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O Reggae de Cachoeira

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Reggae de Cachoeira

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  • Brbara Falcn

    O REGGAE DE CACHOEIRA

    PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO

    1 edioPinana Editora

    Salvador 2012

  • 2012 by Brbara Falcn

    Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios empregados, sem a expressa autorizao.

    EditorGustavo Falcn

    Editora-assistente e CuradoraBrbara Falcn

    Capa, Projeto Grfico e EditoraoLucas Kalil

    IlustraoLuiz Fernando Pereira da Silva

    Produo GrficaCarolina Dantas

    RevisoClara Vieira

    Ficha catalogrfica elaborada por Solange Mattos CRB5/758

    F181 Falcn, Brbara.

    O reggae de Cachoeira: produo musical em um porto Atlntico / Brbara Falcn.

    - Salvador: Pinana, 2012.

    192 p. - (Sons da Bahia, v. 3).

    ISBN 978-85-65792-03-5

    1. Reggae - Cachoeira (BA). 2. Msica e sociedade - Cachoeira (BA). 3. Indstria

    cultural - Cachoeira- (BA). 4. Identidade social - Cachoeira (BA). I. Ttulo. II. Srie.

    CDD 781.646098142 20.ed.

    O site oficial do projeto disponibiliza contedo indito e verses digitais dos livros.www.sonsdabahia.wordpress.com

    Direitos desta edio reservados Pinana Ideias Integradas Ltda., para distri-buio gratuita.

    (71) 3624-1048 l www.pinaunaeditora.com.br

  • Recncavo, pela libertao do homem negro na Amrica e pelo repdio do homem branco na frica, vamos lutar pela libertao, vamos lutar, avante irmo.

    Recncavo, Edson Gomes

    Nas margens do Paraguau, em plena Amrica do Sul, s remanescente ficar...

    Remanescentes, Nengo Vieira & Tin Tim Gomes

  • Dedico este livro a toda famlia do reggae espalhada pelo mundo!

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo aos msicos entrevistados, pela generosidade e pela lio de vida a cada conversa que tivemos. Devo confessar que temi pela res-ponsabilidade do pioneirismo em abordar o tema tratado nas prximas pginas, mas sinto-me recompensada em poder contar um pouco das suas trajetrias. Espero que, aps a leitura deste livro, mais pessoas ve-nham a ter interesse em estudar suas obras.

    Manifesto aqui imensa gratido a minha orientadora, a Prof. Dr.Angela Lhning, pelo estmulo intelectual e, principalmente, pela simpli-cidade e cumplicidade. Os encontros com ela, com toda certeza, foram a bssola que orientou toda a estrutura desse trabalho. Meus sinceros agradecimentos aos professores Livio Sansone, Cludio Pereira e Os-mundo Pinho. bibliotecria Solange Mattos pela solidariedade. Aos colegas do Ps-Afro, pela convivncia estimulante e pela amizade. Agra-deo em especial ao colega Fabricio Mota, pelas conversas e materiais trocados, e por ter embarcado, junto colega Sueli Borges, na minha viagem. Aposto que os nossos trabalhos tero maior alcance sendo lan-ados juntos e que sirvam de estmulo para que mais pessoas estudem a msica negra da Bahia. Ao casal Carol Dantas e Lucas Kalil, que to ge-nerosamente ofereceram sua nova casa para abrigar estes trs filhos que acabam de nascer.

    Finalmente, agradeo a todos que colaboraram para a pesquisa que originou este livro. FAPESB pela bolsa de estudos que possibilitou a realizao desta obra. Em Cachoeira, a Mica e a Csar. Aos meus pais Gustavo e Din, aos meus irmos Ernesto e Clara, o amor de vocs essencial em minha vida. Aos meus tios e tias, primos e primas, amigos e amigas, o meu mximo respeito! Ao meu companheiro, Jorge Dubman, pelo carinho, compreenso e generosidade. Suas contribuies musicais acabaram ecoando nesta trilha tambm.

  • PREFCIO

    O trabalho de Brbara Falcn, que tenho agora a alegria de prefaciar, nos permite abordar de forma elegante e informada a gnese e o desen-volvimento de uma rica e expressiva tradio esttica da modernidade negra, o reggae em Cachoeira, o belo porto colonial s margens do impo-nente Paraguau. To extraordinariamente local em sua urdidura histri-ca, o processo em questo se explica, ao mesmo tempo, pela interface de reconexo experincia dos povos colonizados do mundo e s correntes globais de som e sentido que, como culturas viajantes, reinterpretam, do ponto de vista local/particular, a prpria histria global da dispora negra, colorida pelo cenrio local de tradio, cultura e tecnologia.

    O modo sensvel com que Brbara trata o tema, nos permite re-conhecer, nos agentes desse processo, sujeitos plenos e modernos, inventores de uma tradio, que reinterpretam o prprio passado, ao processar informaes diversas, reordenadas no dilogo com as prvias tradies presentes na paisagem cultural do Recncavo, estaleiro colo-nial/transatlntico. A secular e rica histria dos sambas e batucadas, e a fractal histria do reggae, encontram linguagem comum, ou ponto de intercesso, no mbito da tradio poltica de resistncia discursiva an-ticolonial as multicolores mensagens pan-africanas e revolucionrias da retrica reggae; e a religio, ou transcendncia, fonte espiritual de uma tica insurgente. Estes elementos, presentes no contexto e atuados pelos agentes, lhes permitem justamente constituir/fazer sentido a par-tir dessas (re)interpretaes ou tradues, que organizam o passado, sintetizando uma verdadeira revoluo musical.

    Fiel abordagem de Paul Gilroy, o trabalho nos permite interrogar a criao de uma verso local da cultura negra do Atlntico, sem in-corporar nessa abordagem nenhum tipo de devoo hierrquica, que reporia uma hierarquia Global/Local, na medida em que a cultura ne-gra do Atlntico feita de diversas localizaes, sendo assim justamente fractal, como diz Gilroy. De tal sorte que as estaes (portos) da cultura

  • negra global esto reinterpretando-se constantemente. O reggae na Ja-maica um n dessa rede, que continua a ser tecida e refeita na Inglater-ra, na Colmbia, na frica do Sul. E tambm em Cachoeira/So Flix. O mais interessante, entretanto, na discusso da autora, o modo como essas questes ganham vida atravs de prticas sociais objetivas, levadas adiante por agentes concretos muitos deles ainda circulantes nas ruas e praas da Herica Cachoeira: Edson Gomes, Geraldo Cristal, Tin Tim Gomes, Nengo Vieira, Sine Calmon e outros tantos heris populares da nossa dispora domstica.

    A autora, com muita acuidade, discute ainda o verdadeiro trabalho de representao em torno do significante frica, pea-chave na retrica emancipatria negra global, produzida localmente. Tal inveno opera como interveno esttico-politica, que apoiada, como diria Bhabha, na ciso do sujeito colonial, produz a diferena, como um dispositivo de enunciao ativo na linguagem, um movimento poltico e que ganha, no contexto colonial, o carter de ruptura com as formas de representao dominantes (para a tradio cultural racializada).

    A periferia (ou a margem/fronteira), podemos dizer assim, o novo paradoxo que pode representar o povo, o prprio novo, por meio da identificao de todas as contradies da representao negra no mer-cado, movimento por meio do qual os nativos, agentes conscientes de uma revoluo cultural, mobilizam a prpria transfigurao identitria. Ardendo, todavia, radiante, no corao dessa revoluo musical, queima a ideia de resistncia, categoria-chave na autopercepo desses agen-tes, jovens guerreiros, remanescentes no Terceiro Mundo, no terceiro es-pao, na terceira margem do Recncavo baiano.

    Osmundo PinhoAntroplogo. Professor adjunto no Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) da Universidade

    Federal do Recncavo da Bahia (UFRB), campus de Cachoeira.

  • SUMRIO

    APRESENTAO, 13

    CAPTULO I A MSICA NEGRA DO ATLNTICO, 19

    MSICA, IDENTIDADE E ETNICIDADE NA AMRICA, 21

    A ONDA BLACK NA BAHIA, 35

    A TRILHA DO REGGAE, 44

    CAPTULO II UM PORTO AFRO-BRASILEIRO, 63

    NOTAS MUSICAIS SOBRE CACHOEIRA, 65

    DO SAMBA AO AFROCANTO, 71

    NO BALANO DO REGGAE, 81

    CAPTULO III O ENREDO DO REGGAE NA TERRA DO SAMBA, 95

    DAS MARGENS DO PARAGUAU, 97

    BOTANDO FOGO NA BABILNIA, 105

    RASTAS DE CRISTO, 128

    CONSIDERAES FINAIS, 141

    REFERNCIAS, 145

    ANEXO 1. CRONOLOGIA DO REGGAE CACHOEIRANO, 154

    ANEXO 2. ANTOLOGIA DO REGGAE DE CACHOEIRA, 156

  • O REGGAE DE CACHOEIRA - PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO l 13

    APRESENTAO

    O meu interesse em tentar compor o enredo do reggae na cidade de Cachoeira vem sendo gestado desde 1998, ano em que o primeiro disco do gnero gravado no Brasil, o Reggae Resistncia, do cachoei-rano Edson Gomes, completou uma dcada de lanado. Nesse mesmo ano, Sine Calmon, conterrneo de Edson, conseguiu um feito indito no carnaval de Salvador importante vitrine da produo musical no estado teve sua msica Nayambing Blues eleita como a mais toca-da nos trios eltricos.

    De l para c, os fatos ligados a esta trama continuaram a chamar minha ateno. Em 2001, resolvi entender melhor o tema e fiz uma pes-quisa para o curso de graduao em Cincias Sociais, sobre o grupo Remanescentes, formado em Cachoeira no final da dcada de oitenta. Nesta demonstrei o pioneirismo dos cachoeiranos na adoo do ritmo e da esttica rasta, trabalhando o reggae de forma coletiva. Retomei o tema na pesquisa que desenvolvi para o mestrado, que a base deste livro, em que busquei investigar a trajetria do reggae em Cachoeira, identificando artistas e descrevendo grupos que passaram, a partir da dcada de oitenta, a adotar o ritmo como expresso esttica preferencial. Meu objetivo era tratar do processo de troca simblica e material desta verso local da cultura negra do Atlntico, centrando a anlise no proces-so de construo de identidade destes indivduos, tendo uma conexo com a indstria do lazer e da msica.

    Em 2007 comecei a fazer entrevistas, sendo a primeira delas realizada em Salvador, no ms de julho, com o produtor musical Wesley Rangel, proprietrio da gravadora WR. A segunda entrevista foi feita no Guaruj/SP, com um dos precursores do reggae em Cachoeira, o msico Nengo Vieira. Em Salvador, realizei em novembro entrevistas com os msicos Marco Oliveira e Geraldo Cristal. Em junho de 2008 foi feita, em So F-lix, cidade vizinha Cachoeira, entrevista com o msico Edson Gomes, em sua residncia. Gomes um dos personagens mais importantes nes-

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    ta trajetria, por se tratar do regueiro cachoeirano cujo trabalho obteve maior repercusso nacional. No mesmo ms, foi entrevistado seu irmo Tin Tim Gomes, tambm na cidade de So Flix. Todas as entrevistas seguiram um roteiro semi-estruturado e foram gravadas, sendo poste-riormente transcritas.

