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O Sutra de Hui Neng

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Primeira tradução ao portugues brasileiro do clássico sutra da tradição zen-budista.

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Tam Huyen Van

O Sutra de Hui Neng

Sutra do VIo Patriarca no Alto Assento do “Tesouro do Dharma”

1ª Edição Revisada

Editor: Claudio Miklos Rio de Janeiro

2007

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Título: O Sutra de Hui Neng Sutra do VI° Patriarca no Alto Assento do ''Tesouro Do Dharma''

Autor (tradutor): Tam Huyen Van (Claudio Miklos)

Nº de Edição: 1 (Revisada)

Ano de Edição: 2007 Local de Edição: Rio de Janeiro - RJ

Editor: Claudio Miklos

ISBN: 978-85-906901-4-6

Printed and Published by AGBOOK – http://www.agbook.com.br Support Independent Publishing

Apóie a produção literária independente

Traduzido ao Inglês por Wong Mou-Lam e revisado por Christmas Humphreys e A.F.Price

Traduzido ao Português por Tam Huyen Van (Claudio Miklos) (tendo como base de referência o original em chinês – apenas para

consultas limitadas - e sua referida versão em Inglês)

Arte da Capa: Imagem tradicional do Patriarca Wei Lang (Hui Neng). Cover Design: Claudio Miklos

Imagens dos Patriarcas: Originais da Publicação “Hui Neng Sutra” - H.K. Buddhist Book Distributor Press.

Esta tradução é baseada em um texto de domínio público.

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Corpo de Wei-Lang (Hui Neng), preservado em betume após seu

despedaçamento por soldados do Exército Vermelho durante a Revolução Cultural na China

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O Sutra do 6o Patriarca Hui neng NO ALTO ASSENTO DO “TESOURO DO DHARMA”

Introdução à Tradução Brasileira__________________7

Prefácio à Edição Brasileira _____________________ 13

Prefácio______________________________________ 15

Prefácio de Wong Mou-Lam_____________________ 17

Capítulo I - Autobiografia _____________________ 19

Capítulo II - Sobre Prajna _____________________37

Capítulo III - Dúvidas e Questionamentos _______ 51

Capítulo IV - Samadhi e Prajna_________________59

Capítulo V - Dhyana _________________________65

Capítulo VI - Sobre a Contrição ________________67

Capítulo VII - Transformações e Afinidades ______79

Capítulo VIII - Escola Súbita e Escola Gradual __ 107

Capítulo IX - Patronato Real__________________ 121

Capítulo X - As Instruções Finais ______________ 125

Apêndice por Ling Tao, o Guardião do Stupa______ 143

Apêndice da Edição Brasileira __________________ 145

Imagens de Buddha e dos Patriarcas ___________ 145 Sobre o Tradutor Brasileiro 181 Agradecimentos Finais 183 Sobre o Colegiado Buddhista Brasileiro 185

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Para minha filhinha, Diana Miklos. Espírito luminoso que surgiu em minha vida, Trazendo mais sabedoria, aprendizado e amor

Aos meus caminhos e dias.

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Introdução à Tradução Brasileira

Este presente trabalho de tradução foi realizado com o intuito de oferecer aos praticantes budistas e estudiosos de língua portuguesa um texto importantíssimo para a tradição Ch´an (Zen) em particular, e Budista em geral. O Sutra do Sexto Patriarca no Alto Assento do Tesouro do Dharma (Catálogo Nanjio número 1525) - comumente chamado de Sutra da Plataforma - é um registro maravilhoso da essência do pensamento zen, a partir da ótica tradicional e hierárquica chinesa, justamente em seus primórdios.

Tal peça literária se compõe de uma coletânea de sermões e palestras proferidas por Wei Lang (638-713 d.C., mais conhecido como Hui Neng), o mais famoso Mestre Dhyana (Ch´an; Zen) da Dinastia Tang, o sexto Patriarca chinês da linha sucessória iniciada naquele país por Bodhidharma, por sua vez pertencente ao grupo de grandes Arahants (Patriarcas) que remontam ao próprio Gautama Buddha. Hui Neng foi indubitavelmente a pedra fundamental do engrandecimento e sustentação plena do budismo Ch´an no cenário cultural chinês, o qual desde então tornou-se respeitado como uma escola definida, de profunda filosofia prática e interpretativa, e de uma originalidade argumentativa tão grande que até hoje milhões de praticantes amadurecem em consciência e sabedoria através daqueles ensinamentos e orientações.

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Na qualidade de único texto de língua chinesa a possuir o título de “Sutra” -- designação que normalmente é dada apenas aos sermões do próprio Buddha e dos grandes Bodhisattvas -- devemos, portanto, dar ao Sutra de Hui neng a importância e atenção que merece. E com certeza esta atenção dispensada será muito valiosa. O Sutra de Hui Neng é um documento surpreendentemente atual em sua natureza filosófica; nele podemos encontrar os maiores méritos éticos do budismo, colocados com a conhecida pertinência algo jocosa, algo paradoxal da tradição zen-budista, além de podermos discernir claramente o quanto a prática dos ensinamentos de Buddha depende de uma visão libertária, compassiva, desprendida e natural, através do crivo da assim chamada Mente Búddhica ou, como costumo denominar, Mente do Discernimento. Essa é, sob a ótica zen, a melhor abordagem que o praticante deve fazer do Dharma. Hui Neng soube traduzir este espírito perceptivo de uma forma completa e ampla, sem jamais sucumbir ao exagero argumentativo. O sutra é igualmente um compêndio interessante sobre os termos básicos da experiência de Esclarecimento segundo a ótica prática do Dhyana (a meditação budista), e um libelo à prática natural, fluida, sem imposições de nenhum tipo, sejam intelectuais ou dogmáticas.

O Espírito do Zen originou-se, segundo a tradição, a partir de um conto denominado “Sutra (Discurso) da Flor” 1 em que Buddha, ao ser questionado sobre qual seria o segredo fundamental de seus ensinamentos, ergueu uma flor dourada em uma de suas mãos e, com um leve sorriso, a girou em silêncio. Todos ficaram surpresos exceto o venerável Maha Kassyapa o qual, captando o significado do

1 SEKIDA, Katsuki (trad.). Two Zen Classics (Boston & London:

Shambala Publications INC. , 2005), pág. 41; também citado em HANH, Thich Nhat. Velho Caminho, Nuvens Brancas (Porto Alegre: Bodigaya, 2007). Cap. 82; também JUNG, C.G. Psicologia e Religião Oriental, (São Paulo: Círculo do Livro, 1992), p. 73 nota 2.

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ensinamento, sorriu para Buddha. Compreendendo que o significado fundamental do Dharma está além das palavras, Maha Kassyapa posteriormente foi aquele que sucedeu o Buddha quando este entrou em Parinirvana. Seguindo à risca este significado, a escola zen desenvolveu-se na China como um movimento espiritual associado à busca da liberdade da mente, de seu sentido original, fora da linguagem e de intelectualismos, ainda que tais conceitos sejam ponto de discordância principalmente para aqueles pensadores modernos que optam por considerar tais afirmações sob uma ótica puramente racional, sem levar em conta outros aspectos (e potencialidades) da psicologia, da espiritualidade e da percepção humana.

Diante de tais referências, creio que fica ainda mais claro o valor que este Sutra possui para aqueles que sinceramente estão interessados na prática e no estudo do Dharma em sua mais profunda significância e sentido. Mesmo para os praticantes de outras escolas, penso que o Sutra de Hui Neng será de grande utilidade e pertinência, principalmente se considerarmos que aquilo ensinado pelo mestre Ch´an Hui Neng não vai absolutamente de encontro a nenhuma outra tradição, muito ao contrário, segue plenamente os reais ensinamentos de Shakyamuni Buddha.

Finalmente, gostaria de dar algumas pequenas explicações sobre o meu trabalho de tradução. Evidentemente, um documento tão importante deveria ter como tradutor principal alguém com maiores qualificações acadêmicas. Infelizmente, eu não as possuo; a meu favor tenho apenas o fato de ser um praticante e estudioso leigo zen-budista há mais de 25 anos, atualmente (2004) ligado a escola zen vietnamita (escola Tiep Hien, ou “Interser” como normalmente chamada no Brasil) de Thich Nhat Hanh. Também sou orientador de grupos de prática Budista informal e palestrante, escritor de pequenos ensaios Budistas e filosóficos (todos inéditos, talvez um dia deixarão de ser), assim como tradutor de textos e Sutras, sempre em caráter

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informal. Meu empenho em traduzir este texto surgiu há cerca de cinco anos (escrevo esta introdução em 2004), mas outros afazeres e uma certa dose de cautela atrasaram em muito o término do trabalho.

O texto que usei foi uma conhecida tradução do Sutra ao Inglês feita por Wong Mou-lam em 1930, revisada por Christmas Humphreys em 1952 e publicada por H.K. BUDDHIST BOOK DISTRIBUTOR PRESS. Usei também uma versão revisada por A. F. Price, encontrada por mim em uma de minhas muitas pesquisas na Internet.

Admito que é sempre lamentável lidar com a tradução de uma tradução. No caso da escrita chinesa, isso é ainda mais perigoso pois equívocos sérios podem ocorrer. Na verdade, o próprio Wong Mou-lam admitiu que sua tradução ao inglês também corre os mesmos riscos. Embora eu não seja absolutamente um sinólogo ou sequer possa me considerar um grande virtuoso na língua chinesa, meu interesse por ela já vem de muitos anos, assim como pela língua sânscrita. Portanto, ao longo desta tradução do texto em inglês, tive ao meu lado o original em chinês e procurei observar cuidadosamente algumas cautelas ao transcrever os conceitos e termos. Alguns comentários feitos entre colchetes são de minha autoria.

Em relação ao estilo, optei pelo uso de uma gramática formal, mesmo me arriscando a cometer sérios erros de concordância (a língua portuguesa não é das mais simples, com certeza). Sendo um texto antigo, fundamentado em um discurso extremamente profundo, considerei que o formalismo verbal daria ao Sutra a dignidade que ele merece.

O eminente Wong Mou-lam optou por traduzir alguns termos filosóficos diretamente para o Sânscrito e assim, mesmo que no original vejamos estes termos escritos em chinês, em ambas as traduções (a inglesa e a portuguesa) foram usados os nomes originais em sânscrito, tais como: Prajna para o chinês Hui, Samadhi para o chinês Ting, etc. Isso além de facilitar a compreensão daqueles já acostumados

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com a nomenclatura sânscrita (mais conhecida do que a chinesa), também evita o problema não pequeno de pequenas discrepâncias gráficas na latinização dos ideogramas chineses.

Quanto ao parâmetro usado para a grafia latina dos termos chineses, eu optei por preservar na maior parte a grafia do texto original de Mou-lam. Atualmente, o padrão oficial Hanyu Pinyin – ao contrário do Wades-Giles ou outros – tem sido o mais usado para indicar a sonorização dos ideogramas, mas não procurei usa-lo aqui, exceto em alguns pontos onde julguei mais pertinente.

Deste modo, penso que esta tradução não será considerada extremamente distante do sentido original. Espero que meus leitores mais eruditos sejam compreensivos e pacientes com minhas limitações na qualidade de tradutor, e compreendam que, apesar de minha pretensão tenha sido talvez muito grande, meu apreço pela sabedoria de Buddha, minha confiança no quanto tais ensinamentos são saudáveis e corretos, e minha certeza do valor de sua divulgação foram mais fortes do que minha modéstia e cautela.

Gostaria de agradecer finalmente aqueles que me incentivaram nesta empreitada, sobretudo por sua justa compreensão das dificuldades em se realizar um trabalho como este dentro dos ditames da Palavra Correta, Correto Discernimento e da Correta Atenção, que procurei sempre praticar ao longo destes dois anos de lenta tradução.

Meus mais profundos respeitos a Hildeth Farias, coordenadora do Centro Lótus de Estudos Budistas, que me presenteou com o texto original do Sutra; ao meu amigo Flávio Capllonch por seu entusiástico incentivo; a Ricardo Sasaki, coordenador do Centro Nalanda de Estudos Buddhistas de Minas Gerais – ele mesmo um grande tradutor e editor de importantes textos Theravada e budistas em geral; ao Rev. Monge Meihô Gensho (Petrúcio Chalegre), um dos maiores nomes no estudo e desenvolvimento do Zen Soto

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brasileiro; e ao venerável Lama Padma Samten, grande nome do budismo brasileiro e coordenador do Instituto Caminho do Meio e do Centro de Estudos Budistas Bodisatva, por seus singelos e carinhosos elogios ao longo destes últimos meses, quando enviei o texto traduzido via Internet para alguns interessados.

Que todos possam usufruir os méritos destes ensinamentos, e que graças a eles a Paz, a Harmonia e o Correto Discernimento possam ser um pouco mais praticados e difundidos no mundo.

Rio de Janeiro, 20 de Junho de 2004, Ano Budista 2548.

Tam Huyen Van (Claudio Miklos)

Sarve Bhavantu Mangalam – Que Todos os Seres Sejam Felizes Pratique a Paz

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Prefácio à Edição Brasileira

Este trabalho é como uma voz que nos fala de 13 séculos, ecoando nas montanhas da China e reverberando até um ocidente que nem era uma terra conhecida àquele tempo, tampouco nela se vislumbrava o futuro estabelecimento da civilização do extremo ocidente. O budismo dirigiu-se sem parar para o Leste, e assim, paradoxalmente, como é comum no zen, chegou ao Oeste. Em cada lugar onde floresceu conheceu uma época dourada e depois uma lenta decadência, agora parece ser o momento do início áureo no ocidente, de modo auspicioso textos produzidos nas Américas começam a ser lidos no oriente, e o impulso de estudar e praticar ressurge nos países do Leste levado pelas mãos de entusiasmados praticantes ocidentais que lá chegam procurando por uma prática que agonizava.

É neste contexto que podemos ler o esforço de tradução realizado no presente trabalho. Trata-se de semeadura, o trabalho compilado das palestras de Hui Neng é um texto seminal, foi ele o responsável pela grande expansão do Ch’an chinês, 43 discípulos reconhecidos, que deixou o Patriarca, é uma obra inaudita, muitos mestres não conseguiram deixar um só sucessor e viram suas linhagens desaparecer no pó dos tempos.

De Hui Neng nasceram cinco grandes escolas Ts’ao-tung (jap. Sôtô), Yung-men (jap. Unmon), Fa-yen (jap. Hôgen), Kuei-yang (jap. Igyô), Lin-chi (jap. Rinzai) destas sobreviveram até nossos dias somente a de Ts’ao-tung e a de Lin-chi.

Em um tempo em que é fácil o surgimento de falsos mestres, e auto denominados iluminados, colocar à disposição de todos um texto de grande força e originalidade, tende a enfatizar a necessidade de escolher cuidadosamente linhagem e professor do Dharma. O

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esforço de colocar o ensino em trilhos corretos está presente todo o tempo nas intervenções de Hui Neng, embora se auto declare analfabeto, suas palestras estão repletas das citações e referências de um estudioso mas muito mais do que isto possuem a marca de uma experiência pessoal vivíssima.

Suas declarações paradoxais e aparentemente contraditórias pretendem fazer os alunos voltar-se para uma verdade fundamental, além do quietismo e da perturbação mental, ele verbera ora o raciocínio ora o mero sentar vazio e qualquer coisa que lhe pareça afastar-se do caminho do meio. Este é um motivo importante para que a leitura do sutra deva ser feita na íntegra, a citação de frases isoladas causará grandes enganos, visto Hui Neng ter preconizado que as respostas devessem ser em pares de opostos, e baseadas em antônimos, somente uma leitura abrangente dá a visão correta de seu pensamento.

Que o budismo brasileiro nascente tenha à sua frente um período dourado é natural, que possamos agora aproveitar da tarefa dos que se dedicam a difundir o ensino dos grandes mestres, os méritos de um trabalho como este são incomensuráveis.

Rev. Monge Meihô Gensho (Petrúcio Chalegre) Escola Soto Zen

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Prefácio

Há muito tempo tenho o desejo de ver este Sutra

traduzido para uma língua ocidental de forma que a Mensagem do Zen pudesse ser transmitida ao Oeste. A idéia me obsedou impiedosamente por cerca de trinta anos, uma vez que não conseguia encontrar um tradutor para assumir o trabalho, até encontrar o Sr. Wong na última primavera. Sob o êxtase da alegria, convidei-o a ficar em minha casa de modo a poder traduzir este Sutra ao Inglês. Trabalhando hora sim e hora não, tomou-se-lhe quase um ano para lograr ter a tradução completada. Meu desejo está agora realizado, e que ele possa provar ser um dos mais felizes eventos acontecidos nos últimos mil e duzentos anos.

Agora que uma tentativa de disseminar esta Boa Lei para o Oeste foi feita, eu espero pelo dia quando a Europa e América irão produzir um tipo de praticante Zen cujo rápido entendimento e realização espontânea na solução do “Supremo Problema” será superior até mesmo dos nossos companheiros orientais. Imaginando ter consolidado o mais favorável vínculo com os Ocidentais, minha felicidade é imensurável.

Dih Ping Tsze Shanghai, Março, 1930

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Prefácio de Wong Mou-Lam

Esta é uma tradução inglesa do Sutra Proferido pelo Sexto Patriarca No Alto Assento do Tesouro do Dharma (Catálogo Nanjio no 1525), e registra os sermões e ditos de Wei Lang (638-713), o mais famoso Mestre Dhyana da Dinastia Tang. É interessante notar que, de todos os trabalhos chineses que tem sido canonizados no Tripitaka, este trabalho fundamental da Escola Dhyana é o único que mereceu a denominação de “Sutra”, uma designação que é reservada aos sermões do Senhor Buddha e dos grandes Bodhisattvas. Portanto, não é sem justificativa que podemos chamar este documento, como muitos o fazem, “o único Sutra falado por um nativo da China”.

Uma vez que seria necessário um poeta para traduzir Virgílio, o tradutor percebe agudamente quão incompetente ele é para assumir esta difícil tarefa, uma vez que nem seu conhecimento do Budismo nem suas realizações lingüísticas o qualificam para o trabalho. Ele relutantemente concorda, contudo, em trazer à luz uma versão em inglês deste Sutra, quando assim foi solicitado a fazer por seu professor [Dih Ping Tsze], que admite a incompetência de seu pupilo, mas insiste que a tradução deva ser feita pelas seguintes razões:

Que para treinar-se como tradutor para futuros trabalhos budistas, este será um bom exercício.

Que a tradução possa receber o benefício da correção e revisionamento pelas mãos daqueles que têm maiores qualificações, mas não tempo suficiente para realizar o trabalho completo por si mesmos.

Que, com a devida compreensão pelos equívocos, o livro possa ser ainda assim útil àqueles que não podem ler o texto original, mas que o tenham dominado tão bem em vidas prévias que precisem apenas de um parágrafo ou dois, quiçá uma palavra ou duas, para refrescar suas memórias de

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modo a trazer à tona os valiosos conhecimentos que até então tinham esquecido.

Sob exclusivamente este entendimento o tradutor assume a tarefa, e o resultado de sua tênue tentativa é agora exposto ao público pelo que irá valer. Enquanto o livro permanecer, o tradutor sabe que, para sua tristeza, grande parte dele será motivo de dúvidas por parte dos leitores que não tem prévio conhecimento da Escola Dhyana. Que logo surja o dia em que algum outro tradutor ou Mestre Dhyana trará à luz nova tradução com extensas notas e explicações, de forma que o Sutra possa ser compreensível a todos.

Foi através da edição do Dr. Ting Fo Po que esta tradução foi realizada. A este virtuoso cavalheiro, cujos comentários foram utilizados livremente, e aos outros amigos que ofereceram valiosos conselhos e apoio liberal, este tradutor deseja expressar sua mais profunda gratidão.

“Tradutor-Pupilo” [Wong Mou-Lam]

Shanghai, 21 de Novembro, 1929.

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Capítulo I - Autobiografia

Certa vez, quando o Patriarca estava no Monastério Pao Lam (Bao Lin), o Magistrado Wei (de Shao Zhou ) e outros oficiais foram até lá para solicitar-lhe fazer palestras públicas sobre o budismo no salão do templo Tai Fan na cidade (de Cantão).

No devido tempo estavam reunidos (no salão de palestras) o Magistrado Wei, oficiais do governo e eruditos confucianos, cerca de 30 cada, e Bhikkhus, Bhikkhunis, taoístas e leigos, em um número de cerca de 1000 pessoas. Depois do Patriarca tomar seu assento, a congregação em um só corpo prestou-lhe homenagem e solicitou-lhe pregar sobre as fundamentais leis do budismo. Após o quê, Vossa Santidade proferiu as seguintes palavras:

Virtuosa Audiência, nossa Essência da Mente (literalmente, Natureza Interna), que é a semente ou pérola da Iluminação (Bodhi), é pura por natureza, e por fazer o uso apenas desta mente nós podemos atingir diretamente o Estado Búddhico. Agora me permitais dizer algo sobre minha própria vida e como cheguei a tomar posse do ensinamento místico da Escola Dhyana (o Zen).

Meu pai, um nativo de Fan Yang, foi despedido de seu posto oficial e banido para a classe baixa em Sun Chow, Kwangtung2. Para meu infortúnio meu pai morreu quando eu era muito jovem, deixando minha mãe pobre e miserável. Nos mudamos para Kwang Chow3 e vivíamos então em circunstâncias muito ruins.

Eu vendia lenha no mercado certo dia, quando um dos meus fregueses comprou uma quantidade para ser levada à

2 Guangdong. N. do T. Bras. 3 Guangzhou, Cantão. N. do T. Bras.

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sua loja. Após se discutir o modo e o montante do pagamento, eu deixei a loja, fora da qual encontrei um homem recitando um Sutra. Tão logo eu ouvi o texto deste Sutra minha mente tornou-se imediatamente iluminada. Então, eu perguntei ao homem qual o nome do livro que ele estava recitando e me foi dito que aquele era o Sutra do Diamante (Vajracchedika ou “O Lapidador do Diamante”). Posteriormente inquiri de onde ele tinha vindo e por quê recitava este Sutra em particular. Ele respondeu que veio do Monastério Tung Tsan no Distrito Wong Mui de Kee Chow; que o abade responsável por esse templo era Hwang Yan, o Quinto Patriarca; que havia cerca de 1000 discípulos sob sua responsabilidade; e que quando ele ia até lá prestar homenagem ao Patriarca, assistia palestras sobre este Sutra. Ele também me disse que Vossa Santidade costumava encorajar tanto os leigos como os monges a recitar esta escritura, pois fazendo desta forma eles poderiam atingir a sua própria Essência da Mente, e assim alcançar diretamente o Estado Búddhico.

Eu devo ter adquirido méritos pelo meu bom Karma em vidas passadas por ter tido a oportunidade de ouvir tais coisas, então dei dez coroas para o sustento de minha mãe a um homem, que por sua vez me aconselhou a ir para Wong Mui me entrevistar com o Quinto Patriarca. Após os arranjos terem sido feitos para minha mãe, parti para Wong Mui, o que me tomou menos de trinta dias de viagem.

Ao prestar homenagem ao Patriarca, fui questionado de onde tinha vindo e o que esperava conseguir. Eu respondi: “Sou um pobre de Sun Chow em Kwangtung. Eu viajei tão longe para lhe prestar respeito e para questionar-lhe sobre nada menos do que o Estado Búddhico”.

“Tu és nativo de Kwangtung, um bárbaro? Como podes esperar te tornares um Buddha?”, questionou o Patriarca. Eu respondi: “Embora existam homens do norte e homens do sul, norte e sul não fazem diferença para as suas Naturezas Búddhicas. Um bárbaro é diferente de Vossa Santidade

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fisicamente, mas não há diferença em nossa Natureza Búddhica”.

Ele estava a ponto de falar mais, mas a presença dos outros discípulos o fez parar abruptamente. Então ele ordenou-me fazer parte do grupo de trabalho.

“Permitais-me ainda dizer, Vossa Santidade”, disse eu, “que Prajna (Sabedoria Transcendental) freqüentemente surge em minha mente. Quando alguém não está desviado de sua própria Essência da Mente, esta pessoa pode ser chamada ‘Campo de Méritos4‘. Eu posso agora saber qual trabalho Vossa Santidade me solicitais a fazer?”.

“Este bárbaro é muito brilhante!”, ele exclamou. “Vai para o estábulo e não fales mais”. Eu então me retirei para os fundos e fui mandado por um irmão leigo cortar lenha e joeirar arroz.

Mais de oito meses depois, o Patriarca me viu um dia e disse: “Sei que teu conhecimento do budismo é muito profundo; mas precisei refrear meu desejo de falar-te, pois maus elementos poderiam te prejudicar. Tu entendes?”.

“Sim, senhor, eu entendo”, eu respondi. “Para evitar que as pessoas percebam minha presença, não ousarei me aproximar de vosso salão”.

O Patriarca um dia reuniu todos os seus discípulos e lhes disse: “A questão do renascimento incessante é extremamente momentosa. Dia após dia, em vez de tentar libertar a vós mesmos deste amargo oceano de vida e morte, vós buscais apenas a sedução dos méritos (isto é, méritos que irão causar renascimento). Todavia méritos não serão de nenhuma ajuda se vossa Essência da Mente estiver obscurecida. Ide e procurai por Prajna (Sabedoria) em vossas próprias mentes e então me escrevei um verso (gatha) sobre isso. Aquele que entender o que a Essência da Mente significa, será possuidor do manto (a insígnia do Patriarcado) e do

4 Um título de honra dado aos monges mais capazes de aproveitar as

melhores oportunidades para semear a ‘semente’ de méritos.

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Dharma (isto é, o ensinamento místico da Escola Dhyana), e eu lhe farei o Sexto Patriarca. Partam imediatamente. Não demorai em escrever este verso, uma vez que deliberações são extremamente desnecessárias e completamente inúteis. O homem que possui em si realizada a Essência da Mente pode falar sobre ela imediatamente tão logo seja questionado sobre isso e não pode perdê-la de vista, mesmo quando empenhado em uma luta”.

Tendo recebido esta instrução, os discípulos partiram e disseram uns para os outros, “É inútil nós nos concentrarmos para escrever o verso e submetê-lo à Vossa Santidade, uma vez que o Patriarcado está prestes a ser ganho por Shin Shau, nosso instrutor. E se escrevemos perfunctoriamente, isso seria apenas uma perda de energia”.

Após falarem assim, todos tomaram a decisão de não escrever e disseram, “Porque nós deveremos nos arriscar? De agora em diante deveremos simplesmente seguir o nosso instrutor, Shin Shau, para onde ele for, e buscar a sua orientação”.

