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1 O RETORNO DE SHERLOCK HOLMES   Arthur Conan Doyle

o Retorno de Sherlock Holmes

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  • 1O RETORNO DE

    SHERLOCK

    HOLMES

    Arthur Conan Doyle

  • 2ndiceA casa vazia ......................................................... 3

    O construtor de Norwood ................................ 17

    Os danarinos ................................................... 33

    O ciclista solitrio ............................................. 51

    A Escola do Priorado......................................... 65

    Black Peter ........................................................ 87

    Charles Augustus Milverton ........................... 102

    Os seis bustos de Napoleo ........................... 113

    Os trs estudantes .......................................... 127

    O pincen dourado ........................................ 139

    O atleta desaparecido .................................... 154

    Abbey Grange ................................................. 168

    A segunda mancha ......................................... 183

    O Autor e Sua Obra ................................. 200

    Compilado por

    Roberto B. Cappelletti

    Setembro, 2005

  • 3A CASA VAZIAFoi na primavera do ano de 1894 que toda a Londres estava interessada e o mundo espantado pelo

    assassinato do honorvel Ronald Adair, sob as circunstncias mais incomuns e inexplicveis. O pblico jtinha conhecimento de algumas particularidades desse crime que exorbitou da investigao policial, masuma boa parte naquela ocasio foi suprimida, pois o caso para a acusao era to consistente que no havianecessidade de apresentar todos os fatos. S agora passados quase dez anos que eu me permitireconstituir esses elos que compem o todo daquela notvel cadeia. O crime por si mesmo era de interesse,mas tal interesse para mim nada significava quando comparado inconcebvel conseqncia que meproporcionou maior choque e surpresa que qualquer outro evento da minha vida de aventuras. Mesmoagora, decorrido esse longo intervalo, ainda me emociono quando penso nisso, sentindo mais uma vezaquele sbito transbordamento de alegria, assombro e incredulidade submergir totalmente a minha mente.Deixe-me solicitar quele pblico (que demonstrou algum interesse nos rpidos vislumbres que euocasionalmente lhes proporcionei quanto aos pensamentos e aes de um homem muito notvel) que elesno me culpem se no compartilhei o meu conhecimento porque eu deveria ter considerado o meuprimeiro dever faz-lo no obstante tenha sido impedido por uma proibio especfica dos prprios lbiosdele, a qual s foi retirada no incio do ms passado.

    Pode-se imaginar que o meu contato ntimo com Sherlock Holmes tenha me interessado profundamentepelo crime e que depois do seu desaparecimento eu jamais tenha deixado de ler cuidadosamente os vriosproblemas que se apresentavam diante do pblico. Tenho sempre tentado por mais de uma vez e para aminha prpria satisfao pessoal empregar os mtodos dele em sua soluo, embora com resultadosmedocres. Contudo, no houve nenhum que tenha atrado tanto a minha ateno quanto essa tragdia deRonald Adair. Conforme li nas evidncias do inqurito (que levou a um veredicto de homicdio premeditadocontra alguma pessoa ou pessoas desconhecidas), percebi mais claramente o significado da perda da comu-nidade com a morte de Sherlock Holmes. Havia pontos sobre esse estranho caso que, eu estava seguro,teriam interessado especialmente a ele, e os esforos da polcia certamente teriam sido completados, oumais provavelmente antecipados, pela observao treinada e a mente alerta do primeiro agente criminal naEuropa. Todos os dias eu andava em crculos; revirei o caso em minha mente e no encontrei nenhumaexplicao que me pareceu adequada. Sob pena de contar a mesma histria duas vezes, recapitularei osfatos como eles foram revelados ao pblico por ocasio da concluso do inqurito.

    O honorvel Ronald Adair era o segundo filho do Conde de Maynooth, governador de uma das colniasaustralianas naquela poca. A me de Adair havia retornado da Austrlia para submeter-se a uma operaode catarata, e ela, seu filho Ronald e sua filha Hilda estavam morando juntos no 427 da Park Lane. Os jovensvoltaram-se para a melhor sociedade no tinham, at onde se podia saber, nenhum inimigo e nenhum vcioem particular. O rapaz ficara noivo da Senhorita Edith Woodley, de Carstairs, mas o compromisso forarompido por consentimento mtuo alguns meses antes, e no havia nenhum sinal de que qualquer senti-mento muito profundo tenha sido deixado para trs. Assim, pelo resto a vida {sic} o rapaz se deslocou paraum crculo estreito e convencional, pois era de hbitos tranqilos e de natureza no emotiva. O jovemaristocrata ainda estava nessa vida despreocupada quando sobreveio a morte, da forma mais estranha einesperada, entre as 10 e as 11:20 da noite de 30 de maro de 1894.

    Ronald Adair era apaixonado pelo jogo de cartas jogando continuamente, mas nunca de forma que asapostas o prejudicassem. Ele era scio dos clubes de baralho de Baldwin, Cavendish e Bagatelle. Ficouestabelecido que, no dia de sua morte, depois do jantar, ele tinha jogado uma partida de uste no ltimoclube. Ele tambm tinha jogado l pela tarde. O testemunho daqueles que haviam participado do jogo Sr.Murray, Sir John Hardy e coronel Moran provou que o jogo era uste, e que as partidas foram bastante

  • 4equilibradas. Adair podia ter perdido umas cinco libras, no mais. A fortuna dele era considervel, e tal perdano poderia de forma alguma afet-lo. Ele havia jogado quase diariamente em um ou outro clube, mas eraum jogador cauteloso, e normalmente vencia. Fora evidenciado que, de parceria com o coronel Moran, eletinha de fato ganho at quatrocentos e vinte libras numa nica sesso, algumas semanas antes, da duplaformada por Godfrey Milner e Lord Balmoral. Isto tudo de sua histria recente que surgiu no inqurito.

    Na noite do crime ele voltou do clube exatamente s dez. A me e a irm estavam fora, passando a noitecom um parente. A criada deps que o ouviu entrar no quarto da frente do segundo andar, geralmenteutilizado por ele como sala de estar. Ela havia acendido o fogo na lareira e a fumaa fez com que abrisse ajanela. Nenhum som foi ouvido do quarto at as onze e vinte, hora do retorno da senhora Maynooth e suafilha. Desejando dizer boa-noite, ela tentou entrar no quarto do filho. A porta fora fechada por dentro enenhuma resposta foi obtida aos seus gritos e batidas. Elas obtiveram ajuda e a porta foi forada. O joveminfeliz foi localizado prximo da mesa. Sua cabea tinha sido horrivelmente mutilada por uma bala de revlver,mas nenhuma arma de qualquer tipo foi encontrada no quarto. Na mesa havia duas notas de dez libras edezessete libras (dez em prata e ouro); o dinheiro fora disposto em pequenas pilhas de quantias variadas.Havia tambm algumas figuras em uma folha de papel, com os nomes de alguns amigos do clube adversriosdele , pelos quais se conjeturou que antes de sua morte ele estava empenhado em organizar suas perdas ouganhos nas cartas.

    Um exame minucioso das circunstncias serviu apenas para tornar o caso mais complexo. Em primeirolugar, no podia haver nenhuma razo satisfatria para que o jovem trancasse a porta por dentro. Havia apossibilidade de que o assassino o tivesse feito e depois escapado pela janela. Contudo, o desnvel era depelo menos vinte ps, e um leito de aafres floridos estendia-se completamente abaixo da janela. Nem asflores nem a terra exibiam qualquer sinal de distrbio, nem haviaqualquer marca na estreita faixa de grama que separa a casa daestrada. Ento, aparentemente, fora o prprio jovem quem haviatrancado a porta. Mas como ocorreu a sua morte? Ningumpoderia ter escalado a janela sem deixar rastros. Supondo-se queum homem tenha atirado atravs da janela, seria realmentenotrio que um tiro de revlver pudesse infligir uma ferida tomortal. Por outro lado, Park Lane uma rua movimentada; hum ponto de txi a cem jardas da casa. Ningum tinha ouvido otiro. E permanecia o homem morto e a bala de revlver quehavia explodido violentamente, assim provocando uma feridaque deve ter causado morte instantnea. Tais eram ascircunstncias do Mistrio de Park Lane, que posteriormenteseria complicado pela completa ausncia de motivos. Como euj disse, o jovem Adair no tinha qualquer inimigo conhecido, enenhuma tentativa tinha sido feita para remover o dinheiro ouas preciosidades do quarto.

    Revirei diariamente estes fatos em minha mente, esforando-me para estabelecer alguma teoria que pudesse reuni-los todose encontrar aquela linha de menor resistncia que o meu pobreamigo havia afirmado ser o ponto de partida de toda investigao.Confesso que fiz poucos progressos. tarde fui passear peloParque e por volta das seis horas encontrava-me no fim da OxfordStreet, prximo Park Lane. Um grupo de desocupados na calada,

  • 5todos voltados para uma janela especfica, orientaram-me para a casa que eu tinha vindo observar. Umhomem alto, magro, com culos de lentes coloridas que eu suspeitei fortemente fosse um detetive paisana estava propondo alguma teoria prpria, enquanto outros aglomeravam-se em volta para escutar oque ele dizia. Eu me aproximei o tanto quanto pude, mas as observaes dele me pareceram to absurdasque eu novamente me afastei, um pouco desapontado. Assim fazendo, choquei-me contra um ancio, umhomem deformado que tinha estado atrs de mim, e derrubei vrios livros que ele levava. Lembro-me deque quando os recolhi, observei o ttulo de um deles: A ORIGEM DA ADORAO DA RVORE, e mesurpreendeu que o camarada fosse algum biblifilo pobre que, como negcio ou passatempo, se dedicasse coleta de volumes obscuros. Esforcei-me para me desculpar pelo acidente, mas era bvio que aqueleslivros que eu tinha to desastradamente maltratado eram objetos muito preciosos aos olhos do seu dono.Com um rosnado de desprezo ele virou sobre os calcanhares e eu vi o seu dorso curvo e os seus bigodesbrancos desaparecem no meio da multido.

    Minhas observaes no 427 da Park Lane pouco fizeram para esclarecer o problema no qual eu estavainteressado. A casa era separada da rua por um muro baixo com cerca, totalizando no mais de cinco ps dealtura. Assim, era muito fcil qualquer um penetrar no jardim, mas a janela era completamente inacessvel,desde que no havia nenhum barril ou qualquer outra coisa que pudesse ajudar o homem mais ativo aescal-la. Mais confuso do que j estava, retornei meus passos a Kensington. No fazia cinco minutos queestava em meu escritrio quando a empregada entrou para dizer que uma pessoa desejava ver-me. Paraminha perplexidade, no era outro seno o meu velho e estranho coletor de livros, com sua face perspicaz eenrugada espiando de uma armao de cabelos brancos, e seus preciosos volumes pelo menos uma dziadeles apertados sob o brao direito.

    Voc est surpreso de me ver, senhor, disse ele, numa voz esquisita como um coaxar.Eu reconheci que eu estava.

    Bem, eu tenho conscincia, senhor, equando tive a oportunidade de v-lo entrarnesta casa ao vir mancando atrs de si,pensei comigo mesmo: apenas entrarei everei aquele cavalheiro para lhe dizer queeu fui um pouco spero nas minhasmaneiras onde no havia nenhum prejuzoimplicado, e que estou muito agradecidoa ele por apanhar os meus livros.

    Voc faz caso de uma ninharia, eudisse. Posso perguntar como soubequem eu era?

    Bem, senhor, se no for tomar umaexcessiva liberdade, sou um vizinho seu,pois encontrar a minha pequena livraria naesquina da Church Street, e ficarei muito felizpor v-lo. Talvez voc seja um colecionador,senhor. Aqui esto PSSAROS BRITNICOS, eCATULLUS, e A GUERRA SANTA uma pechin-cha, cada um deles. Com apenas cinco volumesvoc poderia preencher aquele espao na segundaestante. Parece desalinhado, no mesmo, senhor?