    Os depoimentos foram de grande utilidade para anlise do discurso dos entrevistados. Durante a pesquisa, foi reunida boa parte da discogra-fia produzida em torno do reggae de Cachoeira (lbuns e coletneas). Algumas fotografias de acervo pessoal dos artistas foram disponibilizadas e digitalizadas. Tambm foram colecionadas matrias de jornais e revis-tas, fotografias, alm de imagens das capas e encartes dos discos. Depois de mais de vinte anos de produo musical, alguns artistas e grupos ca-choeiranos tornaram-se comercialmente bem sucedidos no mercado fo-nogrfico, tendo registrado suas obras e atingindo nmeros considerveis de vendagem na Bahia e em estados como Pernambuco e So Paulo.

    A produo cultural realizada em torno do gnero por artistas cacho-eiranos vem tornando-se considervel, pois rene discografia de diversos msicos, totalizando at o fechamento desta pesquisa, em 2009, 22 dis-cos (alguns lanados ainda na fase do vinil), alm de outros meios fsicos, como o DVD. Artistas como Edson Gomes, Nengo Vieira e Sine Calmon ainda fazem uma mdia de cinco shows por ms, percorrendo, inclusive, alguns estados brasileiros. Em 2008, o msico Nengo Vieira esteve em turn brasileira, pela segunda vez em dois anos consecutivos, com o gru-po californiano Christafari. Em Salvador, houve uma rara oportunidade de acompanhar esse show na casa de espetculos Estao Ed Dez.

    Para que fosse feita uma anlise do discurso desses indivduos, foi considerada a importncia da cultura local em suas vidas e a influncia desta em suas produes. O Recncavo se notabilizou pela legio de poetas e cantadores que nascem h tempos em suas cidades histricas, formadas a reboque da cultura do fumo e da cana-de-acar. A riqueza afro-brasileira fez do seu povo especialista na tradio oral, transformada em toda sorte de manifestao. L, a msica, nascida nas senzalas dos engenhos de cana-de-acar, deu origem a chula, ao samba de roda e ao lundu. Desta mistura, emergiu na regio forte veio lrico responsvel

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    pelo aparecimento de talentos como Castro Alves, no campo erudito e Cuca de Santo Amaro, na literatura de cordel; alm de muitos annimos ilustres, que mantm viva a cultura local.

    O Recncavo do Brasil Colnia e Imprio transformou o sofrimen-to da escravido em substrato potico singular, com versos simples acompanhados de batuques e palmas, sempre carregados de musi-calidade. A msica, elemento presente no cotidiano de Cachoeira, foi fortemente abraada pela populao como forma de expresso e afirmao identitria, numa cultura onde a riqueza musical celebra-da durante todo o ano, sendo incorporada nas mais diversas ocasies. O samba de roda, a capoeira e a esmola cantada, por exemplo, so manifestaes que resistiram ao tempo e ocorrem durante todo o ano, em diferentes festejos. A famosa festa de Nossa Senhora dAjuda um desses momentos especiais, em que msicos das filarmnicas locais se misturam em meio aos mands e travestidos para promover um verdadeiro carnaval na cidade.

    Destaco aqui o papel que as filarmnicas tm desempenhado, des-de 1870 (quando foi fundada a Lyra Ceciliana primeira filarmnica de Cachoeira e segunda mais antiga da Bahia), verdadeiros centros culturais de formao musical e cidadania. Fundadas e formadas basi-camente por msicos negros, tiveram participao intensa na campa-nha abolicionista. O Maestro da Abolio, Manuel Tranquilino Bas-tos, foi uma figura de destaque nos movimentos em favor da liberdade dos escravos, tendo arrastado ao som do seu Hymno Abolicionista (composto em setembro de 1884) mais de duas mil pessoas, a maioria recm-libertos, pelas ruas de Cachoeira, na noite de 13 de maio de 1888. Temos assim, em Cachoeira, desde o sculo XIX, a msica como instrumento tanto de entretenimento como meio de protesto, traduzin-do aqui e ali a problemtica social.

    Dando um salto no tempo, indo para o sculo XXI, temos o Tincos como um dos mais importantes grupos vocais negros do Brasil, que traz para a msica brasileira a fora da ancestralidade africana. Mateus, Da-dinho e Badu a penltima formao do grupo divulgaram, nos anos 70, no Brasil e na frica, a sacralidade ancestral. Nas suas adaptaes

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    dos cnticos de candombl e sambas de roda, deixaram a marca daquilo que produziram como pioneiros.

    Considerando o momento histrico e as influncias mundiais e locais que chegam a Cachoeira, temos, nos anos 80, uma novidade nesse ce-nrio. Um conjunto de mudanas culturais, especialmente vividas pela populao jovem, inaugura um perodo de revalorizao de elementos negros e de sintonia com um ritmo recm-chegado da Jamaica, o reggae. J em meados dessa dcada, surgem na cidade os primeiros trabalhos influenciados por esse ritmo jamaicano. Artistas como Nengo Vieira e Edson Gomes, que j traziam nas suas composies o lamento do povo negro, rearranjaram suas msicas no compasso do reggae. Ambos foram responsveis pela produo do primeiro disco do gnero gravado no Brasil, o Reggae Resistncia (1988). Isto porque o disco que lanou Ed-son Gomes no mercado fonogrfico incluiu repertrio com msicas dele majoritariamente arranjadas por Nengo.

    Assim, a identidade poltico-existencial com a mensagem rasta aproxi-mou jovens cachoeiranos do ritmo jamaicano, recriado entre os regueiros locais; numa cultura onde a msica est presente na religio, sendo im-portante nas procisses e ritos de transe do candombl, viva nos folgue-dos e serviu, principalmente, para a juventude falar de seus problemas e buscar ascenso no quadro de uma economia estagnada. Em Cachoeira, o discurso contra o establishment deu o tom ao reggae, chamando aten-o da juventude local que embarcou em peso numa viagem que levaria a libertao simblica atravs da msica.

    Neste livro, discutimos esse fenmeno sociomusical, tomando como referncia a riqueza cultural de uma cidade afro-barroca que durante muito tempo foi importante porto brasileiro na dispora negra. Trata o reggae como o vetor disseminador da palavra do oprimido e como ponte simblica entre a Jamaica e o Brasil, apresentando a msica como principal elemento de identificao entre os povos. Em suma, busca entender como se deu o processo de acolhimento do ritmo em Cachoeira e como esse fenmeno foi interpretado dentro de um con-texto local to peculiar.

  • O REGGAE DE CACHOEIRA - PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO l 17

    No primeiro captulo do livro, A Msica Negra do Atlntico, apre-sento o contexto em que surge o reggae no cenrio internacional e o caminho que ele percorreu at chegar ao Brasil. Nele, analiso a produ-o e o consumo deste gnero musical, entendendo que no se trata de um fenmeno isolado, visto que acontece em conexo com outros movimentos socioculturais, com ressonncias e determinaes histricas. O segundo captulo traz Notas Musicais sobre Cachoeira, onde esto personagens e cenrio que compem o quadro estudado. Nesse captulo descrevo o ambiente musical que influenciou os msicos que acabaram adotando o reggae como ritmo preferencial, mostrando o impacto na conscincia individual e coletiva destes indivduos.

    No terceiro bloco est O Enredo do Reggae na Terra do Samba, que contm relatos dos regueiros de Cachoeira. O captulo rene trechos de entrevistas dos msicos, que trazem uma descrio das suas trajet-rias, deixando que suas vozes transcritas sejam aqui ouvidas. Sete, ao todo, foram realizadas entre 2007 e 2008, na Bahia e em So Paulo, a maioria nas cidades de Salvador e So Flix. A esto os precursores do movimento na cidade estudada, msicos reconhecidos pela grande mdia na Bahia e alguns reconhecidos nacionalmente. Nesse captulo, analiso a produo em torno do reggae de Cachoeira, bem como fao uma descrio do pblico observado durante a pesquisa de campo. Trato tambm da importncia do componente religioso cristo na formao do reggae cachoeirano.

    A pesquisa etnogrfica inclui observao participante em diversos shows e cultos em igrejas, o que possibilitou tanto a compreenso do pblico que consome a produo destes artistas, quanto a maneira como este pblico percebe e recebe o discurso veiculado nas letras das msicas. A discografia reunida foi exaustivamente analisada, tendo como foco o que h de comum nas letras e msicas destes artistas. O cruzamento des-sas fontes facilitou a reconstituio dos fatos e a anlise do discurso dos personagens entrevistados.

  • O REGGAE DE CACHOEIRA - PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO l 19

    CAPTULO I

    A MSICA NEGRA DO ATLNTICO

    No texto a seguir ser discutido o papel da msica no processo de

    construo de identidades, na Amrica Negra, tentando criar uma cone-

    xo com o caso que estudo. A partir da literatura pertinente so tratadas

    questes sobre cultura e identidade, associadas ao fenmeno da globa-

    lizao e da influncia que a msica exerceu neste contexto em toda a

    Amrica. Examinar a importncia dos movimentos musicais e como es-

    tes estiveram ligados a movimentos sociais de diferentes procedncias

    o objetivo central deste captulo. Na segunda parte do texto, busco trazer

    essa discusso para o contexto da Bahia, onde, a partir da dcada de 70,

    um processo de reafricanizao possibilitou uma conexo entre msica e

    movimentos sociais. O terceiro bloco retoma a trajetria do reggae, des-

    de a sua origem na Jamaica at a sua expanso para o mundo.

  • O REGGAE DE CACHOEIRA - PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO l 21

    MSICA, IDENTIDADE E ETNICIDADE NA AMRICA

    Mr. Stevie Wonderful, a onda voc, cantando um rock, um reggae, um rhythmnblues. Ainda que os altos falantes da frica do Sul, no sintam as emoes da nossa alma blues, alma blues...

    Gueto, Nengo Vieira & Carlito Profeta

    Na atualidade, a complexidade das trocas simblicas geradas pelo processo de globalizao tem colocado em cheque as formas tradicionais de temporizao e espao nas relaes sociais. A acele-rao e o crescimento do fluxo dessas trocas, em todo mundo, leva-ram a sociedade a tal grau de complexidade que s possvel tratar de contextos locais e globais se for levada em conta o fenmeno da desterritorializao. Paul Gilroy assinala que os estados-naes foram eclipsados por uma nova economia do poder que atribui cidadania nacional e s fronteiras nacionais um novo significado (GILROY, 2001, p. 90). Em termos como globalizao, est contida a ideia de uma internacionalizao, que quase sempre foi colocada no polo oposto do estado-nao.

    Os estados nacionais, por sua vez, foram consolidados com base em um ideal de unidade de identificaes culturais. No campo da etni-cidade, as identidades de hoje tendem a exibir um grau mais elevado de desterritorializao. Livio Sansone argumenta que os grupos tnicos sempre viajaram, mas que hoje h mais oportunidades para a existn-cia de etnicidades com laos relativamente frouxos com um grupo ou uma comunidade sociologicamente definidos baseados num territrio especfico, ou originrios dele (SANSONE, 2004). Ele argumenta tam-bm que, ao longo das ltimas dcadas, parece ter evoludo um mundo caracterizado pela diversidade cultural para uma nova situao, que se caracteriza pela diferena tnica dentro de um contexto de relativa homogeneizao cultural.