Enquanto isso, Shin Shau raciocinava desta forma consigo mesmo: “Considerando que eu sou seu professor, nenhum deles irá tomar parte nesta competição. Eu imagino se devo escrever o verso e submetê-lo à Vossa Santidade. Se não o fizer, como pode o Patriarca saber quão profundo ou quão superficial é o meu conhecimento? Se minha meta é alcançar o Dharma, o meu motivo será puro. Se eu estiver ambicionando o Patriarcado, então isto seria muito ruim. Neste caso, a minha mente não passaria de uma mente mundana e a minha ação equivaleria a roubar o sagrado assento do Patriarca. Mas se eu não submeter o verso, jamais terei uma chance de atingir o Dharma. Uma questão muito difícil de decidir, na verdade!”.

Na frente do Salão dos Patriarcas haviam três corredores, cujos muros deveriam ser pintados por um artista da Corte, chamado Lo Chun, com pinturas retratando o Lankavatara (Sutra) descrevendo a transfiguração da

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Assembléia, e com cenas mostrando a genealogia dos Quatro Patriarcas para informação e veneração do público.

Quando Shin Shau compôs seu verso, fez várias tentativas de mostrá-lo ao Patriarca; mais tão logo ele se aproximava do salão a sua mente ficava tão perturbada que ele suava copiosamente. Ele não conseguia criar coragem para mostrá-lo, embora ao longo de quatro dias ele fizesse no total 13 tentativas de fazê-lo.

Então sugeriu para si mesmo, “Seria melhor para mim escrevê-lo no muro do corredor e deixar o Patriarca ver por si mesmo. Se ele aprovar, eu surgirei, lhe farei homenagem, e direi que foi feito por mim; mas se ele desaprovar, então terei perdido muitos anos nesta montanha recebendo de outros homenagens as quais eu não mereci de forma nenhuma! Neste caso, que progresso terei eu feito ao estudar o Budismo?”.

À meia-noite daquele dia, ele foi secretamente com uma lanterna e escreveu um verso num muro do corredor sul, de forma que o Patriarca pudesse conhecer qual o nível de discernimento espiritual ele tinha alcançado. O verso dizia:

Nosso corpo é a árvore Bodhi, E nossa mente um espelho brilhante. Cuidadosamente nós devemos limpá-lo hora após hora, Para não deixar nenhum pó se acumular.

Tão logo escreveu partiu imediatamente para o seu

quarto; assim ninguém soube o que tinha feito. Em seus aposentos novamente ponderou:

“Quando o Patriarca ver meus versos amanhã e ficar bem impressionado com eles, então estarei pronto para o Dharma; mais se ele disser que são versos ruins, isso irá significar que sou inadequado para o Dharma, devido aos deméritos de prévias vidas que fortemente obscureceram minha mente. É difícil saber o que o Patriarca irá dizer sobre tudo isso!” Desta forma ficou ele, preocupando-se e

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pensando até o amanhecer, e não pôde nem dormir nem relaxar.

Mas o Patriarca já sabia que Shin Shau não tinha entrado no Portal do Esclarecimento, e que ele não conhecia a Essência da Mente.

De manhã convocou o senhor Lo, o artista da Corte, e foi com ele para o corredor sul de modo que os muros ali fossem pintados com as imagens. Por acaso, ele viu os versos. “Peço desculpas por teres te incomodado chamando-te de tão longe”, ele disse para o artista. “Os muros não precisam ser pintados agora. Como o Sutra diz, ‘todas as formas ou fenômenos são transitórios e ilusórios.’ Será melhor deixar os versos aqui, de forma que as pessoas possam estudá-los e recitá-los. Se eles colocarem este ensinamento realmente em prática, serão salvos da miséria de nascer naqueles reinos negativos de existência (Gatis). O mérito obtido por aquele que praticar tal coisa será realmente grande!”.

Ele então ordenou que incenso fosse aceso, e que todos os seus discípulos prestassem homenagem aos versos e os recitassem, de forma que pudessem alcançar a Essência da Mente. Após terem recitado, todos exclamaram, “Muito Bem Dito!” (Sadhu).

À meia-noite, o Patriarca pediu que Shin Shau viesse ao seu salão, e lhe perguntou se os versos tinham sido escritos por ele ou não. “Assim foi, Senhor”, replicou Shin Shau. “Eu nunca ousaria ser tão fútil a ponto de esperar atingir o Patriarcado, mas rogo que Vossa Santidade gentilmente me diga se meus versos mostram ao menos um grão de sabedoria”.

“Teus versos”, disse o Patriarca, “mostram que ainda não foste capaz de realizar a Essência da Mente. Até este momento alcançaste o ‘Portal do Esclarecimento’, mas ainda não foste capaz de passar por ele. Buscar a Suprema Iluminação com um nível de entendimento como o teu será uma empresa que dificilmente terá sucesso”.

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“Para atingir a Suprema Iluminação, a pessoa deve ser hábil em conhecer espontaneamente sua própria natureza ou a Essência da Mente, que não é nem criada nem aniquilada. De Ksana a Ksana (Sensações Momentâneas), a pessoa deve ser capaz de realizar a Essência da Mente todo o tempo. Todas as coisas, desta forma, estarão livres de restrição (isto é, serão emancipadas). Uma vez que o Tathata (‘o Estado de Ser o que É’, outro nome para a Essência da Mente) venha a ser conhecido, a pessoa estará livre da delusão para sempre; e em todas as circunstâncias tua mente estará num estado de ‘Assim Ser’ [Plenitude]. Tal estado da mente é absolutamente verdadeiro. Se puderes ver as coisas com tal estrutura mental, terás conhecido a Essência da Mente, que é a Suprema Iluminação”.

“Será melhor retornares e pensar novamente por um par de dias, e então submeter a mim novos versos. Se teus versos mostrarem que entraste no Portal do Esclarecimento, transmitirei a ti o Manto e o Dharma”.

Shin Shau fez reverência ao Patriarca e partiu. Por vários dias ele tentou em vão escrever outro verso. Isto perturbou sua mente tanto que ficou num estado como se estivesse em um pesadelo, e não pôde encontrar conforto nem no sentar, nem no caminhar.

Dois dias depois, aconteceu que um menino passou recitando sonoramente o verso escrito por Shin Shau pelo quarto onde eu estava joeirando arroz. Tão logo eu o ouvi, sabia imediatamente que o autor não tinha ainda alcançado a Essência da Mente. Pois embora eu ainda não tivesse aprendido naquela época, já tinha uma idéia geral sobre isso.

“Que verso é este?” Perguntei ao menino. “Bárbaro”, ele replicou, “não conhece esse verso? O

Patriarca disse para seus discípulos que a questão do renascimento incessante era extremamente importante, e aqueles que desejassem herdar seu manto e o Dharma deveriam escrever-lhe um verso, e que aquele que tivesse uma compreensão da Essência da Mente seria chamado o

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Sexto Patriarca. O velho Shin Shau escreveu estes versos ‘Sem forma’ no muro do corredor sul e o Patriarca nos disse para recitá-los. Ele também disse que aquele que colocar este ensinamento em prática irá alcançar grande mérito, e será salvo da miséria de nascer em reinos inferiores de existência”.

Eu disse ao menino que desejava recitar um verso também, de forma que pudesse ter uma afinidade com este ensinamento em uma vida futura. Eu também lhe disse que embora estivesse apenas joeirando arroz ali por oito meses, jamais estive no salão, e que ele deveria mostrar onde o verso estava de forma que eu pudesse prestrar-lhe homenagem.

O menino me levou lá e lhe pedi para ler para mim, pois eu era analfabeto. Um oficial inferior do Distrito de Kong Shau chamado Chang Tat Yung, que por acaso estava ali perto, leu para mim. Quando ele terminou de ler eu lhe disse que também tinha composto um verso, e lhe solicitei escrevê-lo por mim. “Verdadeiramente extraordinário”, ele exclamou “que tu também possas compor versos!”.

“Não desprezes um iniciante”, disse eu, “se fores um buscador da Suprema Iluminação. Tu deves saber que na mais baixa classe pode existir a mais aguda esperteza, enquanto na mais alta pode haver privação de inteligência. Se desdenhares os outros, cometerás um grande erro”.

“Diga teus versos”, ele disse, “Eu irei escrever para ti. Mas não esqueças de me liberar, caso consigas alcançar o Dharma!”.

Meu verso dizia:

Não há nenhuma árvore Bodhi, Nem lugar para um espelho brilhante. Uma vez que tudo é vazio, Aonde irá a poeira se assentar?

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Quando ele escreveu isto, todos os discípulos e outros que estavam presentes ficaram grandemente surpresos. Plenos de admiração, eles disseram uns para os outros, “Que maravilhoso! Sem dúvida nós não devemos julgar as pessoas pela aparência. Quem poderia dizer que por tanto tempo tivemos um Bodhisattva encarnado trabalhando para nós?”.

Vendo que a multidão estava acabrunhada de pasmo, o Patriarca apagou os versos com seu sapato, para evitar que pessoas ciumentas pudessem me injuriar. Ele expressou a opinião, que todos aceitaram, que o autor destes versos ainda não tinha alcançado a Essência da Mente.

No dia seguinte o Patriarca veio secretamente ao aposento onde o arroz era batido. Vendo que eu estava trabalhando lá com um pilão de pedra, ele disse para mim, “Um buscador do Caminho arrisca sua vida pelo Dharma. Não deveria ele assim fazer?” Então perguntou, “O arroz está pronto?”.

“Há muito tempo pronto”, eu repliquei, “Apenas esperando para ser joeirado”. Ele bateu no almofariz três vezes com seu bastão e partiu.

Sabendo o que essa mensagem significava, na terceira vigília da noite eu parti de meus aposentos. Usando um manto como uma cortina de forma que ninguém pudesse nos ver, ele declarou o Sutra do Diamante para mim. Quando ele chegou à sentença, “A pessoa deve usar a sua mente de tal forma que ela fique livre de qualquer apego5 “,

5 Nota do Mestre Dhyana On: "'Ser livre de qualquer apego' significa não se prender a forma ou

matéria, não se prender ao som, não se prender na delusão, não se prender ao esclarecimento, não se prender na Quintessência, não se prender no Atributo. 'Usar a mente' significa permitir que a 'Mente Una' (i.e., a Mente Universal) manifeste a si mesma em todo lugar. Quando permitimos nossa mente habitar na piedade ou no mal, a piedade ou o mal manifestar-se-ão, mas nossa Essência da Mente (ou Mente Primordial) será, entretanto, obscurecida. Mas quando nossa mente habita no nada, percebemos que todos os mundos nas dez direções nada mais são do que a manifestação da 'Mente Una'“.

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eu de imediato me tornei completamente iluminado, e percebi que todas as coisas no Universo são a Essência da Mente em si mesma.

“Quem poderia imaginar”, eu disse ao Patriarca, “Que a Essência da Mente é intrinsecamente pura! Quem poderia imaginar que a Essência da Mente é intrinsecamente livre de surgimento ou aniquilação! Quem poderia imaginar que a Essência da Mente é intrinsecamente auto-suficiente! Quem poderia imaginar que a Essência da Mente é intrinsecamente livre de mudanças! Quem poderia imaginar que todas as coisas são a manifestação da Essência da Mente!”.

Sabendo que eu tinha compreendido a Essência da Mente, o Patriarca disse, “Para aquele que não conhece sua própria mente, não há utilidade em aprender o budismo. Por outro lado se a pessoa conhece sua própria mente e vê intuitivamente sua própria natureza, ela será um herói, um professor dos deuses e homens, ‘Buddha’“.

Assim, sem o conhecimento de ninguém, o Dharma foi transmitido para mim à meia-noite, e conseqüentemente me tornei o herdeiro dos ensinamentos da Escola Súbita assim como do manto e da tigela de esmolar.

“Sois agora o Sexto Patriarca ”, ele disse. “Tende cuidado, e libertai tantos seres sencientes quanto for possível. Divulgai e preservai o ensinamento, e não deixai que ele desapareça. Tomai nota de meus versos:

Seres sencientes que semeiam as sementes do Esclarecimento No campo das causas materiais irão colher os frutos da Natureza Búddhica.

O comentário acima é o mais acurado e vai direto ao ponto. Eruditos

Budistas Escolásticos jamais poderão dar uma explicação mais satisfatória do que esta. Por esta razão os Mestres Dhyana (o Professor Nacional On sendo um deles) são superiores aos assim chamados Expositores das Escrituras.

Dih Ping Tsze.

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Objetos inanimados, vazios da natureza de Buddha, Nada semeiam e nada colhem. ”

Depois ele disse, “Quando o patriarca Bodhidharma

pela primeira vez chegou à China, a maioria dos chineses não tinha confiança nele, assim o seu manto foi passado como um testemunho de um patriarca para outro. Quanto ao Dharma, este é transmitido de coração para coração, e o recebedor deve percebê-lo pelos seus próprios esforços. Desde tempos imemoriais esta tem sido a prática para que um Buddha passe ao seu sucessor a quintessência do Dharma, e para que um patriarca transmita para outro os ensinamentos místicos de coração para coração. Como o manto pode dar causa para disputas, tu serás o último a herdá-lo. Se fosses passá-lo para teu sucessor, tua vida ficaria em perigo iminente. Agora parta deste lugar tão rápido quanto puderes, pois alguém pode querer fazer-te mal”.

“Para onde deverei ir?” eu perguntei. “Em Huai deves parar e em Hui encontrarás segurança”,

ele replicou. Após receber o manto e a tigela de esmolar no meio da

noite, eu disse ao Patriarca que, sendo um homem do sul, não conhecia as trilhas na montanha e que me era impossível atingir a boca do rio (para pegar um bote). “Não precisas te preocupares”, ele disse. “Eu irei contigo”.

Ele então me acompanhou até Kuikiang, e lá me conseguiu um bote. Enquanto ele mesmo conduzia o bote, eu lhe pedi para sentar e deixar que tomasse o remo. “É meu direito atravessá-lo”, ele disse, (uma alusão ao oceano de vida e morte que uma pessoa tem que atravessar antes que a margem do Nirvana possa ser atingida).

Então respondi, “Enquanto eu estava sob a Ilusão, vós iríeis me atravessar; mas após o Esclarecimento, eu deverei atravessar por mim mesmo (embora o termo ‘atravessar’ seja o mesmo, foi usado diferentemente em cada caso). Devido ao fato de ter nascido na fronteira, mesmo a minha fala é

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incorreta na pronúncia, (mas a despeito disso) eu tive a honra de vos herdar o Dharma. Desde que agora eu estou iluminado, é apenas o meu direito atravessar por mim mesmo o oceano de nascimento e morte, através da realização de minha própria Essência da Mente”.

“Certamente, certamente”, ele concordou. “Começando contigo, o Budismo (significando a Escola Dhyana) irá se tornar muito popular. Três anos após o teu afastamento de mim eu deverei partir deste mundo. Deves começar a jornada agora. Vá tão rápido quanto fores capaz em direção ao sul. Não inicies a pregação muito cedo, pois o Budismo (da Escola Dhyana) não está muito difundido”.

Após dizer adeus, eu o deixei e caminhei em direção ao

sul. Em cerca de dois meses, alcancei a montanha Tai Yu. Lá percebi que várias centenas de homens estavam em meu encalço com a intenção de me roubar o manto e a tigela.

Entre eles que estava um monge chamado Wei Ming cujo sobrenome leigo era Chen. Ele fora um general do quarto escalão em sua vida mundana. Seus modos eram rudes e seu temperamento agressivo. De todos os perseguidores, ele era o mais vigilante na busca por mim. Quando ele estava a ponto de me alcançar, eu joguei o manto e a tigela sobre uma rocha, dizendo, “Este manto não é nada além de um símbolo. Qual o sentido de tomá-lo pela força?” (então eu me escondi).

Quando ele chegou à rocha, tentou pegar os objetos, mas descobriu que não podia. Então ele gritou, “Eh, irmão leigo! Irmão leigo! (pois o Patriarca ainda não tinha sido formalmente incluído na Ordem) Eu vim pelo Dharma, não pelo roubo!”

Neste momento eu saí do meu esconderijo e me sentei sobre a rocha. Ele me fez uma reverência e disse “Irmão leigo, pregue para mim, por favor”.

“Uma vez que o objeto de sua vinda seja o Dharma”, eu disse, “refreie teu pensamento de qualquer outra coisa e

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mantenha tua mente em branco. Eu irei pregar para ti”. Quando ele tinha agido dessa forma por um tempo considerável, eu disse “Quando estás pensando nem em algo bom nem em algo ruim, qual é, neste momento particular, venerável senhor, tua verdadeira natureza (literalmente, Face Original)?”.

Tão logo ele ouviu isso, imediatamente se tornou esclarecido. Mas ele ainda disse, “Apesar destes ditos esotéricos e destas idéias esotéricas transmitidas pelos Patriarcas de geração a geração, há algum outro ensinamento místico?”.

“O que posso te ensinar não é esotérico”, eu repliquei.

“Se direcionares tua Luz para dentro6, irás encontrar o que é místico dentro de ti”.

“A despeito de minha estada em Wong Mui”, disse ele, “eu não fui capaz de realizar a minha verdadeira natureza. Agora, graças à vossa orientação, percebo isto tanto quanto um bebedor sabe quão quente ou quão fria a água está. Irmão leigo, vós sois agora meu professor”.

6 O mais importante ponto no ensinamento da Escola Dhyana está

na "Introspecção" ou "Introversão", que significa virar o foco da nossa própria "Luz" para dentro. Como ilustração, deixe-nos tomar a analogia de uma lâmpada. Sabemos que a luz de uma lâmpada, quando rodeada por sombra, irá refletir internamente sua radiância, centrando-se em si mesma; enquanto que a luz de uma chama irá difundir e brilhar para fora. Agora quando estamos mergulhados em críticas aos outros, como nosso hábito, dificilmente direcionamos nossos pensamentos para nós mesmos e, portanto, sabemos escassamente sobre nós mesmos.

Contrariamente a isso, os seguidores da Escola Dhyana voltam sua atenção completamente para dentro e refletem exclusivamente sobre sua ''Verdadeira Natureza", conhecida em Chinês como "Face Original".

Para que nossos leitores não deixem de atentar para esta importante passagem, seja notado que apenas na China milhares de Budistas tem atingido o esclarecimento por agir a partir deste sábio comentário do Sexto Patriarca.

Dih Ping Tsze.

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Eu lhe expliquei, “Se assim é, então tu e eu somos companheiros discípulos do Quinto Patriarca. Cuida-te bem”.

Respondendo a sua questão de para onde ele deveria ir a partir de agora, eu lhe disse para parar em Yuen e fixar residência em Mong. Ele me prestou homenagem e partiu.

Algum tempo depois alcancei Tso Kai. Lá os malfeitores novamente me perseguiram e eu tive que buscar refúgio em Sze Wui, onde permaneci com um grupo de caçadores por um período tão longo quanto 15 anos.

Ocasionalmente eu preguei para eles de uma forma que se adequasse ao seu entendimento. Eles costumavam me levar para vigiar suas armadilhas, mas sempre que eu encontrava criaturas vivas nelas as libertava. Na hora da comida eu colocava vegetais na panela onde eles cozinhavam sua carne. Alguns deles me questionaram, e eu expliquei que deveriam comer apenas vegetais, após terem cozinhando a sua carne.

Um dia cheguei à conclusão que não deveria passar uma vida reclusa todo o tempo, e que já era tempo para que eu fosse propagar a Lei. Conseqüentemente eu parti e fui para o templo Fat Shing em Cantão.

Naquele tempo Bhikku Yen Chung, mestre do Dharma,

estava dando uma palestra sobre o Maha Parinirvana Sutra no templo. Aconteceu que um dia, quando uma bandeira estava se movendo ao sabor dos ventos, dois Bhikkus entraram em debate sobre o que estava realmente se movendo, o vento ou a bandeira. Como eles não conseguiram chegar a um acordo eu lhes declarei que nem uma nem outra coisa se movia, o que realmente estava em movimento eram as suas próprias mentes. Toda a assembléia ficou surpresa com o que eu disse, e o Bhikkhu Yen Chung me convidou para tomar um assento de honra e me questionou sobre vários pontos fundamentais dos Sutras.

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Vendo que minhas respostas eram precisas e acuradas, e que elas mostravam algo mais do que apenas um conhecimento de livros, ele disse para mim “Irmão leigo, tu deves ser um homem extraordinário. Me disseram muito tempo atrás que o herdeiro do manto e do Dharma pertencentes ao Quinto Patriarca tinha vindo para o sul. Muito provavelmente tu és este homem”.

A isto eu assenti polidamente. Ele imediatamente me fez reverência e me pediu para mostrar à assembléia o manto e a tigela de esmolar que eu tinha herdado.

Ele posteriormente me perguntou quais foram as instruções que eu tive quando o Quinto Patriarca me transmitiu o Dharma. “Afora um comentário sobre a realização da Essência da Mente”, eu repliquei, “Ele não me deu nenhuma outra instrução, ou se referiu ao Dhyana e à Emancipação”.

“Por que não?” ele perguntou. “Por que tais coisas poderiam ter duplo significado”, eu

repliquei. “E não pode haver dois caminhos no Budismo. Há apenas um único”.

Ele me perguntou qual era o único caminho. Eu

respondi, “No Maha Parinirvana Sutra, que vós expusestes, está dito que a natureza de Buddha é o único caminho. Por exemplo, no Sutra King Ko Kwei Tak, um Bodhisattva perguntou ao Buddha se aqueles que cometeram os quatro paragika (atos de sério erro de conduta), ou os 5 terríveis deméritos7, e aqueles que são icchantika (hereges), etc., podiam ou não erradicar seus ‘Elementos de Bondade’ e sua Natureza Búddhica. Buddha respondeu, ‘Há duas espécies de ‘Elemento de Bondade’, a eterna e a não eterna.’ Desde que a Natureza Búddhica não é nem eterna em não-eterna, portanto os seus elementos de bondade não são erradicados.

7 Parricídio, Matricídio, provocar a discórdia em um Sangha, matar

um Arahant e causar derramamento de sangue no corpo de um Buddha.

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Agora, o Budismo é conhecido como não possuidor de dois caminhos. Há bons caminhos e maus caminhos, mas desde que a natureza de Buddha não é nem uma coisa nem outra, portanto o Budismo é conhecido como não tendo dois caminhos. Do ponto de vista das pessoas comuns, as partes constituintes de uma personalidade (skhandhas) e os fatores de consciência (Dhatus) são duas coisas separadas; mas o homem iluminado compreende que elas não são duais em natureza. A Natureza de Buddha é a Não Dualidade”.

Bhikku Yen Chung ficou altamente satisfeito com a minha resposta. Colocando suas duas palmas juntas num sinal de respeito, ele disse “Minha interpretação do Sutra é sem valor como um punhado de pano, enquanto vosso discurso é tão valioso quanto ouro genuíno”. Subseqüentemente ele conduziu a Cerimônia de Corte de Cabelo para mim (isto é, a cerimônia de iniciação à Ordem) e me pediu para aceitá-lo como seu discípulo.

Deste momento em diante, sob a árvore de Bodhi eu preguei os ensinamentos da escola Tung Shan (Escola do Quarto e Quinto Patriarca s, que viveram em Tung Shan).

Desde a época quando Dharma foi transmitido para mim em Tung Shan, passei por muitas privações e minha vida freqüentemente pareceu estar à beira de seu limite. Hoje, eu tenho a honra de encontrar-vos nessa assembléia, e devo considerar isso como sendo o sinal de nossa boa conexão em Kalpas (Ciclos de Existência) anteriores, assim como nosso mérito acumulado em fazer oferenda aos vários Buddhas em nossas existências passadas; não fosse assim, nós não teríamos a chance de ouvir tal ensinamento da Escola ‘Súbita’ e, portanto, assentar as fundações do nosso sucesso futuro na compreensão do Dharma.

Este ensinamento foi transmitido pelos Patriarcas passados. Ele não é um sistema de minha invenção. Aqueles que desejam ouvir os ensinamentos devem primeiro purificar sua própria mente, e depois de ouvir tais palavras

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eles irão esclarecer suas próprias dúvidas do mesmo modo que os sábios fizeram no passado”.

Ao final destas palavras, a assembléia se sentiu rejubilada, fez uma reverência e partiu.

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Capítulo II - Sobre Prajna

No dia seguinte o Magistrado Wei solicitou ao Patriarca

outra palestra. Portanto, tendo tomado seu assento e pedido para a assembléia purificar a sua mente em conjunto, e após recitar o ‘MahaPrajnaparamita’ Sutra, proferiu as seguintes palavras:

Virtuosa Audiência, a Sabedoria da Iluminação (Bodhiprajna) é inerente a cada um de nós. É devido a delusão sob a qual nossas mentes trabalham que falhamos em perceber tal coisa por nós mesmos e, portanto, temos que buscar os conselhos e as orientações dos Iluminados antes que possamos conhecer nossa própria Essência da Mente. Vós deveis saber que, a respeito da Natureza Búddhica, não há diferença entre um homem iluminado e um homem ignorante. O que faz diferença é que um percebe isto, enquanto que o outro permanece ignorante deste fato. Agora, peço-vos permissão para falar sobre o Maha Prajnaparamita, de forma que cada um de vós possais obter esta sabedoria.

Virtuosa Audiência, aqueles que recitam a palavra “Prajna” durante todo o dia não parecem saber que Prajna é inerente à sua própria natureza. Pois apenas falar sobre comida não irá suprir nossa fome, e é exatamente o mesmo caso com estas pessoas. Nós poderíamos falar sobre Sunyata (o Vazio) por miríades de Kalpas, mas falar apenas não nos vai capacitar a perceber a Essência da Mente, e ao final não servirá para nenhum propósito.

A palavra ‘Maha Prajnaparamita’ é Sânscrita, e significa “a Grande Sabedoria alcançada na margem oposta” (do oceano de existência). O que nós devemos fazer é colocar tal

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coisa em prática com a nossa mente; recitar ou não esta fórmula não importa. A mera recitação sem a prática mental pode ser comparada a um fantasma, a uma delusão mágica, um raio de Luz ou uma gota d’água. Por outro lado, se nós fizermos ambos, então nossa mente estará de acordo com aquilo que repetimos oralmente. Nossa verdadeira natureza é Buddha, e à parte dessa natureza não há outro Buddha.