  • 6Eu movi minha cabea para visualizar o gabinete atrs de mim e quando me virei novamente, SherlockHolmes estava de p sorrindo para mim por trs da minha mesa de estudo. Eu fiquei de p e o encareidurante alguns segundos com absoluto assombro; ento parece que devo ter desfalecido pela primeira eltima vez em minha vida. Certamente uma nvoa cinzenta girou diante dos meus olhos e, quando clareou,encontrei o meu colarinho desabotoado e senti em meus lbios o gosto posterior de formigamento causadopelo conhaque. Holmes estava dobrado sobre a minha cadeira com o frasco em sua mo.

    Meu caro Watson, disse a voz bem conhecida, eu lhe devo mil desculpas. No tinha idia de queseria to afetado.

    Eu o agarrei pelos braos. Holmes! eu exclamei. realmente voc? verdade que est vivo? possvel que teve sucesso

    em escalar aquele terrvel abismo? Espere um momento, disse ele. Est realmente seguro de estar pronto para discutir essas coisas?

    Eu provoquei um srio choque com minha reapario desnecessariamente dramtica. Estou certo; entretanto, Holmes, quase no posso acreditar em meus olhos. Cus! pensar que voc

    voc entre todos os homens poderia estar aqui em meu escritrio.Novamente o agarrei pela manga e senti o brao magro e musculoso por baixo dela.

    Bem, de qualquer forma, voc no um esprito, eu disse. Meu velho amigo, estou encantado dev-lo. Sente-se e me conte como saiu vivo daquele terrvel precipcio.

    Ele sentou-se diante de mim e acendeu um cigarro da antiga maneira indiferente. Ainda estava vestidocom a indigente sobrecasaca do comerciante de livros, mas o resto daquele indivduo fora colocado numapilha de cabelos brancos e livros velhos sobre a mesa. Holmes parecia at mais magro e incisivo que o velho,mas havia uma palidez mortal em sua face aquilina que me falou que a sua vida recente no tinha sido muitosaudvel.

    Estou satisfeito em me esticar, Watson, disse ele. No nada engraado quando um homem altotem de reduzir um p de sua estatura durante vrias horas seguidas. Agora, meu caro companheiro,em matria dessas explicaes, ns temos, se eu posso solicitar a sua cooperao, o trabalho deuma noite dura e perigosa pela frente. Talvez fosse melhor se eu lhe desse um relato completo detoda a situao quando aquele trabalho for terminado.

    Eu estou cheio de curiosidade. Prefiro muito ouvi-lo agora. Voc vir comigo noite? Quando e onde voc desejar. Isto realmente como nos velhos tempos. Teremos tempo suficiente para um bom jantar antes de

    precisarmos partir. Bem, ento, sobre aquele precipcio. Eu no tive nenhuma dificuldade sria parasair dele, pela muito simples razo de que eu nunca estive nele.

    Voc nunca esteve nele? No, Watson, eu nunca estive nele. O recado que lhe enviei era absolutamente genuno. Eu tinha

    poucas dvidas de que havia encerrado a minha carreira quando percebi a figura algo sinistra dorecm-falecido professor Moriarty subindo o caminho estreito que conduzia segurana. Eu li umpropsito inexorvel em seus olhos acinzentados. Troquei algumas observaes com ele e entoobtive a sua permisso corts para escrever a curta nota que voc depois recebeu. Deixei o recadocom a minha cigarreira e a minha bengala e prossegui pelo caminho, com Moriarty ainda em meuscalcanhares. Quando cheguei ao final, fiquei de p distncia. Ele no sacou nenhuma arma, masinvestiu contra mim e lanou seus longos braos ao meu redor. Ele sabia que seu prprio jogo eraviver e estava apenas ansioso para vingar-se de mim. Ns cambaleamos juntos beira da cascata.Porm, eu tenho um pouco de conhecimento de baritsu, o sistema japons de luta que foi me muito

  • 7til. Eu escapei do seu aperto e ele, comum horrvel grito de protesto, esperneouloucamente durante alguns segundos,arranhando o ar com ambas as mos. Mastodos os seus esforos no puderamdevolver-lhe o equilbrio e ele se foi. Coma minha face sobre a beirada, eu o vi caipor um longo percurso. Ento ele bateunuma pedra em um ressalto e mergulhouna gua.

    Eu ouvi espantado esta explicao que Holmespronunciou entre as baforadas do seu cigarro.

    Mas os rastros! eu exclamei. Eu vi,com meus prprios olhos, que dois des-ceram a trilha e nenhum retornou.

    Foi mais ou menos isto. No momento emque o professor desapareceu, ocorreu-meque uma oportunidade extraordinria erealmente afortunada havia sido colocadaem meu caminho pelo Destino. Eu sabiaque Moriarty no era o nico homem que me havia jurado de morte. Havia pelo menos outros trscujo desejo de vingana contra mim s seria aumentado pela morte do seu lder. Eram todos homensdo tipo mais perigoso. Um ou outro deles certamente me alcanaria. Por outro lado, se todo mundofosse convencido de que eu estava morto, esses homens tomariam liberdades, iriam se descuidar ecedo ou tarde eu poderia destrui-los; ento estaria na hora de anunciar que eu ainda estava na terrados viventes. To rapidamente o crebro atuou de que eu acredito que tenha imaginado isto tudoantes do professor Moriarty alcanar o fundo da Queda de Reichenbach.Eu me levantei e examinei a parede rochosa atrs de mim. Em seu pitoresco relato do assunto, queli com grande interesse alguns meses depois, voc afirma que a parede era abrupta. Isso no eraliteralmente verdadeiro. Alguns pequenos pontos de apoio se apresentavam e havia alguma indicaode uma salincia. O precipcio to elevado que escalar tudo era uma impossibilidade bvia; eraigualmente impossvel refazer o meu caminho ao longo da trilha molhada sem deixar alguns rastros.Eu posso, verdade, inverter as minhas botas, como j fiz em ocasies semelhantes, mas a viso detrs conjuntos de rastros em uma s direo certamente haveria de sugerir um logro. No geral,ento, o melhor que eu poderia fazer era arriscar a subida. No era uma perspectiva agradvel,Watson. A queda rugia abaixo de mim. Eu no sou uma pessoa fantasiosa, mas dou-lhe a minhapalavra que me parecia ouvir a voz de Moriarty gritando comigo das profundezas do abismo. Umengano teria sido fatal. Mais de uma vez, quando os tufos de grama escaparam das minhas mos ouo meu p deslizou nos chanfros molhados da pedras, pensei que estava perdido. Mas avanceilutando e afinal alcancei uma salincia de vrios ps de largura e coberta por um musgo verde macioonde eu poderia descansar sem ser observado, no mais perfeito conforto. Eu estava l estiradoquando voc, meu caro Watson, e todos os seus seguidores investigavam as circunstncias daminha morte da maneira mais simptica e ineficiente.Afinal, quando terminou de formular todas as suas concluses inevitveis e totalmente errneas, voc partiu para o hotel e eu fiquei sozinho. Eu tinha imaginado que havia chegado ao trmino

  • 8das minhas aventuras, mas uma ocorrncia muito inesperada mostrou-me que ainda existia umasurpreendente reserva para mim. Uma pedra enorme, caindo de cima, passou por mim, atingiu atrilha e saltou para o precipcio. Por um momento pensei que fosse um acidente mas um poucodepois, observando melhor, vi a cabea de um homem contra o cu escurecido e outra pedra bateuna mesma borda em que eu estava deitado, a cerca de um p da minha cabea. O significado dissoera evidente: Moriarty no estava s. Um correligionrio talvez at aquele mensageiro que mesmode relance eu percebi que era um perigoso cmplice tinha mantido guarda enquanto o professorme atacava. De longe, fora da minha viso, ele podia ter testemunhado a morte do amigo e a minhafuga. Ele esperou e ento, dando a volta por trs at o topo do precipcio, empenhou-se em obtersucesso onde o seu camarada havia fracassado.Eu no demorei muito pensando nisso, Watson. Novamente vi aquela face de olhar severo sobre oprecipcio e soube que era o prenncio de mais uma pedra. Ento saltei para o caminho abaixo demim no pensei que pudesse fazer isso a sangue frio: era cem vezes mais difcil que subir. Masno tive tempo para pensar no perigo, porque outra pedra sibilou adiante de mim assim que alcanceia extremidade da borda com as mos. Ento escorreguei at a metade do caminho abaixo mim,mas, pela graa de Deus, embora ferido e sangrando, pousei no cho. Virei sobre os meus calcanhares,fiz dez milhas sobre as montanhas na escurido e, uma semana depois, encontrava-me em Florena,seguro que ningum no mundo sabia o que me acontecera.Tive apenas um confidente meu irmo Mycroft. Eu lhe devo muitas desculpas, meu caro Watson,mas era de vital importncia que voc pensasse que eu estava morto, e bastante certo que vocno teria escrito uma histria to convincente dando conta do meu trgico fim se no imaginasseque era verdade. Durante os ltimos trs anos, por diversas vezes eu peguei a caneta para lheescrever, mas sempre temi que a sua considerao afetuosa por mim haveria de lev-lo a cometeralguma indiscrio que trairia o meu segredo. Foi por essa razo que fugi hoje tarde, quando vocderrubou os meus livros, porque na ocasio eu estava em perigo e qualquer exibio de surpresa ouemoo de sua parte poderia ter chamado a ateno para a minha identidade e conduzido aosresultados mais deplorveis e irreparveis. Quanto a Mycroft, precisei contar com ele para obter odinheiro de que necessitava. Os eventos em Londres no correram to bem como eu esperava, poiso julgamento da quadrilha de Moriarty deixou em liberdade dois dos seus membros mais perigosos,justamente os meus inimigos mais vingativos. Eu viajei durante dois anos pelo Tibete, diverti-mevisitando Lhassa e passei alguns dias com o lama principal. Voc pode ter lido sobre as notveisexploraes de um noruegus chamado Sigerson, mas estou seguro que nunca lhe ocorreu estarrecebendo notcias deste seu amigo. Eu ento atravessei a Prsia, dei uma rpida olhada em Meca efiz uma visita curta mas interessante ao califa em Kartum, cujos resultados comuniquei ao ForeignOffice. Retornando Europa, gastei alguns meses em uma pesquisa sobre os derivados do alcatro,realizada num laboratrio de Montpellier, no sul da Frana. Tendo concludo satisfatoriamente essaminha pesquisa e informado que apenas um dos meus inimigos permanecia agora em Londres,estava a ponto de voltar quando os meus movimentos foram apressados pela divulgao desseextraordinariamente notvel mistrio de Park Lane, que me atraiu no apenas por seus mritosprprios, mas tambm parecia oferecer algumas oportunidades pessoais muito peculiares. Vimimediatamente para Londres, chamei o meu pessoal Baker Street, deixei a sra. Hudson numaviolenta crise histrica e vi que Mycroft tinha preservado os meus aposentos e papis exatamentecomo estavam antes. Assim , meu caro Watson, que s duas horas desta tarde eu me encontravana minha velha poltrona, em meu prprio velho quarto, desejando apenas poder ver o meu velhoamigo Watson na outra poltrona, que ele to freqentemente tem adornado.

