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QD 07 - Área Especial 01 Cruzeiro Velho (61) 3964-8624 / 3233-2527 www.adcruz.org/ebd Presidente: Pastor João Adair Ferreira Dirigente e Consultor Doutrinário: Pastor Argileu Martins da Silva Superintendente: Presbítero Jorge Luiz Rodrigues Barbosa Lição 01 O segundo tratado de Lucas Texto Áureo "Fiz o primeiro tratado, ó Teófilo, acerca de tudo que Jesus começou, não só a fazer, mas a ensinar". At 1.1 Verdade Aplicada A grande missão da Igreja incluía ficar antes de ir. Para ir é necessário mais do que o desejo de obedecer, é necessário capacitação, que somente se obtém com o revestimento de poder. Objetivos da Lição Apresentar as coisas que Jesus não somente fez, mas ensinou a fazer; Explicar que antes de qualquer grande missão existe um tempo de preparação; Ensinar como o estilo de vida de uma Igreja influencia na proclamação do evangelho. Textos de Referência At 1.1 Fiz o primeiro tratado, ó Teófilo, acerca de tudo que Jesus começou, não só a fazer, mas a ensinar, At 1.3 Aos quais também, depois de ter padecido, se apresentou vivo, com muitas e infalíveis provas, sendo visto por eles por espaço de quarenta dias e falando do que respeita ao Reino de Deus. At 1.4 E, estando com eles, determinou-lhes que não se ausentassem de Jerusalém, mas que esperassem a promessa do Pai, que (disse ele) de mim ouvistes.

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QD 07 - Área Especial 01 Cruzeiro Velho (61) 3964-8624 / 3233-2527

www.adcruz.org/ebd

Presidente: Pastor João Adair Ferreira Dirigente e Consultor Doutrinário: Pastor Argileu Martins da Silva Superintendente: Presbítero Jorge Luiz Rodrigues Barbosa

Lição 01

O segundo tratado de Lucas Texto Áureo "Fiz o primeiro tratado, ó Teófilo, acerca de tudo que Jesus começou, não só a fazer, mas a

ensinar". At 1.1 Verdade Aplicada A grande missão da Igreja incluía ficar antes de ir. Para ir é necessário mais do que o

desejo de obedecer, é necessário capacitação, que somente se obtém com o revestimento de poder. Objetivos da Lição ► Apresentar as coisas que Jesus não somente fez, mas ensinou a fazer; ► Explicar que antes de qualquer grande missão existe um tempo de preparação; ► Ensinar como o estilo de vida de uma Igreja influencia na proclamação do

evangelho. Textos de Referência At 1.1 Fiz o primeiro tratado, ó Teófilo, acerca de tudo que Jesus começou, não só a fazer, mas a ensinar, At 1.3 Aos quais também, depois de ter padecido, se apresentou vivo, com muitas e

infalíveis provas, sendo visto por eles por espaço de quarenta dias e falando do que respeita ao Reino de Deus. At 1.4 E, estando com eles, determinou-lhes que não se ausentassem de Jerusalém, mas que esperassem a promessa do Pai, que (disse ele) de mim ouvistes.

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At 1.5 Porque, na verdade, João batizou com água, mas vós sereis batizados com o

Espírito Santo, não muito depois destes dias.

Neste trimestre, estudaremos o livro de Atos dos Apóstolos. Certamente haveremos de nos convencer de que, à semelhança daqueles dias, o Espirito Santo vem agindo na Igreja e através da Igreja, levando-a a ser o sal de um século insípido e a luz de um mundo em trevas. Mas não espere encontrar uma igreja sem problemas, conforme adverte-nos o pastor inglês John Stott: "A leitura de Atos não deve levar-nos a uma idealização da Igreja Primitiva, como se ela não possuísse nenhum defeito. Como veremos adiante, ela tinha muitos. Sim, não encontraremos uma igreja perfeita, mas uma igreja poderosa e militante que espalha o evangelho de Cristo sem impedimento algum. Os evangelhos narram o ministério de Jesus na Terra. O livro de Atos registra o poder sobrenatural do Espírito Santo, não só na vida dos apóstolos, mas também na existência da Igreja, que é o Corpo de Cristo. Podemos chamá-lo de o "Quinto Evangelho" ou "Evangelho do Espírito Santo". AUTOR DE ATOS 1. Evidência interna. A mudança do pronome da terceira (eles) para a primeira pessoa do plural (nós), a partir de Atos 16.10, mostra que o autor da obra era testemunha ocular e participava da comitiva de Paulo. 2. Evidência externa. O documento mais antigo que atesta a autoria lucana do terceiro evangelho (conforme a ordem na Bíblia) é datado do segundo século (Irineu). Esta autoria é sustentada pela esmagadora maioria dos pais da Igreja. 3. Lucas, "o médico amado" (Cl 4.14). Sabemos que Lucas era grego, porque Paulo distingue seus cooperadores judeus dos demais, em Colossenses 4.10-14. Apresenta Aristarco, Marcos e Jesus, chamado Justo, dizendo que "são da circuncisão". Isso significa que são judeus. Depois vêm os outros: Epafras, Lucas e Demas, gregos. Assim, "o médico amado" é o único escritor gentio da Bíblia. 4. Destinatário. Os livros de Lucas e Atos são a mesma obra. Isso podemos afirmar com certeza, baseado na Palavra de Deus. Ambos são dedicados particularmente a Teófilo e, de modo geral, para todos os cristãos. Lucas faz menção do "primeiro tratado", obviamente, uma alusão direta ao terceiro evangelho (conforme ordem na Bíblia). "Fiz o primeiro tratado, ó Teófilo" diz respeito a Lucas 1.1-4, mostrando que o livro de Atos é o segundo volume. PROPÓSITO DE ATOS 1. Objetivo do livro (At 1.1-3). Se o propósito do evangelho de Lucas foi o de escrever sobre tudo o que Jesus "começou não só afazer, mas a ensinar", assim também a intenção do livro de Atos é registrar o que Jesus continuou a fazer e a ensinar, agora, pelo Espírito Santo, através dos apóstolos. Ao longo deste livro, o autor dá muita ênfase à ressurreição de Cristo. Logo no versículo 3 ele afirma: "se apresentou vivo, com muitas e infalíveis pro-vas". A expressão "infalíveis provas", tekmeriois, no grego, só aparece aqui em todo o Novo Testamento. 2. Título do livro. Este livro é tradicionalmente conhecido como "Atos dos Apóstolos", desde o segundo século. Este título não vem do próprio autor. O Manuscrito Sinaítico (séc. IV d.C.) traz apenas praxeis, no grego, que significa "atos". O Codex Bezae (séc. VI

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d.C.) intitula de "Atos dos Apóstolos". Esses homens foram os instrumentos do Espírito Santo, que realizaram as obras registradas nesse texto sagrado. 3. Data. Lucas termina bruscamente a sua narrativa, deixando Paulo preso em Roma (At 28.30,31). É evidente que isso foi providencial, porque a história da Igreja não termina em Atos, mas no Apocalipse. Por isso, a narrativa não foi concluída. O fato deste evangelista não registrar a audiência do apóstolo dos gentios e nem a sua segunda prisão e morte; não fazer menção da morte de Pedro (se é que ele esteve realmente em Roma); não mencionar o incêndio de Roma nem as matanças determinadas por Nero; silenciar completamente sobre a destruição de Jerusalém, são evidências suficientes para se datar a referida obra antes de 67 d.C. (É comumente datada entre 62 e 67 d.C.) 4. Exatidão histórica. Os críticos de Lucas fizeram uma investigação criteriosa, na tentativa de encontrar evidências históricas contrárias à narrativa de Atos. Hoje, os mais famosos eruditos na área de Arqueologia e História reconhecem a exatidão histórica deste escrito sagrado. Historicamente, a obra está sujeita a qualquer prova. O TERCEIRO EVANGELHO E ATOS 1. Os dois relatos de Lucas. Com relação ao terceiro evangelho, o próprio evangelista Lucas afirma que consultou as testemunhas oculares, as quais, depois, vieram a ser ministros da Palavra (Lc 1.2). Em Atos, ele mesmo é testemunha ocular de considerável parte dessas narrativas. Era companheiro do apóstolo dos gentios. O relato da instituição da Ceia do Senhor, registra-do em Lc 22.19,20, aproxima-se muito do de Paulo em 1 Co 11.24,25, mais que qualquer dos outros três evangelhos. 2. Características. Há muitas similaridades nesses dois livros: no estilo, na fraseologia médica e na ordem de apresentação dos fatos. Eles relatam tudo o que Jesus começou a fazer e a ensinar, até o dia em que foi recebido no Céu (At 1.3). Atos e Lucas são duas etapas do ministério de Jesus, sendo sua ascensão a divisão da obra. Lucas conclui o registro da vida terrena de Jesus com o subida do Filho de Deus ao Céu (Lc 25.50-51) e Atos começa o ministério celestial de Cristo também com a ascensão (At 1.3, 9-11). O TEMA DE ATOS 1. Instruções e a promessa do Pai (vv. 2-4). "Depois de ter dado mandamentos". É o ensino de Jesus sobre a estrutura da Igreja prestes a nascer. O evangelista Lucas é o único que afirma ter o Filho de Deus ficado 40 dias com seus discípulos, após a ressurreição, e confirmado a promessa, feita desde os dias dos profetas, sobre o batismo com o Espírito Santo. Atos reafirma a vocação dos apóstolos. 2. "Restaurarás tu neste tempo o reino a Israel?" Os assuntos principais de Jesus, nesses 40 dias, eram sobre o Reino de Deus e o Espírito Santo. Entretanto, os discípulos estavam apreensivos com a restauração de Israel. Queriam saber se tal fato aconteceria naqueles dias. Eles ainda não tinham uma compreensão exata das coisas. Parece que ainda confundiam o reino espiritual com o político. Em resposta a essa pergunta, está o grande tema do livro, não só para os apóstolos, mas também para a Igreja em todas as eras: "Mas recebereis a virtude do Espírito Santo, que

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há de vir sobre vós; e ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até os confins da terra" (1.8). A IMPORTÂNCIA DO LIVRO DE ATOS 1. Manifesta o poder de Deus. "Recebereis a virtude" (v. 8). "Virtude" no grego é dinamis, de onde vêm as palavras "dínamo, dinamite, dinâmico". É justamente isso que acontece com o crente, ao receber o Espírito. Foi isso que se sucedeu com os apóstolos. Esse poder mudou a face do nosso Planeta e alterou todo o curso da História, pois essa obra não deveria ficar confinada em Jerusalém, mas estava destinada a alcançar "os confins da terra". Embora esse reino fosse diferente dos demais da Terra, sem ideologia material e programa político, haveria contudo de enfrentar não somente a hostilidade dos judeus, mas também a do mundo pagão, incluindo o próprio império romano. A Igreja, sem exércitos fisicamente armados, mas empunhando a espada do Espírito, enfrentou as hostes do Maligno e saiu vitoriosa! Com ousadia, eles pregaram por toda a parte. Isso porque esses discípulos estavam revestidos do poder do Espírito Santo. 2. Leva o nome de Jesus para as nações. Hoje, o mundo islâmico, com toda a hostilidade ao Cristianismo, em nada é menos hostil que a época, a qual Paulo enfrentou em suas viagens missionárias. Mesmo assim, fundou igrejas por toda parte. Ora, se ele enfrentou tal situação, por que não nós, na atualidade? Precisamos aprender com o apóstolo dos gentios. Aí está uma das importâncias de Atos: este livro é o manual de missões. Jesus disse: "o campo é o mundo" (Mt 13.38). Ele não afirmou que era Jerusalém, nem a Judéia, Roma, minha cidade e a tua. Infelizmente, há ainda os que são míopes espirituais, os quais pensam que o "campo" é o lugar onde moram. Por isso, não são somente apáticos às missões, mas contra elas. Outros não são contra, mas não se esforçam, pois estão muito acomodados. É de se lamentar ver que uma igreja, a qual Deus proveu com recursos, esteja desperdiçando tempo, dinheiro e talentos dos que são vocacionados. Ah! se os apóstolos do primeiro século dispusessem de tais meios! O livro de Atos é uma lição para a os cristãos da atualidade. 3. Compreendendo a Igreja apostólica. Embora os 66 livros da Bíblia apresentem a mesma inspiração, sem o texto de Atos, jamais poderíamos compreender as epístolas paulinas e nem saberíamos qual seria a origem da Igreja, como Jesus cumpriu a promessa da vinda do Consolador, a experiência dos apóstolos com o Espírito Santo, o desenvolvimento da obra missionária e a expansão do Evangelho pelo vasto Império Romano. Estas informações, para nós, valem mais que pepitas de ouro. Todo o livro de Atos gravita em torno desse versículo. CONCLUINDO Quem examina e estuda o livro de Atos fica comprometido com as missões. Que o Espírito Santo possa despertar cada líder para a obra missionária, seguindo o exemplo dos apóstolos. Tal tarefa não é uma alternativa e nem um pedido de Jesus, mas uma necessidade e sobretudo uma ordem imperativa (Mc 16.15-20; Mt 28.19,20). 1. Lucas foi apenas um instrumento nas mãos de Deus, para escrever as realizações dos apóstolos e demais discípulos de Jesus, nos primeiros dias da novel Igreja. Pois o verdadeiro autor é o Espírito Santo, o qual revestiu aqueles cristãos com o poder do alto, tornando-os aptos a realizar os grandes eventos registrados no livro de Atos.

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2. Os milagres e prodígios registrados no livro de Atos são as provas cabais de que o Evangelho de Cristo é uma mensagem vinda do Céu e não uma invencionice humana, como querem os incrédulos, inimigos declarados de Deus e servos de Satanás. 3. Jesus não mudou, pois Ele é o mesmo ontem, hoje e eternamente. Por isso, quando estivermos no mesmo nível espiritual em que se encontravam os apóstolos e demais discí-pulos, membros da Igreja primitiva, Deus operará da mesma forma como atuou nos primeiros dias do Cristianismo. Bibliografia E. Soares

Ascensão de Cristo At 1.1-11 O Evangelho segundo Lucas foi dedicado a Teófilo ("quem ama a Deus"), que representa todos os cristãos. No início de Atos, Lucas escreve: "Fiz o primeiro tratado, ó Teófilo, acerca de tudo que Jesus começou, não só a fazer, mas a ensinar, até..." Ressaltamos a palavra até porque, no livro de Atos, estudamos o que Jesus continuou a fazer por intermédio dos seus discípulos. Neste livro, lemos como Jesus cumpriu sua promessa: "... e eis que eu estou convosco todos os dias, até à consumação dos séculos". (Mt 28.20) E como continuou sua obra através do Espírito Santo. Enquanto nos Evangelhos lemos: "E Jesus disse", no livro de Atos lemos: "E o Espírito disse". O Espírito é revelado como representante de Cristo, guiando o progresso e a administração da sua Igreja. O livro pode ser chamado: Atos de Cristo mediante seus servos ou Atos do Espírito Santo. O Senhor Faz os Preparativos para a Sua Ascensão (At 1.1-5) 1. Dando instruções. Jesus subiu "depois de haver dado mandamentos por intermédio do Espírito Santo aos apóstolos que escolhera". Estas instruções são registradas em várias passagens, como em Lc 24.44-49; Mt 28.19,20; Mc 16.15-18; Jo 21; e nos versículos 3-8 deste capítulo (At 1). Em que sentido as instruções foram dadas mediante o Espírito Santo? A unção que Jesus recebeu no rio Jordão era ilimitada e permanente. Mediante o Espírito, recebeu poder para seu ministério; forças para enfrentar a cruz (Hb 9.14); foi ressuscitado dentre os mortos (Rm 8.11); e, no Pentecoste, batizou a outros no Espírito. A unção ainda estava sobre ele após a ressurreição. 2. Mediante manifestações da vida ressurreta. "Aos quais também, depois de ter padecido, se apresentou vivo, com muitas e infalíveis provas, sendo visto por eles por espaço de quarenta dias, e falando do que respeita ao reino de Deus" (cf. 1 Co 15.5-8). Se víssemos um farol que parecesse ficar em pé sobre as ondas, saberíamos que haveria, por baixo da construção, um fundamento de rocha. Durante 19 séculos a Igreja per-manece em pé como luz para as nações. Qual o seu alicerce? A única resposta satisfatória é: a ressurreição de Cristo. A fé e a religião viva não podem surgir de um cadáver. Durante 40 dias Jesus revelou-se aos seus discípulos, aparecendo e desaparecendo. Era como se quisesse levá-los gradualmente a perceber que Ele pode estar presente, no Espírito, embora ausente no corpo. Chegou um momento em que os discípulos sabiam que haviam cessado tais aparecimentos. A partir de então teriam de pregar o Evangelho com plena confiança da presença espiritual de Cristo com eles, conforme Ele mesmo prometera: "E eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos". Foi a ascensão que convenceu os discípulos da veracidade desta mudança. 3. Dando uma ordem específica. "E, estando com eles, determinou-lhes que não se ausentassem de Jerusalém, mas que esperassem a promessa do Pai, [Jo 14.16; Jl 2.28] que (disse ele) de mim ouvistes". O batismo do Senhor Jesus, no Jordão, foi o sinal para

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Ele iniciar seu ministério. Assim, também, a Igreja precisava de um batismo que a preparasse a cumprir um ministério de alcance mundial. Não seria o ministério de criar uma nova ordem e, sim, de proclamar aquilo que Cristo já havia realizado. Mesmo assim, só no poder do Espírito Santo poderia tamanha obra ser levada a efeito. Cristo dirigiu suas palavras a homens que possuíam íntimo relacionamento espiritual com Ele. Já tinham sido enviados a pregar, armados com poderes espirituais específicos (Mt 10.1). A eles fora dito: "Alegrai-vos antes por estarem os vossos nomes escritos nos céus" (Lc 10.20); sua condição moral já tinha sido definida com as palavras: "Vós já estais limpos, pela palavra que vos tenho falado" (Jo 15.3). Seu relacionamento com Cristo foi ilustrado mediante a figura da videira e dos ramos (Jo 15.5). Eles já conheciam a presença do Espírito nas suas vidas (Jo 14.17); já tinham sentido o sopro do Cristo ressurreto quando ele lhes disse: "Recebei o Espírito Santo". Mesmo assim deviam esperar a promessa do Pai! Isto nos mostra a importância deste revestimento. Instruções do Senhor com Respeito ao Futuro (At 1.6-8) "Aqueles pois que se haviam reunido perguntaram-lhe, dizendo: Senhor, restaurarás tu neste tempo o reino a Israel?" Os apóstolos, como seus compatriotas, tinham associado o ministério do Messias com o imediato e visível aparecimento do Reino de Deus, com um estrondo de força material em fulgor externo (Lc 19.11; 24.21). Conceitos do Reino, mais terrestres do que celestiais, afetavam suas condutas e os levaram a disputas ambiciosas. Cada qual visando a preeminência. Boa parte dos ensinos de Cristo visava limpar a mente deles de falsos conceitos acerca do Reino. No entanto, só o tremendo choque do Calvário conseguiu tirar-lhes as ilusões com respeito a um reino material. Agora, sendo instruídos pelo Cristo ressurreto, entendiam melhor o seu Reino. Contudo, seus corações judeus ainda os impulsionam a perguntar: "Senhor, restaurarás tu neste tempo o reino a Israel?" Ainda pensavam em termos de uma só nação. O Senhor, em resposta, fez com que erguessem seus olhos para ver todas as nações. Esta resposta contém quatro lições: 1. A estreita limitação do conhecimento humano acerca do futuro. "Não vos pertence saber os tempos ou as estações..." Existem muitas coisas que nossas mentes querem perscrutar, mas pertencem exclusivamente aos planos de Deus (cf. Dt 29.29; Mc 13.33; 1 Co 13.9; 1 Jo 3.2). 2. As mãos seguras que dirigem o futuro. Os tempos e épocas estão nas mãos de Deus: "O Pai estabeleceu pelo seu próprio poder" (cf. Mc 13.32). Embora não saibamos o futuro com respeito aos eventos mundiais e às nossas vidas, não precisamos ficar ansiosos. O desconhecido fica muito bem nas mãos do Mestre. 3. Forças suficientes para enfrentar o futuro. "Mas recebereis a virtude do Espírito Santo, que há de vir sobre vós..." Poder para enfrentar o futuro - isto vale muito mais do que detalhados conhecimentos sobre o porvir. 4. O dever prático com respeito ao futuro. "E ser-me-eis testemunhas, tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria, e até aos confins da terra". Estas palavras definem o ministério primário de cada crente: ser testemunha da pessoa de Jesus, daquilo que Ele fez para os homens e para a própria testemunha. "Testemunhar" é um dos conceitos fundamentais do livro dos Atos (ver 1.22; 10.39,41-44; 13.31; 4.33; 22.15; 26.16). Ascensão do Senhor (At 1.9-11)

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1. O ato da partida. "E quando dizia isto, vendo-o eles, foi elevado às alturas, e uma nuvem o recebeu, ocultando-o a seus olhos". A partida de Jesus não causou tristeza aos discípulos. Eles sabiam que o Espírito Santo viria em seguida, e lhes seria, de forma invisível, o que seu Mestre havia sido de forma visível: "Vos convém que eu vá; porque, se eu não for, o Consolador não virá a vós; mas, se eu for, enviar-vo-lo-ei" (Jo 16.7). Enquanto os discípulos olhavam seu Mestre subindo, talvez pensassem: Quão grande e rico dom deve ser o Consolador! Se sua presença custa a ida do Mestre! O Espírito Santo não iria comunicar à Igreja o Cristo terrestre, e sim o celestial, que voltou a ser investido da glória que tinha com o Pai antes que houvesse mundo. Equipado com os infinitos tesouros da graça que Ele comprara mediante sua morte na cruz. 2. A promessa da sua vinda. "E estando com os olhos fitos no céu, enquanto Ele subia, eis que junto deles se puseram dois varões vestidos de branco, os quais lhes disseram: Varões galileus, por que estais olhando para o céu?" A lembrança da origem dos discípulos, a Galileia, fê-los ter em mente a sua chamada, recebida na Galileia, e do seu consequente dever de seguir e obedecer. "Esse Jesus, que dentre vós foi recebido em cima no céu, há de vir assim como para o céu o vistes ir". Estas palavras claras desfazem qualquer teoria modernista que alega ser a propagação da civilização cristã o cumprimento total da promessa sobre a segunda vinda. Aqui temos a profecia da vinda pessoal e visível do Senhor. Este trecho (At 1.1-11) tem grande alcance, abrangendo: a vida de Cristo (v. 1), sua morte (v. 3), ressurreição (v. 3), Reino (vv. 4,5,8), ascensão (vv. 9-11) e segunda vinda (v. 11). Ensinamentos Práticos 1. A religião em atos e palavras. O Evangelho segundo Lucas narra o que Jesus "fez e ensinou". Sua vida se dividia entre ações e doutrinas, milagres e verdades, maravilhosos sinais e revelações. Cumpria sua vida religiosa e a ensinava; ensinava a vida religiosa e a vivia. E nisto Ele é nosso exemplo. A vida cristã equilibrada é uma combinação de vida e luz, obra e palavra. Se agirmos sem ensinar, nossa vida será um mistério, inexplicável para os que gostariam de saber o motivo de nossas ações. Se ensinarmos sem viver à altura, tornamo-nos em pedra de tropeço (Mt 23.1-3). A demonstração é o melhor método de ensino. Se praticarmos as virtudes que ensinamos, seremos verdadeiros líderes. A verdadeira liderança não consiste em mostrar o caminho, porém em andar e convidar outros a nos seguir ao longo dele. Devemos nos deixar inspirar por Esdras, que "tinha preparado o seu coração para buscar a lei do Senhor e para a cumprir e para ensinar em Israel os seus estatutos e os seus direitos" (Ed 7.10). 2. Os males de fixar datas. "Não vos pertence saber os tempos ou as estações..." Muitos males têm sido feitos ao estudo das profecias e à causa de Deus por pessoas bem intencionadas, que fixaram datas para a vinda do Senhor. Professando-se sábias com respeito aos tempos e às épocas, tornaram-se insensatas, e deram motivo para os descrentes zombarem e os crentes ficarem perplexos. Quando olhamos as estrelas no céu limpo não sabemos calcular sua distância; a promessa da segunda vinda é como uma estrela para nos guiar, sem, porém, haver um cálculo exato quanto à sua distância. Devemos ser admiradores das estrelas sem

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querermos nos avultar como calculadores de sua exata distância. Devemos estar vigiando quando da volta do Senhor, mas sem nos perdermos em previsões. 3. O Senhor sabe o que é melhor para nós. Os discípulos receberam como resposta uma promessa e uma comissão. Não a satisfação da sua curiosidade. O que pediam não era assunto para eles, por isso não lhes foi concedido. Foi-lhes concedido, porém, o que realmente necessitavam. Deus age conosco do modo como tratamos nossos filhos. Tiago e João pediram os lugares de maior destaque no Reino; Jesus, em resposta, ensinou-lhes as qualificações para se atingir tais posições. Paulo suplicou a remoção do espinho na carne; o Senhor respondeu com garantias de que sua graça lhe bastaria. Moisés pediu a morte para aliviar seu fardo; o Senhor, porém, lhe concedeu setenta ajudantes. Elias orou para que sua vida fosse tirada. O Senhor lhe deu descanso, comida... e mais trabalho. Muitas vezes não sabemos como orar, nem o que pedir. O Senhor, porém, sabe quais são nossas verdadeiras necessidades. Se ele nos recusa alguma coisa é a fim de nos dar algo melhor. 4. A arte de esperar. Os discípulos tinham de esperar a promessa em Jerusalém. Há várias maneiras de esperar. O servo infiel o faz com a esperança de que o senhor vai demorar. Existe um tipo de espera que significa acomodar-se, sem fazer esforços físicos ou mentais. A verdadeira espera inclui: 4.1. Expectativa. Aguardar com tanta boa vontade que a mente fique sempre mais cheia de esperanças. É como o servo aguardando o mestre, a esposa ao marido, a mãe aguardando a volta do filho, esperar como o comerciante aguardando a vinda do seu navio carregado de mercadorias, o marinheiro procurando ver a terra, o rei desejando notícias da batalha. São casos em que a mente se firma num só objetivo e dificilmente pode prestar atenção a outra coisa. 4.2. Oração. A espera exige quietude e paciência. Muitos de nós, porém, nos deixamos levar pelo espírito inquieto dos nossos dias. Quando Daniel orava, Gabriel veio rapi-damente (Dn 9.21). Hoje em dia teria de se apressar muito para ainda nos pegar de joelhos! 4.3. Consagração. Devemos descobrir em qual direção Deus está guiando as coisas. E remover do caminho tudo quanto há em nós que possa impedir sua obra. 5. A arte de testemunhar. "E ser-me-eis testemunhas..." Ruskin disse certa vez: "A coisa mais grandiosa que a alma humana pode fazer neste mundo é ver algo, e contar aos outros o que viu, de forma singela e clara". De acordo com este pensamento, certamente a coisa mais grandiosa da vida é perceber a beleza de Jesus e falar aos outros sobre Ele. Um estudo do livro de Atos mostra que o testemunhar é a forma mais antiga de pregação. Os apóstolos contavam tudo quanto sabiam acerca de Jesus, e os convertidos contavam o que Jesus fizera por eles. A testemunha no foro é submetida ao interrogatório. E nós, como testemunhas do Senhor, somos submetidos a semelhantes interrogatórios por parte do mundo. As pessoas, depois de ouvirem nosso testemunho, prestam atenção em nossa conduta para então, mentalmente, calcular o relacionamento entre o que falamos e vivemos. 6. Começando em Jerusalém. Sentimos uma vocação para ir a um campo missionário estrangeiro? O melhor teste da nossa vocação é nosso zelo espiritual pelo próximo, aqui, onde moramos. Se não estamos sendo uma bênção para as pessoas cuja língua e costumes conhecemos, dificilmente uma viagem marítima operará essa transformação

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milagrosa. O amor que transformará o mundo tem que começar em casa, embora não termine ali. 7. A fé que ressuscita. A vida cristã que agora vivemos é de tal qualidade que nossa ressurreição seria a conclusão lógica e natural dela? Já estamos assentados com Cristo nos lugares celestiais? (Gn 5.24; Hb 11.5). Nossas afeições se fixam nas coisas que estão no alto? 8. Fitando sem proveito. Os discípulos não deviam ficar com os olhos fitos no céu. Jesus voltaria mais tarde. Nesse ínterim, haveria o serviço de Cristo para fazer. A contemplação que não nos leva a enfrentar os deveres cristãos com zelo e ardor não têm proveito. O Novo Testamento tem muitos mistérios transcendentes, tais como a Trindade, a encarnação da divindade, a expiação e outros. Existe o perigo de nos ocuparmos com os mistérios da Trindade e nos esquecermos do próprio Senhor. De nos dedicarmos ao estudo da expiação que venhamos a nos esquecer daqueles pelos quais Jesus morreu. A comunhão com o Senhor e a adoração em conjunto com o povo de Deus muitas vezes trazem experiências arrebatadoras. Segundo o plano de Deus, as emoções assim despertadas visam o propósito de nos inspirar às ações. Sentimentos que evaporam sem produzir frutos, levam certamente ao fracasso quanto ao exercício da energia espiritual. Depois da transfiguração, Jesus levou seus discípulos ao vale, onde lhes aguardava trabalho espiritual. Sempre há um caminho que leva do monte da visão ao vale do serviço.

Bibliografia M. Pearlman

Primeiro século do Cristianismo

A PLENITUDE DOS TEMPOS Em Gálatas 4:4, Paulo chama a atenção para a era histórica da preparação providencial que antecedeu a vinda de Cristo a terra em forma humana: "Vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho..." Marcos também indica que a vinda de Cristo aconteceu quando estava tudo já preparado na terra (Mc 1:15). O estudo dos eventos que antecederam o aparecimento de Cristo sobre esta terra faz com que o estudante equilibrado reconheça a verdade das afirmações de Paulo e Marcos. Na maioria das discussões sobre este assunto, esquece-se que não apenas os judeus, mas os gregos e os romanos também, contribuíram para a preparação religiosa para a aparição de Cristo. A contribuição grega e romana foi, na realidade, negativa, mas em muito contribuiu para levar o desenvolvimento histórico até o ponto em que Cristo pudesse exercer o impacto máximo sobre a história de uma forma até então impossível. I. O AMBIENTE A. Contribuições Políticas dos Romanos. A contribuição política anterior à vinda de Cristo foi basicamente obra dos romanos. Este povo, seguidor do caminho da idolatria, dos cultos de mistérios e do culto ao imperador, foi então usado por Deus, a quem ignoravam, para cumprir a sua vontade. 1. Os romanos, como nenhum outro povo até então, desenvolveram um sentido da unidade da espécie sob uma lei universal. Este sentido da solidariedade do homem no Império criou um ambiente favorável à aceitação do Evangelho que proclamava a unidade de raça humana, baseada no fato de que todos os homens estavam sob a pena do pecado

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e no fato de que a todos era oferecida a salvação que os integra num organismo universal, a Igreja Cristã, o Corpo de Cristo. Nenhum império do antigo Oriento Próximo, nem mesmo o império de Alexandre, tinha conseguido dar aos homens um sentido de unidade numa organização política. A unidade política seria a contribuição particular de Roma. A aplicação da lei romana aos cidadãos de todo o Império era imposta diariamente a todos os cidadãos e súditos do Império pela justiça imparcial das cortes romanas. Esta lei romana se originava da lei consuetudinária da antiga monarquia. Durante a primeira república, no quinto século, antes de Cristo, esta lei foi codificada nas Doze Tábuas, que eram parte essencial na educação de toda criança romana. A compreensão de que os grandes princípios da lei romana eram também parte das leis de todas as nações sob o domínio dos romanos como praetor peregrineis, que era encarregado da tarefa de tratar com as cortes em que estrangeiros estivessem sendo julgados, tornou-se realidade para todos os sistemas jurídicos desses estrangeiros. Assim, o código das Doze Tábuas, baseado no costume romano, foi enriquecido pelas leis de outras nações. Os romanos de inclinação filosófica explicavam essas semelhanças pelo uso do conceito grego de uma lei universal cujos princípios foram escritos na natureza do homem e seriam descobertos por um processo racional. Um passo adicional no estabelecimento da ideia de unidade foi a garantia de cidadania romana aos não romanos. Este processo foi principiado no período anterior ao nascimento de Cristo e foi completado quando Caracala concedeu, em 212, a todos os homens livres do Império Romano a cidadania romana. O Império Romano reunia todo o mundo mediterrâneo que contava na história de então; desse modo para todos os propósitos práticos, todos os homens estavam debaixo de um sistema jurídico, como cidadãos de um só reino. A lei romana, com sua ênfase sobre a dignidade do indivíduo, e no direito deste à justiça e à cidadania romana, além de sua tendência a agrupar homens de raças diferentes numa só organização política, antecipou um Evangelho que proclamava a unidade da raça ao anunciar a pena do pecado e o Salvador do pecado. Paulo lembrou aos da igreja filipense que eles eram membros de uma comunidade celestial (Fp 3:20). 2. A movimentação livre em torno do mundo mediterrâneo teria sido mais difícil para os mensageiros do Evangelho antes de César Augusto (27 a.C. - 14 d.C). A divisão do mundo antigo em grupos, cidades-estados ou tribos, pequenos e enciumados um do outro, impedia a circulação e a propagação de ideias. Com o aumento do poderio imperial romano no período da expansão imperial, uma era de desenvolvimento pacífico ocorreu nos países ao redor do Mediterrâneo. Pompeu tinha varrido os piratas do Mediterrâneo e os soldados romanos mantinham a paz nas estradas da Ásia, África e Europa. Este mundo relativamente pacífico tornou mais fácil a movimentação dos primeiros cristãos nas cidades onde pregavam o Evangelho a todos os homens. 3. Os romanos criaram um ótimo sistema de estradas que iam do marco áureo no fórum a todas as regiões do Império. As estradas principais eram de concreto e duraram séculos. Elas passavam por montes e vales até chegarem aos pontos mais distantes do Império; algumas delas são usadas até hoje. Um estudo das viagens de Paulo indica que ele se serviu muito deste ótimo sistema viário para atingir os centros estratégicos do Império Romano. As estradas romanas e as cidades estrategicamente localizadas às margens dessas estradas foram uma ajuda indispensável na concretização da missão de Paulo. 4. O papel do exército romano no desenvolvimento do ideal de uma organização universal e na propagação do Evangelho não pode ser ignorado. Os romanos adotavam a prática de usar habitantes das províncias no exército como forma de suprir a falta de cidadãos romanos atingidos pelas guerras e pelo conforto da vida. Os provincianos entravam em contato com a cultura romana e ajudavam a divulgar suas Ideias através do mundo

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antigo. Em muitos casos, alguns destes homens converteram-se ao cristianismo e levaram o Evangelho às regiões para onde eram designados. É provável que a introdução do cristianismo na Bretanha seja um resultado dos esforços de soldados cristãos que acantonaram por lá. 5. As conquistas romanas levaram muitos povos à falta de fé em seus deuses, uma vez que eles não foram capazes de protegê-los dos romanos. Tais povos foram deixados num vácuo espiritual que não estava sendo satisfeito pelas religiões de então. Além disso, os substitutos que Roma tinha a oferecer em lugar das religiões perdidas nada mais podiam fazer além de levar os povos a compreenderem sua necessidade de uma religião mais espiritual. O culto ao imperador romano, que surgiu cedo na Era Cristã, fazia um apelo ao povo somente como um meio de tornar tangível o conceito de Império romano. As várias religiões de mistério pareciam oferecer muito mais que isso como um meio de auxílio espiritual e emocional, e nelas o Cristianismo achou seu maior rival. A adoração de Cibele, a grande mãe terra, foi trazida da Frigia para Roma. A adoração desta deusa da fertilidade tinha ritos tais como o drama da morte e ressurreição do consorte de Cibele, Átis, o que parecia suprir as necessidades emocionais dos homens. Oculto à (Isis, importado do Egito, era semelhante ao de Cibele, com sua ênfase sobre a morte e ressurreição. O Mitraísmo, importado da Pérsia, teve aceitação especial entre os soldados romanos. Tinha um festival em dezembro, um Maligno, um Salvador nascido miraculosamente - Mitra, um deus-salvador - além de capelas e cultos de adoração. Todas essas religiões enfatizam o deus-salvador. O culto de Cibele conclamava seus adoradores ao sacrifício de um touro e o batismo de seus seguidores com o sangue desse touro. O mitraísmo possuía, além de outras coisas, refeições sacrificiais. Por causa da influência dessas religiões, elas pareciam algo esquisitas frente ao Cristianismo e suas demandas sobre o indivíduo. Quando muitos descobriram que os sacrifícios de sangue dessas religiões nada podiam fazer por eles, foram guiados pelo Espírito Santo a aceitar a realidade oferecida a eles no Cristianismo. A consideração destes fatores permite concluir que o Império Romano criou um ambiente político favorável para a propagação do cristianismo nos primórdios de sua existência. Mesmo a Igreja da Idade Média não conseguiu se desfazer da glória da Roma imperial, acabando por perpetuar seus ideais num sistema eclesiástico. B. Contribuições Intelectuais dos Gregos Embora importante para a preparação para a vinda de Cristo, a contribuição romana foi ofuscada pelo ambiente intelectual criado pela mente grega. A cidade de Roma pode ser identificada com o ambiente político do cristianismo, mas foi Atenas que ajudou a criar um ambiente intelectual propício à propagação do Evangelho. Os romanos podem ter sido os conquistadores dos gregos, mas como indicou Horácio (65 a.C. - 8 d.C.) em sua poesia, os gregos conquistaram os romanos culturalmente. A mente prática dos romanos pode ter construído boas estradas, pontes fortes e belos edifícios, mas a grega erigiu os grandiosos edifícios da mente. Foi graças à influência grega que a cultura basicamente rural da antiga República deu lugar à cultura intelectual do Império. 1. O Evangelho universal precisava de uma língua universal para poder exercer um impacto real sobre o mundo. Os homens têm procurado desde a Torre de Babel criar uma língua universal para que possam comunicar suas ideias uns aos outros sem problemas. Assim como o inglês no mundo moderno e o latim no mundo medieval erudito, o grego

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tornou-se no mundo antigo, ao tempo em que o Império Romano apareceu, a língua universal. Os romanos mais ilustres sabiam grego e latim. O processo pelo qual o grego se tornou o vernáculo do mundo é interessante. O dialeto ático usado pelos atenienses começou a ser usado amplamente no quinto século antes de Cristo com a solidificação do Império Ateniense. Mesmo depois de o Império ser destruído ao final do quinto século, o dialeto de Atenas, que se originara da literatura grega clássica, tornou-se a língua que Alexandre, seus soldados e os comerciantes do mundo helenístico, entre 338 e 146 a.C, modificaram, enriqueceram e espalharam através do mundo mediterrâneo. Foi através deste dialeto do homem comum, conhecido como Koinê e diferente do grego clássico, que os cristãos foram capazes de se comunicar com os povos do mundo antigo, usando-o inclusive para escrever o seu Novo Testamento, o mesmo fazendo os judeus de Alexandria para escrever seu Velho Testamento, a Septuaginta. Só recentemente se soube que o grego do Novo Testamento era o grego do homem comum dos dias de Jesus Cristo, o que o diferencia do grego dos clássicos. Um teólogo alemão chegou mesmo a dizer que o grego do Novo Testamento era um grego especial criado pelo Espírito Santo para a produção do Novo Testamento. Adolf Deissman (1866-1937) descobriu, no final do século passado, que o grego do Novo Testamento era o mesmo usado pelo homem comum do primeiro século nos relatos deixados em papiros sobre seus negócios e em documentos fundamentais de sua vida diária. Desde então, eruditos como James Hope Moulton (1863-1917) e George Milligan (1860-1934) deram uma base científica à descoberta de Deissman ao estudarem comparativamente o vocabulário dos papiros e o do Novo Testamento. Esta descoberta deu origem ao surgimento de inúmeras traduções modernas. Se o Evangelho foi escrito na língua do povo comum à época de sua produção, raciocinam os tradutores, deve ser colocado então na língua do homem comum de nossos dias. 2. A filosofia grega preparou o caminho para a vinda do Cristianismo por ter levado à destruição as antigas religiões. Qualquer um que chegasse a conhecer seus princípios, fosse grego ou romano, logo perceberia que sua disciplina intelectual tornou a religião tão ininteligível que a acabava abandonando em favor da filosofia. A filosofia falhou, porém, na satisfação das necessidades espirituais do homem, que se via obrigado então a tornar-se um cético ou a procurar conforto nas religiões de mistério do Império Romano. À época do advento de Cristo, a filosofia descera do ponto elevado que alcançara com Platão para um sistema de pensamento individualista egoísta, como no caso do Estoicismo ou do Epicurismo. Na maioria dos casos, a filosofia apenas aspirava por Deus, fazendo dEle uma abstração; jamais revelava um Deus pessoal de amor. Este fracasso da filosofia do tempo da vinda de Cristo tornou as mentes humanas prontas para entender uma apresentação mais espiritual da vida. Só o cristianismo pode preencher o vazio na vida espiritual de então. A outra forma pela qual os grandes filósofos gregos ajudaram o cristianismo está ligada ao fato de chamarem a atenção dos gregos para uma realidade que transcendia o mundo temporal e visível em que viviam. Tanto Sócrates quanto Platão ensinaram, cinco séculos antes de Cristo, que este presente mundo temporal dos sentidos é apenas uma sombra do mundo real em que os ideais supremos são ao mesmo tempo abstrações intelectuais, o bem, a beleza e a verdade. Insistiam que a realidade não era temporal e material, mas espiritual e eterna. Sua busca da verdade jamais lhes conduziram a um Deus pessoal, mas evidenciou que o melhor que o homem deve fazer é buscar a Deus através do intelecto. O cristianismo ofereceu a este povo que aceitava a filosofia de Sócrates e Platão, a revelação histórica do Bem, da Beleza e da Verdade na pessoa do Deus-homem, Cristo.

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Os gregos aceitavam a imortalidade da alma, mas não tinham lugar para a ressurreição do corpo. A literatura e história grega evidenciam claramente que os gregos estavam preocupados com os problemas do certo e do errado e com o futuro eterno do homem. Ésquilo (525-456 a.C.) em sua peça Agamenon, aproxima-se da afirmação bíblica ("Estai certos de que o vosso pecado vos há de atingir" — Nm. 32:23), ao propor que os problemas de Agamenon eram consequência de seu mau procedimento. Os gregos, entretanto, viam o pecado como um problema mecânico e contratual; não o viam como um problema pessoal que afrontava a Deus e prejudicava os homens. À época da vinda de Cristo, os homens tinham compreendido finalmente a insuficiência da razão humana e do politeísmo. As filosofias individualistas de Epicuro (341-270 a.C.) e Zenão e as religiões de mistério testemunham do desejo humano por um relacionamento mais pessoal com Deus. O cristianismo, com sua oferta de um relacionamento pessoal, forneceu aquilo para o que a cultura grega, em função de sua própria inadequação, tinha produzido muitos corações famintos. 3. O povo grego também contribuiu no campo da religião para preparar o mundo a aceitar a nova religião cristã quando ela surgisse. O advento da filosofia grega materialista no sexto século antes de Cristo destruiu a fé das pessoas no velho culto politeísta como descrito na Ilíada e na Odisséia de Homero. Embora os elementos deste culto se baseassem no culto mecânico oficial, logo perderiam a sua vitalidade. O povo voltou, então, à filosofia. Esta também, entretanto, perdeu o seu vigor. A filosofia tornou-se um sistema de individualismo pragmático, dirigido pelos sucessores dos sofistas ou um sistema de individualismo subjetivista, como se apresentava nos escritos de Zenão, o estóico, e Epicuro. Lucrécio (I século a.C), o expoente poético da filosofia epicurista, fundamentava seus ensinos de recusa ao sobrenatural numa metafísica materialista que considerava até o espírito do homem um tipo desenvolvido de átomo. O estoicismo ainda considerava o sobrenatural, mas seu deus era de tal modo identificado com a criação que acabava caindo num panteísmo. Embora ensinasse a paternidade de Deus e a fraternidade do homem e sustentasse um elevado código de ética, o estoicismo deixava que o homem, por um processo racional, praticasse sua própria obediência às leis naturais que deveriam ser descobertas apenas pela razão. Desse modo, os sistemas gregos e romanos de filosofia e religião contribuíram negativamente para a vinda do cristianismo, ao destruírem as velhas religiões politeístas e demonstrarem a incapacidade da razão para alcançar Deus. As religiões de mistério, para onde muitos foram, familiarizaram o povo a pensar em termos de pecado e redenção. Então, quando o cristianismo apareceu, as pessoas do Império Romano estavam bem receptivas a uma religião que parecia oferecer uma perspectiva espiritual para a vida. II. CONTRIBUIÇÕES RELIGIOSAS DOS JUDEUS As contribuições religiosas para a "plenitude do tempo" incluem tanto a dos gregos e romanos como a dos judeus. Todavia, por mais importantes que as contribuições de Atenas e Roma, como pano-de-fundo histórico, tenham sido para o cristianismo, as contribuições dos judeus formam a Herança do Cristianismo. O cristianismo pode ter se desenvolvido no sistema político de Roma e pode ter encontrado o ambiente intelectual criado pela mente grega, mas seu relacionamento com o Judaísmo foi muito mais íntimo. O Judaísmo pode ser considerado como o botão do qual a rosa do cristianismo abriu-se em flor.

