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QUAL É A NOSSA AMÉRICA? O SARRAFO O SARRAFO 9 abril 2006 Um jornal pau-pra-toda-obra QUAL É A NOSSA AMÉRICA? Teatro e trabalho coletivo distribuição gratuita

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QUAL É ANOSSA

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QUAL É ANOSSA

AMÉRICA?

Teatro e trabalho coletivo

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Nossos endereçosÁGORA – CDT CENTRO PARA DESENVOLVIMENTO [email protected] • www.agoranarede.com.br

[email protected] • www.arlequins.ato.br

CANHOTO LABORATÓRIO DE ARTES DA REPRESENTAÇÃ[email protected]

COMPANHIA CÊNICA FARÂNDOLA [email protected] • www.farandola.com.br

COMPANHIA DO FEIJÃ[email protected] • www.companhiadofeijao.com.br

COMPANHIA DO LATÃ[email protected]

COMPANHIA OCAMORANA DE PESQUISAS [email protected] • www.ocamorana.com.br

COMPANHIA SÃO JORGE DE [email protected] • www.ciasaojorge.hpg.com.br

DOLORES BOCA ABERTA MECATRÔNICA DE [email protected] • www.doloresbocaaberta.zip.net

DOMÍNIO PÚ[email protected]

[email protected] • www.engenhoteatral.com.br

[email protected]

FRATERNAL COMPANHIA DE ARTES E [email protected] • www.fraternal-cia.com

GRUPO XIX DE [email protected] • www.grupoxixdeteatro.ato.br

MOVIMENTO DE TEATRO DE [email protected]

NÚCLEO BARTOLOMEU DE DEPOIMENTOSwww.nucleobartolomeu.com.br

PARLAPATÕ[email protected] • www.parlapatoes.com.br

TABLADO DE [email protected] • www.tabladodearruar.com.br

TEATRO DE [email protected]

Distribuição nacionalAracaju – SE • Imbuaça Produções Artísticas • Rua Muribeca, 4 •[email protected]

Belo Horizonte – MG • Grupo Galpão • Rua Pitangui, 3613 • (31)3463-9186

Campinas – SP • Barracão Teatro • Rua Eduardo Modesto, 128 • (19)3289-4275

Goiânia – GO • Zabriskie Teatro • Rua 148, nº 248 • (62) 3242-1562

Natal – RN • Casa da Ribeira • Rua Frei Miguelinho, 52 • (84) 3211-7710

Porto Alegre – RS • Tribo de Atuadores Oi Nóis Aqui Traveiz • RuaDr. João Inácio, 981 • (51) 3028-1358

Recife – PE • Teatro Armazém • Rua da Assembléia 67, sala 61 • (81)3224-2787

Rio de Janeiro – RJ • Teatro do Pequeno Gesto • Rua Aristides Lobo,90 • (21) 2205-0671

CorrespondênciaPara entrar em contato com O SARRAFO escreva para o [email protected]

www.jornalsarrafo.com.br

O SARRAFO Número 9 • Abril 20062

um jornal pau-pra-toda-obraPublicação independente produzida pelos grupos

Ágora, Arlequins, Canhoto Laboratório de Artes da Representação, Companhia Cênica Farândola Troupe, Companhia do Feijão,Companhia do Latão, Companhia Ocamorana de Pesquisas Teatrais, Companhia São Jorge de Variedades, Dolores Boca AbertaMecatrônica de Artes, Domínio Público, Engenho, Folias, Fraternal Companhia de Artes e Malas-Artes, Grupo XIX de Teatro,Parlapatões, Movimento de Teatro de Rua, Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, Tablado de Arruar, Teatro de Narradores

Editores: Sérgio de Carvalho e Daniele Ricieri (Mtb. 41.944)Ilustrações e assistência editorial: Júlio DojcsarColetivo Editorial: Iná Camargo Costa, José Fernando, Luís Carlos Moreira e Reinaldo MaiaColetivo de produção: Antonio Tadachi, Mariana Senne, Neto de Oliveira e Renata Zanetha

Distribuição Nacional: Neto de Oliveira

Versão para internet: Márcio Boaro

Colaboraram nesta edição: César Vieira, Ilo Krugli, Luís Alberto de Abreu, Márcio Boaro, Marília Carbonari, SantiagoGarcia, Valmir Santos, Vivian Tabares, Wilfredo Machado.

Agradecimento: Alexandre Roit, Antônio Januzelli, Douglas Estevan, Grupo Malayerba, Grupo Yuyachkani, Juliana Jardim,Kil Abreu, Lenise Pinheiro, Lígia Cortez, Manuel Lázaro, Ney Piacentini.

Foto da capa: retrato de Enrique Buenaventura, cedido pelo TEC (Teatro Experimental de Calí)

Diagramação: Pedro PenafielGráfica: Gazeta Mercantil TamboréTiragem: 10.000 exemplares

Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

Ed

itoria

l Não são poucos os artistas brasileiros que se identificam suspirososcom a idéia de Borges segundo a qual “os argentinos (entenda-se: nós,latino-americanos) são europeus no exílio”. Se essa mentira idealistaconsegue se perpetuar, disfarçando seu caráter de classe, não é porquede fato a cultura dominante nos países da América Latina tinha sido, emgrande parte, forjada pelos valores de uma racionalidade burguesa maltransplantada para a colônia, mas sobretudo porque as elites locaispreferem qualquer coisa (inclusive a melancolia) a assumir a tarefa deproduzir uma realidade menos perversa.

A enorme ignorância dos artistas brasileiros sobre as tentativasartísticas dos países pobres do continente é um sintoma inegável dessatradição que só respeita os atos culturais importados a alto custo ouaqueles exportáveis para os grandes centros do capitalismo. Nauniversidade, na imprensa, nos palcos, nos debates, o teatro dos paísesda América Latina é pateticamente desprezado, e com ele um enormepotencial crítico, que foi construído por gerações que viveram e vivemcondições históricas muito semelhantes à nossa.

Se, nos últimos anos, o teatro de São Paulo construiu uma etapa novaa partir do trabalho dos grupos e da politização das práticas artísticas eprodutivas, ainda nos falta acordar para a história, o que não é possívelsem um diálogo vivo com nosso passado.

✔ Somos La Compañía de Teatro en Harapos, deBogota, Colombia. Nos gustaria hacer contactocon ustedes para generar cultura en todo lati-noamerica, formado una Red de Trabajadores encontra de los medios de comunicación del mun-do. La Red consite en el intercambio de experi-encias artisticas, puestas en escena, que comu-niquen los trastornos sociales que sufre el mun-do, generando consiencia del dia a dia que nosenceguece y nos manipula hasta enmancipar-nos. Adjuntamos nuestra informacion mas pre-cisa de nuestra experiencia y de nuestras obrascon las que participariamos en esta Red. Cual-quier inquietud que genere este mensaje se pu-ede comunicar con nosotros via e-mail:[email protected] (Vladimir Duran M,director Cia de Teatro en Harapos, Bogota)

✔ Longa e vibrante jornada editorial a O Sarrafo.Será que a maldita crítica terá espaço para observarou comentar atos e tendências do teatro? Contemcomigo. (Jefferson Del Rios, São Paulo)

✔ Só agora, no nº 8, tomei conhecimento do jornal ecomeço a me empolgar com os movimentos que acon-tecem em Sampa. Vamos espalhar pelo Brasil, contemcomigo aqui no Rio. (Paulo Garcia, Rio de Janeiro)

✔ O Sarrafo é muito bom, não só por abrir espa-ço na mídia ao teatro, mas também por veicularum conteúdo crítico tão necessário para mudar-mos a cena em que vivemos. Este é meu últimoano na faculdade de jornalismo e o escolhi comotema de meu Trabalho de Conclusão de Curso. (Fa-biane Espírito Santo, São Paulo)

cartas:

COLABORE COM O SARRAFO. Precisamos do seu apoio. Doações podem serdepositadas na conta poupança do jornal. Escreva para [email protected]

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O SARRAFOAbril 2005 • Número 9 3

Vamos meter o pé na porta?Vários grupos do teatro brasileiro recente conquistaram seu direito à existência

através de uma prática que a história mostrou ser justa: a ocupação. O texto

abaixo, do jornalista e pesquisador Valmir Santos, mostra o vínculo entre o

teatro independente e a construção do espaço próprio.

F ixo ou às vezes provisório, um lugarequivale a uma chance fundamental dematurar linguagens e formar platéias. Ahistória de muitos grupos da cena con-temporânea brasileira se vincula à deci-são de ocupar um espaço, de tornar oinativo, ativo, mesmo desejo que moveos mais importantes movimentos soci-ais do Brasil recente.

A história do Teatro Vila Velha, emSalvador, constitui exemplo bem-acaba-do da luta e conquista dos artistas. Em1959, a primeira turma da Escola de Te-atro da Universidade Federal da Bahiarompe com a direção, recusa a gradua-ção e forma a Companhia Teatro dosNovos, pioneira iniciativa profissional nacidade, capitaneada pelo professor JoãoAugusto Azevedo (1928-1979), tambémele dissidente da UFBA. João Augustofoi nome-chave na história do teatro bai-ano, artista faz-tudo que contribuiu paraa formação de muitos grupos.

Logo, evidencia-se a necessidade deuma sede. Os primeiros encontros e en-saios acontecem em casarões ou galeri-as. Espetáculos vão a auditórios escola-res, clubes e praças. Surge uma campa-nha popular para a construção de umteatro. A convicção dos Novos em seutrabalho cultural leva o governo do Esta-do a ceder um precário galpão do PasseioPúblico, atrás do Palácio da Aclamação.

O projeto arquitetônico de Sílvio Ro-bato e o apoio da sociedade deram ligaao sonho daqueles jovens do primeiroteatro independente da Bahia, reconhe-cido como de utilidade pública. Em julhode 1964, apenas quatro meses depois daimplantação da ditadura militar no Bra-sil, o Vila Velha abre suas portas com umamontagem de Eles Não Usam Bleque-Tai,na aportuguesada grafia da peça de Gi-anfrancesco Guarnieri, montada por JoãoAugusto. Não demora, e a pauta exibetambém um show antológico, Nós, PorExemplo, que traz à luz os incipientes

“Ocupa e depois me conta”.No último encontro da Rede Redemoinho, em Belo Horizonte – associação de 70 grupos de pesquisa cênica interes-

sados no compartilhamento de espaços artísticos – um assunto recorrente foi o da necessidade das ocupações deespaços públicos ociosos por coletivos teatrais. Um dos exemplos que inspirou os debates foi o da a invasão de umaala vazia do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, que era usada como área de cochilo dos funcionários edepósito de mobiliário e se converteu num espaço cultural mantido por 7 grupos de teatro organizados como "Movi-mento de Grupos de Investigação Cênica". Uma série de relatos semelhantes animou os participantes do Redemoinhoa organizar formas de intercâmbio de informações sobre espaços públicos improdutivos. Ao ser indagado sobre alegitimidade desse projeto, o presidente da Funarte, Antonio Grassi, que participava da mesa de discussões, respon-deu: “Ocupa! Depois me conta.” (Júlio Dojcsar)

O teatro queabre espaços

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O SARRAFO Número 9 • Abril 20064

tropicalistas Caetano Veloso, Gilberto Gil,Maria Bethânia, Gal Costa e Tom Zé, en-tre outros. Aquele palco torna-se símbo-lo de resistência nos anos 60 e 70.

Em meados da década de 90, o teatroé reconstruído segundo os traços mo-dernos do seu projeto original. A partirde 1998, passa a ser ocupado por seiscoletivos: Companhia Teatro dos Novos,Bando de Teatro Olodum, Vila Dança,Companhia Novos Novos, Vilavox e AOutra Companhia de Teatro. Sob o mes-mo teto, esses grupos alcançam postu-ras artísticas, culturais, políticas e filo-sóficas que precisam ser reafirmadas acada dia, de modo que não esmoreçam.Entre suas linhas de ação, estão o inter-câmbio com conjuntos de Salvador, dointerior e de outros Estados; a formaçãotécnica; e o apoio à nova dramaturgia.

No quesito política pública para a cul-tura, a cidade de São Paulo assiste, en-tre 2000 e 2004, a um dos períodos maisativos em relação aos teatros distritaisou equipamentos afins. Primeiro no De-partamento de Teatro, depois na própriaSecretaria Municipal da Cultura, o atorCelso Frateschi mobiliza sua equipe paraum plano de ocupação que atinge me-lhores resultados quando vincula a pes-quisa de criação com a comunidade dorespectivo espaço.

Como emblema, citemos os trabalhosda Companhia Estável no teatro FlávioImpério, em Cangaíba, zona leste. En-tre 2001 e 2004, desenvolveram-se aliatividades que deram origem aos espe-táculos Flávio Império – Uma Celebra-ção da Vida, com dramaturgia de Rei-naldo Maia, e O Auto do Circo, de LuisAlberto de Abreu, ambos dirigidos porRenata Zhaneta.

Inaugurado em 1992, o teatro FlávioImpério nunca atraiu tanto público comona residência da Companhia Estável, quebatizou seu projeto de Amigos da Multi-dão. Um dos integrantes, o ator Nei Go-mes, afirma que a companhia desenvolveum processo de aproximação com a vizi-

nhança e, aos poucos, cativa até quemnunca havia ido ao teatro, a maioria doentorno. Mesmo moradores de outras re-giões da cidade “descobriram” aquele te-atro por conta da boa repercussão críticade O Auto do Circo, sobre a tradição dafamília circense segundo a memória deum velho palhaço, Coscorão.

Do outro lado da cidade, em SantoAmaro, zona sul, a Fraternal Cia. de Ar-tes e Malas-Arte também empreende umaocupação das mais elogiadas no teatroPaulo Eiró. Notadamente em Borandá,desdobramento da pesquisa dos elemen-tos da comédia popular brasileira. A ins-piração vem dos migrantes de várias re-giões do país que vivem em São Paulo,alguns moradores vizinho ao próprio te-atro. O dramaturgo Luis Alberto de Abreurecria a saga familiar de três deles, co-lhendo informações desde o local de ori-gem, relatos de viagem e a fixação nacidade. “Borandá é o resultado teatralda pesquisa feita pela Fraternal sobre omigrante, com o objetivo de refletir so-bre a cultura e os valores de uma faixada população que hoje constitui maio-ria e que tem alterado consideravelmenteo perfil das metrópoles, principalmenteem sua periferia e regiões circunvizi-nhas”, escreve Abreu.

Nos espaços não-convencionais, osdesafios são redobrados. O grupo XIX deTeatro, por exemplo, parece pisar o quin-tal do vizinho quando pratica residên-cia na Vila Operária Maria Zélia, no Be-lenzinho. Em verdade, aqui os planos dopúblico e do privado ficam superpostos,como se verá. Precisa ser bem-vindo paracomo que adentrar a sala, a cozinha, oquarto do anfitrião. No caso, os mora-dores da vila operária inaugurada em1917 e que ainda preserva edifícios deépoca (alguns mal-conservados), traça-dos de rua e vegetação.