  • 9Tal foi a narrativa impressionante que ouvi naquela noite de abril uma narrativa que teria sido totalmenteincrvel para mim, no fosse confirmada pela viso da figura alta e magra, de semblante incisivo e impetuoso,que eu jamais havia imaginado ver novamente. De alguma forma ele havia sentido o pesar da minha prpriaperda e a sua solidariedade foi demonstrada mais pelas maneiras do que pelas palavras. O trabalho omelhor antdoto para a tristeza, meu caro Watson, ele disse, e eu tenho um pouco de trabalho para ns doisesta noite; se pudermos lev-lo a uma concluso satisfatria, por si mesmo justificar a vida de um homemneste planeta. Em vo eu lhe implorei que me contasse mais. Antes de amanh voc mesmo ver e ouviro suficiente, ele respondeu. Ns temos trs anos do passado para pr em dia. Basta disso at as nove emeia, quando daremos incio notvel aventura da casa vazia.

    Foi realmente como nos velhos tempos quando quela hora eu me encontrei sentado ao lado dele emuma charrete, com o meu revlver no bolso e a emoo da aventura em meu corao. Holmes estava frio,spero e silencioso. Quando as lmpadas da rua lhe iluminaram as feies austeras, percebi seus lbiosfinos comprimidos e suas sobrancelhas arqueadas em profunda reflexo. Eu no sabia qual era a bestaselvagem que estvamos a ponto de caar pelas selvas escuras da Londres criminosa, mas estava bemseguro da capacidade deste caador-mestre e que a aventura seria das mais srias enquanto o sorrisosardnico que ocasionalmente penetrava a sua melancolia asctica pressagiava pouca coisa boa para oobjeto de nossa busca.

    Eu tinha imaginado que estvamos em direo Baker Street, mas Holmes parou o txi na esquina deCavendish Square. Observei que assim que partiu ele olhou mais atentamente direita e esquerda, e acada cruzamento de rua subseqente ele tomou extremo cuidado para certificar-se de no estar sendoseguido. A nossa rota foi deveras singular. Era extraordinrio o conhecimento de Holmes dos caminhossecretos de Londres e nessa ocasio ele passou rpida e seguramente por uma rede de atalhos e estbulosde cuja existncia eu sequer suspeitava. Afinal emergimos numa pequena estrada em que se alinhavamcasas velhas e escuras, levando-nos da Manchester Street Blandford Street. Aqui ele virou rapidamentenuma passagem estreita, ultrapassou um porto de madeira num ptio deserto e ento abriu a porta dosfundos de uma casa com uma chave. Entramos juntos e ele fechou a porta atrs de ns.

    O lugar estava s escuras, mas para mim era evidente que se tratava de uma casa vazia. Nossos psrangeram e estalaram sobre o entabuamento nu, e minha mo estendida tocou numa parede da qual o papelse desprendia em tiras. Os dedos frios e delgados de Holmes fecharam-se em torno do meu pulso e meconduziram adiante por um longo corredor, at que eu divisei vagamente a clarabia escura em cima de umaporta. Holmes virou-se repentinamente direita e nos encontramos em um quarto grande, quadrado evazio, bastante sombreado nos cantos mas cujo centro era fracamente iluminado pelas luzes da rua. Nohavia nenhuma lmpada nas proximidades e a janela tinha uma grossa camada de p, de forma que somentepodamos discernir um ao outro no interior. Meu companheiro ps a sua mo em meu ombro e os lbiosperto da minha orelha.

    Voc sabe onde estamos? ele sussurrou. Essa a Baker Street, seguramente eu respondi, enquanto olhava pela janela escura. Exatamente. Estamos em Camden House, que fica no lado oposto aos nossos antigos apartamentos. Mas por que estamos aqui? Porque d uma excelente vista daquele pitoresco conjunto. Eu poderia aborrec-lo, meu caro Watson,

    pedindo-lhe para vir um pouco mais perto da janela, mas tomando toda a precauo para no semostrar, e ento olhar para os nossos velhos quartos o ponto de partida de tantos dos seuspequenos contos de fadas? Veremos se os meus trs anos de ausncia anularam completamente omeu poder de surpreend-lo.

    Eu rastejei para a frente e espiei a janela familiar. Assim que olhei, dei um suspiro e um grito de espanto.

  • 10

    A cortina estava fechada e uma luz intensa iluminava o aposento.A sombra de um homem que estava sentado em uma cadeirafoi lanada na tela iluminada da janela. No havia nenhumengano quanto posio da cabea, os ombros quadrados, aseveridade das caractersticas. Sua face estava de perfil e o efeitodisso era de uma dessas silhuetas negras que nossos avsgostavam de moldar. Era uma perfeita reproduo de Holmes.Fiquei to pasmado que estiquei a minha mo para me certificarque o verdadeiro homem estava se erguendo ao meu lado. Elevibrava num riso silencioso.

    Bem? disse ele. Cus! exclamei. maravilhoso. Creio que a idade no murchou nem envelheceu a

    minha infinita variedade, disse ele, e eu reconheciem sua voz a alegria e prazer do artista que se orgulhada prpria criao. Realmente est bem parecidocomigo, no ?

    Eu estaria pronto para jurar que era voc. O crdito dessa obra devido ao monsieur Oscar

    Meunier, de Grenoble, que gastou alguns dias para fazero modelo. um busto em cera. O resto eu mesmoorganizei durante a minha visita Baker Street esta tarde.

    Mas por qu? Porque, meu caro Watson, eu tive a mais forte razo possvel

    para desejar que determinadas pessoas pensassem que eu estaval, quando realmente estava em outro lugar.

    E voc acha que os quartos esto sendo vigiados? Eu sei que esto sendo vigiados. Por quem? Por meus velhos inimigos, Watson. Pela encantadora sociedade cujo lder jaz em Reichenbach.

    Voc deve recordar que eles sabiam e s eles sabiam que eu ainda estava vivo. Eles acreditavamque cedo ou tarde eu haveria voltar para o meu apartamento, vigiaram-no continuamente e estamanh me viram chegar.

    Como voc sabe? Porque eu reconheci a sentinela deles quando olhei pela janela. Ele um elemento bastante inofensivo

    daquela confraria, de nome Parker, um estrangulador de ofcio e artista notvel na harpa judia. Euno queria nada com ele e sim com uma pessoa muito mais formidvel que estava por trs dele, oamigo do peito de Moriarty, o homem que atirou aquelas pedras de cima do precipcio, o criminosomais esperto e perigoso de Londres. Esse o homem que est em meu encalo esta noite, Watson;esse o homem desavisado que procuramos.

    Os planos do meu amigo estavam se revelando gradualmente. Deste retiro conveniente, estvamos vigiandoe localizando os perseguidores. Aquela sombra angular acima de ns era a isca e ns os caadores. Levantamo-nos juntos e em silncio no escuro para observar as figuras apressadas que passavam diante de ns. Holmesestava calado e imvel, mas tenho certeza que ele estava sutilmente alerta, com os seus olhos atentamentefixos no fluxo de transeuntes. Era uma noite glida e turbulenta e um vento assobiava e guinchava ao longo

  • 11

    da rua. Muitas pessoas se deslocavam para l e para c, a maioria bem abrigada em seus casacos e cachecis.Algumas vezes me pareceu ter visto a mesma figura antes; notei especialmente dois homens, a uma certadistncia rua acima, que pareciam estar se abrigando do vento na entrada de uma casa. Tentei chamar aateno do meu companheiro para eles, mas Holmes fez um gesto de impacincia e continuou observandoa rua. Mais de uma vez ele se mostrou inquieto, batendo rapidamente com os ps e os dedos na parede. Eraevidente que ele estava ficando intranqilo e que os seus planos no estavam saindo exatamente como eleesperava. Afinal, com a aproximao da meia-noite, a rua foi gradualmente esvaziando e ele passou a andarpelo quarto, para cima e para baixo, numa agitao incontrolvel. Eu estava a ponto de lhe fazer algumaobservao quando elevei os meus olhos janela iluminada e novamente experimentei uma surpresa quaseto grande quanto a anterior. Eu apertei o brao de Holmes e apontei para cima.

    A sombra se moveu! eu exclamei.Realmente, a silhueta no mais estava de perfil; agora a sua parte traseira estava voltada para ns.Certamente esses trs anos no haviam alisado as asperezas do seu temperamento ou a sua impacincia

    com uma inteligncia menos ativa que a dele. Claro que se moveu , disse ele. Eu sou de uma negligncia to ridcula, Watson, que haveria de

    erguer um boneco imvel e esperar que alguns dos homens mais atilados da Europa fossem enganadospor ele? Nestas duas horas em que estivemos aqui a sra. Hudson fez algumas mudanas sutisnaquela figura oito vezes, ou uma vez a cada quinze minutos. Ela trabalha pela frente, de forma quea sua sombra nunca pode ser vista. Ah! Ele aspirou de forma estridente, entusiasmada.

    Sob a tnue iluminao eu vi a sua cabea lanada para a frente, numa atitude rgida de completa ateno.A rua estava absolutamente deserta. Aqueles dois homens ainda poderiam estar ocultos na entrada, mas euj no podia v-los. Tudo permanecia escuro, exceto por aquela tela amarela e brilhante nossa frente, coma figura negra estampada em seu centro. No silncio absoluto eu ouvi novamente aquela nota aguda esibilante que vibrou em mim com excitao intensa e contida. Um instantedepois ele me puxou para o canto mais escuro do quarto e eu senti a suamo de advertncia em meus lbios. Os dedos que me apertaram estavamtremendo. Jamais vira o meu amigo em maior comoo, e a superfcie darua ainda permanecia escura, deserta e imvel diante de ns.

    Mas eu repentinamente percebi o que os sentidos mais agudos deHolmes j tinham distinguido. Um som baixo, furtivo chegou aos meusouvidos, no da direo da Baker Street, mas da parte de trs damesma casa em que nos encontrvamos escondidos. Uma portaabriu e fechou; logo a seguir alguns passos se arrastaram pelocorredor passos silenciosos, mas que reverberaram severamentepela casa vazia. Holmes abaixou-se contra a parede atrs dele eeu fiz o mesmo, levando minha mo coronha do revlver.Investigando atravs da escurido, vi o vago esboo de umhomem, uma sombra ainda mais negra que a escurido da portaaberta. Ele parou por um momento e ento rastejou adiante,ameaador, entrando no quarto abaixado. A figura sinistra estavaa cerca de trs jardas de ns e eu me preparei para pular sobre eleantes de perceber que ele no tinha nenhuma idia da nossapresena. O vulto passou muito perto de ns, subiu furtivamente janela e, muito suavemente e sem fazer barulho, abriu-a cerca de quinzecentmetros. Conforme ele passou diante dessa abertura, a luz da rua, j no

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    atravessando o vidro sujo, bateu diretamente em seu rosto. O homem parecia estar excitado consigo mesmo.Seus dois olhos brilhavam como estrelas e as suas feies estavam convulsionadas. Era um homem velho,magro, com um nariz adunco, testa alta, calva e um enorme bigode grisalho. Tinha uma cartola empurradapara trs da cabea e pela abertura do sobretudo vislumbrei a frente da camisa de um traje de gala. Sua faceera magra e morena, marcada por linhas selvagens e profundas. Na mo ele carregava o que parecia ser umbasto, mas quando o colocou no cho, produziu um tinido metlico. Do bolso do sobretudo ele entoretirou um objeto volumoso e ocupou-se de alguma tarefa que terminou com um estalo alto e agudo, comose uma mola ou pino tivessem sido acionados. Ainda ajoelhado no cho ele dobrou-se para a frente e lanoutodo o seu peso e fora em alguma alavanca, em resultado do que produziu um rudo longo, vibrante,opressivo, terminando uma vez mais num clique poderoso. Ento ele se endireitou e eu pude observar queo que ele tinha nas mos era uma espcie de arma com um aspecto curiosamente disforme. Ele abriu aculatra do dispositivo, colocou algo dentro e fechou-a novamente. Ento, agachando-se, descansou aextremidade da arma no peitoril da janela aberta, e eu vi o seu longo bigode em cima do objeto e os seusolhos perscrutando atentamente em todas asdirees. Ouvi um ligeiro suspiro de satisfaoquando ele avistou o surpreendente alvo noaposento sua frente a silhueta negra sobre ofundo amarelo , deixando claro que encontrarao seu objetivo. Por um momento ele ficou rgidoe imvel; ento, seu dedo pressionou o gatilho.Houve um tinido estranho, alto e um silvo longo,seguido do som caracterstico de vidro quebrado.Naquele instante Holmes saltou como um tigresobre o atirador e lanou-o de rosto no cho. Eletentou erguer-se novamente por um momento,mas Holmes agarrou-o pela garganta com umafora convulsiva e eu o golpeei na cabea com amira do revlver; ele caiu novamente no cho. Euca em cima dele e assim que o segurei, meucamarada soprou um estridente apito de chamada.Houve um rudo de ps correndo no pavimento edois policial uniformizados, com um detetive paisana, entraram apressadamente no edifcio edepois no quarto.

    voc, Lestrade? disse Holmes. Sim, Sr. Holmes. Peguei a tarefa eu

    mesmo. bom v-lo de volta a Londres,senhor.