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Ao contrário dos gregos, os judeus não intentavam encontrar a Deus pelos processos da razão humana. Eles pressupunham Sua existência e lhe prestavam o culto que sentiam lhe dever. O povo judeu foi muito influenciado a estas atitudes pelo fato de que Deus o procurou e Se revelou a ele na história por Suas aparições a Abraão e a outros grandes líderes da raça. Jerusalém tornou-se o símbolo de uma preparação religiosa positiva para a vinda do cristianismo. A salvação viria, pois "dos judeus", como Cristo diria à mulher no poço (Jo 4:22). Desta pequenina nação cativa, situada no caminho da Ásia, África e Europa, viria um Salvador. O judaísmo tornou-se o berço do cristianismo e, ao mesmo tempo, forneceu o abrigo inicial da nova religião. A. Monoteísmo O Judaísmo contrastava flagrantemente com a maioria das religiões pagãs, ao fundamentar-se num sólido monoteísmo espiritual. Nunca, depois da sua volta do cativeiro babilónico, os judeus caíram em idolatria. A mensagem de Deus para eles através de Moisés ligava-os ao único Deus verdadeiro de toda a terra. Os deuses dos pagãos eram apenas ídolos que os profetas judeus condenavam em termos muito claros. Este sublime monoteísmo foi espalhado por numerosas sinagogas localizadas em volta da área mediterrânea durante os três últimos séculos anteriores à vinda de Cristo. B. Esperança Messiânica Os judeus ofereceram ao mundo a esperança de um Messias que estabeleceria a justiça na Terra. Esta esperança messiânica estava em claro antagonismo com as aspirações nacionalistas pintadas por Horácio (65-8 a.C.) no poema em que descrevia um rei romano ideal que haveria de vir — o filho que nasceria a Augusto. A esperança de um Messias tinha sido popularizada no mundo romano a partir desta firme proclamação pelos judeus. Até mesmo os discípulos depois da morte e ressurreição de Cristo ainda esperavam por um reino messiânico sobre a terra (At 1:6). Certamente, os homens instruídos que viveram em Jerusalém na época imediatamente anterior ao nascimento de Cristo tiveram contato com esta esperança. A expectativa de muitos cristãos hoje em torno da vinda de Cristo ajuda-nos a compreender a atmosfera da expectação no mundo judeu acerca da vinda do Messias. C. Sistema Ético Na parte moral da lei judaica, o judaísmo também ofereceu ao mundo o mais puro sistema ético de então. O elevado padrão proposto nos Dez Mandamento se chocava com os sistemas éticos prevalecentes e com as práticas por demais corruptas dos sistemas morais pelos quais se pautavam. Para os judeus, o pecado não era o fracasso externo, mecânico e contratual dos gregos e romanos, mas era uma violação da vontade de Deus, violação esta que se expressava num coração impuro e, mais ainda, em atos pecaminosos, externos e visíveis. Esta perspectiva moral e espiritual do Velho Testamento favoreceu uma doutrina de pecado e redenção que realmente resolvesse o problema do pecado. A salvação vinha de Deus e não seria encontrada em sistemas racionalistas de ética ou nas subjetivas religiões de mistério. D. O Antigo Testamento O povo judeu, ademais, preparou o caminho para a vinda do cristianismo ao legar à Igreja em formação um livro sagrado, o Velho Testamento. Mesmo um estudo superficial do Novo Testamento revela a profunda dívida de Cristo e dos apóstolos para com o Velho Testamento e sua reverência por ele como a palavra de Deus para o homem. Muitos gentios também o leram e se familiarizaram com os fundamentos da fé judaica. Este fato é indicado pelos relatos de vários prosélitos judeus. Muitos desses prosélitos foram capazes

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de passar do judaísmo ao cristianismo por causa do Velho Testamento, o livro sagrado da nova Igreja. Muitas religiões, o Islamismo por exemplo, confiam em seu fundador por causa do seu Livro sagrado, mas Cristo não deixou textos sagrados para a Igreja. Os livros do Velho Testamento e os do Novo Testamento, produzidos sob a inspiração do Espírito Santo, seriam a literatura viva da Igreja. E. Filosofia da História Os judeus tornaram possível uma filosofia da história por insistirem que a história tem significado. Eles se opuseram a toda e qualquer visão que deixasse a história sem significado, como uma série de círculos ou como um processo de evolução linear. Eles sustentavam uma visão linear e cataclísmica da história, na qual o Deus soberano, que criou a história, iria triunfar sobre a falha do homem na história para trazer uma era dourada. F. A Sinagoga Os judeus também forneceram uma instituição da qual muitos cristãos esquecem a utilidade, no surgimento e desenvolvimento do cristianismo primitivo. Esta instituição era a sinagoga judia. Nascida da necessidade decorrente da ausência dos judeus do templo de Jerusalém durante o cativeiro babilónico, a sinagoga se tornou parte integrante da vida judaica. Através dela, os judeus e também muitos gentios se familiarizaram com uma forma superior de viver. Foi também o lugar em que Paulo primeiro pregou em todas as cidades por onde passou no itinerário de suas viagens missionárias. Foi ela a casa de pregação do cristianismo primitivo. Há algo de convincente na ideia de que o sistema de governo praticado na Igreja primitiva tenha sido apropriado de antecedentes judaicos na sinagoga. O judaísmo foi, pois, o paidagogos para conduzir os homens a Cristo (Gl 3: 23-25). Os assuntos que têm sido discutidos demonstram o quão beneficiado foi o cristianismo, tanto quanto à época como quanto à região, no período de sua formação. Em nenhum outro lugar na história do mundo antes da vinda de Cristo houve uma região tão grande sob uma mesma lei e um mesmo governo. O mundo mediterrâneo tinha seu centro cultural em Roma. Uma língua comum tornou possível levar o Evangelho à maioria das pessoas do Império numa língua comum a elas e ao pregador. A Palestina, o berço da nova religião, estava estrategicamente neste mundo. Paulo estava certo ao mostrar que o cristianismo "não se fez em qualquer canto" (At 26:26), porque a Palestina era um importante cruzamento que ligava os continentes da Ásia e da África com a Europa por via terrestre. Muitas das batalhas importantes da história antiga foram travadas por causa da posse desta estratégica região. Nunca nas épocas antiga e medieval, as condições para a propagação do cristianismo através do mundo mediterrâneo foram tão favoráveis como no período de sua formação e durante os seus três primeiros séculos de existência. Esta é também a opinião do principal erudito do mundo em missões. Negativamente, através da contribuição do mundo grego e romano, e positivamente, através do judaísmo, o mundo foi preparado para a "plenitude dos tempos" quando Deus enviou Seu Filho para levar a redenção a uma humanidade partida pelas guerras e fatigada pelo pecado. É significativo que, de todas as religiões praticadas no Império Romano ao tempo do nascimento de Cristo, apenas o judaísmo e o cristianismo tenham conseguido sobreviver ao curso dinâmico da história humana.

SOBRE ESTA PEDRA

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Cristo é a Pedra sobre a qual a Igreja se funda. Através dEle vem a fé em Deus para a salvação do pecado. Dele vem o amor ao coração humano, que faz com que os homens vejam a pessoa como santa, uma vez que Deus é o Criador do ser físico e espiritual do homem e o fundamento de toda a esperança futura. I. A HISTORICIDADE DE CRISTO Os fundamentos do cristianismo têm seus primórdios, do ponto de vista subjetivo humano, na história temporal. É preciso atentar-se para o fato da existência histórica de Cristo, já que estes fundamentos estão inextrincavelmente ligados à pessoa, vida e morte de Cristo. Muitos negam o fato de que Cristo se manifestou na história humana (Jo 1.14). Felizmente, porém, há evidências extra bíblicas que provam a existência de Cristo. A. O Testemunho Pagão (55-117) Tácito (C.60-C.120) o decano dos historiadores romanos, liga o nome e a origem dos cristãos a "Christus", que no reinado de Tibério (42 a.C.-42 a.D.) "sofreu a morte por sentença do Procurador, Pôncio Pilatos". Plínio (62-C.113) que era propretor da Bitínia e de Ponto na Ásia Menor, escreveu ao Imperador Trajano, (53-117) por volta do ano 112, para se aconselhar sobre o modo de tratar os cristãos. Sua carta dá uma valiosa informação extra bíblica sobre Cristo. Ele elogiou a elevada integridade moral dos cristãos, comentando sua recusa em cometer roubo ou adultério, a testemunhar falsamente ou a trair a confiança depositada neles. Plínio chegou a dizer que eles "entoavam uma canção a Cristo como para um Deus". Suetônio, em sua obra Vidas dos Doze Césares: Vida Claudius (25:4), mencionou que os judeus foram expulsos de Roma por causa de distúrbios a respeito de Chrestos (Cristo). Outro escritor satírico, e, por esta razão, de testemunho importante, é Luciano (c. 125 - C. 190), que escreveu uma sátira sobre os cristãos e sua fé, por volta de 170. Luciano pintou Cristo como alguém "que foi crucificado na Palestina" por ter iniciado "este novo culto". Escreveu que Cristo tinha ensinado os cristãos a crerem que eles eram irmãos e que deviam observar seus mandamentos. Ridicularizou-os por "adorarem este sofista crucificado".

Estes testemunhos são evidências históricas de grande valor, especialmente por virem de romanos instruídos que desdenhavam e hostilizavam os cristãos. À base destes testemunhos, além da Bíblia, que é também uma obra histórica, pode-se concluir que há evidência suficiente para se afirmar a existência histórica de Cristo. B. O Testemunho Judeu. Josefo, (37-100), o rico judeu que procurou justificar o judaísmo para os romanos instruídos com seus escritos, também menciona Cristo. Ele falou de Tiago, "o irmão de Jesus, assim chamado Cristo". Em outra passagem, geralmente condenada como uma interpolação por cristãos mas que para muitos é autêntica, Josefo falou de Cristo como um "homem sábio" sentenciado à morte na Cruz por Pilatos. Embora aceitando algumas interpolações por cristãos, a maioria dos eruditos concorda que esta informação básica com quase toda a certeza integra o texto original. Como Josefo não era um amigo do cristianismo, sua menção a Cristo tem grande valor histórico. C. Testemunho Cristão fora da Bíblia. Muitos evangelhos, Atos, cartas e apocalipses apócrifos devem ser levados em consideração nesta questão da historicidade de Cristo. Eles estão reunidos na obra de

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Montague R. James, The Apocryphal New Testament (Nova Iorque. Oxford University Press, 1924). Inscrições e figuras da pomba, do peixe, da âncora e de outros símbolos cristãos nas catacumbas dão testemunho da crença no Cristo histórico, além da existência do calendário cristão, do domingo, e da igreja. Desafortunadamente, ao escolher uma data para o início do calendário cristão, o abade cita, Dionísio Exiguus (morto por volta de 550) em seu Cyclus Paschalis escolheu 754 A.U.C, (da fundação de Roma) ao invés de 749 A.U.C., uma data mais acurada para o nascimento de Cristo. Mateus, em seu evangelho (2:1), declarou que Jesus nasceu "nos dias de Herodes, o rei". Josefo, em suas Antiguidades (18.6.4), mencionou um eclipse do ano 750 A.U.C, antes da morte de Herodes. Por causa do assassinato dos bebês israelitas e a fuga para o Egito terem precedido a morte de Herodes, isto nos traz a uma data possível de 749 A.U.C., ou cerca de 5 a.C, para a data do nascimento de Cristo. Os judeus, em João 2:20, disseram que o templo levou 46 anos para ser edificado. Josefo e o historiador romano Dio Cassius colocaram 779 A.U.C. como a data em que a construção do Templo começou. Jesus tinha "cerca de trinta anos" de acordo com Lucas 3:23, que, subtraídos de 779 dá 749, ou 5 a.C. como a data mais aceitável para Seu nascimento, ou seja, cerca de cinco anos mais cedo do que a nossa datação da era cristã. II. O CARÁTER DE CRISTO A Bíblia dá algumas indicações sobre a personalidade e o caráter de Cristo. Até mesmo uma leitura superficial dos Evangelhos evidencia o poder de Sua originalidade. Enquanto os judeus e as autoridades de hoje citam outros como autoridades para suas várias afirmações, Cristo simplesmente dizia: "Eu digo". O que vinha após esta frase ou outras semelhantes a esta nos Evangelhos indica a criatividade e originalidade do pensamento de Cristo, que maravilhou as pessoas do Seu tempo (Mc 1:22; Lc 4:32). A sinceridade de Cristo também está registrada nos relatos bíblicos. Ele foi o único ser humano que não tinha nada para esconder, uma vez que era completamente Ele mesmo (Jo 8:46). Os Evangelhos deixam também o registro do equilíbrio de seu caráter. Coragem é geralmente associada a Pedro, amor, com João, e humildade, com André. Nada disto falta a Cristo; ao contrário, os relatos revelam equilíbrio e unidade de personalidade. Este equilíbrio, esta originalidade e esta transparência podem ser adequadamente explicados pelo registro histórico do Nascimento Virginal de Cristo.

III. A OBRA DE CRISTO A importância transcendental da personalidade de Cristo jamais poderá ser desassociada de Sua obra, obra esta que era ativa e passiva. Durante seu ministério de três anos, Cristo deu atenção à justiça exigida pela lei que era um acréscimo à Sua justiça intrínseca como Filho de Deus. Esta justiça extrínseca qualificou-O a morrer pelos homens que nunca mereceram tal justiça e que precisavam de um Substituto justo para que seus pecados fossem perdoados por Deus. Esta obra ativa tem sua contraparte em Sua obra passiva, Sua morte voluntária na Cruz (Fp 2:5-8). Estas duas fases históricas da obra de Cristo estão sintetizadas em Sua afirmativa sobre Sua missão de serviço e sofrimento (Mc 10:45). A. O Ministério de Cristo.

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Com exceção da narrativa da visita de Cristo a Jerusalém junto com Seus pais aos 12 anos de idade (Lc 2:41-50) e algumas referências isoladas a Sua mãe e irmãos, pouco se sabe acerca dos muitos anos de Cristo em Nazaré. Em geral se concorda que ele recebeu educação bíblica no lar e na escola sinagogal para crianças. Aprendeu também o ofício de Seu pai, porque toda criança judia recebia instrução em alguma profissão manual. Em Nazaré, importante rota comercial, Cristo pode observar a vida do mundo exterior que passava por Nazaré. Suas parábolas seus sermões mostram que Ele era um atento observador das coisas. Ele conhecia Deus a partir da revelação de Deus na natureza e através do Velho Testamento. Durante estes anos formativos, desenvolveu-se física, social, mental e espiritualmente (Lc 2:52) na preparação para a grande obra que tinha pela frente. O ministério de Cristo foi precedido pelo breve ministério de seu precursor, João Batista. Sua primeira aparição pública no começo do Seu ministério está ligada ao seu batismo por João. O estudante atento do ministério de Jesus notará que, após este acontecimento, ele desenvolveu. Seu ministério em centros judaicos. Sua estratégia era manter-se de acordo com sua própria afirmativa de que foi enviado às "ovelhas perdidas da casa de Israel" (Mt 15:24). Depois de sua tentação no deserto, Cristo escolheu alguns dos discípulos que continuaram Sua obra sob a liderança do Espírito Santo após sua ressurreição e ascensão. Uma visita a Caná marcou o Seu primeiro milagre, a transformação de água em vinho. Seguiu-se uma breve visita a Jerusalém, durante a qual ele purificou o templo e teve uma momentosa entrevista com Nicodemos. Esta entrevista revelou a natureza espiritual de Seu ministério (Jo. 3:3,5,7,). Voltando à Galileia pela Samaria encontrou-se com a mulher samaritana (Jo. 4), onde ficou evidenciado que Seu ministério não era limitado por barreiras nacionais ou sexuais, embora primariamente sua missão fosse para com os judeus. Rejeitado em Nazaré, Cristo fez de Cafarnaum o centro de Seu ministério galileu, que se constitui na maior parte do Seu serviço terreno aos homens. Daí fez Ele três viagens. A primeira, principalmente no oriente da Galileia, foi marcada pela cura do paralítico, do homem coxo e de muitos outros, bem como pela ressurreição do filho da viúva de Naim e pela conclusão da escolha dos Seus discípulos. Os milagres eram caracterizados pela introdução eloquente dos princípios que Ele entendia deviam governar o comportamento humano. Estes princípios estão contidos no Sermão da Montanha (Mt. 5-7; Lc. 6: 17-49). O assunto do Sermão é que a verdadeira religião é espiritual e não é feita de atos externos exigidos pela lei. O ponto alto da segunda viagem de Cristo ao sul da Galileia foi seu ensino parabólico sobre Seu Reino (Mt 13). Outros milagres, como a cura do endemoninhado gadareno e da filha de Jairo, testificam Seu poder para endossar suas palavras com atos. A terceira viagem foi uma continuação desta obra de ensino, pregação e cura. As três viagens da Galileia foram seguidas por pequenos períodos de retiro, durante os quais a principal ênfase de Cristo parecia ser a instrução dos Seus discípulos. Ele sempre encontrava tempo para atender às necessidades daqueles que vinham a Ele, razão porque alimentou cinco mil pessoas por ocasião do seu primeiro retiro. Ele demonstrou também Seu senhorio sobre a natureza ao andar sobre o Mar da Galileia, milagre que fez com que Seus discípulos compreendessem a realidade de Sua pessoa como Filho de Deus. Durante a sua segunda retirada, ele curou a filha da mulher siro-fenícia que demonstrara uma notável fé em Cristo (Mc 7:26). O terceiro intuo foi mais uma revelação do Seu poder de curar e abençoar.

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O ministério da Galileia foi seguido por um pequeno ministério em Jerusalém por ocasião da Festa dos Tabernáculos, durante o qual Cristo enfrentou corajosamente a oposição emergente dos líderes religiosos: os fariseus e os saduceus. Por causa desta Oposição, Cristo retirou-se para Peréia, ao oriente do rio Jordão, onde ensinou e pregou. Este ministério pereano foi seguido pelo pequeno ministério da última semana em Jerusalém, durante o qual publicamente enfrentou o antagonismo dos líderes judeus políticos e eclesiásticos. Ele reforçou a crítica à religião mecânica e externa como fizera no ensino das parábolas. O triste fim-de-semana, durante o qual entregou Sua vida na Cruz, marcou o fim de Seu ministério ativo no mundo. Depois de Sua gloriosa ressurreição — um fato histórico estabelecido pelas evidências documentais no Novo Testamento (At 1:3; 1 Co 15:4-8) — Ele apareceu somente a Seus próprios seguidores. A culminação do Seu ministério veio com Sua ascensão aos céus na presença dos Seus discípulos. Esta ascensão foi antecipada por suas promessas de enviar o Espírito Santo em seu lugar e de retornar novamente a esta terra. A Igreja Cristã felizmente tem quatro registros deste ministério de Cristo sobre a torra. Cada um dos autores apresenta seu relato a partir de diferentes pontos de vista. Mateus salienta a atividade do reinado de Cristo como Messias prometido que cumpriu as promessas do Velho Testamento, por isto, faz constante uso da frase: "isto aconteceu para que se cumprisse o que foi dito pelos profetas". Marcos, que escreveu tendo em mente os romanos, destacou o lado prático do ministério de Cristo, o sentido de ação e poder é fortalecido pelo uso constante que faz da palavra grega geralmente traduzida como "imediatamente". Lucas, o historiador (Lc 1:1-4), reporta-nos o lado humano do ministério de Cristo. João apresenta Cristo como o Filho de Deus com poder de levar bênção a todos quantos O aceitassem pela fé (Jo 1:12, 20:30-31). B. A Missão de Cristo. A fase ativa do ministério de Cristo que durou pouco mais de três anos, foi mais uma preparação para a fase passiva da Sua obra, Seu sofrimento na Cruz. Seu sofrimento na Cruz e Sua Morte foram os grandes eventos preditos pelos profetas (Is 53) que acabariam destruindo todas as forças do mal e libertando todos quantos O aceitassem com todo o poder espiritual da Sua obra da Cruz (Ef 1:19-23; 3:20). Foi para este propósito temporal e eterno que Ele veio ao mundo. Os Evangelhos destacam este fato que chega ao clímax em referências como Mateus 16:21, Marcos 8:31 e Lucas 9:44. C. A Mensagem de Cristo Embora a Cruz fosse a missão primeira de Cristo sobre a terra, ela não foi Sua mensagem principal e nem foi considerada como um fim em si mesmo. Um estudo detido dos Evangelhos revelará que o reino de Deus era a mensagem principal do ensino de Cristo. Duas frases eram usadas por Cristo: "O reino de Deus" "o reino dos céus". A última foi mais usada por Mateus. O significado destes termos tem provocado muita controvérsia na Igreja Cristã. As duas grandes interpretações destas frases aceitam o fato de que reino de Deus se refere ao governo de Deus sobre todos os seres no universo que com Ele voluntariamente fazem concerto. Este reino, que é espiritual e abarca o tempo e a eternidade, é penetrado pelos seres humanos após um renascimento espiritual (Jo 3:3, 5, 7; Mt 6:33). Nada se fala sobre o mal neste reino, em que Cristo mesmo finalmente se sujeitará ao Pai (I Co 15: 24-28). Os dois grupos creem que, no presente, este reino é ético e espiritual e que a Igreja é uma parte dele. Entendem também que sua plena realização escatológica acontecerá só no futuro.

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A discussão do sentido da frase "reino dos céus" dividiu as opiniões. Alguns entendem que as duas frases são sinônimas entre si. Outros acham que elas se referem a dois reinos distintos, embora haja um ponto de encontro. A razão principal para se fazer a distinção entre os dois surge do fato de que Cristo usou e interpretou as parábolas do joio (Mt 13: 36-43) e da rede (Mt 13: 47-48) para descrever o reino dos céus, embora jamais as usasse para descrever o reino de Deus. Já que nestas duas parábolas se faz uma mistura de homens bons e maus no reino dos céus e já que todas as referências ao reino de Deus falam apenas da obediência voluntária à vontade de Deus, muitos intérpretes pensam, que deve haver alguma distinção entre os dois termos, não devendo, portanto, ser usados como sinônimo. Eles notam que "reino de Deus" é relacionado a Deus, marcado pela bondade, e é cósmico e eterno, bem como está no tempo, de outro lado, a frase "reino dos céus" é relacionado ao domínio de Cristo no tempo e sobre a Terra, e tem tanto bons como maus nele (Mt 8:11-13). Alguns pré-milenistas, que entendem não serem idênticos os dois termos, creem que o reino dos céus está associado ao governo de Cristo nesta terra e identificam o reino de Deus com o governo eterno de Deus, o pai. No atual período da Igreja, o reino dos céus equivale à Cristandade, que consiste numa mistura de cristãos, cristãos professos, incrédulos e judeus. Na volta de Cristo o reino dos céus será purgado dos judeus e dos gentios incrédulos e será dirigido durante mil anos por Cristo e Sua Igreja. Este será o reino predito pelos profetas, segundo os quais Israel seria abençoado na terra da Palestina. Após uma pequena rebelião, liderada por Satã, seguindo sua libertação desta prisão de mil anos durante o milênio, Cristo afirmará Sua autoridade diante de Deus e a parte pura do reino dos céus finalmente se fundirá com o Reino de Deus. Aqueles que sustentam serem os dois sinônimos e equacionáveis à Igreja pensam que o reino será realizado por um processo histórico em que a Igreja faz a obra de preparar o caminho para um reino que Cristo receberá quando voltar. A ação social para criar um melhor ambiente para os homens é uma parte importante deste plano. O cristianismo é, então, interpretado em termos éticos independentemente da obra redentora de Cristo na Cruz. Este é o pós-milenismo liberal. Alguns pensadores, especialmente do século XIX, como Charles Finney, os Hodges, B. B. Warfield e A. H. Strong também afirmaram uma escatologia pós-milenista, mas de uma variedade conservadora, ortodoxa. Eles criam que a igreja, de pessoas regeneradas sob a direção do Espírito Santo, poderia fazer um impacto tal na sociedade que emergiria uma perfeita ordem milenista entre os povos. Quando Cristo retornasse, ao fim do milênio, haveria uma sociedade piedosa. A equação do milênio com a igreja, feita por Agostinho, tem dado muito apoio a este ponto-de-vista. Outros que não subscrevem esta interpretação, mas que acham serem os dois termos sinônimos, creem que a realização final do reino é futura e que ele será consumado sobrenatural e cataclismicamente na volta de Cristo. Eles não aceitam a Interpretação evolutiva dos pós-milenistas liberais. Geralmente são conhecidos como a-milenistas; não aceitam a ideia de um reino milenar de Cristo e geralmente não relacionam os judeus ao reino de Cristo. Se se crê que as duas frases são sinônimas ou não, não é tão importante diante da concordância dos evangélicos acerca de certos pontos em que não há discordância se a Bíblia é interpretada corretamente. O fato de que o pecado é hereditário e pessoal e não ambiental ou corporativo, exclui a visão pós-milenista liberal do Reino. Desse modo, a Igreja tem como tarefa básica não a conversão mundial pela pregação ou pela ação social, mas a evangelização do mundo pela proclamação do Evangelho, a fim de que aqueles que se unem à verdadeira Igreja possam

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ter uma oportunidade para responder a esta mensagem quando o Espírito Santo convence os seus corações. Esta é a tarefa específica da Igreja neste período da história humana, o que não isenta o cristianismo de se tornar algo relevante e prático na vida diária da sociedade pela ação dos cristãos como cidadãos. Cristo ensinou que o reino não se realizará por um processo histórico evolutivo em que a Igreja preparará, pela ação social, o mundo para a Sua vinda. A Bíblia ensina fundamentalmente que o futuro escatológico, distinto da atual fase ética e espiritual do reino, se realizará sobrenatural e cataclismicamente na vinda de Cristo, não irrompendo, pois, como resultado da obra da Igreja. D. Os Milagres de Cristo Os milagres de Cristo foram numerosos e constituem parte integrante do Seu ministério. Eles revelam a glória de Deus e mostram que Cristo era o Filho de Deus (Jo 3:2), a fim de que a fé pudesse se seguir. Estes milagres são chamados de poder, obras, maravilhas e sinais. Os racionalistas e empiristas negam sua possibilidade e procuram explicá-los pelas leis naturais ou interpretá-los como mitos; esta segunda negação implica também em negar as narrativas bíblicas como históricas. Os milagres podem ser definidos como fenômenos não explicáveis pela lei natural conhecida o que são feitos por uma intervenção especial da Divindade para propósitos morais. A possibilidade e probabilidade dos milagres são demonstradas pela existência de registros históricos que dão conta destes milagres como fatos históricos. A pessoa e obra de Cristo receberam autenticação de muitos contemporâneos Seus por causa dos milagres que Ele realizou. E. O Significado de Cristo Tem havido diferentes interpretações desta maravilhosa Pessoa, Cristo, que nos é descrita literariamente nos Evangelhos. Durante os grandes períodos de controvérsia teológica, entre 325 e 451 e entre 1517 e 1648, os homens procuraram interpretar Cristo em termos de credos. Os místicos o veem como o Cristo da experiência pessoal Imediata. Outros, nos séculos XVIII e XIX, falaram dEle como o Cristo da história e procuraram despi-lo do sobrenatural a fim de poderem ver nEle apenas uma pessoa humana. O verdadeiro cristão o vê sempre como o Cristo de Deus. A significância histórica de Cristo se revela no desenvolvimento de um novo fundamento da personalidade humana. Os gregos insistiram sobre a dignidade da personalidade humana porque o homem era um ser racional, mas a Igreja insiste que a personalidade humana tem dignidade porque o homem é um filho em potencial ou em realidade de Deus, através da fé em Cristo. A concepção cristã tem como consequência a humanização da vida. As fronteiras de classe e de raça são abolidas na Igreja e a reforma social dá melhores condições de vida para todos os homens. Os evangélicos foram os líderes da reforma social na Inglaterra do século XIX. Acima de tudo, a ênfase sobre um código de ética interior para a conduta, colocado muito acima de regras exteriores, é uma consequência do contato da personalidade humana com o Cristo do Calvário. O impacto de Cristo nas artes e literatura é imenso. A personalidade, a obra e os ensinos de Cristo e, sobretudo, Sua morte e ressurreição marcam o começo do Cristianismo. Muitas religiões poderiam subsistir sem fundadores humanos, mas tirar Cristo do cristianismo faria dele uma casca vazia sem vida. Cristo deu a Igreja suas duas ordenanças, os apóstolos, sua mensagem fundamental do reino de Deus, sua moral básica (Mt 16:16-19; 18:15-20) e o Espírito Santo para ser Aquele a cooperar com a Igreja na evangelização do mundo. Ele não deixou qualquer organização

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nem nenhum sistema doutrinário bem articulado. Isto foi obra dos apóstolos, Paulo inclusive, guiados pelo Espírito Santo que Cristo enviou ao mundo para ministrar em Sua ausência. A verdadeira Igreja, que tem Cristo como o Fundamento e o Espírito Santo como o Fundador, marchará triunfalmente, exaltando o Senhor crucificado, ressuscitado e glorificado, desde o Pentecoste até o presente.

PRIMEIRO AOS JUDEUS Cristo é mais o Fundamento do que o Fundador da Igreja. Isto fica evidente pelo uso do tempo futuro que faz em Mateus 16:18, ao dizer: "Sobre esta pedra edificarei a minha igreja. Lucas destaca isto ao nos informar em seu Evangelho "acerca de tudo quanto Jesus começou a fazer e ensinar" (At. 1:1). Em Atos ele relatou a fundação e a divulgação da Igreja cristã pelos apóstolos sob a direção do Espírito Santo. Até mesmo os discípulos compreenderam mal a natureza espiritual da missão de Cristo por quererem saber, após Sua ressureição, quem restauraria o reino messiânico (At. 1:6). Cristo mesmo já lhes tinha dito que, depois de fortalecidos pelo Espírito Santo, a sua tarefa seria testemunhar dEle "em Jerusalém, como em toda a Judeia e Samaria e até os confins da terra" (At. 1:8). Note-se que Cristo deu prioridade à proclamação aos judeus. Mesmo um estudo superficial dos Atos dos Apóstolos revelará que esta é a ordem seguida pela Igreja primitiva. O Evangelho foi primeiro proclamado em Jerusalém por Pedro no dia de Pentecoste; depois, foi levado pelos cristãos judeus a outras cidades da Judeia e da Samaria. Desse modo, a Igreja foi primeiramente judia e existiu dentro do judaísmo. O desenvolvimento do cristianismo aí e sua chegada a Antioquia é descrito por Lucas nos primeiros 12 capítulos do Atos, que estudaremos neste trimestre. I. A FUNDAÇÃO DA IGREJA EM JERUSALÉM Parece paradoxal que o principal centro de inimizade contra Cristo tenha sido a cidade onde a religião cristã começou. Mas esta é a realidade. Do ano 30 a aproximadamente 44, a igreja em Jerusalém manteve uma posição de liderança na comunidade cristã primitiva. O Espírito Santo teve o papel de proeminência na fundação da Igreja Cristã. E isto estava de acordo com a promessa de Cristo, nas últimas semanas de Sua vida, de que enviaria "um Consolador" que lideraria a Igreja após Sua ascensão. Um estudo meticuloso de Jo 14:16-18; 15:26-27 e 16:7-15 mostrará a função do Espírito Santo na Igreja primitiva. Realmente, os focos do livro de Atos são a ressurreição de Cristo, como o assunto da pregação apostólica, e o Espírito Santo, como Capacitador e Guia da comunidade cristã a partir do Pentecoste. O Espírito Santo se tornou o Agente da Trindade na mediação da obra de redenção dos homens. Judeus de todas as partes do mundo mediterrâneo estavam presentes em Jerusalém para ver a Festa do Pentecoste por ocasião da fundação da Igreja (At 2:5-11). A manifestação sobrenatural do poder divino no falar em línguas, claramente relacionada à origem da Igreja, e a vinda do Espírito Santo levaram os judeus presentes a declararem a maravilha das obras de Deus em sua própria língua (At 2:11). Pedro aproveitou a oportunidade para proferir o primeiro e possivelmente o mais fecundo sermão já pregado, e proclamar a messianidade de Cristo e a graça salvadora. Por fim, três mil pessoas aceitaram a sua palavra e foram batizados (At 2:41). Foi desta maneira que a entidade ou organismo espiritual, a Igreja invisível, o Corpo do Cristo ressuscitado, começou a existir. O crescimento foi rápido. Outros eram acrescidos diariamente ao número dos três mil até chegarem logo a cinco mil (At 4:4). Há menção de multidões se integrando à Igreja (At

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5:14). É interessante que muitos eram judeus helenistas (At 6:1) da dispersão e que estavam em Jerusalém para celebrar as grandes festas relacionadas com a Páscoa e o Pentecoste. Nem mesmo os sacerdotes ficaram imunes ao contágio da nova fé. "Muitos sacerdotes" (At 6:7) são mencionados como estando entre os membros da igreja primitiva em Jerusalém. Talvez alguns deles tivessem visto a abertura do grande véu do templo, logo depois da morte de Cristo, e isto, junto com a pregação dos apóstolos, levou-os a se comprometerem com Cristo. Este crescimento tão rápido não se fez sem a oposição da parte de judeus. As autoridades eclesiásticas logo perceberam que o cristianismo representava uma ameaça a suas prerrogativas como intérpretes e sacerdotes da lei; por isto, reuniram suas forças para combater o cristianismo. A perseguição veio primeiro de um organismo político-eclesiástico, o Sinédrio, que, com permissão romana, supervisionava a vida civil e religiosa do estado. Pedro e João tiveram que comparecer perante este egrégio órgão duas vezes e foram proibidos de pregar o Evangelho, mas eles se recusaram a cumprir a ordem. Mais tarde a perseguição tomou cunho mais político. Herodes matou Tiago e prendeu Pedro (At 12) nesta fase de perseguição. Daí por diante a perseguição tem seguido esse padrão eclesiástico ou político. Esta perseguição deu ao cristianismo seu primeiro mártir, Estevão. Fora ele um dos mais destacados dos sete homens escolhidos para administrar os fundos de caridade na Igreja de Jerusalém. Testemunhos falsos, que não podiam resistir ao espírito e à lógica com que ele falou, obrigaram-no a comparecer diante do Sinédrio. Após um emocionante discurso em que denunciou líderes judeus por sua rejeição de Cristo, foi retirado e apedrejado até a morte. Sua morte, como o primeiro mártir da fé cristã, foi um fator importante na divulgação e crescimento do cristianismo. Saulo, depois Paulo o apóstolo, guardou as capas daqueles que apedrejaram Estevão. É claro que a coragem e o espírito perdoador de Estevão diante de uma morte tão trágica marcaram bem fundo no coração de Saulo. Aquilo que Cristo lhe disse, em At 9:5, "Duro será para ti recalcitrar contra os aguilhões", parecia indicar esta realidade. A perseguição que se seguiu foi mais dura e acabou sendo o meio usado pela igreja nascente para que sua mensagem fosse levada a outras partes do mundo (At 8:4). Nem todos os convertidos ao cristianismo tinham, entretanto, um coração puro. Ananias e Safira constituíram-se nos primeiros objetos da disciplina da igreja em Jerusalém por causa da cobiça. Pronta e terrível, esta disciplina foi ministrada através dos apóstolos que eram os líderes da organização. O relato da aplicação da disciplina sobre este casal culpado suscita o problema se a igreja em Jerusalém praticou ou não o comunismo. Um jovem comunista se empenhou muito para demonstrar a este autor que os cristãos praticavam o comunismo. Realmente passagens como Atos 2:44-45 e 4:32 parecem sugerir a prática de um tipo utópico de socialismo baseado no princípio máximo do socialismo: "a cada um segundo a sua capacidade, de acordo com a sua necessidade". Deve-se notar, todavia, em primeiro lugar que esta era uma forma temporária, possivelmente concebida para satisfazer as necessidades de muitos de Jerusalém, que estavam ansiosos por doutrina na nova fé, antes de voltarem para suas casas. O fato que tudo era feito voluntariamente é Importante. Pedro afirmou claramente em At 5:3-4 que Ananias e Safira tinham liberdade para reter ou vender sua propriedade. O ter tudo em comum era uma decisão de caráter fundamentalmente livre. A Bíblia não pode ser usada como Escritura autorizativa para o Capitalismo estatal. Agora, sem dúvida, o cristianismo primitivo promoveu uma grande mudança social em certas regiões. A igreja de Jerusalém insistiu sobre a igualdade espiritual dos sexos e deu muita importância às mulheres na igreja. A liderança de Dorcas na promoção do trabalho

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de caridade foi registrada por Lucas (At 9:36). A criação de um grupo de homens para tomar conta das necessidades foi outro acontecimento de relevância social ocorrido ainda nos primeiros anos do nascimento da Igreja. A caridade deveria ser administrada por um corpo organizado, os precursores dos diáconos. Com isto, os apóstolos ficaram completamente livres para o exercício de sua liderança espiritual. A necessidade, devido ao rápido crescimento e possivelmente à imitação das práticas da sinagoga judaica, levou à multiplicação de ofícios e oficiais bem cedo na história da Igreja. Algum tempo depois, os presbíteros (anciãos) passaram a integrar o corpo de oficiais, finalmente formado de apóstolos, presbíteros e diáconos, que dividiam a responsabilidade de liderar a Igreja de Jerusalém. A natureza da pregação dos líderes dessa igreja primitiva desponta logo no relato do surgimento do cristianismo. O sermão de Pedro (At 2:14-36) é o primeiro sermão de um apóstolo; nele, recorde-se, Pedro apelou aos profetas do Velho Testamento que haviam pré-anunciado o Messias sofredor. Ele propôs, então, que Cristo era este Messias, porque Ele tinha sido levantado dentre os mortos por Deus. Logo, Ele era capaz de trazer a salvação para aqueles que O aceitassem pela fé. Os principais argumentos destes primeiros sermões estão em At 17:2-3. A necessidade da morte de Cristo pelo pecado foi também predita pelos profetas e a ressureição de Cristo era prova de que ele era o Messias que salvaria os homens. Paulo também bateu nesta mesma tecla (I Co 15:3-4). O Cristo crucificado e ressurreto era o conteúdo de sua pregação tanto a judeus como a gentios (Jo 5:22,27; At 10:42; 17:31). A igreja judaica em Jerusalém, cuja história foi descrita, logo perdeu seu lugar de líder do cristianismo para outras igrejas. A decisão tomada no Concílio em Jerusalém, de que os gentios não eram obrigados a obedecer a lei, abriu o caminho para a emancipação espiritual das igrejas gentílicas do controle judaico. Durante o cerco de Jerusalém em 70 por Tito, os membros da Igreja foram forçados a fugir para Pela, do outro lado do Jordão. Depois da destruição do templo e da fuga da Igreja judaica, Jerusalém deixou de ser vista como o centro do cristianismo; a liderança espiritual da Igreja Cristã se centralizou, então, em outras cidades, especialmente em Antioquia. Isto evitou o perigo de que o cristianismo jamais se libertasse dos quadros do judaísmo. II. A IGREJA NA PALESTINA O interesse nas atividades da igreja em Jerusalém ocupa a atenção dos leitores da história da Igreja primitiva que Lucas relata nos primeiros sete capítulos de Atos. O centro de interesse amplia-se para incluir a Judéia e a Samaria nos capítulos 8 a 12. O cristianismo foi levado aos povos de outras raças. O verdadeiro cristianismo sempre tem sido de orientação missionária. A visita de Filipe a Samaria (At 8:5-25) levou o Evangelho a um povo que não era de sangue judeu puro. Os samaritanos eram os descendentes daquelas dez tribos que não foram levadas para a Assíria depois da queda da Samaria e dos colonos que os assírios trouxeram de outras partes do seu império em 721 a.C. Os judeus e os samaritanos fizeram-se inimigos ferrenhos desde então. Pedro e João foram chamados a Samaria para ajudar Filipe, pois o trabalho crescera tão rapidamente que ele estava sem condições de atender a todas as necessidades. Este reavivamento foi a primeira brecha na barreira racial à divulgação do Evangelho. Filipe foi compelido pelo Espírito Santo, após completar seu trabalho em Samaria, a pregar o Evangelho a um eunuco etíope, alto oficial do governo da Etiópia. Pedro, o primeiro a pregar o Evangelho aos judeus, foi também o primeiro a levar oficialmente o Evangelho aos gentios. Depois de uma visão, que deixou claro para ele que os gentios também tinham direito ao Evangelho, Pedro foi à casa de Cornélio, o centurião

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romano, e se assombrou quando as mesmas manifestações ocorridas no dia de Pentecoste voltavam a se verificar na casa de Cornélio (At 10-11). A partir daí, ele se dispôs a levar aos gentios o Evangelho da graça. O eunuco etíope e Cornélio foram os primeiros gentios a ter o privilégio de receber a mensagem da graça salvadora de Cristo. Embora aqueles que tinham sido obrigados a sair de Jerusalém pregassem somente aos judeus (At 11:19), não demorou para que surgisse uma grande igreja gentia que brotou em Antioquia. Aí o termo "cristão", inicialmente empregado com sentido pejorativo por mordazes antioquienses, tornou-se a designação de honra dos seguidores de Cristo. Foi em Antioquia que Paulo começou seu ministério público ativo entre os gentios e foi daí que ele partiu para suas viagens missionárias cujo objetivo final era chegar a Roma. A igreja em Antioquia era tão grande que foi capaz de socorrer as igrejas judaicas quando elas passaram fome. Ela foi o principal centro do cristianismo de 44-68 d.C. A tarefa de levar o Evangelho aos gentios nos "confins" estava apenas começando. Começada por Paulo, esta tarefa continua ainda hoje como a missão inacabada da Igreja de Cristo.

TAMBÉM AOS GREGOS A Igreja judaico-cristã primitiva demorava a compreender o sentido universal do cristianismo embora Pedro tivesse sido o instrumento na comunicação do Evangelho aos primeiros convertidos judeus. Foi Paulo, capacitado pela revelação de Deus, que teve a visão das necessidades do mundo gentio, dedicando sua vida à pregação do Evangelho a este mundo. Como nenhum outro na Igreja primitiva, Paulo entendeu o caráter universal do cristianismo e entregou-se à sua pregação aos confins do Império Romano (Rm 11:13:15:16). Poder-se-ia até dizer que ele tinha em sua mente o slogan "O Império Romano para Cristo" pelo tanto que ele fez no ocidente com a mensagem da Cruz (Rm 15:15, 16, 18-28; At 9:15, 22:21). Embora não poupasse esforços na consecução deste ministério, ele não negligenciou seu próprio povo, os judeus. Isto se evidencia por sua procura das sinagogas judaicas logo que chegava a uma cidade e pela proclamação do Evangelho a todos os prosélitos judeus e gentios que pudessem ouvi-lo. I. O AMBIENTE DE PAULO Paulo estava consciente de que devia três lealdades temporais. Como jovem judeu, ele recebera educação ministrada apenas aos jovens judeus de futuro e foi educado aos pés do grande mestre judeu, Gamaliel. Poucos podiam se orgulhar de ter mais instrução do que Paulo no que dizia respeito à educação religiosa judaica e poucos se aproveitaram tanto quanto ele da educação que recebeu (Fp 3: 4-6). Era ele também cidadão de Tarso, a principal cidade da Cicília, "cidade não insignificante" (At 21:39). Era também cidadão romano livre (At 22:28) e não tinha dúvidas em usar os privilégios de sua cidadania romana quando estes privilégios podiam ajudá-lo em sua missão por Cristo (At 16:37; 25:11). O judaísmo foi seu ambiente religioso anterior a sua conversão; Tarso foi sua grande universidade e sua atmosfera intelectual, o palco dos primeiros anos de sua vida; e o Império romano foi o espaço político em que viveu e agiu. Este ambiente político não parecia ser tão favorável a alguém para a proclamação do Evangelho. César Augusto provocou a decadência da República, exceto para a política, quando estabeleceu em 27 a.C. uma diarquia em que dividiu nominalmente o controle do estado com o senado. Infelizmente, seus sucessores não tiveram a habilidade nem a moral de Augusto e governaram mal. Calígula (37-41) esteve louco durante parte do seu

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governo; Nero (54-68), sob quem Paulo foi martirizado e a Igreja enfrentou sua primeira perseguição, era um homem cruel e sanguinário que não titubeou em matar membros de sua própria família. Entretanto, Cláudio (41-54) foi um excelente administrador e o Império conseguiu se estabilizar em seu governo. Foi em sua administração que Paulo fez a maioria de suas viagens missionárias. A situação social e moral era mais assustadora do que a política. A pilhagem do Império criou uma classe alta rica de novos aristocratas que tinham escravos e dinheiro para satisfazer seus muitos desejos legítimos e ilegítimos. Esta classe desdenhava de certo modo a nova religião e viam seu apelo às classes pobres como uma ameaça à sua posição elevada na sociedade. Assim mesmo, alguns desta classe se converteram com a pregação do Evangelho feita por Paulo na prisão em Roma (Fp 1:13). Paulo enfrentou também a rivalidade de outros sistemas de religião. Os romanos eram de certo modo ecléticos em sua vida religiosa e se dispunham a tolerar toda religião desde que esta não proibisse seus seguidores de participar no culto do Estado, que misturava o culto ao imperador com o velho culto do estado republicano e exigia a obediência de todos os povos do Império exceto aos judeus, que por lei eram isentos destes rituais. Aos cristãos não se concedeu tal privilégio e eles tiveram que enfrentar o problema da oposição do Estado. As religiões de mistério subjetivistas de Mitra, Cibele e Isis pediam a associação de muitos outros no Império. O judaísmo, de quem o cristianismo foi distinto como seita separada, enfrentou uma oposição cada vez maior. Os intelectuais romanos aceitavam os sistemas filosóficos, como o Estoicismo, o Epicurismo e o Neo-pitagorismo, que sugeriam a contemplação filosófica como o caminho da salvação. O estoicismo, com sua interpretação panteística de Deus, sua concepção de leis éticas naturais descobríveis pela razão e sua doutrina da paternidade de Deus e fraternidade do homem, parecia dar um fundamento filosófico para o Império Romano. Alguns imperadores, como Marco Aurélio (161-180), aceitaram suas formulações éticas. Paulo teve que enfrentar este confuso cenário religioso com o simples Evangelho redentor da morte de Cristo. A Arqueologia nos ajuda a datar pontos-chaves na vida e obra de Paulo. Paulo esteve em Corinto 18 meses quando Gálio tornou-se procônsul (At 18:12-13). Uma inscrição em pedra, descoberta em Delfos, menciona que Gálio começou seu trabalho na Ásia no 26.° ano de Cláudio, que foi 51 ou 52 d.C. Assim, a visita de Paulo teria começado 18 meses antes, em 50 d.C. Outras datas em sua vida podem ser calculadas a partir desta com relativa acuracidade.