  • 22 l Brbara Falcn

    Nesse sentido, o socilogo Albert Melucci aponta que a moderni-zao exerceu influncia direta entre a posio ocupada dentro das relaes produtivas e as culturas dos vrios grupos sociais durante a fase do capitalismo industrial. Para ele, a multiplicao de contatos e o constante fluxo de mensagens destruram a homogeneidade das culturas individuais, trazendo modelos culturais estandardizados. Essas culturas, no passado, foram caracterizadas como culturas de classe e, paradoxalmente, nestes contextos, as classes subordinadas gozavam de certa autonomia, sendo capazes de desenvolver prticas e formas de comunicao qualitativamente diferentes daquelas da cultura domi-nante (MELUCCI, 1996, p. 367).

    Contraditoriamente, nesse cenrio que emerge a heterogeneidade simblica e sociocultural dos povos, permitindo que marquem posies diferentes frente ao etnocentrismo ocidental, por meio de inmeras din-micas de identificao cultural que vieram conectar populaes de diver-sas partes do planeta, formando novas redes de significaes e fortale-cendo, de algum modo, as singularidades nacionais. Tais redes tornaram ainda mais complexa a ambiguidade identitria, prpria dos discursos de sntese. As diversas expresses de identidades negras na dispora so prova disto, pois mostram que os sculos de escravido e coloniza-o no foram capazes de apagar o legado da civilizao africana. Para uma anlise do processo de (re)construo dessas identidades em toda a Amrica deve se levar em conta os novos usos e sentidos simblicos do termo frica, dentro do contexto da globalizao. Alm disso, devemos levar em conta que o prprio conceito de globalizao vem se tornando cada vez mais impreciso, uma vez que o modelo de centro-periferia vem se tornando bastante questionvel.

    Embora reconhecendo que a ps-modernidade continua extrema-mente desigual e que no tenha se constitudo em uma nova era, o modernismo nas ruas que lhe prprio, atravs da cultura de massas, constata Stuart Hall, representa grande mudana no terreno da cultu-ra rumo ao popular rumo a prticas populares, prticas cotidianas, narrativas locais, descentramento de antigas hierarquias e de grandes narrativas (HALL, 2003, p. 337). Para ele, as lutas em torno das di-

  • O REGGAE DE CACHOEIRA - PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO l 23

    ferenas produzem novos sujeitos e novas identidades na poltica e na cultura. Inauguram um novo tipo de poltica cultural que vale no ape-nas para a raa, mas tambm para outras etnicidades marginalizadas, assim como o feminismo e as polticas sexuais no movimento gay e de lsbicas (ib. idem, p. 338).

    O campo da poltica foi ampliado pelo campo da cultura, inaugurando a ps-modernidade, quando novas identidades culturais surgem e impem novos arranjos sociais. Renato da Silveira, em seu ensaio Etnicidade, destaca a diversificao do movimento social a partir da dcada de 70 antes sindical e operrio propiciando o surgimento de ideologias par-ticulares, lutando por causas especficas e destaca a ascenso da cultura e da etnia como estimuladoras de mobilizao poltica e agregadoras de novas lideranas. Segundo ele, naquele momento, o grande movimento social globalizado havia colocado na ordem do dia a questo da etnicida-de e da cultura tradicional (SILVEIRA, 2005, p. 38).

    Para Stuart Hall, as manifestaes contraculturais dos anos 60 foram um marco do descentramento ps-moderno. Houve um alargamento do campo das identidades e uma proliferao de novas posies de iden-tidade, juntamente com um aumento de polarizao entre elas (HALL, 2002, p. 84). Hall identifica a emergncia de novas identidades, de uma nova postura poltica, agora centrada nas diferenas e na consolida-o de novos movimentos sociais afinados atravs da identidade social de seus militantes (ib. idem, p. 21) e pontua a abertura para a contes-tao poltica de arenas inteiramente novas de vida social: a famlia, a sexualidade, o trabalho domstico, a diviso domstica do trabalho, o cuidado com as crianas, etc. (ib. idem, p. 45).

    Nos anos 60 e 70, boa parte do Ocidente vivencia a contracultura, que acaba por influenciar no s a cultura, mas a poltica, dando origem a novas identidades na contemporaneidade. A onda da contracultura trouxe para a poltica questes de gnero, de raa, e questes indivi-duais, que transcenderam as questes de classe. Foi nessa poca que a indstria cultural se consolidou, atravs da televiso, dos discos e do r-dio fazendo com que essa gerao se comunicasse e se expressasse, sem barreira de lnguas. No por acaso, a msica foi pea-chave nesse jogo,

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    em todo o mundo. Atravs dela a juventude experimentou novas pos-sibilidades criativas, levando para essa forma de produo e consumo, temticas inovadoras no campo social, como as de cor e classe.

    E a Bahia no ficou de fora desse processo. A formao de algumas de suas identidades ps-modernas est associada a esse momento, pois sua recente reafricanizao1 um desses casos. O contexto mundial era favorvel e os tempos eram de consolidao de uma classe mdia e de uma elite operria na regio metropolitana de Salvador. A insero da Bahia na evoluo da economia nacional, via Petrobras, rodovia Rio-Bahia e Centro Industrial de Aratu, trouxe para a classe mdia a esta-bilidade para consumir e repensar o seu papel na sociedade. Coincidia tambm que aquele era o momento de independncia das ex-colnias portuguesas na frica.

    Assim, em meados de 70 e incio da dcada de 80, a juventude baia-na produziu uma resposta planetarizao promovida pelo desenvolvi-mento dos meios de comunicao e pela internacionalizao da indstria cultural, em um momento de quebra de fronteiras entre alta cultura e cultura de massa. Em grande medida assimilando as inquietaes de jovens americanos e europeus, estimulados pela contracultura, que termina por provocar nos jovens baianos o interesse pela cultura afro-brasileira, produzindo internamente uma releitura do movimento Black Power. E, sobretudo, construindo uma nova atitude do negro baiano diante de sua cor e do seu jeito de ser.

    Esta produo cultural foi, portanto, um processo de traduo entre mundos, linguagens e estticas, que aponta para a reinveno da frica como elemento poderoso e subversivo. A frica foi reinventada na Bahia, no sendo mais a do presente, nem a do passado, mas uma frica mtica, uma metfora. Para Bacelar (1989), a dcada de 70 apresentou uma con-juntura que possibilitou o desenvolvimento desse sentido da negritude na juventude baiana. Dentre os fatores determinantes, que propiciaram esse quadro, esto o momento poltico brasileiro, o surgimento da contracul-tura, o desenvolvimento dos meios de comunicao e a disseminao da msica popular massiva atravs dos discos, do rdio e televiso, e ainda a ascenso educacional do negro e sua mobilidade social.

  • O REGGAE DE CACHOEIRA - PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO l 25

    nesse contexto que surgem os grupos informais, a despeito dos blo-cos afro, que foram delineando uma nova esttica no carnaval baiano. Um olhar retrospectivo aqui mostra que a esttica musical das organiza-es carnavalescas o resultado de mesclas formadas pelo candombl, pelo samba e pelas referncias internacionais chegadas dos EUA, frica e Jamaica. importante frisar a relevncia desse movimento e da sua natureza etnicizante, pois a disseminao da cultura negra permitiu a segmentos da populao que jamais haviam aparecido o contato e conhecimento dessa cultura, abrindo passagem para a sua conscientiza-o de natureza tnica (BACELAR, 1989, p. 96).

    Destaco o importante papel da msica, que conseguiu romper a bar-reira das lnguas com muito mais facilidade que qualquer outra forma de expresso, viabilizando a universalidade de uma nova conscincia. Para Sansone, os msicos, a indstria cultural e o consumo de msica funcionam como repetidores do processo de globalizao. Ele afirma que enfocar aspectos da msica de forma comparativa pode oferecer novas perspectivas para o estudo do intercmbio entre globalizao e etnicida-de, e sugere uma reviso de muitas generalizaes da socioantropologia sobre a cultura juvenil, baseadas na situao dos pases mais industriali-zados (SANSONE, 1997, p. 221).

    Assim, com referncias jamaicanas, americanas e africanas, veicula-das pela mdia, e ao mesmo tempo somando as informaes locais, os blocos afro encabearam o movimento de negritude local, aliando as matrizes rtmicas ao discurso poltico. A msica que embalou o primeiro desfile do Il Aiy em 1975 resume a metamorfose entre o black e o afro, o soul e o ijex, o funk e o afox que escandalizou parte dos folies no carnaval daquele ano:

    Somo crioulo doido, somo bem legal, temo cabelo duro, somo black power (Trecho da cano Que Bloco Esse de Paulinho Camafeu, 1975).

    Sob as bnos da Ialorix Me Hilda Jitol, que realizou um ritual religioso com banho de pipoca, o Il saiu pelas ruas da Liberdade afron-tando parte da comunidade do prprio bairro para colocar o bloco na rua. Vov, fundador e lder do bloco, fala sobre isso:

  • 26 l Brbara Falcn

    A matriz musical do bloco no o funksoul, mas nasce revestida pela

    mesma atitude dos blacks. [...]. Pensamos em batizar o bloco de Black Power ou Mundo Negro. S depois decidimos por uma referncia africa-na (Vov do Il em entrevista ao CORREIO DA BAHIA, 29/05/ 2007).

    Sobre o primeiro desfile do Il, o jornal A Tarde publicou reportagem controversa, com o ttulo Bloco Racista, Nota Destoante:

    Conduzindo cartazes onde se liam inscries tais como black power e

    mundo negro, o bloco Il Aiy, apelidado de bloco do racismo, proporcio-

    nou um feio espetculo nesse carnaval. Alm da imprpria explorao do

    tema e da imitao americana, revelando uma enorme falta de imaginao

    [...] os integrantes do Il Aiy todos de cor chegaram at a gozao dos

    brancos e demais pessoas [...]. No temos felizmente problema racial. Esta

    uma das grandes felicidades do povo brasileiro (A TARDE, 12/02/1975).

    Em rplica ao texto do jornal, a discriminao do clube de elite e, um tempo depois, dos blocos de carnaval de classe mdia, Vov desabafa:

    As pessoas viam o bloco assim no incio porque no aceitavam a manifes-

    tao do negro e ns proclamamos o separatismo mesmo. S saa negro e

    cantando eu sou nego. Isso foi um choque mesmo. Na dcada de 80 a

    polcia pegava, levava preso e do nada o negro desaparecia. Ns consegui-

    mos resgatar um pouco isso de o negro ter mais espao, de admitir que a

    Bahia era racista(Vov do Il em entrevista ao site Ibahia, 18/03/2009).

    Depois do primeiro desfile do Il, os blocos afro e afoxs2 se multipli-caram. Mutu, Filhos do Congo, Olodum, Mal Debal, atualmente so mais de 803. O Filhos de Ghandi, fundado em 1949, tambm ressurgiu em meados dos anos 70, sob a batuta de Gilberto Gil, que empresta sua imagem frente do tapete branco. O afox Badau, criao de Moa do Catend, em 1979, traz um dos mais aclamados danarinos das rodas de black music, Negrizu, antes Rei do Brown ou Azulo:

    De Rei do Black Soul a Anjo Barroco e Exu, titula matria do jornal A

    Tarde, no princpio da dcada de 90. Pusemos azeite de dend no black,

    diverte-se Negrizu, vencedor do concurso Moo Lindo Badau, em 1981

    (CORREIO DA BAHIA, 29/05/2007).