    Suponho que voc deseja uma pequenauma ajuda no-oficial. Trs assassinos no detectados em um ano no o far, Lestrade. Mas voccontrolou o Mistrio de Molesey com menos que o seu habitual quer dizer, voc manipulou issobastante bem.

    Ficamos todos de p, com o nosso prisioneiro ofegante entre dois robustos policiais. Na rua em frente,alguns curiosos j comeavam a se juntar. Holmes foi at a janela, fechou-a e puxou as cortinas. Lestradetinha trazido duas velas e os policial descobriram as suas lanternas. Afinal pude ter dar uma boa olhada em

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    nosso prisioneiro.Uma face extremamente viril e ainda sinistra voltou-se para ns. Com a sobrancelha de um filsofo acima

    e a mandbula de um sensualista abaixo, o homem deve ter nascido com grande capacidade para o bem oupara o mal. Mas ningum podia fitar aqueles cruis olhos azuis, as plpebras lnguidas e cnicas, o narizferoz, agressivo e o ameaador, ou as sobrancelhas cerradas, sem ler os sinais de perigo mais claros daNatureza. Ele no deu qualquer ateno a nenhum de ns; seus olhos estavam fixos na face de Holmes, comuma expresso na qual estavam igualmente mesclados o dio e o assombro. Seu demnio! ele murmurava. Seu esperto, demnio inteligente!

    Ah, coronel! disse Holmes, enquanto arrumava o seu colarinho amarfanhado. As jornadasterminam em colquios de amantes, como diz o antigo adgio. No acho que tive o prazer em v-lo desde que voc me obsequiou com as suas atenes quando eu estava deitado beira deReichenbach Fall.

    O coronel ainda encarou o meu amigo como um homem em transe. Voc um demnio esperto, muito esperto! era tudo o que ele podia dizer. Eu ainda no o apresentei. disse Holmes. Este, cavalheiros, o coronel Sebastian Moran, que

    uma vez foi do Exrcito de Sua Majestade na ndia, e o melhor perito atirador que o nosso ImprioOriental alguma vez produziu. Acredito que correto dizer que o seu escore de tigres ainda no foirivalizado, no mesmo?

    O velho feroz nada disse, mas ainda encarou meu companheiro. Com aqueles olhos selvagens e o bigodeeriado, ele estava maravilhosamente parecido com um tigre.

    Estou surpreso que o meu estratagema simples tenha ludibriado um shikari to experiente disseHolmes. Isso lhe deve ser muito familiar. Voc no amarrou uma criancinha sob uma rvore, ficoude emboscada sobre ela com o seu rifle e esperou que a isca trouxesse o seu tigre? Esta casa vazia minha rvore e voc o meu tigre. Voc possivelmente teria outras armas de reserva para o casode haver diversos tigres, ou na improvvel suposio de que a sua pontaria falhasse. Estas, eleapontou ao redor, so as minhas outras armas. O paralelo perfeito.

    O coronel Moran pulou para a frente com umrosnado de dio, mas os policiais o arrastaram devolta. A fria em sua face era uma coisa terrvel dese ver.

    Confesso que voc me fez uma pequenasurpresa, disse Holmes. No antecipeique voc mesmo fosse usar esta casavazia e esta vantajosa janela frontal.Imaginei que ia operar da rua, onde o meuamigo Lestrade e seus homens joviaisestavam sua espera. Com essa nicaexceo, foi tudo como eu calculei.

    O coronel Moran voltou-se para o detetiveoficial.

    Voc pode ou no ter uma causa justapara me prender, disse ele, mas nopode haver ao menos uma razo para queeu me submeta zombaria desta pessoa.Se estou nas mos da lei, deixe que as

    JocimarRealce

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    coisas sejam feitas de uma forma legal. Bem, isso bastante razovel, disse Lestrade. Nada mais tem a dizer antes que partamos, Sr.

    Holmes?Holmes havia apanhado a poderosa arma pneumtica do cho e estava examinando o seu mecanismo.

    Uma arma admirvel e sem igual, disse ele , silenciosa e de fantstico poder: eu conheci VonHerder, o escuso mecnico alemo que a construiu por ordem do falecido professor Moriarty. Duranteanos soube da sua existncia, mas nunca antes tive a oportunidade de manej-la. Recomendo-amuito especialmente sua ateno, Lestrade, bem como as balas que a ela se ajustam.

    Voc pode contar conosco para cuidar disso, Sr. Holmes, disse Lestrade, enquanto o todo sedirigia para a porta. Mais alguma coisa a dizer?

    S perguntar de qu voc pretende acus-lo preferencialmente? Acusao, senhor? claro que da tentativa de assassinato do Sr. Sherlock Holmes. Assim no, Lestrade. Eu no pretendo envolver-me no assunto de modo algum. A voc, e s a voc,

    pertence o crdito da notvel apreenso que efetuou. Sim, Lestrade, eu o congratulo! Com a suahabitual mistura feliz de astcia e audcia, voc o tem.

    Apreendeu-o! Apreendeu quem, Sr. Holmes? O homem que toda a fora policial tem procurado em vo o coronel Sebastian Moran, que no dia

    trinta do ms passado assassinou o honorvel Ronald Adair com uma bala explosiva disparada poruma arma pneumtica atravs da janela aberta da casa n 427 da Park Lane, quarto da frente dosegundo andar. Essa a acusao, Lestrade. E agora, Watson, se voc puder tolerar a corrente de arde uma janela quebrada, penso que em meia hora poderemos dispor de alguma distrao proveitosae de um bom charuto em meu apartamento.

    . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Nossos antigos aposentos tinham permanecido inalterados pela superviso de Mycroft Holmes e pelos

    cuidados imediatos da sra. Hudson. verdade que assim que entrei eu observei uma desacostumadameticulosidade, mas as antigas marcas estavam todas em seus lugares. Num dos cantos estava o laboratrioqumico com a mesa manchada de cido, devidamente cobertos. Havia uma estante com uma fila formidvelde lbuns de recorte e livros de referncia que muitos dos nossos concidados teriam imenso prazer emqueimar. Os diagramas, o estojo do violino, a prateleira de tubos-de-ensaio at mesmo o chinelo Persa queestocava o tabaco tudo retornou minha mente assim que olhei em volta. No quarto havia dois ocupantes o primeiro era a sra. Hudson, que sorriu para ambos quando entramos ; o segundo era o estranho bonecoque havia desempenhado um papel muito importante nas aventuras daquela noite. Era um fiel modelo domeu amigo em cera colorida, to admiravelmente elaborado que se podia dizer um fac-smile exato. Eleestava ereto numa mesa com um pequeno pedestal e vestido com um traje velho de Holmes, to bemdrapejado que a iluso da rua era absolutamente perfeita.

    Espero que voc tenha tomado todas as precaues, sra. Hudson? disse Holmes. Eu fui at ele de joelhos, senhor, do modo que voc me disse. Excelente. Voc levou a coisa a cabo muito bem. Observou onde foi parar a bala? Sim, senhor. Tive receio que danificasse o seu bonito busto, mas ela atravessou a cabea diretamente

    e aplainou-se na parede. Eu a recolhi do tapete; aqui est!Holmes colocou-a em minha mo.

    Uma bala de revlver macia, como voc pode perceber, Watson. H gnio nisso, pois quem esperariaencontrar uma coisa assim disparada de uma espingarda de ar comprimido? Tudo bem, sra. Hudson.Agradeo muito por sua ajuda. E agora, Watson, deixe-me v-lo uma vez mais em sua velha poltrona;h diversos detalhes que eu gostaria de discutir com voc.

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    Ele tinha se livrado da sobrecasaca indigente e agora voltara a ser o velho Holmes, dentro do robe-de-chambre cor de rato que adotou como efgie.

    Os nervos do velho shikari no perderam a sua firmeza, nem os olhos dele a sua sutileza, disse ele,com um sorriso, enquanto inspecionava a testa quebrada do busto.

    No exato centro da parte traseira da cabea e atravessando o crebro violentamente. Ele foi o melhoratirador da ndia, e espero que haja poucos melhores em Londres. J tinha ouvido o seu nome?

    No, nunca ouvi. Bem, bem; assim a fama! Mas, ento, se me

    recordo corretamente, voc tambm no tinhaouvido o nome de professor James Moriarty, quefoi um dos grandes crebros deste sculo. Deixe-me apenas alcanar o meu ndice de biografias naestante.

    Ele virou as pginas indolentemente, inclinadopara trs em sua cadeira e soltando grandesbaforadas do charuto.

    Minha coleo de Ms agora est completa, disse ele. O prprio Moriarty suficiente para tornar qualquer letrailustre; e aqui est Morgan, o envene-nador; e Merridew, de abominvelmemria; e Mathews, que arrancou omeu canino esquerdo na sala de esperada estao Charing Cross; e, finalmente, eisaqui o nosso amigo desta noite.

    Ele me passou o livro e eu li:MORAN, SEBASTIAN, CORONEL.Desempregado. Antigamente do 1 dePioneiros de Bangalore. Nasceu emLondres, em 1840. Filho de Sir Augustus Moran, C. B., uma vez Ministro britnicopara a Prsia. Educado em Eton e Oxford. Serviu na Campanha de Jowaki, naCampanha afeg e em Charasiab (despachos), Sherpur e Cabul. Autor de JOGOPESADO NO HIMALAIA OCIDENTAL (1881); TRS MESES NA SELVA(1884). Endereo: Conduit Street. Clubes: Anglo-Indian, Tankerville, BagatelleCard Club.

    Na margem estava anotado, com a mo precisa de Holmes:O segundo homem mais perigoso de Londres.