A conversão de Paulo foi também um evento histórico objetivo. Ele falou dela como tal em I Co 9:1 e 15:8 e em Gl 1:11-18. Ela aconteceu no seu encontro com Cristo na estrada para Damasco (At 9:22;26). Esta experiência foi vital para seu trabalho missionário, seu ensino, escritos e teologia. II. A OBRA DE PAULO A índole de Paulo era tão múltipla que é preciso considerar a sua obra sob diferentes aspectos. Cada um dos tópicos seguintes destacará a grandiosidade da tarefa que Deus lhe deu e a aplicação que devotou à realização desta tarefa. A. O Propagador do Evangelho Paulo era ao mesmo tempo sábio e dedicado missionário. Sua vida ilustra o uso de princípios que têm servido muito bem à Igreja no cumprimento da grande comissão. Uma consulta aos mapas de suas viagens indica o avanço do Evangelho através de sua pregação ao longo do semicírculo que vai de Antioquia a Roma. Paulo adotou como

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princípio básico a expansão do Evangelho para o Ocidente e é encantador o fato de ter alcançado seu objetivo, Roma, embora, fosse, então, prisioneiro do governo romano. Paulo pensava também em termos de áreas que poderiam ser alcançadas a partir de centros estratégicos. Ele sempre começava seu trabalho numa nova área na cidade mais estrategicamente localizada e usava os convertidos para levar a mensagem às cidades e regiões adjacentes. É por causa desta prática que ele provavelmente não tenha visitado Colossos (Cl 2:1), uma vez que a forte igreja desta cidade tinha sido fundada por aqueles que ele mesmo enviou de Éfeso. Ele iniciava seu trabalho nos centros romanos estratégicos indo primeiro às sinagogas, onde pregava sua mensagem enquanto fosse bem recebido. Quando surgia a oposição, ele partia para uma proclamação direta do Evangelho aos gentios em qualquer lugar que julgasse adequado. Seu princípio era pregar aos gentios depois de ter pregado aos judeus. Pelo menos é o que se depreende do estudo da história das viagens segundo Atos (Rm 1:16). Depois de fundar uma Igreja, Paulo a organizava com presbíteros e diáconos, a fim de que o trabalho continuasse após sua partida. Ele procurava colocar fundamentos sólidos. Ele não queria ser um ônus para as igrejas nascentes que dirigia, as quais deviam assumir a responsabilidade de se sustentarem enquanto pregava em uma nova área. Ele trabalhou em sua profissão de construtor de tendas enquanto pregava ao povo de Corinto (At 18:1-4: cf I Ts 2:9). Ele não fez disto uma regra para os outros, mas sentiu que era necessário para o seu ministério. A igreja deveria também se auto sustentar. Sua dependência da orientação do Espírito Santo em sua obra se evidencia claramente tanto nos Atos como em suas Epístolas (At 13:2,4; 16:6-7). Ele não desejava ir a um lugar sem estar absolutamente certo de que aquele era o campo que Deus tinha para o seu trabalho. Procurava alcançar regiões não alcançadas por outros, a fim de que fosse sempre um pioneiro do Evangelho (Rm 15:20). Este espírito de pioneirismo foi muito produtivo, resultando na chegada do Evangelho de Antioquia a Roma e, possivelmente, à Espanha, no curto tempo de sua vida. Estes princípios seguidos pelo apóstolo serviram-lhe no desenvolvimento das igrejas como centros organizados para continuação da pregação do Evangelho. Ele não as deixou sem ajuda constante, pois usava revisitar as igrejas que fundava, a fim de encorajá-las e fortalecê-las (At 15:36). Não é de admirar o rápido crescimento do cristianismo sob esta liderança sadia e inspirada. A igreja também deveria ser auto propagadora. B. As Publicações de Paulo Paulo adotava a prática de se manter em contato com a situação local em cada igreja através de visitadores dessas igrejas (I Co 1:11) ou através de relatos de agentes que enviava a visitar as igrejas (I Ts 3:6). Quando a situação local parecia exigir, ele escrevia cartas sob a inspiração do Espírito Santo para tratar dos problemas particulares. Ele escreveu duas vezes à igreja tessalonicense para esclarecer uma má interpretação da doutrina da segunda vinda de Cristo. A igreja coríntia enfrentava o problema de uma igreja situada numa grande cidade pagã e Paulo escreveu uma primeira carta para resolver estes problemas, problemas referentes à sabedoria humana e espiritual, próprios de uma igreja localizada numa cidade de cultura grega (I Co 1-4), o problema da moralidade num ambiente pagão (Capítulo 5), os processos entre cristãos nas cortes pagãs (6), problemas matrimoniais (7) e o problema do relacionamento social com os idólatras pagãos (8-10) foram alguns dos assuntos de que tratou em sua correspondência. Sua Segunda Epístola aos Coríntios decorreu da necessidade de afirmar seu apostolado, a

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fim de que sua autoridade afirmada na primeira carta fosse confirmada. A carta aos gálatas se fez necessária por causa do problema da relação da lei judaica com o cristianismo, para que a fé, e não a lei, fosse vista como o princípio atuante do cristianismo. A carta aos romanos é uma exposição e explicação sistemática de seu Evangelho. As quatro epístolas escritas durante sua prisão em Roma surgiram devido aos problemas especiais nas igrejas de Éfeso, Colossos e Filipos. A epístola pessoal a Filemom trata do problema do senhor e do escravo que se tornam cristãos. As três epistolas pastorais a Timóteo e a Tito tratam dos problemas próprios de um jovem pastor. Deve-se atentar para o fato de que todas estas cartas surgiram de uma crise histórica definida em alguma das amadas igrejas de Paulo. A grandiosidade destes "tópicos do momento" reside no fato de que os princípios que Paulo propôs para resolver os problemas das igrejas do primeiro século ainda são relevantes para a Igreja nos tempos modernos. Os seres humanos enfrentam problemas semelhantes e semelhantes princípios são úteis embora o ambiente temporal e espacial seja diferente. As epístolas são sempre de valor para qualquer igreja na solução de seus problemas. Paulo sempre equilibrou fórmulas teológicas com aplicação prática. C. Os Princípios da Teologia de Paulo Nenhuma discussão histórica sobre Paulo pode se permitir ignorar as doutrinas básicas desenvolvidas em suas cartas, particularmente na carta à igreja romana. Cristo não deixou nenhum corpo de doutrinas definido. Esta formulação coube ao trabalho de Paulo, conduzido pelo Espírito Santo. Este corpo de doutrinas não estava, entretanto, em contraste com os ensinos de Cristo mas, antes, partia dos ensinos e morte de Cristo.

A educação de Paulo no lar, na sinagoga e sob Gamaliel; sua observação da natureza (Rm 1:19-20), sua experiência de conversão; sua mente criativa e, acima de tudo, a revelação divina, foram importantes no desenvolvimento de sua teologia. A essência do evangelho paulino pode ser sintetizada facilmente. Paulo entendia que a felicidade e a utilidade eram os objetivos básicos a que aspiram todos os homens. Felicidade e utilidade nesta vida e na futura dependem da conquista do beneplácito de Deus. O favor de Deus pode ser assegurado ao homem que faz a vontade de Deus. Paulo e seus compatriotas judeus criam que a observância da lei de Moisés, que era uma expressão da santidade de Deus, garantiria uma vida feliz e útil. Paulo, porém, descobriu a tristeza de que as obras da lei somente resultavam no conhecimento do pecado e deixavam o homem sem esperança de executar a vontade de Deus como expressa nesta lei (Rm 7). A experiência na estrada de Damasco revelou a Paulo que não é a Lei mas a Cruz de Cristo o ponto de partida para a vida espiritual. Cristo, que guardara perfeitamente a lei judaica, como homem perfeito e Deus, ofereceu-se na Cruz em lugar do homem pecador e assumiu o fardo do pecado humano (Gl 3:10,13). Os homens precisam aceitar pela fé (Rm 5:1) a obra que Cristo já fez por eles. O sistema ético de Paulo desenvolve-se a partir desta união pessoal do crente com Cristo pela fé. Esta relação vertical deve ser completada com uma relação horizontal na qual o crente se une aos irmãos pelo amor cristão expresso numa vida moral (I Jo 3:23: Ef 1:15). Nem o legalismo do judaísmo, nem o racionalismo do estoicismo, mas o amor cristão deve ser a fonte da conduta cristã. A união mística do crente com o Senhor deve ser o fundamento do amor. Esta vida de amor envolve separação da corrupção pessoal que vem da adoração de ídolos, da impureza sexual ou da embriaguez — os grandes pecados do paganismo. O que se deve buscar, então, positivamente, é o serviço do amor para com os outros e a firmeza quanto à integridade pessoal.

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Um sistema de ética assim não significava repúdio da lei moral judaica mas, antes, representava o cumprimento do elevado nível do amor na família, na comunidade e na sociedade em geral. Os padrões éticos elevados dos cristãos impressionavam seus vizinhos pagãos com a grandeza da fé cristã. A própria vida de Paulo de serviço dedicado era uma indicação tanto a judeus quanto a gentios do que Deus faria na formação de uma personalidade cristã dedicada ao serviço para glória de Deus e para o bem do homem.

A filosofia paulina da história está intimamente ligada às suas posições éticas e teológicas. Ele rejeitava a teoria cíclica da história, que caracterizava o mundo antigo, e a teoria moderna de progresso evolutivo indefinido, adotando uma interpretação sobrenatural cataclísmica da história que se funda no fracasso do homem não-regenerado e no poder de Deus para executar seu plano divino. Esta doutrina não se limita a nações mas engloba a raça humana. Segundo ela, o progresso pode vir apenas através do conflito espiritual em que ao homem é dado força através da graça de Deus. Derradeiramente, Deus será o Vencedor sobre todas as forças do mal que foram provisoriamente derrotadas na Cruz do Calvário por Cristo (Rm 11:36; Ef 1:10). D. Paulo como polemista Paulo jamais se contentava em simplesmente apresentar o cristianismo. Ameaças à pureza da doutrina cristã levavam-no à luta contra o inimigo. Pela voz e pela pena, ele lutou pela pureza da doutrina cristã de seu tempo. Nenhuma interpretação falha da pessoa ou da obra de Cristo escaparam à sua condenação, nem deixou de tentar convencer os errados a voltarem à fé. O problema do significado e dos meios da salvação foi a primeira dificuldade que Paulo enfrentou durante o Concílio de Jerusalém ao final de sua primeira viagem missionária. A Igreja, nascida nos quadros do judaísmo, desenvolvera dois grupos. Um grupo reacionário de cristãos judeus de formação farisaica cria que tanto os gentios como os judeus deviam observar a lei de Moisés para a salvação. Eles queriam tornar o cristianismo uma seita particular do judaísmo. O outro grupo entendia que a salvação vinha pela fé em Cristo somente e que a oferta da salvação era para todos, e não por meio de obras. A visita dos judaizantes a Antioquia, ostensivamente com autoridade de Tiago para pregar à moda antiga (At 15:24), provocou o encontro de Jerusalém, em 49 ou 50, a fim de discutir o problema. Comissionados pela Igreja em Antioquia (At 15:2) e confirmados por revelação (Gl 2:2), Paulo e Barnabé dirigiram-se para Jerusalém para o primeiro e possivelmente mais importante concílio da Igreja em sua história. Eles narraram as suas atividades numa reunião geral pública da igreja (At 15:4-5), após o que se encontraram com os apóstolos e presbíteros num encontro especial de cunho reservado para discutir o problema com profundidade e procurar uma solução (At 15: 6; Gl 2:2-10). Este encontro reservado parece ter sido seguido por outro encontro da igreja toda no qual a decisão tomada foi referendada por todos os presentes (At 15:7-29). O elogio da obra de Paulo entre os gentios (At 15:25-26; Gl 2:9) e a não-obrigatoriedade dos gentios de guardarem a lei judaica (At 15:19) foram os resultados imediatos da conferência. Exigências menores para satisfazer os crentes judeus, como a abstenção de sangue ou coisas sufocadas, foram estabelecidas. Os gentios convertidos foram aconselhados também a evitar os pecados da idolatria e da imoralidade — pecados que poderiam ser uma tentação especial para os convertidos de um ambiente pagão devasso (At 15:20-21). Fica logo claro que estas solicitações em nada feriam os princípios básicos de como o homem é justificado. Elas foram criadas apenas para facilitar as boas relações entre convertidos judeus e gentios.

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Os acontecimentos do Concílio de Jerusalém, revelaram a tenacidade de Paulo quando uma questão fundamental estava em jogo. Em nenhum momento ele fala da circuncisão de Tito no Concílio (Gl 2:3), mas no começo de sua segunda viagem, quando Timóteo tornou-se seu auxiliar, circuncidou Timóteo (At 16:1-3), para que a falta deste ritual não fosse um obstáculo na comunicação do Evangelho. Paulo estava pronto para fazer concessões secundárias, desde que isto facilitasse seu trabalho; mas ele não permitiu a circuncisão de Tito em Jerusalém porque a liberdade gentílica quanto à observância da lei ritual judaica era o princípio pelo qual lutava. A liberação do cristianismo da observância da lei cerimonial judaica foi o resultado de maior alcance do Concílio. A partir daí, a fé permanece como o único meio pelo qual o homem alcança a salvação. Como esta fé é universal, o cristianismo está isento de perigo de tornar-se uma simples seita do judaísmo. A nova lei do amor, que conduz à observância da lei moral judaica a partir do amor a Deus e não de um sentido de obrigatoriedade, torna-se, então, a base da ética cristã. É interessante notar a feição democrática com que a Igreja resolveu seu grande problema. A decisão foi tomada pela Igreja e seus líderes sob a direção do Espírito Santo. Os cristãos judeus, que tinham sido salvos pela fé, ficaram livres para observar a lei de Moisés como uma tarefa voluntária caso quisessem. O cristianismo não pode esquecer a lição do Concílio de Jerusalém. Se isto acontecer, ele perderá a sua vitalidade. O mesmo problema foi enfrentado pelos Reformadores, que viram que a igreja romana estava exigindo obras humanas em acréscimo à fé como condição para a salvação. Os liberais modernos com sua ênfase sobre um Deus alcançável pelas realizações éticas incorreram no mesmo erro. O problema do Concílio de Jerusalém é perene e os princípios que triunfaram são os princípios que se mostraram relevantes através da história da Igreja. Paulo enfrentou também o desafio do racionalismo grego quando lutou contra um gnosticismo incipiente na Igreja. Alguns homens procuravam intelectualizar os meios da salvação assim como os cristãos judeus tinham tentado legalizá-los. O gnosticismo tornou-se um perigo especial na igreja colossense. Os gnósticos sustentavam uma filosofia dualística que fazia uma clara distinção entre o espírito como bem e a matéria como mal. De acordo com eles, o elo entre o espírito puro e a matéria má é uma hierarquia de seres celestiais. Cristo é visto como um membro desta hierarquia. Os anjos devem receber culto por serem parte desta hierarquia (Cl 2:8, 18-19). A salvação deve ser alcançada principalmente por atos ascéticos de negação dos desejos do corpo material e mau (Cl 2:14-17, 20-23) e por uma gnosis especial ou conhecimento acessível somente à elite entre os cristãos. A fé é relegada a uma posição secundária neste sistema que serve aos interesses do orgulho humano.

Paulo respondeu a esta heresia pela afirmação irrestrita da total suficiência de Cristo como Criador e Redentor (Cl 1:13-20). Cristo é a plena manifestação de Deus e não é de forma alguma inferior a Deus (Cl 1:19; 2:9). Somente nesta doutrina sentia Paulo que o homem podia ter a segurança de um Salvador capaz de resolver o problema do pecado. O gnosticismo foi a primeira heresia enfrentada pela Igreja, mas não seria a última. O erro é perene e geralmente surge pelos mesmos motivos em várias ocasiões. O orgulho da razão humana e sua tendência racionalista podem levar à heresia, como foi o caso da igreja em Colossos. A permanência da herança religiosa do período pré-cristão na vida individual pode levar a uma mistura de verdade e erro com terríveis consequências para a salvação. Foi este o erro dos judaizantes. Mau uso ou ênfases exagerados de alguma passagem bíblica podem provocar o erro. Às vezes o líder equivocadamente entusiasmado,

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na tentativa de proteger a verdade, pode subvertê-la; foi este o caso de Montano no segundo século. Não surpreende que Paulo, com esta fé, com esta coragem e com uma sólida perspectiva de sua tarefa, tenha sido capaz de levar a mensagem da salvação às nações gentílicas do Império Romano e fincar a cultura cristã na sua triunfante caminhada ocidental pela Europa. Ele foi o intérprete singular do significado da vida e da morte de Cristo em termos de salvação para o homem pecador. Ele deixou a fé livre da intromissão do legalismo e do racionalismo. Ele cuidou dos detalhes da organização das igrejas cristãs e se manteve em constante correspondência com elas a fim de resolver seus problemas segundo uma perspectiva cristã. Como ninguém, Paulo compreendeu o significado cósmico de Cristo no tempo e na eternidade. Foi ele que, como o "Apóstolo dos Gentios" (Rm 11:13; 15:16), interpretou Cristo ao mundo gentio. Que esse texto do contexto do primeiro século ajude a compreender o livro de Atos e que posamos tirar o máximo proveito desse trimestre na EBD. Bibliografia E. Cairns

O PROPÓSITO DE ATOS Determinar o que um leitor aproveita de um livro, e como avalia a qualidade dele, depende consideravelmente das suas expectativas ao abordá-lo. Estas expectativas podem se basear parcialmente no propósito que o autor expressou, e parcialmente nas pressuposições do leitor, ao começar o livro. É provável que o leitor mediano encare Atos dos Apóstolos como sendo o livro da história da igreja primitiva. Lê-o a fim de descobrir o que aconteceu durante os primeiros anos da existência da igreja. Certamente, achará uma história à altura de semelhantes expectativas. Começa com a ascensão de Jesus, o evento que marcou o fim do ministério terrestre de Jesus (Lc 24:50-53) e que também prenunciou a continuação da obra de Jesus através da igreja. O livro, depois de descrever como o dom do Espírito equipou os discípulos de Jesus para a obra deles, continua, contando a história emocionante do início da igreja em Jerusalém, sua expansão nas áreas mais latas da Judéia e da Samaria, e, depois, seu movimento rápido da Antioquia na Síria, através da Ásia Menor, da Macedónia e da Grécia, até que, finalmente, a chegada de Paulo em Roma simboliza a presença do evangelho na cidade central do mundo antigo. Há grande riqueza de detalhes na narrativa. Cenas dramáticas e pitorescas alternam-se com reportagem direta e simples. No centro das atividades há personalidades vigorosas. O autor tem talento para retratar a variedade da vida no mundo antigo, ao levar-nos de cidades do longínquo interior tais como Listra, para o centro intelectual de Atenas, e nos coloca em contato com personalidades inesquecíveis, judeus e gregos, nobres e escravos. O livro dele é "uma história cheia de interesse, contada por um mestre da narrativa".

Quase sem perceber, acabamos avançando daquilo que Lucas nos conta para o modo de ele contá-lo, e reconhecemos que esta porção de história é contada com poderes artísticos. É uma obra de literatura, fato este que teria ficado muito evidente ao leitor antigo desde o momento em que tomou nas mãos o livro com sua dedicatória a "Teófilo", segundo a maneira típica de uma antiga obra de literatura. A linguagem, e o estilo de Lucas se destacam no Novo Testamento e demonstram que, entre todos os escritores deste, era o mais consciente de que estava escrevendo literatura para uma audiência culta, e não meramente panfletos para o uso interno de uma igreja sem aspirações ou interesses literários.

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Embora Lucas escrevesse aquilo que tem a aparência de narrativa histórica, empregando deliberadamente a maior perícia literária, surge inevitavelmente a pergunta: qual foi o seu propósito em tudo isto? Por que escreveu a história da igreja primitiva? Não era, afinal das contas, a coisa mais óbvia para um escritor cristão fazer, fato este que é demonstrado ao lembrarmos que Atos é o único exemplo no século I deste tipo específico de literatura. Outros escritores cristãos escreviam Cartas e Evangelhos: o que o levou a fazer assim? Sugeriu-se grande variedade de razões, e é provável que devemos procurar uma resposta composta à pergunta, ao invés de uma resposta simples. Devem ser ressaltadas duas importantes considerações preliminares. A primeira é que um dos aspectos literários mais marcantes dos escritos de Lucas é que foram compostos conforme o estilo literário do Antigo Testamento Grego, a Septuaginta (LXX). Visto que Lucas sabe escrever com estilo diferente (Lc 1:14), trata-se dalguma coisa deliberada. É provável que tivesse consciência de que estava escrevendo história sacra. Acreditava que os eventos que registrava eram o cumprimento das profecias contidas nas Escrituras, e que, portanto, eram eventos operados por Deus, do mesmo tipo que o Antigo Testamento já registrara. Possivelmente, Lucas não reivindicou a descrição de "Escrituras" para aquilo que ele mesmo escrevia, mas implicitamente declarava que a história da igreja primitiva fazia parte da continuada história da obra de Deus, e que a própria história era de natureza semelhante às Escrituras do Antigo Testamento. A segunda consideração é que o Livro de Atos é a segunda parte de uma obra em dois volumes, cuja primeira parte é o Evangelho de Lucas. Um dos efeitos desvantajosos da atual ordem dos Livros no Novo Testamento é que nos leva a pensar que Atos é uma obra separada em si mesma. Era, no entanto, praxe comum no mundo antigo a organização de uma obra em várias seções mais curtas (conhecidas como "livros") por parte do autor, que escrevia uma breve introdução para cada uma delas. Josefo escreveu uma apologia em prol dos judeus, que se dividia em dois livros, sendo que o segundo começou assim: "No primeiro volume desta obra, meu mui estimado Epafrodito, demonstrei a antiguidade da nossa raça . . . Além disto, desmenti as declarações de Maneto, Queremom, e dalguns ou-tros. Agora procederei a refutar os demais autores que nos atacaram" (Jos, Ap. 2:1). Este abstrato é interessante por ser um paralelo com os pormenores da introdução que o próprio Lucas fez à obra dele (At 1:1-2); o que queremos sublinhar aqui, porém, é que evidencia o fato de Atos e Lucas formarem as duas partes de uma única obra. Segue-se, portanto, que fazer perguntas acerca do propósito de Atos isoladamente da questão mais lata do propósito de Lucas-Atos é ter o ponto de partida errado, praxe esta que geralmente conduz a uma chegada no destino errado. Conclui-se que devemos fazer perguntas acerca do propósito de Lucas-Atos como um todo. Se, apesar disto, concentramos a nossa atenção aqui sobre Atos, o modo certo de fazer a pergunta será indagar por que Lucas, em contra distinção com os demais evangelistas, resolveu acrescentar um segundo volume ao Evangelho ao invés de restringir-se meramente a um Evangelho. Uma das possíveis respostas a esta pergunta é que Lucas procurava escrever a história dos começos do cristianismo no sentido geral. Quando Marcos deu ao seu Evangelho o título: "Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus", indicou que o ministério de Jesus, desde Seu batismo até a Sua ressurreição, era o início e a base do evangelho. Lucas, no entanto, reúne juntamente a história de Jesus e a história da igreja primitiva, e considerava que juntamente formam a narrativa da fundação da igreja. Explicava como começaram as boas novas, e como espalharam-se ao ponto de abranger o mundo mediterrâneo, desde Jerusalém até Roma. E, realmente, declara no começo de Atos que seu primeiro volume tratou "tudo que Jesus começou, não só a fazer, mas a ensinar", e parece provável que, por implicação, o 2º volume trata de "tudo que Jesus continuou a fazer e ensinar". Desta maneira, os dois volumes abrangem o começo do evangelho, o

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estabelecimento da salvação no ministério de Jesus, e a proclamação da salvação pela igreja primitiva. Há vários modos de desenvolver esta compreensão básica. Em primeiro lugar, W. C. van Unnik argumentou, num artigo importante, que o livro de Atos é a confirmação do Evangelho. Sugeriu que Lucas, no seu Evangelho, estava apresentando a atividade salvífica de Jesus e mostrando a sua realidade. Depois, em Atos, Lucas mostra como a igreja proclamava e confirmava esta salvação. O que Atos efetivamente faz é demonstrar como a salvação que se manifestou em Jesus durante a Sua vida terrestre numa área limitada de terreno e durante um período curto, tornou-se uma realidade para quantidades sempre maiores de pessoas, e durante um considerável período de tempo. Como resultado disto, Lucas-Atos pode ser "considerado uma obra evangelística que proclama aos seus leitores a salvação. De modo semelhante, J. C. O'Neill insistiu em que o propósito principal de Atos é evangelístico, e sugere especificamente que os leitores em mira consistiam de romanos cultos. Trata-se de uma possibilidade interessante, mas não trata com justiça, segundo nos parece, a considerável quantidade de matéria em Lucas-Atos que se dirige a um auditório maior. Em segundo lugar, um fato principal em Atos é que demonstra como o evangelho tinha em mira os gentios, e não apenas os judeus. Parte da demonstração se acha na declaração de Lucas de que o que ocorreu na igreja primitiva estava de conformidade com as profecias. O propósito de Lucas foi demonstrar, não somente que a vinda de Jesus cumpriu as profecias, como também o surgimento da igreja e a extensão da salvação aos gentios cumpriram as profecias do Antigo Testamento bem como as promessas de Jesus (ver Lc 24:47; At 1:4-5, 20; 2:16-21; 3:24; 13:40-41,47;15:15-18;28:25-28).

Em terceiro lugar, embora o interesse de Lucas se centralizasse indubitavelmente na salvação, está aberto a dúvidas se devemos considerar seu auditório principal como sendo de não-cristãos. Nestas alturas, devemos levar a sério aquilo que o próprio Lucas nos informa acerca do seu propósito, no prólogo da sua obra. Dirige-se especificamente a "Teófilo", que, segundo o modo mais plausível de entender Lc 1:14, já era cristão, e que pode ser considerado típico dos leitores de Lucas. O propósito explícito de Lucas foi confirmar a fé daquele, fornecendo-lhe uma narrativa, na devida ordem, das coisas que aprendera no decurso da sua instrução cristã. Um cético talvez procurou persuadir Teófilo que a fé que tinha, baseava-se em "mitos ardilosamente tramados"; a resposta de Lucas foi presentear-lhe um relato dos começos do cristianismo, baseado naquilo que fora transmitido por aqueles "que desde o princípio foram deles testemunhas oculares, e ministros da palavra" (Lc 1:2). Já que o Evangelho deu os fatos acerca do ministério de Jesus, Atos demonstrou como a pregação de Jesus como o Cristo confirmou e corroborou os fatos registrados no Evangelho; quando foram pregadas as boas novas, o Espírito tornou eficaz a palavra, e fez com que os ouvintes entrassem na experiência da salvação. Segundo este modo de encarar a situação, o Livro de Atos foi escrito como narrativa dos começos cristãos, com a finalidade de fortalecer a fé e conceder a certeza de que é firme o alicerce desta fé. É óbvio que um livro escrito com este alvo em mira tem um propósito evangelístico, mas Lucas-Atos se estende para além da matéria puramente evangelística. Se adotarmos este conceito de Lucas-Atos, torna-se altamente improvável que o propósito primário de Atos fosse providenciar algum tipo de apologética politica em prol do cristianismo. Às vezes tem sido argumentado que o alvo de Atos era demonstrar que os cristãos eram inocentes das acusações políticas feitas contra eles, e que, na realidade, os oficiais romanos que examinaram tais casos concordaram em pronunciar que os cristãos não transgrediram, de modo algum, contra as leis do Império Romano. A sugestão até foi levantada de que Atos foi escrito para fornecer as evidências necessárias para a defesa de Paulo ao comparecer diante do Imperador Nero. É claro que esta sugestão vai longe demais. Não negamos que Lucas tinha um motivo apologético ao compor Lucas-Atos,

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especialmente no caso de Atos. Trata-se, porém, de um alvo subordinado em comparação com o tema principal da apresentação do fundamento histórico da fé cristã. Além disto, torna-se improvável que o propósito principal de Lucas-Atos fosse refutar heresias cristãs ou promover alguma ênfase teológica especifica do autor. Por exemplo: foi levantado um argumento no sentido de o alvo de Lucas ter sido refutar um tipo gnóstico de heresia, mas já foi demonstrado de modo convincente que Lucas não se refere explicitamente a quaisquer heresias específicas de caráter gnóstico, e que nenhum indício existe de qualquer polêmica consciente. Outro alvo sugerido é a reabilitação de Paulo diante dos difamadores de Paulo dentro da igreja, mas este propósito não pode passar de assunto subordinado. Uma finalidade muito mais importante de Lucas é demonstrar como a igreja, constituída de judeus e gentios, forma uma continuidade com o judaísmo, o que pode ser considerado aspecto vital do tema principal de Lucas. Outro ponto de vista, de extrema importância, é que Lucas procurava entender-se com o problema que surgiu na igreja porque ainda não ocorrera a Segunda Vinda ou Parusia de Jesus, a despeito de a igreja esperá-la para o futuro bem próximo. Lucas, conforme se alega, escreveu para produzir um novo conceito teológico, no qual a vinda do Espirito e a missão da igreja preenchiam a lacuna causada pela demora da parusia. Não fica claro se os proponentes deste ponto de vista consideram que se trata de um motivo consciente e deliberado da parte de Lucas para a composição da sua obra, ou da motivação subjacente e inconsciente que o levou a dispor sua obra na forma que acabou assumindo. De qualquer maneira, parece improbabilíssimo que a demora na parusia se tenha constituído em motivo importante e consciente para a obra de Lucas, e também é improvável que tenha sido um fator inconsciente decisivo na estruturação da sua obra. O conceito que diz que o ponto de vista teológico de Lucas foi determinado, em grande medida, pela demora da parusia, leva a um modo distorcido de entender Atos. Bibliografia I. H. Marshall

Introdução J. B. Phillips escreve no prefácio de The Young Church in Action (A Jovem Igreja em Ação), sua tradução de Atos, que a pessoa não consegue passar vários meses num estudo minucioso desse livro "sem ficar profundamente emocionado e, para ser honesto, perturbado. O leitor se emociona", diz esse autor, "porque vê o cristianismo, o cristianismo real, em ação pela primeira vez na história humana... Aqui estamos vendo a igreja no esplendor de sua mocidade, valorosa e íntegra... um corpo de homens e mulheres comuns unidos em comunhão inconquistável, jamais vista na terra". Entretanto, o leitor também fica perturbado "porque certamente", acrescenta o autor, essa "é a igreja como deveria ser. Igreja vigorosa e flexível, pois nesses dias ela ainda não havia se tornado gorda e sem fôlego, por causa da prosperidade, ou paralisada pelo excesso de organização. Aquelas pessoas não praticavam 'atos de fé' —elas criam; não 'recitavam suas orações' — oravam de verdade. Não faziam palestras sobre medicina psicossomática, mas simplesmente curavam os enfermos. Segundo os padrões modernos, aqueles crentes poderiam passar por ingênuos, mas talvez por causa de sua simplicidade ou por causa de sua prontidão para crer, obedecer, dar, sofrer e, se necessário, morrer, o Espírito de Deus verificou que lhe era possível trabalhar neles e através deles, pelo que 'alvoroçava' as pessoas, "pondo o mundo de cabeça para baixo" (veja 17:6). Atos é o único registro autêntico de que dispomos dos primeiros anos da história da igreja. Há alguns poucos indícios nas cartas paulinas sobre acontecimentos que ocorreram nesses primeiros anos. Josefo prove material valioso sobre o ambiente e muitas minúcias esclarecedoras, mas se Atos se houvesse perdido, nada haveria que lhe tomasse o lugar. Além do mais, o resto do Novo Testamento ficaria diante de nós em dois fragmentos desconjuntados, visto que Atos é o elo necessário entre os evangelhos e as cartas. Os evangelhos nos relatam o começo do cristianismo até a ascensão de Cristo. Todavia, se tudo

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quanto tivéssemos fosse isso haveria grande número de perguntas. Qual foi a sequência? Que fez o Senhor a seguir? Que aconteceu a seus seguidores e à sua causa? As respostas a estas perguntas estão em Atos. Diga-se o mesmo acerca das cartas: Verificamos tratar-se de cartas apostólicas dirigidas a igrejas em várias partes do império romano. Entretanto, fossem elas tudo de que podíamos dispor, ficaríamos desejando saber quando tais igrejas vieram a existir, como se formaram e por quem. Sem Atos —ainda que se trate de um texto histórico incompleto e fragmentado — não teríamos as respostas a muitas destas perguntas. "Não só descobriríamos ser quase impossível colocar Paulo e suas obras numa sequência cronológica e geográfica, como também em grande parte ainda estaríamos em trevas a respeito do desenvolvimento da grande missão de Paulo ao redor do mar Egeu, e dos eventos que o levaram a esse trabalho, e seu interesse quanto a ir a Roma e à Espanha (Rm 15:22-29). Só conseguimos entender a importância do livro de Atos, escrito por Lucas, como fonte histórica, se fizermos esforço consciente para eliminar as informações nele contidas (e que são de nosso conhecimento) a respeito do cristianismo primitivo". Da forma como Atos nos aparece, o livro nos esclarece o suficiente para constituir ambientação histórica à maioria das cartas, e testemunhar o caráter apostólico da maioria de seus autores. Basta-nos que consideremos quão pouco sabemos sobre a disseminação do evangelho nos lugares não mencionados na narrativa de Atos, para que apreciemos o quanto devemos a esse livro pelo que ele nos trouxe. E há mais: ficamos em débito para com o autor pelo fato de apresentar-nos tão ricas informações de forma tão legível. Pode-se afirmar que Atos é um dos livros mais emocionantes já escritos. Em que outra fonte você poderia encontrar, em tão poucas páginas, "uma série de eventos tão emocionantes, julgamentos, tumultos, perseguições, fugas, martírios, viagens, naufrágios, livramentos — inscritos nesse panorama espantoso do mundo antigo de Jerusalém, Antioquia, Filipos, Corinto, Atenas e Roma? E apresentando tais cenários e ambientes — templos, tribunais, prisões, desertos, navios, mares, tendas e teatros? Há alguma ópera dotada de tanta variedade? Diante do olho do historiador desenrola-se uma variedade incrível de cenários e ações. E o historiador vê em tudo isso a mão providencial que produziu e orientou esse grande movimento para a salvação da humanidade".

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Autoria Na erudição neotestamentária, é quase axiomático que, seja quem for que tenha escrito o terceiro evangelho, também escreveu Atos. Tradicionalmente esse autor tem sido identificado como Lucas, o médico e companheiro de Paulo. Nos manuscritos dos evangelhos, encontra-se "Segundo Lucas", quando se trata do terceiro evangelho. Esse evangelho nunca foi conhecido por outro nome. O nome Loukas (como aparece no grego) talvez seja abreviatura de Loukanos; tem-se observado que os nomes próprios contraídos que terminam em as eram comumente usados para os escravos. Talvez tenha sido essa a formação profissional de Lucas, visto que os escravos às vezes eram treinados para serem médicos. Entretanto, os fatos concretos a respeito de Lucas são escassos. Seu nome aparece apenas três vezes no Novo Testamento (Cl 4:14; 2 Tm 4:11; Fm 24). Dessas referências deduz-se que Lucas era gentio e esteve com Paulo em Roma, quando Colossenses e Filemon foram redigidas e (talvez) mais tarde, quando o apóstolo escreveu 2 Timóteo; todavia, não parece que ele tenha sido prisioneiro, como Paulo às vezes o foi nessas ocasiões. A evidência que temos sugere que Lucas poderia ter residido em Antioquia da Síria. A declaração mais antiga que temos a esse respeito aparece no prólogo antimarcionista do terceiro evangelho, que assim se inicia: "Lucas, médico de profissão, era de Antioquia". Eusébio e Jerônimo também estavam cientes dessa tradição, havendo mais dois pequenos fragmentos de evidência no próprio livro de Atos que fazem aumentar o apoio a essa hipótese (presumindo-se, por enquanto, que Lucas redigiu esse livro). Em primeiro lugar, dos sete diáconos "ajudadores", cujos nomes nos são dados em 6:5, o único cujo lugar de origem é mencionado é Nicolau, um gentio de Antioquia. Esta menção pode refletir o interesse particular do autor por essa cidade. A segunda evidência é o texto ocidental, que tomava forma no segundo século, o qual acrescenta as palavras: "quando estávamos reunidos..." em 11:28. O ambiente é a igreja de Antioquia, e o emprego da primeira pessoa sugere que o próprio Lucas era membro dessa igreja à época em que o incidente que ele descreve aconteceu. Se aceitarmos esta tradição, Lucas pode ter sido um daqueles gregos a quem os homens de Chipre e de Cirene pregaram, em 11:20 (mas veja-se a disc. sobre esse versículo). Todavia, permanece a pergunta: Foi Lucas quem escreveu Atos? Afirma a tradição unanimemente que ele o escreveu. E o livro em si? Será que ele oferece alguma iluminação sobre quem o teria escrito? As evidências internas repousam em grande parte nas passagens em que há o pronome "nós", quando a primeira pessoa do plural substitui a terceira pessoa, na narrativa — há um total de 97 versículos assim. A primeira dessas passagens marcadas por "nós" aparece sem qualquer aviso em 16:10-17 (a viagem de Trôade para Filipos); há outra em 20:5-15 e em 21:1-8 (a viagem para Jerusalém), e outra ainda em 27:1-28:16 (a viagem marítima de Cesaréia a Roma). Tem-se apresentado a sugestão, às vezes, que o autor empregou a primeira pessoa do plural nessas passagens como recurso literário, pois encontram-se outros relatos de viagens em que a pessoa escreve na primeira pessoa do plural. Entretanto, fosse esse o caso, por que não ocorre consistentemente? Ele narra algumas viagens na terceira pessoa do singular (9:30; possivelmente 11:25s.; 13:4, 13; 14:26; 17:14; 18; 18, 21). De qualquer modo, a maioria dos exemplos de narrativa na primeira pessoa do plural em que se apoia essa teoria tirada de Homero e de outros poetas, dificilmente pode ser comparada com a prosa histórica de Lucas. A. D. Nock vai mais além quando diz que o "nós" fictício nesse caso poderia não representar aqui o mesmo paralelo, e é mais improvável ainda para um escritor que afirma, como Lucas, estar escrevendo uma história real.

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Então, se estas passagens com "nós" representam o genuíno envolvimento do narrador nos acontecimentos, podemos explicá-los como se o autor de Atos estivesse assumindo o uso de um diário próprio de bordo, ou o de alguém. Todavia, essas passagens foram escritas num estilo que não se diferencia do resto do livro, de modo que se o autor estivesse utilizando o trabalho de outrem, precisamos supor que o autor o tenha reescrito totalmente a fim de eliminar todos os traços do estilo original. No entanto, teria feito isto com certa negligência, pois nem sempre se lembrou de introduzir a mudança da primeira pessoa para a terceira. A explicação bem mais simples é que o autor estava utilizando seu próprio material escrito, e permitiu que a primeira pessoa do plural permanecesse a fim de indicar em que pontos ele próprio tomou parte nos acontecimentos. "Desde o início, esta seria a única maneira pela qual os leitores — o primeiríssimo dos quais foi Teófilo, a quem o autor dedicou os dois volumes, e com quem teria um relacionamento pessoal — poderiam ter entendido as passagens marcadas por 'nós'“. Deduz-se daí que o autor de Atos foi companheiro de Paulo. De todos os candidatos à possível autoria, Lucas é um dos pouquíssimos que não são excluídos graças a Uma variedade de razões. Sabemos que ele estava em Roma com Paulo, como também o escriba e, embora as evidências fiquem sem o peso das provas, elas pelo menos apontam com maior certeza na direção de Lucas que noutra direção qualquer. Entretanto, nem todos os eruditos aceitam isto. A principal objeção levantada pelos que não aceitam esta conclusão é que nenhum companheiro de Paulo, fosse ele Lucas ou outra pessoa qualquer, teria traçado o retrato do apóstolo Paulo que esse autor traça. Ninguém que tivesse conhecido o apóstolo, afirma-se, tê-lo-ia apresentado como este livro o apresenta. Nas cartas, até quase no final de sua vida, Paulo estava em grave conflito com os que resistiam contra a admissão livre dos gentios à igreja. Em Atos esse problema é levantado e resolvido em grande parte no âmbito de um único capítulo (cap. 15), e nunca mais se toca no assunto. Nas epístolas, Paulo é um apaixonado defensor de seu apostolado. Nada disso se lê em Atos. No livro todo ele é chamado de apóstolo duas vezes e isso ocorre, outra vez, no espaço estreito de um único capítulo (14:4, 14). Costuma-se dizer que o Paulo de Atos tem uma cristologia, uma teologia natural, uma escatologia e uma compreensão da lei inteiramente diferentes das do Paulo das cartas. Ele aceita as determinações do concilio; circuncida Timóteo; propõe-se a perfazer um rito de purificação, e ajuda outros a fazer o mesmo. É este o apologista radical de Gálatas? Creio que é. Devemos lembrar-nos de que, em Gálatas, Paulo é pressionado por uma urgência terrível na controvérsia que ameaçava os alicerces da própria fé. É natural que nessas circunstâncias Paulo falasse veementemente contra a imposição da lei sobre os gentios. Todavia, noutra passagem nós o encontramos assumindo a opinião de que os atos ritualísticos em si mesmos não são bons nem maus, exceto quando a intenção os qualifica. Isso nos faz lembrar a expressão sarcástica de Emerson a respeito da "coerência tola" que caracteriza "os demoniozinhos de mentes estreitas, adorados por estadistas, filósofos e religiosos de espírito raso". Em vão procuraríamos tal coerência na vida de Paulo, visto que sua mente era preeminentemente ampla. No que dizia respeito aos grandiosos princípios fundamentais da fé, Paulo não se comprometia; sempre que estes não eram prejudicados, o apóstolo era a mais adaptável das pessoas. Talvez Lucas não o tenha entendido com perfeição. Pode não ter assimilado a teologia paulina, nem sentido com a mesma inten-sidade as questões que tocavam o apóstolo com ardor. Entretanto, tendo-se considerado todas as coisas, "as objeções contra a opinião de que Lucas estava a par das ideias de Paulo não são tão fortes de modo que ultrapassem as evidências consideráveis de que a compreensão de Lucas era perfeita". É preciso que mantenhamos em mente que a perspectiva que Lucas tinha de Paulo era bem diferente da nossa. Nós vemos o apóstolo como teólogo; Lucas o via como "um missionário, um carismático fundador de comunidades".