O que é Maha? Isto significa ‘Grande’. A capacidade da mente é tão grande quanto aquela do Espaço. Ela é infinita, nem redonda nem quadrada, nem grande nem pequena, nem verde nem amarela, nem vermelha nem branca, nem acima nem abaixo, nem longa nem curta, nem odiosa nem alegre, nem certa nem errada, nem boa nem má, nem primeira nem a última. Todos os Buddha Ksetra (Terras Búddhicas) são tão vazios quanto o Espaço. Intrinsecamente nossa natureza transcendental é vazia e nem um único Dharma pode ser obtido. O mesmo acontece com a Essência da Mente, que é um estado de “Vazio Absoluto” (i. e., a Vacuidade do Não-Vazio).

Virtuosa Audiência, quando me ouvirdes falar sobre o Vazio, não caiam inicialmente na idéia da vacuidade, (porque isso envolve a heresia da doutrina da aniquilação [nihilismo]). É de fundamental importância que nós nunca nos percamos nesta idéia, porque enquanto um homem sentar-se quietamente e mantiver sua mente em branco ele habitará num estado de “Vacuidade da Indiferença”.

Virtuosa Audiência, o vazio ilimitado do universo é capaz de suster as miríades de coisas em várias formas e contornos, tais como o sol, a lua, estrelas, montanhas, rios, mundos, cachoeiras, regatos, arbustos, madeiras, bons homens, maus homens, Dharmas pertencentes à bondade ou maldade, planos de Devas, Infernos, grandes oceanos, e todas as montanhas do Mahameru. O Espaço abarca a tudo isso, e o mesmo acontece com a vacuidade de nossa natureza. Nós dizemos que a Essência da Mente é grande porque ela abarca todas as coisas, uma vez que todas as

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coisas são íntimas com a nossa natureza. Quando vemos a bondade ou a maldade das outras pessoas não somos atraídos por isso, nem repelidos por isso, nem ficamos apegados a isso; eis por que nossa atitude mental é tão vazia quanto o Espaço. Desta maneira, nós dizemos que nossa mente é grande. Portanto nós chamamos isso de “Maha”.

Virtuosa Audiência, aquilo que o ignorante meramente fala, o homem sábio coloca em verdadeira prática com sua mente. Há também essa classe de pessoas tolas que se sentam quietamente e tentam manter as suas mentes em branco. Elas refreiam seus pensamentos de tudo e chamam a si mesmas de “grandes”. No que concerne às suas visões heréticas, nós mal podemos nos comunicar com elas.

Virtuosa Audiência, deveis saber que a mente é muito grande em capacidade, uma vez que ela abarca todo o Dharmadhatu (a Raiz da Lei – a Essência do Dharma, isto é, o Universo). Quando a usamos [em parte], podemos saber algo sobre tudo, e quando a usamos em sua inteira capacidade nós iremos conhecer todas as coisas. Tudo em um e o um em tudo. Quando nossa mente trabalha sem limitações e está liberta do “ir” ou “vir”, então ela estará em um estado de ‘Prajna’.

Virtuosa Audiência, todo Prajna vem da Essência da Mente e não de uma fonte exterior. Não tenhais noção errada sobre isso. Isto é chamado “Auto-usufruto da Natureza Verdadeira”. Uma vez que o Tathata (aquilo que é, a Essência da Mente) é conhecido, a pessoa estará livre da delusão para sempre.

Uma vez que o escopo da mente é para grandes objetos, nós não deveríamos praticar atos triviais como esse (como se sentar quietamente com uma mente em branco). Não faleis sobre “Vazio” todo dia sem praticá-lo em vossas mentes. Aquele que faz assim pode ser comparado a um autoproclamado rei que na verdade não passa de um homem vulgar. Prajna jamais pode ser alcançado desta forma, e aqueles que se comportam assim não são meus discípulos.

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Virtuosa Audiência, o que é Prajna? Esta palavra significa “Sabedoria”. Se em todos os momentos e em todos os lugares nós firmemente mantivermos nossos pensamentos livres de desejos imaturos, e agirmos sabiamente em todas as ocasiões, então estaremos praticando Prajna. Uma única noção imatura é suficiente para afastar Prajna, enquanto que um único pensamento sábio irá trazê-lo de volta novamente. Pessoas em ignorância ou sob a [influência da] delusão não percebem isso; elas falam sobre isso com suas línguas, mas em suas mentes elas permanecem ignorantes. Elas estão sempre dizendo que praticam Prajna, e falam incessantemente sobre “vacuidade”, mas elas nada sabem sobre o “Vazio Absoluto”. “O Coração da Sabedoria” é Prajna, que não é nem forma nem característica. Se nós interpretarmos desta maneira, então na verdade isto será a sabedoria de Prajna.

O que é Paramita? Esta é uma palavra sânscrita, significando “à margem oposta”. Figurativamente, ela significa “além da existência e da não-existência”. Por estar presa aos objetos sensíveis, a existência ou não existência surge como os altos e baixos do mar revolto e tal estado é chamado metaforicamente “esta margem”; enquanto que, quando o não apego a um estado além da existência e não existência - como a água que flui suavemente - é atingido, o chamamos de “margem oposta”. Eis por que tal termo é chamado “Paramita”.

Virtuosa Audiência, pessoas sob ilusão recitam o “Maha Prajnaparamita” com suas línguas, e enquanto assim estão fazendo pensamentos errôneos e maus surgem. Mas se elas o colocam em prática diligentemente, atingirão a sua “verdadeira natureza”. Saber sobre este Dharma é saber sobre o Dharma do Prajna, e praticar isto é praticar Prajna. Aquele que não pratica desta maneira é um homem comum. Aquele que direciona sua mente para praticar isto, mesmo que por apenas um momento, será igual ao Buddha.

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Pois o homem comum é Buddha, e Klesa (elementos poluidores) é Bodhi (iluminação). Um tolo pensamento passageiro faz de uma pessoa um homem comum, enquanto que um segundo pensamento iluminado o transforma em um Buddha. Um pensamento passageiro que nos liga aos objetos sensíveis é Klesa, enquanto que um segundo pensamento que nos liberta do apego é Bodhi.

Virtuosa Audiência, o Maha Prajnaparamita é o mais exaltado, o supremo, o mais importante. Ele jamais permanece, nem vai, nem volta.

Através dele Buddhas do presente, do passado, e de futuras gerações atingem o Estado Búddhico. Deveríamos usar esta grande sabedoria para quebrar os cinco Skandhas 8, pois seguir tal prática assegura a obtenção da Natureza Búddhica. Os três elementos venenosos (cobiça, ódio e ilusão) serão transformados em Sila (boa conduta), Samadhi [concentração] e Prajna.

Virtuosa Audiência, neste meu sistema um Prajna produz 84 mil formas de sabedoria, uma vez que há o mesmo número de “elementos poluidores” com os quais temos de lidar; mas quando a pessoa está livre desses elementos poluidores, a sabedoria se revela por si mesma, e não estará mais separada da Essência da Mente. Aqueles que entendem esse Dharma serão livres de pensamentos superficiais.

Se libertar de ser envolvido por um pensamento particular, de estar ligado ao desejo e à falsidade; colocar a sua própria essência do Tathata em operação; usar Prajna em contemplação, e buscar uma atitude nem de indiferença nem de apego diante a todas as coisas -- eis o que acontecerá [ao praticante graças à] realização da própria Essência da Mente com a obtenção da Natureza Búddhica.

8 Qualidades materiais ou matéria, sensação, percepção, disposição

ou tendências, e consciência.

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Virtuosa Audiência, se desejais penetrar no mais profundo mistério do Dharmadhatu e do Samadhi de Prajna, vós deveis praticar Prajna recitando e estudando o Vajracchedika Sutra (Sutra do Diamante) o qual irá vos capacitar a realização da Essência da Mente. Vós deveis saber que o mérito de estudar este Sutra, como é claramente explicado no texto, é imensurável e ilimitado, e não pode ser enumerado com detalhes. Este Sutra pertence a mais alta escola do Budismo, e o senhor Buddha o proferiu especialmente para os mais sábios e de rápido discernimento. Se os menos sábios e os de baixo discernimento pudessem ouvir sobre ele iriam duvidar de sua credibilidade. Por que? Por exemplo, se chovesse em Jambudvipa (o Continente Sul), através do milagre dos Nagas celestiais, cidades, aldeias, e vilarejos seriam levados pela correnteza, como se fossem apenas folhas de uma tamareira. Mas se tivesse chovido no grande oceano, o nível do mar como um todo não seria muito afetado por isso. Quando os Mahayanistas ouvem o Vajracchedika suas mentes se tornam esclarecidas; eles sabem que Prajna é imanente em sua Essência da Mente e que não precisam confiar na autoridade das escrituras, uma vez que eles podem fazer uso de sua própria sabedoria pela constante prática da contemplação.

O Prajna imanente na Essência da Mente de todos pode ser comparado à chuva, à umidade na qual se refrescam todas as coisas vivas, árvores e plantas assim como os seres vivos. Quando os rios e os riachos alcançam o mar, as águas por eles carregadas se fundem em um só corpo; esta é outra analogia.

Virtuosa Audiência, quando a chuva cai em uma inundação, plantas que não estiverem profundamente enraizadas serão levadas pela corrente, e eventualmente irão sucumbir. Assim é o que acontece com os de curto discernimento, quando ouvem acerca dos ensinamentos da Escola “Súbita”.

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O Prajna, neles imanente, é exatamente o mesmo que está em qualquer homem sábio; mas eles falham em esclarecer a si mesmos quando o Dharma se faz conhecer às suas mentes. Por que? Porque eles [suas mentes] estão grosseiramente anuviados por visões errôneas e elementos poluidores profundamente enraizados, da mesma forma que o sol pode ser fortemente velado pelas nuvens e ser incapaz de mostrar sua luz até que o vento sopre tais nuvens para longe.

Prajna não varia nas diferentes pessoas; o que faz diferença é se a mente está esclarecida ou está em estado de delusão. Aquele que não conhece sua própria Essência da Mente, e está sob a delusão de que a Natureza Búddhica pode ser obtida pelos ritos religiosos externos é chamado “o de pequeno discernimento”. Aquele que conhece o ensinamento da Escola “Súbita” e não se apega à idéia de dar grande importância aos rituais, e cuja mente funciona sempre sob a visão correta, de forma a estar absolutamente livre dos elementos poluidores ou contaminações, é dito que conheceu sua Essência da Mente.

Virtuosa Audiência, a mente poderia ser enquadrada de tal forma que se tornaria independente de objetos internos ou externos, em liberdade para ir e vir, livre de apegos e profundamente esclarecida sem o menor anuviamento. Aquele que é capaz de fazer isso está sobre os mesmos padrões requeridos nos Sutras da escola Prajna.

Virtuosa Audiência, todos os Sutras e escrituras do Mahayana e Hinayana 9, assim como as doze sessões dos escritos canônicos, foram preparados para se encaixar nas diferentes necessidades e temperamentos de várias pessoas.

9 Termo criado na tradição mahayana e usado para designar, de

forma um tanto pejorativa, a escola Theravada. No contexto deste sutra o termo deve ser entendido como alusivo ao caráter menos diversificado da escola Theravada (existe atualmente apenas um ramo), em contraste com os vários ramos Mahayana; não é do feitio de Wei Lang tecer menosprezos a outras escolas budistas. (N. do T.)

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É sob o princípio de que Prajna está latente em todo homem que as doutrinas expostas nesses livros foram estabelecidas. Sem seres humanos não existiriam Dharmas, uma vez que nós sabemos que todos os Dharmas são feitos por homens, e que todos os Sutras devem sua existência aos seus pregadores. Uma vez que alguns homens são sábios – assim chamados “homens superiores” – e alguns são ignorantes – assim chamados “homens inferiores” – o sábio ensina ao ignorante quando o último lhe pede para assim fazer. Através disso o ignorante pode atingir o súbito esclarecimento, e sua mente se torna, portanto, iluminada. E assim ele não será mais diferente dos homens sábios.

Virtuosa Audiência, sem o Esclarecimento não poderia haver diferença entre um Buddha e os outros seres vivos; um vislumbre do esclarecimento é suficiente para fazer qualquer ser vivo se tornar igual a um Buddha. Uma vez que todos os Dharmas são imanentes em nossa mente, não há razão por que nós não deveríamos perceber intuitivamente a real natureza do Tathata (estado de ser o que é). O Bodhisattva Sila Sutra diz, “nossa Essência da Mente é intrinsecamente pura, e se nós conhecêssemos nossa mente e percebêssemos qual é a nossa natureza, todos nós iríamos atingir o Estado Búddhico”. Como foi dito no Vimalakirti Nirdesa Sutra, “de uma vez eles se tornam esclarecidos e resgatam a sua própria mente”.

Virtuosa Audiência, quando o Quinto Patriarca pregou para mim, eu me tornei esclarecido imediatamente após ele ter falado, e espontaneamente percebi a real natureza do Tathata . Por essa razão, é meu objetivo pessoal propagar os ensinamentos dessa Escola “Súbita”, de forma que os estudiosos possam encontrar Bodhi de uma vez e perceber sua verdadeira natureza pela introspecção da mente.

Falhando estes em atingir esclarecimento por si mesmos, deveriam buscar piedosos e esclarecidos budistas que entendam o ensinamento da Mais Alta Escola para demonstrar o correto Caminho. Esta é uma atividade

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excelente, o ofício de um piedoso e esclarecido budista que guia e orienta a outros em direção à realização da Essência da Mente. Através de sua assistência alguém pode se iniciar em todos os Dharmas meritórios. A sabedoria dos Buddhas do passado, do presente e do futuro assim como os ensinamentos das doze sessões do Cânone são imanentes em nossa mente; mas no caso de falharmos em esclarecer a nós mesmos, temos que buscar a orientação daqueles piedosos e esclarecidos. Por outro lado, aqueles que esclarecem a si mesmos nenhuma necessidade têm de ajuda externa. É errado insistir na idéia de que sem a orientação dos piedosos e esclarecidos não podemos obter a liberação. Por quê? Porque é através de nossa inata sabedoria que esclarecemos a nós mesmos, e mesmo a ajuda e instruções externas de amigos piedosos e esclarecidos seria inútil se nós estivéssemos deludidos por falsas doutrinas e errôneos pontos de vista. Sendo capaz de introspectar nossa mente com o Prajna real, todos os errôneos pontos de vista serão superados imediatamente, e tão logo nós conheçamos a Essência da Mente nós alcançaremos imediatamente o estado de Buddha.

Virtuosa Audiência, quando usamos Prajna para a introspecção estamos iluminados por dentro e por fora, em uma posição de conhecer nossa própria mente. Conhecer nossa mente é obter a liberação. Obter a liberação é atingir o Samadhi de Prajna, que é “Não-Pensamento”. O que é “Não-Pensamento”? “Não-Pensamento” é ver e conhecer todos os Dharmas (coisas) com uma mente livre de apegos. Quando em uso, a mente plena abrange todas as coisas, e todavia ela não se adere à coisa nenhuma. O que nós devemos fazer é purificar a nossa mente de forma que os Seis Vijnanas (elementos de consciência), ao passar através dos Cinco Portões (órgãos dos sentidos), não sejam poluídos nem fiquem presos aos seis objetos dos sentidos. Quando nossa mente trabalha livremente sem nenhuma limitação, está em liberdade para “vir” e “ir”, e atingimos o Samadhi de Prajna,

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ou liberação. Tal estado é chamado de função do “não-pensamento”. Mas evitar o pensamento de qualquer coisa de forma a que todos os pensamentos fiquem reprimidos é ser um opressor do Dharma, e este é um errôneo ponto de vista.

Virtuosa Audiência, aqueles que entendem o caminho do “não pensamento” irão conhecer tudo, irão ter a experiência que todos os Buddhas tiveram, e atingir a Natureza Búddhica. No futuro, se um iniciado em minha escola fizer o voto em companhia de seus companheiros discípulos para devotar toda sua vida sem desistência à prática dos ensinamentos da Escola “Súbita” com o mesmo estado de espírito como se estivesse servindo a Buddha, ele irá alcançar sem erro o Caminho [Tao] Sagrado. (Aos homens corretos) ele deveria transmitir de coração para coração as instruções passadas de um Patriarca para outro; e nenhuma tentativa deveria ser feita para esconder o ensinamento ortodoxo. Para aqueles que pertencem a outras escolas, e cujos pontos de vista e objetos são diferentes dos nossos o Dharma não poderia ser transmitido, uma vez que isto não seria benéfico para eles. Tal atitude deve ser feita para se evitar que pessoas ignorantes e que não compreendem corretamente o nosso sistema possam fazer comentários caluniosos sobre ele e portanto aniquilar a sua [deles mesmos, devido a sua falta de sabedoria] semente de Estado Búddhico por centenas de Kalpas e milhares de renascimentos.

Virtuosa Audiência, eu tenho um poema “sem forma” para vós todos recitardes. Tanto os leigos quanto os monges deverão pôr tais ensinamentos em prática, sem o qual seria inútil relembrar as minhas palavras apenas. Ouvi este poema:

Um mestre do cânone Budista assim como do ensinamento da Escola Dhyana

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Pode ser comparado ao sol abrasador posicionado alto em uma torre meridional. Tal homem não irá ensinar nada além do Dharma para a realização da Essência da Mente, E seu objetivo de vir para este mundo será o de derrotar as práticas errôneas. Nós podemos grosseiramente classificar os Dharmas em “súbitos” e “graduais”, Mas alguns homens irão atingir o esclarecimento mais rápido do que outros. Por exemplo, este sistema de atingir a Essência da Mente Está acima da compreensão dos ignorantes. Nós podemos explicar isto de 10.000 maneiras, Mas todas estas explicações podem ser resumidas em um único princípio. Para iluminar o nosso obscuro tabernáculo, que está maculado pelos elementos poluidores, Devemos constantemente buscar a Luz da Sabedoria. Errôneos entendimentos mantêm-nos maculados Enquanto que entendimentos corretos nos removem disto, Mas quando estamos numa posição de descartar a ambos Nós então estaremos absolutamente puros. Bodhi é imanente em nossa Essência da Mente, E tentar buscar por isso em outro lugar é errôneo. Dentro de nossa mente impura, a pura poderá ser encontrada, E uma vez que nossa mente é corretamente organizada, estamos livres das três espécies de anuviamentos (ódio, cobiça e ilusão). Se nós estivermos trilhando o Caminho da Iluminação Não necessitamos nos preocupar com as pedras do caminho. Desde que mantenhamos o olhar constante em nossas próprias faltas Nós não iremos nos extraviar do caminho correto.

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Uma vez que todas as espécies de vida têm o seu próprio modo de salvação Elas não irão interferir entre si ou serão antagonistas umas das outras. Mas se nós deixarmos nosso próprio caminho e procurarmos algum outro modo de salvação Nós não iremos encontrar. Embora nos esforcemos até a morte nos levar Apenas encontraremos deméritos no fim. Se tu desejas encontrar o verdadeiro caminho A correta ação irá levar-te diretamente para ele; Mas se tu não te esforças em busca da Natureza Búddhica Irás tatear no escuro sem jamais encontrá-la. Aquele que segue a Caminho com diligência Não verá os erros do mundo; Se encontrarmos faltas em outros Nós também estaremos em erro. Quando outras pessoas cometerem erros, devemos ignorá-lo, Pois não é bom para nós fazer julgamentos. Por saber superar o hábito de criticar as faltas Nós cortaremos a fonte dos elementos poluidores. Quando nenhum ódio nem paixão perturbam nossa mente Serenamente nós dormimos. Aqueles que pretendem ser professores de outros Devem eles mesmos ser talentosos nos vários expedientes que conduzem os outros ao esclarecimento. Quando o discípulo está livre de todas as dúvidas Isso indica que sua Essência da Mente foi encontrada. O Reino de Buddha está neste mundo, Dentro do qual o esclarecimento pode ser procurado. Procurar esclarecimento se separando deste mundo É tão absurdo quanto buscar chifres em um coelho. Visões corretas são chamadas “transcendentais”; Visões errôneas são chamadas “mundanas”.

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Quando todas as visões, certas ou erradas, estão descartadas Então a essência de Bodhi aparece. Este poema é para a Escola “Súbita”. Que é também chamada de “Grande Barca do Dharma” (para singrar o oceano da existência). Kalpa após Kalpa, o homem pode estar sob delusão, Mas uma vez iluminado basta-lhe apenas um momento para atingir a Natureza Búddhica.

Antes de concluir, o Patriarca acrescentou, “Agora,

neste templo Tai Fan, eu vos falei sobre os ensinamentos da Escola ‘Súbita’. Possam todos os seres do Dharmadhatu instantaneamente compreender a Lei e atingir a Natureza Búddhica”.

Após ouvir o que disse o Patriarca, o Magistrado Wei, os oficiais do governo, taoístas e leigos ficaram todos esclarecidos. Eles fizeram reverência em um só corpo e exclamaram unanimemente: “Bendito! Bendito! Quem poderia esperar que um Buddha tivesse nascido em Kwong Tung?”.

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Capítulo III - Dúvidas e

Questionamentos

Um dia o Magistrado Wei recepcionou o Patriarca e lhe

pediu que orasse junto a uma grande assembléia. Ao término do evento, o Magistrado Wei fez-lhe um pedido para que subisse ao púlpito (ao qual o Patriarca consentiu). Depois de curvar-se reverentemente duas vezes em companhia de outros funcionários, estudiosos e cidadãos, disse o Magistrado Wei, “Eu ouvi a oração de Vossa Santidade. Foi algo realmente tão profundo que está além de nossas mentes e palavras, mas tenho certas dúvidas que espero o senhor possa esclarecer para mim”. “Se tendes o senhor qualquer dúvida”, respondeu o Patriarca, “por favor, perguntais e eu explicarei”.

“O que o senhor prega são os princípios fundamentais ensinados por Bodhidharma, não são?”

“Sim”, respondeu o Patriarca. “Me foi dito”, afirmou o Magistrado Wei, “que na

primeira entrevista de Bodhidharma com o Imperador Wu de Liang, este perguntou sobre quais méritos conseguiria adquirir através do trabalho de sua vida, construindo templos, permitindo que novos monges fossem ordenados (o consentimento real era necessário naquela época), dando esmolas e sustentando a Ordem; e a resposta dele era que estes atos não trariam nenhum mérito. Agora, eu não posso entender por que ele deu tal resposta. Poderia o senhor nos explicar, por favor?”.

“Estes atos não trariam nenhum mérito”, respondeu o Patriarca. “Não duvide das palavras do sábio. A mente do

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Imperador Wu estava sob uma errônea impressão, e ele não conhecia o ensino ortodoxo. Tais ações como construir templos, permitir novos monges serem ordenados, dar esmolas e manter a Ordem lhes trarão apenas gratidão, que não deveria ser considerada como méritos. Méritos são achados no Dharmakaya, e eles não têm nada a ver com práticas que conduzem a agradecimentos”.

O Patriarca continuou, “A realização da Essência da Mente é Kung [honra, bons atos], e equanimidade é Tak [virtude, boa índole]. Quando nossa atividade mental trabalha sem qualquer impedimento, permitindo que fiquemos em uma posição de constante conhecimento do verdadeiro estado e do misterioso funcionamento de nossa própria mente, é dito que adquirimos Kung Tak (Gong De, méritos). Internamente, manter a mente em um estado humilde [simples] é Kung; e externamente, comportar-se de acordo com a dignidade é Tak. [Saber] Que todas as coisas são a manifestação da Essência da Mente é Kung, e [saber] que a quintessência da mente é livre de pensamentos fúteis é Tak. Não se desviar da Essência da Mente é Kung, e não poluir a mente ao usá-la é Tak. Se vós buscardes méritos no Dharmakaya, e fizerdes o que acabo de dizer, o que ireis adquirir serão méritos reais. Aquele que trabalha por méritos não despreza a outrem; e em todas as ocasiões trata a todos com respeito. Aquele que tem o hábito de desprezar os outros ainda não se livrou da idéia errônea de um ego, o que indica falta de Kung. Por causa de seu egoísmo e seu desprezo para com os outros, ele não conhece a real Essência da Mente; e isto mostra sua falta de Tak.

Virtuosa Audiência, quando nossa atividade mental trabalha sem interrupção, então há Kung; e quando nossa mente funciona de uma maneira direta, então há Tak. Treinar nossa própria mente é Kung, e treinar nosso próprio corpo é Tak. Virtuosa Audiência, méritos deveriam ser buscados dentro da Essência da Mente e eles não podem ser adquiridos através de caridade, apoio a monges, etc. Nós

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deveríamos saber distinguir entre gratidão e méritos. Não há nada errado com o que nosso Patriarca disse. Foi o próprio Imperador Wu quem não soube [trilhar] o verdadeiro Caminho”.

Magistrado Wei fez a então próxima pergunta. “Eu noto que é uma prática comum para os monges e leigos recitar o nome de Amitabha com a esperança de renascer na Terra Pura do Oeste. De forma a clarear minhas dúvidas, poderia o senhor falar-me por favor se é possível renascer ou não em tal lugar?”.

“Escute-me cuidadosamente, Senhor”, respondeu o Patriarca, “e eu explicarei. De acordo com o Sutra falado pelo Bhagavat [o Buddha] na cidade de Shravasti sobre como conduzir as pessoas à Terra Pura do Oeste, está bastante claro que a Terra Pura não está longe daqui, pois sua distância em milhas é de 108.000, o que realmente representa os ‘dez males’ e os ‘oito erros’ dentro de nós. Certamente, para aqueles de mentalidade inferior isto parece muito longe, mas aos homens de mentalidade superior podemos dizer que está bastante próximo. Embora o Dharma seja uniforme, os homens variam em sua [seu nível de] mentalidade. Devido ao fato deles diferirem uns para os outros em seu grau de esclarecimento ou ignorância, alguns entendem o Dharma mais rápido que outros. Enquanto os homens ignorantes recitam o nome de Amitabha e rezam para renascer na Terra Pura, os esclarecidos purificam a mente, pois, como o Buddha disse, ‘Quando a mente fica pura, a Terra de Buddha fica simultaneamente pura’“.

“Embora o senhor seja um nativo do Leste, se sua mente é pura o senhor está livre de erros [sem elementos mentais poluidores]. Por outro lado, até mesmo se o senhor for um nativo do Oeste uma mente impura não o poderá livrar do erro. Quando as pessoas do Leste cometem um erro, elas recitam o nome de Amitabha e rezam para nascer no Oeste; mas no caso dos nativos do Oeste que porventura cometem erros, onde eles deveriam pedir para nascer? Os

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homens comuns e as pessoas ignorantes não entendem a Essência da Mente nem a Terra Pura dentro deles, assim desejam nascer no Leste ou o Oeste. Mas para os esclarecidos todos lugares são iguais. Como o Buddha disse, ‘Não importa onde eles possam estar, eles sempre estarão contentes e confortáveis’”.

