma tem provocado grand controvérsia entre os filósofos

da ciência. Porém, de todo modo, essa concepção fez avançar

uma abordagem consrrutivista da ci ência, propondo que a cons-

trução do conhecimento científico não se dá em abstrato, isolada

no individualismo dos pesquisadores, mas sim que ocorre inst i-

rucionalmente organizada, no seio Ie uma cult ura, de dentro da

linguagem. A ciência pode então ser vista como prática social

hisiori arnerue determinada que ó existe no seio do paradigma

(Almeida-Filho,2000h).

Partindo da teoria histórico-social de Kuhn, Boaventura

de Sousa Santos (2000) elabora o conceito de paradigmas

socioculturais e Irepõe a noção de 'transi ão paradigrnáiica'

para dar conta da dimensões social e política na pós-moder-

nidade. Segundo esse autor, os paradigmas socio u lt u rai s

nascem, des nvolvem-se e morrem. Assim, o paradigma da

modernidade surgido entre os séculos XVI e XVlll centrava-

se em dois pilares: regulação e emancipação. O primeiro foi

constituído pelos princípios do Lstado (f lobbes), do mercado

(Locke e Adam rnith) e da comunidade (Rousseau). O egun-

do seria formado pelas racionalidades web rianas - estético-

-expressiva (artes e literatura), cognitivo-instrumental (ciência

e tecnologia) e moral-prática (ética e direito). O paradigma

sociocultural da modernidade, embora arnbi ios c revolucio-

nário, enfrenta as contradiçõ s entre os dois pilares, gerando

promessas não urnpridas e lacunas irremediáveis. Assim, "

gue mais nitidamente ara teriza a condi ão so io uh ura l

dcst fim ele século é a absorção lo pilar da emancipação 1 elo

da regulação" ( ousa, amos, 2000: 55).

1107

Page 48: O que é saúde

N~ ~náLisedas revoluções cientificas, todavia, a visão kuhnia_na pnvilegia as ciências naturais, reconhecendo o caráter r'-paradigmáúco das ciências sociais. O paradigma dOminant: ne-campo científico da saúde fundamenta-se em uma série de o

pres-supostos que nos acostumamos a chamar quase pejorativamentede 'positivismo'. O positivismo mais radical considera que a reali-dade é que determina o conhecimento, sendo possivel uma abor-dagem imediata do mundo, das coisas e dos homens. Além dissoo paradigma do positivismo opera como se todos os entes consti~luíssem mecanismos ou organismos, sistemas COI11 determinaçõesfixas, condjcionados pela própria posição dos seus elcmenlos.

No senúdo cartesiano original, conhecer não é apenas expor() mecanismo do objeto nas suas peças fundamentais, mas sim sercapaz de reencorurar a posição de cada peça, reconstruir o meca-nismo e pô-lo em funcionamento. O processo do conhecimentoopera na direção da síntese, da remontagem do objeto reduzido,na tentativa de restaurar sua estrutura e função. De fato, umaversão ingênua do cart sianismo ainda assola o campo da saúdeprincipalmente na sua área de aplicação mais individualizada a. ,clínica médica. Perante os processos da saLlcle-docnça-cuidado,por exemplo, a metáfora do corpo como mecanismo (e dos seusórgãos como peças) tem sido efeúvamenl muito inOuente naconstituição das chamadas ciências básicas da saúde (Almeida--Filho,2000b).

Nessa etapa, a metáfora lo mecanism representa a formamais simplista de dar conta do conhecimento como revelação dodeterminismo do objeto, porém a ciência produz metáforas maissofisricadas e eficazes para explicar o s us objetos cada vez.menos tolerantes a abordagens reducionjstas. Por ess motivo, o

108 ]

aradigma mecanicista termina por encontrar uma série de dificul-~ades institucionais, politicas, históricas e principalmente episte-mológicas, logo alcançando limites na sua abordagem. O avançodo conhecimento cientifico rompe as frontei_ras impostas por essaforma de prática científica, que assim perd a posição prestigiosade fonte de legitimidade baseada em uma verdade racional.