Fontes

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Lucas é o único autor do Novo Testamento que diz algo a respeito de seus métodos. Todavia, diz-nos muito pouco. Resume-se no seguinte: ao escrever o evangelho, usou as melhores fontes disponíveis (Lc 1:1 ss.). Além do mais, no caso do evangelho somos capazes de ver como foi que Lucas as manuseou, visto que duas dessas fontes nos são conhecidas — o Evangelho segundo Marcos e um documento que veio a perder-se, que Lucas partilhou com Mateus, e que até certo ponto podemos reconstituir (o assim chamado Q). Fica logo aparente ao leitor que embora Lucas exercesse suas prerrogativas editoriais de cortar e polir o material que veio às suas mãos, ele todavia mostrou-se notavelmente fiei às suas fontes. Portanto, em Atos, é razoável supor que Lucas serviu-se de outros materiais primitivos, não sendo menos fiel na transmissão desses fatos do que fora na transmissão do evangelho. Até a metade de seu trabalho (caps. 1-12 e 15) Lucas poderia ter utilizado uma fonte aramaica, talvez mais de uma. As evidências mais claras disto aparecem nos primeiros cinco capítulos e no capítulo que nos relata os "atos de Pedro" (9:31-11:18; 12:1-17). A linguagem desses capítulos e algumas partes da narrativa "demonstram grande conteúdo semítico. Não se trata de hebraísmo do tipo resultante da imitação da tradução grega, chamada Septuaginta, e que pode ser detectado noutras partes da obra de Lucas. Pode-se verificar tratar-se de aramaísmo do tipo semelhante ao que se reconhece nos relatos dos ensinos de Jesus, nos evangelhos". O trabalho de traduzir tais fontes (se, na verdade, elas existiram) poderia já ter sido feito antes de chegar a Lucas. Na segunda parte do livro, Lucas dispôs de seu próprio diário (conforme supomos). Tal diário pode ter servido de fonte adicional, além das passagens narradas na primeira pessoa do plural em 16:18-20, 20:17-38, e parte de 21:19-26:32, ou toda a passagem. Uma forma comum de tratar da questão das fontes é levar em consideração as pessoas e os lugares dos quais Lucas poderia ter recebido informações. Grande parte do livro gira em torno de Paulo; não podemos duvidar de que o próprio Paulo forneceu muitas informações que Lucas desconhecia sobre seu herói, embora o relato esteja muito bem marcado com o estilo típico de Lucas, de tal modo que não conseguimos distinguir hoje o que teria chegado ao autor vindo diretamente do apóstolo. Mas há outros também — pessoas como Timóteo, Áquila e Priscila, Aristarco, Marcos, Silas e Sosípatro — com quem Lucas esteve em contato uma vez ou outra. Poderiam ter acrescentado — e em certos casos é quase certo que o fizeram mesmo — algo mais a respeito da história de Paulo. Ao agrupar os fragmentos da história anterior, pré-paulina, Lucas deve ter explorado algumas fontes específicas. Se Lucas fosse de Antioquia, p.e., ali disporia ele de Barnabé, que viera de Jerusalém e havia se tornado um líder na igreja siríaca (4:36s.; 9:26s.; 1l:22ss.). Outro líder de Antioquia era Manaém, "que fora criado com Herodes" (13:1). É extraordinário que Lucas, dentre todos os evangelistas, seja o que mais nos fala da família de Herodes. Teria sido Manaém a fonte de suas "informações privativas'? Tendo sido companheiro de Paulo, Lucas esteve com Filipe na Cesaréia, de quem poderia ter obtido os dados dos capítulos 6 a 8, e 10. Lucas também esteve com Mnasom, a quem ele descreve como "cíprio, discípulo antigo" (21:16), referindo-se talvez ao Pentecoste do capítulo 2. Que mananciais de história Lucas deve ter tido! Mais tarde, Lucas esteve com Marcos em Roma (Cl 4:10; Fm 24). A casa de Marcos havia sido em certa ocasião o centro vital da igreja de Jerusalém, de modo que grande parte das informações colhidas por Lucas, a respeito da igreja primitiva, de modo especial no que diz respeito a Pedro, poderia ter vindo dessa fonte. Houve outras pessoas ainda. De fato, se a verdade viesse à tona, talvez tivéssemos o caso de informações demais, em vez de falta de informações. Lucas não sofreu de escassez de informantes; ter-

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lhe-ia sido um problema grave decidir o que incluir e o que excluir em seu livro. Entretanto, Lucas escrevia tendo em mente um propósito principal, de modo que ele se restringiu a uma cuidadosa seleção de fontes, com o objetivo de atingir seus objetivos. Daqui a pouco estaremos discutindo quais seriam os propósitos de Lucas.

Exatidão Histórica Podemos confiar em Atos como sendo um relato fiel do que aconteceu? Já houve época em que a moda era considerar este livro como crônicas de quinta categoria, compiladas em meados do segundo século, contendo mais lendas do que fatos, transbordante de erros históricos. Hoje, poucos defendem essa opinião. Pesquisas modernas demonstraram que Atos é um documento notavelmente exato. Tal declaração dificilmente surpreenderia os que aceitam a autoria de Lucas. O peso das evidências constrangem-nos agora a encontrar uma ambientação para esse livro no primeiro século, não longe dos acontecimentos a que se refere, estando seu autor em contato íntimo com as pessoas envolvidas. Sua exatidão histórica é mais espantosa ainda se considerarmos que amplidão tremenda o livro percorre, em termos de cenários e circunstâncias, estendendo-se de Jerusalém a Roma, incluindo todo tipo de povos, culturas e administrações. Entretanto, apesar de toda a complexidade do mundo por onde o autor andou, e do fato de ele escrever sem o auxílio inestimável de bibliotecas e arquivos, no que concerne a questões topográficas, políticas, históricas e náuticas, Lucas jamais tropeça num fragmento de informação. Lucas sente-se à vontade no Sinédrio e entre seus participantes em Jerusalém, os sacerdotes, os fariseus, os guardas do templo, e os príncipes da casa de Herodes. Ele sabe que Chipre, a Acaia e a Ásia eram governadas por procônsules (13:7; 18:12; 19:38), que Filipos era colônia romana e quais pretores tinham jurisdição sobre ela, e eram atendidas por magistrados (16:20ss., 35ss.), que estes em Tessalônica eram chamados por um título especial ("autoridades" em ECA, 17:8), que os oficiais governamentais da província da Ásia também recebiam um título especial ("autoridades" em ECA 19:31), que a cidade de Éfeso rejubilava-se de ser "a guardadora do templo da grande deusa Diana" (19:35), que o poder político nessa cidade estava sobre o demos, a assembleia popular, dirigida pelo "escrivão" (19:35ss.). Não só o autor trata dessas minúcias com cuidado, como também procura retratar a própria atmosfera dos lugares em que se desenrola a história: as multidões excitáveis e intolerantes da parte leste de Jerusalém, e a relativa tolerância da cosmopolita Antioquia; a metrópoles de Síria, onde se estabeleceu a primeira igreja gentílica pelos judeus; o orgulho dos filipenses, por causa de sua cidadania romana; o diletantismo intelectual dos atenienses; a superstição dos efésios — tudo isto e muito mais ainda adquire vida nas páginas de Atos. O fato mais impressionante a respeito de Atos na verdade é a exatidão que se projeta até nos mínimos detalhes, os mais triviais — coisinhas que o pesquisador não consideraria em sua busca de verossimilhança. A própria casualidade da exatidão textual constitui sua garantia de genuinidade — nada ali é forjado. Se podemos confiar no autor quanto aos detalhes, é certo que podemos confiar nele quanto ao corpo maior da história (veja ainda mais sob "Lugar e Data"). Todavia, Lucas não foi um mero cronista. "Precisamos entender", adverte-nos Krodel, "que Lucas, o historiador bíblico, empreendeu sua tarefa à semelhança de um artista que procura interpretar a realidade, e não como um cronista que registra um fato após outro. Ele não é como um fotógrafo cujo produto precisa ser a imagem exata, mas antes como um pintor cuja tela promove uma reação face a uma mensagem". Assim foi que Lucas selecionou, dispôs e interpretou os eventos de sua narrativa com o objetivo de explicar um tema, de modo que tudo que não estivesse ligado a esse tema era impiedosamente omitido. Nada lemos, p.e., a respeito da fundação de comunidades cristãs no Egito, na Cirenaica, no norte e no leste da Ásia Menor, na Armênia, no leste da Síria e no reino parto, ou Itália. Essas omissões mostram-se tão vastas (Hengel fala do "ecletismo quase objetável" de Lucas,

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na escolha de seu material) que alguns eruditos inclinam-se a ver Atos mais como uma espécie de monografia histórica do que como um tomo da história da igreja, reservando o título de "Pai da História da Igreja" para Eusébio (morto cerca de 339 d.C). Lucas estava interessado em apenas um tema da história da igreja, a saber, o modo como a igreja rumou de Jerusalém a Roma e como, ao mesmo tempo partiu da missão aos judeus indo à pregação da mensagem divina aos gentios (veja mais ainda na disc. de "Título e Propósito"). Ainda assim Lucas deixou muita coisa de lado, por não lhe servir os propósitos. Todavia, Lucas não deve ser julgado pelas suas omissões. Ele deve ser julgado apenas dentro dos limites que ele próprio se impôs; e dentro desses limites o autor saiu-se admiravelmente bem. É claro que há áreas problemáticas. Tampouco Lucas é um escritor impecável. "Ele abrevia demais alguns eventos, de tal modo que estes se tornam quase incompreensíveis; quanto a outros, apenas dá indícios. Ao mesmo tempo, elabora aquilo que deseja enfatizar, e emprega repetição múltipla como estilo de redação. Lucas também consegue combinar tradições históricas separadas de modo que sirvam a seus objetivos, e consegue separar assuntos interligados se, como resultado, puder obter uma sequência significativa de acontecimentos". Por essas razões, Lucas não seria considerado um grande historiador segundo os padrões modernos. Entretanto, ele foi um escritor competente que obteve grande sucesso em conceder-nos um relato vigoroso, interessante e exato de tudo que decidiu relatar-nos sobre a historiada igreja. No entanto, para alguns leitores há uma objeção insuperável para aceitarem Lucas como historiador digno de confiança, a saber, o fato de ele mencionar milagres. Seu interesse pelo milagroso — e não há como negar que Lucas se interessava — destrói toda credibilidade que de outra forma ele teria, assim afirmam os críticos. Todavia, tal crítica só teria valor se os milagres não houvessem ocorrido. As evidências indicam que houve milagres. Paulo apelou aos gálatas, como se referisse a algo acima de qualquer dúvida: "Aquele que vos dá o Espírito, e que opera milagres entre vós, fá-lo pelas obras da lei, ou pela pregação da fé?” (Gl 3:5). E também em Rm 15:18-19, sem nenhum temor nem pensamento de contradição, Paulo declara que Deus realiza milagres. Tampouco é verdade o que se tem dito, que Lucas aceitou o milagroso sem qualquer crítica, mas com bastante ingenuidade. Não há milagres em Atos, só por amor aos milagres. Dunn nos faz lembrar de que "em Atos 8:18ss. Simão o mago é denunciado por considerar o Espírito como uma espécie de poder mágico cujos segredos, ou técnicas, alguém poderia comprar; em 13:8-11 o cristianismo é apresentado em contraste violento com a magia; em 14:8-18, Lucas resiste fortemente contra a tentação (e rejeita-a) de retratar Paulo e Barnabé como "deuses semelhantes aos homens"; em 19:13-16 ele sublinha o fato de que o nome de Jesus não consiste de mera fórmula exorcista capaz de ser utilizada por qualquer pessoa que a aprender, mas só deve ser empregada pelos discípulos que clamam pelo seu nome (cp. 2:21; 9:14, 21; 15:17; 22:16). Diz Dunn que a acusação de ingenuidade tem sido atirada indevidamente contra Lucas. "A atitude despojada de criticismo diante do poder miraculoso pode ser apenas uma reflexão fiel da atitude isenta de discriminação por parte da missão cristã primitiva. Ele poderia estar em grande parte satisfeito em reproduzir as histórias que lhe eram passadas, sem comentá-las". E é assim que Dunn conclui: "É difícil dizer onde terminam as tradições e começam as atitudes do próprio Lucas... É possível que o modo mais justo de avaliar o tratamento que Lucas dispensou a seu trabalho, nesta altura, é reconhecê-lo como alguém que, olhando-se para trás, de uma posição de relativa calma nos anos posteriores, esteve apaixonado e emocionado diante do entusiasmo e poder da missão primitiva, ao ouvir testemunhas ou relatórios mais antigos mencionarem a obra. Se assim foi, é bem provável que Lucas tenha redigido seu relato dos começos do cristianismo tendo como objetivo transmitir algo que causasse o mesmo impacto e impressão fortes em seus leitores. Muitos deles, tanto do passado como do presente, dariam testemunho do sucesso de Lucas nesse sentido.

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Linguagem Numa famosa passagem Tucídides, o historiador grego, descreve seu dilema concernente à linguagem de seus personagens, e à política que ele adotara quanto a elas. Disse ele: "E muito difícil para mim lembrar-me com estrita exatidão das palavras realmente pronunciadas, tanto as que eu próprio ouvi, como as que me foram relatadas, vindas de outras fontes. É por isso que mostro os diálogos na linguagem em que, assim me pareceu, as diferentes personagens expressaram, nas questões sob consideração, os sentimentos mais adequados à ocasião, embora eu tenha, ao mesmo tempo, permanecido tão próximo quanto possível do sentido comum daquilo que foi dito". Todavia, nem todos os historiadores antigos eram tão conscienciosos como Tucídides. Alguns compuseram diálogos bem livremente, e colocaram-nos nas bocas de suas personagens sem muita consideração para com as probabilidades históricas, e menos ainda para com os fatos históricos. Tal fato levanta outra vez de forma especial a questão da historicidade de Atos. São as falas encontradas nesse livro relatos genuínos do que se disse, ou teria Lucas aderido à prática comum de compô-las? Não faltam os que se agarram a esta última opinião, afirmando que os discursos contêm muito pouco da pregação primitiva e bastante da teologia do próprio Lucas. Esta avaliação é feita com base na análise dos próprios sermões, muitos dos quais mostram uma estrutura comum, enquanto todos dão evidências da própria linguagem e estilo de Lucas. Entretanto, embora seja verdade que a maior parte dos sermões primitivos segue certo padrão único, também é verdade que esse tipo de padronização não se atem exclusivamente ao livro de Atos. Encontra-se, p.e., em Marcos 1:14-15 e numa série de passagens das cartas. Em suma, a estrutura comum utilizada é mais antiga que Atos, e encontra-se noutras passagens mais amplamente do que em Atos. Seria razoável supor, portanto, que esse era o padrão homilético da igreja, e não algo imposto sobre os sermões pelo próprio Lucas. Seja como for, dentro da reconhecida margem de semelhanças entre os discursos, há também lugar para a variedade. Primeiro, demonstram um desenvolvimento teológico definido, como se esperaria de uma pessoa, caso fossem sermões pregados ao longo de seus anos de formação. Além do mais, demonstram em alguns pontos uma teologia distinta da de Lucas. Em segundo lugar, às vezes demonstram as características distintivas do pregador original. É certo que as marcas de Lucas estão presentes ali, mas por trás delas ouvimos a voz de Pedro, que fala como o Pedro da primeira carta, e Paulo falando como o Paulo que conhecemos de suas cartas. Finalmente, dois sermões (2:14-39.e 13:16-41) ostentam o estilo hermenêutico dos rabinos; dificilmente alguém esperaria que o próprio Lucas os compusesse. E se tudo isto aponta para trás, para a quase certeza de que Lucas serviu-se de fontes, tal conceito se fortalece diante das marcas inegáveis que elas deixaram em seu uso do grego. "O estilo dos sermões não é tão polido como alguém poderia talvez esperar, caso se tratasse de produções literárias cuidadosas; na verdade, está presente o tipo de redundâncias e de pequenas incoerências que assinalam a incorporação de tradições numa estrutura redacional". Assim é que podemos presumir que os sermões e discursos de Atos nos dão, segundo o "sentido genérico" de Tucídides, um guia confiável sobre tudo que verdadeiramente foi dito. Diz Bruce: "Não são invenções de Lucas, mas resumos que nos fornecem pelo menos a essência do que foi dito em várias ocasiões. Portanto, constituem fontes valiosas e independentes quanto à vida e o pensamento da igreja primitiva”.

Data e Lugar Ninguém sabe onde Atos foi escrito, embora muitos tenham arriscado suas suposições. As

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sugestões incluem Roma, Cesaréia, Antioquia, Éfeso e Corinto. A linguagem do livro, segundo se diz, aponta para um centro em que prevalecia a influência helenística, mas isto pouco nos informa. Quase qualquer grande cidade a leste de Roma caberia nessa descrição. Com respeito à data, a atmosfera cultural e política do livro coloca-o com firmeza no primeiro século. Todavia, em que altura desse primeiro século? Alguns advogam um período tardio (90-100 d.C.) sob a alegação de não se tratar de mera crônica de eventos, mas ser claramente o produto de muita reflexão. Atos apresenta uma interpretação da história, o que implica, argumentam alguns, que o autor escreveu de alguma distância temporal de seu assunto. Imaginamos, todavia, se seriam necessários trinta ou quarenta anos para dar ao autor essa perspectiva. Ainda em apoio de uma datação tardia, tem-se afirmado que o livro exibe os interesses e as perspectivas da igreja daquela época posterior. Às vezes tem sido dado a ele o rótulo de um "espírito institucional "primitivo. Mas onde estão as evidências que apoiariam esta afirmativa? Há pouco interesse em regras de fé formuladas de modo estrito, no estabelecimento de uma "doutrina sadia", na doutrina da igreja, no desenvolvimento do ministério da igreja, ou nos sacramentos da igreja, em tudo que caracterizou a "instituição" primitiva, do fim do primeiro século e começo do segundo. Ao contrário, para Lucas a igreja como instituição era notavelmente livre, sendo sua vida comunitária marcada por uma espontaneidade que não encontramos em parte alguma nesse período. "Nem os apóstolos, nem Tiago, exercem direção autoritária sobre a igreja de Jerusalém, e tampouco o fazem Paulo e outros noutras cidades. A igreja não é governada por autoridades institucionais, mas pelo Espírito Santo. É o Espírito que consolida a igreja, e a disciplina também, e a purifica, mantendo-a ao mesmo tempo aberta para as sempre novas e misteriosas exigências da vontade de Deus. Não existem sinais de alto sacramentalismo". A comparação com escritores pertencentes sem qualquer sombra de dúvida ao final do primeiro século e princípio do segundo, como Clemente de Roma e Inácio, demonstra quão longe Lucas estava deles. Verifica-se que Atos respira uma atmosfera diferente. Pertence a outra época, mais próxima dos apóstolos. Alguns autores datam Atos entre 60 e 70 d.C, enquanto outros especificamente o datam de antes da morte de Paulo (parece que ele morreu na segunda metade do reinado de Nero, cerca de 67 d.C), visto que Lucas não a menciona. Todavia, essa conclusão pressupõe que o interesse primordial de Lucas fosse traçar uma biografia do apóstolo, quando na verdade a principal preocupação do autor era assinalar o progresso do evangelho até Roma. Desde que as Boas Novas houvessem sido anunciadas em Roma, o que teria acontecido a Paulo teria ficado além do escopo da obra (além disso, os eventos relacionados ao apóstolo talvez fossem do conhecimento dos leitores de Lucas), não constituindo um guia seguro com respeito à data de composição do livro. No entanto, ainda que o livro houvesse sido redigido após a morte de Paulo, aponta uma data não muito depois desse fato, em vista de Lucas desconhecer o conteúdo das cartas paulinas. Essa datação mais cedo também é convincente por causa de algumas minúcias históricas, pormenores bem pequenos mas significativos, que seriam quase impossíveis num escritor posterior. A recordação casual de nomes é outra indicação de que Atos foi escrito mais perto da fundação da igreja, e não em época posterior (p.e., 17:5; 19:33; 21:16; 28:11). Levanta-se a pergunta, então: Sim, Atos foi escrito cedo, mas em que ano? A objeção mais forte contra uma data nos anos 60 é o uso que Lucas fez do Evangelho de Marcos, na composição de seu próprio evangelho. 1 resumindo-se que a referência em 1:1 diz respeito ao evangelho em sua forma atual, e não a um rascunho preliminar, anterior, antes de Lucas pegar o Evangelho de Marcos (o suposto "Proto Lucas"), temos uma sequência de datas relativas: primeiro, Marcos; segundo, o Evangelho de acordo com Lucas, e, em terceiro lugar, Atos. Todavia, de acordo com as tradições mais antigas, Marcos não teria sido escrito senão após a morte de Pedro e de Paulo (Irineu, Contra as Heresias 3.1.1), pelo que e preciso atribuir algum tempo (talvez não muito) para que a obra de

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Marcos chegasse às mãos de Lucas, e mais algum tempo para que este pudesse redigir seu segundo volume. Na verdade, alguns eruditos acham que passaram-se muitos anos antes do livro de Atos começar a ser escrito. F. L. Cribbs argumenta em prol desta opinião afirmando que o segundo volume faz muito maior uso de conceitos como "testemunha", "sinais", "crer", do que o primeiro. S. G. Wilson também acha que se passou grande tempo, mas apresenta motivos diferentes. Diz este autor: "Parece muito provável, puramente com base na escatologia de Lucas, que este escreveu Atos em época consideravelmente posterior ao evangelho, e que no ínterim, suas ideias se desenvolveram e mudaram". Ainda que entendamos que esses autores exageraram em sua argumentação, parece-nos muito provável uma data ao redor de 75 d.C; Marcos teria sido escrito no final dos anos 60, ou início dos anos 70, seguindo-se o evangelho de Lucas logo depois.

Título e Propósito O título não é original. Foi cunhado algum tempo depois de cortar-se a conexão do livro com o evangelho e, talvez, à época em que recebeu reconhecimento como livro canônico. A origem do nome pode estar no fato de esse livro vir antes das cartas, no Cânon, representando "atos" em vez de "palavras". A ocorrência mais antiga desse título encontra-se no prólogo antimarcionita ao Evangelho de Lucas (cerca de 180 d.C), sob a forma de "[os] Atos dos Apóstolos" (Gr. Praxeis Apostolori). Um pouco mais tarde o Cânon Muratório o intitulou "Atos de Todos os Apóstolos". Subsequentemente outras variações apareceram, mas seja qual for a forma, esse nome para o livro não é adequado, nem exato. Dos doze apóstolos originais, lemos muita coisa a respeito de Pedro, um pouco a respeito de João e de Judas, e nada absolutamente sobre os demais, exceto uma menção ocasional de "os apóstolos" (a última das quais no cap. 15), e uma lista de seus nomes em 1:13. Por outro lado, o livro nos apresenta grande número de personagens que não eram apóstolos. Dezesseis dos vinte e oito capítulos são dedicados a Paulo. Tampouco o título dá-nos alguma indicação dos propósitos de Lucas. Estes devem ser encontrados nos primeiros versículos de abertura. O livro se inicia com menção ao evangelho de Lucas, no qual "todas as coisas que Jesus começou a fazer e a ensinar" (assim diz o grego) estão registradas. Esta descrição do primeiro volume implica em que o segundo contém tudo quanto Jesus continuou a fazer e a ensinar. Mas de que maneira Jesus continuou sua obra? O propósito de Atos é responder a essa pergunta, e a chave do livro encontra-se em 1:8. Ali foi dito aos apóstolos que receberiam poder quando o Espírito Santo viesse sobre eles e, nesse poder eles sairiam por todo o mundo, como testemunhas de Jesus. Prosseguiriam o ensino e as obras de Jesus. Seria como Jesus havia dito: "Quem vos ouve a vós, a mim me ouve; quem vos rejeita a vós, a mim me rejeita" (Lc 10:16). Cumpre-se o que Jesus havia prometido em Lc 6:40 — que o discípulo seria como seu mestre. Por isso, visto que o Espírito Santo havia vindo, Pedro podia curar "em nome de Jesus" (3:6, 16, etc.) ou simplesmente declarar, "Jesus Cristo te dá saúde" (9:34). Era uma Pessoa, porque Jesus estava ativo e presente no mundo — não como antes, mas em suas testemunhas inspiradas pelo Espírito Santo. É digno de nota que neste livro o Espírito Santo é chamado de Espírito de Jesus (16:7). É nesse contexto que devemos entender a ênfase que Lucas dá à pessoa de Paulo. Isso não aconteceu a fim de defender a memória de Paulo, como às vezes alguém sugere, mas para apresentá-lo como o "modelo das testemunhas". Na mente de Lucas, a grande importância deste homem jazia no fato de ele não ser um apóstolo — não, pelo menos, no sentido em que Pedro era — Paulo não foi um dos Doze (embora Lucas soubesse que Paulo usava esse título). Diferentemente de Pedro, Paulo não havia estado com Jesus nos dias de sua encarnação (cp. 1:21 s.), nem estivera presente no dia do derramamento do Espírito Santo.

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Entretanto, as realizações de Paulo não foram inferiores às de Pedro (Lucas, muito deliberadamente traça uma série de paralelismos entre Pedro na primeira metade do livro, e Paulo, na segunda metade, enfatizando precisamente este ponto). Assim é que Paulo representa a continuidade da obra de Jesus, desde os tempos dos apóstolos até os dias do próprio Lucas. Visto ser Paulo um crente dos últimos dias, sua vida e obra — mais do que as dos Doze —constituía um ideal a ser colocado diante dos demais crentes que não haviam estado presentes naqueles excitantes primeiros dias do início da igreja. A semelhança de Paulo, todos os crentes poderiam testemunhar eficazmente para Jesus Cristo. Em todos os crentes, e não só na primeira geração de discípulos, o Senhor estaria prosseguindo sua obra. Fica claro que Lucas estava escrevendo para crentes (representados por Teófilo), o que explica os numerosos temas diferentes espalhados pelo livro todo. Um desses é o do cumprimento profético. Em certo sentido, o livro todo de Atos pode ser considerado uma espécie de comentário de um texto: "Bem-aventurados os olhos que veem o que vós vedes. Pois vos digo que muitos profetas e reis desejaram ver o que vedes, e não o viram, e ouvir o que ouvis, e não o ouviram" (Lc 10:23s.). Lucas desejava que seus leitores entendessem que constituíam um povo privilegiado e, sob essa luz, encorajá-los a prosseguir na obra. Um segundo tema é o da compatibilidade entre a igreja e o estado. Há nesse livro "uma atitude surpreendentemente irônica, e isso sem a menor sombra de dúvida, a respeito de Roma". Essa atitude tem sido explicada com frequência em termos de um hipotético interesse da parte de Lucas em convencer as autoridades romanas de que o cristianismo era politicamente "seguro". Todavia, C. K. Barrett faz uma penetrante observação: "nenhuma autoridade romana jamais filtraria um volume substancial de coisas que considerava lixo teológico e eclesiástico a fim de obter um grãozinho de apologia relevante". É melhor, então, explicar essa motivação em termos de atendimento às necessidades dos crentes. Argumenta Maddox que na igreja dos dias de Lucas havia um ressentimento crescente contra o estado romano e, junto a esse ressentimento, uma inclinação para confrontar o estado e transformar as testemunhas de Cristo em mártires. Entretanto, essa não era a tática de Lucas. Daí decorre seu cuidado em "atrair a atenção para a inocência política dos cristãos, e assumir, no todo, uma atitude otimista quanto ao governo imperial". O ponto de vista de Lucas era que a própria essência do espírito dos cristãos consistia em "viver em paz com o poder soberano, tanto quanto fosse possível" e adotar "um estilo de vida sóbrio, inofensivo, e uma atitude de respeito para com o governo". Outro tema é que os judeus excluem-se da salvação por causa de sua persistente hostilidade contra o evangelho. Todavia, por que razão Lucas precisaria insistir neste ponto perante leitores cristãos? Talvez por que os leitores de Lucas corressem o perigo de mudar de pensamento. Talvez pudessem ser levados a pensar que os cristãos (não os judeus) é que estavam excluídos da salvação. Foi por essa altura que os judeus introduziram em sua liturgia uma oração em que suplicavam que os apóstatas ficassem privados de toda esperança, e que os nazarenos e todos os demais hereges se perdessem. As atitudes odientas endureciam-se de ambos os lados, de modo que Lucas poderia ter sentido que seria bom a igreja ver de que lado estavam os hereges e de que lado o povo de Deus. Por causa de sua forte tradição, os judeus exerciam grande influência. A atitude deles para com os cristãos está bem expressa em Jo 2:28-29: "Discípulo dele sejas tu! Nós somos discípulos de Moisés. Sabemos que Deus falou a Moisés, mas este nem mesmo sabemos de onde é". A resposta de Lucas foi mostrar que Jesus havia cumprido tudo quanto Deus havia anunciado por meio dos profetas, de modo que todo aquele que não o aceitasse estaria separado do povo de Deus e destruído (3:23). Os judeus — não os cristãos, seus leitores — é que eram apóstatas e hereges; eles é que estavam excluídos, e isto por sua própria escolha, visto que o evangelho havia sido pregado a eles desde o princípio. Todavia, se Atos havia sido escrito com a finalidade de atingir a esses objetivos didáticos,

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não somos porventura levados de volta ao ponto inicial do círculo, à questão da confiabilidade da história de Lucas? Podemos confiar em Lucas? Com frequência esta pergunta é formulada como se Lucas só pudesse ser uma coisa ou outra — um historiador ou um teólogo, mas não ambos ao mesmo tempo. Entretanto, não há razão alguma pela qual ele não poderia ser ambos simultaneamente, escrevendo com um propósito definido, mas ao mesmo tempo fornecendo-nos um relato confiável de tudo que aconteceu. Afinal, Lucas expressamente afirma que foi seu propósito teológico que o motivou: "Pareceu-me também a mim conveniente descrevê-los a ti, ó excelente Teófilo, por sua ordem, havendo-me já informado minuciosamente de tudo desde o princípio" (Lc 1:3). Observa muito bem Hengel: "O sistema radical 'redacional-crítico' tão popular hoje, que vê Lucas acima de tudo como um teólogo que inventa coisas livremente, é método que perde de vista o propósito real de Lucas, a saber, que este 'historiador' cristão propõe-se a relatar os acontecimentos do passado que proveem os alicerces da fé e sua extensão. Seu objetivo primordial não é apresentar sua própria 'teologia". Resumamos, então: se tivéssemos que localizar uma expressão "de cobertura" que caracterizasse Lucas o escritor, nenhuma palavra o descreveria melhor do que a palavra "pastor". Lucas "desejava escrever uma história, mas história que trouxesse uma mensagem a seus contemporâneos. Esta ênfase na motivação prática e pastoral dos escritos de Lucas deixa ampla margem para distinguirmos vários temas dentro desta descrição genérica e, ao mesmo tempo, mostra-nos onde se encontra o centro de gravidade dos interesses de Lucas. Ele se interessava primordialmente pelos problemas práticos, não pelos 'teológicos'". Preocupava-se com a igreja de seus dias: ela devia entender onde estava, e o que devia fazer. Todavia, Lucas escreve como alguém que tem certeza absoluta de haver cumprido seu dever sagrado, consciente e integralmente. Não descobrimos razões para duvidar dele. Conquanto sua história tenha ficado incompleta, podemos lê-la crendo que tudo quanto ele escreveu é Verdadeiro, e que pessoas comuns, cheias do Espírito Santo, realizavam Feitos incomuns, extraordinários. Aqueles milagres foram realizados “em nome de Jesus", sendo essa a razão por que "têm alvoroçado o mundo". Atos termina em 28:31, mas a história de Jesus prossegue onde quer que seu Espírito encontre homens e mulheres dispostos a crer, a obedecer, a dar, a sofrer e, se necessário, morrer por ele. Bibliografia David J. Williams

A TEOLOGIA DE ATOS Embora enfatizemos que Lucas estava escrevendo uma narrativa histórica acerca dos inícios do cristianismo, e embora rejeitemos o ponto de vista de que escreveu a fim de transmitir um conceito teológico específico, nem por isso devemos deixar de perguntar acerca da natureza do ponto de vista teológico que chega a expressar-se em Atos. Não há dúvida de que Lucas percebe que a história tem importante significado teológico, e de que ressaltou este significado conforme a sua maneira de marrá-la. Trata-se, naturalmente, dalguma coisa bem diferente da declaração de que reinterpretou a história, e que a colocou num arcabouço teológico estranho. 1. A Continuação do propósito de Deus na história A história registrada em Atos é considerada uma continuação dos atos poderosos de Deus registrados no Antigo Testamento e do ministério de Jesus. A frase corrente no jargão ideológico atual para expressar esta característica é "história da salvação". Neste contexto, a frase se refere a certo modo de entender os vários eventos da vida de Jesus e da igreja primitiva como ações históricas nas quais se revela a atividade do próprio Deus. A fé cristã se orienta em direção do Deus que Se revelou no palco da história como Salvador. Este modo de entender a fé às vezes se compara com o conceito "existencialista", segundo o qual a fé é essencialmente independente dos fatos históricos. De fato, chegou a ser alegado que, originalmente, a mensagem cristã teve caráter basicamente "existencial"; era

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uma proclamação da salvação divina com pouco ou nenhum apoio histórico, e que exigia a fé e a obediência da parte dos ouvintes. Lucas, conforme se alega, transformou esta "mensagem" em relato histórico acerca de Jesus, transformando a história de Jesus em parte da continuação dos atos de Deus na hitória; aquilo que originalmente era "o fim da história" acabou sendo "o meio da história". Trata-se, aqui, de uma falsa interpretação das evidências. Nunca existiu uma mensagem "existencial" que independesse da história; pelo contrário, o tipo de apreciação oferecido por Lucas da história da salvação era o modo original de o cristianismo entender os fatos. Contrastar as abordagens "da história da salvação" e "existencialista" é produzir uma antítese falsa. A verdade é, pelo contrário, que os fatos históricos, nos quais se via que Deus estava atuante, exigem uma resposta existencial de dedicação e obediência a este Deus. Fora destes fatos históricos não pode haver base alguma para a fé. Não se quer dizer com isto que a fé cristã é a fé em certos eventos, nem que a fé é possível somente na condição de comprovar-se que certos eventos ocorreram e que foram atos de Deus. Significa, isto sim, que se há negação da realidade dos eventos, logo, não há base para a fé: "Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados" (1 Co 15:17). Devem ser notadas várias facetas importantes desta consideração básica. Em primeiro lugar, os eventos que se registram em Atos foram levados a efeito por meio da vontade e do propósito de Deus. A história da morte e da ressurreição de Jesus é o exemplo mais óbvio de um evento que remonta até o "determinado desígnio e presciência de Deus" (2:23), mas o mesmo se pode dizer dos eventos na vida da igreja; destarte, subentende-se, por exemplo, que a oposição que a igreja experimentou era da mesma natureza da oposição a Jesus, divinamente profetizada (4:27-29). Segue-se, em segundo lugar, que a vida da igreja realiza-se, segundo este conceito, como cumprimento das Escrituras. As profecias feitas no Antigo Testamento governavam o decurso da história da igreja - o derramamento do Espírito e a proclamação da salvação (2:17-21), a missão aos gentios (13:47) e a incorporação deles na igreja (15:16-18), e a recusa dos judeus como um todo no sentido de responderem ao evangelho (28:25-27). Em terceiro lugar, a vida da igreja foi dirigida por Deus em etapas cruciais. Às vezes o Espírito dirigia a igreja naquilo que deveria fazer (e. g. 13:2; 15:28; 16:16). Noutras ocasiões, anjos falavam a missionários cristãos (5:19-20; 8:26; 27:23), ou vieram mensagens através dos profetas (11:28; 20:11-12). Nalgumas ocasiões, o próprio Senhor aparecia aos Seus servos (18:9; 23:11). Em quarto lugar, o poder de Deus revelava-se nos sinais e maravilhas operados em nome de Jesus (3:16; 14:3). Como resultado, pode-se dizer que o próprio Deus realizou a obra da missão cristã (15:4). 2. A missão e a mensagem Atos é um livro a respeito da missão. Não seria injusto adotar 1:8 como resumo do seu conteúdo: "Sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém, como em toda a Judéia e Samaria, e até aos confins da terra". O propósito da igreja cristã era testificar de Jesus. Num sentido especial, foi esta a tarefa dos Doze, que tinham estado com Jesus durante o Seu ministério na terra e que O viram ressuscitar dentre os mortos (1:21-22), e, portanto, eram especialmente equipados para darem testemunho a Israel. Mesmo assim, a tarefa não era de modo algum confinada aos Doze, e muitos outros cristãos fizeram a sua parte na evangelização. A mensagem que se proclamava se expõe numa série de discursos públicos, espalhados por todas as partes do Livro. Em termos gerais, o assunto era Jesus, ressuscitado dentre os mortos por Deus, depois de ter sido crucificado pelos judeus, que passou a ser

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declarado Messias dos judeus e Senhor, e, portanto, a fonte da salvação. Foi através dEle que foi oferecido aos homens o perdão dos pecados, e foi a partir dEle que veio à igreja o dom do Espírito. Não fica claro em Atos de que modo Jesus funciona como Salvador, não se faz uma ligação muito estreita entre a Sua morte e a possibilidade da salvação (a não ser em 20:28), e obtém-se a impressão de que, realmente, foi por virtude de ter sido ressurreto dentre os mortos e exaltado pelo Pai que Jesus recebeu a autoridade para outorgar a salvação e levar a efeito os Seus atos poderosos na igreja. É, portanto, a ressurreição e a exaltação de Jesus que permanecem no centro da pregação em Atos.

As bênçãos que se associam com a salvação se resumem como segue: o perdão dos pecados e o dom do Espírito. Este último se manifestava em experiências de júbilo e de poder espiritual. Atos pouca coisa menciona acerca da experiência paulina da união com Jesus, e alguém pode talvez ser tentado a pressupor que a religião de Lucas é menos mística. Seria mais correto dizer que Lucas descreve a mesma experiência cristã básica que Paulo anuncia, só que emprega terminologia diferente. O lugar concedido em Atos à oração e às visões, bem como às experiências carismáticas tais quais o falar em línguas e profetizar, indica que há um elemento real e profundo de comunhão com Deus neste livro. O enredo principal da história em Atos diz respeito à expansão desta mensagem. Começa com a existência de um pequeno grupo dos seguidores do Jesus terrestre, reunido em Jerusalém, e descreve como, sob o impacto do Espírito Santo, tornaram-se testemunhas de Jesus e reuniram um número sempre maior de convertidos. Os primeiros capítulos retratam o crescimento e consolidação do grupo em Jerusalém. A partir do capítulo 6, to-mamos consciência dos horizontes que se alargam. Muitos sacerdotes se convertem, e, ao mesmo tempo, o testemunho cristão atinge várias sinagogas que se associavam com a Dispersão judaica em Jerusalém. Na medida em que a perseguição levou à fuga de Jerusalém de muitos cristãos, a mensagem começou a espalhar-se na área maior da Judéia, e depois deu um passo decisivo para a frente com a conversão dalguns samaritanos e até de um viajante da Etiópia. Já no capítulo 9 (v. 31), o autor pode falar da "igreja . . . por toda a Judéia, Galileia e Samaria". Com a inclusão da Samaria, no entanto, foi feito o avanço mais importante em direção de pessoas que não eram completamente judias, e logo depois disto, vários eventos convenceram a igreja de que era vocacionada para levar as boas novas aos não-judeus. No princípio, havia contatos com gentios que já adoravam a Deus nas sinagogas, mas houve pouca demora antes de outros gentios também serem atraídos pela mensagem. Uma vez que a igreja se estabelecera firmemente em Antioquia, a missão aos gentios veio a ser uma política bem-estabelecida, e lançava-se da base de Antioquia uma missão deliberada e organizada. Embora Pedro fosse a figura principal nos dias iniciais da igreja em Jerusalém, que a guiou desde o princípio até o ponto em que foi reconhecido que o evangelho era para os gentios, foi Paulo quem desempenhou o papel principal em desenvolver a missão baseada em Antioquia; a segunda parte de Atos é essencialmente a história de como Paulo, em cooperação com ou-tros evangelistas, passou a estabelecer igrejas na Ásia Menor e na Grécia, de maneira que, já no capítulo 20, o evangelho tinha sido proclamado de modo eficaz em todas as partes do mundo do Mediterrâneo oriental, e Paulo consegue falar da sua obra ali como fato consumado. Mesmo assim, ainda estamos apenas no capítulo 20, e ainda falta quase a quarta parte do Livro. O que ali temos é um relato de como Paulo voltou das suas viagens, e chegou em Jerusalém, onde foi preso por crimes falsamente imputados a ele; a narrativa descreve seus vários comparecimentos diante de tribunais e governadores, no decurso dos quais se defendeu diante de judeus e romanos, e protestou a sua inocência, que, em efeito, foi confirmada pelas autoridades romanas. Finalmente temos, com muitos pormenores, a narrativa da sua viagem para Roma. Em termos gerais, pode-se dizer que o propósito do relato é mostrar como o evangelho, na pessoa de Paulo, chegou a Roma, mas fica claro que a história em Atos, que começa como uma história da expansão missionária, também tem outros alvos. Devemos perguntar se outros elementos teológicos acham lugar em Atos.