“Senhor, se sua mente está livre do mal, o Oeste não está longe daqui; mas difícil realmente seria para aquele cujo coração [a mente] seja impuro nascer lá invocando Amitabha!”.

“Agora, eu vos advirto, Virtuosa Audiência, primeiro a abandonar os ‘dez males’; então teremos viajado cem mil milhas. Para o próximo passo, vós deveis abandonar os ‘oito erros’, e isto significará outras oito mil milhas atravessadas. Se nós podemos perceber a Essência da Mente a toda hora e podemos nos comportar de uma maneira correta em todas as ocasiões, ao piscar de um olho nós podemos alcançar a Terra Pura e lá poderemos ver Amitabha”.

“Se puserdes em prática as dez boas ações, não haveria nenhuma necessidade de nascerdes lá. Por outro lado, se vós não abandonardes os ‘dez males’ em vossas mentes, que Buddha seria capaz de vos levar para lá? Se vós entenderdes a Doutrina do Não-Nascimento (que põe um fim ao ciclo de nascimento e morte) da Escola ‘Súbita’, vós ireis levar um só momento para ver o Oeste. Se não entenderdes, como podereis alcançar tal região recitando o nome de Amitabha, sendo a distância tão grande?”.

“Agora, vós gostaríeis que eu fosse para a Terra Pura em vossa presença neste mesmo instante, de forma que todos pudésseis vê-la?” A congregação fez reverência e respondeu, “Se nós pudéssemos ver a Terra Pura aqui, não haveria nenhuma necessidade de desejar renascer lá. Vossa Santidade amavelmente nos permitirá vê-la removendo-a daqui”.

O Patriarca disse, “Senhores, este nosso corpo físico é como uma cidade. Nossos olhos, orelhas, nariz e língua são os portões. Há cinco portões externos, enquanto o interno é

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o Pensamento. A mente é o solo. A Essência da Mente é o Rei que vive no domínio da mente. Enquanto a Essência da Mente está presente, o Rei está presente, e nosso corpo e mente existem. Quando a Essência da Mente está ausente, nenhum Rei existe e nosso corpo e mente decaem. Nós deveríamos trabalhar em busca do Estado Búddhico dentro da Essência da Mente, e não deveríamos procurá-lo fora de nós mesmos. Aquele que é mantido ignorante de sua Essência da Mente é um ser comum. Aquele que é iluminado pela sua Essência da Mente é um Buddha. Ser misericordioso é Avalokitesvara (um dos dois principais Bodhisattvas da Terra Pura). Ter prazer em oferecer caridade é Mahasthama (outro Bodhisattva). Competência para uma possuir vida pura é Sakyamuni (um dos títulos de Gautama Buddha). Igualdade e franqueza é Amitabha. A idéia de um ego (Atma) ou de um Ser é o Monte Meru. Uma mente corrompida é o oceano. Klesa (corrupção) são as ondas. A Maldade é o malvado dragão. Falsidade é o demônio. Os objetos de sensação que nos obstaculam são os animais aquáticos. Cobiça e ódio são os infernos. Ignorância e arrogância são as feras”.

“Virtuosa Audiência, se constantemente executardes as dez boas ações, o paraíso vos aparecerá imediatamente. Quando vós vos libertardes da idéia de um ego e de um ser, o Monte Meru tombará. Quando a mente não mais for corrompida, o oceano (de existência) secará. Quando vos libertardes de Klesa, vagas e ondas (do oceano de existência) tranquilizar-se-ão. Quando a maldade for estranha a vós, peixes e dragões desaparecerão”.

“Dentro do domínio de nossa mente, há um Tathagata de Esclarecimento enviando uma luz poderosa que ilumina externamente os seis portões (das sensações) e os purifica. Esta luz é forte o bastante para penetrar os seis Céus de Kama (céus de desejo); e quando é virada para dentro da Essência da Mente, elimina os três elementos venenosos imediatamente, purgando os pecados [contaminações mentais] que poderiam nos conduzir aos infernos ou outros

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reinos maus, e nos ilumina completamente por dentro e por fora, de forma que nenhum de nós será diferente daqueles nascidos na Terra Pura do Oeste. Agora, se nós não praticamos desta forma, como podemos alcançar a Terra Pura?”.

Tendo ouvido o que disse o Patriarca, a congregação percebeu muito claramente sua Essência da Mente. Eles fizeram reverência e exclamaram em uma voz, “Bem dito!” Eles também cantaram, “Possam todos os seres sensíveis deste Universo que ouvirem este sermão imediatamente compreendê-lo intuitivamente”.

O Patriarca acrescentou, “Virtuosa Audiência, esses que desejam se treinar (espiritualmente) podem assim proceder em casa. É bastante desnecessário que eles vivam em monastérios. Esses que praticam em casa [com diligência] podem ser comparados a um nativo do Leste que seja bondoso, enquanto aqueles que vivem em monastérios mas negligenciam sua prática não diferem de um nativo do Oeste que seja mau em coração. Até onde a mente for pura, ela será a ‘Terra Pura Ocidental da sua própria Essência da Mente.’”

O Magistrado Wei perguntou, “Como nós deveríamos nos treinar em casa? Por favor, tenha a gentileza de nos ensinar”.

O Patriarca respondeu, “Vos darei um verso ‘Sem Forma’. Se vós puserdes este ensino em prática estareis na mesma posição daqueles que permanentemente estão comigo. Por outro lado, se vós não praticardes este ensino, que progresso podereis fazer no caminho espiritual, embora cortásseis vossos cabelos e partísseis de casa para sempre (i.e., se juntar a uma Ordem)? Os versos dizem:”

Para uma mente correta, a observação de preceitos (Sila) é desnecessária.

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Para o comportamento adequado, a prática em Dhyana (contemplação) pode ser dispensada. Pelo princípio da gratidão, nós apoiamos nossos parentes e os servimos filialmente. Pelo princípio da retidão, o superior e o inferior estão à serviço um do outro (em tempos de necessidade). Pelo princípio do mútuo desejo de agradar, o mais velho e o mais jovem vivem em termos afetuosos. Pelo princípio da paciência, nós não brigamos nem mesmo em meio a uma multidão hostil. Se nós podemos perseverar até o fogo poder ser obtido pelo friccionar de um pedaço de madeira, Então o lótus vermelho (a natureza Búddhica) libertar-se-á do negro lodaçal (o estado ignorante). Aquilo que é de gosto amargo tende a ser um bom remédio. Aquilo que soa desagradável ao ouvido pode ser um conselho honesto. Reparando nossos enganos, adquirimos sabedoria. Desculpando nossas faltas, demonstramos uma mente insalubre. Em nossa vida diária nós deveríamos praticar sempre o altruísmo, Mas o Estado Búddhico não será atingido dando-se dinheiro como caridade. Bodhi será encontrado dentro de nossa própria mente, E não há nenhuma necessidade de procurar misticismos externos. Os ouvintes destes versos que puserem estes ensinamentos realmente em prática Irão encontrar o paraíso em sua própria presença.

O Patriarca acrescentou, “Virtuosa Audiência, todos vós

deveríeis pôr em prática o que é ensinado nestes versos, de forma que podereis [eventualmente] perceber a Essência da

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Mente e atingir o Estado de Buddha diretamente. O Dharma não espera por ninguém. Eu estou regressando para Ts’ao Ch’i, portanto a assembléia pode se dispersar agora. Se tiverdes quaisquer perguntas, podereis ir até lá e as apresentarem [a mim]”.

Neste momento o Magistrado Wei, os funcionários governamentais, homens piedosos, e as senhoras devotas que estavam presentes ficaram todos esclarecidos. Fielmente eles aceitaram o ensinamento e o puseram em prática.

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Capítulo IV - Samadhi e Prajna

O Patriarca em outra ocasião pregou à assembléia como segue:

Virtuosa Audiência, em meu sistema (Dhyana) Samadhi e

Prajna são fundamentais. Mas não fiqueis sob a errada impressão de que estes dois são independentes um do outro, porque eles são inseparavelmente unidos e não duas entidades. Samadhi é a quintessência de Prajna, enquanto Prajna é a atividade de Samadhi. No mesmo momento que nós atingimos Prajna, Samadhi está presente; e vice-versa. Se vós entenderdes este princípio, ireis entender o equilíbrio entre Samadhi e Prajna. Um discípulo não deveria pensar que existe uma distinção entre ‘Samadhi gera Prajna’ e ‘Prajna gera Samadhi’. Sustentar tal opinião implicaria em considerar que existem duas características no Dharma.

Para aqueles cujas línguas estão preparadas com boas palavras mas cujos corações estão impuros, Samadhi e Prajna são inúteis porque estes mutuamente não se equilibram. Por outro lado, quando nós somos bons tanto na mente assim como nas palavras, e quando nosso comportamento externo e nossos sentimentos internos harmonizam-se entre si, então temos o caso de equilíbrio entre Samadhi e Prajna.

A disputa é desnecessária para um discípulo iluminado. Discutir se Prajna ou Samadhi vem primeiro colocaria a pessoa na mesma posição daqueles que estão sob o domínio da delusão. Discutir implica em se ter desejo de ganhar, fortalece o egoísmo, e nos amarra à convicção da idéia de ‘um ego, um ser, um ser vivente, e uma personalidade’.

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Virtuosa Audiência, a quê Samadhi e Prajna são análogos? Eles são análogos a uma lâmpada e sua luz. Com a lâmpada, há luz. Sem ela, haveria escuridão. A lâmpada é a quintessência da luz e a luz é a expressão da lâmpada. Em nome elas são duas coisas, mas em substância elas são um e o mesmo. É o mesmo caso com Samadhi e Prajna.

Em outra ocasião o Patriarca pregou à assembléia desta forma:

Virtuosa Audiência, praticar o ‘Samadhi do Modo Específico’ é fazer disto uma regra a ser praticada com retidão [sem complicações] em todas as ocasiões - não importa se nós estamos caminhando, parados, sentados ou reclinados. O Vimalakirti Nirdesa Sutra diz, “A Retidão é o lugar sagrado, a Terra Pura”. Não deixeis vossas mentes serem desviadas, praticando com retidão apenas da boca para fora. Nós deveríamos praticar a retidão e não deveríamos nos prender a qualquer coisa. Pessoas sob delusão acreditam obstinadamente em Dharmalaksana (as coisas e fenômenos) e assim teimam em manter sua própria maneira de interpretar o ‘Samadhi do Modo Específico’, o qual eles definem como ‘sentando-se quietamente e continuamente, sem deixar qualquer idéia surgir na mente’. Tal interpretação nos faria iguais a objetos inanimados, e isto é como um grande obstáculo em um Caminho que deve ser mantido aberto. Livrando nossa mente de apegos a todas as ‘coisas’, o Caminho ficará livre; caso contrário, colocaremos a nós mesmos sob repressão10. Se aquela interpretação

10 Um Bhikkhu certa vez perguntou ao Mestre Dhyana Shek Tau,

um sucessor de um dos discípulos do Sexto Patriarca, “O que é a Emancipação?’ O Mestre perguntou-lhe de volta, “Quem te colocaste sob repressão?” O significado desta resposta é praticamente o mesmo daquela exposta no texto aqui. Novamente, quando o Sexto Patriarca disse que o Quinto Patriarca não discutia Dhyana e Emancipação mas apenas a realização da Essência da Mente (cap. I), ele expressava a mesma idéia.

Dih Ping Tsze

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‘sentar-se quietamente e continuamente, etc.’ está correta, por que em certa ocasião Shariputra censurou Vimalakirti por se sentar quietamente na floresta?11

Virtuosa Audiência, alguns professores de meditação ensinam que seus discípulos mantenham vigilância em suas mentes para manter a tranqüilidade, de forma a cessar qualquer atividade. Dali em diante, os discípulos abandonam todo processo mental. Pessoas ignorantes [iniciantes] podem enlouquecer por depositar muita confiança em tais instruções. Tais casos não são raros, e é um grande engano ensinar a outros tal procedimento.

(Em outra ocasião) o Patriarca dirigiu-se à assembléia como segue:

No budismo ortodoxo a distinção entre Escola ‘Súbita’ e Escola ‘Gradual’ realmente não existe; a única diferença reconhecida é a de que por natureza alguns homens são perspicazes, enquanto outros são obscurecidos de entendimento. Aqueles que são esclarecidos percebem a verdade em um súbito, enquanto aqueles que estão debaixo da ilusão têm que praticar gradualmente. Mas tal diferença desaparece quando conhecemos nossas próprias mentes e percebemos nossa própria natureza. Portanto estes termos, ‘gradual’ e ‘súbito’, são mais aparentes do que reais.

11 Vimalakirti disse a Shariputra, “No que concerne a sentar em

silêncio, isto deveria significar que uma pessoa não se expõe dentro dos três mundos (i.e., a consciência desta pessoa deveria estar acima do Mundo dos Desejos, Mundo Material e Mundo Imaterial). Isto significa que enquanto permanece em Nirodha Samapatti (Êxtase com a cessação da consciência), a pessoa é capaz de fazer todos os movimentos corporais tais como caminhar, ficar de pé, sentar ou reclinar, etc. Isto significa que sem desviar-se da Norma, a pessoa é capaz de desempenhar vários atos mundanos. Isto significa que a pessoa pratica os Trinta e sete Bodhipaksa (Asas do Esclarecimento) sem se deixar desviar pelas visões erradas. Isto significa que [mesmo] sem extirpar [completamente] os Klesas (corrupções mentais) o praticante ainda pode alcançar o Nirvana. Aquele que for capaz de sentar-se desta forma, será aprovado pelo Buddha”.

Vimalakirti Nirdesa Sutra

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Virtuosa Audiência, tem sido tradição em nossa escola considerar o ‘Não-pensamento’ como nosso objetivo, ‘Não-objetividade’ como nossa base, e ‘Não-apego’ como nosso princípio fundamental. ‘Não-pensamento’ significa não ser conduzido por qualquer idéia particular no exercício da faculdade mental. ‘Não-objetividade’ significa não ficar absorvido [envolvido, seduzido] pelos objetos quando em contato com [estes] objetos. ‘Não-apego’ é a característica da nossa Essência da Mente.

Todas as coisas – boas ou ruins, bonitas ou feias - deveriam ser consideradas vazias. Até mesmo em tempos de disputas e desavenças deveríamos tratar nossos entes queridos e nossos inimigos igualmente e nunca pensarmos em vinganças. No exercício de nossa faculdade de pensamento, deixe o passado ficar morto. Se nós permitimos que nossos pensamentos do passado, presente e futuro fiquem unidos como em um encadeamento, nós nos colocaremos sob repressão. Por outro lado, se nós nunca deixarmos nossa mente presa a qualquer coisa, ganharemos a emancipação. Por esta razão, nós consideramos ‘Não-apego’ como nosso princípio fundamental.

[O ato de] se livrar da absorção em objetos externos é chamado ‘Não-objetividade’. Quando estamos em uma posição de assim proceder, a natureza do Dharma será pura. Por isto, nós consideramos ‘Não-objetividade’ como nossa base.

Manter nossa mente livre de corrupção sob todas as circunstâncias é chamado ‘Não-pensamento’. Nossa mente deveria ficar à distância das circunstâncias, e em hipótese alguma nós deveríamos permitir que estas influenciassem a função de nossa mente. Mas é um grande engano [tentar] suprimir de nossa mente todo pensamento; pois até mesmo se nós tivéssemos sucesso abandonando todos os pensamentos, e morrêssemos imediatamente depois disso, ainda assim iremos renascer em outro lugar. Não vos esqueçais disto, ó vós que percorreis o Caminho. É ruim o

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bastante para um homem cometer a tolice de não saber o significado do Dharma, mas pior não seria encorajar os outros a fazer o mesmo? Estando iludido, ele nada vê e, além disso, menospreza o Cânone Budista. Portanto nós consideramos o ‘Não-pensamento’ como nosso objetivo.

Virtuosa Audiência, irei vos explicar mais amplamente por que consideramos o ‘Não-pensamento’ como nosso objetivo. É porque existe um tipo de homem iludido que se vangloria de ter alcançado a realização da Essência da Mente; mas por estar sendo levado pelas circunstâncias, idéias surgem em sua mente seguidas por visões errôneas que são a fonte de todos os tipos de falsas noções e corrupções. Na Essência da Mente (a qual é a incorporação do Vazio), intrinsecamente nada pode ser atingido. Dizer que há realização, e falar impensadamente de méritos ou deméritos são visões errôneas e corrupções. Por isto nós consideramos ‘Não-pensamento’ como o objetivo de nossa Escola.

Virtuosa Audiência, (em ‘Não-pensamento’) o que deveríamos abandonar e o que deveríamos manter em nossa mente? Deveríamos abandonar os ‘pares de opostos’ e todas as concepções insalubres. Deveríamos manter nossa mente na verdadeira natureza do Tathata (aquilo que é), pois Tathata é a quintessência das idéias, e as idéias são o resultado da atividade de Tathata .

É a essência positiva de Tathata - não os órgãos de sensação - que dá surgimento às ‘idéias’. Tathata incorpora o seu próprio atributo, e então pode dar surgimento às ‘idéias’. Sem Tathata pereceriam os órgãos de sensação e os objetos de sensação imediatamente. Virtuosa Audiência, devido ao atributo de Tathata dar surgimento às ‘idéias’, nossos órgãos de sensação - apesar do funcionamento da visão, audição, toque, sabor, etc. - não precisarão estar maculados ou corrompidos em todas as circunstâncias, e nossa verdadeira natureza pode ser ‘Ego-manifestada’ todo o tempo. Portanto o Sutra diz, “Aquele que é um adepto na discriminação dos vários Dharmalaksana (coisas e fenômenos) estará

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firmemente assentado no ‘Primeiro Princípio’ (i.e., o eterno e prazeroso lugar do Sagrado, ou Nirvana)”.

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Capítulo V - Dhyana

O Patriarca (um dia) endereçou-se à assembléia como segue:

Em nosso sistema de meditação, nós nem enfatizamos a

mente (em contraposição à Essência da Mente) nem a pureza. Tampouco aprovamos a Não-atividade. Quanto a enfatizar a mente, devemos saber que ela é principalmente delusiva; e quando percebemos que ela é apenas um fantasma, não haverá nenhuma necessidade de enfatizá-la. Quanto a enfatizar a pureza, nossa natureza já é intrinsecamente pura; e uma vez que nos libertamos de toda ‘idéia’ delusiva, nada mais haverá além da pureza em nossa natureza, porque é a idéia delusiva que obscurece o Tathata (Aquilo Que É). Se direcionarmos nossa mente para enfatizar a pureza, estaremos criando apenas outra ilusão, a ilusão da pureza. Considerando que a ilusão não tem nenhum lugar permanente, é delusivo procurar enfatizá-la. A Pureza não tem forma nem aspecto; mas algumas pessoas vão tão longe que inventam uma ‘Forma da Pureza’, e lidam com isto como um problema o qual devemos procurar uma solução. Sustentando tal opinião, estas pessoas tentam dominar a pureza, e sua Essência da Mente é assim obscurecida.

Virtuosa Audiência, aqueles que praticam a ‘imperturbabilidade’ devem, no contato com todos os tipos de pessoas, ignorar as suas faltas. Eles deveriam ser imparciais quanto ao mérito ou demérito, bondade ou maldade dos outros, pois tal atitude está de acordo com a ‘imperturbabilidade da Essência da Mente’. Virtuosa Audiência, um homem ignorante pode ser fisicamente inalterado, mas

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assim que ele abre a sua boca critica outros e fala sobre seus méritos ou deméritos, habilidades ou fraquezas, bondades ou maldades; e assim desvia-se do correto caminho. Por outro lado, enfatizar nossa própria mente ou a pureza também é um obstáculo ao Caminho.

O Patriarca em outra ocasião pregou à assembléia como segue:

Virtuosa Audiência, o que significa sentar para meditar? Em nossa Escola, sentar significa obter absoluta liberdade e estar mentalmente imperturbado em relação a todas as circunstâncias externas, sejam estas boas ou ao contrário. Meditar significa perceber internamente a imperturbabilidade da Essência da Mente.

Virtuosa Audiência, o que é Dhyana e Samadhi? Dhyana significa estar livre de apegos por todos os objetos externos, e Samadhi significa atingir a paz interna. Se estivermos presos a todos os objetos externos, nossa mente interior ficará perturbada. Quando estamos livres de apegos aos objetos externos, a mente estará em paz. Nossa Essência da Mente é intrinsecamente pura, e a razão de ficarmos perturbados é que nos deixamos levar pelas circunstâncias em que nos envolvemos. Aquele que é capaz de manter a mente inalterada, independente das circunstâncias, atingiu o Samadhi.

Estar livre de apegos a todos os objetos externos é Dhyana, e atingir a paz interna é Samadhi. Quando estamos em posição de lidar com Dhyana e manter nossa mente interior em Samadhi, então é dito que atingimos Dhyana e Samadhi. O Bodhisattva Sila Sutra diz, “Nossa Essência da Mente é intrinsecamente pura”. Virtuosa Audiência, que sejamos capazes de perceber isto a toda hora em nós mesmos. Vamos treinar, praticar em nós mesmos, e atinjir a Natureza Búddhica por nosso próprio esforço.

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Capítulo VI - Sobre a Contrição

Certa vez havia uma grande reunião de estudiosos e cidadãos de Kuang Chou, Shao Chou, e outros lugares esperando que o Patriarca falasse com eles. Vendo isto, o Patriarca subiu ao púlpito e disse o seguinte:

No Budismo, nós deveríamos começar com a nossa

Essência da Mente. A toda hora devemos purificar nossa própria mente de um Ksana [momento, instante] para outro, trilhando o Caminho por nossos próprios esforços, percebendo nosso próprio Dharmakaya, percebendo o Buddha em nossa própria mente, e lançando a nós mesmos a uma íntima observância dos Silas; então, vossa visita não terá sido em vão. Uma vez que vós todos viestes de muito longe, o fato de nos reunirmos aqui demonstra que há uma boa afinidade entre nós. Agora vamos nos sentar à moda indiana, e eu vos darei a Contrição ‘Sem-Forma’ [sobre os cinco tipos de Fragrâncias do Dharmakaya].

Quando todos haviam se acomodado, disse o Patriarca: A primeira é a Fragrância de Sila, significando que nossa

mente está livre das máculas de atos demeritórios, ciúme, maldade, avareza, raiva, exploração, e ódio. A segunda é a Fragrância de Samadhi [Estabilidade, Concentração], significando que nossa mente mantem-se inalterada em todas as circunstâncias, favoráveis ou desfavoráveis. A terceira é a Fragrância de Prajna [Sabedoria, Discernimento], significando que nossa mente está livre de todos os impedimentos; que constantemente aprofundamos nossa Essência da Mente com sabedoria; que nos abstemos de fazer

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todos os tipos de ações más; que embora façamos todos os tipos de bons atos, não deixamos, entretanto, nossa mente ficar presa a (aos frutos de) tais ações; que somos respeitosos para com nossos superiores, respeitamos aqueles inferiores a nós, e temos simpatia para com os pobres e destituídos. A quarta é a Fragrância da Liberação, significando que nossa mente está em um estado tão absolutamente livre que a nada se apega e não se atêm nem ao bem nem ao mal. A quinta é a Fragrância do ‘Conhecimento obtido quando se Atinge a Liberação’. Quando nossa mente não mais se apega ao bem nem ao mal, devemos nos preocupar em não deixá-la se perder no Vazio, ou permaneceremos em um estado de inércia. Antes, deveríamos aumentar nossos estudos e deveríamos alargar nossos conhecimentos, de forma que possamos conhecer nossa própria mente, entender os princípios do Budismo completamente, sendo afáveis com os outros em nossos procedimentos com eles, libertando-nos da idéia de um ‘ego’ e de um ‘ser’, e percebendo que no momento em que atingimos Bodhi, a ‘verdadeira natureza’ (ou Essência da Mente) é sempre imutável. Esta, portanto, é a Fragrância do ‘Conhecimento obtido quando se Atinge a Liberação’. Esta Fragrância de cinco partes nos perfuma de dentro [para fora], e nós não deveríamos buscá-la externamente.

Agora eu vos darei a Contrição ‘Sem-Forma’ que expiará nossos pecados cometidos em nossa presente vida, nas vidas passadas e futuras, e purifica nossos Karmas de pensamento, palavra e ação.

Virtuosa Audiência, por favor, segui-me e repeti juntos o que eu vos digo:

“Que nós possamos, discípulos chamados assim ou assim, estar sempre livres das manchas da ignorância e da ilusão. Nós nos arrependemos de todos os nossos erros e das más ações cometidas sob delusão ou em ignorância. Que estes atos sejam expiados imediatamente e nunca mais retornem”.

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“Que nós possamos estar livres das manchas da arrogância e da desonestidade (Asathya). Nós nos arrependemos de nosso comportamento arrogante e procedimentos desonestos no passado. Que estes atos sejam expiados imediatamente e nunca mais retornem”.

“Que nós possamos estar livres das manchas de inveja e ciúme. Nós nos arrependemos de todos os nossos erros e das más ações cometidas com espírito de inveja ou ciúme. Que estes atos sejam expiados imediatamente e que nunca mais retornem”.

Virtuosa Audiência, isto é o que nós chamamos ‘Chan Hui (Contrição, Arrependimento) Sem-Forma [Não-Dual]’. Agora, qual é o significado de Chan? Qual é o significado de Hui? Chan se refere à correção de erros passados. Se arrepender de todos nossos erros passados e ações demeritórias cometidas sob influência da ilusão, ignorância, arrogância, desonestidade, ciúme, ou inveja, etc. de forma a pôr um fim em todas elas é chamado Chan. Hui se refere àquela parte da Contrição que concerne à nossa conduta futura. Havendo percebido a natureza de nossa transgressão (nós fazemos um voto) de que no futuro poremos um fim a todos os tipos de males cometidos sob ilusão, ignorância, arrogância, desonestidade, ciúme, ou inveja, e que nós nunca erraremos novamente. Este é Hui.

Por causa da delusão e ignorância, pessoas comuns não percebem que no ato de Contrição elas não só têm que sentir arrependimento pelos seus erros passados, mas também se abster de errar no futuro. Considerando que elas não dão atenção às suas condutas futuras, elas cometem novos erros antes [mesmo] daqueles do passado serem expiados. Como podemos chamar isto de ‘Contrição’?