    Isto surpreendente, eu disse, devolvendo-lhe o volume. A carreira do homem a de umsoldado honrado.

    verdade, respondeu Holmes. At um certo ponto ele agiu bem. Sempre foi um homem denervos de ao, e na ndia ainda se conta a histria de como ele rastejou por um dreno atrs de umtigre comedor de homens ferido. H algumas rvores, Watson, que crescem at uma certa altura eento de repente desenvolvem alguma excentricidade pouco apresentvel. Voc observar issofreqentemente em seres humanos. Eu tenho uma teoria de que o indivduo representa em seudesenvolvimento todo o cortejo dos seus antepassados, e aquela tal volta sbita para o bem ou para

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    o mal deve-se atribuir a uma determinada influncia poderosa que penetrou na linha da sua genealogia.A pessoa se torna, assim, o eptome da histria de sua prpria famlia.

    certamente bastante fantstico. Bem, eu no insisto nisto. Seja qual for a causa, o coronel Moran tornou-se difcil de apanhar. Ele

    se aposentou, veio novamente para Londres e adquiriu um renome maldito. Nesse momento elefoi procurado pelo professor Moriarty, de quem tornou-se o brao direito durante algum tempo.Moriarty o abasteceu liberalmente com dinheiro e s o empregou em um ou dois trabalhosrealmente de alta classe, que nenhum criminoso ordinrio poderia ter empreendido. Voc podeter alguma recordao da morte da sra. Stewart, de Lauder, em 1887. No? Bem, estou seguro queMoran estava por trs disso, mas nada pde ser provado. To hbil era o coronel em dissimularque at mesmo quando a gangue de Moriarty foi desbaratada, ns no pudemos incrimin-lo.Voc se lembra que naquela ocasio, quando o visitei em seu apartamento, eu fechei as venezianasde medo das armas pneumticas? Sem nenhuma dvida voc me julgou extravagante. Eu sabiaexatamente o que estava fazendo, porque soube da existncia dessa arma notvel, e tambmsabia que os melhores atiradores no mundo estariam por trs dela. Quando estvamos na Suafomos perseguidos por Moriarty, e foi sem dvida ele quem me concedeu aqueles desafortunadoscinco minutos na borda de Reichenbach.Voc pode imaginar que eu lia os jornais com uma certa ateno durante a minha curta estada naFrana, procurando qualquer oportunidade de me pr nos calcanhares dele. Enquanto ele estivesselivre em Londres, minha vida realmente no teria valor algum. Noite e dia aquela sombra pairousobre mim, e cedo ou tarde a chance dele surgiria. O que eu poderia fazer? No pude mant-lo sobvigilncia, pois estaria me expondo. No havia nenhuma vantagem em atrair um magistrado. Elesno podiam interferir em virtude do que lhes pareceria uma suspeita desvairada. Assim, nada podiafazer. Mas eu acompanhei as notcias criminais, sabendo que cedo ou tarde haveria de peg-lo.Ento veio a morte desse Ronald Adair; afinal chegava a minha oportunidade. Sabendo o que eusabia, no era evidente que o coronel Moran tinha cometido aquele crime? Ele tinha jogado cartascom o rapaz, seguiu-o do clube at em casa e atirou nele atravs da janela aberta. Desses eventosno havia qualquer dvida. Somente as balas j constituam evidncia bastante para pr a cabeadele em um lao. Eu vim imediatamente e fui visto pela sentinela que, estava certo, voltaria a atenodo coronel para a minha presena. Ele ligou o meu sbito retorno ao seu crime e ficou terrivelmentealarmado. Eu estava seguro de que ele faria uma tentativa imediata para tirar-me do caminho, e paratal propsito traria luz a sua arma assassina. Deixei-lhe uma excelente marca na janela e, tendoadvertido a polcia de que poderiam ser necessrios a propsito, Watson, voc deslustrou a presenadeles naquele lance de preciso infalvel assumi o que me pareceu ser um ponto de observaocriterioso, jamais sonhando que ele escolheria o mesmo local para o seu ataque. Agora, meu caroWatson, ainda permanece alguma coisa sem explicao?

    Sim, eu disse. Voc no esclareceu o motivo do coronel Moran para o assassinato do honorvelRonald Adair?

    Ah! meu caro Watson, aqui ns entramos naqueles reinos da conjetura onde a mente mais lgicapode falhar. Cada um pode formular sua prpria hiptese sobre as evidncias apresentadas, e a suatem tanta probabilidade de estar correta quanto a minha.

    Ento voc formou uma? Penso que no difcil explicar os fatos. Houve uma evidncia de que o coronel Moran e o jovem

    Adair estiveram associados e assim ganharam uma considervel quantidade de dinheiro. Ora, indubitvel que jogavam sujo disso eu estava prevenido h muito tempo. Acredito que no dia do

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    assassinato Adair descobriu que Moran o estava enganando. muito provvel que lhe tenha faladoreservadamente e ameaado exp-lo a menos que ele se resignasse a abandonar voluntariamente asua sociedade nos clubes e se comprometesse a no jogar baralho novamente. bastante duvidosoque algum to jovem quanto Adair armasse um escndalo horroroso expondo de imediato umhomem bem conhecido e to mais idoso que ele. Ele provavelmente agiu conforme estou sugerindo.A excluso dos clubes significaria a runa de Moran, que vivia dos ganhos obtidos desonestamenteatravs das cartas. Ele assassinou Adair, que naquele momento estava empenhado em calcular quantodinheiro devia ento restituir, desde que no pudesse ganhar com o jogo sujo do seu scio. Eletrancou a porta por que, se as senhoras o pegassem de surpresa, certamente haveriam de insistirem saber o que ele estava fazendo com aqueles nomes e moedas. Isto passa?

    No tenho nenhuma dvida de que voc bateu na verdade. Isso ser constatado ou contestado por ocasio do julgamento. Enquanto isso, seja como for, o

    coronel Moran no nos aborrecer nunca mais. A famosa arma pneumtica de Von Herder embelezaro Museu da Scotland Yard, e uma vez mais o Sr. Sherlock Holmes est livre para dedicar a sua vidaao exame desses pequenos e interessantes problemas que a complexa vida de Londres tocopiosamente apresenta.

    O CONSTRUTOR DE NORWOOD Do ponto de vista do perito criminal,

    disse sr. Sherlock Holmes, Londrestornou-se uma cidade singularmentedesinteressante como a recente morte dolamentado professor Moriarty.

    difcil imaginar que se encontre muitoscidados decentes que concordem comvoc, eu respondi.

    Bem, bem; no devo ser egosta, disseele, com um sorriso, enquanto afastava asua cadeira da mesa onde fora servido ocaf da manh. A comunidade certa-mente vence e ningum perde, exceto opobre especialista desempregado, cujaocupao se foi. Com aquele homem emcampo, um jornal matutino apresentavainfinitas possibilidades. Freqentementetratava-se apenas de uma pista menor,Watson, a mais sutil indicao, e aindaassim era suficiente para me dizer que o grande crebro maligno l estava, como as mais suavesvibraes nas extremidades da teia lembram a uma aranha imunda que espreita no centro. Roubosinsignificantes, agresses temerrias, afrontas despropositadas para o homem que possua a pista,tudo isso podia ser cogitado num todo interligado. Para o estudante cientfico do mundo criminalmais elevado, nenhuma capital da Europa oferecia as vantagens que Londres ento ostentava. Masagora... Ele encolheu os ombros numa humorstica reprovao do estado de coisas que ele mesmo

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    tanto havia trabalhado para produzir.No momento ao qual me refiro, Holmes retornara por alguns meses e, atendendo ao seu pedido, eu havia

    negociado a minha clnica e estvamos de volta, compartilhando os antigos aposentos da Baker Street. Umjovem mdico, chamado Verner, havia comprado o meu pequeno consultrio em Kensington, aceitando opreo mais alto que eu me aventurei a pedir com objees incrivelmente escassas um incidente que s seexplicou alguns anos depois, quando descobri que aquele Verner era uma parente distante de Holmes, e quefoi o meu amigo quem realmente entrou com o dinheiro.

    Nossos meses de sociedade no tinham sido to montonos como ele afirmara porque encontro, aoexaminar as minhas anotaes, que esse perodo inclui o caso dos documentos do ex-presidente Murillo etambm o chocante incidente do vapor holands Freiesland, que quase nos custou ambas as vidas. Contudo,a natureza fria e orgulhosa de Holmes era sempre contrria a qualquer coisa na forma de aplauso pblico eele me imps, nas condies mais estritas, no dizer nenhuma palavra adicional sobre ele, seus mtodos ousucessos uma proibio da qual, como j expliquei, somente agora fui liberado.

    Depois do seu protesto extravagante, Sherlock Holmes reclinou-se novamente na cadeira e estavadesdobrando o seu jornal matutino de um forma vagarosa quando a nossa ateno foi despertada por umestrondoso toque de campainha, imediatamente seguido pelo som cavo de um tambor, como se algumestivesse batendo na porta externa com o punho. Assim que ela foi aberta, ouvimos uma bulha tumultuadano corredor; ps rpidos subiram os degraus e, um momento depois, irrompeu no quarto um homem jovemde olhos selvagens, frentico, plido, desalinhado e palpitante. Ele nos encarou, de um para outro, e sob onosso olhar inquiridor, percebeu que de alguma desculpa era necessria para essa entrada incerimoniosa.

    Eu sinto muito, sr. Holmes, elelamentou. Voc no deve me culpar.Estou quase louco. Sr. Holmes, eu souo infeliz John Hector McFarlane.

    Ele fez tal anncio como se somente onome explicasse a sua visita e as suas manei-ras, mas pude ver, pela expresso indiferentedo meu companheiro, que no significava maisa ele do que a mim.

    Fume um cigarro, sr. McFarlane, eledisse, empurrando a caixa na direodo rapaz. Estou certo que, com osseus sintomas, meu amigo aqui, o dr.Watson, lhe prescreveria um seda-tivo. O tempo esteve muito quentenestes ltimos dias. Agora, se est sesentindo um pouco mais composto, ficariafeliz se voc sentasse naquela cadeira e nosdissesse muito lenta e tranqilamente quem voc e o que deseja. Voc mencionou o seu nome como se eu devesse reconhec-lo, mas lhe asseguroque, alm dos fatos bvios que voc um causdico, solteiro, maom livre e asmtico, nada seisobre voc.

    Familiarizado como estava com o mtodos do meu amigo, no me foi difcil seguir as suas dedues eobservar a desordem do traje, o mao de documentos legais, a corrente do relgio e a respirao ofeganteque os tinham induzido. Nosso cliente, contudo, fitou-o de olhos arregalados.

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    Sim, eu sou aquilo tudo, sr. Holmes; e, alm disso, sou neste momento o homem mais infeliz deLondres. Pelo Senhor, no me abandone, sr. Holmes! Se eles vierem me apreender antes que eutermine a minha histria, faa-os dar-me tempo, de forma que possa lhe contar toda a verdade. Euficaria feliz de ir para o crcere se soubesse que voc estava trabalhando por mim.

    Prend-lo! disse Holmes. Isso realmente muito interessante. De que acusao voc espera serdetido?

    De assassinar o sr. Jonas Oldacre, de Lower Norwood.O rosto expressivo do meu companheiro mostrou uma simpatia que no era, eu receio, completamente

    desprovida de satisfao. Meu caro, ele disse, foi agora mesmo, ao caf da manh, que eu dizia ao meu amigo, dr. Watson,

    que os casos sensacionais haviam desaparecido dos nossos peridicos.Nosso visitante esticou uma mo trmula e apanhou o Daily Telegraph que ainda estava sobre os joelhos

    de Holmes. Se voc tivesse lido isso, senhor, teria observado primeira vista a misso pela qual vim aqui esta

    manh. Sinto como se o meu nome e o meu infortnio estivessem na boca de todo homem. Elevirou o jornal para expor a pgina central. Aqui est, e com a sua permisso, lerei para voc. Escuteisto, sr. Holmes. As manchetes so: caso Misterioso em Lower Norwood. Desaparecimento de umConstrutor Bem Conhecido. Suspeita de Assassinato e Incndio Premeditado. Uma Pista para oCriminoso. Essa pista que eles j esto seguindo, sr. Holmes, sei que os trar infalivelmente a mim.Eu fui seguido da estao da Ponte de Londres, e estou certo que eles esto esperando somente pelaautorizao para me prender. Partir o corao da minha me partir o corao dela! Ele torceuas mos numa agonia apreensiva e balanou para trs e para a frente em sua cadeira.

    Eu observei com interesse esse homem que era acusado de perpetrar um crime violento. Ele tinha cabeloslouros e vistosos, com um aspecto desbotado, olhos azuis amedrontados e um rosto bem barbeado, comuma boca vacilante, sensvel. A idade dele seria de aproximadamente vinte e sete anos; seu traje e maneiraseram as de um cavalheiro. Do bolso do seu sobretudo claro de vero ele fez saltar o pacote de documentosendossados que proclamavam a sua profisso.