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3. O progresso a despeito da oposição Atos se ocupa, igualmente, com a oposição que cerca a expansão do evangelho. "Através de muitas tribulações nos importa entrar no reino de Deus" (14:22). Lucas reconhece que, assim como o caminho que Jesus seguiu levou ao Seu assassinato judicial, assim também o caminho da Palavra de Deus está cerceado por oposição. Começa com a zombaria dirigi-da contra os apóstolos no dia do Pentecoste, e continua na forma dos esforços do Sinédrio para forçá-los a guardarem silêncio acerca de Jesus. Chega a um auge rápido na morte do primeiro mártir, Estêvão, e na onda de perseguição que seguiu após a sua morte. Um rei judeu procurou cair nas boas graças do povo, ao mandar matar Tiago, e foi somente um milagre que salvou Pedro da mesma sorte. Quando os missionários avançaram para o mundo romano, a oposição os seguia de perto. Usualmente, partia dos judeus, que eram contrários à evangelização dos gentios; mesmo assim, em muitos casos os judeus conseguiram obter apoio dos simpatizantes pagãos, na prática de atos de violência contra os missionários. Ocasionalmente, estes distúrbios fizeram com que os missionários fossem levados diante dos magistrados. A atitude destes últimos era ambivalente. Às vezes, estavam bem dispostos a administrar justiça sumária contra pessoas que, segundo parecia, eram os causadores de perturbações sociais. Noutras ocasiões, porém, surgem, não bem como defensores dos missionários, mas pelo menos como sustentáculos da lei, sem terem preconceitos ou serem interesseiros, que reconhecem que as atividades dos missionários não são, de modo algum, contrárias às leis e aos costumes de Roma. O paradigma é o caso de Paulo, e é o interesse que Lucas tem neste tema que o levou a dedicar tão grande espaço à descrição do período do cativeiro daquele. Aqui, Lucas torna bem claro que Paulo não ofendeu as leis de Roma, e que, em certo sentido, somente uma tecnicalidade jurídica impediu que fosse solto pelo governador romano. Ao mesmo tempo, porém, a história sugere que os governadores romanos não estavam completamente livres de culpabilidade ao tratarem do caso. Enquanto os governadores estavam dispostos a sacrificar pessoas para conservar as boas graças dos judeus, e a buscarem subornos da parte dos réus, os cristãos teriam que esperar algo menos do que a justiça. Lucas, portanto, revela ter consciência das duras realidades da vida; por mais inocentes que os cristãos fossem, ainda podiam saber que seriam vítimas da injustiça. No que diz respeito aos judeus, as acusações deles contra Paulo eram que procurou profanar o templo, e, de modo geral, que promovia uma heresia judaica por onde quer que passava. A primeira destas acusações (que pouco mais era do que um pretexto para a sua prisão) é simplesmente negada; pelo contrário, Paulo é apresentado como sendo um adorador judeu que cumpre as leis. A segunda acusação é refutada pelo argumento de que Paulo estava apenas adorando e servindo a Deus segundo a maneira que foi registrada no Antigo Testamento, e que era, e continuava sendo, um fariseu quanto às suas convicções. Noutras palavras, o cristianismo é o judaísmo verdadeiro. Esta lição básica se ensina extensivamente, mas fica claro que os judeus não se impressionavam com ela, embora alguns entre os fariseus tivessem alguma simpatia com o argumento. Aqui, também, Lucas nada mais pode fazer senão apresentar a dura realidade de que muitos judeus se recusaram a aceitar a declaração dos cristãos, no sentido de o cristianismo ser o cumprimento do judaísmo. Ao mesmo tempo, Lucas emprega o tema para indicar que, do ponto de vista romano, o cristianismo devia ser encarado como desenvolvimento legítimo do judaísmo, e que devia, portanto, receber a mesma posição privilegiada de religião tolerada dentro do Império; as discussões entre os judeus e os cristãos são teológicas quanto à sua natureza, e delas não toma conhecimento o direito romano. Diante desta oposição, vêm a lume dois fatos importantes. O primeiro é que os cristãos são chamados a ficarem firmes e a serem fiéis, a despeito das tribulações que devem

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suportar. Quando recebem a proibição de pregar, sua resposta é uma recusa desafiadora. Certamente, há a necessidade de se retirarem das cidades onde a sua pregação é proibida, mas simplesmente continuam a evangelização onde acharem a oportunidade; o manda-mento nos Evangelhos não exigia que continuassem a batalhar em situações onde não eram benvindos; pelo contrário, depois de fielmente terem dado testemunho, deviam avançar para outras localidades (Lc 9:5). No julgamento de Paulo, emerge outro aspecto. Paulo emprega o tribunal da justiça como lugar onde dá testemunho público; sua preocupação não é defender a sua própria pessoa, mas, sim, proclamar o evangelho (Lc 21:12-15). A oposição fica sendo uma ocasião para a evangelização, o que também foi o caso quando Pedro e Estêvão compareceram em julgamento. O outro fato é que, a despeito da oposição, a Palavra de Deus continua o seu progresso triunfante. A mão de Deus está com os missionários mesmo no meio da perseguição. Não os remove do perigo e do sofrimento, embora ocasionalmente recebam a proteção divina dos seus inimigos. Aqui também, ressalta-se o realismo de Lucas: Tiago morre, mas Pedro sobrevive para enfrentar outras batalhas. Paulo é trazido em segurança de Jerusalém para Roma, a despeito de todos os tipos de obstáculos e perigos. O propósito declarado de Deus será cumprido, seja qual for a oposição. Atos é a história do progresso triunfante da Palavra de Deus. 4. A inclusão dos gentios no povo de Deus. Atos reflete as tremendas tensões que existiam na igreja primitiva no que diz respeito à base da missão gentia. Embora os Evangelhos registrem a comissão dada por Jesus, no sentido de Seus discípulos levarem o evangelho a todas as nações, a igreja era originalmente composta de judeus, e entre os judeus levava a efeito a evangelização. Diferentemente do que geralmente se acredita, Lucas não menciona a presença de gentios no dia do Pentecoste, a não ser os prosélitos judeus (2:10). Dentro de poucos anos, porém, a igreja acabou pregando o evangelho aos samaritanos, aos tementes a Deus que não eram circuncidados, e, finalmente, aos gentios pagãos. Lucas considera que esta progressão foi a vontade de Deus, profetizada de antemão; os eventos se desdobraram sem qualquer planejamento da parte da igreja. A igreja tinha que se entender com este fato. A essência do problema era se a ascensão da igreja produzira uma nova sociedade que era diferente do judaísmo. Visto que os primeiros cristãos eram judeus, era natural que vivessem como judeus — circuncidassem os seus filhos e vivessem de acordo com a Lei de Moisés, embora, reconhecidamente, pudesse haver variadas maneiras de interpretar a Lei, e o próprio Jesus demonstrara bastante liberdade no que dizia respeito a certos aspectos dela. O mesmo modo de vida podia ser esperado dos prosélitos judeus que se converteram ao cristianismo. Assim, o cristianismo podia ser encarado como sendo o cumprimento verdadeiro e apropriado do judaísmo; o Messias prometido viera, e trouxera renovação ao Seu povo. Dois fatores perturbavam esta suposição fácil. De um lado, ficou sendo sempre mais óbvio que os líderes judaicos e muitos entre o povo nato estavam dispostos a aceitar Jesus como o Messias, e uma evolução fácil desde o judaísmo do século I até o cristianismo, simplesmente mediante a incorporação da mensagem cristã de Jesus como Messias foi excluída. Na realidade, o judaísmo dos contemporâneos da igreja primitiva desviara-se da verdade. Foi Estêvão quem deu expressão à crítica dos judeus do seu tempo, ao alegar que deixaram de seguir fielmente à Lei de Moisés, e que o culto que prestavam a Deus no templo desagradava a Ele. Não é de se estranhar que este ataque provocasse forte oposição da parte dos líderes dos judeus, e talvez possamos suspeitar que o ponto de vista de Estêvão não foi imediatamente compartilhado por todos os membros da igreja. Mesmo

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assim, haveria forçosamente de ficar sempre mais óbvio que o judaísmo oficial se opunha à igreja, e considerava heréticas as suas opiniões. Havia, do outro lado, o problema da entrada dos gentios na igreja, que, além de intensificar a oposição contra a igreja da parte do judaísmo, também levantava urgentes perguntas dentro da igreja, quanto ao seu próprio caráter e modo de vida. Já houve muito debate acerca do modo de Lucas encarar a natureza da igreja. Um dos pontos de vista é que a encarava como instituição essencialmente judaica, o povo de Deus, que consistia em judeus, e do qual os judeus que se recusavam a arrepender-se ficavam cortados, e ao qual os gentios que se convertem podem juntar-se. O outro ponto de vista é que Lucas encarava o propósito de Deus como sendo o ajuntamento de um novo Israel, composto de judeus e gentios, e que descreve a progressiva separação entre a igreja e o judaísmo. A verdade provavelmente se acha nalgum lugar entre os dois extremos; nosso ponto de vista é que Lucas ressalta as origens judaicas da igreja e as suas raízes nas profecias do Antigo Testamento, mas ao mesmo tempo demonstra que se trata de um povo de Deus, composto de judeus e gentios crentes, no qual os judeus podem achar o cumprimento do judaísmo, e não se requer dos gentios que se tornem judeus. Como, porém, seria possível tal coisa no nível prático? O problema era duplo. Em primeiro lugar, os cristãos judeus poderiam ter comunhão com os gentios sem se tornarem "impuros" através do contato com pessoas que não observavam as leis de Moisés? Em segundo lugar, os gentios podiam entrar num relacionamento verdadeiro com Deus e Seu povo meramente através da aceitação de Jesus como Messias? Não se exigia da parte deles que observassem a lei judaica, inclusive a circuncisão? Lucas tinha total certeza de que os gentios não precisavam de ser circuncidados. Esta solução, no entanto, levou a lutas de consciência no íntimo dos cristãos judaicos, e por muitos anos continuou a existir um grupo de cristãos judaicos na Palestina, que cumpriam rigorosamente a Lei, isolados do restante da igreja. Lucas pinta um quadro de como o problema foi solucionado nos primeiros dias da igreja. Quando Deus derramou o Seu Espírito sobre os gentios, Pedro estava disposto a aceitá-los como membros do povo de Deus, e a comer juntamente com eles. A visão que recebeu da parte de Deus mostrou-lhe que já não devia haver uma distinção entre alimentos puros e impuros. Duvida-se, no entanto, se outros cristãos judaicos vieram rapidamente a compartilhar do ponto de vista de Pedro (e até ele mesmo achou difícil mantê-lo de modo consistente). Quando a igreja de Jerusalém se encontrou com representantes da Antioquia para considerar o assunto, o ponto essencial que foi aceito era que não havia necessidade de circuncidar os gentios. Ao mesmo tempo, porém, pedia-se a eles que evitassem ofensas aos seus colegas judeus, mediante a abstenção do alimento sacrificado aos ídolos, e da carne que não fora abatida do modo judaico, e mediante a observação dos padrões judaicos de comportamento sexual. Estas exigências têm algum relacionamento com as regras que os tementes a Deus, que adoravam nas sinagogas, já tinham aceito. O único aspecto realmente difícil foi a regra acerca da carne, e é possível que apenas se aplicava a refeições em comum com os judeus. Deste modo, foi possível a judeus que eram rigorosamente fiéis à Lei reconheceram a validez da missão aos gentios. Não se sabe até quando os regulamentos continuaram em vigor. É provável que fossem levados a sério em Jerusalém, especialmente sob a pressão sempre maior dos zelotes, a favor da identidade nacional e cultural judaica. O próprio Paulo vivia como judeu obediente à Lei, entre os judeus, embora protestasse fortemente a sua própria liberdade de consciência. É improvável, no entanto, que os regulamentos tenham tido aplicação durável ou de largo alcance, e é provável que tenham caído em desuso. Quando se ecoam em Ap 2:14, 20, parece que a regra acerca da carne fora deixada de lado, sem alarido. Lado a lado com a aceitação dos gentios, Lucas registra a recusa sempre maior da parte dos judeus, no tocante à aceitação do evangelho. A praxe regular de Paulo era começar a

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sua missão na sinagoga local, e quase chegamos a ter a impressão que somente quando os judeus recusavam o evangelho é que se voltava aos gentios (At 13:46). Talvez seja melhor dizer que a missão aos gentios se realizava somente depois de os judeus terem tido a oportunidade de ouvirem o evangelho antes. Paulo reconhecia que o evangelho era "primeiro do judeu e também do grego" (Rm 1:16). Quando os judeus rejeitaram o evangelho, Deus os rejeitou, fato este que foi simbolizado quando os missionários sacudiram contra eles o pó dos seus pés, e se voltaram aos gentios. A lição que se ensina em At 13:46 se repete com tremenda ênfase no auge do livro em 28:25-28. Há, porém, um fator cuja ausência é estranha em Atos: não há referência ao julgamento divino sobre Jerusalém, que figura com tanto destaque no Evangelho (Lc 13:34-35; 19:4144; 21-20-24; 23:28-31). Jerusalém, que figura no Evangelho como o lugar onde o Senhor foi rejeitado, fica sendo o lugar onde Ele ressuscita dentre os mortos, onde é derramado o Espírito, e onde a igreja começa a sua obra. Em Atos, é o judaísmo oficial, mais do que Jerusalém, que está sujeito à condenação por causa da sua recusa ao Evangelho. 5. A vida e a organização da igreja Lucas se preocupa em oferecer um retrato da vida e da adoração da igreja, sem dúvida como padrão para guiar e orientar a igreja dos seus dias. Baseados nos breves resumos nos primeiros capítulos de Atos (2:42-47; 4:32-37), chegamos a ter um retrato de grupos pequenos que se reuniam para a instrução, a comunhão, a oração e o partir do pão. O ingresso na igreja como membro era através do batismo com água. Lucas ressalta especialmente a importância do Espírito na vida da igreja. O Espírito é a possessão que todo cristão tem em comum, a fonte da alegria e do poder, e os líderes cristãos são pessoas que estão especialmente cheias do Espírito a fim de cumprirem suas várias funções. O Espírito guia a igreja na sua escolha dos líderes e na sua atividade evangelizadora, e isto de tal forma que Atos às vezes tem sido descrito como o livro dos "Atos do Espírito Santo".

Inicialmente, a liderança da igreja estava nas mãos dos apóstolos, juntamente com os anciãos, e a igreja em Jerusalém ocupava um lugar importante entre as demais igrejas que foram surgindo subsequentemente. Havia anciãos nas igrejas locais, e atribui-se significância especial aos profetas e mestres, dos quais alguns, segundo parece, eram residentes, ao passo que outros eram mais itinerantes. Lucas diz tão pouco acerca da maneira de serem nomeadas tais pessoas, e das atividades delas, que não podemos tirar outra conclusão senão que não dava importância a estes aspectos. Mesmo assim ficamos sabendo como um apóstolo foi nomeado para substituir Judas, e como foram escolhidos sete homens para ajudarem os apóstolos. Fala-se em resumo como os missionários eram enviados pela igreja em Antioquia, e como Paulo nomeava anciãos nas igrejas que fundava. Estas evidências bastam para demonstrar que, para Lucas, os fatores de significância eram as qualidades espirituais das pessoas escolhidas e a orientação do Espírito nas reuniões onde eram nomeadas. Além disto, aprendemos alguma coisa acerca da obra dos missionários. O princípio do trabalho em equipe foi estabelecido desde o início, e, na sua maior parte, os missionários viajavam em grupos de três ou mais; Pedro e Filipe (caps 8-10) eram exceções à regra. O modo de Lucas apresentar os eventos sugere a muitos leitores que devemos pensar que Paulo e seus colegas faziam "viagens missionárias", mas o estudo mais pormenorizado da narrativa demonstra que, na realidade, Paulo passava períodos consideráveis de tempo nos importantes centros populacionais. Não fica claro se Lucas reconhecia plenamente os princípios que Paulo seguia no seu trabalho, mas certamente nos fornece evidências que as viagens de Paulo estavam longe de ser giros nas estaçõezinhas onde se para só para apitar (na linguagem dos trens modernos).

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Lucas registra vários sermões como exemplo do modo em que era pregado o evangelho, e um exemplar de um discurso de Paulo diante dos líderes cristãos, com referência às responsabilidades destes (20:17-35). A variedade entre estes discursos missionários, bem como entre os discursos dos cristãos enfrentando julgamento às mãos de autoridades judaicas e romanas pretende, sem dúvida, ilustrar os modos diferentes segundos os quais os evangelhos era apresentado a grupos diferentes de pessoas, judeus e gregos, cultos e incultos, e é difícil resistir a impressão de que os sermões são apresentados como modelos para os leitores de Lucas empregarem na sua própria obra de evangelização. É matéria deste tipo que levou à caracterização de Atos como "edificante". Embora este termo, conforme Haenchen (págs. 103-110) o emprega, pareça pelo menos um pouco derrogatório, é uma palavra apropriada e respeitável para descrever este livro, que visava demonstrar aos cristãos dos dias de Lucas o que significa pertencer à igreja, e como devem continuar a viver de conformidade com o padrão que foi estabelecido nos primeiros dias. A história de Lucas tem sua estrutura bem firmada nas carreiras de dois líderes cristãos, Pedro e Paulo. Há paralelos interessantes entre os dois homens, e, além disto, pode-se traçar algum paralelismo entre as carreiras de Jesus e Paulo. Alguns estudiosos demonstraram grande engenhosidade no discernimento dos detalhes deste paralelismo, e talvez exageraram a sua presença. Em termos gerais, no entanto, a alegação é persuasiva, e demonstra que Lucas via para a vida da igreja e dos missionários dela um padrão na vida do seu Mestre terrestre.

Bibliografia I. H. Marshall

Igreja em Jerusalém Prefácio 1:1-5

O livro de Atos é a continuação do esforço literário histórico-doutrinário-apologético que Lucas enviou a fim de explicar a vida e a significação do ministério de Jesus, o Cristo, como os seus propósitos, a sua vida e as suas atividades foram continuadas por meio do Espírito Santo, nas pessoas dos apóstolos do Senhor Jesus, e depois através dos seus convertidos, na igreja cristã primitiva. O «...primeiro livro...», aqui mencionado, é o evangelho de Lucas. Em parte alguma, nem do evangelho de Lucas e nem do livro de Atos, se encontra o nome do autor; mas diversas considerações confirmam a grande probabilidade de que Lucas foi quem escreveu ambos esses volumes. Esta introdução assinala Lucas como homem típico de letras de sua época, porquanto existem muitos prefácios semelhantes, escritos por vários escritores antigos, dos tempos helénicos, tanto gregos como romanos. As obras mais antigas, escritas no idioma grego, não possuem tais introduções, como também sucedia nos escritos dos autores semitas. Essas introduções, quando haviam, usualmente declaravam o propósito da obra, fazendo referências literárias, às vezes a outros escritores. Esses comentários, poderiam ser de natureza negativa, fazendo declarações que não reconheciam os méritos alheios; noutras oportunidades o autor reivindicava possuir algum conhecimento especial, dizendo como fora capaz de chegar à posse de tal conhecimento, bem como que método ele planejava usar para transmitir tal material informativo. Algumas introduções igualmente dedicavam ou dirigiam frequentemente a obra escrita a alguém, geralmente alguém dotado de prestígio, a fim de que isso pudesse beneficiar a circulação e o emprego da obra. Outrossim, no começo de qualquer volume subsequente, o autor se referia aos seus

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volumes anteriores, fazendo alusão ao assunto abordado e relacionando-os ao seu presente esforço. Tudo isso, naturalmente, do ponto de vista do estilo literário do mundo helenista, greco-romano da época, servia de sólida evidência em favor da autoria comum dos diversos volumes da obra em questão; e quase todos os eruditos, a base desse fato, sem falarmos em algumas outras considerações, aceitam a autoria comum da obra Lucas-Atos. O evangelho de Lucas provavelmente circulou em primeiro lugar, e o livro de Atos deve ter sido publicado pouco mais tarde. Mas talvez esses dois volumes tenham sido lançados como duas seções da mesma obra. O quarto volume das «Histórias» de Políbio nos dão uma boa ideia desse estilo literário, quando diz: «No livro anterior, após apontarmos as causas da segunda guerra entre Roma e Cartago, descrevi a invasão da Itália pelas forças de Aníbal...Agora fornecerei uma narrativa dos acontecimentos contemporâneos na Grécia...» O prefácio de Lucas ao livro de Atos não declara o propósito com o qual escreveu ele a segunda porção de sua obra em dois volumes; mas o total da estrutura das sentenças indica que essa era a forma original do primeiro versículo, e que não houve qualquer mutilação da sentença. Lucas simplesmente não seguiu completamente o estilo corrente, apesar de tê-lo utilizado em linhas gerais. Não obstante, evidentemente transparece a intenção de mostrar o propósito do livro na frase que diz «...todas as cousas que Jesus fez e ensinou...», subentendendo que uma das finalidades principais do livro de Atos foi a de descrever como o Senhor Jesus deu continuação às suas obras maravilhosas, dando prosseguimento ao seu ensino aos homens, embora o fizesse através de seus representantes, e no poder de seu «alter ego», o Espirito Santo. Por essa razão é que diz Barnard (in loc): os escritos seguintes parecem ter por intenção dar-nos, e de fato nos dão, aquilo que Jesus continuou a fazer e a ensinar, depois do dia em que foi tomado para o alto». Ou então essa expressão pode ser simplesmente idiomática, expressando a totalidade daquilo que Jesus fez, mencionando o início de suas atividades. É assim que Vincent (in loc.) observa: «Em favor disso temos o fato de que os evangelhos sinópticos com frequência registram aquilo que foi feito ou dito de conformidade com o momento em que começou assim emprestando grande vivacidade às narrativas. (Ver Mt 11:20; 26:22,37; Mc 6:7; 14:19 e Lc 7:38)». Assim também, de conformidade com Meyer (in loc), essa expressão tenciona «...relembrar, com base nos relatos do evangelho, todos os muitos incidentes e acontecimentos, até à ascensão, nos quais Jesus aparece como realizador e mestre...» O livro de Atos daria reinício à narrativa a partir desse ponto. Seja como for, a outra interpretação também se reveste de certa verdade, sem importar se o autor sagrado queria expressar ou não essa questão, nesse ponto do seu livro de Atos. Muitos excelentes intérpretes acreditam naquilo que ele quis dizer expressamente, com suas palavras, que o livro de Atos dá a história da continuação das obras do Senhor Jesus. 1:1: Fiz o primeiro tratado, ó Teófilo, acerca de tudo quanto Jesus começou a fazer e ensinar,

O livro de Atos é a continuação da narração do levantamento e propagação do cristianismo, sendo que a primeira metade é contada pelo evangelho de Lucas. Atos 1:1 é passagem que deixa pouquíssima dúvida de que esses dois volumes—o evangelho de Lucas e o livro de Atos—resultaram de um único esforço literário. É perfeitamente possível que os manuscritos originais dessas duas obras tivessem sido postos a circular juntos; ou então que os dois volumes fossem apenas seções diversas da mesma obra. Ou então o livro de Atos pode ter sido publicado pouco depois do evangelho de Lucas, em volume separado, embora com a finalidade de ser lido e usado em conjunção com esse evangelho. Juntas, essas duas obras formam o mais completo registro histórico de como se desenvolveu a nova religião revelada, em torno da personalidade do Senhor Jesus Cristo, não como um ramo espúrio e herético do judaísmo, mas, bem ao contrário, a plena

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concretização dos alvos e ideais do judaísmo segundo revelado nas páginas do A.T. Pois o cristianismo bíblico preservou tudo quanto havia de bom e verdadeiro no judaísmo, embora o tenha ultrapassado em grau e em importância, de tal modo que com o cristianismo surgiu uma nova e poderosa modalidade de fé.

É exatamente o desenvolvimento dessa nova fé que o livro de Atos acompanha até cerca do ano 67.

Alguns intérpretes, como o famoso arqueólogo Sir William Ramsay, têm entendido que a palavra «...primeiro...» (no grego, protos), que aparece neste primeiro versículo, seja indicação da intenção do autor sagrado de escrever ainda um terceiro volume, visto que esse vocábulo grego usualmente fala de algo que se encontra em primeiro lugar, numa série de mais de dois. Por outro lado, se ele houvesse preferido a expressão «...proteros logos...», então teria querido expressar o primeiro dentre apenas dois itens. No entanto, outros bons gramáticos, como Blass, em sua obra «Grammatik das N.G.», pág. 34, Acta Apost., pág. 16, e em «Philology of the Gospels», mantém que a palavra grega «protos» é mero sinônimo de «proteros»; e a natureza geral da flexibilidade do grego helenista favorece esse argumento. Alguns estudiosos têm suposto que Lucas planejava realmente preparar um terceiro volume para a sua obra, com base na circunstância de que ele termina o seu segundo volume abruptamente, e que apesar de certamente ter continuado vivo para contemplar os anos subsequentes da vida e do ministério do apóstolo Paulo, bem como o seu martírio em Roma, não registrou essas ocorrências para nós em seu segundo volume, embora o livro de Atos sem dúvida alguma foi escrito após esses acontecimentos.

«...ó Teófilo...» O mesmo indivíduo é tratado como «...excelentíssimo Teófilo...» na passagem de Lc 1:3. Seu nome significa «aquele que ama a Deus» ou «amigo de Deus». Todavia, «Teófilo» era e continua sendo um nome próprio, e por si mesmo não tem qualquer intenção simbólica especial. Outros intérpretes pensam que esse nome tem por intuito dizer «leitor cristão» ou «prezado leitor cristão». Porém, o uso que se faz desse apelativo, tanto aqui como no evangelho de Lucas (bem como o uso de tais dedicações de livros, ou da dedicação de livros a pessoas importantes) confirma que o livro de Atos foi escrito para uma pessoa real.

Não possuímos qualquer informação sólida sobre esse personagem, entretanto, embora as conjecturas sobre a sua identidade se tenham mostrado intermináveis. Não temos meios para determinar quão dignas de confiança são tais conjecturas, pelo que também, para todos os propósitos práticos, elas não têm valor. Por exemplo, Teofilacto (in loc.) diz-nos que Teófilo pertencia à ordem dos senadores romanos, talvez um nobre ou príncipe que tenha estabelecido residência em Roma. Alguns pensam que Lucas dedicou a ele os seus livros meramente para emprestar prestígio aos mesmos, mas que na realidade o autor sagrado não o conhecia pessoalmente. Entretanto, é muito mais provável que Lucas conhecesse de fato a Teófilo; e a maioria dos intérpretes supõe que tal conhecimento era íntimo. No evangelho de Lucas, Teófilo é chamado de «excelentíssimo», e o notável arqueólogo Sir William Ramsay informa-nos que tal título era equivalente ao nosso «Vossa Excelência», indicando que a pessoa assim intitulada ocupava algum ofício elevado, mui provavelmente pertencente à ordem equestre.

O título «excelentíssimo» também é usado acerca de Félix, no trecho de At 23:26, e acerca de Festo, em At 26:25. Ora, esses homens eram procuradores romanos; e isso dá mais valor ainda à conjectura de Sir William Ramsay. Tal título era frequentemente usado na literatura greco-romana, para indicar altos oficiais do governo romano. O trecho de At 23:8 indica que Teófilo não era de nacionalidade judaica, porquanto foi mister que o autor sagrado lhe explicasse as crenças doutrinárias dos saduceus, o que qualquer judeu teria sabido mesmo sem qualquer explicação. Os capítulos vinte e sete e vinte e oito do livro de Atos possuem anotações geográficas crescentemente exatas, descrevendo a aproximação

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de Paulo da cidade de Roma. Alguns creem, por causa disso, que Lucas assim agiu parcialmente porque o seu leitor imediato, Teófilo, deveria estar bem familiarizado com aquelas regiões, e muito apreciaria a menção de tais lugares, porquanto estariam sendo descritos trechos de sua própria «terra natal».

B.H. Streeter, The Four Gospels -Nova Iorque: The Macmillan Co., 1925, pág. 539, sugere que Teófilo talvez fosse um crente secreto, de nome Flávio Clemente, sobrinho e herdeiro do imperador Domiciano. Sua esposa, Domitila, seria adepta secreta da igreja cristã, e ele mesmo era, pelo menos, um interessado no cristianismo. Flávio Clemente foi executado por ordem de Domiciano, no ano de 96 D.C. Tudo isso quereria dizer que o livro de Atos foi a primeira daquelas «apologias» dirigidas pela igreja cristã a membros proeminentes da casa imperial romana, todas as quais tiveram a finalidade de tentar obter a atenção razoável dos líderes romanos e a proteção oficial para o cristianismo, fazendo o mundo romano reconhecer que a nova religião revelada de forma alguma era uma seita política subversiva.

A obra Reconhecimentos Clementinos referem-se a Teófilo como rico residente de Antioquia, cidade essa que, de acordo com Eusébio, era a cidade natal de Lucas. Tradições cristãs posteriores transformam Teófilo em um bispo cristão; e ainda outras tradições, do segundo século de nossa era, confundem-no com um apologista do mesmo nome, que viveu perto do fim do século segundo da era cristã, o bispo Teófilo de Antioquia. Porém, a ideia de que o Teófilo para quem Lucas escreveu residia em Roma, e era membro da aristocracia romana, está mais de conformidade com os intuitos «apologéticos» do livro de Atos, porquanto essa «defesa» da religião cristã era mais necessária entre os membros da aristocracia romana do que entre os membros da própria igreja cristã. 1:2: até o dia em que foi levado para cima, depois de haver dado mandamento, pelo Espirito Santo, aos apóstolos que escolhera;

Os cinco primeiros versículos do primeiro capítulo do livro de Atos passam em revista os acontecimentos relatados pelo autor sagrado em seu evangelho, seguindo nisso a antiga forma literária que era empregada quando um autor qualquer escrevia uma série de livros, porquanto em cada volume subsequente apresentava um breve sumário do material exposto no livro anterior. A ordem das palavras, segundo o original grego, subentende que os «...mandamentos...» estão vinculados «...por intermédio do Espírito Santo...»—em outras palavras, os mandamentos foram dados por meio do Espírito Santo, e não que o Senhor Jesus «escolhera» os apóstolos por intermédio do Espírito Santo, apesar disso também ser uma verdade. Nenhuma descrição específica, entretanto, é dada no tocante a quais seriam esses mandamentos, apesar de existirem duas possibilidades a respeito:

1. Pode tratar-se de uma referência à mensagem geral e aos mandamentos do Senhor Jesus.

2. Mais provavelmente, todavia, trata-se de uma alusão aos mandamentos dados pelo Senhor aos discípulos, no sentido de que deveriam esperar pela vinda do Espírito Santo. Tais palavras, assim sendo, introduziriam aquilo que é mais especificamente descrito nos versículos quarto e quinto, que aparecem em seguida.

Se por acaso houve uma fonte informativa aramaica por detrás desta seção, então o vocábulo grego «dia» (por intermédio) poderia traduzir a ideia de «no caso de» ou «concernente a». Isso significaria, portanto, que ele (Cristo) dera mandamentos «concernentes» ao Espírito Santo. E realmente, parece ser esse o sentido do trecho, sem importar se houve ou não uma fonte informativa em aramaico, por detrás desse material histórico.

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A ascensão do Senhor Jesus é especificamente mencionada neste versículo como um dos acontecimentos que o autor sagrado registrava em seu primeiro tratado, que foi o evangelho de Lucas. (E isso é amplamente comentado no décimo primeiro versículo deste mesmo capítulo).

O evangelho de Lucas começa com a narrativa da encarnação de Cristo e termina com a sua ascensão. Este último evento era a condição esperada pela vinda do Espírito Santo—porque o Espírito de Deus não poderia vir enquanto Jesus não ascendesse ao Pai. Dessa forma, Lucas deixou registrado como essa condição teve cumprimento; e agora procede a fim de narrar acerca da ascensão de Cristo. Na realidade, esta passagem é a única descrição que possuímos sobre o evento, a grande referência bíblica que temos a respeito. O retorno do Senhor Jesus ao Pai não ocorreu enquanto não foram tomadas plenas provisões para satisfazer à necessidade de dar continuação à sua obra, no mundo, no interesse da redenção da humanidade. Essa provisão foi feita através dos apóstolos de Cristo e da igreja que eles fundariam—e esses apóstolos e essa igreja foram dotados da energia do Espírito Santo, o «alter ego» de Jesus Cristo. O Senhor Jesus sempre se mostrou um mestre extraordinário, o que é fortemente enfatizado nos evangelhos de Lucas, Mateus e João, porquanto até mesmo por ocasião de sua ascensão, ele ensinou sobre a vinda do Espírito Santo, algo em que devemos focalizar mais a nossa atenção, vivendo numa época que dá atenção quase exclusiva ao evangelismo, em que a igreja cristã se olvidou quase inteiramente de sua tarefa paralela de ensinar os convertidos a guardarem todas as coisas que o Senhor Jesus mandou. 1:3: aos quais também, depois de haver padecido, se apresentou vivo, com muitas provas infalíveis, aparecendo-lhes por espaço de quarenta dias, e lhes falando das coisas concernentes ao reino de Deus.

Com base nos evangelhos sinópticos, incluindo o de Lucas, poderíamos supor que Cristo Jesus ressuscitou, apareceu aos seus discípulos e subiu aos céus no mesmo dia, porquanto não há qualquer distinção cronológica no que concerne às diversas aparições do Senhor. O evangelho de João informa-nos que a aparição de Cristo a Tomé teve lugar uma semana após a ressurreição, e o evangelho original de João termina nesse ponto. O epílogo (constante do vigésimo primeiro capítulo, mui provavelmente acrescentado pelo mesmo autor sagrado) é que nos historia outras aparições de Cristo. E é com base no epílogo do evangelho de João que podemos supor a passagem de um período mais extenso que o de uma semana, entre a ressurreição de Cristo e a sua ascensão aos lugares celestiais. É somente o livro de Atos que narra especificamente que houve um intervalo de nada menos do que quarenta dias (como está em 1.2 da nossa revista), entre essas duas extraordinárias ocorrências. Quando chegou a festa de Pentecoste, já se tinha passado um total de cinquenta dias após a ressurreição. Por conseguinte, devemos a este documento histórico, que é o livro de Atos dos Apóstolos, o conhecimento que temos da cronologia desses grandes fatos da vida de Cristo e dos primeiros passos da igreja cristã.

Existem neste terceiro versículo diversas expressões que merecem a nossa atenção, a saber:

1. A expressão aqui usada, no grego, «optanomenos», que em nossa tradução aparece sob a forma «aparecendo-lhes», é utilizada exclusivamente neste trecho bíblico, em todo o N.T. Entretanto, na versão Septuaginta do A.T. (tradução grega do A.T. hebraico), a expressão é utilizada para indicar auto manifestação do Senhor Jeová, no deserto. (Ver Nm 14:14).

2. A expressão aqui traduzida por «depois de ter padecido», que algumas traduções substituem por «depois de sua paixão», e consiste em uma referência geral à totalidade dos sofrimentos de Cristo, em benefício da humanidade, é utilizada somente nesta passagem. (Ver o primeiro parágrafo, acima, onde há referências a comentários sobre essa particularidade. Com relação a isso, Humphrey ( Commentary on R.V. ) diz: «...palavra por

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demais sagrada para ser eliminada deste único trecho onde ela ocorre na Bíblia». Com isso esse escritor expressou o desejo de que todos os tradutores tivessem retido a tradução «depois de sua paixão».

3. O termo grego aqui traduzido por «provas incontestáveis» expressa um uso técnico que indica certas evidências convincentes e formais, em prova cabal favorável a algum caso. Trata-se de vocábulo aparentado com o termo grego «tekmar», que significa um limite, um alvo ou uma finalidade fixos. Portanto, o sentido desse vocábulo é algo fixo, determinado, razão pela qual algumas traduções têm preferido traduzir esse vocábulo grego por «provas incontestáveis» (como nossa versão portuguesa; ou algum paralelo similar), ao invés de simplesmente «provas», apesar de que outras traduções têm preferido essa forma mais simples (como a RSV, em inglês). Acerca disso diz Robertson (in loc.) o seguinte: «Lucas não hesita em aplicar a palavra definida, 'provas', à evidência em prol da ressurreição de Cristo, depois de haver investigado plenamente os acontecimentos, qual historiador científico que era. Aristóteles estabeleceu certa distinção entre 'tekmerion (a palavra grega usada neste texto) (prova) e 'semeion' (sinal), como o fez igualmente Galeno, o escritor médico».

4. As palavras «quarenta dias» não servem somente para indicar o tempo real durante o qual o Senhor Jesus se demorou ainda no mundo, antes de sua ascensão, depois de haver ressuscitado, mas servem também de número simbólico nas Escrituras. Assim é que Moisés esteve no monte durante quarenta dias (ver Êx 24:18), aguardando que lhe fosse transmitida a lei. O Senhor Jesus jejuou durante quarenta dias (ver Mt 4:2), o que para ele foi tempo especial de provas e de condicionamento, tudo no sentido de prepará-lo para o seu ministério. O trecho de I Rs 19:8 diz-nos que Elias foi capaz de caminhar durante quarenta dias, com a energia que lhe foi dada por uma refeição; e isso também foi um período de teste especial para ele, quando fugia de Jezabel. Outras instâncias desse número são os quarenta dias durante os quais o dilúvio foi crescendo cada vez mais sobre a face da terra (ver Gn 7:12); o desafio lançado por Golias às tropas de Israel (ver I Sm 17:16); a angústia sentida por Ezequiel em lugar de seu povo, por causa da iniquidade deste (ver Ez 4:6); e o tempo dado como prazo, a Jonas, para que anunciasse a destruição da cidade de Nínive (ver Jn 3:4). Por conseguinte, quarenta parece ser símbolo de conflito e provação, preparação e disciplina.

«Houve uma certa propriedade simbólica no tempo de triunfo em que Cristo passou sobre a terra, coincidindo com o período de conflito especial. Se indagarmos qual foi o caráter (se assim pudermos falar) da vida ressurreta de nosso Senhor, entre a sua manifestação aos discípulos, a história dos primeiros quarenta dias sugere parcialmente a resposta. Então, tal como antes, a sua vida, podemos acreditar, se caracterizou pela solidão e pela comunhão com o Pai, não mais limitado e sujeito à tentação, como foi antes, pelo contato com o poder do mal, mas uma vida de intercessão, como aquela que sé expressou na grande oração do décimo sétimo capítulo do evangelho de João». (E.H. Plumptre, in loc., no Ellicotfs Commentary).

Devemo-nos lembrar, naturalmente, que o Senhor Jesus não esteve o tempo todo, esses quarenta dias, em companhia dos seus discípulos, mas antes, apareceu-lhes em intervalos variados, durante esse período. Encontramos o registro bíblico de cerca de dezessete dessas aparições de Cristo após a sua ressurreição, certamente o suficiente para ficarmos convictos, o que capacitou Lucas a usar aqui a palavra grega nesta versão portuguesa traduzida por «provas incontestáveis». «...falando das cousas concernentes ao reino de Deus...» O conceito do «reino dos céus» é extremamente complexo nas páginas do N.T., variando com os diversos autores sagrados e chegando mesmo a ser usado de mais de uma maneira, pelo mesmo autor, de acordo com as circunstâncias. No livro de Atos, a ideia dominante é a dos resultados celestiais e espirituais resultantes da pregação dos apóstolos de Cristo e outros discípulos, os quais

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apresentaram aos homens os princípios básicos do seu reino e também prepararam os homens para participarem desse reino do alto, como cidadãos aptos para o mesmo. O livro de Atos também não exclui a sua ideia escatológica, que é a da vinda de um reino literal de Cristo, sobre a face da terra, conforme o mesmo é exposto nos evangelhos sinópticos; mas aqui esse evento é associado à segunda vinda de Cristo, e não ao seu primeiro advento, porque essa primeira vinda já tivera lugar, mas o reino dos céus não fora estabelecido, em face do fato de ter sido rejeitado. O evangelho de João usa o termo «reino dos céus» exclusivamente no sentido do «outro mundo», isto é, no sentido do reino do alto, daquele lugar e estado para o qual se dirigem aqueles que confiam em Jesus Cristo—por conseguinte, nesse quarto evangelho, «reino dos céus» é equivalente a vida eterna. (Ver Jo 3:3). O trecho de At 14:22 emprega essa expressão no sentido joanino. A passagem de At 19:8 parece ter-se utilizado da mesma a fim de dar a entender, em termos gerais, a mensagem que nos chega por intermédio de Cristo, o evangelho cristão em geral e o que isso significa para os homens. A passagem de At 20:25 também parece revestir-se desse sentido. O versículo final deste livro, At 28:31, também tem tal significação, mostrando-nos que esse é o sentido dominante deste volume. 1:4: Estando com eles, ordenou-lhes que não se ausentassem de Jerusalém, mas que esperassem a promessa do Pai, a qual (disse ele) de mim ouvistes.

Lucas dá prosseguimento ao sumário do material que havia exposto em seu primeiro tratado, o evangelho de Lucas, nisso seguindo a forma literária de sua época, entre os autores helenistas gregos e romanos, e que consistia em apresentar um sumário do livro anterior de uma série, agora que dava início a um novo volume, que acrescentava informações àquelas que já haviam sido dadas no primeiro livro. (Ver as notas expositivas relativas ao primeiro versículo, acerca desse método literário dos antigos). Os versículos quatro e cinco deste primeiro capítulo apresentam-nos um dos seus temas principais, se não mesmo o mais destacado tema do livro de Atos, isto é, o poder e as atividades do Espírito Santo no seio da igreja cristã primitiva, Espírito Santo esse que foi enviado como o grande mensageiro de Cristo a fim de completar a obra de Cristo entre os homens, que visava a redenção final deles, iniciada pelo Senhor Jesus durante a sua peregrinação terrena.

A ênfase sobre a obra do Espírito Santo é forte no evangelho de Lucas (ver Lc 2:27; 4:1, 14,18; 11:13,14). Mais forte ainda, porém, é essa ênfase no evangelho de João, onde aparece como tema verdadeiramente dominante. Já o livro de Atos destaca tão intensamente essa atuação do Espírito de Deus que com toda a razão tem sido denominado de «Atos do Espírito Santo». (Assim tachava Ecumênio, entre os antigos, além de muitíssimos intérpretes modernos). «...comendo com eles...» são palavras que podem ser simplesmente traduzidas por «reunindo-se a eles», «hospedando-se com eles» ou «acampando com eles» (quando usadas como expressão militar). Tais palavras se referem a uma ou mais das aparições do Senhor Jesus após a sua ressurreição, durante a qual falou-lhes sobre a necessidade de esperarem pelo Espírito Santo, acontecimento esse que teria lugar em Jerusalém. Não há aqui contradição alguma com a tradição que assevera que Cristo ordenou a seus discípulos se encontrarem com ele na Galileia, após a sua ressurreição (ver Mc 16:11), porquanto isso já havia acontecido por essa altura, sendo provável que foi ali que o Senhor falou da necessidade de voltarem a Jerusalém, a fim de aguardarem a vinda do Espírito Santo. A referência específica de que «comera» ou «se reunira» com os discípulos, provavelmente é a passagem encontrada em Lc 24:30,31,36-45. A promessa da vinda do Espírito Santo e a ordem para aguardarem-no em Jerusalém, se encontra em Lc 24:49. (Ver também Lc 12:11,12, no que concerne a essa ordem dada por Cristo para os seus discípulos esperarem em Jerusalém. Quanto a uma referência no A.T., ver Is 44:3 e Jl 2:28). Lange, in loc, pensa que a reunião aqui tencionada foi a reunião final, quando o Senhor Jesus deu as suas instruções finais aos discípulos.

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Alguns intérpretes antigos, seguidos por alguns estudiosos modernos, como Wordsworth, criam que essa ordem de Jesus aos discípulos, de que deveriam demorar-se em Jerusalém, tinha por finalidade incluir um período de doze dias de espera; mas isso não pode ser deduzido do próprio texto sagrado, embora seja exatamente o que aconteceu, segundo o ponto de vista histórico, pois a igreja foi criada por ocasião da vinda do Espírito Santo, e dali, para todas as partes do mundo civilizado de então é que se propagou. «Era apropriado que os discípulos não se afastassem de Jerusalém, não somente para que a nova lei, tal como a antiga, procedesse de Sião, e que a palavra do Senhor saísse de Jerusalém (ver Is 2:3), mas também para que o testemunho dos apóstolos fosse dado não para indivíduos não familiarizados com os fatos, mas aos habitantes da cidade onde Jesus fora crucificado e sepultado, e onde ressuscitara». (R.J. Knowling, in loc). «O pecado se torna conhecido por meio do Espírito, e por ele é que é aplicado o sangue da aliança; e, de fato, sem esse concurso, a ausência de salvação não pode ser percebida, e nem o valor do sangue da aliança pode ser devidamente avaliado. Quão apropriadamente ainda oramos, e quão necessária, portanto, é aquela oração que diz: 'Purifica os pensamentos de nossos corações pela inspiração de teu Santo Espírito, para que possamos amar-te perfeitamente, magnificando condignamente o teu nome, através de Jesus Cristo, nosso Senhor! Amém.' (Culto de Comunhão)». (Adam , Clarke, in loc). 1:5: Porque, na verdade, João batizou em água, mas vós sereis batizados no Espirito Santo, dentro de poucos dias. Neste ponto, Lucas cita o seu próprio evangelho (Lc 3:16). A declaração original provavelmente era bem conhecida, tendo-se originado possivelmente de muitas fontes informativas, posto que sem dúvida não havia declaração de João Batista mais bem conhecida que essa. No entanto, nos evangelhos, a declaração fora preservada pelo protomarcos, a fonte informativa básica do evangelho de Marcos, sem dúvida com base na tradição histórica preservada pela comunidade cristã da cidade de Roma. O evangelho de João, por semelhante modo, preserva essa declaração em forma quase idêntica, embora com base em diferente fonte informativa. (Ver Jo 1:33). Deve-se observar aqui a preservação da expressão traduzida neste ponto como «era verdade», o que, no livro de Atos, foi baseada diretamente da declaração encontrada em Lc 3:16, embora não se trate da afirmativa «em verdade...» que encontramos com frequência nas declarações do Senhor Jesus. Não obstante, trata-se de forte confirmação daquilo que se tencionava enfatizar, o que, neste caso, eram os ministérios de João Batista e do Senhor Jesus, mostrando que o ministério do Senhor era uma graduação acima do de João Batista, porquanto tinha alvos muito mais elevados. O livro de Atos, essencialmente falando, é uma descrição de como a promessa da vinda do Espírito Santo teve cumprimento, e o que isso significa para os homens. O Espírito Santo veio a este mundo como agente transformador e fortalecedor. O batismo do Espírito Santo capacita-nos para darmos prosseguimento à obra de Cristo, nos homens e entre os homens. Porém, a sua presença no indivíduo também visa ser agente de transformação, fazendo os homens serem transformados na imagem moral e metafísica de Cristo, a fim de que, por intermédio dele e de conformidade com o padrão de sua pessoa, os remidos venham a participar da natureza divina, o que é exatamente o que nos assegura o trecho de II Pe 1:4, a passagem de Rm 8:29. (Ver também Ef 1:23 e II Co 3:18). A tradução inglesa de Williams traduz esta última referência da seguinte maneira: «E todos nós, com o rosto desvendado, porque continuamos a refletir como espelhos o resplendor do Senhor, estamos sendo transformados à sua semelhança, de um grau de esplendor a outro, visto que isso se deriva do Senhor, que é o Espírito».