  • O REGGAE DE CACHOEIRA - PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO l 27

    Para o pesquisador e etnogrfo Osmundo Pinho (2005), essa juventu-de negra reinventou uma visualidade e corporalidade a partir de releituras da cultura Soul norte-americana. Ele define a reafricanizao como um:

    [...] marco, aberto e policntrico, de referncia dessas lutas polticas

    pela representao em torno do negro, do corpo negro e da atualizao

    local de padres mundiais de reconfigurao identitria afrodescenden-

    te. Essa reafricanizao pode ser considerada como uma mquina de

    guerra que institui seu prprio teatro de operaes discursivas e sociais

    (PINHO, 2005, p. 128).

    A msica, uma das mais evidenciadas manifestaes da cultura po-pular, tem desempenhado uma importante funo no processo de cons-truo de identidades na sociedade moderna. No por acaso, o papel que a mesma desempenha nesse processo tem sido sempre destacado. A produo musical reafirma sentimentos de pertencimento e diferencia-o, colocando em jogo a elaborao de uma identidade multicultural. Sobre esse aspecto, Pinho diz que:

    [...] no contexto do processo referido como reafricanizao, a juventude

    negra de Salvador em busca de afirmao cultural e modernidade entrou

    em conexo com a onda mundial da msica negra norte-americana. Ja-

    mes Brown e a msica funk tornaram-se, a partir dos anos 1970, mais

    um dos elementos da cultura negra baiana, com uma diferena: agora

    esta tambm poderia se reconhecer como internacional, falante de ingls,

    jovem, corporal, articulada na relao com os bens de consumo e com

    a mdia. A msica negra norte-americana comps a trama dos contra-

    discursos diaspricos discutida por Paul Gilroy em The Black Atlantic. Em Salvador, esses discursos caram em solo umedecido pelas tradies

    locais de interao entre brancos e negros e pelas formas tradicionais de

    resistncia africana na cidade (PINHO, 2005, p. 131).

    O socilogo ingls Paul Gilroy (2001) divulgou o termo Black Atlan-tic que hoje mais empregado por quem tenta refletir sobre a dinmica cultural dessa dispora. O Atlntico Negro no apenas um novo rtulo para um fenmeno antigo, tambm uma nova maneira de entend-lo. At recentemente, a maioria dos estudos sobre tradies negras era

  • 28 l Brbara Falcn

    prisioneira da ideia de razes. Os pesquisadores tentavam encontrar no continente americano, e onde mais comunidades negras se estabe-lecessem, as sobrevivncias de costumes de povos africanos, que se-riam julgadas autnticas ou no a partir do grau de fidelidade com que a origem era preservada, com a sua raiz. O conceito Black Atlantic deixa de lado a procura dessa raiz original e navega no fluxo e refluxo intercontinental (VIANNA, 2003).

    Na verdade, desde que o primeiro navio negreiro saiu da frica, o Black Atlantic vem se formando. O antroplogo J. Lorand Matory (1999) mostrou, em estudos conduzidos nas costas ocidentais e orientais do Atlntico, como complicado falar de iorubs ou de jejes antes da es-cravido. A moderna identidade iorub, por exemplo, no foi inventada em um local preciso da Nigria, mas no trnsito entre Lagos e Salvador, entre If e Havana (MATORY, 1999, p. 60). Os ex-escravos que depois da libertao voltaram da Amrica para a frica e os outros proto-ioru-bs que atravessaram o oceano vrias vezes, foram fundamentais para a criao das identidades tnicas que so foras polticas e culturais na frica de hoje. Assim como no mais possvel dizer se determinada m-sica, da maneira como ela atualmente tocada na frica, foi inventada no continente negro ou na Amrica.

    Para Paul Gilroy4, a msica e as prticas culturais e sociais de ori-gem africana na dispora negra so portadoras de um mundo melhor e de uma crtica selvagem ao capitalismo e ao Ocidente (GILROY, 1987, p. 39). Neste contexto, a msica negra seria uma das expresses mais importantes para determinadas populaes e mais, em algumas situa-es bem delimitadas, a expresso adequada ao nvel sociocultural e s caractersticas de algumas comunidades no seu esforo de reconstruo identitria.

    Na opinio de Stuart Hall, a relao entre as culturas e suas dis-poras no pode ser adequadamente concebida em termos de origem e cpia, ou de fonte primria e reflexo plido. Com Hall, argumento que a proliferao e a disseminao das novas formas musicais hbri-das e sincrticas no devem mais ser apreendidas pelo modelo centro/periferia ou baseadas simplesmente em uma noo nostlgica e exti-

  • O REGGAE DE CACHOEIRA - PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO l 29

    ca. A histria da produo da cultura e de novas msicas tem de ser compreendida como a relao entre uma dispora e outra claro, aproveitando-se de materiais e formas de muitas tradies musicais fragmentadas (HALL, 2003, p. 31).

    Segundo Hall, a produo diasprica obedece a seguinte lgica: transplante sincretizao diasporizao. Ele chama a ateno para alguns aspectos que caracterizam essa lgica, tais como: ausn-cia das ideias de origem, razes e nao; desconstruo da dicotomia centro-periferia; hiperfragmentao de elementos e diversidade de estilos (ib. idem, p. 41).

    As tradies inventadas de expresso musical so muito importan-tes no estudo dos negros na dispora e da modernidade porque elas tm ajudado a entender, atravs de experincias especficas, a crise da modernidade e dos valores que esta produz, e, mais especificamente, questes ligadas problemtica da identidade. Para citar exemplo de um pesquisador brasileiro, temos o antroplogo Hermano Vianna, que compe um quadro sobre musicalidade e identidade, onde o Atlntico uma grande rede, com ritmos e identidades conectadas. Tendo a msica popular como um dos principais eixos do debate cultural no Brasil, ele delineia um cenrio que permite a elaborao e a ressignificao de dis-cursos sobre a identidade nacional.

    Vianna (1995) enfatiza os intercursos tnicos e as negociaes trans-culturais entre diversos atores sociais na elevao do samba como sm-bolo nacional. dele a citao abaixo:

    A inveno do samba como msica nacional foi um processo que en-

    volveu muitos grupos sociais diferentes. O samba no se transformou em

    msica nacional atravs dos esforos de um grupo social ou tnico es-

    pecfico, atuando dentro de um territrio especfico (o morro). Muitos

    grupos e indivduos (negros, ciganos, baianos, cariocas, intelectuais, pol-

    ticos, folcloristas, compositores eruditos, franceses, milionrios, poetas e

    at mesmo um embaixador norte-americano) participaram, com maior

    ou menor tenacidade, de sua fixao como gnero musical e de sua

    nacionalizao (VIANNA, 1995, p. 151).

  • 30 l Brbara Falcn

    Hermano Vianna identifica traos da cultura negra naquilo que exis-te de mais contemporneo no cenrio musical a msica eletrnica mencionando que o jungle, um estilo musical britnico, que conta-minou todo o pop mundial, uma criao negra, inventada a partir da releitura que DJs negros, muitos de origem caribenha, fizeram do hip hop, que na Inglaterra se encontrou mais uma vez com o reggae, e se hibridizou com o house e com o tecno (todos estilos negros), produzindo uma sonoridade nunca ouvida em nenhum outro lugar do mundo (VIANNA, 1999, p. 01).

    Inspirada na ideia do Black Atlantic de Paul Gilroy (2001), a antro-ploga baiana Goli Guerreiro fala de uma rede atlntica, para tentar dar conta de um processo de trocas culturais. Guerreiro inspira-se tam-bm em textos de intelectuais como Stuart Hall e Hermano Vianna para desenvolver sua discusso acerca das conexes que se desenvolvem no mundo atlntico. Segundo ela:

    A rede atlntica promissora como unidade de anlise na medida

    em que aponta para uma perspectiva transnacional, transtnica e

    intercultural. [...]. A amplitude dessa rede nos permite explorar di-

    versos campos artsticos. H uma produo atlntica no cinema, no

    teatro, na literatura, etc. H um vastssimo acervo a ser investigado

    (GUERREIRO, 2006, p. 05).

    A expresso rede atlntica remete a um contexto transnacional, um espao hbrido, onde h negociao e conflito. O espao atlntico englo-ba o local e o global, permitindo uma viso geral e, ao mesmo tempo, detalhada do processo de produo cultural a engendrado. Segundo a pesquisadora, este espao permite compreender melhor a configura-o contempornea do mundo ocidental, assim como os elementos que constituem a produo cultural que gerada nessa rede. A pesquisa de-senvolvida pela antroploga teve como de partida um estudo realizado sobre o meio musical de Salvador, mais especificamente sobre a inven-o do samba-reggae. O referido estudo perseguiu pistas que acabaram por desenhar a imagem da rede atlntica, tendo o samba-reggae como exemplo de produo cultural hbrida. Segundo Guerreiro:

  • O REGGAE DE CACHOEIRA - PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO l 31

    Alm das recriaes estticas que deram origem ao samba popular

    urbano, elemento bsico do samba-reggae, a segunda pista so as

    referncias internacionais, que vm dos Estados Unidos, da frica

    e da Jamaica e se somam s informaes produzidas em Salvador.

    Esse processo que est na base da inveno do ritmo, representa a

    formao de uma negritude [...] (GUERRREIRO, 2000, p. 65).

    A antroploga faz importantes consideraes em sua pesquisa sobre o samba-reggae, ritmo que serviu de base para outras diversas sonoridades na atual produo musical da Bahia5. A exemplo de outros movimentos da musicalidade, a inveno do samba-reggae foi alm do desenvolvi-mento artstico local, pois trouxe uma srie de aes sociais para bairros como o Curuzu e o Pelourinho, criando uma verdadeira Revoluo dos Tambores6. Um dos personagens principais dessa trama, o percussionis-ta Neguinho do Samba, integrou o Olodum durante 11 anos, pertenceu a escolas de samba, ao bloco de ndio Apaches do Toror e ao Il Aiy. Para o mestre da percusso, Neguinho do Samba:

    A Bahia inicialmente no tinha um ritmo. Fazia um som tipo escola

    de samba. De repente ns conseguimos fazer um barulho com a

    cara da nossa terra, que o samba-reggae. Depois da bossa nova e

    da Tropiclia, s existiu o samba-reggae de novidade (CATLOGO

    OURO NEGRO, 2009, p. 18).

    O ritmo criado na Bahia caiu na rede atlntica e despertou o interesse de astros internacionais, como o jamaicano Jimmy Cliff e o americano Michael Jackson, que uniram suas canes s ba-tidas do Olodum. Outro astro da msica internacional que gravou com o grupo foi Paul Simon, que acabou levando o grupo pra uma apresentao com ele no Central Park em Nova Iorque, em 1990. Simon tambm gravou um videoclipe com o Olodum no Pelouri-nho, cantando a faixa Obvious Child. A hibridao, a mistura e as trocas (inter e transculturais) constituram-se em prticas das popu-laes transplantadas. Uma marca baiana, presente na capoeira, no samba, no acaraj e principalmente nos candombls. Todos, cones nacionais, mas naturalmente no h como sustentar nisto uma pu-reza estrutural. No h condies para propor um projeto essencia-

  • 32 l Brbara Falcn

    lista, nuclearizador de uma identidade cultural, que no seja fruto de constantes reconfiguraes. O ritmo atual no permite separar negociao de acomodao quando a questo gira em torno de inte-resses econmicos, polticos e religiosos. Todos os dias, a ordem do dia reinterpretar singularidades simblicas e existenciais (SODR, 1999, p. 167), desenvolvendo estratgias que possam alterar o equi-lbrio, deslocando o poder.