    Devemos usar o tempo de que dispomos, disse Holmes. Watson, voc faria a gentileza de pegaro jornal e ler o pargrafo em questo?

    Debaixo das manchetes vigorosas que nosso cliente havia citado, li a sugestiva exposio:Ontem noite bem tarde, ou cedo nesta manh, ocorreu um incidente em LowerNorwood que aponta, receamos, para um grave crime. O sr. Jonas Oldacre umbem conhecido residente daquele subrbio, onde exerceu a sua profisso deconstrutor por muitos anos. O sr. Oldacre solteiro, tem cinqenta e dois anos deidade e vive em Deep Dene House, no fim da estrada com aquele nome, emSydenham. Ele gozava da reputao de ser um homem de hbitos excntricos,tmido e reservado. Por alguns anos ele praticamente se retirou do negcio, havendocomentrios de que juntou uma considervel riqueza. Todavia, existe ainda umpequeno depsito nos fundos da casa e ontem noite, por volta das doze horas,deu-se um alarme: uma daquelas pilhas de madeira estava em chamas. Os soldadosdo fogo logo estavam no local, mas a madeira seca queimou com grande fria e foiimpossvel impedir a conflagrao at que a pilha toda fosse completamenteconsumida. At este ponto a ocorrncia exibia as caractersticas de um acidenteordinrio, mas recentes indicaes parecem apontar um crime grave. Causousurpresa a ausncia do proprietrio do estabelecimento na cena do incndio, e a

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    investigao que se seguiu mostrou que ele tinha desaparecido da casa. Um examedo seu quarto revelou que a cama no fora usada, que uma caixa forte nele existenteestava aberta e que vrios documentos importantes achavam-se espalhados pelorecinto e, finalmente, que havia sinais de uma luta assassina: leves rastros de sangueforam localizados no interior do quarto e a empunhadura de um cajado de peregrino,de carvalho, tambm exibia manchas de sangue. Sabe-se que o sr. Jonas Oldacrehavia recebido uma visita recente em seu quarto naquela noite, e o bastoencontrado foi identificado como sendo de propriedade dessa pessoa, que umjovem advogado de Londres chamado John Hector McFarlane, scio jnior deGraham e McFarlane, 426 da Gresham Buildings, E. C. A polcia acredita ter aposse de evidncias que fornecem um motivo muito convincente para o crime e, deum modo geral, no se pode duvidar que sensacionais desenvolvimentos venham aseguir.DEPOIS. H um rumor que iremos comprovar que o sr. John Hector McFarlaneest na verdade sendo detido sob a acusao de assassinato do sr. Jonas Oldacre. pelo menos certo que uma ordem de priso foi emitida. Houve desenvolvimentosadicionais e sinistros na investigao em Norwood. Alm dos sinais de luta noquarto do infeliz construtor, sabe-se agora que as janelas francesas do seu quarto(que esto ao rs do cho) foram encontradas abertas, havendo marcas como sealgum objeto volumoso fosse arrastado atravs delas para a pilha de madeira, e,finalmente, afirma-se que foram achados restos mortais carbonizados entre ascinzas do incndio. A teoria da polcia que um crime sensacional foi cometido,que a vtima foi agredida at a morte em seu prprio quarto, seus documentosforam roubados e o cadver arrastado pilha de madeira que foi ento incendiadapara ocultar todos os indcios do crime. A conduo da investigao criminal foideixada nas mos experientes do inspetor Lestrade, da Scotland Yard, que estseguindo as pistas com sua costumeira energia e sagacidade.

    Sherlock Holmes ouviu essa fantstica narrativa com os olhos fechados e as pontas dos dedos juntas. O caso certamente tem alguns pontos de interesse, ele disse, do seu jeito lnguido. Posso

    perguntar-lhe em primeiro lugar, sr. McFarlane, como que voc ainda est em liberdade, desdeque parece haver evidncia suficiente para justificar a sua apreenso?

    Eu moro em Torrington Lodge, Blackheath, com meus pais, sr. Holmes; mas ontem noite, tendode tratar muito tarde com o sr. Jonas Oldacre, fiquei num hotel em Norwood e de l fui ao meusnegcios. Eu nada soube desses acontecimentos at estar no trem, quando li o que voc ouviu hpouco. Imediatamente vi o perigo horrvel da minha posio e apressei-me para pr o caso em suasmos. No tenho dvida que teria sido preso em meu escritrio na cidade ou em minha casa. Umhomem seguiu-me da estao da Ponte de Londres, e eu no tenho nenhuma dvida... pelo cu! oque isso?

    Fora um tinido da campainha, imediatamente seguido por passos pesados nos degraus. Um momentodepois o nosso velho amigo Lestrade aparecia na entrada. Por cima do seu ombro eu vislumbrei um ou doispoliciais uniformizados do lado de fora.

    Sr. John Hector McFarlane? disse Lestrade.Nosso infeliz cliente levantou-se com um aspecto horrvel.

    Eu o prendo pelo homicdio intencional do sr. Jonas Oldacre, de Lower Norwood.McFarlane voltou-se para ns com um gesto de desespero e afundou mais uma vez em sua cadeira como

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    algum que esmagado. Um momento, Lestrade, disse Holmes. Meia hora a mais ou a menos no pode fazer nenhuma

    diferena para voc, e o cavalheiro estava a ponto de nos dar conta de pormenores interessantesque muito poderiam nos ajudar a esclarecer o assunto.

    Penso que no haver nenhuma dificuldade em esclarecer isso, disse Lestrade, severamente. Nada menos; com sua permisso, estou muito interessado em ouvir a histria dele. Bem, sr. Holmes, difcil recusar-lhe qualquer coisa, pois voc foi til fora algumas vezes no

    passado, e ns lhe devemos um bom servio na Scotland Yard, disse Lestrade. Ao mesmotempo, devo permanecer com o meu prisioneiro e sou obrigado a adverti-lo que qualquer coisa quediga aparecer como evidncia contra ele.

    No desejo nada melhor, disse o nosso cliente. Tudo que eu peo que voc oua e reconheaa verdade absoluta.

    Lestrade olhou para o seu relgio. Eu lhe darei meia hora, ele disse. Primeiro devo explicar, disse McFarlane, que nada sabia do sr. Jonas Oldacre. O seu nome me

    era conhecido, pois muitos anos atrs meus pais se familiarizaram com ele, mas as circunstnciasos separaram. Fiquei ento muito surpreso quando ontem, aproximadamente s trs horas da tarde,ele entrou em meu escritrio na cidade. Mas ainda mais surpreso fiquei quando ele me contou opropsito de sua visita. Ele tinha nas mos vrias folhas de caderno, cobertas com uma escritarabiscada aqui esto eles e colocou-os sobre a minha mesa.Aqui est o meu testamento, ele disse. Eu quero que voc, sr. McFarlane, modele isto na formalegal apropriada. Ficarei aqui sentado enquanto voc o faz.Eu me dediquei a esse trabalho e voc pode imaginar o meu espanto quando notei que, comalgumas reservas, ele havia deixado todas as suas propriedades para mim. Ele era um homemestranho, como um pequeno furo, de clios brancos, e quando olhei para ele percebi os seusagudos olhos cinzentos fixos em mim com uma expresso divertida. Quase no pude crer em mimmesmo quando li os termos do testamento, mas ele explicou que era um solteiro com praticamentenenhum parente vivo; que ele havia conhecido os meus pais em sua mocidade; que sempre ouvirafalar de mim como um jovem muito conceituado e estava certo que o seu dinheiro estaria em mosmerecedoras. Evidentemente, pude apenas gaguejar a minha gratido. O testamento estavaapropriadamente acabado, assinado e foi testemunhado pelo meu escrevente. este, no papel azul;essas papeletas, como expliquei, so os rascunhos. O sr. Jonas Oldacre ento me informou quehavia diversos documentos contratos de arrendamento, certificados de aes, hipotecas, escrituras,e assim sucessivamente os quais era necessrio que eu visse e compreendesse. Ele disse que asua mente no ficaria tranqila at que toda a coisa estivesse resolvida e implorou-me que fosse sua casa em Norwood nessa noite, trazendo comigo o testamento, para arranjar tudo. Lembre-se,meu menino: nenhuma palavra aos seus pais sobre o assunto at que tudo esteja resolvido.Conservaremos isto como uma pequena surpresa para eles. Ele era muito insistente neste ponto, eme fez prometer isso fielmente.Voc pode imaginar, sr. Holmes, que eu no estava disposto a recusar nada que ele pedisse. Eleera meu benfeitor, e tudo o que eu queria era levar a cabo os desejos dele em qualquer aspecto.Ento enviei um telegrama para casa dizendo que eu tinha um negcio importante em mos eque era impossvel dizer a que horas poderia voltar. O sr. Oldacre me disse que ficaria agradecidose eu jantasse com ele s nove, pois ele poderia no estar em casa antes daquela hora. Tivealguma dificuldade em localizar a sua casa, contudo, e havia passado quase meia hora quando

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    cheguei. Eu o encontrei... Um momento! disse Holmes. Quem abriu a porta? Uma mulher de meia-idade; a empregada dele, suponho. E foi ela quem mencionou o seu nome, eu presumo? Exatamente, disse McFarlane. Por favor, prossiga.

    McFarlane esfregou suas sobrancelhas midas e ento continuou a narrativa: Essa mulher levou-me a uma sala de visitas onde fora posta uma ceia frugal. Depois o sr. Jonas

    Oldacre conduziu-me ao seu quarto onde havia uma pesada caixa forte. Ele a abriu e retirou umamassa de documentos, os quais examinamos juntos. Terminamos entre as onze e a meia-noite. Eleobservou que no devamos perturbar a empregada. Tambm mostrou-me a sua janela francesa,que tinha permanecido aberta o tempo todo.

    A cortina estava fechada? perguntou Holmes. No estou certo, mas acredito que estava s pela metade. Sim, lembro-me como ele a levantou para

    expor a janela aberta. No consegui encontrar a minha bengala e ele disse, no importa, meumenino, agora o verei bastante, eu espero, e guardarei a sua bengala at que voc volte para reivindic-la. Ento deixei-o l, com a caixa forte aberta e os documentos distribudos em pacotes sobre amesa. Era to tarde que no pude voltar a Blackheath, assim passei a noite no Anerley Arms, e nadamais soube at que eu li os horrveis acontecimentos pelos jornais da manh.

    Qualquer coisa mais que voc gostaria de perguntar, sr. Holmes? disse Lestrade, cujas sobrance-lhas tinham subido algumas vezes durante essa notvel explicao.

    No at que eu tenha ido a Blackheath. Voc quer dizer Norwood, disse Lestrade. Oh, sim, no h dvida que foi isso que eu quis dizer, disse Holmes, com o seu sorriso enigmtico.

    Por muitas experincias anteriores, Lestrade havia aprendido a reconhecer que aquele crebro podiadissecar o que era impenetrvel para ele. Eu o vi olhar curiosamente para o meu companheiro.

    Penso que gostaria de ter uma palavracom voc agora, sr. Sherlock Holmes, ele disse. Dois dos meus policiaisesto porta, sr. McFarlane, e h umacarruagem espera.

    O jovem desgraado ergueu-se e, com umltimo relance de splica dirigido a ns,caminhou para fora do quarto. Os oficiaisconduziram-no ao txi, mas Lestrade ficou.

    Holmes havia apanhado as pginas queconstituam o rascunho do testamento eolhava para elas com o mais agudo interesseem sua face.

    H alguns pontos sobre aquele docu-mento, Lestrade, no h? ele disse,empurrando-os.