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O Espírito Santo é chamado de Senhor, nessa passagem de II Co 3:18, por ser ele o Senhor e o Mestre da vida humana que está sendo transformada segundo a imagem de Cristo, sendo especialmente essa a obra que ele está realizando entre os remidos. O batismo do Espírito Santo infunde no ser inteiro do crente o seu desejo e a sua vontade; porém, mais do que isso ainda, em estágios progressivos, infunde a própria natureza divina. Finalmente, ocorrerá uma nova criação, que atualmente existe apenas em seus estágios iniciais; e essa criação será uma nova ordem de seres, como duplicações do próprio «Logos» eterno. Essa é a elevada doutrina da graça, a principal doutrina do evangelho, apesar de andar quase inteiramente esquecida pela igreja cristã, onde o perdão dos pecados e a simples mudança de endereço para os lugares celestiais são enfatizados às expensas de qualquer verdade mais profunda, como se toda a mensagem do evangelho consistisse meramente nessas fases iniciais da obra de Cristo e do Espírito Santo na vida do remido individual. Neste versículo, as palavras de João são postas nos lábios do Senhor Jesus, e não atribuídas a João Batista. Provavelmente o Senhor Jesus falou em termos similares, mas a própria citação direta é, definidamente, aquela feita por João Batista. Na história da interpretação desse batismo do Espírito Santo, originalmente se entendia que era algo separado e distinto do batismo em água; mas, finalmente, veio a ficar ligado a essa ordenança externa, especialmente naquelas porções da igreja cristã onde eram exageradas a importância e as bênçãos decorrentes do batismo em água. Porém, essa associação do batismo do Espírito Santo e sua operação, com o batismo em água, labora em erro patente, porque se trata de duas coisas inteiramente separadas, porquanto em sentido algum o batismo em água pode realizar o que o batismo do Espírito Santo visa fazer no crente. Alguns intérpretes procuram mostrar que o batismo em água confere ao indivíduo aquilo que o batismo do Espírito Santo promete fazer, e usam o trecho de At 19:1-6 na tentativa de demonstrá-lo. Porém, apesar de ser verdade que o batismo cristão em água é exaltado nessa passagem do batismo de João, contudo, o sexto versículo, que descreve a imposição de mãos por parte dos apóstolos, que conferiu aos indivíduos envolvidos no relato o batismo ou plenitude do Espírito, aparece como algo separado e distinto, isto é, uma ação distinta do batismo em água, que aparece no quinto versículo daquele mesmo capítulo, sendo evidente que as duas coisas não têm por intuito ser entendidas como se fossem a mesma coisa, partes integrantes de uma mesma ação e bênção. As interpretações sacramentais do batismo em água, entretanto, têm exagerado e obscurecido o seu sentido, o qual, apesar de importante, não é o mesmo atribuído ao batismo do Espírito Santo. «O dom do Espírito é aqui denominado de batismo, sendo assim caracterizado como dom da plenitude mais abundante, como uma imersão em um elemento purificador e doador de vida... 'não muito depois destes dias': Essa declaração sobre o tempo em que seria outorgada tal bênção é sabiamente vazada de forma a produzir tanto uma alegre 'expectação' como também um 'apressamento', mediante a fé (ver II Pe 3:12), sendo assim exercitada a fé dos discípulos». «...foi o começo de um novo período de influência espiritualizadora, totalmente diferente de tudo quanto havia antecedido. (Ver At 2:17)». (Alford, in loc). «Agora foram informados de que seus espíritos haveriam de ser plenamente batizados, isto é, imersos no poder do Espírito divino, como haviam os seus corpos sido imersos nas águas do Jordão». (Ellicott, in loc). «A promessa, que deve ser entendida como promessa 'gratuita', dada sem solicitação, é o sentido invariável em que essa palavra é usada por todo o Novo Testamento; e essa

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palavra, e suas palavras compostas paralelas são as únicas palavras que indicam uma promessa, no Novo Testamento». (Vincent, in loc). Bibliografia R. N. Champlin

Cinquenta Dias At 1.1-26

O primeiro capítulo do livro de Atos é uma introdução. Os "atos" começam verdadei-ramente no capítulo 2, quando o Espírito Santo já capacitou os apóstolos e outros para agirem com eficácia. O primeiro capítulo estabelece uma ligação entre os Evangelhos, terminando com a ascensão e o início da história da igreja no Pentecostes. O conteúdo consiste em uma breve afirmação daquilo que ocorreu nos quarenta dias entre a ressurreição e a ascensão de Cristo (1-11), e é a única descrição que temos do que aconteceu durante os dez dias entre este período e o Pentecostes (12-26). Assim, este primeiro capítulo é de grande importância histórica. A. Os QUARENTA DIAS, 1.1-11 Embora esteja implícito que Jesus apareceu aos seus discípulos de tempos em tempos durante os quarenta dias, somente duas dessas aparições são mencionadas aqui. Na primeira (4-5), Jesus ordenou que eles esperassem pelo Espírito Santo prometido. Na segunda (6-9), Ele fez a promessa do poder para testemunhar. 1. O Mandamento (1.1-5) Este parágrafo pode ser adequadamente chamado de prefácio ou prólogo ao livro de Atos, embora alguns restrinjam o prólogo aos dois primeiros versículos. Talvez a melhor conclusão seja esta: "O livro de Atos começa com uma transição, e não com um prefácio". Na atualidade, os estudiosos no Novo Testamento geralmente opinam que a intenção do prefácio do Evangelho de Lucas (1.1-4) era a de servir também como o prefácio do livro de Atos. Lucas se refere imediatamente ao primeiro tratado (1). A palavra grega para "primeiro" é protos, que no grego clássico era usada para designar o "primeiro" de três ou mais itens. Com base neste fato, alguns julgaram que Lucas pretendia escrever um terceiro volume. Eles opinam que isto talvez ajude a explicar por que o livro de Atos termina tão abruptamente. Mas a maioria dos estudiosos da atualidade concordaria com Lumby, que escreve: "O uso de protos como a anterior ou a primeira entre duas coisas não era incomum no grego mais recente". Exemplos disso no Novo Testamento estão em Mt 21.28; 1 Co 14.30; Hb 8.7; 9.15; Ap 21.1. O uso de "primeiro" em lugar de "anterior" é comum na língua inglesa atual. A palavra grega para "tratado" é logos, que é traduzida como "palavra" em 218 de suas 330 ocorrências no Novo Testamento. Somente aqui ela é traduzida como "tratado". Mas este uso está confirmado por Xenofontes (século IV a.C), que se refere a um "livro" de sua obra Anabasis como um logos. O primeiro tratado é, sem dúvida, o Evangelho de Lucas, que também é dedicado a Teófilo. O Evangelho de Lucas e o livro de Atos são os dois livros mais longos do Novo Testamento. Juntos, eles totalizam cerca de uma quarta parte do conteúdo total. É provável que os limites destes dois livros fossem definidos pelo fato de que era impraticável elaborar um rolo de papiro com mais de onze metros, aproximadamente. O Evangelho de Lucas e o livro de Atos atingem, cada um deles, cerca de dez metros — um rolo suficientemente incômodo para se carregar!

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O nome Teófilo ("amigo de Deus", ou "aquele que ama a Deus") é encontrado somente aqui e em Lucas 1.3, onde ele é chamado de "excelentíssimo". Houve alguma especulação quanto ao motivo pelo qual o título é omitido aqui. Blaiklock menciona três possíveis motivos: "um aprofundamento da amizade, o abando do ofício ou a conversão ao cristianismo". Mas talvez a justificativa mais simples seja a de que Lucas não viu a necessidade de repetir o título. Lucas diz que no primeiro tratado ele escreveu acerca de tudo que Jesus começou não só a fazer, mas a ensinar. Muitos dos estudiosos mais recentes negaram que a palavra "começou" tenha qualquer significado, sustentando que se trata meramente de uma palavra auxiliar semita — "começou a fazer" significa um pouco mais que "fez". Mas F. F. Bruce acertadamente objeta esta opinião. Ele interpreta a frase da mesma maneira como o fazem muitos dos comentaristas mais velhos: "Da mesma maneira como o Evangelho nos conta o que Jesus começou a fazer e ensinar, assim também o livro de Atos nos conta o que Ele continuou a fazer e ensinar pelo seu Espírito na vida dos apóstolos, depois da sua ascensão".

A expressão em duas partes — fazer e ensinar — chama a atenção para os dois principais aspectos do ministério de Jesus — as suas obras e palavras. Ambas tinham em si o poder divino. Lucas indica que no seu primeiro tratado, o Evangelho que leva o seu nome, ele descrevera as palavras e as obras de Cristo até o dia em que Ele foi recebido em cima (2). E um fato intrigante que o Evangelho de Lucas, e somente ele, termine com uma descrição da ascensão. A expressão ter dado mandamentos é um particípio em grego, "tendo mandado". E melhor traduzido no singular — "ter dado mandamento" (ASV). Isto se refere à Grande Comissão (Mt 28.18-20), que foi o mandamento final de Cristo para os seus discípulos. Padecido (3) é usado apenas aqui no Novo Testamento significando o sofrimento e a morte de nosso Senhor. As primeiras versões em inglês apresentam a palavra paixão em cerca de meia dúzia de passagens, segundo a Septuaginta, que apresenta passio (grego, pathema, "sofrimento").

Apresentou (3) é a melhor tradução, em lugar de "mostrou". Literalmente, "Ele se colocou ao lado deles" nas suas aparições depois da sua ressurreição, de tal maneira que eles não poderiam duvidar que fosse Ele (cf. Lc 24.30-31). Infalíveis provas é uma palavra, "provas" (ASV). Mas existe uma outra mais forte (tekmerion), encontrada somente aqui no Novo Testamento. Ela significa "um sinal seguro, uma prova positiva". Thayer define isto como "meio pelo qual algo é certamente e plenamente conhecido; uma evidência indubitável, uma prova". Arndt e Gingrich dizem que significa "uma prova convincente, decisiva", e eles assim traduzem a frase: "muitas provas convincentes".

Sendo visto por eles por espaço de quarenta dias (lit., "durante quarenta dias") significa que Jesus aparecia aos seus seguidores periodicamente durante este período, como sabemos a partir dos relatos dos Evangelhos. Esta é a única passagem no Novo Testamento onde é mencionada a extensão do seu ministério pós-ressurreição. O assunto das conversas de Cristo com os discípulos durante esses quarenta dias era o Reino de Deus. Esta expressão, frequentemente encontrada nos Evangelhos, quer dizer o reinado ou a lei de Deus no coração dos homens. Sem dúvida, Jesus falava sobre a natureza espiritual do Reino. Mas a verdade penetrava muito lentamente. O fato de que os

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discípulos ainda vislumbravam este Reino como um reino político é demonstrado na sua pergunta no versículo 6: Senhor, restaurarás tu neste tempo o reino a Israel? Estando com eles (4) é uma única palavra em grego (synalizomenos). Cadbury e Lake adotam uma leitura alternativa, encontrada em Eusébio, synaulizomenos, que quer dizer "passar a noite com, hospedar-se com". Esta é evidentemente a base da tradução "estando com eles". Provavelmente, a melhor tradução é aquela encontrada na margem das versões mais atuais em inglês: "comendo com eles". Esta opinião é compartilhada por C. S. C. Williams em sua tradução "compartilhando refeições com eles".

Determinou, em grego, não é a mesma palavra encontrada no versículo 2. Abbott-Smith indica que a palavra usada na passagem anterior "aponta mais para o conteúdo do mandamento", ao passo que o termo encontrado aqui é usado "especialmente para as ordens transmitidas por um comandante militar". Os discípulos ainda não estavam adequadamente capacitados para a sua principal ofensiva contra o inimigo. Assim, o seu General ordenou que eles esperassem (lit., "esperar nas redondezas") até serem autorizados pelo Espírito Santo a executarem a sua tarefa. O mandamento de que não se ausentassem de Jerusalém sugere que os discípulos estavam planejando retornar ao seu território natal na Galileia. Os governantes judeus de Jerusalém tinham causado a morte do seu Mestre, e naturalmente esperava-se que perseguissem os seus seguidores. Além disso, os anjos no sepulcro vazio tinham avisado, por meio das mulheres, que os discípulos deveriam encontrar o seu Senhor ressuscitado na Galileia (Mt 28.7; Mc 16.7). Jesus os tinha encontrado ali (cf. Mt 28.16-20; Jo 21.1-14). Portanto, parece completamente lógico que os discípulos retornassem para lá. Mas o Mestre tinha outros planos para eles. Ele ordenou que esperassem em Jerusalém pela promessa do Pai, i.e., a promessa feita pelo Pai (cf. Is 44.2-5; Ez 39.28-29; Jl 2.28-29). Esta é uma promessa que de mim ouvistes (cf. Lc 24.49; Jo 14.16, 26; 15.26). Rackham observa que "a repentina mudança do estilo direto para o indireto (a expressão disse ele não consta no texto grego) é característico do estilo dramático de Lucas".

A afirmação do versículo 5 é intimamente correspondente às palavras de João Batista encontradas em Mt 3.11; Mc 1.8 e Lc 3.16. Da mesma maneira que Jesus repetira o principal texto da pregação de João (cf. Mt 3.2; 4.17), agora Ele também ecoava a antiga declaração de João Batista. Esta forte ênfase no batismo no Espírito Santo como maior e mais essencial do que o batismo nas águas antecipa o impulso central do livro de Atos. Qualquer cristianismo que negligencie o batismo pelo Espírito é incompleto e pré-pentecostal. Na verdade, ainda não se iguala à pregação de João Batista. Sem esse batismo, não teria existido o livro de Atos, e na verdade nem a Igreja de Cristo hoje. Sem o batismo no Espírito Santo como uma experiência pessoal, não existe uma capacitação adequada para uma vida vitoriosa e um serviço eficaz. A última frase do versículo 5 é, literalmente: "não depois destes muitos dias". Williams comenta: "A ordem curiosa das palavras... pode ser do aramaico (Torrey e Burney) ou possivelmente um latinismo (Blass). Ela provavelmente significa "não muitos dias depois de hoje".

2. A Promessa (1.6-11) Aqui se inicia um novo parágrafo. Isto está indicado claramente no texto grego pelo uso de hoi men oun — literalmente: "portanto eles verdadeiramente..." Esta fórmula introdutória aparece nada menos do que oito vezes no livro de Atos, além de cinco vezes em que men oun é usado com outro pronome. Esta aparição de Jesus aos discípulos em conexão com a ascensão é provavelmente uma variação da descrição de 4 e 5.

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Nesta reunião entre o Mestre e os seus discípulos, eles lhe perguntaram: Senhor, restaurarás tu neste tempo o reino a Israel? Williams comenta: "Eles esperavam um reino material, porque o Espírito ainda não havia descido sobre eles para dar-lhes uma concepção mais esclarecida sobre os fatos". De maneira similar, Lumby escreve: "A mudança do espírito que estabelece a pergunta neste versículo, para aquele segundo o qual Pedro pregou arrependimento e perdão a todos aqueles a quem o Senhor chamou (At 2.38,39), é uma das grandes evidências do milagre do Pentecostes".

Em certo sentido, não nos surpreende que os discípulos tenham feito essa pergunta. Na ressurreição, Jesus tinha triunfado sobre os seus inimigos. Não era esse o sinal para o estabelecimento do Reino? Além disso, o seu ministério ficara quase inteiramente restrito a Israel. Isto não indicava que as promessas do Antigo Testamento, da glória futura do povo de Deus, deveriam ser cumpridas, agora que o Messias tinha vindo? Ficara con-clusivamente provado, pela ressurreição, que Jesus era o Messias. Mas Cristo lembrou aos seus discípulos que a escolha da época adequada era um segredo pessoal do Pai (cf. Mt 24.36; Mc 13.32). Não lhes cabia conhecer tempos ou estações (7). A palavra grega para tempos é chronos, que significa simplesmente "o tempo no sentido de duração". Mas a palavra para estações (kairos) significa tempo "no sentido de um período fixo e determinado". Trench diz que as estações são "os períodos críticos que marcam época, pré-ordenados por Deus". F. F. Bruce assim destaca a diferença entre as duas palavras: "Chronous refere-se ao tempo que deve transcorrer antes do estabelecimento final do Reino; kairous, aos acontecimentos críticos que acompanham esse estabelecimento". Winn diz que os discípulos não conheciam "a duração do tempo, nem os momentos-chave".

Poder deveria ser "autoridade". A palavra grega não é dynamis, como é no versículo 8, mas sim exousia. Assim, significa propriamente: "liberdade para exercer a força ou a faculdade interior expressa por dynamis", portanto "direito" ou "autoridade". De maneira similar, Cremer chama a atenção para o fato de que exousia e dynamis são também encontradas em conexão íntima em Tucídides e Plutarco. Ele observa esta diferença: dynamis implica a "posse da capacidade de fazer sentir o poder", ao passo que exousia "afirma que o movimento livre está garantido para aquela capacidade".

Em Atos 1.8, está o versículo-chave deste livro significativo. Ele mostra, simultaneamente, o poder e o programa da Igreja de Jesus Cristo. O poder é o Espírito Santo. O programa é a evangelização do mundo. Para uma pessoa, reivindicar ser cheia do Espírito e apesar disso não estar vitalmente preocupada com as missões do mundo é equivalente a negar a sua profissão de fé. Quando o Espírito Santo enche o coração humano com o seu poder e a sua presença, Ele gera a necessidade de obedecer aos mandamentos de Cristo. O inverso também é verdadeiro: a Grande Comissão não pode ser realizada sem o poder do Espírito. Este versículo também indica as três principais divisões do livro de Atos: 1. O testemunho em Jerusalém (caps. 1—7); 2. O testemunho em toda a Judéia e Samaria (caps. 8—12); 3. O testemunho no mundo gentio (caps. 13—28). Assim, a Igreja seguiu a definição das suas atividades, dadas pelo próprio Senhor. A adequação deste esquema ao conteúdo do livro pode ser vista claramente. Todos os eventos registrados nos sete primeiros capítulos aconteceram em Jerusalém, ou nas suas proximidades — a ascensão de Jesus e a escolha de Matias (cap. 1), o Pentecostes e o primeiro sermão de Pedro (cap. 2), a cura do homem coxo e o segundo sermão de Pedro (cap. 3), a primeira perseguição e uma reunião de oração (cap. 4), a morte de Ananias e

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Safira e a segunda perseguição (cap. 5), a escolha dos sete e a prisão de Estevão (cap. 6), a defesa e a morte de Estêvão (cap. 7). Semelhantemente, os capítulos 8 a 12 descrevem a expansão dos testemunhos por toda a Judéia e Samaria. No capítulo 8, Filipe vai em direção ao Norte, até Samaria, e então para o Sul, em direção a Gaza (o Sul da Judéia). No capítulo 9, Saulo é convertido e Pedro evangeliza Lida e Jope (a oeste da Judéia, perto do Mediterrâneo). No capítulo 10, Pedro tem uma visão em Jope e ministra em Cesaréia — ambas na costa do mar Mediterrâneo (Cesaréia era a capital romana da Judéia). No capítulo 11, Pedro se apresenta em Jerusalém e uma igreja é fundada em Antioquia, na Síria (fora da Judéia e Samaria). No capítulo 12, temos a libertação de Pedro (em Jerusalém) e a morte de Herodes (em Cesaréia). Nos capítulos 13 a 28, encontramos a propagação dos testemunhos do Evangelho pela Ásia Menor, pela Macedónia, pela Grécia, e finalmente em Roma. Para o povo de Jerusalém, isto seria "os confins da terra". Na verdade, esta expressão é usada referindo-se a Roma em um livro apócrifo — Salmos de Salomão 8.16 (século I a.C). A palavra grega para poder, como já foi observado, é dynamis (cf. "dinamite", "dínamo"). Isto significa "poder, força". Alford diz que aqui ela significa "aquele poder, especialmente mencionado em 4.33, relacionado com o ministério de dar o testemunho da ressurreição; mas também com todos os outros poderes espirituais".

A primeira frase desse versículo afirma claramente que o poder (a virtude) vem quando o Espírito Santo vem. Isto porque Ele é poder. Não existe poder espiritual da parte de Deus, separado da presença do Espírito de Deus. É por isso que todo cristão precisa estar cheio do Espírito. Ser-me-eis testemunhas é, no melhor texto grego, "minhas testemunhas" (mou, em lugar de moi). Isto torna o assunto um pouco mais pessoal. O nosso testemunho de Cristo é subjetivo, baseado na experiência, e também objetivo, baseado na observação. A palavra testemunhas (tanto no singular quanto no plural) aparece treze vezes no livro de Atos. Os apóstolos deveriam ser testemunhas de Cristo, em primeiro lugar, em Jerusalém, tão logo recebessem o Espírito Santo ali (cf. 4). Em seguida, deveriam sair da capital e espalhar-se por toda a Judéia — de Jerusalém, a leste, até o rio Jordão; ao sul, para Hebrom; e a oeste, para o Mediterrâneo. Diretamente ao norte de Jerusalém está Samaria, habitada por povos que eram parcialmente judeus e parcialmente gentios. A antiga cidade de Samaria, capital do Reino do Norte de Israel, fora conquistada pelos assírios em 722 ou 721 a.C. As pessoas de melhor nível foram levadas como cativas e se estabeleceram em regiões a leste da Mesopotâmia. Ao mesmo tempo, as pessoas desses territórios do leste foram levadas a Israel. Esta política era adotada pelos assírios para romper com todo o espírito nacionalista e, dessa forma, evitar revoltas contra o seu poder supremo. Consequentemente, os samaritanos eram um tipo de raça mestiça, encarados com des-prezo pelos judeus da Judéia e da Galileia. Mas Jesus ordenou que os seus discípulos judeus os evangelizassem. O limite final da tarefa era até aos confins da terra. Alexander comenta: "aos não representa plenamente a preposição grega (heos), que só pode ser expressa por formas como até mesmo, tão longe quanto, sugerindo a ideia de grande distância".

Esta frase, até aos confins da terra, é encontrada na mesma forma em grego, na Septuaginta, em Is 48.20; 49.6; 62.11, assim como novamente em At 13.47 ("até aos confins da terra"), onde a citação é de Is 49.6. Ela enfatiza o fato de que o Evangelho deve ser transmitido às pessoas em todas as partes do mundo.

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Winn faz uma observação significativa sobre a mudança de direção que é enfatizada em Atos 1.8. Ele diz: "Israel já não mais esperará que as nações venham até ela, trazendo ofertas a Jerusalém (ver Is 2.3; 45.14; 60.4-7); ao contrário, as testemunhas de Jesus sairão de Jerusalém e irão até às nações". E acrescenta: "Pode uma igreja, que permanece no seu lugar e está satisfeita em ministrar simplesmente àqueles que vêm até ela, afirmar ser fiel ao seu mandamento?"

A ascensão é descrita nos versículos 9-11. Jesus foi elevado da terra às alturas e desapareceu em uma nuvem (9). Encontramos uma nuvem mencionada em relação à transfiguração (Mt 17.5; Mc 9.7; Lc 9.34). A nuvem era um símbolo da glória de Deus. Enquanto os discípulos tinham os olhos fitos no céu (10) — o verbo "indica um olhar fixo, imóvel, prolongado"— dois varões, que eram anjos, apareceram vestidos de branco (cf. Mt 28.3; Jo 20.12). Estes visitantes angelicais anunciavam a segunda vinda de Cristo (11), assim como já haviam anunciado o seu nascimento (Mt 1.20; Lc 1.26-35), e a sua ressurreição (Mt 28.5-7; Mc 16.5-7; Lc 24.4-7). Os anjos se dirigiram aos discípulos como varões galileus. Praticamente todos os seguidores de Jesus tinham vindo desta parte norte da Palestina. Para eles, foi feita a promessa de que esse Jesus - o texto grego assim afirma - haveria de vir novamente. Knowling comenta: "Se a menção a sua pátria, ao norte, lembrou aos discípulos que eles tinham sido anteriormente escolhidos por Cristo, e acerca de tudo o que Ele tinha repre-sentado para eles, o nome pessoal Jesus lhes asseguraria que o seu Mestre ainda seria um Amigo humano e um Salvador Divino". Assim como, ou "exatamente da mesma maneira" (Weymouth), sugere que da mesma maneira que a sua partida foi visível, o seu retorno também o será. Aqui encontramos "A necessidade desesperada". 1. A necessidade desesperada (1.4); 2. A preparação detalhada (1.12-14); 3. Os resultados desejados (2.1-4). (Kenneth H. Pearsall) B. Os DEZ DIAS, 1.12-26 1. O Cenáculo (1.12-14) Lucas indica aqui que a ascensão aconteceu no monte chamado das Oliveiras (12). Esta forma do nome, encontrada somente aqui no Novo Testamento, vem do latim. O topo do monte das Oliveiras, como é mais comumente chamado, fica distante de Jerusalém à distância do caminho de um sábado — cerca de 800 metros, e a pouco mais de 60 metros acima da área do Templo. No Evangelho de Lucas (24.50), foi dito que Jesus levou os seus discípulos "fora, até Betânia", para a ascensão. Como Betânia está há pouco mais de três quilômetros de Jerusalém, do lado oposto do monte das Oliveiras, parece haver uma contradição entre os relatos. Mas ao invés de eis, "até", os melhores manuscritos gregos apresentam pros, que dá suporte à tradução "do lado oposto a Betânia" (ASV). Esta seria uma descrição correta do topo do monte das Oliveiras. E, entrando (13), i.e., quando retornaram a Jerusalém, os discípulos subiram ao cenáculo, onde habitavam os onze apóstolos. Blunt diz: "O cenáculo pode ter sido o lugar onde se realizou a última ceia; provavelmente a casa pertencia a Maria, a mãe de João Marcos, pois encontramos a sua casa mencionada em At 12.12 descrita como o principal local das reuniões cristãs".

Com exceção de Judas Iscariotes, esta lista dos apóstolos é semelhante àquelas que são encontradas nos Evangelhos Sinóticos. Uma ou duas diferenças adicionais podem ser

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observadas. Somente nesta lista João aparece imediatamente depois de Pedro (no melhor texto grego — cf. ASV). Isto provavelmente se deve ao fato de que esses dois apóstolos estão intimamente associados diversas vezes nos primeiros capítulos de Atos (3.1; 4.13; 8.14). Adicionalmente, somente aqui Tomé aparece depois de Filipe: "ambos foram trazidos ao primeiro plano na paixão e na ressurreição".

Tanto no seu Evangelho (Lc 6.14-16) quanto aqui, no Livro de Atos, Lucas menciona Simão, o Zelote, em lugar de "Simão, o cananeu". O epíteto de Lucas pode significar sim-plesmente que Simão era uma pessoa zelosa. Pode também indicar que ele pertencia ao grupo dos zelotes, da Palestina. Os estudiosos frequentemente argumentam que os zelotes não formavam um grupo até a revolta dos judeus contra Roma, em 66—70 d.C. Mas Farmer diz que os fariseus, essênios e zelotes "atuavam como grupos de resistência contra as forças de ocupação e os agentes de colaboração" (os saduceus) na época de Jesus.

Ao invés de Tadeu (Mateus e Marcos), Lucas menciona Judas, filho de Tiago, tanto no seu Evangelho quanto aqui. O forte paralelismo entre as quatro listas sugere que esses dois nomes diferentes pertencem à mesma pessoa. É possível que durante algum tempo, depois da morte de Jesus, Judas preferisse ser chamado de Tadeu, devido ao estigma ligado a Judas Iscariotes. Estes apóstolos (14) perseveravam unanimemente (homothymadon) em oração. Lucas usa este advérbio dez vezes no livro de Atos. Ele não aparece em nenhuma outra parte do Novo Testamento, exceto em Rm 15.6. A palavra se origina de homos, "mesmo", e thymos, "mente" ou "espírito", e desta maneira significa "com o mesmo espírito ou com o mesmo pensamento". Perseveravam literalmente significa "continuavam firmemente" — um perifrástico imperfeito (esan proskarterountes) de um verbo poderoso que se compõe da preposição pros, "com", e do adjetivo karteros, "forte, firme". É uma palavra favorita de Lucas (seis vezes no livro de Atos) e significa "frequentar com constância, continuar com firmeza". Robertson afirma: "Eles 'se prendiam' à oração... até que a resposta chegasse".

No versículo 14 sugere-se a "preparação para o Pentecostes". Os discípulos continuavam em oração e súplicas, (a) até que os seus espíritos estivessem unidos — unanimemente; (b) até que os seus anseios se tornassem um desejo dominante — oração e súplicas; (c) até que a sua consagração se aprofundasse em um comprometimento final e completo com a vontade de Deus (1.4-5); (d) até que a sua fé crescesse e alcançasse o pico da expectativa pelo cumprimento imediato da promessa (2.1-2). (G. B. Williamson) Também foi dito que havia mulheres no grupo. Como não há nenhum artigo no texto grego, isto provavelmente significa "algumas mulheres". Acrescentar e Maria parece estranho, uma vez que ela era uma mulher. Bruce traduziu e (kai) como "incluindo", ou "em especial". Ela é destacada com ênfase especial por ter sido a mãe de Jesus. É surpreendente ler que seus irmãos estavam presentes. Eles não tinham crido nele anteriormente (Jo 5.7). Mas Paulo nos diz que, depois da sua ressurreição, Jesus apare-ceu a Tiago (1 Co 15.7) — normalmente identificado como o irmão do Senhor e aquele que se tornou o principal líder da Igreja Primitiva em Jerusalém (At 12.17; 15.13; 21.18). Existem três principais pontos de vista sobre como a palavra "irmãos" deve ser interpreta-da. No século IV, Epifânio afirmou que eles eram meios-irmãos, filhos de José em um casamento anterior. Esta opinião foi apoiada nos tempos modernos por Westcott e defendida extensivamente por Lightfoot. Helvídio (em aproximadamente 380 d.C.) ensinou que os irmãos eram, na verdade, filhos de Maria e José. Em resposta a isso, Jerônimo (382 ou 383 d.C.) estabeleceu uma nova teoria — a de que eles eram "primos" de Jesus.

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Esta seria a visão oficial católica romana, que também foi apoiada por comentaristas tão notáveis como Lange e Ellicott. Mas a maioria dos protestantes interpreta a palavra "irmãos" no seu sentido mais natural, como uma referência aos filhos de José e Maria. Esta opinião é totalmente defendida por Mayor.

2. A Escolha de Matias (1.15-26) Somente um episódio é relatado como tendo ocorrido durante os dez dias entre a ascensão e o Pentecostes. Foi a escolha de um décimo segundo apóstolo para ocupar o lugar de Judas Iscariotes. Pedro (15) novamente assumiu a sua posição de líder do grupo (o seu nome encabeça as quatro listas de apóstolos.) Embora tivesse negado o Senhor três vezes, ele fora perdoado (ver Mc 16.7, "e a Pedro"; Lc 24.34) e reconduzido à sua posição como pastor do rebanho (Jo 21.15-17). Levantando-se Pedro — uma expressão característica de Lucas encontrada dezessete vezes no seu Evangelho e dezenove vezes no livro de Atos — no meio dos discípulos. Os mais antigos manuscritos gregos apresentam a expressão "dos irmãos". Talvez o termo "discípulos" tenha sido introduzido pelos copistas posteriores para evitar qualquer possível confusão com os irmãos de Jesus mencionados no versículo anterior. A expressão "irmãos" era comum nos círculos judaicos, e foi adotada pela igreja apostólica para designar aqueles que faziam parte da comunhão de crentes. O tamanho do grupo que, no cenáculo, esperava pela vinda do Espírito Santo é mencionado aqui como quase cento e vinte, ou seja, dez vezes o grupo dos doze após-tolos. A palavra grega para "multidão" é ochlos, que aparece cerca de cento e cinquenta vezes nos Evangelhos (traduzida como "multidão" e "pessoas" por aproximadamente a mesma quantidade de vezes). Nesta passagem, a versão ASV fala de "uma multidão de pessoas". Tendo em vista o tamanho relativamente pequeno do grupo, talvez "uma assembleia" (RSV) fosse a melhor tradução, embora 120 pessoas em um pequeno lugar de reuniões possa parecer uma multidão. O termo "nomes" (que consta nos textos em inglês) significa "pessoas", e este fato é confirmado pelo uso da palavra grega em papiros contemporâneos (e.g., em um papiro de 13 d.C.) e também na Septuaginta (Nm 1.2, 18, 20; 3.40, 43; etc). A conotação de junta não é certa. Cadbury e Lake traduzem a expressão grega como "somando" e acrescentam: "Este é um significado costumeiro de epi to auto nos papiros". Eles também fazem esta significativa afirmação sobre o número cento e vinte: "E notável que Sanhedr 1.6 decrete que o número de funcionários (em um Sinédrio) em uma comunidade deva ser de um décimo da população total, e que 120 é o número mínimo que pode constituir um 'pequeno Sinédrio'".

A Escritura (16) é uma referência a Salmos 69.25 e 109.8, ambos citados no versículo 20. A frase que o Espírito Santo predisse pela boca de Davi afirma a inspiração divina daqueles salmos, e aparentemente a autoria de Davi. A afirmação no versículo 17 é um lembrete patético do lugar e do privilégio que Judas Iscariotes tinha perdido. Contado é uma forte palavra composta em grego, encontrada somente nesta passagem do Novo Testamento. Judas, na verdade, era contado como um dos doze apóstolos. Também tinha obtido uma sorte no ministério dos discípulos — a palavra grega significa literalmente "um lote", e é a base da palavra latina clerici e da portuguesa "clero". Ele tinha sido escolhido pelo próprio Mestre como um dos seus clérigos ordenados. Contudo, traiu o seu Senhor.

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A palavra para ministério é diakonia. Ela é usada somente uma vez nos Evangelhos, em Lc 10.40, na ocasião em que Marta "servia". Além de Ap 2.19, ela aparece em outras partes do Novo Testamento somente no livro de Atos (oito vezes) e nas epístolas (vinte e quatro vezes). Ela significa "o ofício e o serviço de um diácono" (um servo). Assim, ela significa "serviço" ou "ministério", e implica tanto privilégio quanto responsabilidade. Pedro declarou que Judas adquiriu um campo com o galardão da iniquidade (18). Mas em Mt 27.7 está registrado que os príncipes dos sacerdotes compraram o campo. No entanto, como a terra foi comprada com o dinheiro que Judas recebera pela sua traição a Jesus, pode-se dizer, adequadamente, que ele comprou o campo. Mais difícil é a questão da segunda metade deste versículo. A descrição da morte de Judas parece contradizer aquela encontrada em Mt 27.5, onde lemos que o traidor enforcou-se devido ao remorso que sentiu. Aqui está dito: precipitando-se, rebentou pelo meio, e todas as suas entranhas se derramaram. A expressão precipitando-se significa literalmente "tendo-se inclinado", i.e., "tendo se espatifado". Orígenes sugeriu que as palavras significam "inchaço", "aumento de tamanho", e esta interpretação foi apoiada por alguns estudiosos modernos. Mas a melhor solução parece ser a de Agostinho, que sugeriu que o enforcamento e a queda podem estar combinados. Knowling conclui: "Se a corda arrebentou, ou se um galho cedeu sob o peso de Judas, a narrativa de Lucas pode facilmente complementar a de Mateus". Isto seria especialmente verdadeiro se Judas tivesse amarrado a corda a uma árvore sobre o profundo precipício do Vale de Hinom. Hackett conta como ele próprio ficou olhando para os rochedos acima e para as pedras de pontas agudas abaixo, observando as árvores sobre o precipício, e "sentiu que a explicação proposta acima é completamente natural".

Outra questão surge no versículo 19, onde foi dito que o campo é chamado na sua própria língua — literalmente, "no seu próprio dialeto" (dialektos), que era o aramaico — Aceldama, que significa Campo de Sangue. A implicação é bastante clara: a razão para esse nome foi a morte sangrenta de Judas. Mas em Mt 27.6-8, está indicado que o nome foi dado porque o campo foi comprado com "preço de sangue". Knowling sensatamente pergunta: "Por que não pode haver duas razões?" As duas tradições estão igualmente corretas, e podem ter estado em circulação na época em que esses livros foram escritos. O termo bispado (20) corresponde ao grego episcope, de onde vem "episcopal", e realmente significa "supervisão". Um episcopos era um supervisor. Finalmente, este substantivo, traduzido como "bispo", foi atribuído aos supervisores da igreja. É provável que a melhor tradução aqui seja "ofício" (ASV). As principais qualificações e funções de um apóstolo estão declaradas nos versículos 21 e 22, pelo menos como entendidas por Pedro. O escolhido para assumir o lugar de Judas deve ser alguém que tenha estado associado com Jesus, desde o seu batismo por João até a sua ascensão. A principal função do apóstolo é ser testemunha da ressurreição. Dois homens foram indicados para esta posição: José Barsabás, palavra aramaica que significa "filho do sábado", e Matias ("presente de Jeová"). Em seguida, os discípulos oraram pedindo a orientação divina na escolha do candidato correto entre os dois. E, lançando lhes sortes, caiu a sorte sobre Matias, que assumiu o seu lugar com os onze apóstolos (26). "O método empregado pelos judeus era o de colocar os nomes escritos em pedras dentro de um recipiente e agitá-lo até que uma das pedras caísse". Os apóstolos tinham orado antes das suas indicações e também antes de lançarem sortes? Não sabemos. Mas depois do Pentecostes, não se lê mais que os discípulos tenham lançado sortes. O Espírito Santo, que passou a habitar em cada um, guiava-os. Bibliografia R. Earle

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Eventos Anteriores ao Pentecostes (1:1-26) Atos começa apresentando a substância das cenas finais do Evangelho de Lucas e nos introduzindo a certos detalhes que o Evangelho não incluíra. Importantes, entre esses itens, são a ascensão e a atividade dos apóstolos em Jerusalém antes do dia de Pentecostes. 1) Prefácio (l:l-5) 1 Fiz o primeiro tratado, ó Teófilo, acerca de tudo quanto Jesus começou a fazer e a ensinar, 2 até o dia em que foi levado para cima, depois de haver dado mandamento, pelo Espírito Santo, aos apóstolos que escolhera; 3 aos quais também, depois de haver padecido, se apresentou vivo, com muitas provas infalíveis, aparecendo-lhes por espaço de quarenta dias, e lhes falando das coisas concernentes ao reino de Deus. 4 Estando com eles, ordenou-lhes que não se ausentassem de Jerusalém, mas que esperassem a promessa do Pai, a qual (disse ele) de mim ouvistes. 5 Porque, na verdade, João batizou em água, mas vós sereis batizados no Espírito Santo, dentro de poucos dias.

No período helenista, era costume um autor dividir os seus trabalhos literários em volumes. Ele fazia anteceder o primeiro volume de um prefácio, que se propunha a cobrir a obra toda. Este prefácio geralmente declarava o objetivo e o método de escritor. Os prefácios secundários, anexados a cada volume sucessivo, resumiam o conteúdo do vo-lume anterior e serviam como forma literária de ligá-los uns aos outros. Lucas, com certas modificações, segue a forma literária contemporânea em seu Evangelho e em seu livro de Atos. Atos inicia-se com uma longa sentença prefaciai, dirigida ao mesmo Teófilo do terceiro Evangelho. Lucas apresenta uma declaração sumária da sua obra anterior, mas não da maneira convencional. Os acontecimentos aos quais ele se refere aparecem nas cenas finais do Evangelho, mas não na mesma sequência. Em primeiro lugar, ele menciona a ascensão, e depois fala das aparições de Jesus aos seus apóstolos, durante um período de quarenta dias. Estes últimos fatos não ocorrem no Evangelho. Ao ler o Evangelho de Lucas, a impressão que se tem é que Jesus ascendeu no mesmo dia da ressurreição (24:51), e não há indicação de um intervalo de quarenta dias. Para o Evangelho, o assunto é o cumprimento profético da paixão do Messias, sua morte e ressurreição (24:44-47). Em Atos, pelo contrário, Jesus fala aos apóstolos acerca do reino de Deus. Do lado positivo, podemos acrescentar que a ordem para permanecer em Jerusalém para a consecução da promessa, os sofrimentos de Jesus, as suas aparições aos discípulos e o fato de ter comido com eles (Lucas 24) revelam que há um elo entre o primeiro volume e o segundo, pois todos esses incidentes constam do prefácio a Atos. Primeiro, no verso 1, tem sido aceito, por alguns comentaristas, como significando que Lucas escreveu ou planejou escrever um terceiro volume. Argumentam eles que a correção gramatical exige "anterior" (proteron), em vez de "primeiro" (prõton), quando a série é constituída apenas de dois. Dado o fato de que Lucas usou o termo "primeiro", e não "an-terior", ele devia ter em mente mais do que dois volumes. Contudo, precisamos nos lembrar que a tendência, no grego helénico, bem como no português, hoje em dia, era passar por cima destas distinções gramaticais. Não nos apegamos rigidamente à regra de que, quando nos referimos ao primeiro, significa absolutamente o começo de uma série de mais de dois. Não há evidência de que Lucas escreveu ou planejou escrever um terceiro volume. De fato, um volume assim seria bem-vindo, pois iria resolver todo o problema do término de Atos. Livro (logos) era o nome costumeiramente dado a uma composição que tivesse a extensão de um ou mais rolos de papiro.

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Já notamos, que Teófilo nos é desconhecido. É improvável que ele seja uma pessoa fictícia, que represente todos os que amam a Deus. É bem razoável presumir-se que Teófilo tenha sido um nome inventado para ocultar o verdadeiro nome da pessoa. No prefácio do seu Evangelho, Lucas (1:3) dá a Teófilo o epíteto de "excelentíssimo", que dá a entender que ele ocupava uma posição oficial no Império Romano. A sugestão de B.H. Streeter, de que Teófilo era o nome cristão secreto de Flávio Clemente, primo de Domiciano, o Imperador, é mera fantasia. Embora Lucas dedique ambos os volumes a Teófilo, a mensagem pretende alcançar um auditório muito mais amplo do que apenas um indivíduo. Ao resumir o seu volume anterior, Lucas usa uma expressão que algumas pessoas procuram classificar como forma pobre, e outros designam como aramaísmo. Jesus começou a fazer e a ensinar. Por que considerar começou a fazer como aramaísmo, visto que Lucas aqui não está seguindo uma fonte, mas, pelo contrário, está apresentando a sua própria interpretação teológica? Como pode ela ser forma literária pobre, visto que o autor está inteiramente em casa, no que diz respeito ao grego literário? Lucas tem um propósito, ao usar esta expressão alegadamente desgraciosa. Ele quer dizer que o ministério terreno de Jesus nada mais é do que o início de uma ação que não tem fim. O que ele deseja mostrar, nos eventos subsequentes, desencadeados pelo Espírito Santo, é, na realidade, a continuação da obra de Jesus. Desta forma, Lucas estabelece uma plena identificação entre Jesus e o Espírito, da mesma forma como Paulo e o autor do Quarto Evangelho o haviam afirmado. Lucas é o único escritor do Novo Testamento que nos diz que as aparições pós-ressurreição de Jesus cobriram um período de quarenta dias. É aceitável que esse período de tempo se passou, quando comparamos as várias narrativas de aparições ou manifestações de Jesus feitas por Mateus, João e Paulo. Moisés esteve no Monte Sinai durante quarenta dias e quarenta noites, ao receber a lei das mãos de Deus (Êx 34:28). Elias, quando fugiu da ira de Jezabel, dirigiu-se a Horebe, e de um anjo recebeu alimento para sustentá-lo durante a sua jornada de quarenta dias e quarenta noites (I Rs 19:8). Depois do seu batismo, Jesus foi para o deserto, e jejuou durante um período de quarenta dias (Mc 1:13 e paralelos). Se Lucas, ao mencionar quarenta dias, está querendo revelar algum significado religioso profundo, padronizado segundo as referências mencionadas acima (e ainda outras existentes), é coisa duvidosa, porque, mais tarde, ele descreve o mesmo período como "muitos dias" (13:31). A versão da Imprensa Bíblica Brasileira não é forçada na tradução de tekmerios pela palavra portuguesa "provas". Na verdade, esta palavra, no original, significa prova demonstrativa ou evidência. Que evidências Lucas tinha em mente, ele não expressa em Atos. Do seu Evangelho, podemos presumir que as provas consistiam na capacidade de Jesus em comer um pedaço de peixe assado, e manter uma palestra com os seus discí-pulos, e também ter a posse de alguma espécie de corpo físico (24:39,42). Lucas, mais do que os outros Evangelhos e as epístolas de Paulo, parece enfatizar a natureza física do corpo pós-ressurreição de Jesus. Atos indica que o principal assunto que Jesus discutiu com os apóstolos, durante o intervalo de quarenta dias, teve como centro o reino de Deus. Isto imediatamente suscita, para nós, a interrogação: Por que era necessário tal ensino? Desde o começo do seu ministério na Galileia, até a sua crucificação em Jerusalém, o tema dominante da sua mensagem havia sido o reino de Deus. Embora Jesus não dê uma definição especial do reino, através de suas parábolas e atos, ele descreveu vividamente a sua natureza, para impedir qualquer possibilidade de mal-entendidos. Aparentemente, os apóstolos não haviam entendido plenamente o significado dos ensinos de Jesus, como veremos mais adiante. Parece que Jesus achava essencial explicar o relacionamento entre os seus

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ensinamentos acerca do reino e aquela nova manifestação de si mesmo através da recente experiência da ressurreição. Enquanto Jesus estava "comendo com" os apóstolos (ou estando com eles), recomendou-lhes que permanecessem em Jerusalém. Isto concorda com o que Lucas fala em seu Evangelho (24:29). Além do mais, concorda com o relato que ele faz de aparições apenas na Judéia, que Jesus fez, e estas dentro de pequena distância de Jerusalém. Possivelmente, o objetivo de Lucas é demonstrar que Jerusalém é o local para o inicio do movimento cristão. Na região de Jerusalém, Jesus se apresentou aos seus discípulos, e ali é que eles deveriam permanecer até que recebessem a promessa do Pai. Mateus, Marcos e o apêndice ao Quarto Evangelho (cap. 21) não confinam as aparições à Judéia — neste particular, diferindo de Lucas. De acordo com Mateus, a primeira aparição de Jesus, aos onze discípulos, aconteceu na Galileia, onde ele lhes deu a Grande Comissão (28:16-20). O moço de alvo manto que se encontrou com as mulheres no sepulcro de Jesus disse-lhes para avisarem a Pedro e aos discípulos que Jesus iria encontrá-los na Galileia, como havia planejado (Mc 16:7). No apêndice ao Quarto Evangelho, Jesus aparece aos seus discípulos junto ao Mar de Tiberíades. As outras manifestações registradas no Quarto Evangelho ocorrem em Jerusalém e fortalecem a tradição que Lucas seguiu. A promessa do Pai é uma alusão a uma declaração feita no Evangelho de Lucas (24:49). Ali o conteúdo da promessa não é revelado. Nada é mencionado acerca de que o rito executado por João Batista com água seria superado pelo batismo com o Espírito Santo. Aparentemente, a inclusão deste, em Atos, representa uma revisão feita por Lucas. Estas palavras, atribuídas a Jesus no versículo 5 e mais adiante em 11:16, em outras partes do Novo Testamento, são atribuídas a João Batista. O contraste entre o batismo de João e o batismo com o Espírito Santo pode parecer sugerir que o rito executado com água não era mais necessário. Não obstante, percebemos que o rito do batismo continuou a ser observado. Embora as palavras de Jesus possam ter indicado que o batismo nas águas iria ser superado ou substituído pelo batismo no Espírito, a comunidade cristã lembrou a ordem de Cristo (Mt 28:19-20) e considerou, no batismo, algo simbolizando a sua nova experiência em Cristo. João havia pregado um batismo caracterizado pelo ato do arrependimento, em vista de um julgamento iminente. Aquilo para o que o batismo de João apontava em perspectiva, era visto pelos cristãos da nova comunidade em retrospectiva. Desta forma, para a comunidade primitiva, o batismo se colocava à luz do que já havia acontecido, e não do que ainda havia de acontecer. Isto foi o que marcou a diferença entre o batismo de João e o batismo cristão. Uma adição, no texto Ocidental, designa o Pentecostes como o tempo em que os apóstolos deviam receber o Espírito Santo. Ela diz: "que estais para receber, daqui a não muitos dias, até o Pentecostes." 2) A Ascensão (1:6-11) 6 Aqueles, pois, que se haviam reunido perguntavam-lhe, dizendo: Senhor, é neste tempo que restauras o reino de Israel? 7 Respondeu-lhes: A vós não vos compete saber os tempos ou as épocas que o Pai reservou à sua própria autoridade. 8 Mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e ser-me-eis testemunhas, tanto em Jerusalém, como em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra. 9 Tendo ele dito estas coisas, foi levado para cima, enquanto eles olhavam, e uma nuvem o recebeu, ocultando-o a seus olhos. 10 Estando eles com os olhos fitos no céu, enquanto ele subia, eis que junto deles apareceram dois varões vestidos de branco, 11 os quais lhes disseram: Varões, galileus, por que ficais aí olhando para o céu? Esse Jesus, que dentre vós foi elevado para o céu, há de vir assim como para o céu o vistes ir. Imediatamente depois de resumir as coisas ditas em seu primeiro volume, Lucas passa a estabelecer o tom para o livro que está escrevendo, e acrescenta uns poucos detalhes

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acerca da ascensão, que havia condensado anteriormente. No dia da ascensão, os apóstolos fizeram uma pergunta que indicava claramente como eles não haviam entendido a natureza da promessa do Pai. Haviam eles presumido que a promessa tinha algo a ver com a restauração do reino de Israel. Durante o ministério terreno de Jesus, os apóstolos haviam compartilhado a esperança, sustentada por outros judeus, em um descendente de Davi, a quem Deus nomearia seu Messias, o qual recuperaria a condição nacional do judaísmo. Essa opinião refletiu-se na confissão de Pedro em Cesaréia de Filipe e na entrada triunfal de Jesus em Jerusalém. Para eles, era difícil livrarem-se de suas noções preconcebidas acerca de Jesus como um Messias político. Agora que Jesus havia ressuscitado dentre os mortos, as suas esperanças foram de novo vivificadas, e eles esperavam que Jesus desempenhasse o seu papel vingativo como Messias, estabelecendo a sua autoridade sobre a nação de Israel. O que Jesus era incapaz de fazer para eles, de maneira normal, como Messias terreno, os discípulos agora es-peravam que ele executasse de maneira apocalíptica, pela intervenção catastrófica de Deus na história. A pergunta dos apóstolos é suficientemente clara. Eles sentiam uma necessidade desesperada de iluminação. Jesus não permitiu que a pergunta passasse sem ser notada, mas repreendeu-os, como costumeiramente fazia durante o seu ministério terreno. Ele afastou qualquer interesse no estudo intensivo dos momentos críticos da história e dos acontecimentos ordinários da existência humana. Preocupações que tais, segundo a sua perspectiva, eram inúteis, no sentido de determinar quando e como Deus iria agir na história. Jesus não veio para satisfazer à curiosidade do homem acerca do calendário de Deus, mas para revelar Deus e levar o homem a um relacionamento correto com Ele. Esse conselho é importante para a era em que vivemos. Há muitos crentes que estão mais inte-ressados em predições do que na proclamação do evangelho, que propicia luz e vida. Testificar de Cristo inclui o poder para fazê-lo. Jesus prometeu, aos seus apóstolos, que o Espírito Santo, extensão da personalidade de Deus dentro da comunidade, devia ser esse poder. Eles receberiam o Espírito Santo em breve, e, sob a direção do Espírito, os apóstolos precisam sair com o evangelho para todas as regiões geográficas. Jesus deliberadamente delineou o âmbito geográfico do ministério dos apóstolos. Eles deviam começar em Jerusalém, e daí sair para as regiões subjacentes da Judéia e Samaria, onde a religião era mais irregular. Dessas áreas, deviam ir até os confins da terra. A ordem de Jesus em Atos não diz especificamente que as testemunhas são enviadas aos gentios nas áreas determinadas. Pode-se interpretar a missão como sendo apenas para os judeus. A situação não é a mesma, no Evangelho de Mateus, onde Jesus, na Galileia, dá, aos seus discípulos, a ordem para pregar e ensinar (28:18 e s.). Mas não há nada de ambíguo nessa ordem. Jesus quis dar a entender definidamente os gentios. Embora o retrato, pintado em Atos, da igreja primitiva mostre um desejo lento e relutante para incluir os gentios na comunhão, Lucas certamente sentia que a ordem de Jesus os indicava, tanto quanto os judeus. Depois que Jesus falou da vinda do Espírito, e lhes deu a ordem para pregar o evangelho, através do mundo todo, a sua presença visível afastou-se dos apóstolos: ele foi levado para cima. Lucas é o único escritor neotestamentário que apresenta uma descrição desse acontecimento; contudo, essa experiência é mencionada em outros livros (I Pe 3:22; Ef 4:10; Cl 3:1; I Tm 3:16; Hb 4:14 e 9:24). Lucas evidentemente concebe este evento como algo de tremendo significado entre a ressurreição e o Pentecostes.