Virtuosa Audiência, havendo se arrependido de nossos erros nós tomaremos os seguintes quatro Grandes Votos:

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Nós juramos liberar um número infinito de seres sensíveis em nossas mentes 12. Nós juramos superar as inumeráveis corrupções em nossas mentes. Nós juramos praticar as incontáveis verdades do Dharma [contidas] em nossa Essência da Mente. Nós juramos atingir a Suprema Natureza Búddhica de nossa Essência da Mente.

Virtuosa Audiência, todos nós declaramos agora que

iremos nos comprometer a libertar um número infinito de seres sensíveis; mas o que isto significa? Não significa que eu, Wei Lang, vou [pessoalmente] libertá-los. E quais são estes seres sensíveis dentro de nossa mente? Eles são a mente delusiva, a mente enganosa, a mente insalubre, e outros tipos de mentes como essas – todas elas são seres sensíveis. Cada uma delas deve libertar-se por meio de sua própria Essência da Mente. Então, a libertação será genuína.

Agora, o que significa libertar a si mesmo através de sua própria Essência da Mente? Significa a libertação dos seres da ignorância, da delusão e da atormentação dentro de nossa própria mente por meio das Corretas Visões. Com a ajuda de Corretas Visões e da Sabedoria-Prajna as barreiras levantadas por estes seres ignorantes e delusivos podem ser demolidas; de forma que cada um deles fique em uma posição de se libertar pelos próprios esforços. Deixe o enganador ser libertado através da honestidade [Correção]; o iludido através do esclarecimento; o ignorante pela sabedoria; e o malévolo pela benevolência. Tal é a libertação genuína.

Sobre o voto, ‘Nós juramos superar as inumeráveis paixões insalubres em nossas mentes,’ se refere à

12 Os Budistas [e a tradição Hindu em geral] consideram que todas

as coisas nada mais são do que fenômenos da mente.

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substituição de nossa faculdade de pensamento incerta e ilusória pela Sabedoria-Prajna de nossa Essência da Mente.

Sobre o voto, ‘Nós juramos praticar as incontáveis verdades do Dharma,’ não haverá nenhuma verdadeira aprendizagem até que nós venhamos a vivenciar nossa Essência da Mente diretamente, e até que nos adaptemos ao Dharma correto em todas as ocasiões.

Sobre o voto, ‘Nós juramos atingir a Suprema Natureza Búddhica,’ quero afirmar que quando somos capazes de direcionar nossa mente para seguir o verdadeiro e correto Dharma em todas as ocasiões, e quando Prajna surge constantemente em nossa mente, e neste momento nos mantermos à distância tanto do esclarecimento como também da ignorância, afastados tanto da verdade como também da falsidade, então poderemos nos considerar como tendo percebido a Natureza Búddhica, ou em outras palavras, como havendo atingido o Caminho Búddhico.

Virtuosa Audiência, nós sempre deveríamos ter em mente que estamos trilhando a Senda para, assim, esta força somar-se aos nossos votos. Agora, desde que todos nós assumimos estes quatro Grandes Votos, irei ensinar-vos a ‘Orientação Sem-Forma [Não-dual] de Três Partes’:

“Nós nos orientamos pelo ‘Esclarecimento’, porque ele é a culminação tanto de Punya (mérito) como de Prajna (sabedoria)”. “Nós nos orientamos pela ‘ Verdade’ (Dharma), porque é o melhor modo de adquirir a libertação dos desejos”. “Nós nos orientamos pela ‘Pureza’, porque é a qualidade mais nobre do gênero humano”.

Daqui por diante, deixai o Iluminado ser vosso

professor; em hipótese alguma deveríamos aceitar Mara (a personificação da Ilusão) ou qualquer visão errônea como nosso guia. Isto nós devemos testemunhar constantemente para nós mesmos apelando para as ‘Três Jóias’ de nossa

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Essência da Mente, nas quais, Virtuosa Audiência, eu vos aconselho a buscar refúgio. Elas são:

Buddha que representa o Esclarecimento. Dharma que representa a Verdade. Sangha, (a Ordem) que representa a Pureza. Deixar nossa mente tomar refúgio no

‘Esclarecimento’, de forma que o erro e as noções delusivas não surjam, a diminuição do desejo ocorra, desconheçamos o descontentamento, a luxúria e a cobiça já não nos acorrentem, tal é a culminação de Punya e Prajna.

Deixar nossa mente tomar refúgio na ‘Verdade’ de forma que nós sempre fiquemos livres das visões errôneas (pois sem visões errôneas não haveria nenhum egoísmo, arrogância, ou ambição), este é o melhor modo de atingir a liberação do desejo.

Deixar nossa mente tomar refúgio na ‘Pureza’ de forma que não importa em quais circunstâncias estivermos, não seremos contaminados pelos desgastantes sensações-objeto, ambições e desejos, esta é a qualidade mais nobre do gênero humano.

Praticar a Orientação de Três Partes do modo acima mencionado significa tomar refúgio em si mesmo (i.e., em sua própria Essência da Mente). Pessoas ignorantes recitam a Orientação de Três Partes dia e noite, mas não a entendem. Se elas dizem que tomam refúgio em Buddha, sabem onde ele está? Além disso, se elas não podem ver Buddha, como podem tomar refúgio nele? Não seria este grupo de afirmações uma mentira?

Virtuosa Audiência, cada um de vós deveríeis considerar e examinar este ponto por vós mesmos, e não deixar vossa energia ser desviada. O Sutra diz claramente que deveríamos tomar refúgio em Buddha dentro de nós mesmos; não sugere que devemos tomar refúgio em outros Buddhas.

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(Além disso), se não tomamos refúgio em Buddha dentro de nós mesmos, não há nenhum outro lugar para nos abrigar.

Havendo clareado este ponto, que cada um de nós tome refúgio nas ‘Três Jóias’ dentro de nossas mentes. Internamente, deveríamos controlar nossa mente; externamente, deveríamos ser respeitosos para com os outros - este é o modo de tomar refúgio dentro de nós mesmos.

Virtuosa Audiência, desde que todos vós aceitastes a ‘Orientação de Três Partes’, irei falar-vos do Trikaya (três ‘corpos’) do Buddha de nossa Essência da Mente, de forma que vós possais ver estes três corpos e serdes capazes de perceber claramente a Essência da Mente. Por favor, escutai cuidadosamente e repeti depois de mim:

Com nosso corpo físico, tomamos refúgio no Puro Dharmakaya (Corpo da Essência) de Buddha. Com nosso corpo físico, tomamos refúgio no Perfeito Sambhogakaya (Corpo de Manifestação) de Buddha. Com nosso corpo físico, tomamos refúgio nas Miríades dos Nirmanakaya (Corpos de Encarnação) de Buddha.

Virtuosa Audiência, nosso corpo físico pode ser

comparado a um albergue (i.e., um domicílio temporário), assim não podemos buscar refúgio nele. Dentro de nossa Essência da Mente serão achados os Trikaya de Buddha, e eles são comuns a todos.

Porque a mente (de um homem comum) trabalha sob [a influência de] delusões, ele não conhece sua verdadeira natureza interna; e o resultado é que ele ignora o Trikaya dentro de si, (acreditando erroneamente) que eles devem ser procurados externamente. Escutai por favor, e eu vos mostrarei que dentro de vós achareis o Trikaya o qual, sendo a manifestação da Essência da Mente, não deve ser procurado externamente.

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Agora, o que é o Puro Dharmakaya? Nossa Essência da Mente é intrinsecamente pura; todas as coisas são apenas suas manifestações, e ações meritórias e demeritórias são respectivamente resultados de corretos e errôneos pensamentos. Assim, dentro da Essência da Mente todas as coisas (são intrinsecamente puras), como o azul do céu e o esplendor do sol e da lua que, quando obscurecidos pelas nuvens cambiantes, pode parecer como se o seu brilho tenha desaparecido; mas assim que as nuvens são sopradas para longe, o brilho reaparece e todos os objetos são completamente iluminados. Virtuosa Audiência, nossos hábitos negativos podem ser comparados às nuvens; enquanto que a sagacidade e a sabedoria (Prajna) são respectivamente o sol e lua. Quando nos prendemos a objetos externos nossa Essência da Mente é obscurecida por pensamentos insalubres que impedem a nossa Sagacidade e Sabedoria enviarem sua luz. Mas sendo nós afortunados o suficiente para encontrar instruídos e piedosos professores capazes de nos tornar conhecido o Verdadeiro Dharma, então podemos com nossos próprios esforços anular a ignorância e a ilusão, de forma que somos iluminados internamente e externamente, e a (verdadeira natureza) de todas as coisas manifestar-se-ão em nossa Essência da Mente. Isto é o que acontece àqueles que vivenciaram a Essência da Mente diretamente, e isto é o que se chama Puro Dharmakaya de Buddha.

Virtuosa Audiência, buscar refúgio em um verdadeiro Buddha é buscar refúgio em nossa própria Essência da Mente. Aquele que assim faz deve remover de sua Essência da Mente a mente maldosa, a mente ciumenta, a mente bajuladora e deformada, o egoísmo, o engano e a falsidade, a altivez, a pretensiosidade, as visões enganadoras, a arrogância, e todos os outros males que podem surgir a qualquer momento. Tomar refúgio em si mesmo é constantemente estar alerta para nossos próprios enganos, e se conter nas críticas aos méritos ou faltas dos outros. Aquele que é humilde e

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tranqüilo em todas as ocasiões e que é cortês com todos, compreendeu sua Essência da Mente de forma plena, tão plenamente que seu Caminho torna-se livre de obstáculos adicionais. Esta é a maneira de buscar refúgio em si mesmo.

Como é o Perfeito Sambhogakaya? Irei usar a ilustração de uma lâmpada. Assim como a luz de uma lâmpada pode quebrar uma escuridão que esteve presente durante mil anos, assim a centelha da Sabedoria pode anular uma ignorância que durou por eras. Nós precisamos não nos preocupar com o passado, pois o passado foi-se e é irreparável. O que exige nossa atenção é o futuro; portanto, que nossos pensamentos de momento para momento sejam claros e harmoniosos, e que sejamos capazes de experimentar diretamente nossa Essência da Mente. O bom e o mau são opostos a um ao outro, mas sua quintessência não pode ser dualística. Esta natureza Não-dualista é chamada de Verdadeira Natureza (i.e., a Realidade Absoluta) que não pode ser contaminada pelo mal nem pode ser afetada pelo bem. Isto é o que é chamado Sambhogakaya de Buddha.

Um único pensamento insalubre em nossa Essência da Mente deteriorará os bons méritos acumulados em aeons de tempo, enquanto um pensamento saudável daquela mesma fonte pode expiar todos os nossos erros, mesmo que eles sejam tantos quanto os grãos de areia no Ganges. Perceber nossa própria Essência da Mente de momento a momento sem interrupção até que possamos atingir o Supremo Esclarecimento, de forma que perpetuamente estejamos em um estado de Correta Plena Atenção, é o Sambhogakaya.

Agora, o que é a Miríade dos Nirmanakaya? Quando nos preparamos para o mínimo de discriminação e particularização, acontece a transformação. Caso contrário todas as coisas permanecem tão vazias quanto o Espaço, como elas são inerentemente. Ao posicionar nossa mente em coisas más, o inferno surge. Ao posicionar nossa mente em atos bons, surge o paraíso. Dragões e serpentes são a transformação do ódio venenoso, enquanto os Bodhisattvas

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são a clemência personificada. As regiões superiores são o Prajna cristalino, enquanto os mundos inferiores são apenas outra forma assumida pela ignorância e a paixão insensata. Numerosas realmente são as transformações da Essência da Mente! As pessoas sob ilusão não despertam e não entendem; sempre elas submetem suas mentes ao erro, e como hábito praticam o mal. Mas, conduzissem elas suas mentes do mal para a retidão mesmo que por apenas um instante, o Prajna surgiria imediatamente. Isto é o que se chama Nirmanakaya do Buddha na Essência da Mente.

Virtuosa Audiência, o Dharmakaya é intrinsecamente auto-suficiente. Perceber diretamente de momento a momento nossa própria Essência da Mente é o Sambhogakaya de Buddha. Posicionar nossa mente no Sambhogakaya (de forma que a Sabedoria ou Prajna surja) é o Nirmanakaya. Atingir o Esclarecimento por nossos próprios esforços e praticar através de si mesmo a bondade inerente em nossa Essência da Mente, são exemplos genuínos de ‘Tomar Refúgio’. Nosso corpo físico, consistindo de carne e pele, etc., nada além é do que um albergue (apenas para uso temporário), assim nós não buscamos refúgio nele. Mas deixe-nos perceber o Trikaya de nossa Essência da Mente, e conheceremos o Buddha em nossa Essência da Mente. Eu tenho um poema ‘Sem-Forma’, a recitação e prática do mesmo imediatamente dispersará as ilusões e expiará os deméritos acumulados em numerosos kalpas. Ouvi o poema:

Pessoas sob ilusão cultivam bênçãos, mas não cultivam o Caminho [o Tao]. Elas afirmam que cultivar bênçãos é [o mesmo que trilhar] o Caminho. Embora seus méritos por oferecer esmolas e oferendas sejam infinitos,

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(Elas não percebem que) a fonte fundamental dos erros está nos três elementos venenosos (i.e., cobiça, ódio e ilusão) presentes em suas próprias mentes. Elas esperam expiar seus erros acumulando bênçãos Sem saber que a felicidade obtida em vidas futuras nada tem a ver com a superação de erros. Por que não se libertar dos erros dentro de nossa própria mente, Sabendo que profundamente em nossa Essência da Mente acontece o verdadeiro ato de Contrição? (Aquele) que percebe o que constitui a verdadeira Contrição de acordo com a Escola de Mahayana, E que cessa de fazer o mal praticando a retidão, está livre dos erros. Um praticante do Caminho que mantém uma constante contemplação de sua Essência da Mente Pode ser colocado entre os vários Buddhas. Nossos Patriarcas não transmitiram outro sistema de Lei além do chamado ‘Súbito’. Possam todos os seus seguidores experimentar a Essência da Mente diretamente e imediatamente estar entre os Buddhas. Se vós estiverdes a ponto de buscar o Dharmakaya, Procure-o além de Dharmalaksana (fenômenos), e então sua Mente ficará pura. Esforçai-vos de modo a perceber vossa Essência da Mente diretamente e não relaxai, Pois a Morte pode vir repentinamente e pode pôr um fim abrupto a sua existência terrestre. Aqueles que entendem o ensinamento Mahayana e estão assim hábeis para perceber a Essência da Mente Devem reverentemente juntar as suas mãos (como um sinal de respeito) e fervorosamente buscar o Dharmakaya.

O Patriarca acrescentou então:

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Virtuosa Audiência, todos vós devereis recitar estes versos e devereis pô-los em prática. Sendo capazes de perceber vossa Essência da Mente após recitá-los, vós podeis considerar que estais sempre em minha presença, ainda que de fato estejais distante por mil milhas, mas se estiverdes impossibilitados de assim proceder, então mesmo se estivermos juntos cara a cara, nós realmente estaremos separados por mil milhas. Neste caso, qual o sentido de assumir a dificuldade de vir de tão longe até aqui? Tendes cuidado convosco. Adeus.

A inteira assembléia, depois de ouvir o que o Patriarca havia dito, tornou-se esclarecida. Em um estado de espírito muito feliz, eles aceitaram seu ensinamento e o colocaram em prática.

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Capítulo VII - Transformações e

Afinidades

(Instruções dadas de acordo com o temperamento dos discípulos e para as circunstâncias do caso)

No retorno do Patriarca para a aldeia de Ts’ao Hou em

Shao Chou de Huang Mei onde o Dharma lhe havia sido transmitido, ele era ainda uma figura desconhecida, e havia um estudioso confucionista chamado Liu Chih-Lueh que lhe deu calorosas boas-vindas. Chih-Lueh tinha uma tia chamada Wu Chin-Tsang que era uma Bhikkhuni (uma monja da Ordem), e que costumava recitar o Maha Parinirvana Sutra. Depois de ouvir sua recitação por um só instante o Patriarca captou todo o seu profundo significado e começou a explicar para ela. Ao que, ela apanhou o livro e lhe perguntou o significado de certas palavras.

“Eu sou analfabeto”, ele respondeu, “mas se desejas saber o sentido deste trabalho, por favor, pergunte”. “Como o senhor pode captar o significado do texto”, ela replicou, “quando nem mesmo sabe as palavras?” A isto ele respondeu, “A profundidade dos ensinamentos dos vários Buddhas não tem nada a ver com a palavra escrita”. Esta resposta a surpreendeu muito, e percebendo que ele não era nenhum Bhikkhu comum, ela fez conhecer sua presença extensamente para os mais piedosos anciãos da aldeia. “Este

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é um homem santo”, ela disse, “nós deveríamos lhe pedir que ficasse, e conseguir sua permissão para o prover com alimento e abrigo”. Ao quê, um descendente do Marquês Wu da Dinastia de Wei, chamado Ts’ao Shu-Liang, veio uma tarde com outros aldeãos prestar homenagem ao Patriarca. O histórico monastério Pao Lin, devastado pela guerra ao término da Dinastia Sui, estava então reduzido a um monte de ruínas, mas no velho sítio eles o reconstruíram e pediram ao Patriarca que lá habitasse. Pouco depois, o local tornou-se um templo muito famoso.

Depois de ficar lá durante nove meses, seus inimigos o localizaram e o perseguiram mais uma vez. Então ele buscou refúgio em uma colina nas cercanias. Os vilões então atearam fogo na floresta (onde ele estava escondido), mas ele escapou encontrando uma saída sob uma pedra. Esta pedra, a qual é conhecida como ‘Pedra do Refúgio’, tem desde então as impressões dos joelhos do Patriarca na posição agachada e também as impressões da textura de seu manto.

Recordando a instrução de seu mestre, o Quinto Patriarca, de que deveria parar em Huai e deveria se recolher em Hui, ele fez destes dois distritos seus lugares de retiro.

Bhikkhu Fa Hai, um nativo de Chu Kiang de Shao

Chow, em sua primeira entrevista com o Patriarca perguntou o significado da famosa declaração, ‘O que a mente é, Buddha é. ‘ O Patriarca respondeu, “não permitir um pensamento passageiro retornar é ‘Mente’. Não permitir que o pensamento a surgir seja aniquilado é Buddha. Manifestar todos os tipos de fenômenos é ‘Mente’. Estar livre de todas as formas (i.e., perceber a irrealidade dos fenômenos) é Buddha. Se eu fosse dar-te uma plena explicação, o tema não seria esgotado nem mesmo se eu levasse um kalpa inteiro. Portanto, ouve meus versos:”

Prajna significa ‘O que a Mente é’,

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Samadhi significa ‘O que Buddha é’. Ao praticar Prajna e Samadhi, deixai cada um manter o ritmo com o outro; Então nossos pensamentos serão puros. Este ensinamento pode ser entendido Apenas através do ‘hábito da prática’. Samadhi funciona, mas inerentemente ele não se transforma. O ensino correto é praticar Prajna assim como Samadhi.

Após ouvir o que o Patriarca disse, Fa Hai

imediatamente ficou esclarecido. Ele louvou o Patriarca com os seguintes versos:

‘O que a Mente é, Buddha é’, eis uma verdade, sem dúvida! Mas eu vergonhosamente não entendia isto. Agora eu conheço a causa principal de Prajna e Samadhi A ambos praticarei para me tornar livre de todas as formas.

Bhikkhu Fa Ta, um nativo de Hung Chou que se uniu à

Ordem na tenra idade de sete anos, costumava recitar o Saddharma Pundarika Sutra (Sutra do Lótus da Boa Lei). Quando foi prestar homenagem ao Patriarca, ele não abaixou sua cabeça até o solo. Devido a esta abreviada cortesia, o Patriarca reprovou-o dizendo, “Se tu te recusas a abaixar até o solo, não seria melhor deixares de fazer a saudação de uma vez? Deve haver algo em tua mente que te faz tão cheio de si. Diga-me o que fazes em teu exercício diário”.

“Eu recito o Saddharma Pundarika Sutra”, respondeu Fa

Ta. “Eu li três mil vezes seu texto inteiro!”.

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“Houvesse tu captado o significado do Sutra”, comentou o Patriarca, “não terias assumido tal soberba, até mesmo se o lesses dez mil vezes. Se houvesse compreendido o texto, estarias trilhando o mesmo Caminho que o meu. O que realizastes fez de ti alguém convencido e, além disso, não pareces perceber que isto está errado. Escuta meus versos:”

Uma vez que o objetivo do ritual é restringir a arrogância Por que não abaixaste tua cabeça até o solo? ‘Acreditar em um ego’ é a fonte do erro, Mas ‘ tratar toda a realização como Vazio’ atinge um mérito incomparável!

O Patriarca pediu seu nome então, e ao saber que este era Fa Ta (que significa Entender a Lei) comentou, “Teu nome é Fa Ta, contudo não foste capaz de compreender a Lei”. Ele concluiu criando outros versos:

Teu nome é Fa Ta. Diligentemente e sem desistir recitas o Sutra. Repetição do texto através dos lábios só serve para a verbalização, Mas aquele cuja mente ilumina-se ao captar o significado, realmente é um Bodhisattva! Por causa de Pratyaya (condições que produzem os fenômenos) em nossas vidas passadas Eu explicarei a ti. Se tu apenas acreditares que o Buddha não fala nenhuma palavra, Então o Lótus irá florescer em tua boca.

Tendo ouvido estes versos, Fa Ta arrependeu-se e se

desculpou com o Patriarca. Ele também acrescentou, “Daqui por diante, serei humilde e cortês em todas as ocasiões. Como eu não entendo totalmente o significado do Sutra que

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recito, tenho dúvidas sobre sua interpretação formal. Com vosso conhecimento profundo e grande sabedoria, vós amavelmente me concedereis uma pequena explicação?”.

O Patriarca respondeu, “Fa Ta, o Dharma é bastante claro; é tua mente que não está clara. O Sutra é livre de passagens duvidosas; é apenas tua mente que as faz duvidosas. Recitando o Sutra, sabes seu objetivo principal?”.

“Como eu posso saber, Senhor”, Fa Ta respondeu, “sendo tão confuso e estúpido? Tudo que sei é como recitá-lo palavra por palavra”.

O Patriarca disse então, “Tu irás, por favor, recitar o Sutra, uma vez que eu não posso lê-lo. Eu então explicarei o seu significado a ti”.

Fa Ta recitou o Sutra, mas quando chegou ao capítulo intitulado ‘Parábolas’ o Patriarca o parou e disse, “O ponto-chave deste Sutra é esclarecer a meta e o objetivo da encarnação de um Buddha neste mundo. Embora parábolas e ilustrações sejam numerosas neste livro, nenhuma delas vai além deste ponto principal. Agora, qual é este objetivo? Qual a sua meta? O Sutra diz, ‘é exclusivamente para um objetivo, uma única meta, verdadeiramente um alto objetivo e uma grande meta que um Buddha aparece neste mundo.’ Agora, este único objetivo, esta única meta, este alto objetivo, esta grande meta refere-se à ‘visão’ do Conhecimento Búddhico”.

“Pessoas comuns se prendem externamente aos objetos; e internamente, elas sucumbem à idéia errada de ‘vacuidade’. Quando elas são capazes de se livrar do apego aos objetos quando em contato com os objetos, e se livrar da enganadora visão de aniquilação na doutrina do ‘Vazio’, elas estarão livres de ilusões internas e de ilusões externas. Aquele que entende isto e cuja mente torna-se iluminada num instante, é dito que tem abertos seus olhos para a visão do Conhecimento Búddhico”.

“A palavra ‘Buddha’ é equivalente a ‘Esclarecimento’ o qual pode ser considerado (como no Sutra) sob quatro tópicos:”

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Abrir os olhos para a visão do Conhecimento Esclarecedor; Expor a visão do Conhecimento Esclarecedor; Despertar a visão do Conhecimento Esclarecedor; Ficar firmemente estabelecido no Conhecimento

Esclarecedor. “Sendo capazes, ao sermos ensinados, de captar e

compreender completamente o ensinamento do Conhecimento Esclarecedor, então nossa inerente qualidade ou verdadeira natureza, i.e., o Conhecimento Esclarecedor, terá uma oportunidade de se manifestar. Tu não deverias interpretar equivocadamente o texto, e chegar à conclusão de que o Conhecimento Búddhico é algo especial a Buddha e não comum a todos nós por acontecer de encontrares no Sutra esta passagem, ‘abrir os olhos para a visão do Conhecimento Búddhico, mostrar a visão do Conhecimento Búddhico, etc.’ Tal errônea interpretação seria uma calúnia ao Buddha e uma blasfêmia ao Sutra. Sendo um Buddha, ele já está de posse deste Conhecimento Esclarecedor e não há nenhuma necessidade de abrir seus olhos para isto. Tu deves então aceitar a interpretação de que este Conhecimento Búddhico é o Conhecimento Búddhico de tua própria mente e não o de outro Buddha”.

“Estando seduzidos por objetos-de-sensação, e assim fechando-se para suas próprias luzes, todos os seres sensíveis, atormentados por circunstâncias externas e aflições internas, agem voluntariamente como escravos dos próprios desejos. Vendo isto, nosso Senhor Buddha precisou sair de seu Samadhi para exortar os seres, com vários tipos de profundos discursos, a suprimir seus desejos e se abster de buscar a felicidade [apenas] externamente, de forma que poderiam se tornar iguais ao Buddha. Por isto o Sutra diz, ‘abrir os olhos para a visão do Conhecimento Búddhico, etc.’“.

“Eu constantemente aconselho às pessoas que abram seus olhos para o Conhecimento Búddhico dentro de suas mentes. Mas perversamente elas cometem erros sob ilusão e

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ignorância; elas são amáveis em palavras, mas falsas em mente; elas são avaras, malignas, ciumentas, tortuosas, bajuladoras, egoístas, ofensivas aos homens e destrutivas aos objetos inanimados. Assim, elas abrem os seus olhos [apenas] para o ‘Conhecimento das Pessoas Comuns’. Se fossem capazes de retificar seus corações, de forma que a sabedoria aflore continuamente, suas mentes estariam sob a introspecção [profunda], e os atos demeritórios seriam substituídos pela prática do bem; então elas se iniciariam no Conhecimento Búddhico”.

“Tu deves, então, de momento a momento, abrir teus olhos, não para o ‘Conhecimento das Pessoas Comuns’ mas para o Conhecimento Búddhico que é supramundano enquanto o anterior é [simplesmente] do mundo. Por outro lado, se tu te apegas ao conceito de que a mera recitação (do Sutra) como um exercício diário é suficiente, então tu irás te seduzir como o Yaque por seu próprio rabo”. (Os Yaques são conhecidos por ter uma opinião muito alta de seus próprios rabos.)