    A modernidade lquida, como afirma Zygmunt Bauman (2005), coloca a identidade em um processo de transformao que provoca fenmenos como a crise do multiculturalismo. Bauman fala de identi-dades lquidas, e diz que, em um ambiente de vida lquido-moderno, as identidades talvez sejam as encarnaes mais comuns, mais agua-das, mais profundamente sentidas e perturbadoras da ambivalncia. [...] esto firmemente assentadas no prprio cerne da ateno dos indivduos lquido-modernos e colocadas no topo dos seus debates existenciais (BAUMAN, 2005, p. 38).

    Para Livio Sansone (2004), as identidades nas sociedades modernas, antes que unificadas, substancializadas, so fluidas, mltiplas, consoante o capital social e cultural acumulado pelos indivduos. O autor afirma que alguns aspectos da globalizao, em vez de criarem a homogeneidade, acabam sendo teis para a criao de variedades locais da cultura negra jovem (SANSONE, 2004, p. 208).

    O processo de abertura Ocidental contracultura de dispora, ocor-rido aps o surgimento do movimento Black Power, durante a Guerra Fria, causou em toda a Amrica uma espcie de agitao cultural. Na Amrica do Norte, o Manifesto Negro de James Forman, de 1969 (no editado no Brasil), exigia uma indenizao pela escravido e defendia a instalao do Poder Negro. Parte do Movimento Negro da Amrica assumiu esta postura, num esforo de reconstruo de sua identidade e adequao material. O Manifesto de Forman, sem dvida alguma, trouxe um avano sociocultural substancial para os negros. Segundo Je-ferson Bacelar, o avano atingido pelos negros norte-americanos entre 1950 e 1980, do ponto de vista dos direitos polticos, e sua participao sem precedentes no crescimento econmico do pas, so inegavelmente

  • O REGGAE DE CACHOEIRA - PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO l 33

    um corolrio das duas tendncias de ao. Para ele, sem o equilbrio dos integracionistas e sem a radicalidade do nacionalismo negro, jamais teria sido modificada a questo racial na sociedade americana (BACELAR In: A Tarde, 08/05/1999).

    A busca da africanidade marcou por um longo perodo os conflitos tnicos, polticos e culturais, fortalecidos com a experincia da conquista da independncia dos pases africanos. A dispora africana pelo hemis-frio ocidental d lugar histria de futuras disperses, tanto econmicas quanto polticas, pela Europa e pela Amrica do Norte. Estas jornadas secundrias tambm esto associadas violncia e so um novo nvel da disjuno disporica, e no apenas reviravoltas ou impasses.

    Para Paul Gilroy, os mecanismos culturais e polticos no podem ser compreendidos sem que se atente para o tempo da migrao for-ada e para o ritmo quebrado no qual artistas e ativistas deixem re-gimes ditatoriais para trs e encontrem asilo poltico em outro lugar. Para ele a histria da msica jamaicana, cubana e brasileira no sculo XX pode ser facilmente construda atravs dessas linhas cosmo-polti-cas (GILROY, 2001, p. 21).

    No Brasil, a cordialidade construda pelo mito da democracia ra-cial, passa a dar lugar a adoo de traos polmicos. Neste sentido, o reggae propiciou que artistas como Bob Marley e Jimmy Cliff passas-sem a influenciar profundamente os movimentos de revitalizao da msica afro-baiana e a msica popular afro-maranhense. Os afoxs e blocos afro da Bahia podem ser considerados importantes nesse pe-rodo, tanto quanto as radiolas em So Lus do Maranho7. Tais ma-nifestaes representavam uma possibilidade de mobilizao poltica e uma tomada de conscincia da juventude negra brasileira. Durante toda a dcada de 80, o reggae aparece no repertrio da msica baia-na nas letras de compositores como Jorge Alfredo, Chico Evangelista, Moraes Moreira, Bu Machado e Antonio Risrio.

    Mapeando a interao dessa rede, Risrio (1981), tratando mais propria-mente do campo esttico cultural, destaca trs movimentos marcantes para a juventude negro-mestia: a onda black surgida com a soul music, que o Rio

  • 34 l Brbara Falcn

    de Janeiro se encarregou de irradiar para todo o pas; a projeo internacio-nal do reggae jamaicano e sua influncia resplandecente entre os brasileiros; o renascimento dos afoxs e o nascimento dos blocos carnavalescos afros da Bahia (referncia bsica da negritude brasileira), com o consequente reflorescimento de uma forma musical africana o ijex. Para ele, tanto na soul music quanto no reggae e no ijex pode-se encontrar o compacto trinmio homogneo que constitui a mnada e medula da musicalidade negroafricana: canto/ ritmo/ dana (RISRIO, 1981, p. 115).

    Na dcada de 70, com o aparecimento da soul music, a esttica negra passa a ocupar um lugar central no cenrio musical jovem em todo o mundo. Embalados pelo som de Ike e Tina Tuner, James Bro-wn e Stevie Wonder, os jovens negros norte-americanos adotam um novo black american way. O documentrio Wattstax (1973) mostra a influncia decisiva que a msica teve nesse novo jeito de ser do negro nos Estados Unidos. As letras das msicas traziam tona o cotidiano dos guetos metropolitanos e das lutas pelos direitos civis. No Brasil a soul music chega a partir do Rio de Janeiro, onde eclodiu o movimen-to black-jovem:

    Do Rio, o black-jovem ganhou o Brasil dos chics-shows da moada

    paulista aos jovens dos bairros proletrios em Salvador, adquirindo ca-

    ractersticas prprias em cada regio cultural do pas. O resultado mais

    positivo e culturalmente fecundo do movimento black-jovem esteve no

    fato da identificao do preto brasileiro com o preto norte-americano ter

    se dado principalmente no terreno da negritude. Com o black-jovem,

    o negro brasileiro ficou mais negro, acabando por se voltar para a cultura

    negra brasileira (RISRIO, 1981, p. 28).

    O Rio de Janeiro acabou gestando o embrio da exploso black no Brasil, j que foi l que chegaram os primeiros discos de forma quase clandestina. Em entrevista ao Correio da Bahia, Asfilfio de Oliveira Fi-lho, o Dom Fil, um dos responsveis pelo chamado movimento Black Rio conta como se dava a exportao das mercadorias:

    Era tudo acertado com as tripulaes dos avies. Atravs dos pi-

    lotos e aeromoas comprvamos os discos e tambm os perfumes

  • O REGGAE DE CACHOEIRA - PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO l 35

    Lunkcaster, o mais usado entre os blacks. Durante as festas tambm projetvamos nas paredes as imagens dos lderes negros america-

    nos (Dom Fil, entrevista ao CORREIO DA BAHIA, 29/05/2007).

    A conexo de pessoas como Dom Fil com alguns amigos na Bahia fez com que alguns LPs chegassem a Salvador. As equipes de som, como a Soul Grand Prix, divulgaram a msica que se transformou numa febre nacional. Assim o movimento que se iniciou no Rio acabou fortalecendo as relaes afro-baianas, possibilitando a constituio de novas formas de sociabilidade, lazer, produo e consumo da juventude local.

    A ONDA BLACK NA BAHIA

    Em 1977, os amplificadores das equipes chegam Bahia e agitam os grandes bailes de Salvador, em sales que facilitam a criatividade cor-poral. a que a febre black submete a prpria arquitetura das residn-cias populares de Salvador. O danarino Jorge Watusi menciona o fato em depoimento a Antnio Risrio:

    As casas que foram construdas nessa poca, l no Curuzu, tm uma

    coisa muito curiosa: os quartos, a cozinha, todos os cmodos eram pe-

    quenos, mnimos, mas as salas eram enormes, por causa dos bailes

    (RISRIO, 1981, p. 32).

    Como os sales facilitavam a criatividade corporal, em pouco tempo as pequenas festas, realizadas em residncias, perderam a fora. Con-cederam espao a grandes celebraes embaladas por diversificado aparato tecnolgico. Foi neste contexto que surgiu o Black Bahia, hos-pedado no Esporte Clube Periperi em 1979, simbolizando o auge do movimento Black em Salvador. Feito aos moldes dos bailes estaduni-denses, sobreviveu com o mesmo nome at os anos 2000, j descarac-terizado pelas outras expresses musicais. O Periperi foi o ltimo gran-de espao a abrir as portas para aqueles sujeitos de roupas coloridas e

  • 36 l Brbara Falcn

    cabelos ouriados. Antes disso, como j mencionado, em 77, o Clube dos Comercirios acolheu o primeiro grande baile Black de Salvador. Na ocasio, a equipe de som carioca, Soul Machine, apresentou ao pblico local uma parafernlia ensurdecedora. Coutinho, responsvel pela contratao da equipe, relembra o impacto no pblico presente:

    O pessoal ficou impressionado com o nmero de caixas de som. Fize-

    mos um verdadeiro paredo sonoro (Raimundo Coutinho Sobrinho/ DJ

    Tat, entrevista ao CORREIO DA BAHIA, 29/05/2007).

    Nesse mesmo baile, o danarino do grupo carioca, Nelson Triun-fo, apresentou na Bahia passos originais de uma dana desconhecida, atraindo olhares estupefatos pela cabeleira que no aparava desde 1972. A simples presena de figura to respeitada em sales baianos excita ainda mais o movimento Black Power:

    As pessoas pediam para eu mostrar se tinha rodinhas debaixo dos meus

    sapatos. Tudo por causa do passo de dana batizado de moon-walk, que

    voc escorrega o p como se tivesse danando na lua. A coisa estava

    engatinhando por aqui quando fizemos tudo. Foi a primeira festa com

    toca-discos de qualidade e equipamentos acsticos de ltima gerao

    (Nelson Triunfo, entrevista ao CORREIO DA BAHIA, 29/05/2007).

    Aps o baile, a equipe de DJs, danarinos, iluminadores e eletricistas obtm destaque da prpria mdia local, antes avessa ao movimento. Nel-son Triunfo e o lder da Soul Machine, Tadeu da Silva, ganharam parti-cipao especial no programa local do Big Ben, da TV Itapoan. Quando o grupo retornou para o Rio, Raimundo Coutinho assumiu o posto de responsvel pelas festas, tendo montado equipe de som prpria. Chegou a ir para So Paulo buscar referncias, pesquisar novos ritmos e bandas.

    Nesse perodo, comeou a circular pela juventude brasileira um moder-no ritmo africano, produto da sntese do rhythmnblues, da soul music e de outros ritmos da Jamaica, como o mento. Nascido nos guetos de Kingston, o reggae universalizou os dramas e esperanas do povo negro, sintetizados nas letras de protesto e de apelo espiritual. A origem do ritmo no pode ser vista separada dos processos de urbanizao e industrializao ocorridos

  • O REGGAE DE CACHOEIRA - PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO l 37

    na Jamaica a partir da dcada de 50. Tanto a industrializao quanto a urbanizao foram responsveis por um duplo fluxo migratrio, algo que acabou sendo crucial para a projeo mundial do reggae.