Um galpão outrora abandonado, ondefunciona um boticário, serve como sedeprovisória dos artistas. Um outro gal-pão ao lado também recebeu o espetá-

Conquistasdo Nordeste

Em 1977, atores da Paraíba compraram uma velha lona, armaram um circo eocuparam o terreno e as salas abandonadas de um antigo convento franciscanode João Pessoa. Clandestinamente, eles criaram uma escola de teatro, dança,música, capoeira e outras veredas afins. Foi assim, num ato político, que nas-ceu a Escola Piollin, no bairro do Roger. A repercussão nacional com o espetá-culo Vau da Sarapalha, anos depois, só foi possível porque antes houve umaocupação.

Em Aracaju, Sergipe, um antigo edifício escolar abandonado no bairro SantoAntonio, zona norte da cidade, foi “invadido” pelo grupo Imbuaça no iníciodos anos 1990. Conquistada a posse, virou espaço para apresentações e proje-tos comunitários como o Zabumbadores do Folclore, um cortejo de grupos fol-clóricos pela região, e o Mané Preto, oficinas de teatro, dança e música paracrianças e adolescentes. Um dos mais importantes grupos de teatro de rua dopaís deve seu trabalho a uma ocupação. (V.S. e redação)

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Teatro Oficina: símbolo de uma luta da arte contra a mercantilização.

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O SARRAFOAbril 2005 • Número 9 5

O Tendalda Lapaameaçado

O Tendal da Lapa é uma dasmaiores Casa de Cultura dacidade de São Paulo. Suahistória começou há 17 anos,quando um grupo de artistasinvadiu o prédio porqueprecisava de um lugar paraexercer suas atividades. Com otempo, o lugar ganhouestrutura e reconhecimentocomo Casa de Cultural e hojeaproximadamente 1000 pessoaspor semana freqüentam as 24oficinas gratuitas diferentes(música, artes plásticas, teatroetc), além dos mais de 30grupos de teatro que ensaiamdiariamente em seus espaços.

Um equívoco da prefeitura,que aceitou trocar o espaço como Estado por um prédio próximoa Biblioteca Mario de Andrade,faz com que o possível destinodo Tendal seja tornar-se umPoupatempo construído eadministrado por empresaprivada. Diversas entidades egrupos de teatros formaram ummovimento em defesa do Tendalda Lapa. Para diminuir oimpacto de um erro, aprefeitura declara que pretendecriar um novo local a título decompensação (nas palavras doSr. Secretario), o CentroCultural da Lapa. O debate estáaberto. Qual é o valor dacultura popular e do teatrofeito pelos grupos para a atualgestão da prefeitura de SãoPaulo? (Márcio Boaro)

“Subimos semesperar resposta”

“O espaço tem de 60 a 70% de importância na manutenção de um gru-po. O espaço congrega. Todos os grupos que viveram por muito tempotiveram sede. Em 82 descobrimos um terreno no Bom Retiro que era umdepósito de lixo. Conseguimos permissão de uso por tempo indetermina-do, fizemos um galpão e um deposito no fundo. Tivemos problema nagestão do Pitta. Queriam nos cobrar 20 anos de IPTU. Foi uma briga feia.Invadimos a Prefeitura, entramos vestidos de executivo e com os figuri-nos de marinheiro dentro das pastas. Mandamos dizer que o AlmiranteNegro queria falar com o prefeito e fomos subindo sem esperar resposta.Era uma avalanche de marinheiros. Fomos parar de cara com o Pitta. Eleficou muito assustado e disse que tinha chegado um aviso que iríamospara lá com o pessoal da CUT. Respondemos que queríamos cantar umasmúsicas para ele e que, como ele mesmo podia ver, o grupo era afro-brasileiro. Ele disse: “Eu também sou afro-brasileiro”. Chamou o secretárioe mandou resolver tudo. Em dois dias suspendeu o pedido de reintegraçãode posse. Estamos lá até hoje, embora não tenhamos conseguido, nem nogoverno Marta Suplicy, uma concessão por prazo fixo.” (César Vieira. Leiamais nas páginas 12 e 13)

culo Hysteria. Mas é a montagem de Hy-giene que reflete a interação do grupocom os moradores, transformando a ar-quitetura pela convergência da experi-ência artística e da memória local. O es-pectador-visitante acompanha cenas aoar livre, na frente de uma capela, per-corre um trecho de rua no qual vê mo-radores acenando da janela e finalmen-te chega ao pátio da antiga Escola dosMeninos. Ali, na derradeira parte do es-petáculo, num edifício semidestruído,um cenário desalentador (imaginamos aalgazarra das crianças na hora do re-creio), assenta-se de vez o drama da-quela gente empobrecida da virada doséculo XIX para o XX, submetida a me-didas higienicistas do Estado, mais umpretexto para a exclusão.

Diante da voga da exclusão, a Com-panhia São Jorge de Variedades, por suavez, foi buscar abrigo num albergue. Oespetáculo As Bastianas, transposiçãocênica de contos de Gero Camilo, sobdireção de Luís Mármora, foi parcialmen-te gestado e apresentado no AlbergueMunicipal do Canindé, na zona norte, edepois levado à Oficina Modelo Boracéa,zona oeste, misto de albergue e lugardestinado à reciclagem.

“Negando à cena o refugo de falsasconciliações, a São Jorge opera um du-plo movimento, de aproximação e dis-tância, no sentido de especificar a re-lação com seus ‘dois públicos’: a ence-nação é o esforço de estabelecer umcampo de debate entre os de dentro eos de fora – numa cidade que assim seprojeta”, afirma o diretor e dramatur-go integrante do Grupo Teatro de Nar-radores, José Fernando Azevedo, emraro e salutar exercício de análise den-tro da própria classe.

Poderíamos elencar as ações em to-das as páginas deste Sarrafo em tuas

mãos, e ainda assim o espaço seria in-suficiente. Num rápido giro, lembremosem São Paulo o teatro Oficina, no Bixi-ga, tombado como patrimônio públicoem 1982, pelo Governo do Estado, gra-ças à mobilização dos artistas; o GrupoVentoforte, cujo histórico artístico jálhe confere uso capião no terreno doParque do Povo, no bairro nobre do Ita-im Bibi; o Teatro da Vertigem e o tra-balho realizado na Casa Nº 1, no centroantigo, com oficinas e seminários; a re-sidência da Companhia Livre no Teatrode Arena, que culminou em valioso pro-jeto de 50 anos do espaço; a fixação dogrupo Lume num casarão da Unicamp,no distrito de Barão Geraldo, Campinas,espaço que obteve reconhecimento gra-dativo dentro da própria universidadee irradiou um movimento de público ede grupos de pesquisa na região; a Casado Tá Na Rua no bairro carioca da Lapa,conjunto de teatro de rua vizinho à Casado Teatro do Oprimido; a morada do gru-po Imbuaça em Aracaju, no bairro San-to Antonio, um antigo edifício escolarabandonado e adotado pelos artistas,no início dos anos 1990, o que lhes ga-rantiu a “posse”; o terreno e as salasde um também abandonado conventofranciscano de João Pessoa, conquista-do pelo Grupo Piollin; a Escola Livre deTeatro de Santo André, uma experiên-cia de 20 anos de formação gratuita equalificada com subsídios diretos daPrefeitura, o que deveria espelhar atospolíticos do mesmo naipe em outroscantões do país; enfim, são muitas asformas de acampar e encampar ações eatitudes que desencadeiam identidadeartística; desejo manifesto de afirmaro lugar do teatro na sociedade.

Valmir Santos é jornalista

e pesquisador teatral

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CRIAÇÃO COLETIVANA AMÉRICA LATINA

O SARRAFO Número 9 • Abril 20066

A criação coletiva é um princípio de trabalho teatral

praticado em diferentes países da América Latina na

década de 60. Torna-se uma marca forte dos grupos

independentes, em todo o continente, convertendo-

se numa ferramenta de politização dos

coletivos artísticos. Grupos

como o Escambray, de

Cuba, que dialoga com a

comunidade serrana

da ilha por meio do

teatro, o Aleph, do

Chile, depois exilado na

França pela ditadura, o

Malayerba, do Equador, ou

os colombianos Teatro

Experimental de Cali e La

Candelaria (principais difusores

da teoria da criação coletiva), entre tantos,

tornam-se referências de um trabalho não

especializado, voltado para a desalienação das

relações produtivas e para a politização das formas. No

Brasil, as experiências do Teatro de Arena e do CPC apontam um

caminho que seria trilhado por diversas formações nos anos seguintes,

entre as quais o União e Olho Vivo. O chamado processo colaborativo dos

jovens grupos paulistas da atualidade tem muito a aprender com a radical

politização da arte praticada (e sonhada) pela gerações anteriores.

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O SARRAFOAbril 2005 • Número 9 7

MARÍLIA CARBONARI

Enrique Buenaventura, falecido em2003, foi encenador, dramaturgo, ator,poeta colombiano e um dos maioreshomens de teatro do nosso continen-te. É certamente um dos grandes res-ponsáveis pelo desenvolvimento dacriação coletiva no teatro da AméricaLatina. Mais do que uma técnica esté-tica praticada pelos principais gruposindependentes surgidos nas décadas de60 e 70, a Criação Coletiva foi entãoum princípio de ação política. Meu pri-meiro contato com a obra de EnriqueBuenaventura se deu através de doistextos críticos: “A arte não é um luxo”,publicado como introdução à peça Atragédia do Rei Cristophe e “Notas paraum método de criação coletiva”. Am-bos me foram apresentados por Sérgiode Carvalho, na época professor naUnicamp, a quem manifestei meu in-teresse em estudar teatro latino-ame-ricano. Os textos refletiam sobre osdois campos que mais me interessavam:a criação artística coletivizada e o te-atro consciente de sua responsabilida-de política. Foi assim que Buenaven-tura, seu grupo, o Teatro Experimen-tal de Cali (o TEC), Brecht e a Colôm-bia entraram pra valer na minha vida.Transformei o interesse num projeto de

iniciação cientifica e depois de muitostelefonemas, buscas bibliográficas e aajuda de toda a família, realizei umaprimeira viagem à Colômbia em 2003.Essa entrevista inédita, aqui em partereproduzida, foi realizada ao longo deum mês e meio de estágio no TEC. Con-viver com um artista tão múltiplo comoBuenaventura foi um presente únicona vida de uma estudante com preten-sões de se tornar uma artista comple-ta. Com mais de 80 anos de idade, Bu-enaventura contava suas histórias e seposicionava diante de tudo o que acon-tecia com uma dose de ironia comumaos grandes dramaturgos. Sempre di-zia às pessoas: “la vida és dura...”, eficava com uma cara de quem disse algopor dizer... mas esperava para ver oque iriam responder. Essa era uma desuas marcas.

A cada final de espetáculo ele colo-cava-se diante do público e dizia queestava ali para perguntas, comentáriosou qualquer sugestão. Dizia que o fó-rum foi adotado pelo TEC há mais de 40anos e que aquele momento sempre foitão importante para o grupo quanto aapresentação. Depois de “quebrar ogelo”, o papo começava. A obra se trans-formava em material de análise, moti-vo para lembranças, argumentos paradiscussões sobre a história da Colôm-bia, do Haiti, e outros tantos países e

acontecimentos de um continente sub-metido a tantas violências.

A importância do trabalho do TEC eo significado de sua obra se estendempor mais de 50 anos. Ao lado de maisde trinta peças de sua autoria e ummétodo internacionalmente conhecido,o que mais se destaca no trabalho deBuenaventura é a constante exposiçãoda contradição entre a história oficialescrita nos livros e a complexidade dosprocessos históricos que determinarame definem nossas vidas. Sua dramatur-gia é repleta de um humor irônico equase sarcástico. Conjuga o prazer decontar uma história entre companhei-ros e o desconforto próprio da arte fei-ta por pessoas que lutam para trans-formar o mundo e não se conformamapenas em imaginá-lo diferente.

MARÍLIA – Quando começaram as pri-

meiras experimentações com o métodode criação coletiva? Foi na peça À Di-reita de Deus Pai?

BUENAVENTURA – Ainda não, maisali já havia indícios do que se desen-volveu depois. Começamos a utilizarmuito as improvisações. Foi ali que sur-giu a primeira questão de todo méto-do de criação coletivizada: como en-frentar a improvisação? Tolstói tem umconto muito divertido em que alguémreúne quatro atrizes, faz com que elas

se sentem e diz: “Improvisem”. E elascruzam a perna, mexem a cabeça, enada. Se não há um método para seimprovisar, não se pode improvisar.

MARÍLIA – Os textos sobre o método

de criação coletiva, escritos por você eJacqueline Vidal, discutem as etapasdo processo e as forças sociais que com-preendem esse tipo de dramaturgia.Vocês afirmam que um método é con-dição necessária para um trabalho co-letivo. Entre as diversas etapas, é im-portante o trabalho de se buscar ana-logias com a vida social. Por força dis-so é que a descrição da fábula é enten-dida como o reconhecimento das for-ças sociais que a constituem. De quemodo vocês chegaram a essa reflexão?

BUENAVENTURA – Eu me lembro daidéia de se criar uma obra a partir deum trabalho de participação de todos.Houve uma peça escrita por Calos JoséReyes, Os Soldados. Fomos apresentá-la na zona bananeira. Ali, então, dis-cutindo com os operários, eles disse-ram que sim, a montagem parecia-lhesmuito boa, mas a obra não retratava aluta dos trabalhadores da região ba-naneira. A partir dessa discussão, quefoi muito interessante, nasceu outrotrabalho, A Denúncia, ainda mais aber-to à colaboração. Que seja ele a pri-meira obra de criação coletiva do TEC,

ENTREVISTA INÉDITA

ENRIQUE BUENAVENTURA

Foi numa ilha perto da Venezuela, chamada Trinidad, que começou minhavagamundagem pela América Latina. Ali me engajei como marinheiro numbarco grande, segui para a Guiana, depois pelo Rio Negro, através da Amazô-nia até Manaus, onde vivi um tempo. Num outro barco, que parecia um campode concentração, fui a Belém do Pará, descendo até Alagoas. Na parada davolta, em Recife, desci. Saltei no cais como se o barco me perseguisse, corren-do até achar uma pensãozinha. Ali me instalei, conheci uns estudantes, eesses jovens brasileiros me disseram: “Vamos te apresentar nossa professorade espanhol”. Uma linda mulher, muito agradável, muito culta, que se chama-va Maria Tereza Leal. Ela era atriz e trabalhava com Hermilo Borba Filho noTeatro do Estudante de Pernambuco. Através dela cheguei ao teatro. Hermiloera um homem extraordinário e gostava muito de mim. Disse-me: “Vem cárapaz!”. E trabalhei como ator com ele. Como não falava bem o português,recebi o papel de mudo. E não é fácil fazer um mudo. Foi lá, também, que pelaprimeira vez, eu dirigi. Hermilo tinha que ir para o Rio e me disse “Você dirigea peça”. Eu disse “Nunca dirigi”. Ele respondeu: “Você pode!”. A confiança queele tinha me criava uma responsabilidade muito grande. A peça, escrita porele, se chamava Três cavalheiros a rigor. Era curioso porque o Teatro do Estu-dante não tinha, de fato, estudantes. Foi então que começaram os amores comMaria Tereza, que foi viver comigo. Ela era de uma família muito importante erompeu com a família. Estive ali por 3 anos. Quando tive que ir, eu era um

“No Brasil, pela primeira vez, eu dirigi”vagabundo, não sabia o que ia acontecer, eu não podia levá-la. Fui falar comHermilo: “Tenho que seguir viagem. Gosto muito dela, mas não posso levá-la”.Então Hermilo organizou as coisas de tal maneira que saí escondido e nin-guém se deu conta. Soube depois que ela inventou uma história segundo aqual eu, após retornar à Colômbia, fui enviado à guerra na Coréia e me mata-ram por lá. Ela me matou. A sua vingança foi me matar. Meus amigos do Recifee Hermilo fizeram um enterro simbólico.