Fa Ta disse então, “Se é assim, nós devemos apenas saber o significado do Sutra e não haveria nenhuma necessidade recitá-los. Isto é certo, Senhor?”.

“Não há nada errado com o Sutra”, respondeu o Patriarca, “para que tu te abstenhas de recitá-lo. Se a recitação do Sutra iluminar-te-á ou não, ou te beneficiará ou não, tudo depende de ti. Aquele que recita o Sutra com a língua e põe o ensinamento realmente em prática com a mente ‘gira’ o Sutra. Aquele que o recita sem pôr em prática é ‘girado’ pelo Sutra. Escuta meus versos:”

Quando nossa mente está sob ilusão, o Saddharma Pundarika Sutra ‘nos faz girar’. Ao contrário, com uma mente iluminada nós ‘giramos’ o Sutra. Recitar o Sutra durante um tempo considerável sem saber seu principal objetivo

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Indica que tu és estranho ao seu significado. O modo correto de recitar o Sutra está em não se prender a qualquer crença arbitrária; Caso contrário, será um erro. Aquele que está acima do ‘Afirmativo’ ou ‘Negativo’ Conduz permanentemente a Carruagem do Boi Branco (o Veículo de Buddha.

Tendo ouvido estes versos, Fa Ta foi iluminado e

conduzido às lágrimas. “É a mais completa verdade”, ele exclamou, “que antes estava impossibilitado de ‘girar’ o Sutra. Na verdade, o Sutra é que me ‘girava’”.

Ele então levantou outra questão. “O Sutra diz, ‘Dos Sravakas (os discípulos) até aos Bodhisattvas, mesmo se eles especulassem com esforços combinados, estariam impossibilitados de compreender o Conhecimento Búddhico.’ Mas vós me destes a entender que se um homem comum percebe sua própria mente, é dito que ele atingiu o Conhecimento Búddhico. Eu tenho medo, Senhor, de que com exceção daqueles possuidores de disposições mentais superiores, os outros possam duvidar de vossa observação. Além disso, são mencionados três tipos de Carruagens no Sutra, que são: Carruagens conduzidas por cabras (i.e., o veículo dos Sravakas), Carruagens conduzidas por cervos (o veículo dos Pratyeka Buddhas), e Carruagens conduzidas por bois (o veículo dos Bodhisattvas). Quem serão estes a serem distinguidos com o privilégio da Carruagem do Boi Branco?”.

O Patriarca respondeu, “O Sutra é bastante simples neste ponto; foste tu que entendeste mal. A razão de Sravakas, Pratyeka Buddhas e Bodhisattvas não poderem compreender o Conhecimento Búddhico é porque especulam sobre isto. Eles podem combinar seus esforços para especular, mas quanto mais eles especulam, mais longe estão da Verdade. Foi para homens comuns, não para outros Buddhas, que Gautama Buddha pregou este Sutra. Aos que

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não puderam aceitar a doutrina exposta, ele lhes permitiu deixar a Assembléia. Tu não pareces perceber que uma vez já montado na Carruagem do Boi Branco (o veículo dos Buddhas), não há nenhuma necessidade de procurarmos os outros três veículos. Além disso, o Sutra fala claramente que apenas o Veículo de Buddha existe, e nenhum outro veículo além deste, como um segundo ou terceiro. É em prol deste único veículo que Buddha nos falou valendo-se de inumeráveis e hábeis formas, usando várias afirmações e argumentos, parábolas e ilustrações, etc. Por que tu não podes entender que os outros três veículos são substitutos, feitos apenas para o passado, enquanto que o único veículo, o Veículo de Buddha, é o definitivo, feito para o presente?”.

“O Sutra ensina a dispensar os substitutos e recorrer ao definitivo. Havendo recorrido ao último, tu perceberás que até mesmo o nome ‘último’ desaparecerá. Tu deves perceber que tu és o exclusivo possuidor destas preciosidades e elas estão completamente sujeitas a teu usufruto 13. Quando tu te livras da arbitrária concepção de que elas estão a disposição do pai, ou do filho, ou que elas estão a disposição daquele ou de algum outro, pode-se dizer que tu terás aprendido o jeito certo de recitar o Sutra. Neste caso, de kalpa para kalpa o Sutra estará em suas mãos, e de manhã à noite tu estarás recitando o Sutra todo o tempo”.

Sendo assim despertado, Fa Ta louvou o Patriarca, em um momento de grande alegria, com os seguintes versos:

A ilusão de que atingi grandes méritos recitando o Sutra três mil vezes Foi completamente dispersada por uma declaração do Mestre de Ts’ao Ch’i (i.e., o Patriarca ). Aquele que não entendeu o objetivo do surgimento de um Buddha neste mundo

13 Uma alusão ao capítulo do Sutra, entitulado “Parábolas”,

exemplificando que o conhecimento Búddhico é inato a todas as pessoas.

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É incapaz de suprimir as paixões selvagens acumuladas em muitas vidas. Os três veículos puxados pela cabra, cervo e boi respectivamente, são apenas substitutos, Enquanto que as três fases, Preliminar, Intermediária, e Final na qual o Dharma correto é exposto estão muito bem posicionadas, em verdade! Quão pouco percebido é que, dentro da própria casa em chamas (i.e., a existência mundana), O Rei do Dharma será achado!

O Patriarca então lhe disse que dali em diante ele

poderia se chamar um ‘Bhikkhu que recita o Sutra’. Após aquela entrevista Fa Ta buscou compreender o profundo significado do Budismo, entretanto ele continuou recitando o Sutra como antes.

Bhikkhu Chih Tung, um nativo de Shao Chou de An

Feng, havia lido mil vezes o Lankavatara Sutra, mas ele não pôde entender o significado dos Trikaya e os quatro Prajnas. Portanto, solicitou a ajuda do Patriarca.

“Sobre os Três Corpos”, explicou o Patriarca, “o puro Dharmakaya é tua (essencial) natureza; o Perfeito Sambhogakaya é tua sabedoria; e as miríades de Nirmanakayas são tuas ações. Se tu lidas com estes Três Corpos distante da Essência da Mente, eles serão ‘corpos sem sabedoria’. Se perceberes que estes Três Corpos não têm nenhuma essência positiva em si mesmos (porque eles são apenas parte da Essência da Mente), atingirás o Bodhi dos quatro Prajnas. Escute meu poema:

Os Três Corpos são inerentes à nossa Essência da Mente, E através do desenvolvimento deles, os quatro Prajnas são manifestados.

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Assim, sem fechar teus olhos e tuas orelhas para te manteres afastado do mundo externo, Tu és capaz de alcançar diretamente o Estado Búddhico. Agora que eu tornei isto mais claro para ti Acredite firmemente, e ficarás para sempre livre de ilusões. Não siga esses que buscam o Esclarecimento fora de si; Estas pessoas falam sobre Bodhi todo o tempo (mas nunca o encontram).

“Eu posso saber algo sobre os quatro Prajnas?” Chih

Tung perguntou. “Se entendes os Três Corpos”, respondeu o Patriarca, “tu deverias entender os quatro Prajnas igualmente; portanto, tua pergunta é desnecessária. Se tu lidas com os quatro Prajnas distantes dos Três Corpos, haveria Prajnas sem corpos, e neste caso eles não seriam Prajnas”. O Patriarca proferiu então outro poema:

A Sabedoria-igual-ao-Espelho é pura por natureza. A Sabedoria da Igualdade livra a mente de todos os impedimentos. A Sabedoria-que-a-tudo-percebe vê as coisas intuitivamente sem passar pelo processo de racionalização. A Sabedoria-que-tudo-realiza tem as mesmas características da Sabedoria-igual-ao-Espelho.

Os primeiros cinco Vijnanas (a Consciência dependente

respectivamente dos cinco órgãos de sensação) e o Alayavijnana (Arquivo ou Consciência Universal) são ‘transmutados’ para Prajna no Estágio de Buddha; enquanto o Klista-mano-vijnana (Consciência enraizada na mente ou autoconsciência) e o Mano-vijnana (Consciência de pensamento), são transmutados na fase de Bodhisattva 14.

14 È no primeiro ‘Mudita’ ou Estágio de Alegria, quando um

Bodhisattva percebe o vazio do Eu e do Dharma (coisas), que ele ‘transmuta’ o Klista-Mano Vijnana para a Sabedoria-que-a-tudo-discerne. Quando a Natureza Búdica é alcançada, os primeiros cinco vijnanas serão

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Estas assim-chamadas ‘transmutações de Vijnana’ são apenas modos de dizer e não [representam] uma mudança de substância 15.

Quando tu puderes te livrar completamente do apego aos objetos-sensação no momento em que estas assim-chamadas ‘transmutações’ acontecerem, irás habitar no sempre-presente Naga (dragão) Samadhi.

(Ao ouvir isto), Chih Tung subitamente percebeu o Prajna em sua Essência da Mente e ofereceu os seguintes versos ao Patriarca :

Intrinsecamente, os três Corpos estão em nossa Essência da Mente. Quando nossa mente é iluminada, os quatro Prajnas aparecerão em seu interior. Quando Corpos e Prajnas identificam-se absolutamente entre si Nós poderemos responder (conforme os seus temperamentos e disposições) aos anseios de todos os seres, não importa que formas eles possam assumir. Começar buscando os Trikaya e os quatro Prajnas é tomar um caminho completamente errado (por serem inerentes a nós eles devem ser percebidos e não procurados). Tentar ‘capturar’ ou ‘confinar’ a estes, é ir contra sua intrínseca natureza. Graças a vós, Senhor, eu posso agora captar a profundidade do significado [destes termos], E daqui em diante eu posso descartar para sempre seus falsos e arbitrários nomes 16.

‘transmutados’ para a Sabedoria-que-tudo-realiza; e o Alaya Vijnana para a Sabedoria-semelhante-ao-Espelho.

15 Na Essência da Mente não há tal coisa como ‘transmutação’. Quando uma pessoa fica iluminada, o termo ‘Prajna’ é aplicado. Em outras palavras, o termo ‘transmutação’ é usado apenas em sentido figurado.

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Bhikkhu Chih Ch’ang, um nativo de Kuei Ch’i de Hsin

Chou, uniu-se à Ordem na infância, e era muito zeloso em seus esforços de perceber a Essência da Mente. Um dia, foi prestar homenagem ao Patriarca, e foi perguntado pelo último de onde e por que ele tinha vindo até a sua presença. “Eu estive recentemente na Montanha do Precipício Branco em Hang Chou”, respondeu ele, “entrevistando-me com o Mestre Ta T’ung que foi muito bondoso em me ensinar como perceber a Essência da Mente e assim atingir o Estado Búddhico. Mas como eu ainda tenho algumas dúvidas, viajei de longe para vos prestar respeito. Vós amavelmente poderíeis esclarecer tais dúvidas para mim?”.

“Que instrução deu ele a ti?” Perguntou o Patriarca. “Depois de ficar lá durante três meses sem receber

qualquer instrução, e sendo zeloso com o Dharma, eu fui sozinho até o seu quarto uma noite e lhe perguntei sobre a natureza de minha Essência da Mente. ‘Tu percebes o Ilimitável Vazio?’ ele perguntou. ‘Sim, eu percebo,’ respondi. Então ele me perguntou se o Vazio tinha qualquer forma particular, e quando eu disse que o Vazio é sem forma e portanto não pode ter nenhuma forma particular, ele disse, ‘Tua Essência da Mente é como o Vazio. Perceber que nada pode ser visto é a ‘Correta Visão’. Perceber que nada é passível de conhecimento é o ‘Verdadeiro Conhecimento’. Perceber que isto não é nem verde nem amarelo, nem longo nem curto, que é por natureza puro, que sua quintessência é perfeita e clara, é ‘perceber a Essência da Mente e assim atingir o Estado Búddhico’, que também é chamado o

16 Nota: havendo captado o espírito de um ensinamento, a pessoa

pode dispensar os termos usados, uma vez que todos os nomes são apenas subterfúgios.

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Conhecimento Búddhico.’ Como eu não entendi totalmente este ensinamento, vos peço que me ilumine, Senhor”.

“O ensino indica”, disse o Patriarca, “que ele ainda retém os conceitos arbitrários de visões e conhecimentos, e isto explica por que ele não tornou a explicação mais clara para ti. Escuta os meus versos:”.

Perceber que nada pode ser visto, mas manter o conceito de ‘invisibilidade’ É como a superfície do sol obscurecida pelas nuvens que passam. Perceber que nada é passível de conhecimento, mas reter o conceito de ‘desconhecimento’ Pode ser comparado a um céu claro desfigurado por um raio. Deixar estes conceitos arbitrários surgirem espontaneamente em tua mente Indica que tens erroneamente identificado a Essência da Mente, e que não tens ainda encontrado as melhores formas de perceber isto. Se tu percebes por um instante que estes arbitrários conceitos estão errados, Tua própria luz espiritual brilhará permanentemente.

Tendo ouvido isto, Chih Ch’ang imediatamente sentiu

que sua mente foi iluminada. Logo após, ele ofereceu os seguintes versos ao Patriarca :

Permitir os conceitos de invisibilidade e desconhecimento surgirem na mente espontaneamente É buscar Bodhi sem livrar a si mesmo dos conceitos dos fenômenos. Aquele que se envaidece pela mais leve impressão de que, ‘estou agora iluminado,’ Não está melhor do que aquele que vive sob a delusão. Se eu não houvesse me posto aos pés do Patriarca,

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Teria me mantido em um estado confuso sem saber o modo correto de seguir [o Caminho].

Um dia, Chih Ch’ang perguntou para o Patriarca,

“Buddha pregou a doutrina dos ‘Três Veículos’ e também de um ‘Veículo Supremo’. Como a isto não entendo, peço-vos que me explique”.

O Patriarca respondeu, “(Tentando entender a isto), tu deves introspectar tua própria mente e agir independentemente das coisas e fenômenos. A distinção destes quatro veículos não existe no próprio Dharma, mas sim na diferenciação das mentes das pessoas. Ver, ouvir, e recitar o sutra são o Pequeno Veículo. Conhecer o Dharma e entender seu significado é o Médio Veículo. Pôr o Dharma em prática real é o Grande Veículo. Entender todos os Dharmas completamente, os haver absorvido completamente de forma a nos libertarmos de todos os apegos, estar acima dos fenômenos, e não estar em posse de nada, é o Supremo Veículo”.

“Desde que a palavra ‘yana’ (veículo) implica ‘movimento’ (i.e., pôr em prática), discutir este ponto é bastante desnecessário. Tudo depende da prática pessoal, portanto tu não precisas me perguntar mais sobre isso. (Mas eu devo recordar-te que) a toda hora a Essência da Mente está em um estado de ‘ Assim Ser ‘“.

Chih Ch’ang fez reverência e agradeceu ao Patriarca. Desde então, ele agiu como seu auxiliar até a morte do Mestre.

Bhikkhu Chih Tao, um nativo de Nan Hai de Kwang

Tung, veio ao Patriarca para instrução e disse, “Desde que eu me uni à Ordem, tenho estudado o Maha Parinirvana Sutra

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por mais de dez anos, contudo eu não tenho captado seu sentido principal. Por favor, peço-vos esclarecimento”.

“Qual parte não entendes?” Perguntou o Patriarca. “É sobre esta parte, Senhor, que estou duvidoso: ‘Todas

as coisas são impermanentes, e assim elas pertencem ao Dharma do Surgimento e Cessação (i.e., Samskrita Dharma). Quando o Surgimento e a Cessação deixam de operar, a felicidade do Perfeito Descanso e do Fim das Mudanças (i.e., Nirvana) surge.’”.

“O que te faz duvidar?” Perguntou o Patriarca. “Todos os seres têm dois corpos - o corpo físico e o

Dharmakaya”, Chih Tao respondeu. “O primeiro é impermanente; existe e morre. O segundo é permanente; não sabe e não sente. Agora, o Sutra diz, ‘Quando o Surgimento e a Cessação deixam de operar, a felicidade do Perfeito Descanso e do Fim das Mudanças surge. ‘ Eu não sei qual corpo deixa de existir e qual corpo desfruta a felicidade. Não pode ser o corpo físico que desfruta, porque quando ele morrer os quatro elementos materiais (i.e., Mahabhutas - terra, água, fogo e ar) desintegrar-se-ão, e a desintegração [o Caos] é o puro sofrimento, o oposto mesmo da felicidade. Se for o Dharmakaya que deixa de existir, estaria no mesmo estado dos objetos ‘inanimados’, como a grama, as árvores, pedras etc.; quem será então aquele que desfruta?”.

“Além disso, a Natureza do Dharma é a quintessência do ‘Surgimento e Cessação’ que se manifesta como os cinco Skandhas (rupa [corpo], vedana [sensações], samjna [percepções], samskara [formações mentais] e vijnana [consciência]). Quer dizer, com uma quintessência existem cinco funções. O processo de ‘Formação e Cessação’ é perpétuo. Quando a função ou a operação ‘surge’ da quintessência, algo é formado; quando a operação ou função é ‘absorvida’ na quintessência, deixa de existir. Se o renascimento é admitido, não haveria nenhum ‘fim das mudanças’, como no caso dos seres sensíveis. Se o renascimento está fora de questão, então as coisas sempre

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permanecerão em um estado de inanimada quintessência, como os objetos inanimados. Se isto é assim, então sob as limitações e restrições do Nirvana mesmo a simples existência seria impossível a todos os seres; que prazer poderia existir ali?”.

“Tu és um filho de Gina (i.e., um filho de Buddha, um Bhikkhu)”, disse o Patriarca, “assim, por que adotas as visões enganadoras de Eternalismo e Aniquilação sustentadas pelos de visão equivocada, e criticas o ensinamento do Veículo Supremo?”.

“Teu argumento implica que além do corpo físico há um corpo da Verdade (Dharmakaya); e que o ‘Perfeito Descanso’ e o ‘Fim das Mudanças’ pode ser buscado fora do ‘Surgimento e Cessação’. Mais adiante, da declaração, ‘Nirvana é perpétuo contentamento,’ tu inferes que deve haver alguém para viver o papel daquele que usufrui”.

“Agora, são exatamente estas visões enganadoras que fazem as pessoas almejarem a existência sensória e se entregam aos prazeres mundanos. É para estas pessoas, vítimas da ignorância, que identificam a união dos cinco Skandhas com o ‘ego’ e consideram todas as outras coisas como ‘não-ego’ (literalmente, objetos de sensação exteriores); que almejam a existência individual e têm aversão à morte; que vivem à deriva no remoinho da vida e morte sem perceber a superficialidade da existência mundana, que é apenas um sonho ou uma ilusão; que se comprometem a um sofrimento desnecessário ligando-se à roda de renascimentos; que confundem o estado de perpétua felicidade do Nirvana com um modo de sofrimento, e que sempre buscam o prazer sensório; é para estas pessoas que o compassivo Buddha pregou a real felicidade do Nirvana”.

“Em qualquer momento, Nirvana não é nem o fenômeno do Surgimento, nem o de Cessação, nem mesmo a interrupção da operação do Surgimento e Cessação. É a manifestação do ‘Perfeito Descanso e Fim das mudanças’; mas na hora da manifestação nem mesmo um conceito de

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manifestação existe; assim, isto é chamado de ‘perpétua felicidade’, que não possui nem aquele que usufrui nem aquele que não-usufrui”.

“Não existe tal coisa como ‘uma quintessência e cinco funções’ (como tu alegas), e estás caluniando o Buddha e blasfemando contra a Lei quando chegas a ponto de declarar que tais limitações e restrições da existência no Nirvana são impossíveis a todos os seres. Escuta meus versos:”.

O Supremo Maha Parinirvana É perfeito, permanente, calmo, e iluminador. Pessoas comuns a isto chamam erradamente de Morte, Enquanto pessoas equivocadas sustentam que é a aniquilação. Aqueles que pertencem ao Veículo de Sravaka ou ao Veículo dos Pratyeka Buddha Consideram-no como a ‘ Não-ação ‘. Tudo isto são meras especulações intelectuais, E formam a base das sessenta e duas visões enganadoras. Considerando que estes são meros nomes fictícios inventados para a ocasião Eles não têm nada a ver com a Verdade Absoluta. Apenas aqueles de mente superelevada Podem entender completamente o que Nirvana significa, e desenvolver a atitude de nem apego nem indiferença para com isto17.

17 Enquanto pessoas comuns ficam desnorteadas pelo redemoinho

de nascimento e morte, a atitude dos Sravakas e Pratyeka Buddhas frente a isso é de aversão. Nenhuma destas atitudes é correta. O trilhador do Caminho não se prende a existência sensória nem a recusa deliberadamente. Como a idéia de um ‘Eu’ e de uma ‘Persona’ são estranhas a ele, e porque ele assume a atitude de nem apego nem aversão em relação a todas as coisas, a liberdade está dentro de seu alcance todo o tempo e ele está à vontade em todas as circunstâncias. Ele pode superar o processo de nascimento e morte, mas tal processo jamais pode prendê-lo, portanto para ele a questão de ‘nascimento e morte’ não é uma questão de todo. Tal tipo de pessoa pode ser chamado de alguém de mente superelevada.

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Eles sabem que os cinco skandhas E o denominado ‘ego’ surgido da união destes skandhas, Junto com todos os objetos externos e as formas, E os vários fenômenos de som e voz, São igualmente irreais como um sonho ou uma ilusão. Eles não fazem nenhuma diferenciação entre um sábio e um homem comum. Nem eles têm algum conceito arbitrário sobre o Nirvana. Eles estão acima da ‘afirmação’ e ‘negação’ e quebram a barreira do passado, presente, e do futuro. Eles usam os seus órgãos de sensação, quando a ocasião requer, Mas o conceito de ‘Uso’ não surge. Eles podem particularizar todo o tipo de coisas, Mas o conceito de ‘particularização’ não surge. Até mesmo durante o fogo cataclísmico ao término de um kalpa, quando os leitos oceânicos secam, Ou durante o soprar dos ventos catastróficos quando as montanhas tombarem umas sobre as outras, A felicidade real e perpétua do ‘Perfeito Descanso’ e ‘Fim das Mudanças’ Do Nirvana permanece no mesmo estado e não muda. Aqui, eu estou tentando descrever a ti algo que é inefável, De forma que tu possas adquirir a libertação de tuas enganadoras visões. E se não interpretares minhas palavras literalmente Talvez tu possas aprender uma pequena parte do significado do Nirvana!

Tendo ouvido estes versos, Chih Tao ficou

profundamente iluminado. Em um estado arrebatador, ele fez reverência e partiu.

Dih Ping Tsze

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Bhikkhu Hsing Ssu, um Mestre do Dhyana, nasceu em An Cheng de Chi Chou na família de Liu. Ao ouvir que os ensinamentos do Patriarca haviam iluminado um grande número de pessoas, ele veio imediatamente a Ts’ao Ch’i para prestar-lhe homenagem, e lhe fazer esta pergunta:

“Para quê deveria um estudante dirigir sua mente, de forma que sua realização não possa ser avaliada entre as (habituais) ‘Fases de Progresso’?”.

“Que trabalho tens feito?”, perguntou o Patriarca. “Até mesmo com as Verdades Nobres ensinadas por

vários Buddhas, eu não tenho nenhuma relação”, respondeu Hsing Ssu.

“Em que ‘Fase de Progresso’ está o senhor?”, perguntou o Patriarca.

“Que fase de progresso poderia estar, quando me recuso a ter qualquer coisa a ver até mesmo com as Nobres Verdades ensinadas pelos Buddhas?” Ele replicou.

Sua réplica provocou grande respeito do Patriarca, que lhe fez o líder da Assembléia.

Um dia o Patriarca lhe disse que deveria propagar a Lei em seu próprio distrito, de forma que o ensinamento não viesse a ter um fim. Logo após ele voltou à Montanha Ch’ing Yuan, em seu distrito nativo. O Dharma que lhe havia sido transmitido, ele difundiu amplamente e assim perpetuou o ensinamento de seu Mestre. Na ocasião de sua morte, o título póstumo ‘ Mestre de Dhyana Hung Chi ‘ lhe foi conferido.

Bhikkhu Huai Jang, um Mestre de Dhyana, nasceu na

família Tu em Chin Chou. Em sua primeira visita ao ‘Professor Nacional’ Hui An da Montanha Sung-Shan, ele foi instruído pelo último a ir para Ts’ao Ch’i entrevistar-se com o Patriarca.

À sua chegada, e depois da saudação habitual, ele foi questionado pelo Patriarca de onde tinha vindo.

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“De Sung-Shan”, ele respondeu. “Que coisa é esta (que vem aqui)? Como veio?”,

perguntou o Patriarca. “Dizer que é semelhante a uma certa coisa está errado”,

ele replicou. “É alcançável pela prática?”, perguntou o Patriarca. “Não é impossível de se atingir pela prática; mas é

bastante impossível corrompê-la”, ele respondeu. Logo após, o Patriarca exclamou, “é exatamente esta

coisa incorrupta que todos os Buddhas cuidam com atenção. Assim é para vós, e assim é para mim. O Patriarca Prajnatara da Índia predisse que sob vossos pés um potro 18 dispararia e pisotearia as pessoas no mundo inteiro. Eu não preciso interpretar este vaticínio precipitadamente, pois a resposta será encontrada dentro de vossa mente”.

Assim iluminado, Huai Jang intuitivamente percebeu o que o Patriarca queria dizer. Dali em diante, ele se tornou seu assistente por um período de quinze anos; e dia a dia seu conhecimento do Budismo tornou-se mais e mais profundo. Tempos depois, ele fixou residência em Nan Yueh onde difundiu o ensinamento do Patriarca amplamente. Na ocasião de sua morte, o título póstumo, “Mestre Dhyana Ta Hui (Grande Sabedoria)” lhe foi conferido através de édito imperial.

O Mestre Dhyana Hsuan Chiao de Yung Chia nasceu na

família Tai em Wenchow. Quando jovem, ele estudou Sutras e shastras e era bem-versado no ensino de Samatha (Introspecção ou Quietude) e Vipashyana (Contemplação ou Discernimento) da Escola T’ien T’ai [Tendai]. Pela leitura do

18 Isto se refere ao famoso discípulo de Huai Jang, chamado Ma

(potro) Tso, através do qual os ensinamentos da Escola Dhyana espalharam-se por toda a China.

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Vimalakirti Nirdesa Sutra ele percebeu intuitivamente o mistério da própria mente.