    O funcionrio olhou para eles com uma expressoconfusa.

    Posso ler as primeiras linhas e estas no meio da segunda

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    pgina, e uma ou duas no final. So to claras quanto uma impresso, ele disse, mas a escritaentre elas muito ruim, e h trs lugares onde no consigo ler nada.

    E o que voc deduz disso? disse Holmes. Bem, o que voc deduz disso? Que foi escrito em um trem. A escrita ntida representa estaes; a m escrita, movimento; a pssima

    escrita, passagem sobre entroncamentos. Um perito cientfico imediatamente pronunciaria que issofoi feito numa linha suburbana, desde que em nenhuma parte salvo as vizinhanas imediatas deuma grande cidade poderia haver to rpida sucesso de pontos. Concedendo que toda a viagemdele fora dedicada preparao do testamento, ento o trem era um expresso, parando uma nicavez entre Norwood e a Ponte de Londres.

    Lestrade desatou a rir. Voc muito para mim quando comea a tecer as suas teorias, sr. Holmes, ele disse. Como isso

    pode relacionar-se ao caso? Bem, confirma a histria do jovem no sentido que o testamento foi rascunhado por Jonas Oldacre

    durante a sua viagem de ontem. curioso no ? que um homem fosse escrever um documentoto importante de uma forma to casual. Sugere que ele no pensava que ia ser de muita importnciaprtica. Se um homem preparasse um testamento que ele nunca pretendesse tornar efetivo, elepoderia fazer dessa maneira.

    Bem, ao mesmo tempo ele preparou seu prprio certificado de bito, disse Lestrade. Oh, voc pensa assim? Voc no? Bem, bastante plausvel, mas o caso ainda no est claro para mim. No est claro? Bem, se isso no est claro, o que poderia ser claro? Aqui est um homem jovem

    que repentinamente descobre que se um certo homem idoso morrer, ele herdar uma fortuna. Oque ele faz? Ele no diz nada a ningum, mas planeja encontrar algum pretexto para ver o seucliente naquela noite. Ele espera at que a nica outra pessoa da casa se recolha e ento, no isolamentodo quarto do homem, ele o assassina, queima o seu corpo na pilha de madeira e parte para um hoteldas vizinhanas. As manchas de sangue no quarto e tambm na bengala so muito insignificantes.Provavelmente ele imaginou que o seu crime seria sem derramamento de sangue e esperou que seo corpo fosse totalmente consumido, esconderia todas as pistas quanto ao mtodo do assassinato pistas que, por alguma razo, deviam apontar para ele. Tudo isso no bvio?

    Surpreende-me, meu bom Lestrade, como sendo apenas uma ninharia muito bvia, disse Holmes. Voc no acrescenta imaginao s suas outras grandes qualidades, mas se pudesse por ummomento colocar-se no lugar desse jovem, voc escolheria exatamente a noite depois que otestamento foi lavrado para cometer o seu crime? No lhe pareceria excessivamente perigoso tornarassim to prxima uma possvel relao entre os dois incidentes? Alm disso, voc escolheria umaocasio em que o fato de estar na casa conhecido, visto que um criado o deixou entrar? E, finalmente,voc faria grandes esforos para ocultar o corpo, e ainda deixaria a sua prpria bengala atestandoque voc o criminoso? Confesse, Lestrade, que tudo isso muito inverossmil.

    Quanto bengala, sr. Holmes, voc sabe to bem quanto eu que o criminoso freqentemente ficaexcitado e faz coisas tais que um homem frio evitaria. provvel que ele estivesse muito amedrontadopara voltar ao quarto. D-me outra teoria que se ajuste aos fatos.

    Eu posso muito facilmente dar-lhe meia dzia, disse Holmes. Aqui, por exemplo, est umamuito plausvel e at mesmo provvel. Eu lhe fao disto um presente gratuito. O homem mais velhoest exibindo documentos que so de valor evidente. Um vagabundo que passa os v atravs da

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    janela, cuja cortina estava baixada apenas at a metade. Sai o advogado. Entra o vagabundo! Eleagarra uma bengala que v por l, mata Oldacre e depois toma providncias para incinerar o corpo.

    Por que o vagabundo haveria de queimar o corpo? Por que McFarlane deveria faz-lo? Para esconder alguma evidncia. Possivelmente o vagabundo quis esconder qualquer assassinato em que estivesse comprometido. E por que o vagabundo no levou nada? Porque no eram documentos que ele pudesse negociar.

    Lestrade balanou a cabea; entretanto, pareceu-me que a sua maneira era absolutamente menos segurado que antes.

    Bem, sr. Sherlock Holmes, voc pode procurar o seu vagabundo e, enquanto voc o faz, ns nosagarraremos ao nosso homem. O futuro mostrar quem est com a razo. Apenas observe esteponto, sr. Holmes: que at onde sabemos, nenhum dos documentos foi removido, e que o prisio-neiro o nico homem no mundo que no tinha nenhuma razo para remov-los, visto que ele erao herdeiro legal e se apossaria deles em qualquer caso.

    Meu amigo pareceu afetado por essa observao. No pretendo negar que a evidncia tende muito fortemente em favor da sua teoria, sob alguns

    aspectos, ele disse. S desejo demonstrar que h outras teorias possveis. Como voc disse, ofuturo decidir. Bom dia! Ouso dizer que no decurso do dia eu irei a Norwood e verei como vocest se saindo.

    Quando o detetive partiu, meu amigo levantou-se e fez os seus preparativos para o trabalho do dia como ar alerta de um homem que tem uma tarefa congenial diante dele.

    Meu primeiro movimento, Watson, ele disse, enquanto se ocupava com o seu sobretudo, deve,como eu disse, ser na direo de Blackheath.

    E por que no Norwood? Porque neste caso ns temos um incidente singular

    que segue nos calcanhares de outro incidentesingular. A polcia est cometendo o erro deconcentrar a sua ateno no segundo,porque parece ser o nico que verdadeira-mente criminoso. Mas para mim evidenteque o modo lgico de abordar o caso comear tentando lanar alguma luz noprimeiro incidente o curioso testamento,feito to s pressas e para um herdeiro toinesperado. Pode ser algo que simplifiqueo que se seguiu. No, meu caro compa-nheiro, no penso que voc possa meajudar. No h nenhuma perspectiva deperigo, ou eu nem sonharia em mexer-me semvoc. Creio que quando voltar a v-lo noitepoderei relatar se consegui fazer algo por esse jovem infeliz quese lanou sob a minha proteo.

    Era tarde quando o meu amigo voltou e eu pude ver, num relance sua facedesfigurada e ansiosa, que as elevadas esperanas com que ele havia comeado no tinham se cumprido.

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    Durante uma hora ele guinchou com o violino, empenhado em acalmar o prprio esprito agitado. Afinal elejogou o instrumento de lado e mergulhou numa descrio minuciosa das suas desventuras.

    Tudo est caminhando errado, Watson tudo to errado quanto pode ser. Eu fui audacioso diante deLestrade, mas, por minha alma, acredito que pela primeira vez o camarada est no rastro certo e nsno errado. Todos os meus instintos seguem um curso e todos os fatos seguem outro, e eu receiomuito que os jris britnicos entretanto no tenham alcanado aquele vislumbre de inteligncia emque dariam preferncia s minhas teorias em detrimento dos fatos de Lestrade.

    Voc foi para Blackheath? Sim, Watson, estive l e descobri muito depressa que o recm-lamentado Oldacre era um vilo

    considervel. O pai estava fora procura do filho. A me estava em casa uma mulher pequena,fofa, de olhos azuis e um tremor de medo e indignao. claro que ela jamais admitiria a possibili-dade de culpa do filho, mas ela no expressou surpresa ou pesar quanto ao destino de Oldacre. Pelocontrrio, falou dele com tanta amargura que inconscientemente estava fortalecendo o caso dapolcia de forma considervel; evidentemente, se o filho a tivesse ouvido falar do homem daquelejeito, isso o predisporia para o dio e a violncia. Ele era mais como um macaco maligno e espertodo que um ser humano, disse ela, e sempre foi assim, desde que era jovem.Voc o conheceu naquela poca? eu disse.Sim, eu o conheci bem; na realidade, ele foi um antigo pretendente. Agradeo aos cus que tive obom senso de afastar-me dele e casar com um homem melhor, embora pobre. Eu fique noiva dele,sr. Holmes, mas quando ouvi uma histria chocante de como ele tinha soltado um gato em umavirio, fiquei horrorizada com a sua crueldade brutal e no quis mais nada com ele. Ela procurounuma escrivaninha e mostrou-me a fotografia de uma mulher, vergonhosamente deformada e mutiladacom uma faca. Esta a minha prpria fotografia, ela disse. Ele enviou-me isto nesse estado, coma sua maldio, na manh do meu casamento.Bem, eu disse, pelo menos agora ele a perdoou,visto que deixou todas as suas propriedades para oseu filho.Nem meu filho nem eu queremos qualquercoisa de Jonas Oldacre, morto ou vivo! elaexclamou com nfase. H um Deus no cu, sr.Holmes, e o mesmo Deus que castigar aquelehomem mau mostrar, no momento apropri-ado, que o mos do meu filho so inocentesdo sangue dele.Bem, eu tentei uma ou duas possibilidades,mas no pude chegar a nada que ajudasse anossa hiptese, mas a vrios pontos quetrabalhavam contra ela. Dei isso por conclusivoe fui para Norwood.Esse lugar, Deep Dene House, uma grandevilla moderna, de tijolos aparentes, erguida emseu prprio terreno, com um gramado e umamoita de loureiros na frente. direita e um poucoatrs, a uma certa distncia da estrada, fica o depsitode madeira que tinha sido a cena do incndio. Aqui est