Quando depois de toda minha vagabundagem eu escrevi para Hermilo, daColômbia, recebi uma resposta por carta que começava: “Mas você não estámorto?”. Por anos continuamos a nos corresponder. É uma história muitodramática e de alguma maneira muito cômica, não? Não sei se Maria Terezacontinuou sendo atriz, mas era boa. Hermilo, como autor de teatro, eraregular. Antes de tudo era um ser humano extraordinário. Se houve um paísonde eu senti isso que se chama humano (não sei por que damos caráterpositivo a essa palavra quando o ser humano é capaz das barbaridades maisterríveis), foi no Brasil que senti isso. Viajei por muitas cidades. Trabalheino Rio com Paschoal Carlos Magno, fui à Bahia e me consagrei a Xangô,trabalhei numa companhia de teatro comercial em São Paulo (com uma por-tuguesa insuportável), andei pelo Rio Grande do Sul. Nesse país encontreipessoas muito compreensivas, doces, tranqüilas, humanas. Eu tenho um amormuito grande pelo Brasil.

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não sei. Porque, de todas as maneiras,a criação coletiva não elimina o autor,nem o diretor, nenhum dos ofícios es-pecíficos do teatro. Seu propósito épermitir que o ator tenha uma inter-venção muito maior na criação dospersonagens, da encenação, do texto.Ela permite que os atores façam pro-postas, e normalmente essas propos-tas não são verbais, mas feitas em cimado palco, com tal força que podemmudar os rumos da narrativa. Isso é abase do que chamamos criação coleti-va: é a improvisação. Mas a riqueza daimprovisação está em também encon-trar um método de improvisar. Não éimprovisar por improvisar, mas esta-belecer um método de divisão da pes-quisa do texto. Então, o TEC, traba-lha, sim, com criação coletiva, semdeixar de manter as funções específi-cas do diretor, músico, cenógrafo, au-tor. Se exigimos que os atores sejamtão criadores quanto responsáveis pe-las funções acima mencionadas é por-que esse feito deve se converter numdireito. No direito do ator fazer pro-postas, preferencialmente sobre o pal-co, através de suas ferramentas de ator.O TEC ainda vai mais longe nessa in-tenção participativa através do fórum,ou conversa do grupo ao final de cadaespetáculo, quando confronta seu tra-balho com seus possíveis efeitos.

MARÍLIA – No artigo “Notas sobre

dramaturgia” você se utiliza dos con-ceitos de “tema, mitema e contexto”.O tema seria o texto ou eixo centralsobre o qual se inicia o trabalho, com-preendendo também o ponto de vistaque organiza o discurso da montagem.Mitema, termo tomado de Lévi-Strauss,seria o eixo que revela as relações en-tre personagens e acontecimentos, bemcomo outros códigos ou linguagens, queservem de “motor” e de “amarra” ànarração. O contexto se apresenta naprópria narração, compondo-se de doissubníveis: o da intriga e o do argumen-to. Então o método de criação coletiva

exige uma consciência técnica de dra-maturgia em bases sociais? Seria isso:como conduzir a improvisação em pers-pectiva histórica?

BUENAVENTURA – Sim, exatamenteisto.

MARÍLIA – É muito forte a presença

de temas históricos nas obras do TEC.Como se dava a escolha dos temas?

BUENAVENTURA – Sempretivemos a preocupaçãopolítica e histórica. Aspessoas que dizem que seuteatro não é, nem preten-de ser, político são as quemais submetem seu teatro auma certa dominação po-lítica. É gente que me-receria ser expulsado teatro. A histó-ria do teatro cos-tuma dizer que oteatro vem domito. Mas na re-al idade é ocontrário: omito vem doteatro. O ho-mem primeirorepresentou-sea si mesmo, tor-nou-se espelho maisou menos exato, depois

inventou os deuses àsua imagem e seme-lhança enquanto, por di-versão, fazia graça de si mes-mo. Entre esculpir e desenharem seu próprio corpo e criaruma ficção mais ou menos es-truturada ocorreu um proces-so complexo e longo. É nessemovimento que o te-atro se torna políti-co. É político nosentido que se ocu-

“Enrique, imita-me” Por muitos anos, estive no Partido Comunista da Colômbia. Levei meu irmão e ele chegou a ser membro da direção do

partido. Quando parti vagabundeando pela América latina, procurei o PC argentino. Na sede do comitê vi um retrato dePerón e Eva. Na semana seguinte, o retrato continuava lá, e na seguinte também. Então eu perguntei o que estavaacontecendo e me expulsaram do partido pela pergunta.

Quando cheguei ao Chile, não procurei o PC chileno, que é talvez o melhor partido da história da América Latina, o quese vê no fato de os gringos terem imposto o Pinochet. Certo dia, alguns companheiros me disseram: “Ouvindo você falar,nos demos conta de que você é um comunista. Por que não milita no partido chileno? Nós te convidamos.” E eu respondi:“Não vou porque fui expulso do Partido na Argentina.” E os chilenos: “Mas isso é uma honra. O Partido argentino épequeno-burguês”. Não cheguei a militar, e nunca mais voltei a fazê-lo como antes, mas conheci no PC chileno personagensextraordinárias. Começando, claro, por Pablo Neruda. Estivemos juntos em Ilha Negra, sempre nos encontrávamos em Cuba,também em Paris. E ele me dizia: “Enrique imita-me!”. Então eu o imitava, igualzinho, no modo com que ele declamavauma poesia. E ele morria de rir: “Amo el amor de los marineros / que besan y se van / en cada puerto una mujer espera /los marineros besan y se van / y una noche se acuestan com la muerte en el leno del mar”. Outra pessoa extraordinária queconheci por intermédio do Partido foi um músico, El Chueco Falabela paralítico até o pescoço, de uma vitalidade e alegriaimensas, a quem o pai nunca aceitou porque nasceu assim. A mãe o adorava. Foi como um meu irmão. Chorei muito quandosoube de sua morte. Foi exemplo único de superação humana.

pa das relações entre os homens. Esseé o tema do teatro: as relações sociais.Um teatro que não toque nas relaçõessociais não faz sentido. Lamento queseja essa a escolha do teatro comercial,que é um teatro que não tem real inte-resse. Todo seu intuito é divertir no piorsentido do termo, como uma forma dematar o tempo. E já existem muitos as-

sassinos do tempo, que dei-xam o público ali sentado

fazendo com que não pen-sem, não compliquem avida, estimulando-o ape-nas com elementos de

atração sexual super-ficial.

MARÍLIA – Você vê no teatro um lu-gar ainda produtivo para a represen-tação das relações sociais?

BUENAVENTURA – Existe uma longatradição histórica que não desdenhouda pergunta: por quê teatro? E paraquê? Para ensaiar a vida. Cada época sepõe à prova representando em cena seusconflitos, bem como a maneira com queforam ou são vivenciados. Se tomarmosem conta a relação profunda de pensa-mento e linguagem com as diferentesestruturas sociais, entendemos a for-mação de ideologias como maneiras in-conscientes e conscientes de se prati-car e conceber as relações dos sujeitoscom a sociedade e com a natureza. Asideologias não são somente confronta-ções de comportamento, mas um lugarde formação das experiências e ilusõesque constituem os comportamentos.Então, no discurso humano verbal ounão verbal, está presente necessaria-mente uma ideologia. Entretanto, omelhor caminho da ciência até hoje foio da dúvida. De todas as coisas segu-ras, disse Brecht, a mais segura é a dú-vida. A ideologia cientifica converte aciência, que é a arte de perguntar, emuma arte de responder. Isto é, conver-te a ciência em uma forma de fé. Paraque consigamos constituir um discursoartístico ou científico passa a ser im-

portante, então, não expulsar ritu-alisticamente ou exorcizar a ideo-logia, mas contar com ela, não ig-

norá-la. Os aspectos políticos do teatrogrego clássico pressupunham a susten-tação de uma ideologia da polis, da ci-dade, que por sua vez traduzia a posi-ção da Grécia no mediterrâneo, comocentro comercial e fluxo de caminhosculturais. Do mesmo modo, a represen-tação da sociedade atual deve partir dadúvida sobre as ideologias dominantes,que a sustentam.

MARÍLIA – Como é a influência de

Brecht no teu trabalho?BUENAVENTURA – Brecht, talvez o

maior dramaturgo do século XX, influ-enciou muito nosso trabalho, desde aencenação até a dramaturgia. Impres-sionou-me muito quando vi, em Paris,o Berliner Ensemble. Vi uma tempora-da inteira do grupo e fiquei muito ami-go de Helene Weigel. Falávamos em in-glês e quando ela não entendia tinhaum intérprete. O Berliner ainda man-tinha toda a equipe e Brecht já estavamorto. Infelizmente, não sei alemão,então não pude ler o original de Bre-cht, somente as traduções em espa-nhol, que nem sempre são boas. Umapeça como Los papeles del infierno temrelação com Terror e Miséria no Tercei-ro Reich.

MARÍLIA – Como era a relação do Te-

atro Experimental de Cali com as matri-zes populares, as festas, danças? Vocêsas utilizavam em algum momento?

BUENAVENTURA – O termo “popu-lar” é muito vago. O que posso dizer é

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mente que para os fins estéticos de alto valor é maiseficiente uma linguagem polivalente, de amplo e ricosignificado naturalista. De maneira que pensamos queessa dramaturgia, ainda que esteja baseada em acon-tecimentos políticos e sociais, tem resultados mais devalor estético do que político.

O SARRAFO – Por favor, comente a influência dos se-guintes artistas em seu trabalho: Atahualpa del Cioppo,Enrique Buenaventura e Andrés Perez.

GARCÍA – O intercâmbio e a influência mutua entredramaturgos e grupos de teatro para o desenvolvimen-to da nossa proposta tem sido muito valioso. Sobretudocom personalidades como Atahualpa del Cioppo, comquem fizemos numerosos encontros de crítica e análisee com Enrique Buenaventura, somado ao seu grupo TEC.Para ser preciso, foi Enrique quem teorizou e fez refle-xões de grande utilidade sobre essa “atitude” coletivade trabalho. Em relação ao Andrés Perez, nos encontra-mos poucas vezes, mas foram momentos muito provei-tosos. Ele trouxe um ar renovador e fresco para tratar afundo os aspectos regionais, como a fala, a gestualida-de e a expressão; sem que isso caíse nas facilidades dofolclórico e do banal.

O SARRAFO – O que significa a influência de Brechtpara o teatro latino americano? Que feições o teatro épicoassume no continente?

GARCÍA – Faz 60 anos que Brecht morreu e seus gran-des ensinamentos para uma nova dramaturgia são maisdo que nunca necessários. Ele nos ensinou a enfrentaro quixotesco trabalho de sermos nós mesmos os forja-dores de nosso teatro. Isso porque, acima de tudo, elenos ensinou a estranhar a realidade, a não aceitar avisão direta das ações, dos mitos, mas a perguntarmosa origem das causas. Por causa dele apontamos com odedo a realidade e não cansamos de perguntar: e porque isso?

O SARRAFO – A criação coletiva ainda é um métodoutilizado mesmo em épocas depolitizadas?

GARCÍA – Acredito que não há épocas despolitizadas.A relação da política com a arte, assim como da ciênciacom a arte, é e foi sempre um fator vital, decisivo paraa criação artística. A criação coletiva é uma forma, umaatitude de encarar essa relação, tão valida como a ati-tude política individual. Em nosso caso nunca encara-mos o trabalho individual como não político. Não so-mos dogmáticos. O resultado é um número quase igualde obras coletivas e individuais. (Perguntas propostaspor Iná Camargo Costa, Reinaldo Maia e Sérgio de Car-valho, edição de texto de Daniele Ricieri).

O SARRAFO – A Candelária realizou, em sua história,diversos trabalhos de criação coletiva. Dentre as distin-tas possibilidades de inspirar o processo de improvisa-ções, quais o senhor considera o mais produtivo?

SANTIAGO GARCÍA – Este ano La Candelaria completa40 anos de trabalho ininterrupto, dos quais mais de trintadedicamos à criação de obras nossas, seja coletivamenteou a partir de uma proposta individual. Realizamos 22obras nesse período: 10 de criação coletiva e 12 de cri-ação individual. Não desenvolvemos um método ou umsistema de trabalho específico para a criação de nossadramaturgia já que consideramos este processo de tra-balho mais como uma “atitude” do que como um méto-do. O mais importante para o coletivo, como resultadodessa experiência de trabalho, foram a consolidação dogrupo, a formação de uma público amplo e popular e apossibilidade de influenciarmos na escolha das obras deoutros jovens grupos.

O SARRAFO – O Senhor poderia nos relatar o processode criação e trabalho de um espetáculo, como por exem-plo, o “Guadalupe años sin cuenta”.

GARCÍA – Dentre essas 10 peças coletivas, todas tive-ram uma recepção muito favorável tanto dentro comofora do grupo. Mas talvez a que mais causou impactotenha sido “Guadalupe años sin cuenta” (Guadalupe anossem conta). Foi nossa terceira obra e demoramos quasedois anos para estreiá-la em 1975. Partimos do estudode um episódio sócio-político ocorrido na Colômbia nosanos 50, e com ajuda de depoimentos dos participantesrecolhidos pelo escritor Arturo Alape, a gente propôssoluções cênicas, tendo as improvisações como ferra-menta fundamental de trabalho. Também tivemos nu-merosas e difíceis análises do que chamamos linhas te-máticas. Com isso chegamos a uma estrutura da obracomposta por 12 quadros independentes, à maneira bre-chtiana, ligados por canções. Simultaneamente foramaparecendo as personagens, os diálogos e falas da peça.