Aconteceu que um discípulo do Patriarca de nome Hsuan Ts’e foi lhe visitar. Durante o curso de uma longa discussão, notou Hsuan Ts’e que as declarações de seu amigo concordavam virtualmente com as declarações dos vários Patriarca s. Posteriormente ele perguntou, “Poderia saber o nome do professor que transmitiu o Dharma ao senhor?”.

“Eu tive professores a me instruir”, Hsuan Chiao respondeu, “quando estudei os Sutras e os shastras da seção Vaipulya 19. Mas depois foi através da leitura do Vimalakirti Nirdesa Sutra que percebi o significado de Buddhacitta (a Mente de Buddha); e a este respeito ainda não tive qualquer professor que verificasse e confirmasse meu conhecimento”.

“Antes do tempo de Bhisma Garjitasvara Raja Buddha”, Hsuan Ts’e comentou, “era possível (dispensar o serviço de um professor); mas desde aquele tempo, aquele que atinge o esclarecimento sem a ajuda e a confirmação de um professor é um independente natural”.

“Podes, senhor, amavelmente agir como minha testemunha?”, pediu Hsuan Chiao.

“Minhas palavras não tem nenhum peso”, respondeu seu amigo, “mas em Ts’ao Ch’i há o Sexto Patriarca, ao qual visitantes de todas as direções vão em grandes números com o objetivo comum de ter o Dharma transmitido a eles. Se quiseres ir até lá, ficarei feliz em acompanhar-te”.

No devido tempo eles chegaram a Ts’ao Ch’i e entrevistaram-se com o Patriarca. Tendo circulambulado o Patriarca três vezes, Hsuan Chiao ficou parado (i.e., sem fazer reverência ao Mestre) com o Khakkharam (o cajado Budista) em suas mãos.

19 ‘Caminho Universal’, período de 8 anos onde Buddha expôs estes

sutras. (N.do T.)

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O Patriarca comentou: “Como um Sramana (monge Budista) é a incorporação dos três mil preceitos morais e das oitenta mil regras disciplinares secundárias, eu desejo saber de onde vens e o que faz o senhor tão convencido”.

“A questão sobre os renascimentos incessantes é momentosa”, respondeu ele, “e como a morte pode surgir a qualquer momento (eu não tenho nenhum tempo para desperdiçar com cerimônias)”.

“Por que não percebes o princípio do ‘não-nascimento’, e assim resolves o problema da transigência em vida?”, o Patriarca replicou.

Logo após Hsuan Chiao comentou, “Perceber a Essência da Mente é ser livre dos renascimentos; e uma vez que este problema é resolvido, a questão da transigência já não existe”.

“Bem dito, muito bem dito”, o Patriarca concordou. Neste momento, Hsuan Chiao cedeu e fez a cerimônia

de reverência completa. Depois de um curto espaço de tempo ele despediu-se do Patriarca.

“O senhor está partindo muito depressa, não é?”, perguntou o Patriarca.

“Como pode haver ‘pressa’ quando intrinsecamente o movimento não existe?”, ele replicou.

“Quem sabe que o movimento não existe?”, perguntou o Patriarca.

“Eu espero, Mestre, que não ireis particularizar”, ele observou.

O Patriarca o elogiou por sua completa compreensão da noção de ‘não-nascimento’; mas Hsuan Chiao comentou, “Há uma ‘noção’ de ‘não-nascimento’?”.

“Sem uma noção, quem pode particularizar?”, perguntou de volta o Patriarca.

“Aquilo que particulariza não é uma noção”, Hsuan Chiao respondeu.

“Muito Bem dito!”, exclamou o Patriarca. Ele então pediu para Hsuan Chiao adiar sua partida e passar uma noite

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lá. Desde então Hsuan Chiao foi conhecido por seus contemporâneos como o ‘Iluminado que havia passado uma noite com o Patriarca’.

Depois, ele escreveu o famoso trabalho, ‘Uma Canção sobre a Realização Espiritual’ que circulou amplamente. Seu título póstumo é ‘Grande Mestre Wu Hsiang’ (Aquele que está acima das formas ou fenômenos), e também foi chamado pelos seus contemporâneos como ‘Mestre Dhyana Chen Chiao’ (Aquele que realmente é Iluminado).

Bhikkhu Chih Huang, um seguidor da Escola Dhyana,

depois de sua consulta com o Quinto Patriarca (sobre o progresso de seu trabalho) se considerou como tendo atingido o Samadhi. Durante vinte anos ele confinou-se em um pequeno templo e manteve-se na posição abaixada todo o tempo.

Hsuan Ts’e, um discípulo do Sexto Patriarca em uma jornada de meditação na margem norte do Huang Ho, ouviu falar dele e o encontrou em seu templo.

“O que estás fazendo aqui?”, Hsuan Ts’e perguntou. “Eu estou permanecendo em Samadhi”, respondeu seu

amigo, Chih Huang. “Permanecendo em Samadhi, tu dizes?”, observou

Hsuan Ts’e. “Eu desejo saber se estás fazendo isto conscientemente ou inconscientemente. Pois se estás fazendo inconscientemente, significaria que é possível para objetos inanimados como louça, pedras, árvores, e ervas daninhas, atingir o Samadhi. Por outro lado, se estás fazendo conscientemente, então todos os objetos animados ou seres sensíveis também entrariam em Samadhi”.

“Quando estou em Samadhi”, Chih Huang observou, “eu não conheço nem a consciência nem a inconsciência”.

“Se este fosse o caso”, Hsuan Ts’e disse, “esta seria a perpétua quietude, sob qual estado não há permanência nem abandono. Este estado no qual podes permanecer ou abandonar não é o Grande Samadhi”.

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Chih Huang ficou pasmo. Depois de um longo tempo, ele perguntou, “Posso saber quem é seu professor?”.

“Meu professor é o Sexto Patriarca de Ts’ao Ch’i”, Hsuan Ts’e respondeu.

“Como ele define Dhyana e Samadhi?”, Chih Huang perguntou.

“De acordo com seu ensinamento”, Hsuan Ts’e respondeu, “o Dharmakaya é perfeito e sereno; sua quintessência e sua função estão em um estado de Assim Ser. Os cinco Skandhas são intrinsecamente vazios e os seis objetos-sensação são inexistentes. Não há permanência nem abandono em Samadhi. Não há nem quietude nem perturbação. A natureza de Dhyana é não-permanente, assim nós deveríamos estar acima da noção de ‘permanecer na tranqüilidade de Dhyana’. A natureza de Dhyana é não-criativa, assim nós deveríamos estar acima da noção de ‘criar um estado de Dhyana’. O estado da mente pode ser comparado ao Espaço, mas (é infinito) e assim está sem as limitações do último”.

Tendo ouvido isto, Chih Huang foi imediatamente para Ts’ao Ch’i entrevistar-se com o Patriarca. Sendo perguntado de onde tinha vindo, ele contou em detalhes para o Patriarca a conversação que havia tido com Hsuan Ts’e.

“O que Hsuan Ts’e disse é bastante correto”, disse o Patriarca.” Deixe tua mente ficar em um estado como aquele do Ilimitável Vazio, mas não te prendas à idéia de ‘ vacuidade’. Deixe-a funcionar livremente. Seja em atividade ou em repouso, não permitas que tua mente permaneça em parte alguma. Esqueças a distinção entre o sábio e o homem comum. Ignores a distinção entre assunto e objeto. Deixes a Essência da Mente e todos os objetos fenomenais estarem em um estado de Assim Ser. Então tu estarás em Samadhi todo o tempo”.

Chih Huang foi assim completamente iluminado. O que ele havia considerado durante os últimos vinte anos como uma realização se esvaeceu. Naquela noite os de Ho Pei (na

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margem norte do Rio Amarelo) ouviram uma voz no ar dizendo que naquele dia o Mestre do Dhyana Chih Huang alcançou o Esclarecimento.

Algum tempo depois Chih Huang despediu-se do Patriarca e retornou a Ho Pei, onde ensinou para um grande número de homens e mulheres, tanto monges como também leigos.

Um Bhikkhu perguntou certa vez ao Patriarca que tipo

de homem poderia obter a chave do ensinamento de Huang Mei (o Quinto Patriarca ). “Aquele que entende o Dharma de Buddha pode conseguir isso”, respondeu o Patriarca. “Vós, Ó Mestre, o compreendestes então?”, perguntou o Bhikkhu. “Eu não entendo o Dharma de Buddha”, foi sua resposta.

Um dia o Patriarca quis lavar o manto que havia

herdado, mas não pôde encontrar nenhum bom riacho para o propósito. Portanto, caminhou para um lugar cerca de cinco milhas nos fundos do monastério, onde notou que plantas e árvores cresciam profusamente e o ambiente transmitia um ar de bom presságio. Ele sacudiu seu bastão (que fez um ruído tilintante, pois tinha anéis presos em seu topo) e o fincou no solo. Imediatamente a água jorrou e pouco depois uma piscina foi criada. Enquanto ele estava se ajoelhando em uma pedra para lavar o manto, um Bhikkhu apareceu de repente ante ele e lhe prestou homenagem.

“Meu nome é Fang Pien”, disse ele, “e sou um nativo de Szechuan. Quando eu estava no Sul da Índia conheci o Patriarca Bodhidharma que me instruiu que voltasse à China. ‘O Útero do Dharma Verdadeiro,’ disse ele, ‘junto com o manto que herdei de Mahakasyapa foram transmitidos agora ao Sexto Patriarca que está em Ts’ao Ch’i de Shao Chou. Vá até lá encontrá-lo e lhe prestar respeito’. Depois de uma

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longa viagem, eu cheguei. Eu posso ver o manto e a tigela que o senhor herdou?”.

Havendo lhe mostrado as duas relíquias, o Patriarca lhe perguntou que tipo de trabalho fazia. “Eu sou bom em trabalhos de escultura”, respondeu ele. “Deixe-me ver algum trabalho seu, então”, ordenou o Patriarca.

Fang Pien ficou confuso na ocasião, mas alguns dias depois criou uma estátua quase-viva do Patriarca, de aproximadamente sete polegadas de altura, uma obra-prima de escultura.

(Ao ver a estátua), o Patriarca riu e disse a Fang Pien, “Tu realmente sabes algo sobre a natureza do trabalho de esculpir, mas não parece conhecer a natureza de Buddha”. Ele então pôs sua mão no alto da cabeça de Fang Pien (o modo Budista de bênção) e declarou, “Tu sempre serás um ‘Campo de Méritos’ para os seres humanos e celestiais”.

Além disso, o Patriarca recompensou seu serviço com um manto que Fang Pien dividiu em três partes, uma para vestir a estátua, uma para ele, e uma para enterrar no solo depois de cobri-la com folhas de palma. (Quando o enterro aconteceu) ele fez um voto de que quando o manto fosse exumado, ele renasceria como o abade do monastério, e também que empreenderia esforços para renovar o santuário e o edifício.

Um Bhikkhu citou os seguintes versos compostos pelo

Mestre do Dhyana Wo Yün:

Wo Yün tem modos e meios Para isolar a mente de todos os pensamentos. Quando circunstâncias não reagem na mente, A árvore de Bodhi (símbolo de sabedoria) crescerá continuamente.

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Ouvindo isto, o Patriarca disse, “Estes versos indicam que seu autor não alcançou completamente a percepção da Essência da Mente. Pôr seu ensinamento em prática (não levaria a nenhuma liberação), mas prenderia a pessoa a si mesma mais firmemente”. Logo após, ele citou para o Bhikkhu os seguintes versos de sua autoria:

Hui Neng não tem nenhum modo e nem meios Para isolar a mente de todos os pensamentos. As circunstâncias reagem freqüentemente em minha mente, E eu fico imaginando, como é possível a árvore de Bodhi crescer20?

20 Nesta última estrofe, o Patriarca desafia a declaração de que “a

árvore Bodhi crescerá”, afirmando que Bodhi nem cresce nem diminui.

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Capítulo VIII - Escola Súbita e Escola

Gradual 21

Enquanto o Patriarca estava morando no Monastério

Pao Lin, o Grande Mestre Shen Hsiu ensinava no Monastério Yu Chuan de Ching Nan. Naquela época floresceram lado a lado as duas Escolas, a de Hui Neng [Wei Lang] ao Sul e a de Shen Hsiu ao Norte. Como as duas Escolas eram distinguidas uma da outra pelos nomes “Súbita” (ao Sul) e “Gradual” (ao Norte), a questão sobre qual das duas seitas deveria ser seguida confundia certos estudiosos Budistas (daquele tempo).

21 Nota do finado Mr. Dwight Goddard. Quando Hui-neng [Wei lang] vivia no monastério do Patriarca em

Wong-mui, o Mestre (o Monge-chefe como costumamos chama-lo) era Shen Hsiu, um notável estudioso monástico da Escola Dhyana. Após Hui-neng deixar Wong-mui, ele viveu em retiro por um número de anos, mas Shen Hsiu, desapontado por não ter recebido a indicação para Sexto Patriarca, retornou para sua casa no Norte e fundou sua própria Escola que mais tarde, sob apoio Imperial, veio a ser de grande proeminência. Mas após a morte de Shen Hsiu a Escola gradativamente perdeu prestígio, e porteriormente diminuiu de importância. Mas os diferentes princípios das duas escolas, “Esclarecimento Súbito” da Escola Súbita do Sexto Patriarca, e “Esclarecimento Gradual” da Escola do Norte de Shen Hsiu, continuou a dividir o Budismo e ainda o faz hoje em dia. O princípio em disputa é se o esclarecimento vem como uma experiência gradual, através do estudo das escrituras e da prática do Dhyana ou, como afirmam os japoneses, vem de algum tipo de súbito e convincente “Satori”. Não é uma questão de rapidez ou lentidão em alcançar a meta; o “esclarecimento gradual” pode surgir antes do “esclarecimento súbito”. A questão é se a iluminação surge como a culminação de um processo gradual de crescimento mental, ou se é uma súbita mudança de direção da base de consciência, do habitual apoio da faculdade de raciocínio (uma visão exterior) para um novo uso de uma faculdade intuitiva superior (uma visão interior).

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(Vendo isto), o Patriarca dirigiu-se à assembléia desta forma:

“No que diz respeito à essência do Dharma, existe [apenas] uma Escola. (Se alguma distinção existe) ocorre do fato de que o fundador de uma escola é um homem do Norte, enquanto o outro é um Sulista. Uma vez que existe apenas um Dharma, alguns discípulos percebem-no mais depressa que outros. [Portanto] porque nomear ‘Súbito’ ou ‘Gradual’?. O Dharma [na verdade] não é ‘Súbito’ nem ‘Gradual’. [Mas] Algumas pessoas são mais perspicazes enquanto outras mas lentas, eis porque denomina-se [as diferentes experiências de sabedoria] ‘Súbito’ e ‘Gradual”.

(Apesar do que o Patriarca havia dito,) os seguidores de Shen Hsiu criticavam o Patriarca. Eles o desacreditavam dizendo que, sendo um analfabeto, não poderia ser merecedor de qualquer respeito.

Por outro lado, o próprio Shen Hsiu admitia que era inferior ao Patriarca, que o Patriarca atingiu a sabedoria sem a ajuda de um professor, e que ele compreendeu completamente o ensino da Escola Mahayana. “Além disso”, ele acrescentava, “meu professor, o Quinto Patriarca, não haveria transmitido a ele o manto e a tigela sem bons motivos. Eu lamento que, devido ao patronato do estado – o qual não mereço de forma alguma -, eu esteja impossibilitado de viajar tão longe para dele receber instruções pessoalmente. (Mas) vós todos deveríeis rumar para Ts’ao Ch’i e consultá-lo”.

Certa vez disse ao seu discípulo, Chi Ch’eng, “Tu és inteligente e brilhante. Em meu benefício, tu precisas ir a Ts’ao Ch’i para assistir as conferências de lá. Faças o melhor para se lembrar do que aprendes, de forma que ao seu retorno possas repetir para mim”.

Agindo sob instrução de seu professor, Chi Ch’eng foi para Ts’ao Ch’i. Sem contar de onde veio, ele uniu-se à multidão para ouvir o Patriarca.

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“Alguém se escondeu aqui para plagiar minha conferência”, disse o Patriarca à assembléia. Pouco tempo depois, Chi Ch’eng mostrou-se, fez reverência, e contou ao Patriarca qual era sua missão.

“Vens do Monastério Yu Ch’uan, então?” comentou o Patriarca. “Tu deves ser um espião”.

“Não, eu não sou”, Chi Ch’eng respondeu. “Por que não [seria]?”, perguntou o Patriarca. “Se eu não vos tivesse contado [sobre mim]”, Chi

Ch’eng disse, “seria um espião. Considerando que eu vos disse toda a verdade, eu não o sou”.

“Como seu professor instrui seus discípulos?”, perguntou o Patriarca.

“Ele nos diz para meditar na pureza, manter a posição sentada [zazen] todo o tempo e não dormir”, Chi Ch’eng respondeu.

“Meditar na pureza”, disse o Patriarca, “é uma debilidade e não Dhyana. Reprimir a si mesmo na posição sentada todo o tempo é improdutivo. Escuta meus versos:”

Um homem vivo [não deve] sentar-se e não descansar (todo o tempo), Enquanto um homem morto [é capaz de] deitar-se e não se sentar [para sempre]. Neste nosso corpo físico Por que deveríamos nos impor a tarefa de sentar [de forma repressora]?

Fazendo reverência uma segunda vez, Chi Ch’eng

comentou, “Embora eu tenha estudado o budismo durante nove anos sob a orientação do Grande Mestre Shen Hsiu, minha mente não havia, contudo, sido despertada para o esclarecimento. Mas assim que vós falastes, minha mente foi iluminada. Como a questão sobre renascimentos incessantes é momentosa, por favor, tende piedade de mim e dai-me mais orientações”.

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“Eu entendo”, disse o Patriarca, “que teu professor dá aos seus discípulos instruções sobre Sila (regras disciplinares), Dhyana (meditação), e Prajna (Sabedoria). Por favor, me fale como ele define estas condições”.

“De acordo com seu ensino”, Chi Ch’eng respondeu, “se abster de todas as más ações é Sila, praticar tudo que é o bem é Prajna, e purificar a própria mente é Dhyana. Este é o modo como ele nos ensina. Eu posso saber sobre vosso sistema?”.

“Se dissesse a ti”, disse o Patriarca, “que eu tenho um sistema de Dharma para transmitir aos outros, estaria enganando-te. O que eu faço aos meus discípulos é liberá-los da sua própria escravidão usando os métodos conforme necessário ao caso. Usando um nome que não passa de um subterfúgio, este (estado de liberação) pode ser chamado de Samadhi. O modo como teu mestre ensina Sila, Dhyana, e Prajna é maravilhoso; mas minha posição é diferente”.

“Como pode ser diferente, Senhor”, Chi Ch’eng perguntou, “quando só há uma forma de Sila, Dhyana e Prajna?”.

“O ensino de teu mestre”, respondeu o Patriarca, “é para os seguidores da Grande Escola [do Mahayana], enquanto o meu é para esses da Escola Suprema [do Mahayana]. O fato de que alguns percebem o Dharma mais depressa e profundamente do que outros conta para a diferença na interpretação. Tu podes escutar e ver se minha instrução é igual a tua. Expondo o Dharma, eu não me desvio da autoridade da Essência da Mente (i.e., eu falo o que percebo intuitivamente). Falar de outra forma indicaria que a Essência da Mente do expositor está obscurecida e que ele só pode tocar o lado fenomenal do Dharma. O verdadeiro ensino de Sila, Dhyana e Prajna deveria estar baseado no princípio de que a função de todas as coisas deriva da Essência da Mente. Escuta meus versos:”

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“Livrar a mente de toda a impureza é o Sila da Essência da Mente. Livrar a mente de toda a perturbação é o Dhyana da Essência da Mente. Aquilo que nem aumenta nem diminui é o Diamante (usado como símbolo para a Essência da Mente); ‘Vir’ e ‘ir’ são fases diferentes de Samadhi”.

Tendo ouvido isto, Chi Ch’eng desculpou-se (por haver

feito uma pergunta tola) e agradeceu ao Patriarca sua instrução. Ele ofereceu-lhe os seguintes versos então:

O ‘Ego’ nada mais é do que um fantasma criado pela união dos cinco skandhas, E um fantasma não pode ter nada a ver com a realidade absoluta. Sustentar que há um Tathata (Assim Ser) como nossa meta ou ao qual devemos retornar É outro exemplo de ‘Dharma Impuro’ (pois o Puro Dharma está além de conceitos e palavras).

Aprovando o que ele disse em seus versos, o Patriarca

retrucou, “O ensino de teu mestre em Sila, Dhyana e Prajna aplica-se aos homens com uma pequena base de sabedoria [menos perspicazes], enquanto o meu aplica-se àqueles cuja base de sabedoria é mais ampla. Aquele que percebe a Essência da Mente pode dispensar tais doutrinas como Bodhi, Nirvana, e ‘Conhecimento de Emancipação’. Somente aqueles que não possuem um único sistema de Dharma podem formular todos os sistemas de Dharma, e aqueles que podem entender o significado (deste paradoxo), podem se valer de tais termos. É indiferente para esses que perceberam a Essência da Mente se eles formulam todos os sistemas de Dharma ou dispensam todos eles. Eles estão em liberdade para ‘vir’ ou para ‘ir’ (i.e., eles podem permanecer ou deixar este mundo à vontade). Eles estão livres de obstáculos ou

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impedimentos. Eles tomam ações apropriadas de acordo com as circunstâncias. Eles dão respostas satisfatórias de acordo com o temperamento do Buscador. Eles percebem contemplativamente que todos os Nirmanakayas são unos com a Essência da Mente. Eles atingem a liberação, os poderes psíquicos (Siddhi) e o Samadhi, que os permitem executar a árdua tarefa de salvação universal tão facilmente como se estivessem apenas brincando. Eis como são os homens que perceberam a Essência da Mente!”.

“Mas quais são os princípios pelos quais somos guiados quando lidamos com todos os sistemas de Dharma?”, foi a próxima pergunta de Chi Ch’eng.

“Quando nossa Essência da Mente está livre de impurezas, paixões imaturas e perturbações”, respondeu o Patriarca, “quando introspectamos nossa mente de momento para momento através do Prajna, e quando não nos apegamos a coisas e objetos fenomênicos, estamos livres e liberados. Por que nós deveríamos formular qualquer sistema de Dharma, quando nossa meta pode ser alcançada não importa se viramos à direita ou à esquerda? Uma vez que com nossos próprios esforços percebemos a Essência da Mente, e desde que a realização e a prática da Lei podem ambas ser vivenciadas instantaneamente, e não gradualmente ou organizadas através de estágios, a formulação de qualquer sistema de Lei é desnecessária. Como todos os Dharmas intrinsecamente são Nirvânicos, como pode haver graduação neles?”

Chi Ch’eng fez reverência e ofereceu-se como assistente do Patriarca. Nesta posição, ele o serviu dia e noite.

Bhikkhu Chih Ch’e, cujo nome leigo era Chang Hsing-

Ch’ang, era um nativo de Kiangsi. Quando jovem, era apaixonado pelas façanhas guerreiras.

Desde a época em que as duas Escolas Dhyana, a de Hui Neng no Sul e de Shen Hsiu no Norte, floresciam lado a

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lado, fortes sentimentos sectários existiam intensamente por parte dos discípulos, apesar do espírito tolerante mostrado pelos dois mestres, os quais desconheciam as atitudes egoístas. Considerando seu próprio professor, Shen Hsiu, como tendo autoridade em igual nível daquela do Sexto Patriarca, os seguidores da Escola do Norte tinham ciúmes do dono legítimo daquele título cuja reivindicação, apoiada pelo manto herdado, era conhecida demais para ser ignorada. (Assim para se livrarem do professor rival) eles enviaram Chang Hsing-Ch’ang (que era então um leigo) assassinar o Patriarca.

Com o poder psíquico de leitura mental, o Patriarca foi capaz de descobrir o conluio antecipadamente. (Se preparando para a vinda do assassino), ele pôs dez moedas ao lado de seu assento. Chang chegou resoluto, e uma noite entrou no quarto do Patriarca para levar a cabo o assassinato. Com o pescoço estendido, o Patriarca esperava pelo golpe fatal. Por três vezes Chang golpeou, (mas) não foi infligido [no Patriarca] um único ferimento! O Patriarca falou-lhe então desta forma:

“Uma espada correta não se deforma, Enquanto que aquele que é deformado não é correto. A ti devo apenas dinheiro; Mas minha vida não devo jamais”.

A surpresa foi grande demais para Chang; ele caiu em

um desmaio e não se reanimou senão após um tempo considerável. Arrependido e penitente, pediu clemência e ofereceu-se para se unir a Ordem imediatamente. Dando-lhe o dinheiro, o Patriarca disse, “Tu não deves permanecer por muito mais tempo, pois meus seguidores podem fazer-te mal. Venha me ver disfarçado em alguma outra época, e eu cuidarei de ti”.

Como foi orientado, Chang fugiu naquela mesma noite. Subseqüentemente, ele uniu-se à Ordem e, quando

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completamente ordenado, provou ser um monge muito diligente. Um dia, recordando o que o Patriarca disse, ele empreendeu a longa jornada para o ver e prestrar-lhe homenagem. “Por que tu demoraste tanto?”, perguntou o Patriarca. “Eu tenho pensado em ti todo o tempo”.

“Desde aquele dia em que vós graciosamente perdoastes meu crime”, Chang disse, “eu me tornei um Bhikkhu e estudei o Budismo diligentemente. Ainda acho difícil vos retribuir adequadamente, a menos que eu possa mostrar-vos minha gratidão difundindo o Dharma para a libertação dos seres sensíveis. Estudando o Maha Parinirvana Sutra, que eu freqüentemente leio, não posso entender o significado de ‘eterno’ e ‘não eterno’. Vós ireis, Mestre, amavelmente me dar uma pequena explicação?”.

“O que não é eterno é a Natureza de Buddha”, respondeu o Patriarca, “e o que é eterno é a mente distintiva junto com todos os Dharmas meritórios e demeritórios”.

“Vossa explicação, Senhor, contradiz o Sutra”, Chang disse.

“[Isso] eu não ousaria, desde que herdei o ‘Selo do Coração’ do Senhor Buddha”, respondeu o Patriarca.

“De acordo com o Sutra”, Chang disse, “Natureza de Buddha é eterna, enquanto todos os Dharmas meritórios e demeritórios, inclusive Bodhicitta (o Coração da Sabedoria) não são eternos. Como vós assegurais o contrário, esta não é uma contradição? Vossa explicação agora intensificou minhas dúvidas e perplexidades”.