    O intenso xodo rural e o alto ndice de desemprego na cidade de Kingston fizeram com que os jovens migrantes se concentrassem em gue-tos, sobretudo em Trench Town, onde surgiram os rude boys. O filme Rockers: Itss Dangerous (1977), estrelado por msicos jamaicanos como Burning Spear e Gregory Isaacs, traz a atmosfera e o cenrio em que os rude boys agiam na cidade de Kingston. neste contexto que o reggae aparece como uma criao esttica nascida da necessidade de responder s novas realidades sociais de uma vida urbana, que se desenrolava nas condies miserveis e desumanas dos guetos (BARROW, 1993, p. 15). Todos esses acontecimentos contriburam tambm para que uma nova religio fosse adotada, o rastafarianismo.

    importante ressaltar que nesse contexto houve uma nova dis-pora, principalmente em direo aos EUA e Inglaterra. Bob Marley foi um dos imigrantes que assistiu de perto nos EUA os conflitos causados pela luta dos direitos civis. Guiado por Martin Luther King e outros lderes, o movimento pelos direitos civis tornou-se a mais bem sucedida aplicao da desobedincia civil da histria norte-americana. Com a dispora, o reggae ganhou o mundo e se popu-larizou entre estrelas do rock como Eric Clapton e Mick Jagger. Bob Marley tornou-se o primeiro astro internacional do Terceiro Mundo, o que se constitui em um passo importante para a superao do complexo de inferioridade cultural dos terceiromundistas. No Bra-sil, logo no incio, a juventude se identificou com o reggae e com a esttica dos artistas jamaicanos, que foi adotada atravs das tranas dreadlocks:

    Tranas jamaicanas dreadlocks foram adotadas; rostos de Marley e Tosh enfeitaram blusas e camisetas pelo pas afora; kaya e ganja;

    denominaes jamaicanas para a maconha consumida ritualmente

    pelos rastas, viraram grias entre os curtidores locais da cannabis (RI-

    SRIO, 1981, p. 115).

  • 38 l Brbara Falcn

    A msica foi, sem dvida alguma, um elemento de identificao entre as duas culturas, a jamaicana e a brasileira. O elemento musical se constitui assim como uma ponte simblica ligando povos distin-tos e distanciados geograficamente. O antroplogo Antonio Godi su-gere que as afinidades de longa-distncia podem ser explicadas pelo fato de ambos os movimentos, jamaicano e brasileiro, terem nascido de condies poltica, cultural e histrica similares. Para ele, as dis-cusses sobre globalizao cultural contempornea e o fenmeno de contatos de longa-distncia e identificaes podem ser discernidas no reggae, onde questes relativas ao poder e dominao so considera-das em uma nova dimenso caracterizada pelo relacionamento entre conexes local e global (GODI, 2001, p. 213).

    Alm dos traos em comum entre as duas culturas, outro ponto relevante a ser discutido a contribuio do negro para a formao musical do Brasil. Os negros contriburam fundamentalmente para a criao e a evoluo da msica brasileira. A maioria das narrativas de viajantes estrangeiros do perodo colonial registra essa relao entre negros e msica. As telas pintadas neste perodo trazem ne-gros cantando, tocando e danando. Durante sua estadia no Brasil (1816-1831) Jean-Batiste Debret registrou usos e costumes brasileiros dos primeiros anos do sculo XVIII, incluindo imagens de negros to-cando instrumentos como o berimbau. A relevncia destes registros est diretamente ligada ao fato de no termos registros fotogrficos e tampouco fonogrficos da poca. Em 1826, Debret visitou a Bahia e descreveu o que ele viu:

    Vi, durante minha permanncia, certo carnaval em que alguns negros

    mascarados e fantasiados de velhos europeus imitaram-lhes muito jei-

    tosamente os gestos ao cumprimentar direita e esquerda as pessoas

    instaladas nos balces: eram escoltados por alguns msicos, tambm

    de cor e igualmente fantasiados (DEBRET, 1978, p. 220).

    Os relatos dos viajantes e cronistas trazem observaes importantes sobre a cultura negra, principalmente no que se refere s expresses mu-sicais. Contudo, h que se problematizar essas tradues estrangeiras da cultura brasileira, limitadas inclusive por prestarem servio a corte local.

  • O REGGAE DE CACHOEIRA - PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO l 39

    Outro ponto a ser realado que tais manifestaes nem sempre eram bem vistas e aceitas pelos poderosos da poca. Joo Reis aponta que:

    O Conde da Ponte adotou uma srie de medidas para fazer fren-

    te ao que considerava excessiva liberalidade dos senhores com seus

    escravos. [...]. Foi estabelecido um toque de recolher para escravos

    circulando nas ruas sem passes assinados pelos senhores. Os batuques

    e danas, feitos de dia ou de noite, foram terminantemente proibidos

    (REIS, 1990, p. 104).

    Adotando uma estratgia diferente do seu antecessor, o Conde dos Arcos apostava na ttica de dividir para dominar:

    Ele acreditava que se deveria permitir aos africanos a prtica de suas

    religies, msica e danas tradicionais, pois a livre expresso das tradi-

    es africanas, segundo ele, aprofundaria suas diferenas tnicas. [...]

    Alm disso, escreveu ele, que os deixassem se divertirem para esquecer,

    durante algumas horas, a sua triste condio (REIS, 1990, p. 105).

    O processo de aceitao das tradies africanas nunca foi algo permiti-do, mas sempre negociado, quase sempre conflituoso. Reis o entende como um campo de poder minado de significaes, onde operavam escravos, se-nhores, autoridades militares, civis e eclesisticas e o povo livre em geral (REIS, 1996, p. 03). No Brasil, como nas demais colnias, os negros foram apresentados s formas artsticas e culturais europias em voga e passaram a manejar com desenvoltura instrumentos, elementos e linguagens de uma outra cultura musical. Inevitavelmente, deram a sua contribuio injetando a musicalidade negroafricana nos cdigos da msica ocidental. Criaram no-vos gneros musicais, novos modos de execuo instrumental, introduziram novos instrumentos e formas de dana. Segundo Joclio Teles dos Santos, desde o sculo XVIII, h uma participao bastante expressiva dos negros em atividades culturais atravs das manifestaes populares.

    A participao tnica era expressiva visto que multides de negros

    de um outro e de outro sexo, das diversas naes africanas, falavam,

    danavam e cantavam, ao som de atabaque, em lnguas diversas

    (SANTOS, 1997, p. 17).

  • 40 l Brbara Falcn

    A presena ativa do elemento negro na cultura brasileira e sua contribuio para o surgimento de uma identidade tnico-nacional foi decisiva para nossa formao como povo. Tal quadro leva a crer que os negros brasileiros, depois de anos de disperso cultural, conse-guiram reconstruir sua fisionomia e reinventar sua histria atravs de vrios mecanismos, dentre os quais os processos culturais permitidos pela msica e a dana. neste sentido que se pode falar da msica como um instrumento essencial de afirmao da identidade e contes-tao social, transcendendo barreiras e amenizando a desigualdade, muitas vezes de forma sutil.

    Atravs das performances musicais, as identidades so experimenta-das de maneiras diferentes, nos gestos, expresses corporais, vesturio e vocabulrio. Segundo Sansone (1997, p. 155), as tradies musicais, a cultura e o habitus em torno da msica so permeveis e receptivos aos sons, estilos e letras de outros lugares, mas tambm mostram aspectos tenazmente locais. A tradio musical popular de Salvador e do Recn-cavo, e os discursos cultos e populares em torno da musicalidade baiana representam o filtro pelo qual as influncias de fora so percebidas, reinterpretadas e, eventualmente, absorvidas. Talvez por isso o reggae tenha sido um ritmo bem absorvido pela cultura brasileira.

    Tratando-se de uma msica com um discurso poltico-existencial voltado para o negro, houve um fator importante para a adoo do ritmo no Brasil. O discurso tico e filosfico contra o establishment foi embutido de forma brilhante na melodia desta msica. O antroplogo Jos Jorge de Carvalho (1995) diz que o movimento rasta e a revoluo musical do reggae so, com toda justia, um desenvolvimento contemporneo de uma longa luta de autodeterminao e dos anseios de liberdade dos negros jamaicanos, ins-pirados, sobretudo, nas lutas dos Maroons8 e estabelecidos no sculo XVIII. Fundamentados neste discurso, os jamaicanos passaram a abandonar a marca de escravos coloniais e buscaram reconstruir suas identidades. Assim, a libertao simblica veio atravs da msica.

    No final dos anos 70, o ritmo jamaicano comea a circular na Bahia e, no final da dcada, surgem os primeiros trabalhos que o tomam como referncia. Em Cachoeira, msicos como Nengo Vieira, Edson Gomes,

  • O REGGAE DE CACHOEIRA - PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO l 41

    Eddie Brown, Tintim Gomes e Geraldo Cristal passam a adotar o reggae e a esttica rasta como referenciais. As composies destes artistas trazem uma novidade em relao ao que estava sendo produzido na Bahia at ento, visto que passam a incorporar em suas letras um discurso poltico social. J em 1988, a gravadora EMI lana o primeiro disco de Edson Gomes, intitulado Reggae Resistncia, considerado um trabalho pioneiro no gnero em todo o Brasil.

    Conhecido pelo grande pblico e alcanando um relativo sucesso comercial, tendo duas msicas, do referido disco, veiculadas nas rdios locais, Edson Gomes passou a se apresentar em todo o Brasil e a ser considerado o maior representante do gnero, at meados dos anos 90, quando surgem inmeros grupos de reggae em todo o pas. Nessa d-cada, tambm os cachoeiranos Sine Calmon e Nengo Vieira, do extinto grupo Remanescentes, seguiram carreira solo. Assim, o reggae na Bahia desponta como uma das expresses do negro oprimido, que passa a con-tar a sua realidade atravs das letras de protesto e lamento. Para Nelson Maca, essas:

    Vozes no-cordiais que denotam nitidamente a transgresso da fala

    que se instala no Brasil, fruto da imparcialidade racial de uma ptria

    mulata, oferecem uma imagem do negro oposta integrada e sorri-

    dente (GONALVES, 1999, p. 04).

    O desenvolvimento tecnolgico possibilitou que elementos dessa contracultura alcanassem fronteiras inimaginveis. O rap nasceu deste mesmo sentimento e percorreu um caminho semelhante ao do reggae, subvertendo a ordem musical atravs dos sound systems. Os sistemas ambulantes de sonorizao foram uma das solues encontradas por ne-gros em vrias partes do mundo como forma de propagar a sua msica-mensagem e de se divertirem em meio a uma cultura pr-estabelecida.

    importante citar que a migrao e o desenvolvimento tecnolgico permitiram que o reggae9 se renovasse, dando origem a variadas verten-tes, a despeito do dub e do dancehall. A produo musical jamaicana, na Jamaica e fora dela, em pases como Estados Unidos e Inglaterra, tambm deu origem a outros movimentos musicais como o Hip Hop. Em 50 anos

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    de produo, o reggae conseguiu uma projeo extraordinria, se con-siderarmos que a Jamaica no passa de uma ilha do Caribe, com uma populao de 2,7 milhes de habitantes, sendo 85% deles descendentes de escravos (MINISTRIO DAS RELAES EXTERIORES, 2007).

    O mais interessante de tudo que muito do que existe na msica popular hoje comeou na Jamaica: as verses de dub, os remixes, o rap e outros tantos efeitos eletrnicos. Neste amplo sentido, o reggae um trao da cul-tura cosmopolita, extrapolando os limites nacionais e se universalizando em sua expanso. Nele foram incorporados elementos da tradio negra e da cultura de massa global, expressos em canes de forte contedo poltico-religioso. Apesar de ter um discurso especfico em cada regio, foi a partir do elemento negro que se nacionalizou o reggae no Brasil. Foi atravs das reminiscncias da transplantao violenta, da experincia da escravido, do presente miservel, da violncia policial e da discriminao racial que o ne-gro brasileiro se identificou com esse trao da contracultura da dispora.