O SARRAFO – Você considera o trabalho da Candeláriacomo teatro político? Por que?

GARCÍA – O confronto de uma obra, como Guadalu-pe, por exemplo, com o público foi muito significati-vo. Porque, além de trazer uma “mensagem” muito opor-tuna aos espectadores, por todo contexto da agitaçãopolítica em que se vivia naquele momento, a parte for-mal também era importante. Sua forma, seu plano derepresentação, cheio de linguagens tanto gestuais comoverbais, buscavam mais as metáforas, as funções poé-ticas, a polivalência do que a linguagem direta e ime-diatista. Tudo isso foi muito apreciado pelo novo pú-blico que buscávamos e também pela crítica. Evidente-

CRIAÇÃOCOLETIVA NACOLÔMBIA

que, para escrever, uso muitos contospopulares, mas que foram registradospor escritores. A primeira versão de Àdireita de Deus Pai eu fiz baseada emuma mogiganga, que é uma represen-tação camponesa. Os camponeses che-gavam a grandes fazendas dos senho-res e começavam: “Peço permissão,senhores, para aqui representar estavelha mogiganga, de gente desse lu-gar”, e continuavam em verso. As per-sonagens eram o diabo, uma ou duasmortes, uma mulher do povo, e outros.Mas eu só podia ter adotado essa es-trutura porque tive contato com suaaplicação prática uma vez, em Antió-quia, em um povoado pequeno que sechama La Serra, durante uma repre-sentação popular.

MARÍLIA – Nas várias décadas de

vida do TEC, o que mudou no que serefere à política cultural?

BUENAVENTURA – Não mudou mui-to. A política cultural da Colômbia émuito ruim e agora está pior ainda.

MARÍLIA – Mas não aumentou o nú-

mero de grupos de teatro não-comerci-al?

BUENAVENTURA – Ao contrário.Houve uma época em que existiammais de 200 grupos de teatro em Cali.Hoje tem muito menos, deve haver uns50, 60. A situação econômica tem pi-orado muito. Isso se vê mesmo nos gru-pos com trabalho mais maduro. A Can-delária, por exemplo, não tem maisalmoço. Nós pelos menos temos almo-ço para os atores. Existem exceções,claro, há um grupo de teatro em Me-dellin muito bom que se chama Mata-candelas, esteve aqui com duas obras,uma de Maeterlink e outra de GarcíaLorca. Mas são poucos os bons traba-lhos com dramaturgia própria. É mui-to dificil escrever teatro.

MARÍLIA – Como você vê o teatro na

Colômbia hoje?BUENAVENTURA – Eu só posso res-

ponder pelo TEC. Estamos apresentan-do Preguntas Inutiles, sobre uma temá-tica concreta, a dos bairros periféricosque vivem uma situação terrível de ex-clusão. Isso tem uma função social. Maseu acredito, sempre que o discurso quedeve primar é o artístico. É a qualidadeartística que deve orientar a obra, sema qual ela não serve, ainda que tenhasas melhores intenções políticas. Porqueem primeiro lugar é de arte que se tra-ta. É o que posso dizer.

MARÍLIA – E como está o TEC hoje?BUENAVENTURA – Eu creio que falta

uma boa administração, que faça a pu-blicidade, que venda apresentações, quefaça a sala se mover. Uma tentativa éconstituir um grupo de amigos do TEC.A verdade é que estamos numa crise deisolamento. E temos que sair.

(Edição de texto S.C.)

Como forjamosnosso próprio teatro

Entrevista com Santiago GarcíaNa Colômbia o chamam de maestro. Santiago Garcia, 77 anos de idade, fundador e

diretor do grupo La Candelária, é um artista referencial para o moderno teatro latino-

americano. Com mais de 43 espetáculos, sua obra contribuiu para a difusão da criação

coletiva como método de pesquisa de uma dramaturgia nacional, crítica e popular. Altamente

engajado nos movimentos teatrais do país, o La Candelaria tem publicado seus textos criados

nas salas de ensaio, inspirando a continuidade de um ideal de coletivização artística.

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O SARRAFO – É possível traçar umatendência geral dos modos de produçãocoletiva na América Latina? De que modoa influência de Enrique Buenaventura foideterminante nesse processo?

VIVIAN – Acredito que é possível defi-nir alguns princípios gerais da criaçãocoletiva latino-americana: ela surge comouma forma urgente de suprir a falta deuma dramaturgia que aborde a necessi-dade de nossos povos e que enfrente, pormeio de linguagens teatrais próprias eartisticamente elaboradas, temas como adominação imperial, a exploração capi-talista, a demagogia, as distorções his-tóricas – ao mesmo tempo em que apro-xima essas problemáticas da vida comum.

A criação coletiva buscava democrati-zar o processo criativo, equilibrando aparticipação de cada um dos componen-tes do grupo contra a tirania do diretor.

Fazendo assim, ela favoreceu que otrabalho de ator pudesse ser entendidode modo mais integral, como um criadorque investiga, se aprofunda na temáticaem questão, e que também propõe e dis-cute soluções cênicas, tornando-se res-ponsável por todo processo.

Sem dúvida, pode-se dizer que cadagrupo vivenciou esses princípios de ummodo singular, fazendo conexão à suaprópria tradição, assim como às deman-das de seu contexto. Em muitos casosnão desapareceram da criação coletivaas figuras individuais do dramaturgo, di-retor, cenógrafo ou músico. Ao contrá-rio, ela proporcionou uma integraçãomaior entre eles.

Enrique Buenaventura, diretor do Te-atro Experimental de Cali (TEC), conside-rou a criação coletiva um método de mon-tagem, necessário para modificar a auto-ridade do diretor como elemento domi-nante na criação.

No trabalho do TEC, a improvisação foium ponto de partida e elemento centralpara se armar e desarmar o texto. Ela seconfigurou em um procedimento maisobjetivo, coletivo e metodizado de análi-se textual. Eles concebiam o texto em

cena como uma escritura viva. Ao con-cluir-se a apresentação, abriam um espa-ço para a participação ativa da platéia,com debates e intercâmbios.

Essa perspectiva democrática e abertamarcou, por exemplo, a atuação do Tea-tro Escambray, que teve forte atuação emCuba durante a década de 70. Quando ogrupo se propôs a abordar problemas es-pecíficos da região montanhosa em quehavia se estabelecido, como forma de re-fletir sobre os complexos problemas doscamponeses no contexto das transforma-ções revolucionárias, foi levado a buscara participação ativa dos expectadores, oque trouxe a necessidade de uma modifi-cação na estrutura das obras.

No Escambray, a criação coletiva man-teve o respeito à individualidade e amaioria dos textos, mesmo que resultan-tes de um processo de investigação dogrupo, acabaram sendo estabelecidospelo dramaturgo. El Paraíso recobrao ouLa vitrina, de Albio Paz, assim como Lasprovisiones, de Sérgio Gonzáles, são tex-tos criados por atores que se tornaramdramaturgos.

Santiago García, diretor do Teatro LaCandelária, outro dos líderes e teóricosda criação coletiva, afirmou que em seu

grupo ela representava uma estrutura queatravessa em todos os níveis a criação,sempre somando habilidades. Ao longode 40 anos, o grupo tem alternado traba-lhos de criação coletiva com outros decriação individual para “não ficar sub-metido a um método, para não nos enri-jecermos e não nos repetirmos. A arte éavessa aos métodos, a verdadeira arte levaa uma permanente ruptura de normas eleis, tem uma atitude iconoclasta, espe-cialmente com o já feito”.

Aristides Vargas, diretor do grupoequatoriano Malayerba, por outro lado,entende a criação coletiva como uma es-pecialização, desde que se assuma que adramaturgia não vale mais do que a en-cenação ou a interpretação.

O SARRAFO – A criação coletiva surgiu

em um momento de intensa politização.Ao mesmo tempo se torna ferramenta depolitização dentro dos grupos de teatro.Isto continua tendo validade mesmo emum panorama despolitizado?

VIVIAN – Não creio que se possa afir-mar de forma incontestável que haja des-politização no panorama atual da Améri-ca Latina, onde as forças de esquerda cadavez mais recuperam o terreno perdido na

esfera política. Contudo, a política – esua expressão na arte – têm assumidoformas mais livres e menos dogmáticas,menos ligadas ao discursos diretos e simmais comprometidas com a complexida-de dos indivíduos, considerando o valorda espiritualidade, com a consciência deque, mesmo sendo a exploração e a in-justiça social problemas cruciais, tambémo são os problemas relativos à segrega-ção das minorias ou o da anulação dosimpulsos individuais legítimos, aquelesque articulam os temas de classe com osde sexo e raça (assim como qualquer tipode diferença).

Se podemos dizer que existem espa-ços de arte comprometidos com o desti-no do homem e sua relação com a socie-dade – o que desde sempre foi uma moti-vação essencial da arte – eles estão emboa parte no teatro e nas performances(esta entendida com uma arte-acción)praticados pelos artistas da América La-tina a quem temas como identidade, tra-dição, memória e utopia têm sido, e se-guem sendo, objeto de reflexão atravésde uma infinidade de estilos e formas,quase sempre impuras, bastardas e híbri-das. O caráter político se relaciona tam-bém com a inscrição num contexto.

CRIAÇÃOCOLETIVA EM

CUBA

As tensões entreindivíduo e grupoVivian Tabares é crítica, editora, professora e pesquisadora teatral em Cuba. Desde

2000 dirige a revista Conjunto e o departamento de teatro de La Casa de las Américas,

instituição que promove o Maio Teatral. A revista Conjunto existe desde 1954 e é uma

das mais importantes publicações teatrais latino-americanas, referência para o

intercâmbio de informações e reflexões entre os criadores de teatro do continente.

Nessa entrevista, Vivian Tabares traça um panorama histórico da criação coletivizada

como procedimento fundamental de uma teatralidade crítica.

Imagens da cena contemporânea no continente

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Ainda que a estrutura grupal pareçaenfrentar uma crise, a sobrevivência degrupos que hoje comemoram 40, 35, 30,20 anos com energias renovadas dá tes-temunho da validade dessa forma de tra-balho. Gostaria de mencionar a capaci-dade permanente de autocrítica e reno-vação de um grupo como Yuyachkani,por saber combinar projetos coletivos aosespaços da expressão individual diferen-ciada de cada um de seus membros. Epor integrar a criação coletiva e a dra-maturgia do ator – aproveitando de modopróprio o legado antropológico, as artesmarciais, numa “acumulação sensível” deuma vasta gama de conteúdos corporaise de interpretação musical – com a re-cuperação da festa popular andina e abusca de formas antes exclusivas dasartes plásticas.

Também experiências recentes, comoo contato que tive com um jovem movi-mento de grupos, durante o V Festival de

Teatro de Santa Cruz de la Sierra, Bolí-via, me fazem pensar que a fórmula gru-pal não está perdida, mas coexiste comalternativas estruturais muito mais mó-veis, de inter-relação entre equipes afins,capazes de se intercambiar – como apa-receu primeiro em Porto Rico e mais re-centemente em Cuba – nos quais o dire-tor volta a ganhar terreno.

O SARRAFO – Em que medida os movi-

mentos dos anos 60/70 é herdeiro domovimento anterior dos teatros Indepen-dientes?

VIVIAN – Creio que os grupos dos anos60 e 70 herdaram do teatro independen-te sobretudo uma vocação ética, tantona profissão como na vida, de repúdio aocomercialismo e à banalização, de toma-da de consciência da criação artísticacomo responsável e comprometida comos valores humanos e com a sociedade.

O SARRAFO – Quais são os principaistrabalhos que influenciaram, na sua opi-nião, o teatro latino-americano?

VIVIAN – Devo fazer uma ressalva an-tes de responder à essa pergunta: minhaexperiência com editora de uma revistade teatro durante 15 anos me faz des-

confiar cada vez mais dos “especialistasem teatro latino-americano” capazes dese aprofundar no estudo da cena viva delugares tão diferentes como o mundoAndino e o Caribe, ou do Cone Sul e doMéxico, só para citar pares de exemplos,ilustrativos da infinita diversidade impli-cada na generalização “teatro latino-ame-ricano”. Por isso, talvez responda à estapergunta com uma verdade inquestioná-vel mas ao certo incompleta: entre asprincipais influências temos que nos re-ferir a Leonidas Barletta e seu Teatro DelPueblo (Argentina), a Atahualpa del Cio-ppo e o Teatro El Galpón (do Uruguai), aLíber Forti e o conjunto teatral NuevosHorizontes, da Bolívia, à pedagogia deum imigrante como o japonês Seki Sano(que atuou no México, entre outros paí-ses), todos empenhados em fazer um te-atro “do povo e para o povo”, com altaexigência artística voltada ao coletivo, ouainda ao impulso renovador e revolucio-

nário de Vicente Revuelta, à frente doTeatro Estúdio de Cuba, até 1958.

O SARRAFO – Qual é a influência do

teatro antropológico na organização e cri-ação dos grupos da América Latina?

VIVIAN – A Antropologia Teatral veioreforçar no ator um aspecto profunda-mente ligado a sua responsabilidade pro-fissional: o fato evidente de que é umcriador indispensável, ativo, capaz de trei-nar seu corpo-mente e construir uma dra-maturgia própria que alimenta e enrique-ce o processo criativo do encenação, deigual valor no conjunto dos resultados,convertendo-se em laboratório de inves-tigação do ofício. Essa perspectiva se ar-ticula, de um ponto de visa estético, comos princípios defendidos pelo Novo Tea-tro e pela Criação Coletiva, ao reforçar osentido do grupo como célula orgânicade agregação para uma arte coletiva.

Também, a ética de resistência tea-tral frente às facilitações e superficiali-dades proposta por grupos como o OdinTeatret tem servido como incentivo dedefesa e validação da marginalidade qua-se sempre associada ao teatro, que pas-sa assumir produtivamente seu lugar al-ternativo.

Existiram seguidores e aprendizes me-díocres da Antropologia Teatral – imita-dores – que se aproveitaram de imagense soluções. Mas houve também criado-res que souberam captar a essência dosprincípios para recriar sua herança pró-pria, revisitar a tradição de investiga-ção cultural e direcioná-la para um pro-pósito autêntico.

O SARRAFO – Um tema fundamental

no teatro dos anos 60 é o anti-imperialis-mo. Esta problemática tem surgido emcena nos últimos anos?

VIVIAN – O teatro hoje não fala de anti-imperialismo de modo direto como faziana década de 60 ou 70, talvez porque osdiscursos artísticos preferem hoje refle-tir sobre valores mais apegados ao com-portamento e à conduta do indivíduo; oque não quer dizer que os subtextos esuperobjetivos não conduzam a conclu-sões gerais que defendam a dignidade

humana e critiquem e condenem injusti-ças sociais e formas de dominação impe-rial facilmente relacionadas com a reali-dade em que vivemos.