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    um rascunho numa folha do meu caderno. Esta janela esquerda a que abre no quarto de Oldacre.Dela voc pode observar a estrada, veja. Este praticamente o nico pedao de consolao que tivehoje. Lestrade no estava l, mas o seu policial de planto fez a honras. Eles haviam encontrado umgrande tesouro h pouco. Tinham empregado a manh na limpeza das cinzas entre as pilhas demadeira queimada, e alm de restos orgnicos carbonizados tinham achado diversos discos demetal descorados. Examinei-os com cuidado, e no havia nenhuma dvida que eram botes decalas. Pude distinguir at mesmo que um deles era marcado com o nome Hyams, o alfaiate deOldacre. Ento trabalhei muito cuidadosamente no gramado, em busca de sinais e rastros, mas estaseca deixou tudo to duro quanto ferro. Nada podia ser visto exceto que algum corpo ou volumetinham sido arrastados atravs da baixa cerca viva de alfena que est alinhada pilha de madeira.Tudo aquilo, evidentemente, ajusta-se teoria oficial. Eu rastejei sobre o gramado com um sol deagosto em minhas costas, mas cheguei ao fim de uma hora sem saber mais do que antes.Bem, depois desse fiasco eu entrei no quarto e tambm o examinei. As manchas de sangue erammuito leves, meras ndoas e descoloraes, mas indubitavelmente frescas. A bengala fora removida,mas tambm l as marcas eram superficiais. No h nenhuma dvida que a bengala pertence aonosso cliente; ele o admite. Havia marcas de ps de ambos os homens pelo tapete, mas nenhumade qualquer terceira pessoa, o que novamente favorece o outro lado. Todo o tempo eles estavamacumulando pontos e ns estvamos parados.Somente obtive um rpido vislumbre de esperana e ainda no chegou a nada. Examinei o contedoda caixa forte, a maior parte do qual fora removida e deixada sobre a mesa. Os documentos foramcolocados em envelopes lacrados; um ou dois tinham sido abertos pela polcia. Eles no eram degrande valor, at onde pude estimar, nem a caderneta bancria mostrou que o sr. Oldacre estivesseem condies muito prsperas. Mas pareceu-me que nem todos os documentos estavam l. Haviaaluses a alguns certificados possivelmente os mais valiosos que no pude encontrar. claroque isso viraria o argumento de Lestrade contra ele se ns pudssemos prov-lo definitivamente pois quem roubaria uma coisa se soubesse que a herdaria brevemente?Finalmente, tendo puxado toda as outras capas e no sentindo nenhum cheiro, tentei a minhasorte com a empregada. Sra. Lexington o nome dela uma mulher pequena, taciturna e silenciosa,com olhos suspeitos e tortos. Ela poderia nos contar algo se soubesse estou convencido disso.Mas ela era to lisa quanto cera. Sim, ela tinha deixado o sr. McFarlane entrar s 21:30 passadas. Elapreferia que a sua mo tivesse murchado antes de t-lo feito. Ela foi para a cama pouco depois das22:30. O quarto dela fica no outro extremo da casa, e ela no poderia ouvir nada do que haviaocorrido. O sr. McFarlane tinha deixado o chapu dele, e por sorte ela foi despertada pelo alarme defogo. Seu pobre e querido patro certamente fora assassinado. Se ele tinha algum inimigo? Bem,todo homem tem inimigos, mas o sr. Oldacre era muito reservado e s encontrava pessoas relacio-nadas ao seu negcio. Ela tinha visto os botes e estava certa que eles pertenciam s roupas que osr. Oldacre usava ontem noite. A pilha de madeira estava muito ressecada, pois no tinha chovidodurante um ms. Queimou feito palha, e at que ela alcanasse o local, nada mais se podia ver almde chamas. Ela e todos os bombeiros sentiram o cheiro de carne queimada. Ela nada sabia dosdocumentos nem dos negcios privados do sr. Oldacre.Assim, meu caro Watson, este o meu relatrio de um fracasso. E ainda assim ainda assim eleapertou as mos finas num paroxismo de convico eu sei que tudo est errado. Sinto isso emmeus ossos. H alguma coisa oculta, algo que a empregada sabe. Havia um tipo de desafio mal-humorado em seus olhos que s acompanha o sentimento de culpa. Contudo, nada de bom resultaem continuar falando sobre isso, Watson; mas a menos que nos venha uma oportunidade afortunada,

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    temo que o Caso do Desaparecimento de Norwood no ir figurar naquela crnica dos nossossucessos que, segundo a minha previso, o pblico paciente ter de suportar, cedo ou tarde.

    Seguramente, eu disse, o aparecimento do homem faria sucesso com qualquer jri? Esse um argumento perigoso, meu caro Watson. Voc se lembra daquele assassino terrvel, Bert

    Stevens que desejava cooptar-nos em 1887? Ele sempre se apresentava do modo mais amvel, ojovem da escola dominical?

    verdade. A menos que sejamos bem sucedidos estabelecendo uma teoria alternativa, esse homem est perdido.

    Voc dificilmente conseguir encontrar uma falha no caso que pode agora ser apresentado contraele, e toda investigao adicional serviu apenas para fortalec-lo. A propsito, h um pequeno detalhecurioso sobre esses documentos que podem nos servir como ponto de partida para uma investigao.Examinando a caderneta bancria eu verifiquei que o saldo baixo devia-se principalmente a chequesvultosos que foram passados para um sr. Cornelius durante o ltimo ano. Confesso que deveriainteressar-me em saber quem esse sr. Cornelius e como pode ter negcios to grandes com umconstrutor aposentado. possvel que ele esteja metido no caso? Cornelius poderia ser um corretor,mas no achamos nenhuma escritura que correspondesse a esses grandes pagamentos. Fracassandoqualquer outra indicao, minhas pesquisas devem agora tomar a direo de uma investigao nobanco onde o cavalheiro descontou esses cheques. Mas receio, meu caro companheiro, que nossocaso terminar ingloriamente com Lestrade pendurando o nosso cliente, o que certamente ser umtriunfo para a Scotland Yard.

    No sei se Sherlock Holmes conseguiu dormir alguma coisa naquela noite, mas quando desci para o cafda manh achei-o plido e abatido, seus olhos luminosos ainda mais brilhantes pelas sombras escuras queos circundavam. O tapete ao redor de sua cadeira estava literalmente coberto de pontas de cigarros e pelasprimeiras edies dos jornais matutinos. Um telegrama jazia aberto sobre a mesa.

    O que voc pensa disto, Watson? ele perguntou, jogando-o para mim.Era de Norwood, e dizia o seguinte:

    Nova evidncia em mos. Culpa de McFarlane definitivamente estabelecida.Aconselho abandonar caso.

    LESTRADE. Isto soa muito srio, eu disse. o canto-de-galo vitorioso do pequeno Lestrade, respondeu Holmes, com um sorriso amargo.

    Mas ainda pode ser prematuro abandonarmos o caso. Afinal de contas, uma importante nova evidncia uma coisa de dois gumes, e possivelmente pode cortar numa direo muito diferente que Lestradeimagina. Tome o seu desjejum, Watson; sairemos juntos e veremos o que podemos fazer. Sinto quehoje vou precisar de sua companhia e do seu apoio moral.

    Meu amigo no tomou nenhum caf da manh, pois era uma das suas peculiaridades no se permitirnenhuma alimentao nos momentos mais intensos, e eu o conhecia para saber que ele se presumia em suafora frrea at desfalecer de pura inanio. No momento eu no posso dispor de fora e energia nervosapara a digesto, ele diria, em resposta aos meus protestos mdicos. Assim, no fiquei surpreso quandoessa manh ele deixou a refeio intacta atrs de si e partiu comigo para Norwood. Uma multido de obser-vadores mrbidos ainda se juntava em torno de Deep Dene House, que era apenas uma vila suburbana, talcomo eu havia imaginado. Lestrade nos encontrou dentro dos portes e a sua face corou com a vitria, a suamaneira grotescamente triunfante.

    Bem, sr. Holmes, por acaso voc provou que estvamos errados? Voc achou o seu vagabundo? ele apregoou.

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    Eu no formei concluso alguma, respondeu o meu companheiro. Mas ns formamos a nossa ontem, e agora ela demonstra estar correta, assim voc deve reconhecer

    que fomos um pouco sua frente desta vez, sr. Holmes. Voc certamente tem o ar de que algo incomum ocorreu, disse Holmes.

    Lestrade riu estrepitosamente. Voc no gosta de ser batido mais do que qualquer outro de ns, ele disse. Um homem no

    pode sempre esperar ter todas as coisas no seu caminho, pode, dr. Watson? Venham por aqui, porfavor, cavalheiros, e eu penso que posso convenc-los de uma vez por todas de que foi John McFarlanequem cometeu este crime.

    Ele nos conduziu pela passagem e por um corredor escuro alm dela. Aqui onde o jovem McFarlane deve ter vindo para recuperar o seu chapu depois da execuo do

    crime, ele disse. Agora veja isto.Com subitaneidade dramtica ele riscou um fsforo e a sua luminosidade exps uma mancha de sangue

    na parede caiada. Quando ele segurou o fsforo mais perto, vi que era mais que uma simples mancha. Era antida impresso de um polegar.

    Olhe com a sua lupa, sr. Holmes. Sim, vou faz-lo. Voc sabe que as impresses de dois polegares

    jamais so idnticas? Ouvi falar algo sobre isso. Bem; ento, por favor, quer comparar aquela

    impresso com esta impresso de cera do dedopolegar direito do jovem McFarlane, obtida porordem minha esta manh?

    Conforme ele segurou a impresso perto da mancha desangue, no precisou de lupa para constatar que as duaseram indubitavelmente do mesmo dedo. Para mim ficouevidente que o nosso infeliz cliente estava perdido.

    Isso definitivo, disse Lestrade. Sim, isso definitivo, eu repeti involuntariamente. definitivo, disse Holmes.

    Algo no tom de sua voz chamou a minha ateno e eume virei para ele. Uma mudana extraordinria ocorrera emsua face. Ele estava se contorcendo numa alegria interior.Seus dois olhos brilhavam como estrelas. Pareceu-me queele estava fazendo um esforo desesperado para conter umataque de riso convulsivo.

    Meu caro! Meu caro! ele disse afinal. Bem, quemteria pensado nisso? E quo ilusrias as aparnciaspodem ser na verdade! Um homem to jovem esimptico a considerar! Isto uma lio para no confiarmos em nosso prprio julgamento, no, Lestrade?

    Sim; alguns de ns somos um pouco inclinados demais convico, sr. Holmes, disse Lestrade. Ainsolncia do homem era enlouquecedora, mas no podamos nos ressentir com isso.

    uma coisa providencial que esse jovem fosse pressionar o seu dedo polegar direito contra a

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    parede enquanto retirava o chapu da cavilha! tambm uma ao muito natural, se voc forpensar nisso.

    Holmes parecia exteriormente calmo, mas o seu corpo inteiro contorcia-se numa excitao reprimidaenquanto ele falava.

    A propsito, Lestrade; quem fez essa notvel descoberta? Foi a empregada, sra. Lexington, que chamou a ateno do policial do planto noturno para isso. Onde estava o policial da noite? Ele permaneceu de guarda no quarto onde o crime fora cometido, para constatar que nada foi

    tocado. Mas por que a polcia no viu esta marca ontem? Bem, no tnhamos nenhuma razo particular para fazer um exame cuidadoso do corredor. Alm

    disso, no est em um lugar muito proeminente, como voc pode ver. No, no evidentemente no. Suponho no existir nenhuma dvida que a marca estava l ontem?

    Lestrade olhou para Holmes como se pensasse que ele sabia o que se passava em sua mente. Eu confessoque fiquei surpreso com a sua maneira alegre e tambm com a observao bastante arredia.

    Eu no sei se voc acha que McFarlane saiu da priso na calada da noite para fortalecer as evidnciascontra ele, disse Lestrade. Creio que qualquer perito no mundo ir concordar que isso a marcado polegar dele.

    inquestionavelmente a marca do polegar dele. Isso o bastante, disse Lestrade. Eu sou um homem prtico, sr. Holmes, e quando tenho a

    minha evidncia, chego s minhas concluses. Se voc tiver alguma coisa a dizer, me encontrar nasala de visitas escrevendo o meu relatrio.

    Holmes havia recuperado a eqanimidade; entretanto, eu ainda parecia detectar alguns vislumbres dedivertimento em sua expresso.

    Meu caro, isto uma evoluo muito triste, no , Watson? ele disse. E ainda h alguns pontossingulares sobre isto que oferecem umas parcas esperanas para o nosso cliente.

    Fico deleitado de ouvir isso, eu disse, cordialmente. Receava que tudo estivesse contra ele. Eu dificilmente iria to longe dizendo isso, meu caro Watson. O fato que h uma falha realmente

    sria nesta evidncia qual o nosso amigo d tanta importncia. Realmente, Holmes! O que ? Apenas isto: eu sei que aquela marca no estava l quando examinei o corredor ontem. E agora,

    Watson, vamos dar um pequeno passeio ao sol.Com o crebro confuso mas um corao no qual algum calor de esperana estava se devolvendo, acom-

    panhei o meu amigo num passeio em volta do jardim. Holmes deu uma volta em toda a casa e examinoucada uma das fachadas com grande interesse. Ele ento voltou para o interior e andou por todo o edifcio, doporo ao sto. A maioria dos quartos no era mobiliado, mas Holmes no deixou de inspecionar tudominuciosamente. Finalmente, no corredor superior, que passava por trs quartos desocupados, ele foi nova-mente atacado por um espasmo de alegria ruidosa.

    Realmente h algumas caractersticas incomparveis neste caso, Watson, ele disse. Penso queagora o momento de tomarmos o nosso amigo Lestrade em confiana. Ele teve