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No Evangelho de Lucas, a ascensão parece ter acontecido em Betânia (24:50), aldeia localizada cerca de dois quilômetros de Jerusalém, na encosta oriental do Monte das Oliveiras. Esta era a cidade natal de Lázaro, Maria e Marta, que foram pessoas de destaque no quarto evangelho. Em Atos, a localização não é mencionada, mas presumimos que foi o Monte das Oliveiras, porque o autor diz que os apóstolos voltaram a Jerusalém do Monte das Oliveiras, depois da ascensão (v. 12). O Monte das Oliveiras ficava a leste de Jerusalém. Foi ali, na véspera da crucificação, que Jesus agonizou em oração. Desde os dias de Zacarias, o Monte das Oliveiras estava associado, de alguma forma, com as expectativas messiânicas (14:3 e ss.). Uma tradição rabínica declarava que a ressurreição dos judeus ocorreria através de uma fenda no Monte das Oliveiras. De acordo com Lucas, Jesus foi levado para cima... e uma nuvem o recebeu, ocultando-o a seus olhos. A ênfase se exerce no desaparecimento de Jesus. No Velho Testamento, uma nuvem significava a presença de Deus. Este é o significado da nuvem na cena da transfiguração (Lc 9:34 e ss. e paralelos). Em Daniel, o Filho do homem vem nas nuvens do céu (7:13). Quando Jesus compareceu diante do sumo sacerdote, no dia da crucificação, o sumo sacerdote perguntou-lhe se ele era o Messias. Jesus replicou: "Eu o sou; e vereis o Filho do homem assentado à direita do Poder e vindo com as nuvens do céu" (Mc 14:62). Aparentemente, na cena da ascensão, a nuvem simboliza a presença de Deus naquele ato de exaltação de Jesus. Depois que Jesus afastou-se, os apóstolos ficaram com os olhos fitos no céu, procurando ter um outro vislumbre dele. A sua admiração sofre uma interrupção brusca com o aparecimento de dois emissários angélicos. Os dois varões vestidos de branco, possivelmente os mesmos que haviam dito às mulheres que Jesus ressuscitara (Lc 24:4 e s.), repreenderam os apóstolos desanimados e ministraram-lhes esperanças. Eles asseguraram, aos apóstolos, que Jesus voltaria, mas que não tinha sentido ficarem extasiados diante de maravilhas. 3) No Cenáculo (1:12-14) 12 Então voltaram para Jerusalém, do monte chamado das Oliveiras, que está perto de Jerusalém, à distância da jornada de um sábado. 13 E, entrando, subiram ao cenáculo, onde permaneciam Pedro e João, Tiago e André, Filipe e Tomé, Bartolomeu e Mateus; Tiago, filho de Alfeu, Simão, o Zelote, e Judas, filho de Tiago. 14 Todos estes perseveravam unanimemente em oração, com as mulheres, e Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos dele.

Com a ascensão, o último contato visível com Jesus chega ao fim. Embora os apóstolos confiassem na sabedoria de Jesus, deve ter sido extremamente difícil para eles entenderem por que era para o bem deles que ele precisava partir. Contudo, eles não ficaram tão perturbados como por ocasião da crucificação. Agora eles compreendiam que Jesus tinha o poder da vida e da morte. Consequentemente, eles podiam esperar pa-cientemente o ato criativo seguinte de Deus. Os apóstolos voltaram para Jerusalém. Lucas apresenta uma nota editorial, ao dizer que a distância do Monte das Oliveiras a Jerusalém era a da jornada de um sábado. Se ele estava fazendo isso para dar-nos a entender que o evento ocorreu no sábado, não o sabemos. Quando os apóstolos chegaram a Jerusalém, dirigiram-se a um cenáculo. Seria esse o cenáculo em que Jesus comeu a sua última ceia com os discípulos? Seria a casa de Maria, mãe de João Marcos, que mais tarde se tornou um dos lugares de adoração para os cristãos primitivos (12: 12)? Não temos evidências que especifiquem de quem era essa casa, mas ela devia estabelecer alguma associação com Jesus, em sua refeição de despedida.

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Os que compunham o grupo que se encontrava no cenáculo eram os onze apóstolos, as mulheres, Maria, mãe de Jesus, e os irmãos de Jesus. A lista dos apóstolos é idêntica à do Evangelho de Lucas (6:13-16), exceto que a ordem é mudada, e, é claro, Judas Iscariotes é omitido. As mulheres não são identificadas. Podiam ser as mulheres que acompanharam Jesus desde a Galileia (Mc 15:40; 16:1; Mt 27:56; Jo 19:25; e Lc 23:55; 24:10). Se assim foi, sabemos que elas eram Maria Madalena, a outra Maria, Salomé, Joana, Suzana, e outras. Elas foram as que testemunharam em primeiro lugar que o túmulo estava vazio e levaram as boas-novas, aos apóstolos, de que Jesus ressuscitara dentre os mortos. É também bem provável que as mulheres fossem as esposas dos apóstolos. Nada há na estrutura gramatical que exclua esta sugestão como possível. A classificação final dos que constituíam o grupo que se encontrava no cenáculo inclui os parentes de Jesus: Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos dele. Maria não é mencionada em nenhum outro lugar em Atos. Os irmãos de Jesus também se encontraram com os apóstolos. Durante o ministério de Jesus, ficamos sabendo muito pouco a respeito de sua família. Marcos nos revela os nomes dos seus irmãos (6:3). Eram Tiago, Judas, José e Simão. Marcos também faz-nos saber que Jesus tinha irmãs. O autor do quarto Evangelho torna bem claro que os irmãos de Jesus — naquela época — não criam nele (7:5). Paulo, ao relacionar as manifestações de Jesus em sua correspondência com a igreja em Corinto, disse que uma dessas aparições foi a Tiago (I Co 15:7). Tiago é o único irmão de Jesus que se nos apresenta por nome em Atos. Não se passou muito tempo depois do começo da igreja primitiva, quando ele se tornou o líder, e, durante certo tempo, tornou-se mais importante e significativo do que os apóstolos. Eram Tiago, Judas, José e Simão irmãos verdadeiros de Jesus? Essa interrogação foi levantada no começo do terceiro século, mas não se tornou problema de controvérsia antes do quarto século. A essa altura, três opiniões se levantaram. Epifânio dizia que os irmãos eram filhos de José, através de uma esposa anterior. Jerônimo, que foi res-ponsável pela tradução latina da Bíblia, conhecida como a Vulgata, argumentava que os irmãos, na verdade, eram primos de Jesus. Helvídio, cristão romano e oponente de Jerônimo, aceitava o relacionamento apresentado nos Evangelhos e em Atos, que obviamente significava que eles eram irmãos verdadeiros. Lucas diz que todas essas pessoas perseveravam unanimemente em oração. Frequentemente, a palavra traduzida como oração (proseuché) era usada no sentido técnico, significando sinagoga ou o Templo. Mais tarde, Lucas introduz a palavra com este significado (16:13). E também, no último versículo do seu Evangelho, ele disse que os discípulos "estavam continuamente no templo, bendizendo a Deus" (24:53). Esta é uma referência à mesma atividade mencionada em Atos. Diante disto, podemos presumir que a oração do grupo não se confinava ao cenáculo, mas que eles frequentavam a sinagoga ou o Templo, e observavam as horas de oração da mesma forma como Pedro e João o fizeram mais tarde (3:1). 4) A Escolha de Matias (1:15-26) 15 Naqueles dias levantou-se Pedro no meio dos irmãos, sendo o número de pessoas ali reunidas cerca de cento e vinte, e disse: 16 Irmãos, convinha que se cumprisse a escritura que o Espírito Santo predisse pela boca de Davi, acerca de Judas, que foi o guia daqueles que prenderam a Jesus; 17 pois ele era contado entre nós e teve parte neste ministério. 18 (Ora, ele adquiriu um campo com o salário da sua iniquidade; e, precipitando-se, caiu prostrado e arrebentou pelo meio, e todas as suas entranhas se derramaram. 19 E tornou-se isto conhecido de todos os habitantes de Jerusalém; de maneira que na sua própria língua deles esse campo se chama Acéldama, isto é, Campo de Sangue.) 20 Porquanto no livro dos Salmos está escrito: Fique deserta a sua habitação, e não haja quem nela habite; e: Tome outro o seu ministério. 21 É necessário, pois, que dos varões que conviveram conosco todo o tempo em que o Senhor Jesus andou entre nós, 22 começando desde o batismo de João até o dia em que dentre nós foi levado para cima, um deles se torne

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testemunha conosco da sua ressurreição. 23 E apresentaram dois: José, chamado Barsabás, que tinha por sobrenome o Justo, e Matias. 24 E, orando, disseram: Tu, Senhor, que conheces os corações de todos, mostra qual destes dois tens escolhido 25 para tomar o lugar neste ministério e apostolado, do qual Judas se desviou, para ir ao seu próprio lugar. 26 Então deitaram sortes a respeito deles e caiu a sorte sobre Matias, e por voto comum foi ele contado com os onze apóstolos. Durante o intervalo entre a ascensão e o dia de Pentecostes, os apóstolos estavam bem apercebidos do déficit existente em seu número, devido à morte de Judas Iscariotes, ocorrida por suicídio. Pedro, agindo como porta-voz da comunidade, decidiu que havia chegado a hora de dar alguma espécie de explicação para o ato ignóbil de Judas. Todos eles deviam estar confusos com o seu ato de traição. Por que Jesus o escolhera? Saberia ele que isto iria acontecer? Como podia um dos doze chegar a trair Jesus? Que embaraçoso devia ser essa situação para toda a comunidade! Pedro começou a sua fala, dirigindo-se ao grupo como irmãos. Em Atos, encontramos outras designações, dadas aos seguidores de Jesus, mas esta é a primeira. Pedro prosseguiu, explicando que a traição, o destino e a substituição de Judas, tudo isto era um cumprimento das Escrituras. O que Judas fizera não fora sem a presciência de Deus. Prova escriturística — Lucas, ao reconstruir o discurso de Pedro, registra a citação que ele fez dos Salmos (69:25; 109:8), para demonstrar que todos os acontecimentos que cercaram o caso de Judas eram proféticos. Não obstante, quando examinamos esses salmos, observamos que ambos são imprecatórios, e não pretendem enfatizar predições de qualquer sorte. Este método de referência ao Velho Testamento era frequentemente empregado na igreja primitiva, e abundam exemplos do seu uso em Atos. A única maneira pela qual a comunidade primitiva tinha, para dirimir a hostilidade dos judeus contra as suas reivindicações acerca do Senhor ressuscitado, era através da trilha batida das Escrituras. As testemunhas primitivas apelavam para uma autoridade que os judeus sustentavam até com risco de suas vidas. Para os propósitos apologéticos dos apóstolos e outras testemunhas, este método de exegese era não apenas aceitável, mas também reco-mendável. Na verdade, textos de prova tirados do seu contexto podem levar a uma interpretação errada da revelação de Deus; mas reconhecemos que a Escritura ilumina a Escritura. Foi a intenção do autor de Atos, ou da igreja primitiva, fazer com que habitação (epaulis) se refira à propriedade que Judas adquiriu com o preço de sangue, e não ao ofício de apóstolo? Epaulis é traduzida como "habitação", mas uma tradução mais apropriada e exata seria "propriedade" ou "fazenda". A nota editorial de Lucas acerca do destino de Judas parece confirmar a opinião de que epaulis realmente se refere a uma propriedade que Judas comprou. As justificativas para a escolha de outro apóstolo, para ocupar o lugar vago pela morte de Judas, provém de uma citação de Salmos 109:8. Qualificações e funções dos apóstolos — A nomeação de um sucessor para Judas dá, a Lucas, a oportunidade, através do discurso de Pedro, de delinear as qualificações e as funções de um apóstolo. Para ser escolhido para esse cargo, era necessário e até essencial que a pessoa tivesse estado em íntima associação com Jesus desde o começo do seu mi-nistério, depois que ele fora batizado por João, até a ascensão. A função da pessoa que satisfizesse tais qualificações era ser testemunha da ressurreição de Jesus. A palavra portuguesa "apóstolo" é transliteração da grega apóstolos, que era equivalente à hebraica shaliach. Ambas as palavras significam "mensageiro designado". Nos círculos rabínicos, um shaliach era pessoa que executava várias funções, de acordo com um comissionamento que recebia de alguma autoridade. Aparentemente, não havia nada permanente acerca desse comissionamento. O shaliach era um funcionário sem posição

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definida. Os apóstolos receberam de Jesus o comissionamento de testificar a todo o mundo. Paulo sustentava que o Senhor ressuscitado lhe aparecera e chamara para uma missão aos gentios. O seu comissionamento para o mundo gentílico justificava as suas reivindicações de apostolado. É bem claro que Lucas chega a interpretar o apostolado como função com posição definida. É de se notar que, em Atos, ele usa esse título de maneira mais restrita para os doze, embora mais tarde ele chame Paulo e Barnabé também de apóstolos (14:4,14). Por que era necessário que a igreja primitiva escolhesse um discípulo para preencher o lugar de Judas? Será que era porque o número doze possuía um significado nacional para Israel, e a comunidade primitiva entendia-se como o novo Israel de Deus? Embora esta possa não ser a razão, é concebível que eles pensaram a este respeito. Lucas diz que o número aproximado de discípulos presentes naquela ocasião era de cento e vinte. Visto que ele não diz que esse era o número exato, pode ser inútil sugerir algum significado para o número 120. Na Mishnah, cento e vinte é aceito como o menor número de judeus que pode permitir o estabelecimento de um pequeno Sinédrio em uma congregação. O número de ofícios abertos para a liderança dentro de uma congregação precisava ser de um décimo do número de membros. Desta forma, à menor congregação se permitia a eleição de doze oficiais (Sanhedrin 1:6). Com a completacão do colégio apostólico, devido à eleição de Matias, a prática de substituir-se apóstolos foi abandonada. Quando Tiago, irmão de João, foi executado por Herodes Agripa I, não se fez nenhuma tentativa para se mencionar uma pessoa para tomar o seu lugar. Podemos chegar à conclusão de que a escolha de Matias era desnecessária, pois, na verdade, não podia haver sucessores para os apóstolos. Desde havia muito tempo, a liderança da igreja em Jerusalém passou a ser exercida não pelos apóstolos, mas por Tiago, meio-irmão de Jesus, devido, em grande parte, a esse relacionamento familiar. Dois indicados — É um pouco estranho que apenas dois discípulos pudessem satisfazer às qualificações exigidas para um apóstolo. Os dois apresentados foram José Barsabás ("filho do sábado" ou "filho do ancião") e Matias. Ao lado do seu nome judaico, José tinha um nome latino: Justo. Seria ele irmão de Judas Barsabás, que foi escolhido juntamente com Silas, para acompanhar Paulo e Barnabé de volta a Antioquia, depois do Concílio de Jerusalém (15:22)? Oração e escolha — Antes de o grupo de discípulos lançar sortes, para decidir entre os dois candidatos, oraram fervorosamente para obterem a direção de Deus para o método de escolha que planejavam empregar. O método era lançar sortes, ou votação. O procedimento regular entre os judeus era escrever nomes em pedras, colocá-las em um vaso, e sacudir o vaso até que uma das pedras pulasse fora. As pessoas que dependiam desse método não o consideravam uma questão de acaso, como lançar ao ar uma moeda, para tomar uma decisão, pois confiavam que Deus dirigiria a queda da sorte de acordo com a sua vontade. É interessante notar que a igreja, depois do Pentecostes, não mais usou este método, para tomar decisões. Quando a sorte foi lançada, Matias foi escolhido. Dessa hora em diante, ele não é mais mencionado. O destino de Judas — Três tradições independentes acerca da morte de Judas circulavam na comunidade cristã. Mateus transmitiu uma dessas tradições. Uma segunda provém da passagem diante de nós, em Atos. Eusébio de Cesaréia registra uma terceira, que recebeu dos escritos de Papias, Bispo de Hierápolis c. 128 d.C). Mateus introduz a sua história acerca do suicídio de Judas, dizendo que ele se enforcou enquanto Jesus foi enviado para apresentar-se diante de Pôncio Pilatos (27:3-10). O relato de Lucas

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dá um intervalo de tempo, pelo menos suficiente para que Judas comprasse uma propriedade. De acordo com Atos, Judas adquiriu uma propriedade. Ele caiu e arrebentou pelo meio. Todos os seus órgãos internos se derramaram. Devido ao fato de o sangue de Judas ter-se derramado sobre a propriedade, o povo de Jerusalém passou a chamá-la Acéldama, isto é, Campo de Sangue. Mateus apresenta outra razão para o nome do campo. Depois que Jesus foi preso pelas autoridades judaicas, e levado perante Pilatos, Judas entristeceu-se pelo que havia feito. Voltou aos sacerdotes, declarou que havia traído sangue inocente, e lançou as trinta moedas de prata no piso do Templo. Depois, retirou-se e enforcou-se. Os sacerdotes deliberaram acerca do assunto de como dispor do dinheiro e, finalmente, com-praram um campo, que converteram em cemitério para estrangeiros. O lote de terra tornou-se o que chamaríamos de "Colina das Despedidas". A tradição de Papias assevera que Judas inchou e foi esmagado em uma rua estreita por uma carreta. Bibliografia T. C. Smith

Introdução à História da Igreja Cada um de nós possui uma herança familiar única. Nós, crentes, compartilhamos uma herança comum na história da igreja. Seja qual for o nosso nível social, localização geográfica ou maturidade na vida cristã, podemos nos beneficiar do estudo das origens do Cristianismo, que ocorreram cerca de 2000 anos atrás, e da expansão e desenvolvimento da igreja desde então. O que é realmente a história, e o que é a igreja! Vamos definir estes e outros termos nesta lição inicial para lançarmos o fundamento do nosso estudo da história da igreja. Definição de História – Produto e Processo Escreva numa sentença sua definição da palavra história:? A sua definição deve conter a palavra passado, ou algo relacionado. É difícil definir a palavra história porque ela tem pelo menos dois significados. Refere-se, em primeiro lugar, a eventos ocorridos no passado. Ouve-se dizer, por exemplo, "Tudo isso é história!" Mas a mesma palavra significa o estudo do passado. Nesse sentido, refere-se ao processo de aprendizagem relacionado com a investigação do ocorrido, bem como das suas causas e seu significado. Em resumo, a palavra história pode significar aquilo que aconteceu ou a investigação daquilo que aconteceu. Os eventos do passado. Produto A investigação dos eventos do passado. Processo A palavra história vem da palavra grega historeo. É interessante notar como esta palavra é usada no Novo Testamento. O apóstolo Paulo usou uma forma da palavra no seu testemunho em Gálatas 1.18: "Decorridos três anos, então subi a Jerusalém para avistar-me (historiasia) com Cefas, e permaneci com ele quinze dias". O contexto deste versículo e o fato de Paulo permanecer quinze dias com Pedro, nos levam a concluir que a sua visita não foi um acontecimento casual. A palavra grega historasi significa aprender sobre; visitar para conhecer melhor. Paulo quis aprender mais profundamente sobre sua nova fé. Deve ficar clara a distinção entre os eventos do passado e a investigação dos mesmos. A história, como evento não pode mudar, mesmo com a descoberta de novas evidências, novas causas, ou novos significados do evento.

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Vamos supor que você esteja caminhando numa floresta. Acaba de notar um bicho morto, deitado na trilha. Fica pensando: "Um caçador deve ter atirado nesse animal". Descobre, porém, ao examinar o corpo do animal, que não há feridas. Então você descobre, próximo dali, uma fonte de água venenosa. Podemos Classificar cada um dos aspectos abaixo: Sua descoberta fortuita do corpo do bicho. História como processo. A morte do animal. História como produto. Sua conclusão inicial e de que o animal tenha sido morto por causa da ação dos caçadores. História como processo. A Perspectiva Cristã O significado que você percebe nos eventos do passado está relacionado com sua visão do mundo - sua filosofia de vida. Para muitas pessoas, a história representa apenas uma longa lista de datas e nomes. Para outras, a história (e talvez a própria vida) carece de sentido. Certo escritor britânico fala do "grande montão de poeira chamado história". Um industrial norte-americano disse: "A história é uma bobagem". Para ambos, a história carecia de algum valor. Para os cristãos, a história é muito importante porque ela revela a atividade de Deus com relação aos homens. Cremos que Deus se fez homem num determinado lugar durante um determinado número de anos. Deus revelou sua natureza, mandando Seu Filho Jesus Cristo para habitar no tempo e no espaço. A redenção dos seres humanos mediante a morte e sacrifício de Jesus constitui a maior evidência do trato de Deus com os homens. Quando uma pessoa passa a crer em Jesus Cristo, ela está se entregando nas mãos dAquele que nasceu em Belém, foi criado em Nazaré, ensinou na Galiléia, e foi morto em Jerusalém. Já que Jesus Cristo ressuscitou dentre os mortos, podemos confiar nEle nesta vida e por toda eternidade. A encarnação de Cristo foi o auge do movimento linear visando um alvo divino. Vista da perspectiva cristã, a história progride de Gênesis 1.1 ("No princípio...") até a promessa de Cristo ("Eu voltarei"). Esta perspectiva nega a possibilidade da história ser apenas cíclica ou repetitiva. ? Leia João 1.1-14, especialmente o versículo 14. Segundo este trecho, qual é a importância do estudo da história para o crente em Cristo? R: Estes versículos descrevem o começo da história. O cristão crê que estes eventos realmente aconteceram e que formam parte da história. A história é importante para o cristão porque Cristo faz parte dela. ? Suponhamos que alguém dê a entender que realmente não importa se Jesus ressuscitou ou não dentre os mortos. Leia 1 Coríntios 15.17. De sua resposta concernente a tal argumento. R: Se não houvesse acontecido a ressurreição de Cristo, a mensagem cristã careceria de sentido, a fé seria ineficaz e a redenção impossível. Importa, sim, que Jesus ressuscitou dentre os mortos. ? Se a ressurreição de Cristo não tivesse acontecido, como isto afetaria o evangelismo? (Veja 1 Co 15.14).

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R: O cristão não teria uma mensagem de "boas novas". O evangelismo seria impossível. Entendo que Deus não foi criado por ninguém; Deus sempre existiu. Embora se manifeste no tempo cronológico, Ele habita além do tempo. Segundo Isaías 57.15, Deus vive eternamente. A Bíblia constitui um relato inspirado da atividade de Deus neste mundo. No Antigo Testamento, vemos a relação de Deus com a Sua criação. A história da igreja constitui-se no relato de homens e mulheres que andavam com Deus ao longo do tempo e do espaço. Por ser Deus Todo-Poderoso, Ele mantém o mundo inteiro sob Seu controle. Talvez seja mais fácil perceber a mão de Deus nas coisas boas da vida do que nas ruins, mas ambas fazem parte do plano divino. O trabalho de Deus está oculto aos seres humanos. Em cada geração, desde então, apesar de reveses e corrupção, o Espírito Santo tem operado na igreja. Nesse momento, Ele está operando nos acontecimentos para honra e glória de Deus. E Deus, um dia, concluirá a história conforme seu plano divino (1 Co 15.24). Definição de Igreja Interna O que significa a palavra igreja? Como já vimos com relação à palavra história, algumas palavras possuem mais de um significado. Quando alguém diz: "Estão pintando a igreja de branco", está usando a palavra igreja para significar um templo ou edifício. Se alguém diz: "A Igreja Anglicana crê em Deus", a palavra igreja significa uma denominação ou grupo. Quando dizemos: "A igreja se reúne, às 09:00 horas da manhã, aos domingos", usamos a palavra igreja para significar um culto ou uma reunião religiosa. No título deste curso, a palavra igreja não significa um templo, uma denominação, nem um culto religioso. Não estaremos acompanhando o desenvolvimento de um edifício, de uma confissão de fé pessoal, ou de uma forma de culto. Estaremos descobrindo um significado mais importante inerente à palavra igreja. Na época neo-testamentária, a palavra igreja significava uma assembléia ou grupo. Jesus assim usou a palavra, referindo-se a um grupo local de crentes (Mt 18.17) e ao conjunto de todos os crentes do mundo (Mt 16.18). Embora examinemos a igreja em determinado momento como sendo uma congregação local, nosso propósito principal será examinar a igreja como corpo universal. ? Suponhamos que uma pessoa afirme que sua igreja seja o único grupo de crentes verdadeiros. Ela diz que o seu grupo será o único presente no céu. Qual aspecto da igreja ela estaria negligenciando? R: Ela negligencia o aspecto universal porque a igreja é composta de crentes de todos os grupos. ? O apóstolo Paulo usou muitas figuras para descrever a igreja; uma das suas favoritas se encontra em Efésios 1.22-23. Em que termos este trecho bíblico descreve a igreja? R: A igreja é o corpo de Cristo. A figura da igreja como corpo de Cristo descreve-a como um organismo. Este organismo é um ser vivente integrado por uma grande variedade de membros, desempenhando

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funções distintas, mas mutuamente dependentes. Esta figura do corpo de Cristo proporciona o significado interno de "igreja". Paulo desenvolve esta figura com muitos detalhes em 1 Coríntios 12. ? Leia 1 Coríntios 12 e descreva resumidamente o significado interno da igreja, como o corpo de Cristo. R: A igreja é um corpo de crentes, cada um deles com funções diferentes; todos eles são mutuamente dependentes sob a liderança de Jesus Cristo. Sua resposta deve ser semelhante. Externa Além de ser vista como um organismo, a igreja é também descrita como uma organização ou instituição. Como tal, possui uma estrutura física, forma ritual de culto, cargos e outras características externas, que são visíveis ao mundo num sentido em que a igreja interna ou viva não é. Nosso estudo da igreja e sua história naturalmente incluirá os aspectos interno da igreja e bem como a sua natureza externa. Veremos a igreja como testemunha viva e visível que mostra a ação de Deus entre os homens. Todavia, não devemos cometer o erro de atribuir as falhas da igreja ao nosso Santo Deus. Outros dois termos que se aplicam com freqüência à igreja são: visível e invisível. Apesar da fraqueza destes termos, eles são úteis para distinguir aquelas pessoas que são apenas membros nominais de um "grupo cristão" daquelas que são crentes verdadeiros, confiando plenamente na graça de Cristo. Deus conhece o coração de todos os seres humanos (At 1.24). Entre os integrantes da igreja visível (instituição), há alguns insinceros que professam uma fé de aparências. Em contraste, todos os que integram a igreja invisível gozam de uma relação especial com Deus, mediante sua fé ativa e pessoal. Naturalmente, num curso como este, dedicaremos bastante tempo ao exame da igreja visível e institucionalizada. Acompanharemos sua extensão e sua relação com o mundo secular. Por todo seu desenvolvimento, desde a encarnação de Cristo e Sua morte e ressurreição até o tempo presente, o aspecto invisível dessa igreja tem sido ativo, impulsionando a igreja visível a buscar reforma e renovação. De fato, a história da igreja retrata a tensão ? Compare a igreja como organismo com a igreja como organização. R: Como organismo, a igreja é viva, ativa, crescente e reprodutiva. Como organização é visível, física e estruturada. ? Quando a igreja como organização externa fracassa, não demonstrando a natureza amorosa do seu Fundador, de quem é a culpa? R: A falta de amor por parte da igreja institucional é culpa dos indivíduos que não andam como devem com Deus. ? Vamos associar os aspectos da igreja: R: João pertence à Igreja Metodista. Aspecto externo da igreja A Igreja de Cristo é gloriosa. Aspecto interno da igreja A Igreja de Cristo existe em todas as nações e não tem falhas. Ambos

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O Historiador em Ação A Evidência O historiador tem a responsabilidade de avaliar a evidência deixada pelos eventos. Em primeiro lugar, ele investiga e recolhe o material informativo básico. Pode consistir no relato de uma testemunha ocular, alguma pessoa que presenciou ou participou do evento. Esta seria considerada a fonte primária de informação. Uma fonte secundária consistiria num relato deixado por alguém sobre um evento baseado em suas pesquisas. Em geral, as fontes primárias são mais valorizadas pelos historiadores do que as fontes secundárias. O historiador usa também descobertas arqueológicas, tais como moedas, monumentos e edifícios. Baseando-se nestas indicações, ele tenta reconstruir os eventos do passado e determinar o que realmente aconteceu. Ele avalia a evidência por meio de perguntas como: "Quem foi que escreveu isto?", ou, "Até que ponto isto é confiável?" Embora ele saiba que a informação não está completa, continua reunindo informações para servir de base para suas eventuais conclusões. Além de fazer um levantamento da evidência do passado, o historiador procura explicar os acontecimentos, proporcionando padrões e generalizações, comparações e contrastes, causas e conseqüências. Sua eventual interpretação é o produto da sua própria dedicação e imaginação. Assim, o historiador combina as técnicas e habilidades de um cientista, filósofo e artista em sua tarefa de escrever a história. ? Suponhamos que você deseje preparar uma história do movimento pentecostal na sua região. Quais tipos de materiais você utilizaria? Sua resposta poderia incluir conversas com crentes mais velhos, entrevistas com filhos da primeira geração de crentes pentecostais, documentos preparados por líderes do movimento, artigos em livros ou revistas, inscrições nas lápides de túmulos documentando as datas de nascimento e morte de crentes, etc. (Esta lista não está completa.) ? Indique quais materiais mencionados na questão anterior se relacionam às categorias abaixo: a) Primária. Conversas com crentes mais velhos b) Secundária. Entrevistas com filhos da primeira geração de pentecostais, artigos em livros ou revistas sobre o assunto c) Arqueológica. Inscrições nas lápides de túmulos mostrando dados como: datas de nascimento, morte dos crentes NOTA: A sua própria lista de materiais mencionados na pergunta anterior pode diferir da nossa; seja como for, você deve entender a razão da nossa classificação de material na resposta à pergunta atual.

? Você pode ter lido algum livro que diz não haver crentes pentecostais na região ou cidade onde você mora, mas você sabe perfeitamente que há, pois tem tido contato com tais crentes. Qual destas "evidências" é a primária, qual a secundária e qual você aceitaria como verdadeira?

R: A evidência primária seria a conversa com crentes na sua região; A secundária seria o que diz o livro. Você deve aceitar a evidência primária como sendo verídica. O historiador não pode escrever o que deseja que tenha acontecido, nem aquilo que poderia ter acontecido. Ele deve tratar daquilo que aconteceu na sua totalidade. Certos eventos e períodos da história, como o declínio do Império Romano, podem conduzir um historiador a declarar, como efetivamente fez Edward Gibbon, "A história não passa de um

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registro de crimes, tolices e infortúnios". Entretanto, o historiador cristão conhece a cura. Ele entende que Deus mandou Seu Filho ao mundo num momento específico para libertar a humanidade destes "crimes, tolices e infortúnios" (Jo 3.16,17). ? Se alguém disser: "Eu não gosto de estudar a história porque os fatos ruins do passado me deprime", que resposta você daria? R: Sua própria resposta. Poderia talvez sugerir que o cristão sabe que o mundo está repleto de maldade, mas Cristo morreu por todo mal e pecado. Deus está operando através dos eventos da história trazendo glória a Si mesmo. Divisão Temporal Com o intuito de nos ajudar a lembrar e entender os eventos, o historiador tenta arrumá-los em blocos temporais. Os historiadores não estão de acordo acerca de quais divisões são melhores. De fato os eventos do passado podem ser divididos cronologicamente (segundo a ordem do seu acontecimento), geograficamente (segundo o espaço físico) ou de modo temático (segundo seu assunto). NOTA: Às vezes, especialmente nos primeiros dias da igreja, é impossível estabelecer as datas exatas de nascimento e morte das pessoas. Nesses casos, indicamos a data aproximada com a letra "c" (indicando a palavra latina "circa" que quer dizer: aproximadamente).

O método mais apropriado de organização do movimento do tempo geral, desde os dias de Cristo até o presente. Método Cronológico

A expansão do Cristianismo a partir de Jerusalém ou de Roma. Método Geográfico

Vários líderes da igreja primitiva. Método Temático

Causa Histórica

O historiador deve lembrar-se de que Deus está em controle de Seu mundo, e que Ele portanto causa ou permite os eventos históricos. Em vez de intervir de forma extraordinária ou sobrenatural, Deus costuma operar através de causas físicas bastante comuns. Ele pode utilizar uma condição econômica específica, por exemplo, para produzir um resultado espiritual. Atos 8.1,4 nos relata, por exemplo, que os cristãos fugiram de Jerusalém por causa de perseguição (a causa). Mas, eles levaram o Evangelho por toda parte (a conseqüência). O historiador precisa reconhecer que pode haver várias causas contribuindo para um só efeito ou reação. Finalmente, o historiador deve valorizar o impacto do livre arbítrio humano sobre os eventos históricos.

? Suponhamos que você esteja testemunhando a um indivíduo que afirme que as pessoas se tornam crentes em Cristo por serem pobres. Como você responderia a isso? R: Sua própria resposta. Apesar do fato de que algumas pessoas poder tornar-se cristãs por motivos econômicos, há também indivíduos ricos que se convertem a Cristo. A pobreza não é a única causa. As pessoas vêm a Cristo porque sofrem, envolvidas pelo pecado, e somente Cristo é a solução.

OS SEIS PERÍODOS GERAIS DA HISTÓRIA DA IGREJA

(Nessa ajuda 10 iremos ver somente o primeiro período, que vai ajudar no estudo de Atos)

Antes de nos adentrarmos no estudo minucioso dos vinte séculos em que a igreja de Cristo tem estado em atividade, situemo-nos mentalmente sobre o monte da visão, e contemplemos toda a paisagem, todo o campo que, passo a passo, teremos de percorrer.

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De nosso ponto de observação, neste assombroso século vinte e um, lançando o olhar para o passado, veremos elevarem-se aqui e ali, sobre as planícies do tempo, quais sucessivos montes, os grandes acontecimentos da História Cristã, os quais servem como pontos divisórios, e cada um deles assinala o término de uma época e o início de outra. Considerando cada um desses pontos decisivos, seis ao todo, veremos que eles indicam os seis grandes períodos da História da Igreja. No primeiro capítulo faremos um exame geral desses períodos.

O topo culminante que assinala o ponto de partida da igreja de Cristo é o Monte das Oliveiras, não muito distante do muro oriental de Jerusalém. Ali, cerca do ano 30 a.D. Jesus Cristo, que havia ressurgido dentre os mortos, ministrou seus últimos ensinamentos aos discípulos e logo depois ascendeu ao céu, ao trono celestial.

Um pequeno grupo de judeus crentes no seu Senhor, elevado como Messias-Rei de Israel, esperou algum tempo em Jerusalém, sem considerar, inicialmente, a existência de uma igreja fora dos limites do Judaísmo. Contudo, alargaram gradualmente seus conceitos e ministério, até que sua visão alcançou o mundo inteiro, para ser levado aos pés de Cristo. Sob a direção de Pedro, Paulo e seus sucessores imediatos, a igreja foi estabelecida no espaço de tempo de duas gerações, em quase todos os países, desde o Eufrates até ao Tibre, desde o Mar Negro até ao Nilo. O primeiro período terminou com a morte de João, o último dos doze apóstolos, que ocorreu, conforme se crê, cerca do ano 100 (a.D). Consideremos, pois, essa época — "O Período da Era Apostólica".

Durante o período que se seguiu à Era Apostólica, e que durou mais de duzentos anos, a igreja esteve sob a espada da perseguição. Portanto, durante todo o segundo século, todo o terceiro e parte do quarto, o império mais poderoso da terra exerceu todo o seu poder e influência para destruir aquilo a que chamavam "superstição cristã". Durante sete gerações, um nobre exército de centenas de milhares de mártires conquistou a coroa sob os rigores da espada, das feras na arena e nas ardentes fogueiras. Contudo, em meio à incessante perseguição, os seguidores de Cristo aumentaram em número, até alcançar quase metade do Império Romano. Finalmente, um imperador cristão subiu ao trono e por meio de um decreto conteve a onda de mortes.

Evidentemente, os cristãos que durante tanto tempo estiveram oprimidos, de forma rápida e inesperada, por assim dizer, passaram da prisão para o trono. A igreja perseguida passou a ser a igreja imperial. A Cruz tomou o lugar da águia como símbolo da bandeira da nação e o Cristianismo converteu-se em religião do Império Romano. Uma capital cristã, Constantinopla, ergueu-se e ocupou o lugar de Roma. Contudo, Roma, ao aceitar o Cristianismo, começou a ganhar prestígio como capital da igreja. O Império Romano Ocidental foi derrotado pelas hordas(Tribo nômade. Bando indisciplinado) de bárbaros, porém estes foram conquistados pela igreja, e fundaram na Europa nações cristãs, em lugar de nações pagãs.

Com a queda do Império Romano Ocidental, iniciou-se o período de mil anos, conhecido como Idade Média. No início, a Europa era um caos, um continente de tribos sem governo e sem leis de nenhum poder central. Mas, gradativamente, foram-se organizando em reinos. Naquela época, o bispo de Roma esforçava-se não só para dominar a igreja, mas também para dominar o mundo. A religião e o império de Maomé conquistavam todos os países do Cristianismo primitivo. Encontramos, então, o Sacro Império Romano e seus inimigos. Observamos, também, o movimento romântico das Cruzadas no vão esforço para conquistar a Terra Santa que estava em poder dos muçulmanos. A Europa despertava com a promessa de uma próxima reforma, na nova era. Assim como a História Antiga termina com a queda de Roma, a História Medieval termina com a queda de Constantinopla.

Depois do século quinze, a Europa despertou; o século dezesseis trouxe a Reforma da igreja. Encontramos Martinho Lutero afixando suas teses na porta da catedral de Wittemberg. Para defender-se, compareceu ante o imperador e os nobres da Alemanha, e quebrou os grilhões das consciências dos homens. Nessa época, vemos a igreja de Roma

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dividida. Os povos da Europa setentrional fundaram suas próprias igrejas nacionais, de caráter mais puro. Encontramos, também, em atividade a Contra-Reforma, iniciada nos países católicos, para conter o progresso da Reforma. Finalmente, após uma guerra que durou trinta anos, fez-se um tratado de paz em Westfália, em 1648, traçando-se então linhas permanentes entre as nações católico-romanas e as nações protestantes.

Estudaremos, adiante, ainda que rapidamente, os grandes movimentos que abalaram as igrejas e o povo nos últimos três séculos, na Inglaterra, na Europa e na América do Norte. Mencionaremos os movimentos Puritano, Wesleyano, Racionalista, anglo-católico e os movimentos missionários atuais que contribuíram para edificação da igreja de nossos dias e que edificaram, não obstante suas variadas formas e nomes, uma igreja em todo o mundo.

Notaremos, também, a grande mudança que gradualmente transformou o Cristianismo nos séculos dezenove e vinte em uma poderosa organização não só para glória de Deus, mas também para servir aos homens por meio de reformas, de elevação social, enfim, de uma série de esforços ativos para melhorar as condições da humanidade.

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A IGREJA DO PERÍODO PENTECOSTAL

Desde a Ascensão de Cristo, 30 d.C. até à Pregação de Estêvão, 35 d.C.

A igreja cristã em todas as épocas, quer na passada, presente ou futura, é formada por todos aqueles que crêem em Jesus de Nazaré, o Filho de Deus. No ato de crer está implícita a aceitação de Cristo por seu Salvador pessoal, para obedecer-lhe como a Cristo, o Príncipe do reino de Deus sobre a terra.

Lendo as Epístolas do Novo Testamento vemos que mesmo nos tempos apostólicos o erro se manifestou, e que a inimizade, as contendas, as iras, as brigas e as discórdias, com outros males, tinham apagado o amor no coração de muitos crentes verdadeiros.

Deixaram as suas primeiras obras e o seu primeiro amor e alguns que tinham principiado pelo espírito, procuravam depois ser aperfeiçoados pela carne.

Mas havia muito mais do que isso. Não somente existiam alguns verdadeiros crentes em cujas vidas se viam muitas irregularidades, e que procuravam, pelas suas palavras, atrair discípulos a si, como também havia outros que não eram de modo algum cristãos, mas que entraram despercebidamente entre os irmãos, semeando ali a discórdia. Isto descreve o estado de coisas a que se referem os primeiros versículos do capítulo dois de Apocalipse, na carta escrita ao anjo da igreja em Éfeso.

Porém estava para chegar um tempo de perseguição para a Igreja, e isso foi permitido pelo Senhor, na sua graça, a fim de que se pudessem distinguir os fiéis.

Esta perseguição, instigada pelo imperador romano Nero, foi a primeira das dez perseguições gerais que continuaram, quase sem interrupção, durante três séculos.