O SARRAFO – É possível fazer um ba-lanço da organização e criação teatral emCuba passados 50 anos da revolução?

VIVIAN – Em Cuba, quase 50 anos deexperiência revolucionária têm consegui-do manter, em meio a duras crises, ga-rantias que permitam aos artistas de te-atro dedicarem-se por inteiro ao seu tra-balho, com salários fixos – menores doque os da telelevisão e do cinema, masem geral, mais altos do que os da médiados profissionais do país –, previdênciasocial e subvenções, que nem sempre sãosuficiente, mas são constantes no que serefere à para a produção de montagens eà constribuição para um crescente reco-nhecimento social.

O que acabei de dizer não condicionaos discursos artísticos no sentido dacomplacência positiva. O melhor teatrocubano, a partir do seu compromisso esua pertinência, discute as contradiçõesreais do árduo processo de construçãodo socialismo. Esse teatro encontra er-ros e deformações e mostra seqüelas e

conseqüências. Critica a moral ambíguade muitos que usam uma máscara “soci-al” oportunista que encobre a verdade,indaga sobre a migração que dilacera afamília e o indivíduo, sobre as tensõesentre o ser humano e o grupo, quandonão se pode conciliar determinados in-teresses ou quando se tem que poster-gar desejos e aspirações em nome de umasociedade superior, sujeita aos avataresda História.

O SARRAFO – Os festivais de teatroexerceram um papel fundamental na his-tória recente latinoamericana. Isso aindaé válido ou os festivais atuais são apenasespaços de comércio das artes?

VIVIAN – Nos últimos anos têm proli-ferado os festivais que, empenhados emlevantar-se como vitrines do “grande tea-tro do mundo” e em aberto coquetismocom o mercado, programam obras comoprodutos e impulsionam uma corrente

festivaleira que termina por globalizaressas obras e despojá-las de qualquermarca singular, ou as condicionam a seconverter num produto para festivais, demuita imagem, pouco texto, tecnologia,vazio, etc. Mas também há festivais lo-cais, nacionais e regionais que se ocu-pam sobretudo em arriscar-se na procurada diversidade e a privilegiar os espaçosde encontro.

Destes últimos, afortunadamente,posso citar vários: o FIT de Cádiz, já comvinte anos de vida, apesar de pautas pré-estabelecidas e de falidas interferênciaspolíticas; o já mencionado de Santa Cruzde La Sierra, construtor de uma plata-forma do teatro boliviano capaz de mos-trar ao mundo uma cena quase desco-nhecida; o Festival de Teatro Alternati-vo que, para discutir o estado do teatroe as preocupações dos trabalhadores dopalco, é organizado pela Corporação Co-lombiana de Teatro em paralelo ao gran-de Festival Iberoamericano; o lamenta-velmente interrompido (por razões fi-nanceiras), Festival Internacional deTeatro de Santo Domingo, que em suaedição de 2003 destacou a presença na-cional da Venezuela. Seguramente exis-tem outros mais.

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O SARRAFO Número 9 • Abril 200612

A criação coletiva, no Teatro Uniãoe Olho Vivo, foi sempre, também, umaopção política. Não é só uma forma. Écomo se fosse uma analogia de umasociedade possível. O Isaías Almada fazuma leitura disso no anuário de gru-pos. Nunca fomos partidarizados, masinconscientemente partimos para umacoletivização, em busca de uma arteesteticamente bem feita. Pelo menosfoi o que sempre tentamos. E com con-teúdo revolucionário, de questiona-mento. A história anterior ao grupo,porém, foi diferente.

O Evangelho Segundo Zebedeu era umapeça pronta, escrita por mim. Fizemos aleitura no apartamento no Silney Silvei-ra, e ele ficou maluco, queria partir parafazermos o espetáculo. Foi montado pelogrupo do 11 de agosto, ligado à Facul-dade de Direito do Largo S. Francisco. OSilney vinha de um grande sucesso como Morte e Vida Severina. O espetáculocontava a vida, a paixão e morte doAntônio Conselheiro na forma do cordele do circo. Foi montado em um circo noIbirapuera e foi uma coqueluche e co-meçou a lotar, com um público politiza-do, estudantil, muita gente envolvidacom a luta pela libertação, com a lutaarmada. Era 69, 70. Até diziam, comopiada, que se os militares cercassem ocirco, em um sábado à noite, a revolu-ção brasileira acabaria porque todos es-tavam assistindo à peça. Marighella aassistiu várias vezes, o Lamarca também.E a peça ganhou quase todos os prêmiosembora fosse amadora. Foi convidadapara o Festival de Nancy e até traduzidapara o polonês por uma grande poeta delá, além de publicada na revista Conjun-to, de Cuba, em espanhol. Embora eufosse só o autor – não existia o grupoUnião e Olho Vivo – eu viajei com o gru-po e acompanhava, dava palpite, e decerto modo essa interação era uma for-ma de coletivização.

Meu segundo trabalho importante sechamava Corinthians, meu amor. O tex-to nasceu de um roteiro que eu fiz parao cinema, a partir de um encontro como Antunes Filho. Naquele tempo exis-

tia em São Paulo um porão, na rua Bri-gadeiro Luis Antônio, chamado teatroCasarão. Era mantido por um grupocomposto de gente do povo mesmo,que montava espetáculos experimen-tais. O espaço era freqüentado por la-vadores de carro, por bancários, taxis-tas. No porãozinho cabiam umas 80pessoas. Eles pediram para montar Co-rinthians meu Amor, o que foi feitocom direção do Sérgio Pimentel. Emcima do meu roteiro o pessoal do Ca-sarão fez o texto da cena. No espetá-culo restaram uns 30% meus. Tinhauma cena deles que era um concursode resistência carnavalesca. Era inspi-rada numa coisa que acontecia no Ibi-rapuera, transmitida pela televisão.Inclusive um dos vencedores do con-curso de resistência carnavalesca doIbirapuera foi um sujeito que depoisse transformou em seqüestrador doEmbaixador Americano, o Virgílio Go-mes da Silva, depois morto pela repres-são. Nesse sentido, foi no Corinthiansque começamos a conversar sobre umadramaturgia coletiva.

Outro fato importante é que come-çou a ocorrer uma troca de experiên-cias entre o pessoal do Corinthians e odo Evangelho. Cada grupo tinha quase30 pessoas, e começaram a discutir e arepensar o teatro. “Nós estamos fazen-do teatro – em tese uma arte revoluci-onária – com conteúdo crítico para es-tudantes e para a classe média.” Des-sas discussões nasce o Teatro PopularUnião e Olho Vivo.

Como o Corinthians meu Amor rece-bia muitos convites (na época existiammais ou menos 500 clubes Corinthiansde várzea por aqui, hoje ainda tem uns100), fomos modificando nosso apara-to cênico em função dos novos lugares.Sobre essa prática de montes de erros ealguns acertos fomos nos encaminhan-do para uma estética popular.

No trabalho seguinte, o Rei Momo,o tema foi decidido em grupo. Chega-mos à conclusão de que a personagemcentral seria o Rei Mono e a própriapeça evoca uma eleição, na época emque votar estava proibido. Fazíamos,no espetáculo, uma eleição de verda-de do Rei Momo. O público votava eescolhia. Mas no final aparecia o Na-poleão Bonaparte que rasgava o resul-tado e tomava o poder. Por isso a peçafoi proibida. Durante a escrita da peça,fomos, eu e Laura Tetti, pesquisar noRio nas escolas de samba, principal-mente a Império Serrano que é umaescola sumamente politizada. A partirdesse material, o grupo discutia per-sonagens e cenas. Não tínhamos aindanenhum método de criação coletiva,mas pelo menos um terço do texto nas-cia dessa dinâmica. Foi depois dissoque começamos a ler o Enrique Bue-naventura e os escritos do Boal sobrecriação coletiva. Passamos a adotar oconceito de que nossa criação coletivadeveria se completa na perspectiva po-pular: um tema popular, uma estéticapopular, um grupo popular e apresen-tado para um público popular.

O espetáculo marca a percepção deque a ida aos bairros populares pedeuma teatralidade de poucos objetos decena, ao ar livre se necessário, sem luz,

CRIAÇÃOCOLETIVA NO

BRASIL

O exercício doargumentoDepoimento de César Vieira

Idibal Piveta adotou o pseudônimo artísticoCésar Vieira para fugir da censura

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O SARRAFOAbril 2005 • Número 9 13

sem som, sem nada. Foi aí que passa-mos a ter dois espetáculos, um pararua e outro para o teatro convencio-nal, coisa que mantemos até hoje. Ode rua é sempre de menor duração.

Num processo seguinte decidimosfalar sobre greves. Tudo começou a serdecidido em grupo: as pesquisas, oconflito central, os secundários, ascenas, o tempo, onde se passaria aação. Integrantes do grupo foram par-ticipar das greves de Contagem, da gre-ve dos Queixadas, greve de Perus. Con-vencionamos que seria assinado pormim, ainda que fosse coletivo, paraevitarmos confusões e disputas quan-to à autoria. Foi uma decisão conjun-ta da comissão de dramaturgia que eucoordenava. E o grupo começou a pen-sar sobre a dinâmica da própria comis-são. Percebemos que era melhor teori-zar a partir de uma prática que fossecomum. Optamos pelo afastamento daequipe de dramaturgia da origem dapesquisa. A opinião do espetáculo de-veria ser coletiva. Então, nomeamosuma comissão de pesquisas que pro-duz uma espécie de fichas dramáticas.Cada um traz uma sugestão de perso-nagens, de cena, do grande roteiro.Eles discutem entre si e nos passam ogrande roteiro. E aí passamos a escre-ver e trabalhar. Para que eu possa teruma visão do coletivo, como drama-turgo, tenho que estar nas mesmascondições da equipe. Se eu tivesse en-trevistado sozinho o filho do João Cân-dido teria uma visão que não corres-ponde à do grupo. Então este roteironos é passado e escrevemos o primeiroborrão. Aí surgem as brigas, o pessoalcorta, muda, aceita. O roteiro ficaimenso, com quase 4 horas. E estréiaassim porque entra a opinião de todomundo. Só escolhemos depois das ce-nas serem apresentadas para não jo-gar a decisão para o dramaturgo e en-tregar para ele todo o comando. Esco-lhemos através da discussão. É muitoimportante marcar a data de estréiaporque ficar só ensaiando é terrível.Nossa recompensa é o aplauso do pú-blico. Fazemos 5 apresentações popu-lares, nos bairros e 5 para o públicoconvencional. Tudo isso é gravado, de-codificado, discutido nos debates. Comisso mexemos uma primeira vez napeça, ela é muito cortada. Depois deuns 15 ou 20 espetáculos fazemos umanova revisão e ela cai para uma hora emeia, uma hora e quarenta e aí fica.Tudo isso é muito discutido. No JoãoCandido tem cenas que eu queria mui-to que ficassem mas não entraram. Issovirou um método. Está em nosso livroEm busca de um teatro popular.

No grupo, nós nos reunimos paradiscutir assuntos importantes e nãoimportantes, como os letreiros do tea-tro. Nossa forma de discussão é geo-gráfica. Por exemplo, quem recebeu aproposta de uma viagem relata sem seposicionar. Aí as pessoas falam primei-ro se é bom para o Olho Vivo, depois

Advogado de comunistaSempre estive metido em política universitária. Há pouco tempo, para fins de conseguir minha anistia

política, fiz um pedido para a Agência Brasileira de Informações, Abin. Eles mandaram a minha ficha. Elacomeça em 1951, quando eu era Presidente do Centro Estudantil do Colégio Bandeirantes e termina noseqüestro do Dinis, porque eu fui visitar os seqüestradores. Neste meio tempo, quase 60 páginas. Imaginequanto se gastou com este aparato? Como é que eles se preocupavam em saber que eu saí do Rio de Janeiropara fazer um debate com o Boal ou que fui a Santo André em uma reunião do sindicato? Eu tinha umescritório de advocacia aberto na praça da Sé, que se relacionava com o movimento estudantil. No auge daspasseatas e do congresso da UNE em 68, quando 1500 estudantes discutiram os rumos da contestação, 900desses casos acabaram no nosso escritório. No país inteiro só 20 advogados defendiam presos políticos. Erapreciso que os presos confiassem nas convicções políticas do advogado. E que o advogado não tivesse medo.Porque advogado vivia preso. Eu fiquei preso uma vez por 90 dias. Existia também o risco de perder clientela:se você defendesse comunista muita gente não iria mais querer o seu trabalho. E a chance de não receber. Amaioria dos presos políticos não pagava, ou porque não tinha dinheiro, ou porque a família era contra esse“advogado de comunista”.

da possibilidade pessoal dele de parti-cipar. Só trabalhamos de sábado e do-mingo porque as pessoas trabalham eestudam. Discutimos se vamos ou nãovamos com argumentos. Nesta primei-ra rodada as pessoas falam na ordemda roda, para evitar a liderança dogrande orador, evitando os cortes doque fala melhor sobre o outro. Senti-mos os efeitos disso no espetáculo,pessoas que tinham dificuldade de fa-lar, de se expressar, começam a parti-cipar. E só decidimos as coisas impor-tantes pelo consenso. Se às 5h da ma-nhã tiver duas pessoas contra que nãoforam convencidas, a gente não vai.Isso é raro, mas acontece. Não fomospara a União Soviética passar 3 meses,lamento até hoje. Faríamos a Transi-beriana de carro e trem. Mas ficou 8 a7 para não ir e não fomos. A votação

por consenso é muito boa porque nãotem vencedores e vencidos, temos quediscutir o tema. Eu próprio mudo deopinião a cada pessoa que fala.

Quando você tem uma comunidadeque discute as coisas importantes co-letivamente (e não é fácil saber quaissão as coisas importantes) e decide porconsenso, você procura criar um hábi-to ético diferente da vida dita normal.Alguns dos filhos dos integrantes dogrupo têm dificuldades no colégio por-que eles pensam que em todo lugar aspessoas conversam, discutem numa boa,são convencidos, convencem. No espa-ço do colégio, esses meninos apanhampara burro porque a vida de fato não éisso. Ainda que pudesse ser. Mas é pre-ciso se adaptar ao trem em movimento.(Entrevista feita por Daniele Ricieri eReinaldo Maia, edição de S.C.)

União e Olho Vivo, em Córdoba, Argentina. Com megafone, em primeiro plano, Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz (1980)

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O SARRAFO Número 9 • Abril 200614

ção da criação coletiva dos anos setenta que pudesse fazerfrente aos desafios da construção do espetáculo nos tem-pos que correm. São desafios vários que vão desde a asso-ciação em grupo como forma de sobrevivência da atividadeartística, tendo em vista as distorções das leis de incenti-vo, até o aviltamento da obra artística e, por conseqüên-cia, do artista e, por extensão, do ser humano, como mer-cadoria no mercado global.