    Para o jamaicano Stuart Hall, as identidades sociais dos negros so estabelecidas por dois eixos: o da similaridade e o da continuidade, onde h uma busca de identidade originria africana, perdida pela dispora e pela colonizao; e o da diferena e ruptura, que faz as particularidades culturais das diversas comunidades negras. Neste sentido, a msica e a dana nada mais so, antes de tudo, meios de comunicao inventados e reinventados pelas populaes ps-escravas, num esforo de reconstru-o de suas identidades (HALL, 1996, pp. 68-74).

    Gilroy considera que a msica tem sido refinada e desenvolvida pro-piciando um modo melhorado de comunicao para alm do insignifi-cante poder das palavras faladas ou escritas. Segundo ele, a msica e seus rituais podem ser utilizados para criar um modelo pelo qual a iden-tidade no pode ser entendida nem como uma essncia fixa nem como uma construo vaga e extremamente contingente a ser reinventada pela vontade e pelo capricho de estetas, simbolistas a apreciadores de jogos de linguagem (GILROY, 2001, p. 209).

    Autores como Homi Bhaba (1998) e Stuart Hall (1996, 2002 e 2003) adotam o termo hibridizao e buscam nele uma abordagem crtica ao

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    princpio colonial, a pureza ou homogeneidade tnica. Eles criticam o nacionalismo cultural fundado no mito de pureza racial e abordam o hibridismo como a penetrao mtua dos polos renegados pelo discurso colonial: centro e periferia, oprimido e opressor, foras hegemnicas e foras subversivas. Assim, o hbrido no seria um elemento, mas sim um processo resultante do encontro/intercmbio da periferia com o centro e da periferia com as diferentes periferais. A partir deste encontro/inter-cmbio surgem novas identidades produzidas por um processo de nego-ciao cultural, onde h um dilogo entre tradio e modernidade.

    Em contraponto crtica de viso de cultura popular e tradio como algo que precisa ser preservado e mantido, Hall sugere que a cultura popular um dos locais onde a luta a favor ou contra a cultura dos pode-rosos transcorre (HALL, 2003, p. 337). E isso diz muito sobre possibilida-des de transformao no contexto mundial atual. O processo dialtico da cultura popular, em relao contnua com a cultura dominante, desta-cado pelo autor como ponto a ser considerado nos estudos e compreen-dido nos processos histricos, no como culturas inteiramente isoladas ou paradigmaticamente fixadas, mas como um processo dinmico de reorganizao e recriao permanente.

    Inquirir sobre a lgica do mundo social exige dar conta da riqueza cromtica produzida pelos atores que permanentemente esto negocian-do smbolos e representaes reguladoras. Ainda que a ideologia domi-nante seja a da classe dominante, a hegemonia que lhe legitima pressu-pe a existncia do outro. mais que isto, pois o exige como pea do jogo. O poder econmico e poltico exigem uma hegemonia no campo cultural, sobretudo, pois o tecido social resulta de um permanente jogo de foras, disputado simultaneamente em vrios campos. Este jogo em-purra tudo que no provm da classe dominante para uma periferia, que vem se tornando, cada dia, mais complexa e heterognea. Mas nessa periferia que os indivduos esto mais dispostos e disponveis para trans-formaes, que do origem a novas formas de expresso. E esta tem sido a verdadeira arma da periferia, a ferramenta de combate mais bem usada no embate contra o poder hegemnico (ALMEIDA, s. d.).

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    A TRILHA DO REGGAE

    E nasceu l na Jamaica, se expandiu pelo mundo

    Mas o Deus Criador, Jah, mandou chamar Marley

    Mas a gente que ficou no vai deixar morrer

    A bela msica, a bela msica reggae

    Rastafary, Edson Gomes, 1988

    O reggae, como diversos ritmos contemporneos, nasceu da mistura de estilos musicais, da Jamaica e do mundo, sendo resultado de uma srie de acontecimentos histricos e de influncias, locais e globais. Os meios de comunicao e difuso cultural desempenharam um impor-tante papel nesse processo, em especial os discos e o rdio. Atravs das ondas das rdios de Miami e Nova Orleans, muito populares no Caribe aps a Segunda Guerra Mundial, os jamaicanos tiveram acesso s novi-dades da indstria cultural norte-americana e souberam transformar for-mas de cultura estrangeira em algo nico e do seu prprio jeito, tornando o reggae uma msica transnacional e diversificada.

    O socilogo jamaicano Orlando Patterson considera o ritmo como uma das mais bem sucedidas criaes do Terceiro Mundo, sendo o seu desenvolvimento uma prova da complexidade da interao cultural global (PATTERSON, 1994, p. 04). Uma das principais causas apontadas por Patterson para a manuteno dessa complexa rede foram, sem dvida, as disperses geogrficas. Segundo ele, as migraes de jamaicanos para outros pases, que acontecem desde o sculo XIX, possibilitaram a troca de vrias culturas que eram reproduzidas localmente quando retornavam para a Jamaica. Para que se tenha uma dimenso disso, em 1880, cerca de 1.000 jamaicanos por ms migravam para pases da Amrica Central como Cuba e Panam (CHANG & CHEN, 1998, p. 13).

    Para Patterson, a Jamaica sempre teve uma rica tradio musical, origi-nada principalmente na msica africana trazida pelos escravos, mas sendo

  • O REGGAE DE CACHOEIRA - PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO l 45

    tambm influenciada pelos europeus (ib. idem, p. 04). Ritmos que antece-deram o reggae, a exemplo do calypso trazido de Trinidad e Tobago e do mento, eram produzidos atravs de instrumentos de origem europia, como o banjo e o violo. Segundo Chang e Chen, o mento foi a msica que dominou a Jamaica do final do sculo XIX at os anos de 1930, espe-cialmente em reas rurais, onde teve importncia at os anos 50.

    Na primeira metade dos anos 50, aconteceu uma migrao conside-rvel da populao do interior para as grandes cidades e o estilo, asso-ciado com as durezas da vida no campo, no conseguiu manter seu lugar entre os jamaicanos. Mesmo assim, deixou uma contribuio importante, j que o crdito da primeira gravao jamaicana vai para um medley de canes de mento10 cantado por Lord Fly (Bertie Lyons) e lanado pelo selo MRS (Mottas Recording Studio) em 1951 (ib. idem, p. 14). Carlos Benedito da Silva afirma que o mento demonstra o desenvolvimento musical na Jamaica a partir de ritmos estrangeiros:

    Influenciados pelo calypso de Trinidad e Tobago e pela rumba cubana, a

    diversidade foi ganhando forma e os jamaicanos comearam a desenvolver

    seu prprio ritmo, como o mento [...]. Paralelamente, nos Estados Unidos

    estava acontecendo a expanso do rhythm and blues [...]. A juventude ja-

    maicana captava o som produzido pelos black de Miami e New York [...].

    Comearam ento a incrementar suas bandas com a introduo de solos

    de trompetes que mais tarde dariam origem ao som instrumental, danan-

    te, alegre e agitado do ska [...] (SILVA, 2007, pp. 96-97).

    Na Jamaica, desde 1945, ritmos como o rhythm and blues, swing, bebop e soul foram adotados da cultura popular americana e adaptados, fazendo com que estes elementos fossem usados para fins prprios. A batida do rhythm and blues apresentada aos jamaicanos pelos ameri-canos que formaram base na ilha durante a Segunda Guerra tornou-se uma importante influncia para o reggae, tendo correspondncia com as palmas que acompanham as msicas nas igrejas e no mento, todas com uma nica origem: a msica de plantation (GILROY, 2001, p. 162). Temos, ento, a msica jamaicana como uma reinveno da tradio, que passa por transformaes que incorporaram elementos de outras culturas, isto ligado a interesses de determinados grupos.

  • 46 l Brbara Falcn

    Em meados dos anos 50, o jazz tornou-se musicalmente influente, principalmente em pases com tradio musical africana11, como o caso da Jamaica. Os clubes de jazz garantiram durante muito tempo a diver-so na ilha, gerando tambm um bom negcio para os seus proprietrios e msicos. Com o nascimento dos sound systems, a msica e a dana mi-graram dos clubes para a rua, arrastando verdadeiras multides. Como a grande maioria dos trabalhadores jamaicanos no tinha condies de comprar discos importados, passou a frequentar esses bailes.

    A histria moderna da msica jamaicana se inicia com os sound systems, que surgiram de forma criativa para driblar a necessidade econmica. Iro-nicamente, o business gerado em torno dos sounds acabou por transformar a histria social jamaicana. Durante anos, os sistemas de som direciona-ram os negcios gerados em torno das gravaes na Jamaica. Isto porque para tornar um sistema de som lucrativo era necessrio lanar sempre no-vas msicas. Assim, a produo musical per capita da Jamaica tornou-se mais extensa do que em qualquer outro pas do mundo. Com o surgimento das companhias de manufatura e distribuio, foram criadas oportunidades para os produtores individuais. Ento, qualquer um que tivesse dinheiro su-ficiente para encomendar 500 discos para prensar, podia comear um selo (BLACKWELL, 1993, p. 03).

    Os jamaicanos conservaram sua individualidade e mantiveram uma sociedade organizada atravs da msica, produzindo e consumindo uma cultura criada por eles. Para Orlando Pattersson (1994, p. 07), a Jamaica se constitui como um exemplo contrrio da homogeneizao da cultura no mundo e do modelo de dominao centro-periferia, pois mesmo sofrendo forte influncia da cultura norte-americana conseguiu gerar novas formas musicais, que propiciaram maior escolha e estmulo cultura local.

    A transmisso do reggae da periferia jamaicana para o centro americano

    no s ilustra a complexidade da interao cultural global, mas funciona

    tambm como precursora de um processo muito mais complexo que j

    integrou partes dos Estados Unidos com outros pases, to ou mais pro-

    fundamente do que estas partes que esto integradas com outras regies

    da prpria Amrica. Este aspecto da globalizao da cultura, o que resul-

  • O REGGAE DE CACHOEIRA - PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO l 47

    tou no desenvolvimento de cosmos regionais, inteiramente novo. Na

    verdade, surgiu apenas em torno das ltimas duas dcadas, em grande

    parte porque era dependente da revoluo do transporte de massa bara-

    to (PATTERSON, 1994, p. 07).

    Alm disso, a msica popular jamaicana antecipou mudanas na sociedade. Precedendo a independncia e afirmando valores culturais locais, numa poca em que a Jamaica fervilhava de talentos musicais, surgiu o ska, com uma batida marcada e danante, que misturava elementos africanos com o rhythm and blues de Nova Orleans. O ska levou os msicos de jazz para as sesses de gravao em estdios, trazendo para os discos excelentes solistas, como Don Drummond (The Skatalites).