Vejamos agora o conceito de campo. Devemos o conceito decampo social a Picrre Bourdi u. Nas epistemologias pragmáticascontemporâneas, define-se campo como espaço social relativa>mente autônomo, constituído por uma estrutura de redes derelações objetivas, rcn lo o conceito de habitJ(J (referentes simbó-licos) como central. Esse conceito permite considerar, no planoepistemológico, cenários, ator s e movimentos de crítica, elabo-ração e superação le matrizes paradigmáticas capazes de alimen-ta; o pensamento e a ação transformadora no âmbito da práxis.

Nessa linha, Bourdieu (1983) contribui com os conceitos decapital simbólico e campo científico, em que operam determina-ções políticas e cient íficas para a sua constituição. Para esse autor,além do capital econômico, cabe considerar no mund social ocapital cultural, o capital social e o capital simbólico. E, te último,fundamental para a análise do campo cientifico, manifesto comoprestigio, reputação, fama etc., seria a fontc e truturante da legi-timação das diferentes espécies de capital. O campo cientificoconstitui um campo social como outro qualquer, com relaçõesde força ~ monopólios, lutas e estratégias, interesses e lucros. Aprodução científica se dá num campo de forças sociais que podeser compreendido com um spaço multidimensional d relaçõeem qu os agenl s ou grupos de agentes ocupam determinadasposições relativas, em razão de diferentes tipos de poder. Dess

l109

Page 49: O que é saúde

I'I

modo, BounJi u (l983) articula eSlruturalmente os conceitos de

campo econômico, campo poUtico, campo literário, campo reli-gioso, campo científico. Com referência ::I este último, que nos

interessa, considera o campo científico (ou campo disciplinaJ)

como espaço social do capital científico. Subsidiariamente, po-

deremos considerar também o conceito de campo de ação tec-

nológica, definido como espaço de aplicação dos saberes e dastécnicas gerados pelos campos científicos.

PARADIGMAS NO CAMPO SOCIAL DA SAÚDE

No campo la saúde, o termo paradigma foi inicialmenr- uti-lizado por Juan Ccsar Garcia para orientar () desenho de planos

de estudo que facilitassem a incorporação cio ensino das ciências

sociais na saúde pública, mediante a incorporação de variáveis

psicossocioculturais pertinentes a modelos de compreensão daprodução social da saúde. Nesta acep ão, o terrn paradigma

aproxima-se da noção de modelo, como representação simplifi-

cada e esquemática da realidade que retém os seus traço mais

significaLivos, a exemplo do paradigma da 'história natural da

doença' de Leave]] e CJark ("1976) ou do 'campo ela saúde' (Paim& Almeicla-Filho, 2000).

Atualmente, podemos encontrar numerosos usos (e até abusos)

do conceito de paradigma no campo da saúde coletiva _ desde

uma equivalên ia do paradigma ao con eiio amplo de caml o

disci] linar, como por exemplo na noção de 'paradigma da saúde

pública', até um tralamento mais regionalizado de paradigma no

ntido da mera atitude perant uma instituição, como no múlti-

pl s usos qu o termo vem adquirindo no campo da ci A ncias da

g stão. Em um nível intermediário, no I rÓI rio campo da aúde,110 1

documentos oficiais de construção doutrinária têm feito uso do

mo na conotação le modelo ou abordagem, como por exemploter . ,., rde' () t .110a noção de 'paradigma da atenção pnmana a sa~ e. . ~1 I .

adizma tem sido também empregado para qualificar distintospar b .

movimentos ideológicos que se têm apres ntado suc.esslVam~n-

te no campo da saúde, tais como a medicina preven.uva, a ~aude

rnunitária e, mais recentemente, a saúde coletiva, a novaCO p' &saúde pública' ou () movimento da promoção da saúde ( rum '

Almeida-Filho, 20(0).

Nessa linha, resulta óbvio e imediato o uso da metáfora de

campo, juntamente com o seu referencial teóric~, para designar

o espaço social em LJue sujeitos aplicam conh~clmenlos e.op~-

rarn tecnologias ancorados em conjuntos articulados de 111st1-

ruições e redes sociais organizadas para reproduzir sabere~ e

produzir práticas de saúde. O trabalho ~eórico~epistemológlco

de in piração bourdieusiana empre ndido mars recen.tel11e~te

aponta ° campo da saúde como um espaço de saberes lnte~dl~-

ciplinares e muliiculturais e não propriamente como urna diSCI-

plina científica.