As duas experiências – a criação coletiva dos anos se-tenta e o processo colaborativo dos noventa – integram ouniverso dos coletivos de criação, possivelmente tão anti-gos quanto a história do ser humano. Aliás, a noção deautoria individual é relativamente recente, e é interessan-te atentarmos para a estrutura de outros espetáculos comoo circo – que abriga várias e diferentes contribuições ar-tísticas – ou a Commedia Dell’Arte, para verificarmos pro-cedimentos artísticos que assimilaram criações de váriosartistas sem a rigidez autoral do indivíduo a qual estamosacostumados.

Existem, no entanto, diferenças marcantes entre o pro-cesso colaborativo e a criação coletiva dos anos setenta. Aprincipal delas talvez esteja no melhor entendimento dasfunções de cada artista dentro da construção do espetácu-lo. Na criação coletiva nem sempre essas funções eram cla-ramente definidas. A idéia “todo mundo faz tudo” nem sem-pre se mostrava eficiente e, muitas vezes, o acúmulo defunções por um mesmo criador comprometia o aprofunda-mento da cena. Por vezes a função da dramaturgia redu-zia-se a “amarrar” ou “costurar” improvisações, sem o ri-goroso encadeamento de ações e sem a síntese textual quecaracterizam a prática da dramaturgia.

É claro que a criação coletiva produziu espetáculos vigo-rosos, caso contrário não teria permanecido como processoválido de criação retomado sob novo nome e prática re-ela-borada nos anos noventa. Ao que tudo indica os anos oiten-ta foram importantes nessa maturação. Se essa década, porum lado, trouxe o enfraquecimento da figura do dramatur-go como principal organizador do espetáculo, por outro, res-gatou a figura do diretor e do ator como pensadores e cria-dores autônomos. Hoje já se pode falar, refletir e pesquisarsobre um teatro criado inteiramente a partir da visão doator ou sobre um espetáculo criado integralmente sob a óti-ca do encenador, da mesma forma que anteriormente olha-va-se o dramaturgo como construtor não só do texto, mastambém da idéia do espetáculo, através das rubricas.

O processo colaborativo busca estabelecer uma cons-trução coletiva que aproveite o desenvolvimento que o te-atro e seus criadores conheceram nas últimas décadas. Buscarefletir e entender os vários passos de um processo cria-dor, estabelecer procedimentos, relevar a importância dasindividualidades, propiciar a fluência do diálogo entre ochamado pequeno coletivo (os criadores) e o grande cole-tivo (o público).

Mais do que invenção ou moda dos anos noventa, o pro-cesso colaborativo é um procedimento que se insere nocaudal histórico dos processos coletivos de criação quedeveria merecer melhor estudo e atenção. Afinal, a artenasceu como fenômeno coletivo que abarcava toda a co-munidade. E sua função é, seguramente, bem maior do quedar fama a este ou aquele criador.

LUÍS ALBERTO DE ABREU

O s grupos teatrais dos anos noventa, especialmente emSão Paulo, buscaram recuperar uma forma de produção doespetáculo que se notabilizou nos anos setenta: a criaçãocoletiva. Sob essa denominação genérica abrigava-se umasérie de procedimentos criativos que observava, como re-gra geral, a liberdade de proposição e atuação criativa. Aidéia de que um espetáculo teatral é obra de todos os en-volvidos em sua construção e, por conseguinte, todos teri-am igual direito a contribuir não só com suas habilidadesartísticas, mas com sua visão de mundo – política e estéti-ca – começou a prevalecer sobre um sistema de produçãoque pressupunha um texto acabado e pensado por um dra-maturgo e um diretor responsável por erguê-lo em cena.

Fiel ao espírito de uma época que se definia como revo-lucionária na política, nos costumes e na estética, a cria-ção coletiva surge como um pensamento de oposição aomodelo tradicional de produção teatral, baseado numa rí-gida e hierarquizada divisão de funções artísticas. Origi-nada e desenvolvida no bojo de um ideário de Esquerda (oTEC, Teatro Experimental de Cali, Colômbia, de EnriqueBuenaventura foi uma das referências na época) a criaçãocoletiva não foi, no entanto, apenas uma resposta estéti-ca, filosófica e política. Os grupos e suas criações coletivasbuscavam equacionar também questões de ordem econô-mica e administrativa, estendendo uma relação horizontala todos os setores da construção e veiculação do espetácu-lo. Assim, era comum o criador, fosse ele ator, dramaturgoou diretor, assumir funções da escrita textual da cena, atu-ação, confecção de cenários e figurinos, organização dacena, contatos com a imprensa, distribuição de filipetas,etc. A tendência era que todas as questões pertinentes aoespetáculo fossem dialogadas e resolvidas pelo próprio co-letivo, de maneira autônoma.

Os anos oitenta viram a criação coletiva abandonar a cena,pelo menos no circuito do teatro profissional, e chegou-se aacreditar que fosse apenas um fenômeno localizado no tem-po, típico do experimentalismo da década anterior.

Na década seguinte, o pensamento da construção do es-petáculo por meio de uma criação coletiva retorna de for-ma vigorosa – denominado processo colaborativo – e sedissemina como processo de criação, acompanhando o re-nascimento dos grupos teatrais. E aí está um fato signifi-cativo. Não é possível desassociar a criação coletiva ouprocesso colaborativo do surgimento e fortalecimento dosgrupos de teatro. Isso porque a criação coletiva, em suasvárias formas, não constitui um método isolado, um pro-cedimento científico que pode ser reproduzido em quais-quer condições e por quaisquer conjuntos artísticos. A raizde uma criação coletiva pressupõe fundamentalmente umacordo ético entre os criadores, no sentido de fazer respei-tar e desenvolver as potencialidades individuais do artistaao mesmo tempo em que constrói a obra - e uma visão demundo - de forma coletiva. Um processo coletivo de cria-ção se aproxima muito mais de uma pedagogia artística doque de uma técnica de construção de espetáculo.

O que se convencionou chamar, nos anos noventa, deprocesso colaborativo, não é mais do que uma re-elabora-

Raízes do processocolaborativo

A criaçãocoletiva

pressupõe umacordo ético

entre oscriadores.

CRIAÇÃOCOLETIVA NO

BRASIL

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O SARRAFOAbril 2005 • Número 9 15

INÁ CAMARGO COSTA

Desde os anos vinte do século passado, nossos hermanos argentinos já tenta-vam seguir conscientemente o exemplo do francês Antoine no que ele tinha demais conseqüente, a construção de um Teatro Livre. Por consequente, entenda-se a organização de trabalhadores (operários e comerciários, principalmente)com a finalidade de fazer teatro contra o mercado teatral e suas baixarias. Masem se tratando de um movimento já surgido no século vinte, nossos pioneirostambém se aproveitaram da experiência socialista e rapidamente travaram con-tato com as propostas de Romain Rolland para um teatro do povo.

Estas duas informações já explicam por que o mais importante grupo deteatro livre em Buenos Aires, fundado em 1930 por Leônidas Barletta, se cha-mou Teatro do Povo e desde o início de suas atividades definiu a luta contra aditadura da vez como objetivo central. A partir desta data já se pode falar em“teatro independente”, que é a rubrica pela qual o movimento é conhecido e abandeira com a qual se difundiu por toda a América Latina, começando peloParaguai e pelo Uruguai. É bom esclarecer, desde já, que o único país latino-americano que ficou à margem deste movimento foi o Brasil.

Antes de prosseguir, convém lembrar a principal razão desta marginalizaçãodeliberada. Como todo mundo há de estar lembrado, enquanto a maioria dospaíses latino-americanos se tornaram repúblicas independentes na primeira me-tade do século XIX, sob a inspiração de homens como Simão Bolívar, a oligar-quia brasileira optou pela monarquia, permanecendo presa ao jogo da coroalusitana (e a seus vínculos com as dinastias européias, a ponto de o Brasil tersido o único país americano a apoiar a invasão francesa no México em 1863,entre outras tristes razões porque nosso “bom” imperador era simplesmenteprimo do Maximiliano que Napoleão III tentou impingir aos mexicanos; mascomo certas histórias têm final feliz, o primo foi devidamente executado porum dos generais de Juarez).

Em consequência dessa opção política, as nossas classes dominantes sempreolharam as “republiquetas” sul-americanas com aquela postura de superiorida-de que caracteriza aristocratas. E trataram de adiar o máximo que puderam oseu encontro com a história (por isso a nossa república foi proclamada tãotardiamente, etc.). Para o que interessa agora, a cultura, o resultado não pode-ria ser mais desastroso: todas as questões que as repúblicas latino-americanasenfrentaram ao longo do século XIX, nós só começamos a perceber no séculoXX. Para ficar no exemplo do nosso campo, que é o teatral: até a década de 50do século XX, havia quem afirmasse que ainda não tínhamos uma “dramaturgianacional”, questão inteiramente superada por nossos hermanos ao sul.

O resultado mais desastroso dessa política cultural de costas para o conti-nente é a nossa ignorância quase absoluta da riquíssima história do teatrolivre que, por assim dizer, só não “pegou” no Brasil. E não foi por falta detentativas de intercâmbio, quase sempre por iniciativa dos hermanos. O grupoGalpão do Uruguai, por exemplo,encenou Eles não usam bla-ck-tie, de Gianfrancesco Guar-nieri em 1961, convidou JoséRenato, fundador do Teatro deArena de São Paulo, para dirigirA invasão, de Dias Gomes, em1964 e encenou, em 1969, a peçaLiberdade, liberdade, de MillôrFernandes e Flávio Rangel.

Pelos exemplos acima, pode-seafirmar que houve método na in-sistência de nossos governos emnos manter apartados do movi-mento independente pois, nasprincipais conjunturas em que aaproximação aconteceu, ela foiinterrompida por meios violen-tos. Essa é uma das razões por-que este artigo se contenta comdar um ligeiro panorama dealguns episódios de sua his-tória, sem a preocupação deaprofundar nenhuma análise.

Como dizíamos, o Teatro do Povo foi uma espécie de desaguadouro do movi-mento de teatro livre dos anos 20 em Buenos Aires e seu exemplo teve naArgentina um efeito similar ao de Antoine na Europa: em pouco tempo, menosde dez anos, havia incontáveis grupos de teatro independente em todo o país,dos quais citamos alguns entre os portenhos: A Máscara, Novo Teatro, Os Inde-pendentes, Fray Mocho, Juan B. Justo. Em 1955, por iniciativa do teatro AMáscara, foi realizado um festival em comemoração aos 25 anos de teatro inde-pendente na Argentina ao qual compareceram 66 grupos, dos quais 7 eramuruguaios e 2 chilenos. Além do Galpão, já citado, entre os uruguaios estavamo Teatro do Povo, o Circular e o Pátio; e os chilenos eram o Experimental daUniversidade do Chile e o Teatro de Mimos. Ao final do encontro, os gruposlançaram um manifesto que reafirmava alguns princípios do movimento e suasprincipais conquistas: dentre os princípios, os destaques são a opção pela cenalivre – das injunções políticas (censura) e das determinações de mercado – e aconfiança na divisa encontrada em Goethe: sem pressa nem pausa. Quanto aosfeitos, o principal foi a conquista (na verdade criação) de um novo públicopara o teatro, mas além disso o movimento formou diretores, dramaturgos,atores, técnicos e críticos; promoveu conferências, debates e exposições; edi-tou livros e revistas sobre teatro e ainda elaborou uma teoria que é patrimôniode seus integrantes.

Com as indicações acima, já vai ficando claro que o movimento atual dosteatros de grupo no Brasil tem, sem o saber, muito em comum com esta histó-ria. Em parte, as nossas dificuldades e limites decorrem desse desconhecimen-to, pois todos os limites com que topamos, e todas as nossas tentativas desuperá-los, são muito semelhantes (e sempre menos ambiciosas) aos encontra-dos pelo movimento iniciado na Argentina. Para ficar no exemplo mais recente:as leis de fomento ao teatro, que até agora fomos capazes de formular comoreivindicação, são muito modestas se comparadas com as reivindicações daque-le encontro dos anos 50, entre as quais está a de cobrar do Estado que disponi-bilize salas para uso pelos grupos de teatro independente, locais para ensaio,equipamentos para a realização de espetáculos ao ar livre, nas ruas e praças, eassim por diante. No campo das finanças, solicitam até mesmo verbas paraliquidação de dívidas com aluguel de salas privadas.

Há pouco tempo (2002) houve uma nova mobilização dos teatros indepen-dentes em Buenos Aires. Suas conquistas: foi atualizada a legislação relativa aseus espaços (muitos não-convencionais, o que possibilitou interditá-los inú-meras vezes) de modo a permitir a regularização de até 350 espaços e uma novalinha de subsídios a suas produções de até 10 mil pesos por espaço.

Finalmente, e para não limitar esta nota aos aspectos básicos (“meramente”materiais) da luta pelo teatro independente, cabe registrar que a idéia de tra-balho coletivo (ou processo colaborativo) já foi levada às suas últimas conse-quências por este movimento: o mesmo processo que levou muitos dos gruposa enfrentar e resolver as dificuldades criadas pela exigência de democratizaçãodas relações internas de produção levou-os a adotar o método da criação cole-

tiva dos espetáculos. É possí-vel que, neste capítulo, o

brechtiano Santiago Garcia,do grupo colombiano A

Candelária, tenha avançadomais do que outros compañe-

ros. A peça El paso, de 1988,cuja publicação é acompanha-

da de suas notas que reconsti-tuem e analisam cada passo dado

pelo coletivo, pode ser conside-rada a mais avançada formulaçãodo que se entende por democra-tização radical das relações deprodução teatral. E para encer-

rar com uma nota otimista,Aristides Vargas, quehá cerca de 25 anos

fundou o grupo Malayer-ba do Equador, considera-se

discípulo de Santiago Garcia. Ahistória prossegue e só teremos a

ganhar se conseguirmos nos inse-rir nela.

Teatro Livre na América Latina

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O SARRAFO Número 9 • Abril 200616

Eu me criei num bairro onde as crian-ças brincavam na rua. Eram de todas asnacionalidades possíveis: armênios, po-loneses, japoneses, espanhóis. Me crieientre muitos galegos, o que me aproxi-mou um pouco do português. Estudeinuma escola que se chamava Repúblicado Brasil. Na minha vida, certos aconte-cimentos parecem anunciar coisas no fu-turo. Minha estória vai e volta continua-mente. Estudei primeiro na escola DomPedro II e depois na República do Bra-sil. Minha família era meio clandestina,eram do partido comunista, judeus. Sehavia uma reunião em casa, ficávamosbrincando na varanda. Uma vez a polí-cia foi na casa ao lado, de imigrantes,morávamos na periferia, e minha mãedisse: “fiquem na varanda brincando,fiquem rindo, fiquem alegres, não estáacontecendo nada”. Então, ela foi para acozinha, acendeu o fogão e queimou jor-naizinhos. Uma época tiveram que serstalinistas. E depois perceberam paraonde se encaminhava essa história, o quefoi uma cruel constatação para quemsempre sofreu o horror do fascismo e daintolerância, de alguma forma.