    A pirataria cultural foi engrossando o caldo musical jamai-cano, criando um denso corpo de trabalho que atuou com grande dinamicidade. A produo e o consumo dessas formas musicais no podem ser considerados sem que se leve em conta outros processos, como os de circulao e mutao. Entender os fluxos de migrao que envolveram a sociedade jamaicana uma das peas-chave para entender a diversidade musical do pas. Desde o sculo XIX, quando a Jamaica ainda era uma colnia inglesa, comeou a receber imi-grantes chineses, que chegaram ilha at mais ou menos a dcada de 4012. Em 1946, um censo realizado no pas contabilizou a segun-da maior populao chinesa do Caribe (a primeira estava em Cuba). De forma surpreendente, os chineses se envolveram a fundo com a cultura local e tornaram-se relevantes para a cena musical da ilha. Ainda no incio dos anos 50, Thomas Wong foi responsvel pelo primeiro sound system jamaicano apesar de Coxsone reclamar o pioneirismo que executava blues e soul, na poca, preferncia da maioria da populao. Byron Lee, lder do The Dragonaires, ajudou a tornar o ska at ento considerada msica dos guetos jamaicanos uma mania nacional e mais tarde internacional. Tam-bm foi incentivador do carnaval jamaicano, sendo responsvel pela popularizao da soca no pas. Para os pesquisadores jamai-canos Chang e Chen:

  • 48 l Brbara Falcn

    Byron Lee esteve envolvido em todos os aspectos da msica jamaicana

    desde os seus primrdios, como lder da banda, promotor, produtor e dono

    do estdio. Embora alguns neguem a sua importncia, muitos tambm o

    depreciam por haver transformado a msica em um produto para o con-

    sumo da Cidade Alta. Em sua defesa, ele diz que ningum da Cidade Alta

    sabia do que a msica tratava, portanto eles no poderiam se identificar

    com ela. Pode-se dizer que fomos responsveis por mover a msica do

    oeste de Kingston para as classes alta e mdia que poderiam se dar ao luxo

    de comprar discos e apoiar a nossa msica. Em seguida, as estaes de

    rdio comearam a executar nossa msica e ela estourou. Lee est parcial-

    mente ressentido por ele ser de ascendncia chinesa e estar em uma terra

    cuja maioria de negros e que enriqueceu a partir de uma msica que ele

    no fez nada para ajudar a criar, enquanto seus verdadeiros originadores

    acabaram pobres(CHANG & CHEN, 1998, p. 210) [tradua nossa].

    A presena chinesa abordada por vrios artistas jamaicanos, como o cantor Yellowman, que em uma de suas msicas falava que queria pegar a filha do chins. J Prince Buster, em Black Head China Man13, caoa do seu amigo Derrick Morgan, que copiou um solo de sax produ-zido por Lester Sterling e enviou para Leslie Kong:

    You done stole my belongings and give to your China man

    God in heaven knows, He knows that you are wrong

    Are you a China man are you a black man?

    It dont need no eye glass to see that your skin is black

    Do you prefer your China man to your fellow blackman?

    Foi Leslie Kong, produtor chins, dono do selo Beverlys, que descobriu talentos como Jimmy Cliff e Bob Marley. Outro mito descoberto por Kong foi Desmond Dekker, que gravou o hit Poor me Israelite, primeiro single jamaicano a chegar no Top Ten no Reino Unido e Estados Unidos, em 1969. Vale lembrar tambm que Kong produziu o The Jamaicans, grupo de rocksteady responsvel pelo sucesso Ba-Ba Boom de 1966. Alm de msicos e produtores, chineses tornaram-se ativos em todas as frentes musi-cais na Jamaica. Uma das melhores histrias da msica jamaicana tambm foi escrita por dois jamaicano-chineses, os pesquisadores Kevin Chang e Wayne Chen, pela Temple University Press, na Philadelphia, em 1998.

  • O REGGAE DE CACHOEIRA - PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO l 49

    Outro fluxo de migrao importante para compreender a evoluo da msica jamaicana foi o xodo de msicos locais para outros pases. No incio dos anos 60, houve a primeira fase da migrao, para a Gr-Bretanha. Com o advento do sound system, as big bands foram sendo substitudas pelos DJs, o que levou msicos jamaicanos, como Prince Buster, a migrarem para o Reino Unido, para tentarem a sorte por l. Esses msicos passaram a se apresentar em clubes londrinos, onde sur-preendentemente o ska foi bem recebido pela juventude, tornando-se popular entre punks e skinheads. A aceitao do gnero na Inglaterra e Estados Unidos levaram criao de subgneros, como o ska punk. J em meados da mesma dcada, houve a segunda fase da migrao, dessa vez para os Estados Unidos. Durante esse perodo, iniciou-se um importante processo de interao cultural, onde a perifrica Jamaica consegue atravs de seus msicos, influenciar para sempre a histria da msica americana.

    DJs14 jamaicanos introduziram em Nova Iorque o toasting15 um novo estilo de apresentar as msicas tocadas nas festas, uma espcie de canto falado16, que originou o rap. Toasting, chatting ou deejaying o ato de falar ou de orar sobre um ritmo ou uma msica, atravs do improviso ou de letras pr-escritas. Na Jamaica, os toasters atua-vam como autnticos mestres de cerimnia que comentavam, nas suas intervenes, assuntos como a violncia das favelas de Kingston e a situao poltica da ilha, sem deixar de falar de temas mais prosaicos, como sexo e drogas. O rimar rtmico dos toasters jamaicanos e os DJs acabaram por influenciar o desenvolvimento do Hip Hop americano, tanto que um dos pioneiros do movimento nos Estados Unidos foi o DJ jamaicano Kool Herc (PATTERSON, 1994, p. 07). Nascido na Jamaica, ele imigrou, em 1967 (aos 12 anos de idade), de Kingston para Nova Iorque, trazendo seu conhecimento sobre a cena sound system e o toas-ting. Em meados de 73, ele chamou a ateno como DJ no Bronx, no incio usando o equipamento de som de seu pai. Depois construiu seu prprio equipamento, autodenominado de Herculords.

    A origem do Hip Hop se deu em block parties, festas que aconte-ciam em blocos abandonados no Bronx, como mostra o filme Beat Street

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    (1984). Seguindo a cultura sound system, Kool Herc tocava reggae e outros ritmos jamaicanos, alm do soul e do funk, enquanto falava algu-mas frases para fazer as pessoas danarem e dar-lhes boas vindas. Aos poucos, Herc desenvolveu uma tcnica revolucionria de girar os pratos dos toca-discos, com dois aparelhos tocando dois discos iguais, que origi-nou o break beat, fundamento musical do rap. Assim, os deslocamentos, voluntrios ou no, acabaram provocando a troca de informaes entre diversos continentes, gerando uma rede de comunicao em torno da msica e dos movimentos de musicalidade da juventude. O desenvol-vimento do reggae, talvez mais do que qualquer outra forma musical, ilustra a complexidade da interao cultural mundial. A Jamaica sem-pre teve uma rica tradio musical, originada principalmente da frica Ocidental, mas tambm foi influenciada na sua lrica e linhas meldicas pelos britnicos. Para Paul Gilroy:

    A circulao e a mutao da msica pelo Atlntico negro explode a estru-

    tura dualista que coloca a frica, a autenticidade, a pureza e a origem em

    crua oposio s Amricas, hibridez, crioulizao e ao desenraizamen-

    to (GILROY, 2001, p. 371).

    importante frisar que essas trilhas sonoras, deslocadas dos seus lugares de origem e das condies que as fizeram surgir, foram reela-boradas e passaram a ocupar espaos clandestinos, alimentando uma nova metafsica de negritude. Hermano Vianna considera a msica afro-americana um circuito intercontinental de tradies, onde todos os ritmos e identidades esto conectados na grande rede atlntica. Para ele:

    A msica afro-americana tambm no possui uma nica raiz fincada em

    algum descampado subsaarino, mas criou uma malha de tradies inter-

    conectadas de tantas maneiras e com tantos curtos-circuitos internos, que

    faz com que qualquer ritmo seja simultaneamente pai, filho, me, primo de

    todos os outros ritmos (VIANNA, 1999, p. 03).

    O reggae, criado nos guetos de Kingston, surgiu a partir de diversas influncias, em especial da msica americana, da igreja e do culto ras-tafri. Segundo Linton Kwesi Johnson (1993, p. 05), a igreja foi uma grande influncia para o gnero, em ambos os termos, vocais e lricos,

  • O REGGAE DE CACHOEIRA - PRODUO MUSICAL EM UM PORTO ATLNTICO l 51

    pois diversas canes rasta foram tiradas de seus hinos. Adiante, ser vis-to como o comprometimento com a denncia, transformaes sociais e mensagem religiosa se tornaram os fundamentos do reggae. De maneira curiosa, o rastafarianismo inspirado pela profecia do pastor jamaicano Marcus Garvey, que previa que logo na frica surgiria um rei negro, o 225 descendente da linhagem de Menelik, o filho do rei Salomo e da rainha de Sab, que libertaria a raa negra do domnio branco se pro-pagou entre o proletariado de Kingston como uma reao influncia ocidental (PATTERSON, 1994, p. 05), pois pregava o retorno dos negros para a frica, numa espcie de repatriao espiritual. A religio rastafri foi muito divulgada atravs do reggae, mas a sua expanso se deve, principalmente, a cantores e grupos como Big Youth e The Ethiopians, que antes mesmo de Bob Marley j haviam influenciado a juventude dos guetos jamaicanos.

    O rocksteady representou a primeira msica jovem da gerao ps-independncia, entre 1966 e 1968. Neste perodo, a cultura popular jamaicana comea a refletir isso, pois as influncias norte-americanas se tornam notadamente jamaicanas. Agora, os temas so-ciais aparecem em discos de protesto; como Israelites de Desmond Dekker, mostrando a preocupao com a temtica, o que passou a ser uma constante da por diante. Basicamente, o rocksteady se difere do ska por tratar-se de um ritmo mais lento, com a linha de baixo mais proeminente, riffs de guitarra tocados por apenas algumas cordas e incorporao do piano em detrimento dos metais da era do ska. importante lembrar que o ritmo surgiu na Jamaica em um momento de intenso xodo rural, o que provocou um aumento da populao dos guetos urbanos de Kingston, tendo uma influncia direta no com-portamento da juventude local (JOHNSON, 1993, p. 05). Muitos dos jovens migrantes tornaram-se rude boys e apreciadores do rocksteady e, no por acaso, eles prprios eram tema das letras desta msica, que tratava de problemas sociais, mas que tambm falava de amor.

    Muitos fatores foram determinantes na evoluo do rocksteady para o reggae, como novos ciclos de imigrao e a modernizao dos estdios jamaicanos. No final dos anos 60, msicos e arranjadores das principais

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    gravaes realizadas em torno do rocksteady, como o pianista Jackie Mitto (The Skatalites) e o guitarrista Lynn Taitt, partiram para o Canad para escapar agitao social e poltica que assolava a Jamaica. O ano de 1968 considerado oficialmente como o do nascimento do reggae, tendo como ponto de partida a gravao da msica Do The Reggay, do Toots and The Maytals. Para Lo Vidigal, professor da UFMG e pesquisador do Cen-tro de Estudos Caribenhos do Brasil (CECAB) da Universidade Federal de Gois, o ano de 1968 marcante para este estilo de msica:

    1968 marcou a emergncia e a difuso de uma perspectiva anticonfor-

    mista e transformadora que encontrou no reggae um veculo privilegiado,

    contribuindo para a conscientizao da humanidade em geral, tendo sido

    particularmente atuante nas lutas anticolonialistas no continente africano

    e para a afirmao do povo negro como capaz de direcionar sua prpria

    histria (VIDIGAL apud BRAGA & CARVALHO, 2008, p. 05).

    At meados da dcada de 70, o reggae esteve restrito Jamaica e s comunidades jamaicanas formadas nas capitais inglesa, americana e canadense, onde artistas comearam a produzir msica, princip