"Por que razão permite Deus que o seu povo amado sofra assim?" Muitas vezes se tem feito esta pergunta, e a resposta é simples: é porque Ele ama esse povo. Podia haver, e sem dúvida há, outras razões, porém a principal é esta - Ele o ama. "Porque o Senhor corrige o que ama e se o coração se desviar, tornar-se-á necessária a disciplina.

Com que facilidade o mal se liga, mesmo ao melhor dos homens! Mas, na fornalha da aflição, a escória separa-se do metal precioso, sendo aquela consumida. Ainda mais, quando suportamos a correção de Deus, Ele nos trata como filhos; e se sofremos com paciência, cada provocação pela qual Ele nos faz passar dará em resultado mais uma bên-ção para a nossa alma. Tal experiência não nos é agradável, nem seria uma provocação se o fosse, porém, à noite de tristeza sucede a manhã de alegria, e dizemos com o salmista Davi: "Foi bom para mim, ter sofrido aflição".

A igreja de Cristo iniciou sua história com um movimento de caráter mundial, no Dia de Pentecoste, no fim da primavera do ano 30, cinquenta dias após a ressurreição do Senhor Jesus, e dez dias depois de sua ascensão ao céu.

Durante o tempo em que Jesus exerceu seu ministério, os discípulos criam que Jesus era o almejado Messias de Israel, o Cristo. Ora, Messias e Cristo são palavras idênticas. Messias é palavra hebraica e Cristo é palavra grega. Ambas significam "O Ungido", o "Prín-cipe do Reino Celestial". Apesar de Jesus haver aceito esse título de seus seguidores mais chegados, proibiu-lhes, contudo, proclamarem essa verdade entre o povo, antes que ele ressuscitasse de entre os mortos, e nos quarenta dias que precederam sua ascensão, isto é, até quando lhes ordenou pregassem o Evangelho. Mas deviam esperar o batismo do Espírito Santo, para então serem testemunhas em todo o mundo.

Na manhã do Dia de Pentecoste, enquanto os seguidores de Jesus, cento e vinte ao todo, estavam reunidos, orando, o Espírito Santo veio sobre eles de forma maravilhosa. Tão real foi aquela manifestação, que foram vistas descer do alto, como que línguas de fogo, as quais pousaram sobre a cabeça de cada um. O efeito desse acontecimento foi tríplice: a)

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Iluminou as mentes dos discípulos, dando-lhes um novo conceito do reino de Deus. b) Compreenderam que esse reino não era um império político mas um reino espiritual, na pessoa de Jesus ressuscitado, que governava de modo invisível a todos aqueles que o aceitavam pela fé. c) Aquela manifestação revigorou a todos, repartindo com eles o fervor do Espírito, e o poder de expressão que fazia de cada testemunho um motivo de convicção naqueles que os ouviam.

O Espírito Santo, desde então, ficou morando permanentemente na igreja, não em sua organização ou mecanismo, mas como possessão individual e pessoal do verdadeiro cristão. Desde o derramamento do Espírito Santo, naquele dia, a comunidade daqueles primeiros anos foi chamada com muita propriedade, "Igreja Pentecostal".

A igreja teve seu início na cidade de Jerusalém.

Evidentemente, nos primeiros anos de sua história, as atividades da igreja limitaram-se àquela cidade e arredores. Em todo o país, especialmente na província setentrional da Galiléia, havia grupos de pessoas que criam em Jesus como o Rei-Messias, porém não chegaram até nós dados ou informações de nenhuma natureza que indiquem a organização, nem o reconhecimento de tais grupos como igreja. As sedes gerais da igreja daquela época eram o Cenáculo(Sala em que se comia a ceia ou o jantar. P. ext. Refeitório / Senáculo Lugar ou praça

onde o Senado romano realizava as suas sessões), no Monte de Sião, e o Pórtico de Salomão, no Templo.

Todos os membros da Igreja Pentecostal eram judeus. Tanto quanto podemos perceber, nenhum dos seus membros, bem como nenhum dos integrantes da companhia apostólica, a princípio, podia crer que os gentios fossem admitidos como membros da igreja. Quando muito admitiam que o mundo gentio se tornaria judeu, para depois aceitar a Cristo. Os judeus da época dividiam-se em três classes, e as três estavam representadas na igreja de Jerusalém. Os hebreus eram aqueles cujos antepassados haviam habitado a Palestina durante várias gerações; eram eles a verdadeira raça israelita. Seu idioma era chamado "língua hebraica", a qual, no decorrer dos séculos, havia mudado de hebraico clássico do Antigo Testamento para o dialeto que se chamava aramaico ou siro-caldaico. As Escrituras eram lidas nas sinagogas em hebreu antigo, porém eram traduzidas por um intérprete, frase por frase, em linguagem popular. Os judeus gregos ou helenistas eram descendentes dos judeus da dispersão, isto é, judeus cujo lar ou cujos antepassados estavam em terras estrangeiras. Muitos desses judeus haviam-se estabelecido em Jerusalém ou na Judéia e haviam formado sinagogas para atender a suas várias nacionalidades.

Depois da conquista do Oriente por Alexandre o Grande, o grego chegou a ser o idioma predominante em todos os países a este do Mar Adriático e até mesmo em Roma e por toda a Itália. Por essa razão os judeus de ascendência estrangeira eram chamados "gregos" ou "helenistas" apesar de a palavra "heleno" referir-se a grego. Os judeus-helenistas, como povo, fora da Palestina, eram o ramo da raça judaica mais numerosa, mais rica, mais inteligente e mais liberal.

Os prosélitos eram pessoas não descendentes de judeus, as quais renunciavam ao paganismo, aceitavam a lei judaica e passavam a pertencer à igreja judaica, recebendo o rito da circuncisão. Apesar de serem uma minoria entre os judeus, os prosélitos eram encontrados em muitas sinagogas em todas as cidades do Império Romano e gozavam de todos os privilégios do povo judeu. Os prosélitos não devem ser confundidos com "os devotos" ou "tementes a Deus"; estes eram gentios, que deixaram de adorar os ídolos e frequentavam as sinagogas, porém não participavam da circuncisão, nem se propunham observar as minuciosas exigências das leis judaicas. Por essa razão não eram considerados judeus, apesar de se mostrarem amigos deles.

A leitura dos primeiros seis capítulos do livro dos Atos dos Apóstolos dá a entender que durante esse período o apóstolo Simão Pedro era o dirigente da igreja. Em todas as ocasiões era Pedro quem tomava a iniciativa de pregar, de operar milagres e de defender a igreja que então nascia. Isso não significa que Pedro fosse papa ou dirigente oficial

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nomeado por Deus. Tudo acontecia como resultado da prontidão de Pedro em decidir, de sua facilidade de expressão e de seu espírito diretivo. Ao lado de Pedro, o homem prático, encontramos João, o homem contemplativo e espiritual, que raramente falava, porém tido em grande estima pelos crentes.

Em uma igreja comparativamente pequena em número, todos da mesma raça, todos obedientes à vontade do Senhor, todos na comunhão do Espírito de Deus, pouco governo humano era necessário. Esse governo era administrado pelos doze, os quais atuavam como um só corpo, sendo Pedro apenas o porta-voz. Uma frase que se lê em Atos 5:13 indica o alto conceito em que eram tidos os apóstolos, tanto pelos crentes como pelo povo.

No início, a teologia ou crenças da igreja eram simples. A doutrina sistemática foi desenvolvida mais tarde por meio de Paulo. Entretanto, podemos encontrar nos sermões de Pedro três pontos doutrinários considerados essenciais. O primeiro ponto, o maior, era o caráter messiânico de Jesus, isto é, que Jesus de Nazaré era o Messias, o Cristo durante tanto tempo esperado por Israel, e que agora reinava no reino invisível do céu, e ao qual todos os membros da igreja deviam demonstrar lealdade pessoal, reverência e obediência. Outra doutrina essencial era a ressurreição de Jesus. Em outras palavras, que Jesus fora crucificado, ressuscitado dos mortos e agora estava vivo, como cabeça da igreja, para nunca mais morrer. A terceira das doutrinas, contidas nos discursos de Pedro, era a segunda vinda de Jesus. Isto é, o mesmo Jesus que foi elevado ao céu, no tempo determinado voltaria à terra, para reinar com sua igreja. Apesar de Jesus haver declarado aos discípulos que nenhum homem nem anjo algum sabia quando se daria a sua vinda, era geral a expectação de que a vinda de Cristo poderia ocorrer a qualquer momento, naquela geração.

A arma usada pela igreja, através da qual havia de levar o mundo aos pés de Cristo, era o testemunho de seus membros. Dado que temos registrados vários discursos ou pregações de Pedro, e nenhum dos outros discípulos, nesse período, pode-se pensar que Pedro era o único pregador. Contudo, a leitura cuidadosa da História demonstra que todos os apóstolos e toda a igreja davam testemunho do Evangelho. Quando a igreja possuía cento e vinte membros, o Espírito desceu sobre eles e todos se transformaram em pregadores da Palavra. Enquanto o número de membros aumentava, aumentavam as testemunhas, pois cada membro era um mensageiro de Cristo, sem que houvesse distinção entre clérigos e leigos. No fim desse período, encontramos Estêvão elevando-se a tal eminência como pre-gador, que os próprios apóstolos ficam ofuscados. Esse testemunho universal foi uma influência poderosa no crescimento rápido da igreja.

Inicialmente, o grandioso esforço desse punhado de homens de visão necessitava de auxílio sobrenatural, uma vez que se propunha, sem armas materiais nem prestígio social, transformar uma nação, tendo de enfrentar também os poderes da igreja nacional e do Estado. Esse auxílio sobrenatural manifestou-se na forma de operação de maravilhas. Os milagres apostólicos foram considerados como "os sinos que chamam o povo à adoração". Lemos no livro dos Atos dos Apóstolos sobre a cura do coxo que estava à porta Formosa. Esse milagre atraiu a multidão para ouvir a Pedro e aceitar a Cristo. Logo depois está descrita a morte de Ananias e Safira, ao serem repreendidos por Pedro por causa do egoísmo e da falsidade. Esse julgamento da parte de Deus foi uma advertência a quantos tiveram conhecimento dos fatos. A esses milagres seguiram-se outros que incluíam cura de enfermidades. Contudo, esse poder não estava limitado a Pedro nem aos apóstolos. Está escrito que "prodígios e milagres" eram realizados por Estêvão. Essas obras poderosas atraíam a atenção do povo, motivavam investigação e abriam os corações das multidões, para receberam a fé em Cristo.

O amor de Cristo ardia no coração daqueles homens e os constrangia a mostrarem esse amor para com seus condiscípulos, a viver em unidade de espírito, em gozo e comunhão, e, especialmente, a demonstrar interesse e abnegação pelos membros da igreja que necessitavam de socorros materiais. Lemos no livro dos Atos dos Apóstolos que os mais

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ricos davam suas propriedades, de forma tão liberal, que leva a sugerir o socialismo radical na comunhão de bens.

No entanto, é bom notar, que quanto a esse aspecto da Igreja Pentecostal, tudo era feito voluntariamente, ninguém era compelido pela lei ou pela exigência dos pobres em tomar as propriedades dos ricos. Os ricos davam voluntariamente. Deve considerar-se ainda que: foi uma experiência em uma pequena comunidade onde todos estavam juntos; naquela comunidade selecionada todos estavam cheios do Espírito Santo, aspirando, todos eles, em seu caráter, a executar os princípios do Sermão do Monte; a experiência surgiu com a expectativa da iminente volta de Jesus, quando então os bens terrenos não mais seriam necessários; como experiência financeira foi um fracasso, e logo abandonada, pois a igreja em Jerusalém ficou tão pobre, que durante uma geração se recolhiam ofertas nas outras igrejas para ajudá-la; o sistema provocou seus próprios males morais, pois despertou o egoísmo de Ananias e Safira. Na verdade, enquanto estamos sobre a terra somos influenciados pelo interesse próprio e pela necessidade. O espírito dessa dádiva liberal é digno de elogios, porém o plano, ao que tudo indica, não foi muito acertado.

De modo geral, a Igreja Pentecostal não tinha faltas. Era poderosa na fé e no testemunho, pura em seu caráter, e abundante no amor. Entretanto, o seu singular defeito era a falta de zelo missionário. Permaneceu em seu território, quando devia ter saído para outras terras e outros povos. Foi necessário o surgimento da severa perseguição, para que se decidisse a ir a outras nações a desempenhar sua missão mundial. E assim aconteceu mais tarde.

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A EXPANSÃO DA IGREJA

Desde a Pregação de Estêvão, 35 a.D. Até ao Concílio de Jerusalém, 50 a.D.

Entramos agora em uma época da história da igreja cristã, que, apesar de curta — apenas quinze anos — é de alta significação. Nessa época decidiu-se a importantíssima questão: se o Cristianismo devia continuar como uma obscura seita judaica, ou se devia transformar-se em igreja cujas portas permanecessem para sempre abertas a todo o mundo. Quando se iniciou este período, a proclamação do evangelho estava limitada à cidade de Jerusalém e às aldeias próximas; os membros da igreja eram todos israelitas por nascimento ou por adoção. Quando terminou, a igreja já se havia estabelecido na Síria, na Ásia Menor e havia alcançado a Europa. Além disso, os membros da igreja agora não eram exclusivamente judeus; em alguns casos predominavam os gentios. O idioma usado nas assembléias na Palestina era o hebraico ou aramaico, porém, em outras regiões bem mais povoadas o idioma usado era o grego. Estudemos as épocas sucessivas desse movimento em expansão.

Na igreja de Jerusalém surgiu uma queixa contra o critério adotado na distribuição de auxílios aos pobres, pois as famílias dos judeus-gregos ou helenistas eram prejudicadas. Os apóstolos convocaram a igreja e propuseram a escolha de uma comissão de sete homens para cuidarem dos assuntos de ordem material. Esse plano foi adotado, e os sete foram escolhidos, figurando em primeiro lugar o nome de Estêvão, "homem cheio de fé e do Espírito Santo". Apesar de haver sido escolhido para um trabalho secular, bem depressa atraiu as atenções de todos para o seu trabalho de pregador. Da acusação levantada contra ele, quando foi preso pelas autoridades judaicas, e da sua mensagem de defesa, é evidente que Estêvão proclamou a Jesus Cristo como Salvador, não somente para os judeus, mas também para os gentios. Parece que Estêvão foi o primeiro membro da igreja a ter a visão do evangelho para o mundo inteiro, e esse ideal levou-o ao martírio.

Entre aqueles que ouviram a defesa de Estêvão, e que se encolerizaram com suas palavras sinceras, mas incompatíveis com a mentalidade judaica daqueles dias, estava um jovem de Tarso, cidade das costas da Ásia Menor, chamado Saulo. Esse jovem havia sido educado sob a orientação do famoso Gamaliel, conhecido e respeitado intérprete da lei judaica. Saulo participou do apedrejamento de Estêvão, e logo a seguir fez-se chefe de terrível e obstinada perseguição contra os discípulos de Cristo, prendendo e açoitando homens e mulheres. A igreja em Jerusalém dissolveu-se nessa ocasião, e seus membros dispersaram-se por vários lugares. Entretanto, onde quer que chegassem, a Samaria ou a Damasco, ou mesmo a longínqua Antioquia da Síria, eles se constituíam em pregadores do evangelho e estabeleciam igrejas. Dessa forma o ódio feroz de Saulo era um fator favorável à propagação do evangelho e da igreja.

Na lista dos sete nomes escolhidos para administrarem os bens da igreja, além de Estêvão, encontramos também Filipe, um dos doze apóstolos. Depois da morte de Estêvão, Filipe refugiou-se entre os samaritanos, um povo misto, que não era judeu nem gentio, e por isso mesmo desprezado pelos judeus. O fato significativo de Filipe começar a pregar o evangelho aos samaritanos demonstra que ele se havia libertado do preconceito dos judeus. Filipe estabeleceu uma igreja em Samaria, a qual foi reconhecida pelos apóstolos Pedro e João. Foi essa a primeira igreja estabelecida fora dos círculos judaicos; contudo não era exatamente uma igreja composta de membros genuinamente gentios. Mais tarde encontramos Filipe a pregar e a estabelecer igrejas nas cidades costeiras de Gaza, Jope e Cesaréia. Essas eram consideradas cidades gentias, porém todas possuíam densa população judaica. Nessas cidades, forçosamente, o evangelho teria de entrar em contato com o mundo pagão.

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Em uma de suas viagens relacionadas com a inspeção da igreja, Pedro chegou a Jope, cidade situada no litoral. Ali, Tabita ou Dorcas foi ressuscitada. Nessa cidade Pedro permaneceu algum tempo em companhia do outro Simão, o curtidor. O fato de Pedro, sendo judeu, permanecer em companhia de um curtidor significa que Pedro se libertara das restritas regras dos costumes judeus, pois todos os que tinham o ofício de curtidor eram considerados "imundos" pela lei cerimonial. Foi em Jope que Pedro teve a visão do que parecia ser um grande lençol que descia, no qual havia de todos os animais, e foi-lhe dirigida uma voz que dizia: "Não faças tu imundo ao que Deus purificou." Nessa ocasião chegaram a Jope mensageiros vindos de Cesaréia, que fica cerca de quarenta e oito quilômetros ao norte, e pediram a Pedro que fosse instruir a Cornélio, um oficial romano temente a Deus.

Pedro foi a Cesaréia sob a direção do Espírito, pregou o evangelho a Cornélio e aos que estavam em sua casa, e os recebeu na igreja mediante o batismo. O Espírito de Deus sendo derramado como no dia de Pentecoste, testificou sua aprovação divina. Dessa forma foi divinamente sancionada a pregação do evangelho aos gentios e sua aceitação na igreja.

Nessa época, possivelmente um pouco antes de Pedro haver visitado Cesaréia, Saulo, o perseguidor, foi surpreendido no caminho de Damasco por uma visão de Jesus ressuscitado. Saulo, que fora o mais temido perseguidor do evangelho, converteu-se em seu mais ardoroso defensor. Sua oposição fora dirigida especialmente contra a doutrina que eliminava a barreira entre judeus e gentios. Entretanto, quando se converteu, Saulo adotou imediatamente os mesmos conceitos de Estêvão, e tornou-se ainda maior que Estêvão, na ação de fazer prosperar o movimento de uma igreja universal, cujas portas estivessem abertas a todos os homens, quer fossem judeus, quer fossem gentios. Em toda a história do Cristianismo, nenhuma conversão a Cristo trouxe resultados tão importantes e fecundos para o mundo inteiro como a conversão de Saulo, o perseguidor, e mais tarde o apóstolo Paulo.

Na perseguição iniciada com a morte de Estêvão, a igreja em Jerusalém dispersou-se por toda parte. Alguns de seus membros fugiram para Damasco; outros foram para Antioquia da Síria, distante cerca de 480 quilômetros. Em Antioquia os fugitivos frequentavam as sinagogas judaicas e davam seu testemunho de Jesus, como sendo o Messias. Em todas as sinagogas havia um local separado para os adoradores gentios; muitos destes ouviram o evangelho em Antioquia e aceitaram a fé em Cristo. Dessa forma floresceu uma igreja em Antioquia, na qual judeus e gentios adoravam juntamente e desfrutavam o mesmo privilégio. Quando as notícias desses fatos chegaram a Jerusalém, a igreja ficou alarmada e enviou um representante para examinar as relações dos judeus com os gentios.

Felizmente, e para o bem de todos, a escolha do representante recaiu sobre Barnabé, homem de idéias liberais, coração grande e generoso. Barnabé foi a Antioquia, observou as condições, e, em lugar de condenar a igreja local por sua liberalidade, alegrou-se com essa circunstância, endossou a atitude dos crentes dali e permaneceu em Antioquia a fim de participar daquele movimento. Anteriormente Barnabé havia manifestado sua confiança em Saulo. Desta vez Barnabé viajou para Tarso, cerca de 160 quilómetros de distância, trouxe consigo para Antioquia a Paulo, e fê-lo seu companheiro na obra do evangelho. A igreja em Antioquia, com esses reforços, elevou-se a tal proeminência, que ali, pela primeira vez, os seguidores de Cristo foram chamados "cristãos", nome dado não pelos judeus mas pelos gregos, e somente três vezes mencionado no Novo Testamento. Os discípulos de Antioquia enviaram auxílio aos crentes pobres da Judéia, no tempo da fome, e seus dirigentes foram figuras eminentes da igreja primitiva.

Até então, os membros gentios da igreja eram somente aqueles que espontaneamente a procuravam. Daí em diante, sob a direção do Espírito Santo e de acordo com os anciãos, os dois dirigentes de maior destaque na igreja de Antioquia foram enviados em missão evangelizadora a outras terras, pregando tanto para judeus como para gentios. Na história da primeira viagem missionária notamos certas características que se tornaram típicas em todas as viagens posteriores de Paulo. Essa viagem foi realizada por dois obreiros. Inicial-

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mente menciona-se "Barnabé e Saulo", depois "Paulo e Barnabé", e finalmente, Paulo e seus companheiros, apontando Paulo como líder espiritual.

Em relação à mudança do nome de Saulo pode-se explicar da seguinte forma: Era comum naqueles dias um judeu usar dois nomes; um entre os israelitas e outro entre os gentios. Os dois missionários levaram como auxiliar um homem mais jovem chamado João Marcos, o qual os abandonou em meio à viagem. Eles escolheram como principal campo de trabalho as grandes cidades, visitando Salamina e Pafos, na Ilha de Chipre; Antioquia e Icônio, na Pisídia; Listra e Derbe, na Licaônia.

Sempre que lhes era possível, iniciavam o trabalho de evangelização pregando nas sinagogas, pois nelas todos os judeus tinham o direito de falar; tratando-se de um mestre reputado como era Paulo, que havia cursado a famosa escola de Gamaliel, era sempre bem recebido. Além disso, por meio das sinagogas, não só anunciavam o evangelho aos judeus tementes a Deus mas também aos gentios, igualmente religiosos. Em Derbe, a última cidade visitada, estavam bem próximos de Antioquia, onde haviam iniciado a viagem. Em lugar de passarem pelas Portas da Cilicia e regressarem a Antioquia, to-maram a direção oeste e voltaram pelo caminho que haviam percorrido, visitando novamente as igrejas que haviam fundado em sua primeira viagem e nomeando anciãos, de acordo com o costume usado nas sinagogas. Em todas as viagens que o apóstolo Paulo fez mais tarde, o mesmo método de trabalho foi posto em prática.

Em todas as sociedades ou comunidades organizadas, há sempre duas classes de pessoas: os conservadores, olhando para o passado; e os progressistas, olhando para o futuro. Assim aconteceu naqueles dias. Os elementos ultrajudeus da igreja sustentavam que não podia haver salvação fora de Israel. Por essa razão, diziam, todos os discípulos gentios deviam ser circuncidados e observar a lei judaica.

Entretanto os mestres progressistas, encabeçados por Paulo e Barnabé, declaravam que o evangelho era para os judeus e para os gentios, sobre a mesma base da fé em Cristo, sem levar em conta as leis judaicas. Entre esses dois grupos surgiu então uma controvérsia que ameaçou dividir a igreja. Finalmente, realizou-se um concílio em Jerusalém para resolver o problema das condições dos membros gentios e estabelecer regras para a igreja no futuro. Convém registrar que nesse concílio estiveram representados não somente os apóstolos, mas também os anciãos e "toda a igreja". Paulo e Barnabé, Pedro e Tiago, irmão do Senhor, participaram dos debates. Chegou-se, então, a esta conclusão: a lei alcançava somente os judeus e não os gentios crentes em Cristo. Com essa resolução completou-se o período de transição de uma igreja cristã judaica para uma igreja de todas as raças e nações. O evangelho podia, agora, avançar em sua constante expansão.

A IGREJA ENTRE OS GENTIOS

Desde o Concílio de Jerusalém, 50 a.D. Até ao Martírio de Paulo, 68 a.D.

Por decisão do concílio realizado em Jerusalém, a igreja ficou com liberdade para iniciar uma obra de maior vulto, destinada a levar todas as pessoas, de todas as raças, e de todas as nações para o reino de Jesus Cristo. Supunha-se que os judeus, membros da igreja, continuassem observando a lei judaica, muito embora as regras fossem interpretadas de forma ampla por alguns dirigentes como Paulo. Contudo, os gentios podiam pertencer à igreja cristã, mediante a fé em Cristo e uma vida reta, sem submeterem-se às exigências da lei.

Para tomarmos conhecimento do que ocorreu durante os vinte anos seguintes ao concílio de Jerusalém, dependemos do livro dos Atos dos Apóstolos, das epístolas do apóstolo Paulo, e talvez do primeiro versículo da Primeira Epístola de Pedro, que possivelmente se refere a países talvez visitados por ele. A estas fontes de informações pode-se juntar algumas tradições do período imediato à era apostólica, que parecem ser autênticas. O campo de atividades da igreja alcançava todo o Império Romano, que incluía todas as

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províncias nas margens do Mar Mediterrâneo e alguns países além de suas fronteiras especialmente a leste. Nessa época o número de membros de origem gentia continuava a crescer dentro da comunidade, enquanto o de judeus diminuía. À medida que o evangelho ganhava adeptos no mundo pagão, os judeus se afastavam dele e crescia cada vez mais o seu ódio contra o Cristianismo. Em quase todos os lugares onde se manifestaram perseguições contra os cristãos, nesse período, elas eram instigadas pelos judeus.

Durante aqueles anos, três dirigentes se destacaram na igreja. O mais conhecido foi Paulo, o viajante incansável, o obreiro indômito, o fundador de igrejas e o eminente teólogo. Depois de Paulo, aparece Pedro cujo nome apenas consta dos registros, porém foi reconhecido por Paulo como uma das "colunas". A tradição diz que Pedro esteve algum tempo em Roma, dirigiu a igreja nessa cidade, e, por fim, morreu como mártir no ano 67. O terceiro dos grandes nomes dessa época foi Tiago, um irmão mais moço do Senhor, e dirigente da igreja de Jerusalém. Tiago era fiel conservador dos costumes judaicos. Era reconhecido como dirigente dos judeus cristãos; todavia não se opunha a que o evangelho fosse pregado aos gentios. A epístola de Tiago foi escrita por ele. Tiago foi morto no Templo, cerca do ano 62. Assim, todos os três líderes desse período, entre muitos outros menos proeminentes perderam suas vidas como mártires da fé que abraçaram. O registro desse período, conforme se encontra nos 13 últimos capítulos de Atos, refere-se somente às atividades do apóstolo Paulo. Entretanto, nesse período outros missionários devem ter estado em atividade, pois logo após o fim dessa época mencionam-se nomes de igrejas que Paulo jamais visitou. A primeira viagem de Paulo através de algumas províncias da Ásia Menor já foi mencionada em capítulo anterior. Depois do concílio de Jerusalém Paulo empreendeu a segunda viagem missionária. Tendo por companheiro Silas ou Silvano, deixou Antioquia da Síria e visitou, pela terceira vez, as igrejas do continente, estabelecidas na primeira viagem. Foi até às costas do Mar Egeu, a Trôade, antiga cidade de Tróia, e embarcou para a Europa, levando, assim, o evangelho a esse continente. Paulo e Silas estabeleceram igrejas em Filipos, Tessalônica e Beréia, na província de Macedônia. Fundaram um pequeno núcleo na culta cidade de Atenas e estabeleceram forte congregação em Corinto, a metrópole comercial da Grécia. Da cidade de Corinto, Paulo escreveu duas cartas à igreja de Tessalônica, sendo essas as suas primeiras epístolas.

Navegou depois pelo Mar Egeu, para uma breve visita a Éfeso, na Ásia Menor. A seguir atravessou o Mediterrâneo e foi a Cesaréia; subiu a Jerusalém, a fim de saudar a igreja dessa cidade, e voltou ao ponto de partida em Antioquia da Síria. Em suas viagens, du-rante três anos, por terra e por mar, Paulo percorreu mais de três mil quilômetros, fundou igrejas em pelo menos sete cidades e abriu, pode-se dizer, o continente da Europa à pregação do Evangelho. Após um breve período de descanso, Paulo iniciou a terceira viagem missionária, ainda de Antioquia, porém destinada a terminar em Jerusalém, como prisioneiro do governo romano. Inicialmente seu único companheiro fora Timóteo, o qual se havia juntado a ele na segunda viagem e permaneceu até ao fim, como auxiliar fiel e "filho no Evangelho". Contudo, alguns outros companheiros estiveram com o apóstolo, antes de findar esta viagem. A viagem iniciou-se com a visita às igrejas da Síria e Cilicia, incluindo, sem dúvida, a cidade de Tarso, onde nasceu. Continuou a viagem pela antiga rota e visitou, pela quarta vez, as igrejas que estabeleceu na primeira viagem.

Entretanto, após haver cruzado a província de Frigia, em lugar de seguir rumo norte, para Trôade, foi para o Sul, rumo a Efeso, a metrópole da Ásia Menor. Na cidade de Éfeso permaneceu por mais de dois anos, o período mais longo que Paulo passou em um só lugar, durante todas as suas viagens. Seu ministério teve êxito não apenas na igreja em Éfeso mas também na propagação do evangelho em toda a província. As sete igrejas da Ásia, foram fundadas quer direta, quer indiretamente por Paulo. De acordo com seu método de voltar a visitar as igrejas que estabelecera, Paulo navegou de Éfeso para a Macedônia, visitou os discípulos em Filipos, Tessalônica, Beréia e bem assim aqueles que estavam na Grécia. Depois disso sentiu que devia voltar pelo mesmo trajeto, para fazer uma visita final àquelas igrejas. Navegou para Trôade e dessa cidade passou pela costa da Ásia Menor. De Mileto, o porto de Éfeso, mandou chamar os anciãos da igreja de Éfeso, e

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despediu-se deles com emocionante exortação. Recomeçou a viagem para Cesaréia, e subiu a montanha até Jerusalém. Nesta cidade Paulo terminou a terceira viagem missionária, quando foi atacado pela multidão de judeus no templo, aonde fora adorar. Os soldados romanos protegeram o apóstolo da ira do populacho, e o recolheram à fortaleza de Marco António.

A terceira viagem missionária de Paulo foi tão longa quanto a segunda, exceto os 480 quilômetros entre Jerusalém e Antioquia. Seus resultados mais evidentes foram a igreja de Éfeso e duas das suas mais importantes epístolas, uma à igreja em Roma, expondo os princípios do evangelho de acordo com a sua própria maneira de pregar, e outra aos Gálatas dirigida às igrejas que estabelecera na primeira viagem, onde os mestres judaizantes haviam pervertido muitos discípulos.

Durante mais de cinco anos, após sua prisão, Paulo esteve prisioneiro; algum tempo em Jerusalém, três anos em Cesaréia e pelo menos dois anos em Roma. Podemos considerar a acidentada viagem de Cesaréia a Roma, como a quarta viagem de Paulo, pois, mesmo preso, era ele um intrépido missionário que aproveitava todas as oportunidades para anunciar o evangelho de Cristo. O motivo da viagem de Paulo foi a petição que ele fez. Na qualidade de cidadão romano apelou para ser julgado pelo imperador, em Roma. Seus companheiros nessa viagem foram Lucas e Aristarco, os quais talvez tenham viajado como seus auxiliares. Havia, a bordo do navio em que viajavam, criminosos confessos que eram levados para Roma a fim de serem mortos nas lutas de gladiadores. Havia, também, soldados que guardavam os presos que viajavam no navio. Podemos estar certos de que toda essa gente que participou da longa e perigosa viagem, ouviu o evangelho anunciado pelo apóstolo. Em Sidom, Mirra e Creta, onde o navio aportou, Paulo proclamou a Cristo. Em Melita (Malta) onde estiveram durante três meses após o naufrágio, também se converteram muitas pessoas.

Finalmente Paulo chegou a Roma, a cidade que durante muitos anos foi o alvo de seu trabalho e esperança. Apesar de se tratar de um preso à espera de julgamento, contudo a Paulo foi permitido viver em casa alugada, acorrentado a um soldado. O esforço principal de Paulo, ao chegar a Roma, foi evangelizar os judeus, tendo para esse fim convocado seus compatriotas para uma reunião que durou o dia inteiro. Verificando que apenas uns poucos dos judeus estavam dispostos a aceitar o Evangelho, voltou-se então para os gentios. Por espaço de dois anos, a casa em que Paulo morava em Roma funcionou como igreja, onde muitos encontraram a Cristo, especialmente os soldados da guarda do Pre-tório. Contudo seu maior trabalho realizado em Roma foi a composição de quatro epístolas, que se contam entre os melhores tesouros da igreja. As epístolas foram as seguintes: Efésios, Filipenses, Colossenses e Filemom. Há motivos para crer que após dois anos de prisão, Paulo foi absolvido e posto em liberdade.

Podemos, sem dúvida, considerar os três ou quatro anos de liberdade de Paulo, como a continuação de sua quarta viagem missionária. Notamos alusões ou esperanças de Paulo, de visitar Colossos ou Mileto. Se estava tão próximo de Éfeso, como o estavam os dois mencionados lugares, parece certo que visitou esta última cidade. Visitou, também, a Ilha de Creta, onde deixou Tito responsável pelas igrejas, e esteve em Nicópolis no Mar Adriático, ao norte da Grécia. A tradição declara que neste lugar Paulo foi preso e enviado outra vez para Roma, onde foi martirizado no ano 68. A este último período podem pertencer estas três epístolas: Primeira a Timóteo, Tito e Segunda a Timóteo, sendo que a última foi escrita na prisão, em Roma.

No ano 64 uma grande parte da cidade foi destruída por um incêndio. Diz-se que foi Nero, o pior de todos os imperadores romanos, quem ateou fogo à cidade.

Contudo essa acusação ainda é discutível. Entretanto a opinião pública responsabilizou Nero por esse crime. A fim de escapar dessa responsabilidade, Nero apontou os cristãos como culpados do incêndio de Roma, e moveu contra eles tremenda perseguição. Milhares de cristãos foram torturados e mortos, entre os quais se conta o apóstolo Pedro, que foi crucificado no ano 67, e bem assim o apóstolo Paulo, que foi decapitado no ano 68. Essas

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datas são aproximadas, pois os apóstolos acima citados ja podem ter sido martirizados um ou dois anos antes. E uma das "vinganças" da História , que naqueles jardins onde multidões de cristãos foram queimados como "tochas vivas" enquanto o imperador passeava em sua carruagem, esteja hoje o Vaticano, residência do sumo-pontífice católico-romano, e a basílica de São Pedro, o maior edifício da religião cristã.

Na época do concílio de Jerusalém, no ano 50, não havia sido escrito nenhum dos livros do Novo Testamento. A igreja, para conhecimento da vida e dos ensinos do Salvador, dispunha tão-somente das memórias dos primitivos discípulos. Entretanto, antes do final deste período, 68 a. D., grande parte dos livros do Novo Testamento já estavam circulando, inclusive os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e as epístolas de Paulo, Tiago, 1 Pedro e talvez 2 Pedro, embora questões tenham sido levantadas quanto a autoria dessa última. Deve-se lembrar que é provável que a epístola aos Hebreus tenha sido escrita depois da morte de Paulo, não sendo, portanto, de sua autoria.

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A ERA SOMBRIA

Desde o Martírio de Paulo, 68 a.D. Até à Morte de João, 100 a.D.

À última geração do primeiro século, a que vai do ano 68 a 100, chamamos de "Era Sombria", em razão de as trevas da perseguição estarem sobre a igreja, e também porque de todos os períodos da História é o que menos conhecemos. Para iluminar os acontecimentos desse período, já não temos a luz do livro dos Atos dos Apóstolos. Infelizmente, nenhum historiador da época preencheu o vácuo existente. Gostaríamos de ler a descrição dos fatos posteriores relacionados com os auxiliares de Paulo, principalmente de Tito, Timóteo e Apolo. Entretanto, estes e outros amigos de Paulo, após a morte do apóstolo, permanecem ausentes dos comentários e registros.

Após o desaparecimento de Paulo, durante um período de cerca de cinquenta anos uma cortina pende sobre a igreja. Apesar do esforço que fazemos para olhar através da cortina, nada se observa. Finalmente, cerca do ano 120, nos registros feitos pelos "Pais da Igreja", deparamos com uma igreja em vários aspectos, muito diferente da igreja apostólica dos dias de Pedro e de Paulo.

A queda de Jerusalém no ano 70 impôs grande transformação nas relações existentes entre cristãos e judeus. De todas as províncias dominadas pelo governo de Roma, a única descontente e rebelde era a Judéia. Os judeus, de acordo com a interpretação que davam às profecias, consideravam-se destinados a conquistar e a governar o mundo; baseados nessa esperança, somente forçados pelas armas e pelas ameaças é que se submetiam ao domínio dos imperadores romanos. Temos de admitir, também, que muitos procuradores e governadores romanos fracassaram inteiramente na interpretação dos sentimentos e caráter judaicos, e, por essa razão, tratavam os judeus com aspereza e arrogância.

Por volta de 66, os judeus rebelaram-se, abertamente, apesar de não terem, desde o início, condição de vencer. Que poderia fazer uma das mais pequenas províncias, cujos homens desconheciam o adestramento militar, contra um império de cento e vinte milhões de habitantes, com duzentos e cinquenta mil soldados disciplinados e peritos na arte de guerra? Além disso, os próprios judeus estavam uns contra os outros, e matavam-se entre si, com tanta violência como se a luta fosse contra Roma, o inimigo comum. Vespasiano, o principal general romano, conduziu um grande exército até à Palestina. Entretanto, logo depois foi chamado a Roma, para ocupar o trono imperial. Ficou então na Palestina, chefiando o exército romano, o general Tito, filho de Vespasiano. Após prolongado cerco, agravado pela fome e pela guerra civil dentro dos muros, a cidade de Jerusalém foi tomada e destruída pelos exércitos romanos. Milhares e milhares de judeus foram mortos, e outros milhares foram feitos prisioneiros, isto é, escravos. O famoso Coliseu de Roma foi construído pelos judeus prisioneiros, os quais foram obrigados a trabalhar como escravos, e alguns deles trabalharam até morrer. A nação judaica, depois de treze séculos de existência, foi assim destruída. Sua restauração deu-se no dia 15 de maio de 1948.

Na queda de Jerusalém morreram poucos cristãos; quiçá, nenhum. Atentos às declarações proféticas de Cristo, os cristãos foram admoestados e escaparam da cidade ameaçada; refugiaram-se em Pela, no Vale do Jordão. Entretanto, o efeito produzido na igreja, pela destruição da cidade foi que pôs fim, para sempre, nas relações entre o Judaísmo e o Cristianismo. Até então, a igreja era considerada pelo governo romano e pelo povo, em geral, como um ramo da religião judaica. Mas, dali por diante judeus e cristãos separaram-se definitivamente. Um pequeno grupo de judeus-cristãos ainda perseverou durante dois séculos, porém em número sempre decrescente. Esse grupo eram os ebionitas, somente reconhecidos pela igreja no sentido geral, porém desprezados e apontados como apóstatas, pelos judeus, gente da sua própria raça.

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Cerca do ano 90, o cruel e indigno imperador Domiciano iniciou a segunda perseguição imperial aos cristãos. Durante esses dias, milhares de cristãos foram mortos, especialmente em Roma e em toda a Itália. Entretanto, essa perseguição, como a de Nero, foi esporádica, local e não se estendeu a todo o império. Nessa época, João, o último dos apóstolos, que vivia na cidade de Éfeso, foi preso e exilado na ilha de Patmos, no Mar Egeu. Foi em Patmos que João recebeu a revelação que compõe o livro do Apocalipse, o último do Novo Testamento. Muitos eruditos, entretanto, afirmam que foi escrito mais cedo, isto é, provavelmente no ano 69, pouco depois da morte de Nero. É provável que João tenha morrido em Éfeso por volta do ano 100.

Foi durante esse período que se escreveram os últimos livros do Novo Testamento — Hebreus e talvez a Segunda epístola de Pedro, as três epístolas e o evangelho de João, epístola de Judas e o Apocalipse.

Contudo, o reconhecimento universal destes livros, como inspirados e canônicos, só aconteceu mais tarde.

É interessante notar o estado do Cristianismo no fim do primeiro século, cerca de setenta anos depois da ascensão de Cristo. Por essa época havia famílias que durante três gerações vinham seguindo a Cristo.

No início do segundo século, os cristãos já estavam radicados em todas as nações e em quase todas as cidades, desde o Tibre ao Eufrates, desde o Mar Negro até ao norte da África, e alguns crêem que se estendia até a Espanha e Inglaterra, no Ocidente. O número de membros da comunidade cristã subia a muitos milhões. A famosa carta de Plínio ao imperador Trajano, escrita lá pelo ano 112, declara que nas províncias da Ásia Menor, nas margens do Mar Negro os templos dos deuses estavam quase abandonados, enquanto os cristãos em toda parte formavam uma multidão, e pertenciam a todas as classes, desde a dos nobres, a até a dos escravos, sendo que estes últimos, no império, excediam em número à população livre. Acontecia, porém, que na igreja o escravo era tratado igualmente como o livre. Um escravo podia chegar a ser bispo, enquanto seu amo e senhor não passava de simples membro.

No final do primeiro século, as doutrinas ensinadas pelo apóstolo Paulo na epístola aos Romanos eram aceitas por toda a igreja, como regra de fé. Os ensinos de Pedro e João, exarados nas respectivas epístolas, concordam com os de Paulo. Surgiam nesse tempo idéias heréticas e formavam-se seitas, cujos germens foram descobertos e expostos pelos apóstolos; contudo, o desenvolvimento dessas heresias só aconteceu mais tarde.

O batismo, principalmente por imersão, era o rito de iniciação na igreja em toda parte. Contudo, no ano 120 aparecem menções do costume de batismo por aspersão; isso quer dizer que nesse tempo já estava em uso. O dia do Senhor era observado de modo geral, apesar de não o ser de forma estrita, como um dia absolutamente separado. Enquanto a igreja fora composta de maioria judaica, se observava o sábado; agora o primeiro dia da semana pouco a pouco tomava o lugar do sétimo. Já nos dias de Paulo havia igrejas que se reuniam no primeiro dia da semana, e no livro do Apocalipse esse dia é chamado "o dia do Senhor".

A Ceia do Senhor era observada universalmente. A Ceia, no início, era celebrada no lar, assim como a páscoa, da qual se originou. Entretanto, nas igrejas gentílicas apareceu o costume de celebrar-se uma reunião da igreja como se fosse uma ceia qualquer, para a qual cada membro levava a própria provisão. O apóstolo Paulo repreendeu a igreja em Corinto pelo abuso que esse costume havia causado. No fim do século a Ceia do Senhor era celebrada onde os cristãos se reuniam, porém (talvez, por causa da perseguição), não em reuniões públicas. Somente os membros da igreja eram admitidos nas reuniões em que celebravam a Ceia, que era considerada como um "mistério". O reconhecimento do domingo da ressurreição como aniversário da ressurreição de Cristo fora sancionado e aumentava dia a dia; contudo, nessa época ainda não era de guarda universal.

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O último sobrevivente dos apóstolos foi João, que morou na cidade de Éfeso até ao ano 100. Não se lê em nenhum documento que houvesse sucessores para o cargo de apóstolo. Contudo, no ano 120 faz-se menção de "apóstolos", que parece haverem sido evangelistas que visitavam as igrejas, porém sem autoridade apostólica. Evidentemente não eram muito respeitados, pois às igrejas recomendava-se que os hospedassem somente durante três dias.

No livro dos Atos dos Apóstolos e nas últimas epístolas, os títulos anciãos (presbíteros) e bispos são mencionados como se fossem aplicados alternadamente à mesma pessoa. No entanto, no fim do primeiro século aumentava a tendência de elevar os bispos, acima de seus companheiros, os anciãos, costume que mais tarde conduziu ao sistema eclesiástico. Os diáconos são mencionados nas últimas epístolas de Paulo como funcionários da igreja. Na epístola aos Romanos, escrita no ano 58, aproximadamente, Febe de Cencréia é chamada diaconisa, e uma referência em 1 Timóteo pode haver sido feita a mulheres que desempenhavam esse cargo.

O plano das reuniões nas assembléias cristãs era uma derivação das reuniões das sinagogas judaicas, Liam-se as Escrituras do Antigo Testamento e porções das cartas apostólicas, os evangelhos; os salmos da Bíblia e os hinos cristãos eram cantados; as orações diferiam das que se faziam nas sinagogas, porque nas assembléias cristãs eram espontâneas; o uso da palavra era oferecido, sem restrições, aos irmãos visitantes. No final das reuniões era frequente participarem da Ceia do Senhor. Quando lemos as últimas epístolas e o livro do Apocalipse, encontramos misturadas luz e sombra, nos rela-tos que se referem às igrejas. As normas de caráter moral eram elevadas, porém o nível da vida espiritual era inferior ao que se manifestara nos primitivos dias apostólicos. Contudo, por toda parte a igreja era forte, ativa, próspera e se esforçava por predominar em todos os extremos do Império Romano.

Espero que o estudo do primeiro período da igreja, sirva de ajuda para tirar um maior proveito no estudo de Atos; primeiro trimestre de 2011.

Fonte: Apostila do Curso de Formação de Professores da EBD em Areia Branca

Fonte: http://www.ebdareiabranca.com/2011/1trimestre/sumario.htm