Quando eu estava na escola primária,minha professora, que havia feito umaoficina com Javier Villafañe, nos ensi-nou a fazer bonecos. Como o meu inte-

resse era muito grande, ela me deu umlivro escrito pelo Javier contando a his-tória do teatro de bonecos. Javier Villa-fañe era um poeta que se apaixonou peloteatro de bonecos quando viu FedericoGarcía Lorca, numa passagem por Bue-nos Aires, em 1934. Dizem até que seLorca não tivesse ido embora, se alguémo abraçasse e dissesse “fica aqui”, teriaescapado ao fuzilamento. Depois dasapresentações de Bodas de Sangue fei-tas por atores, ele reunia poetas, músi-cos, artistas plásticos e apresentava ce-nas de bonecos. Um grupo acabou se for-mando, e após a partida de Lorca conti-nuou trabalhando. Nascia ali um movi-mento de teatro de bonecos na Argenti-na. Um dos integrantes desse grupo foiJavier, dando continuidade a um impul-so poético de Lorca. Anos depois quan-do eu me tornei, vamos dizer, um jo-vem, fui ao encontro dele.

Fiz por dois anos uma escola de artesgráficas. Não consegui continuar porqueminha família não podia me sustentar eaí fui trabalhar com coisas ligadas às ar-tes. Eu também ouvia palestras, assistiaa filmes, foi se abrindo um universo debastante informação. Um dos principaismovimentos teatrais daquela época erao chamado Teatro de los Independien-

tes. Tinha também o Teatro Popular Ju-deu, feito em Iídiche, teatro de alta qua-lidade. Os primeiros textos de Brecht quevi na vida foram com eles. Vi tambémpeças de autores argentinos que se tor-nariam conhecidos depois. Entre o tea-tro feito por espanhóis, vi Margarida Xir-gu, que tinha trabalhado com Lorca, fa-zendo a sapateira. Ela tinha 70 anos e asapateira 18. Foi no Teatro de los Inde-pendientes que vi pela primeira vez Ja-vier Villafañe. Era um pequeno teatro,tinha um biombo. Durante o espetácu-lo, Javier mexia com os bonecos, saía,corria para uma mesinha com uma gar-rafa de vinho, bebia um pouco e voltavapara fazer o boneco. Era o estilo dele,numa linhagem direta de Lorca. Lembrode um Fausto dele numa praça pública, oque é um retorno curioso porque o pró-prio Goethe se inspirou numa montagemde bonecos vista ao ar livre.

Uma época ele teve uma carroça comcavalo e tudo, a La Andariega, e vinhamuito ao Brasil. Aqui ficou amigo doAugusto Rodrigues, desenhista e pin-tor. Ele saiu com o Javier fazendo bo-necos e chegaram até Recife. Augustose apaixonou pela simplicidade destetipo de teatro. Preocupado com as cri-anças, ele propunha lhes ensinar a ver-dadeira matemática. Um boneco fala-va: “Quanto é 2 mais 2?” O outro res-pondia: “5”. “Ah, muito bem, muitobem!” Para Augusto, e Javier, a verda-deira matemática ensinava a aprenderna liberdade, no erro.

Olhei para a América Latina num tem-po de golpe atrás de golpe, e foi assimque se deu minha caminhada para ou-tros lugares. Queríamos sair andandopela cordilheira, conhecer grupos indí-genas e subir até o México. Como noDiário de Motocicleta. Talvez quisésse-mos fazer “o diário dos bonecos”. Donorte da Argentina chegamos à Bolívia,em Tupiza, conheci um grupo de teatrochamado Nuevos Horizontes, não sei seainda existe. Meu grande amigo PedroDomingues me acompanhava. Depois foichegando mais gente, o pessoal de Bue-nos Aires recebia nossas cartas e ia sejuntar a nós.

Quando chegamos a São Luiz de Po-tosí, que no passado colonial foi umamontanha de ouro e prata, fomos paraum albergue triste e feio. Havíamossido recomendados a um líder sindicaldos mineiros e a um professor. Na épo-ca tinha havido uma revolução, as mi-nas foram nacionalizadas e os sindica-tos ficaram muito fortes. Eles foram atéo albergue e pela manhã nos coloca-ram em um hotel simpático, chamadoTurista. Disseram “vocês vão traba-lhar”, depois de 3 dias já estávamosfazendo espetáculos. O povo das mi-nas se reunia de noite, sentavam nochão, com as crianças amarradas nopescoço e eles nos apresentavam: “doisjovens artistas trazidos de Buenos Ai-res”. O sindicato cobrava o ingresso que

Ilo Krugli,ator, diretor,

dramaturgo,

titeriteiro, nasceu

em Buenos Aires

em 1930. Atua no

Brasil desde os

anos 60 e na

década seguinte

funda o

Ventoforte. A sede

do grupo, no

Parque do Povo,

está atualmente

ameaçada pela

especulação

imobiliária.

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O SARRAFOAbril 2005 • Número 9 17

retirava da mensalidade, coisa mínima,mas tinha muita gente, então dava al-gum dinheiro. Ficamos lá quase ummês trabalhando, nosso sustento vinhados espetáculos. Os nossos patrocina-dores eram os bonecos.

Vivemos coisas curiosas em Potosi. Ásvezes no meio do espetáculo as pessoassaiam correndo e nós ficávamos com osbonecos na mão. Na porta tinha sempreum cara com uma metralhadora. “Falsoalarme!” e todos voltavam para o espe-táculo. Víamos coisas como guerrilhaentre grupos, mineiros contra os cam-poneses. Trabalhávamos também nasrádios dos mineiros, fazíamos teatro debonecos em um auditório. Tentávamospassar alguma visualização para o pú-blico. E por isso dizíamos coisas como“estou com a minha melhor roupa ver-de”, ou “você é muito narigudo”, “vouabrir a porta”. Isso foi muito importan-te porque quando chegávamos nas ou-tras cidades, as pessoas já tinham escu-tado a rádio do outro povoado, facilita-va. Ao chegarmos, íamos a um boteco,onde tinha comida, e eu dizia “chega-mos, vamos trabalhar aqui, não temosdinheiro para pagar esta comida, entãotome o meu relógio como garantia”. Fo-ram os anos mais importantes e lindosda minha vida. Não entrava esta coisado ego, de ser conhecido. Quem iria nosconhecer? Quem lembraria da gente? Nãoganhávamos muito, era uma aventura.Para conhecer, para encontrar coisas,crescer. Não existia tudo isso que o tea-tro de hoje tem.

Depois fomos para o Peru, em Cuzco,onde fiquei mais de um ano. Morava emuma escola que foi abandonada depoisde um terremoto. Tinha paredes caídas.Apresentávamo-nos em um teatrinho daprefeitura para a classe média. Fazíamossempre duas histórias, uma que concluíaa apresentada anteriormente e outra quese iniciava, de modo a que o público vol-tasse para assistir a continuação da his-tória na outra apresentação. Em um de-terminado momento girávamos o palco,o que criava uma inversão. Ficávamosde costas para a platéia e fazíamos o es-petáculo para uma sala imaginária. Por-que tínhamos sentido, quando trabalhá-vamos nas ruas e nas praças que algunscuriosos, crianças, moleques e até ca-chorros iam ver o que tinha na nossacoxia. Então decidimos mostrar isso nopalco. Mas do Peru fomos expulsos. Porobra de um oficial de polícia que nosencontrou uma vez na fronteira e des-confiou de nossa ligação com o padredo Instituto Latino Americano que foiconosco, quando da nossa entrada, àdelegacia dizer que trabalharíamos comele. O mesmo oficial de polícia foi trans-ferido para Cuzco e, ao nos ver na rua,disse que os nossos documentos não es-tavam mais em ordem, que os vistos deturista tinham vencido. Eu sentia neleum ódio, uma intolerância com o dife-rente, com o artístico, com o estrangei-

ro. E isso era muito forte num país emque a polícia mandava. Ficamos presosdurante uma semana. E isso deflagrouum outro movimento na minha históriacom relação ao teatro. Porque isso queme levou para o Brasil. Naquela semanao prefeito nos liberou para fazermos osespetáculo, mas eles estavam com com-binações estranhas sobre nós. Nossaidéia era apenas sair pelo lago Titicaca,atravessar para a Bolívia e depois voltara entrar no Peru. Deixamos tudo que eranosso: bonecos, livros, desenhos. Só queduzentos metros antes de chegarmos nafronteira subiram no trem para nos pro-curar e pediram novamente os documen-tos: fomos carimbados como expulsos por6 meses. Decidimos que Pedro retorna-ria para pegar nossas coisas, e assim foifeito: ele vendeu parte delas e trouxe oresto. Aceitamos uma sugestão que nosfoi dada na fronteira: ir para o Rio deJaneiro, à Escolinha de Artes do Brasil,procurar Augusto Rodrigues.

Entrei no Brasil pelo Trem da Morte.Descemos na Central do Brasil e no se-gundo dia já encontramos o Adido Cul-tural da Argentina que nos apresentouo Augusto Rodrigues. O encontro foi noMuseu de Arte Moderna. Foi uma paixãodele com a gente, não queria que traba-lhássemos com mais ninguém, fiquei lá11 anos. Dava aula de tudo, porque aescolinha permitia tudo. E trabalhei tam-bém no conservatório Brasileiro de Mú-sica, fazendo um trabalho de iniciaçãomusical. Conheci lá a Nise da Silveira,freqüentava a casa dela e trabalhamosjuntos. Foi um ano muito difícil, ode 1964. Eu morava na Urca,e no Flamengo. Nós vi-mos queimar o pré-dio da UNE etodas es-tas coi-sas. EmBuenos Ai-res não se po-dia recebercartas deCuba, e minhamãe tinha umaamiga com o filhomorando em Cuba. En-tão ele escrevia para mimno Brasil que encaminha-va as cartas. Só que veioo nosso golpe militar e eucontinuava recebendocartas de Cuba, até que ocara se tocou que não eramais uma boa idéia. Vive-mos toda essa história re-pressiva. Quando o Allen-de assumiu o poder noChile decidimos passarum tempo por lá.

Fui para Santiago e criamos lá um gru-po que se chamava Manos. Quando o gru-po estava ficando grande, veio o golpe.

Fiquei preso alguns dias e vi coisas quenunca imaginei ver na minha vida. Vi aguarda do Allende ser fuzilada, gente apa-nhando, fui a vários interrogatórios. Eolha que eu nunca fui de nenhum parti-do. Quando era muito jovem participavada juventude comunista, mas não me en-caixo em partidos, me dou mal, pois soumuito livre. No entanto, sempre fui mui-to solidário e embora não pertencesse anenhum grupo, convivia com muitos bra-sileiros exilados. Uma vez fizemos umamacarronada no apartamento que foi doVandré, tinha uma bandeira do Brasil euma faixa “Pátria Amada, Salve, Salve”.O Vandré tem uma música onde ele cantaisso, fala da Pátria como se fosse umamulher. Ele nunca ficou legal de cabeçadepois de tudo. Eu entendo as contradi-ções mas vivenciá-las é muito difícil.

O Vento foi criado em 1974, quandovoltei do Chile para o Rio de Janeiro.Fui convidado para ir a um festival emCuritiba, e mesmo sem um grupo, fuiconvencido a fazer alguma coisa. Convi-dei algumas pessoas e levantamos o es-petáculo em 11 dias e no 12o apresenta-mos. Voltamos de Curitiba dispostos acontinuar como grupo, que antes era sóum espetáculo: A História de Lendas eVentos. Foi uma crítica que disse: “Ven-tos fortes no teatro para as crianças noBrasil”. E aí virou o grupo.

Há sempre dificuldades de se enten-der a história, a importância do teatro.Um país que não tem teatro é um paísque não tem alma, o Lorca já dizia isso.Há sempre a dificuldade de ser conside-rado. Não precisamos ser ajudados, pre-cisamos de parcerias. Afasto da minhahistória a palavra ajuda. O Estado temque estar integrado no movimento dacultura. Em 1988 saiu a nova constitui-ção do Brasil e com ela uma definiçãode patrimônio cultural que não englobasó as construções. Surge o conceito depatrimônio imaterial. Isso é muito im-portante. No teatro, o material e o ima-terial são o corpo e a alma do ator. Porisso não vale a pena separar demais es-sas coisas. Aqui no Ventoforte foi plan-tado não só um trabalho, mas coisas quese confundem, que tem uma energia. Porexemplo, plantamos um jardim, que fezparte de um processo nosso. Por isso nãoqueremos que eles coloquem cimento. Aterra é importante. No nosso próximoespetáculo, que será itinerante, terá umacena no galinheiro. E eu disse: vamoschamar de teatro do Galinheiro. Temosque ter a capacidade de criar, liberdade.Somos, sim, patrimônio cultural do Bra-sil. O que sobra da história da humani-dade é a arte, são as esculturas, pintu-ras e tudo o mais. Das guerras sobramsó as ruínas. (Entrevista a Daniele Ricie-ri, edição de texto de D.R. e S.C.)

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Invisibilidade – Consciente ou não?JORGE LUIS BRAZ – TEATRO DE TÁBUAS

Como se suturar um longo e profundo corte ocupasseo mesmo tempo que rasgar a pele com um afiado bisturi,trago à tona nosso direito de resposta à matéria caluni-osa editada na última edição de O SARRAFO pelo Sr Rei-naldo Maia.

O problema aqui é de INVISIBILIDADE por não perten-cer a uma elite classista e não estar radicado em solo po-litizado (leia-se capital-SP).

O fato é que o verborrágico autor da matéria acusató-ria se baseia em publicação de um outro jornal, O Estadode São Paulo, interpretando-a de forma equivocada paraformular teses pessoais. Não fosse grave a ausência daética quando a denúncia atinge um membro da classe, ofaz ainda sem verificar a veracidade de sua fonte.

O Sr Reinaldo Maia cometeu erro autoral grave parajustificar suas angústias político-partidárias na clara in-tenção de incriminar a Secretaria de Estado da Cultura e,para tanto, não titubeou em jogar na fogueira o nome danossa instituição.

A ele caberá responder por seus atos e, à justiça, o queé fato é o que é boato diante das provas apresentadas.