A ideia d que a saúde conforma um campo social apar~ce

formalmente em 1974, no Canadá, num documento conhecido

como Relatório Lalonde (Paim & AJmeida-Filho, 2000). Este rela-

tório lança as bases d um movim nt pela promoção da. saúde,

trazendo a meta de adicionar não só 'anos à vida, ma vida a S

anos'. Toma como modelo uma metáfora topológica que.v io a

e chamar cle 'campo da saúde', composto por guau'o eixos: a

'biologia humana', incluindo cicl s de vida, do na imento àadol s ên ia, ela mal uridade ao envelh irnento, ai' m d bi Sl-

temas complexos h rança gen ' rica; 'sistema de organiza ão

hn

Page 50: O que é saúde

dos serviços', contemplando as redes institucionais de cuidado,

compreendendo componentes de recuperação, curativo e pre-ventivo; o 'ambiente', definido de um modo amplo e abrangente,que envolve o social, o psicológico e o físico; e, únalmente, o'estilo de vida', considerando padrões de consumo e comporta_mentos de risco, atividades de lazer, participação política, empre_go e riscos ocupacionais.

Com base nessas idéias e aplicando modelos inovadores deplanejamento estratégico, implanta-se em várias províncias doCanadá um sistema de medicina socializada, síntese dos mode-los de atenção 1reccdcntes. J\ Carla de Ot tawa, documentooficial que institucionaliza o modelo canadense, define os prin-cipais elementos discursivos do movimento da promoção dasaúde: 1) integração da saúde corno parte de políticas públicas'saudáveis'; 2) atuação da comunidade na gestão cio sistema desaúde; 3) reorientação dos sistemas cle saúde; 4) ênfase na mu-dança dos estilos clevida. Propõe um modelo de atenção à saúdecom base em gravidadedos problemas de saúde, prioridade dostomadores de decisão, disponibilidade de soluções efetivas comresultado mensuráveis e ustos planejados, focalizando iniciati-vas centradas na promoção da saúde, na regulação, na I es [uisa,na eficiência da gestão e no estabelecimento de objetivos dos pro-gramas e planos de cuidado à saúde (Paim & Almeida-Filho, 2000).

Cabe aqui introduzir uma proposta de distinção, não trivial,entre campo da saúde (definido pragmaticamente no RelatórioI alonde e teoricamente na r er pectiva bourclieusiana, como vi-1110S até agora) e calUI o da saúd coletiva. orno campo de c?-nbecimento, a saúde coletiva e tuda fatos da saúde/doença empopulações como pr c sso s cial; investiga a dinâmica das

112 ]

doenças na sociedade como Buxos de reprodução social; buscacompreender práticas de saúde na sua articulação com as demaispráticas sociais; analisa as formas com que a sociedade identificasuas necessidades e problemas de saúde, busca sua explicação e,para enfrentá-los, constitui, organiza e sustenta um campo socialespecífico. A saúde coletiva, tal como vem se concretizando nasúltimas décadas, especialmente no Brasil, orienta-se para umadelimitaç~o I rovisória como um campo de pesquisa, de formaçãoacadêmica e profissional e de transformação d um espaço depráticas sociais especificamente voltadas para lidar com fenôme-nos, desenvolver conceitos, produzir conhecimentos, aplicartécnicas. É esse espaço peculiar e específico que proponho de-signar como campo da saúde coletiva.

Enfim, o cJue chamamos hoje de saúde coletiva se estruturasobre um campo disciplinar: a epidemiologia; um campo de açãotecnológica: o planejamento e gestão em saúde; e um campo deprática social: a promoção da saúde. Nessa perspectiva, pode serconsiderada como um campo de conhecimento de natureza in-terdisciplinar que desenvolve atividades de investigação sobre oestado sanitário da população, a natureza das políticas de saúde,a relação entre os processos de trabalho e doenças e agravos, bemcomo as intervenções de grupos e classes sociais sobre a questãosanitária. São disciplinas complementares desse campo a estatís-tica, a demografia, a geografia, a clínica, a genética, as ciênciasbiomédicas básicas et . Essa área do saber fundamenta um âm-bito d práticas uansdisciplinar, rnultiprofissional, interinstitu-ci nal e transetorial, L~ss campo é ertarnente caudatário doutro campos, como os campos de práti a o ial das p líticaspúblicas da saúde ambiental; o ampo d açã t cnológica da

[113