Esclarecendo aos leitores, como fizemos em detalhes aO SARRAFO (mas sem espaço para publicação, restrito aeste texto), não temos contrato nos valores anunciadospelo autor da matéria com a Secretaria de Estado da Cul-tura de R$ 1.800.000,00 e sim um contrato com a ASSAOC- Associação dos Amigos das Oficinas Culturais do Estadode São Paulo de R$ 200.000,00.

O contrato rege:1) Deslocamento, instalação, montagem, palco, som, luz,

300 cadeiras, equipamentos de projeção, ar condicionado,

ingressos, material publicitário, assessoria de imprensa, des-montagem, operação e segurança. Dados técnicos do projetoCircuito Estradafora, pelas inovações tecnológicas que propõe.

2) Apresentações de 10 sessões de montagens teatrais ouprojeção de filmes, atendendo a 300 pessoas por sessão, por88 cidades do interior paulista.

Os municípios visitados não possuem estrutura cultural eestão incluídos entre os mais baixos IDHs (Índice de Desen-volvimento Humano) do estado; os atendimentos são gratui-tos e prezados na diretriz desta instituição de levar a todoscom a mesma qualidade a fruição de manifestações culturais.

Desprezando a convicção do autor quando questiona apossibilidade de projetarmos filmes em praças ou átrios deigreja, como se direito ao que é bom e confortável tem so-mente quem está na cidade grande ou para aqueles que po-dem pagar por esse conforto.

Desprezando a insensibilidade do autor quando não per-cebe que ideologicamente o projeto inclui cidadãos brasilei-ros na experimentação da arte com dignidade.

Considerando que depois de um ano de trabalho e atendi-mento a 150.000 pessoas o custo da participação do poderpúblico é de R$ 1,33 por cidadão e que todas as leis de con-tratação foram cumpridas e registradas em contrato regular-mente fiscalizado, avaliado e gerido com transparência.

Mantemos convênios com os governos do PT, através doMinC e CNPQ, e PSDB, neste com a ASSAOC - além de váriosmunicípios de diversos partidos, mostrando claramente quenossa relação é evidenciada pela natureza técnica e artísticados Projetos -, todos estritamente em conformidade com aregulamentação de leis vigentes.

Ao colocarmos estas posições nos retiramos da defesa paradiscutir o mais relevante do momento: apontar a vulnerabili-dade de todas as instituições deste país, públicas ou não.Sobretudo quando a mídia e sua força são usadas sem emba-

samento jurídico, incipiência documental ou fragilidadeética na observação do necessário caráter de neutralidadena autoria de matérias com intenções de acusar, investi-gar ou desmascarar relações promíscuas. Como suposta-mente o autor acreditou estar fazendo.

Ninguém repara danos causados por estas irresponsa-bilidades. Estamos tão acostumados a acreditar que todossão corruptos que basta ler a matéria para criarmos um arde condenação e convicções.

Estranho discurso de Desnaturalização da Promiscuida-de quando isso só pode existir se precedido da naturaliza-ção da ética. Infelizmente ausente na matéria somentepautada nas angústias pessoais do seu autor.

Fica aqui registrada a certeza da INVISIBILIDADE dequem produz, cria ou circula fora do eixo do poder. Poderescondido em guetos da classe que desconhecendo o ou-tro lado da difícil tarefa de existir em outros rincões, mutilainteresses comuns em favor de vaidades pessoais.

A diversidade de ideologias e pensamentos não qualifi-ca A ou B a se auto-intitularem melhores, mais sábios oucorretos.

No Teatro de Tábuas encaramos política pública de umaforma muito diferente do autor; infelizmente ele não sedeu ao luxo de conhecê-la melhor antes de se pronunciar.

Em 07 anos de existência, historicamente nosso balan-ço nunca superou a marca de 18% de participação públicaem nosso orçamento, que se completa com a venda deingressos, oficinas, assessorias e muita criatividade poruma equipe de 30 funcionários e outros tantos colabora-dores, entre eles, 18 artistas que na sua maioria tem largotempo de estrada: cinco mestres e dois doutores em arte.

Ao autor o desejo de que compreenda que ser ético ehumilde é o que realmente o transformaria em um homemde teatro e não o simples fato de fazê-lo.

DIREITO DE RESPOSTA

No ano de 2006, alguns projetos culturais de in-tercâmbio com outros países da América Latinaserão levados adiante por entidades ou grupos dacidade de São Paulo.• Entre os dia 8 e 14 de maio, a Cooperativa Paulista

de Teatro pretende realizar um Festival de TeatroLatino Americano com a presença de grupos comoo Teatro experimental de Cali – TEC (Colômbia), Lapatogallina (Chile), Metástasis (Argentina) e Al-tosf (Venezuela). Os grupos ficarão no país duran-te todo festival, participando de debates e fazen-do demonstrações de trabalho, juntamente com osgrupos nacionais convidados. A Mostra tem parce-ria com o Memorial da América Latina e patrocínioda Petrobrás. Para maiores informações acesse osite www.cooperativadeteatro.com.br.

• Criado em 2003, e atualmente ocupando o Tea-tro de Arena, o grupo teatral Conexión Latinaestreou este ano um texto do argentino Aristi-des Vargas chamado “Nossa Senhora das Nu-vens”. Formado por artistas de diversos países,o grupo tem como projeto o estudo do teatrocontemporâneo latino-americano. O espetáculoé apresentado em espanhol para que, nas pala-vras do diretor peruano, Hugo Villavizencio,“possamos contribuir com a integração cultu-ral dos povos e com a derrubada dos muros idi-omáticos que separam o Brasil do resto das na-ções da América Latina”.

• A Editora Boitempo prepara para lançamento nosegundo semestre uma Enciclopédia latino-ame-ricana de humanidades. A obra reúne verbetesassinados e ensaios e com um viés sociológico epolítico e pretende mapear diversas áreas da pro-dução cultural e intelectual da América Latina apartir de 1950. Os verbetes sobre teatro foramcoordenados por Vivian Tabarez (Cuba) e Sérgiode Carvalho (Brasil).

• Após o lançamento do volume “Teatro da AméricaLatina”, com peças importantes de autores de di-versos países, o Teatro-Escola Célia Helena prepa-ra um segundo volume. Ligia Cortez, diretora doteatro-escola, acredita que a distância entre o Brasile os outros países é agravada pela falta de publi-cações. Além disso, existe uma parceria entre aEscola e a Sociedade de Escritores do México paraque dramaturgos brasileiros editem suas obras emespanhol e o mesmo aconteça com traduções deautores mexicanos.

• Outro projeto em andamento é o Centro LatinoAmericano das Práticas Teatrais, coordenado peloprofessor da USP, Antônio Janizelli e por seu grupode pesquisa, o Arquipélago. O Centro, ainda em fasede implantação, será um espaço de encontro dosespecialistas na formação prática do ator, de leitu-ras de peças, e possibilitará um intercâmbio de me-todologia, pesquisa e produção artística entre ospaíses integrados ao grupo.

Projetos paulistas promovemintercâmbio latino-americano

PROCURA-SE

TERSITESDE SOUZA

Os editores de O Sarrafo perderamcontato com o célebre crítico da crítica,Tersites de Souza. Desde que viajou deférias à Diadema, alegando“intoxicação por idiotia”, o gentilcronista fez-se incomunicável.

Está em nosso poder seu últimobilhete: “São tempos mixos”. No versodo guardanapo, manchas de gordura eum borrão de batom. Qualquer novapista de seu paradeiro deve ser enviadaa este jornal.

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A Venezuela é hoje um dos poucos paí-ses do Ocidente a se confrontar direta-mente com a hegemonia cultural do im-pério norte-americano. Se isso ocorre nacontramão do trabalho pesado da mídiaburguesa é em grande parte porque oprojeto bolivariano para o país tem en-contrado imenso apoio popular. No iní-cio deste ano, o Presidente Hugo Cha-véz afirmou no Fórum Social Mundial emCaracas que “La integración es el escudode nuestro nuevo destino”. Na entrevistaabaixo, o adido cultural da Venezuelano Brasil, Wilfredo Machado, debate achance histórica de que não só a Vene-zuela almeje um novo tempo para oimaginário do continente.

O SARRAFO – Qual é o projeto boli-variano para a cultura em geral e parao teatro em particular?

MACHADO – Eu acredito que é mui-to importante para toda a Américado Sul o processo de transformaçãoe mudanças que se desenvolve na Re-pública Bolivariana da Venezuela apartir de 1999. Uma dessas conquis-tas fundamentais foi, sem dúvidas, oprocesso Constituinte que resultou nacriação de uma nova Constituição em1999 em contraste com a velha polí-tica da IV República. Essa constitu-inte serviria de plataforma para a re-fun-dação do novo país a que todos aspiramose ao qual temos direito. Muitas águas pas-saram desde então. Uma das grandes con-quistas do Governo do Presidente Chavézsão as Missões Sociais. Missões que estãodestinadas a dar uma resposta imediata econtundente aos problemas fundamentaisdo país: saúde, educação, pobreza. Mis-sões como a Missão Robinson que foramdesenhadas para lutar contra o analfabe-tismo e tirar da obscuridade tantos vene-zuelanos que nunca tiveram a oportuni-dade de aprender a ler e escrever. Isso le-vou a UNESCO, durante o ano de 2005, adeclarar a Venezuela território livre doanalfabetismo. Missões de caráter educa-tivo como a Missão Ribas, a Missão Sucre,a Missão Cultura, a Missão Bairro Adentroatendem essas necessidade fundamentaisda população porque com fome e sem saú-de dificilmente poderíamos falar de cul-tura, ou de belas artes. Mesmo que a cul-tura inclua tudo o que realizam os sereshumanos, até suas guerras de cinema.

Um dos postulados desse processo de

transformação em que vive nosso paísé seu caráter profundamente humanis-ta, ao colocar de novo o homem e nãoo capital como finalidade. Não o ho-mem a serviço da economia, mas a eco-nomia a serviço do homem e de suasnecessidades. Tivemos que olhar o pas-sado e recordar de onde viemos parasabermos aonde deveríamos ir e recor-dar que postulados da integração sul-americana, tão vigente hoje em dia, jáestavam presentes em Bolívar, em Abreue Lima, em Sucre e em tantos outroshomens do século XIX. Voltando a suapergunta, creio que existem vários ele-mentos que são necessários destacar.

Em primeirolugar a cria-ção do Minis-tério da Cul-tura e a de-mocratização

e participação cultural.Passamos de uma “demo-cracia” passiva e repre-sentativa a uma demo-

cracia verdadeiramente participativanum abrir e fechar de olhos. Este pro-cesso pelo qual passaram os venezue-lanos, em tão breve período, tem sidointenso e difícil, mas tem servido paracriar uma grande consciência políticaem todo o país. A cultura – e com issotambém me refiro ao teatro, à música,à literatura – tem deixado de ser umpatrimônio exclusivo das elites parachegar ao povo. Sob a coordenação doMinistério da Cultura, publicamos porvolta de 27 milhões de livros com títu-los desde Don Quixote de la Mancha atéautores nacionais, com distribuição gra-tuita em todo o país. Teatros como oTeresa Carreño (o mais importante dopaís), que dificilmente poderia ser depossível acesso ao povo venezuelano,cada vez mais tem apresentações, con-certos, festivais. Há uma grande aflu-ência de um público ávido por conhe-cer mais e por entender melhor o pro-cesso de mudança feito para eles. Sen-te-se que existe um ressurgimento daesperança na Venezuela, pode-se ver

nas ruas, cheirá-lo no ar, apalpá-lo nasmanifestações de apoio. Existe um pro-cesso de transformação que é irreversí-vel e que ninguém pode deter.

O SARRAFO – O governo Chávez e o

povo venezuelano têm uma atitude críti-ca, anti-imperalista e igualitária. O quese produz hoje no teatro venezuelano temo mesmo grau de politização que osdebates da população?

MACHADO – Acredito que nunca es-teve tão vigente aquela frase do Li-bertador Simon Bolívar: “Os EstadosUnidos parecem destinados pela Pro-vidência a infestar a América de misé-rias, em nome da liberdade”. Eu nãosou exatamente um especialista emteatro, mas me atreveria a dizer que oteatro venezuelano, assim como o tea-tro latino-americano tem um profun-do conteúdo político e social, e emnenhum caso me refiro a fazer do tea-tro uma forma de panfleto de conteú-do duvidoso ou de propaganda políti-ca. O teatro por sua própria naturezaé irreverente e um pesquisador da almahumana. Diretores como Eduardo Gil,Rodolfo Santana, Román Chalbaud,Xiomara Moreno, José Ignacio Cabru-jas, Gustavo Ott, Marcos Moreno, HugoUlive, só para nomear alguns, dão mos-tras de um ofício diferente e de um uni-verso crítico. Agora na Venezuela serealiza também o Festival Mundial dePoesia que reúne poetas de cinco con-tinentes em Caracas e outras cidadesvenezuelanas. É surpreendente a par-ticipação popular nesses eventos.

O SARRAFO – O governo Chávez estátentando promover uma integração lati-no-americana também do ponto de vista

E o amor por este chão

Em límpidas águas, a clareza

Liberdade a construir

Apagando fronteiras, desenhando

Igualdade por aqui

(Do samba enredo Soy Loco por ti América, da Escola de Samba Vila Isabel, doRio de Janeiro)

“A cultura na Venezuela nãoé mais patrimônio das elites”

Os Estados Unidos parecem destinados a infestara América de misérias, em nome da liberdade

cultural. Como tem sido a resposta dosoutros países para este intercâmbio?

MACHADO – A integração é uma agen-da permanente por parte da Venezuela.Creio que as democracias sul-americanasestão vivendo um momento especial deintegração que deve se manifestar numverdadeiro e profundo intercâmbio cul-tural e educativo. A integração da Ve-nezuela ao Mercosul abre também asportas para o Mercosul cultural, porquenão bastam os negócios, é importanteque os povos se conheçam e isso só seconseguirá através do reconhecimentoda cultura do outro. Desde os temposde Bolívar nosso país apostou na inte-gração sul-americana. Nós não temos fei-to outra coisa senão seguir um caminhoque já estava traçado.

O SARRAFO – O grande carnaval no

Brasil gradativamente tem se transforma-do em uma manifestação dominada pelaindústria cultural. Porque a opção do Es-tado Venezuelano em patrocinar uma es-cola de samba carioca? Isso não reforçauma idéia negativa de populismo?

MACHADO – O apoio à Vila Isabel foium apoio a um projeto que tem como idéiacentral a integração e a história sul-ame-ricana. Porque não bastam as fantasias.Temos que preenchê-las de sentido. (Tra-dução de Marília Carbonari)

Wilfredo Machado é adido cultural daEmbaixada da Venezuela, em Brasília

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O SARRAFO Número 9 • Abril 200620

“O segredo davida é o encontro

de gerações”

GIANNI RATTO(1916-2006)

Foto do documentário A Mochila doMascate, de Gabriela Greeb e Antônia Ratto