“Certa ocasião”, respondeu o Patriarca, “a Bhikkhuni Wu Ching-Ts’ang recitou para mim o texto inteiro do Maha Parinirvana Sutra, de forma que eu pudesse explicá-lo para ela. Toda palavra e todo significado que eu dei naquela ocasião concordaram com o texto. Em relação à explicação que te dou agora, ela igualmente não difere do texto”.

“Como minha capacidade de entender é muito ruim”, Chang observou, “amavelmente vós podeis explicá-lo completamente e mais claramente para mim?”.

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“Tu não entendes?” Disse o Patriarca. “Se a Natureza de Buddha é eterna, seria inútil falar de Dharmas meritórios e demeritórios; e até ao fim de um kalpa ninguém despertaria o Bodhicitta. Então, quando eu digo ‘não-eterno’ é exatamente o que o Senhor Buddha quis dizer com ‘eterno’. Novamente, se todos o Dharmas não são eternos, então toda coisa ou objeto teria uma natureza por si mesma (i.e., essência positiva) de sofrer morte e nascimento. Neste caso, significaria que a Essência da Mente é verdadeiramente eterna não penetra em todos os lugares. Então quando eu digo ‘eterno’ é exatamente o que o Senhor Buddha quis dizer com ‘não-eterno’.”

“Porque os homens comuns e [estudiosos] equivocados acreditam em um ‘Eternalismo Vicioso’ (i.e., eles acreditam na eternidade da alma e do mundo), e porque os sravakas (aspirantes à condição de arhat) confundem a eternidade do Nirvana como algo não eterno, as oito noções subvertedoras surgem 22(2). Para refutar estas visões unilaterais, o Senhor Buddha falou no Maha Parinirvana Sutra sobre a ‘Doutrina Suprema’ do ensino Budista, i.e., verdadeira eternidade, verdadeira felicidade, verdadeiro eu e verdadeira pureza. “

“Ao seguir subservientemente as palavras do Sutra, tu ignoraste o espírito do texto. Assumindo que o que perece seja não-eterno e que o que se mantém imutável seja eterno, tu interpretaste mal o ensino do Senhor Buddha [quando estava] próximo da morte (contidas no Maha Parinirvana

22 Manjushri perguntou a Vimalakirti, “Qual é a raiz de teu corpo?”. “Ambição e Desejo”, respondeu Vimalakirti. “Qual é a raiz da ambição e do desejo?”. “Delusão e particularização”. “Qual é a raiz da delusão e particularização?”. “As visões deturpadas”. “Qual é a raiz das visões deturpadas?”. “Não-apego” “Qual é a raiz do não-apego?”. “Não-apego não possui raiz, Manjusri. Com o não-apego como raiz,

todos os Dhamas são estabelecidos”. Vimalakirti Nirdesa Sutra.

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Sutra) que é Perfeito, profundo, e completo. Tu podes ler mil vezes este Sutra, mas não encontrarás nenhum benefício disto”.

De repente Chang despertou para o pleno esclarecimento, e ofereceu os seguintes versos ao Patriarca :

Para refutar a convicção dogmática da ‘Não-eternidade’ Senhor Buddha pregou a ‘Natureza Eterna’. Aquele que não sabe que tal ensino é só um hábil subterfúgio 23 Pode ser comparado à criança que apanha pedrinhas e as chama de pedras preciosas. Sem esforço em minha parte A Natureza de Buddha se manifesta. Isto não é devido à instrução de meu professor Nem a qualquer realização própria.

“Tu percebeste agora plenamente (a Essência da Mente)”,

comentou o Patriarca, “e daqui por diante tu deverias se chamar Chih Ch’e (Perceber Completamente)”. Chih Ch’e agradeceu o Patriarca, fez reverência, e partiu.

Um menino de treze anos chamado Shen Hui que

nasceu na família Kao de Hsiang Yang, veio do Monastério Yu Chuan para prestar homenagem ao Patriarca.

“Meu virtuoso amigo”, disse o Patriarca, “deve ter sido duro para ti empreender uma jornada tão longa como esta. Mas podes me dizer o que significa o ‘Princípio

23 Os homens comuns e os equivocados confundem a Não-

eternidade, Não-felicidade, Não-egoísmo e a Não-pureza da existência mundana com a eternidade, felicidade, egoísmo e pureza; enquanto Sravakas confundem a Eternidade, Felicidade, Egoísmo e Pureza do Nirvana com a Não-eternidade, Não-felicidade, Não-egoísmo e Não-pureza.

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Fundamental?’ Se fores capaz, conhecerás o proprietário (i.e., a Essência da Mente). Tente dizer algo, por favor “.

“Não-apego é o princípio fundamental24, e conhecer o proprietário é perceber (a Essência da Mente)”, Shen Hui respondeu.

“Este noviço [Samanera] está pronto para nada além do que falar à toa!”, reprovou o Patriarca.

Logo após Shen Hui perguntou ao Patriarca, “Em sua meditação, Senhor, o senhor vê (sua Essência da Mente) ou não?”.

Golpeando-o três vezes com seu bastão, o Patriarca lhe perguntou se ele sentia dor ou não. “Doloroso e não doloroso”, Shen Hui respondeu. “Eu vejo e não vejo”, replicou o Patriarca.

“Como é que o senhor vê e não vê?” Shen Hui perguntou.

“O que eu vejo são minhas próprias faltas”, respondeu o Patriarca. “O que eu não vejo é o bem, o mal, o mérito e o demérito dos outros. Eis porque eu vejo e não vejo. Agora me conte o que queres dizer com ‘doloroso e não doloroso’. Se tu não sentes nenhuma dor, serias tão insensível como um pedaço de madeira ou pedra. Por outro lado, se tu sentes dor, e a raiva e o ódio são despertados assim, tu estarias na mesma posição de um homem comum”.

“O ‘ver’ e ‘não-ver’ ao qual se referes são um par de opostos; enquanto ‘doloroso’ e ‘não-doloroso’ pertencem ao Dharma condicionado que surge e cessa (i.e., Sankrita Dharma, elementos condicionados ou causados). Sem haver percebido sua própria Essência da Mente, tu ousas enganar os outros”.

Shen Hui se desculpou, fez obediência, e agradeceu ao Patriarca por sua instrução.

24 Nota. - O objetivo de Buddha é afastar a convicção dogmática de

qualquer forma. Ele pregou sobre a ‘ Não-eternidade ‘ para os crentes do Eternalismo; e pregou a ‘Nem Eternidade nem Não-eternidade ‘ para aqueles que acreditavam em ambas.

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Dirigindo-se novamente a ele, o Patriarca disse, “Se estás sob ilusão e não podes perceber tua Essência da Mente, tu deverias buscar o conselho de algum amigo piedoso e instruído. Quando tua mente for iluminada, conhecerás a Essência da Mente, e então poderás trilhar o Caminho do modo correto. No momento estás sob ilusão, e não conheces tua Essência da Mente. (Em vez de buscar conselho) Tu ousas perguntar se eu conheço minha Essência da Mente ou não. Se eu o faço, eu percebo por mim mesmo. Mas o fato de eu saber não te livras de estar sob a delusão. Semelhantemente, se tu conheces tua Essência da Mente, teu saber seria inútil para mim. Em vez de perguntar aos outros, por que não o procuras em ti e o vivencias por ti mesmo?”.

Fazendo reverência mais de cem vezes, Shen Hui expressou novamente seu pesar e rogou ao Patriarca que o perdoasse. (Dali em diante) ele trabalhou diligentemente como assistente do Patriarca.

Endereçando-se um dia à assembléia, o Patriarca disse, “Eu possuo algo que não tem cabeça, nem nome, nem título, nem frente e nem uma parte de trás. Há entre vós alguém que a isto conhece?”.

Saindo da multidão, Shen Hui respondeu, “é a fonte de todos os Buddhas, e a Natureza de Buddha de Shen Hui”.

“Eu já disse que isto não tem nome nem título, e ainda assim tu o chamas de ‘Fonte dos Buddhas’ e ‘Natureza de Buddha’“, reprovou o Patriarca. “Até mesmo se tu te confinares em um abrigo de esteira para estudos adicionais (como é hábito entre os Bhikkhus), só serás um estudioso do Dhyana com um conhecimento de segunda mão (i.e., conhecimento de livros e da autoridade verbal em vez do Conhecimento obtido intuitivamente)”.

Depois da morte do Patriarca, Shen Hui partiu para Loyang onde ele difundiu o ensino da Escola Súbita amplamente. O trabalho popular intitulado ‘Um Tratado Explícito sobre o Ensinamento Dhyana’ foi escrito por ele.

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Ele é geralmente conhecido pelo nome Mestre do Dhyana Ho Tse (o nome de seu monastério).

Vendo que muitas perguntas a ele eram propostas de má

fé por seguidores de várias Escolas, e que um grande número de tais questionadores haviam se reunido ao seu redor, o Patriarca falou-lhes, pleno de compaixão, como segue:

“Quem trilha o Caminho deveria anular todos os pensamentos, tanto os bons como também os maus. É apenas como um subterfúgio que a Essência da Mente é assim chamada; realmente [ela] não pode ser chamada por qualquer nome. Esta ‘natureza Não-dual’ é chamada a ‘verdadeira natureza’ na qual todos os sistemas de ensino do Dharma estão baseados. A pessoa deveria perceber a Essência da Mente assim que ela ouvir falar sobre isso”.

Ao ouvir isto, todos fizeram reverência e pediram ao Patriarca permissão para serem seus discípulos.

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Capítulo IX - Patronato Real

Um édito datado do 15º dia da primeira Lua do primeiro ano de Shen lung, emitido pela Imperatriz Herdeira Tse T’ien e o Imperador Chung Tsung determina como segue:

“Desde que nós convidamos os Grandes Mestres Hui An e Shen Hsiu para residir no palácio e receber nossos oferecimentos, estudamos o ‘Veículo de Buddha’ sob seus cuidados sempre que podíamos encontrar tempo após atender aos nossos deveres imperiais. Através de extrema modéstia, recomendaram-nos estes dois Mestres que deveríamos buscar os conselhos do Mestre do Dhyana Hui Neng do Sul o qual esotericamente herdou o Dharma e o manto do Quinto Patriarca assim como o ‘Selo do Coração’ do Senhor Buddha”.

“Nós enviamos o eunuco Hsueh Chien como mensageiro deste Édito para convidar Vossa Santidade a vir, e confiamos que Vossa Santidade irá graciosamente nos favorecer com uma breve visita à capital”.

Preso a grave enfermidade, o Patriarca enviou uma resposta recusando o convite real e pedindo para ser permitido passar seus anos restantes ‘na floresta’.

“Conhecedores do Dhyana na capital”, disse Hsueh Chien (quando se entrevistava com o Patriarca ), “unanimemente aconselham às pessoas que meditem na posição sentada para atingir o Samadhi. Eles dizem que este é o único modo de perceber o Dharma, e que é impossível para qualquer um obter a liberação sem passar por exercícios de meditação. Eu posso saber o seu modo de ensino, Senhor?”.

“O Tao será percebido pela mente”, respondeu o Patriarca, “e não depende da posição sentada. O Sutra do

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Diamante diz que é errado qualquer um afirmar que o Tathagata vem ou vai, senta-se ou se reclina. Por que? Porque o ‘Dhyana da Pureza’ do Tathagata não implica nem em vir de qualquer lugar nem em ir para qualquer lugar, nem ser criado nem causar [a criação de algo]. Todos os Dharmas são tranqüilos e vazios, e isto é o ‘ Assento de Pureza ‘ do Tathagata. Falando-se estritamente, não há nem mesmo esta coisa chamada ‘realização’; por que então nós deveríamos nos preocupar com a posição sentada?”.

“Em meu retorno”, Hsueh Chien disse, “Suas Majestades me pedirão certamente que faça um relatório. Poderíeis, Mestre, amavelmente me dar algumas sugestões essenciais sobre vosso ensino, de forma possa fazê-lo conhecido não só às Suas Majestades, mas também a todos os estudiosos Budistas na capital? Como a chama de uma lâmpada pode iluminar centenas ou milhares de outros, assim o ignorante será iluminado (por vosso ensino), e a luz produzirá um brilho eterno”.

“O Tao não implica nem na iluminação nem na escuridão”, respondeu o Patriarca. “Luz e escuridão significam a idéia de alternação. (Não está correto dizer) aquela luz produzirá brilho sem fim, porque haverá [invariavelmente] um fim, desde que luz e escuridão são um par de opostos. O Vimalakirti Nirdesa Sutra diz, ‘ O Tao não tem nenhuma analogia, desde que não é um termo relativo’“.

“Luz significa sabedoria”, Hsueh Chien declarou, “e escuridão significa Klesa (corrupção). Se um trilhador do Caminho não separa Klesa com a força de sabedoria, como ele vai se livrar da ‘roda de nascimento e morte’ que não tem início?”.

“Klesa é Bodhi”, retrucou o Patriarca. “Os dois são o mesmo e não diferentes. Transcender Klesa através da sabedoria é o ensino da Escola Sravaka (aspirantes a Arhat) e a Escola dos Pratyeka Buddha, cujos seguidores são do ‘Veículo da Cabra’ e ‘Veículo do Cervo’ respectivamente.

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Para aqueles de disposição mental mais aguda tal ensino não seria muito útil”.

“Qual então seria o ensino da Escola Mahayana?” Hsueh Chien perguntou.

“Do ponto de vista de homens comuns”, respondeu o Patriarca, “esclarecimento e ignorância são duas coisas separadas. Homens sábios que percebem plenamente a Essência da Mente sabem que aqueles são da mesma natureza. Esta mesma natureza, ou natureza Não-dual, é o que se chama de ‘natureza genuína’, a qual nem diminui no caso de homens comuns e pessoas ignorantes, nem aumenta no caso dos sábios iluminados; a qual não é perturbada em um estado de tensão, nem se tranqüiliza em um estado de Samadhi. Não é eterna nem Não-eterna; nem vai nem vem; não será achada no exterior, nem no interior, nem no espaço entre os dois. Está além da existência e Não-existência; sua natureza e seus fenômenos sempre estão em um estado de ‘Assim Ser’ [Tathata ]; é permanente e imutável. Assim é o Tao”.

Hsueh Chien perguntou, “Diz o senhor que [aquilo] está além da Existência e Não-existência. Como o senhor o diferencia, então, do ensino realizado por caminhos diferentes?”.

“No ensino de outros caminhos”, respondeu o Patriarca, ‘Não-existência’ significa o fim da ‘Existência’, enquanto ‘Existência’ é usada em contraste a ‘Não-existência’. O que eles querem dizer com ‘Não-existência’ não é de fato uma aniquilação, e o que eles chamam ‘Existência’ realmente não existe. O que eu quero dizer com ‘acima da Existência e da Não-existência’ é isto; intrinsecamente não existe, e no momento presente não poderá ser aniquilado. Tal é a diferença entre meu ensino e o de outros caminhos”.

“Se desejas saber os pontos essenciais de meu ensino, deverias te livrar de todos os pensamentos bons assim como também ruins; então tua mente estará em estado de pureza,

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tranqüila e serena todo o tempo, e seu valor [da mente] será tão variado quanto os grãos de areia do Ganges”.

A pregação do Patriarca despertou Hsueh Chien para o pleno esclarecimento. Ele fez reverência e despediu-se do Patriarca. Ao retornar para o palácio, ele informou o que o Patriarca havia dito às Suas Majestades.

Naquele mesmo ano, no terceiro dia da Nona Lua, um édito foi emitido elogiando o Patriarca da seguinte forma:

“Devido a sua idade avançada e pobre saúde, o Patriarca recusou nosso convite para vir à capital. Dedicando sua vida à prática do Budismo para nosso benefício, ele realmente é o ‘campo de mérito’ da nação. Seguindo o exemplo de Vimalakirti, ele divulga o ensinamento Mahayana amplamente, transmitindo a doutrina da Escola Dhyana, e expõe o sistema de Dharma ‘Não-dual’“.

“Por intermédio de Hsueh Chien, a quem deu o Patriarca o ‘Conhecimento Búddhico’, somos afortunados o bastante para ter uma chance de entender por nós mesmos o ensino do Veículo Supremo. Isto deve ser devido aos nossos méritos acumulados e a ‘raiz de bondade’ plantada em vidas passadas; caso contrário, nós não poderíamos ser contemporâneos de Vossa Santidade”.

“Em apreciação pela graciosidade do Patriarca, dificilmente encontramos palavras para expressar nossa gratidão, (mas como dádiva pelo nosso apreço por ele) nós lhe presenteamos com o manto Mo La (uma valiosa vestimenta Budista feita na Coréia) e uma tigela de cristal. O Magistrado de Shao Chou foi, portanto, ordenado a reestruturar seu monastério e converter sua antiga residência em um templo que será chamado ‘Kuo En’ (Bondade Imperial)”.

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Capítulo X - As Instruções Finais

Certo dia o Patriarca chamou seus discípulos Fa Hai, Chih Ch’eng, Fa Ta, Shen Hui, Chih Ch’ang, Chih Tung, Chih Ch’e, Chih Tao, Fa Chen, Fa Ju, etc., e lhes falou como segue:

“Vóis sois distintos dos outros [meus discípulos]. Após minha entrada no Nirvana, cada um de vós sereis o Mestre de Dhyana de uma certa região. Então, eu vos darei algumas sugestões sobre como transmitir os ensinamentos, de forma a que vós possais manter a tradição de nossa Escola.”

“Primeiro mencioneis as três Categorias de Dharmas, e então os trinta e seis ‘pares de opostos’ das atividades (da Essência da Mente). Então ensineis como evitar os dois extremos do ‘penetrar’ ou ‘sair’. Em todas as pregações, não vos desvieis da Essência da Mente. Sempre que alguém vos questionar, lhe respondais com antônimos, de forma que um ‘par de opostos’ seja formado. (Por exemplo) ‘vir’ e ‘ir’ são a causa recíproca um do outro. Quando a interdependência dos dois for completamente realizada não haverá, no sentido absoluto, nenhum ‘vir’ nem ‘ir’.”

As três categorias de Dharmas são: Skandhas (agregados), Ayatanas (regiões ou esferas de contato), Dhatus (fatores de consciência). O cinco Skandhas são: Rupa (Matéria), Vedana (Sensações), Samjna

(Percepções), Samskara (Fatores Mentais), e Vijnana (Consciência).

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Os doze Ayatanas são:

Seis Objetos de Sensação (externos)

Seis Órgãos de Sensação (internos)

Objeto de visão Órgãos de visão

Objeto de audição Órgãos de audição

Objeto de cheiro Órgãos de cheiro

Objeto de gosto Órgãos de gosto

Objeto de toque Órgãos de toque

Objeto de pensamento Órgãos de pensamento Os dezoito Dhatus são: Os seis objetos de sensação, seis órgãos de sensação e os

seis receptores vijnanas. “Uma vez que a Essência da Mente é a incorporação de

todos os Dharmas, ela é chamada de Alaya (Repositório de Consciência). Mas assim que o processo de pensamento ou argumentação começa, a Essência da Mente é transmutada em (vários) vijnanas. Quando os seis receptores vijnanas vêm a existir, eles percebem os seis objetos de sensação através das seis ‘portas’ (de sensação). Assim, o funcionamento do dezoito dhatus deriva seu ímpeto da Essência da Mente. Se eles funcionam com uma tendência má ou boa depende do humor - bom ou mau – sob o qual a Essência da Mente está. Funcionamento malévolo é sinônimo de um homem comum, enquanto que o funcionamento benévolo é característico de um Buddha. É devido aos ‘pares de opostos’ inerentes da Essência da Mente que o funcionamento dos dezoito dhatus derivam seu ímpeto”.

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“Os trinta e seis ‘Pares de opostos’ são:” Os Cinco [pares] externos inanimados: Céu e terra, sol e

lua, luz e escuridão, elemento positivo e elemento negativo, fogo e água.

Os Doze Dharmalaksana (objetos fenomênicos): Palavras

e o Dharma [o Silêncio], plenitude [existência] e ausência [não-existência], o aparente e o sem aparência, harmonia [reciprocidade] e a desarmonia, brechas (impurezas) e a ausência de brechas, a qualidade e o vazio, movimento e quietude, pureza e impureza, pessoas mundanas e os sábios, o Sangha e os leigos, o velho e o jovem, o grande e o pequeno.

Os Dezenove Pares que denotam o funcionamento da Essência da Mente: longo e o curto, o vicioso e o virtuoso, o iludido e o iluminado, ignorante e o sábio, perturbado e o tranqüilo, o misericordioso e o perverso, o abstinente (Sila) e o indulgente, o correto e o deformado, cheio e vazio, o íngreme e o nivelado, Klesa e Bodhi, permanente e passageiro, compassivo e cruel, o feliz e o que odeia, o generoso e o mesquinho, o à frente e o que está atrás, o existente e o Não-existente, Dharmakaya e corpo físico, Sambhogakaya e Nirmanakaya.

“Aquele que sabe usar estes trinta-seis pares, alcança o princípio todo-penetrante que passa pelo ensino de todos os Sutras. Esteja ele ‘ vindo ‘ ou ‘ partindo ‘, poderá evitar os dois extremos”.

“No funcionamento da Essência da Mente e em conversação com outros, exteriormente nós deveríamos nos livrar de apegos aos objetos, e interiormente, no que diz respeito ao ensinamento do ‘Vazio’, devemos nos livrar da idéia de Niilismo. Acreditar na realidade de objetos ou em Niilismos irá resultar em visões profundamente enraizadas em falaciosidade ou em ignorância intensificada, respectivamente”.

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“Um crente fanático no niilismo blasfema contra os sutras sustentando que a literatura (i.e., as escrituras budistas) é desnecessária (para o estudo do Budismo). Se assim fosse, então não haveria motivos para falarmos, uma vez que os modos da fala são a substância da literatura. Ele também poderia argumentar que no método direto (literalmente, o Caminho direto) a literatura é descartada. Mas ele percebe que estas duas palavras, ‘é descartada’, também são literatura? Ao ouvir outros recitando os Sutras, um homem criticaria os locutores como ‘viciados na autoridade das escrituras’. Já é ruim o bastante para ele manter esta noção enganada para si mesmo, mas, além disso, ele blasfema contra as escrituras Budistas. Vós deveis saber que é uma séria ofensa falar mal dos Sutras, pois as conseqüências [deste ato] são realmente graves!”.

“Aquele que acredita na realidade dos objetos externos tenta buscar a forma (externamente) praticando um certo sistema de doutrina. Ele pode organizar grandes espaços de conferências para a discussão do Realismo ou Niilismo, mas tal pessoa por numerosos kalpas não irá [ser capaz de] perceber a Essência da Mente”.

“Nós deveríamos trilhar o Caminho de acordo com o ensino do Dharma, e não manter nossa mente em um estado de indolência e criar assim obstáculos para sua compreensão. Falar ou ouvir o Dharma sem praticar dará ocasião para o surgimento de visões errôneas. Conseqüentemente, nós deveríamos trilhar o Caminho de acordo com o ensino do Dharma, e na disseminação do Dharma não deveríamos nos influenciar pelo conceito da realidade de objetos”.

“Se vós entenderdes o que digo, e fizerdes uso disto nos discursos, na prática, e em sua vida diária, vós ireis compreender a característica que define a nossa Escola”.

“Sempre que uma questão for apresentada a vós, respondeis no negativo se for ela [a questão] afirmativa; e vice-versa. Se vós fordes questionados por um homem comum, fale para ele algo sobre os sábios; e vice-versa. Pela

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correlação ou interdependência dos opostos, a ‘Doutrina do Meio’ pode ser compreendida. Se todas as outras questões forem respondidas desta maneira, vós não estareis longe da verdade”.

“Supondo que alguém vos pergunte sobre a natureza da escuridão, lhe respondais assim: Luz é o Hetu (condição-raiz) e escuridão é o pratyaya (condições que provocam qualquer determinado fenômeno). Quando a luz desaparece, a escuridão surge. Os dois estão em contraste um com o outro. Da correlação ou interdependência dos dois a ‘Doutrina do Meio’ existe”.

“Deste modo todas as outras questões devem ser respondidas. Para assegurar a perpetuação da meta e do objetivo de nossa Escola na transmissão do Dharma para seus sucessores, esta instrução deve ser passada de uma geração a outra”.

Na sétima Lua do ano de Jen Tzu, o primeiro ano de T’ai Chi ou Era Yen Ho, o Patriarca enviou alguns de seus discípulos a Hsin Chou para construir um santuário (stupa) dentro do monastério Kuo En, com instruções de que o trabalho deveria ser completado o mais cedo possível. No ano seguinte, quando o verão estava bem adiantado, o stupa foi completado apropriadamente.

No primeiro dia da sétima Lua, o Patriarca reuniu seus discípulos e lhes falou como segue:

“Eu vou deixar este mundo na oitava Lua. Se vós tiverdes quaisquer dúvidas (sobre a doutrina), por favor, me pergunteis em tempo, de forma a que eu possa vos esclarecer. É possível que ninguém vos possais ensinar depois de minha partida”.

As tristes notícias levaram Fa Hai e outros discípulos às lágrimas. Por outro lado, Shen Hui permaneceu inalterado. Elogiando-o, o Patriarca disse, “O Jovem Mestre Shen Hui é o único aqui a atingir aquele estado da mente que não vê nenhuma diferença entre o bem ou o mal, que não conhece a tristeza nem a felicidade, e está além de elogios ou culpas.

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Depois de tantos anos treinando nesta montanha, que progresso fizestes vós? Por que estais chorando agora? Vós estais porventura preocupados por mim porque talvez eu não saiba para onde irei? Mas eu sei; caso contrário eu não vos poderia contar antecipadamente o que acontecerá. O que vos faz chorar é que não sabeis para onde vou. Se vós soubésseis, não haveria nenhum motivo para vossas lamentações. Em Assim Ser (Tathata ) não existe intrinsecamente o vir nem o ir, a formação nem a cessação. Sentais todos, e me deixais ler versos sobre Realidade e a Ilusão, e sobre o Movimento e a Quietude. Praticais, e vossa opinião outorgará a minha. Praticais, e vós ireis captar a meta e objetivo de nossa Escola”.

A Assembléia fez reverência e pediu ao Patriarca que lhes deixasse ouvir os versos, que foram lidos como segue:

Em todas as coisas não há nada real, E assim nós devemos nos livrar do conceito da realidade dos objetos. Aquele que acredita na realidade dos objetos É aprisionado por este mesmo conceito, que é completamente ilusório. Aquele que percebe a Essência da Mente dentro de si Sabe que a ‘ Verdadeira Mente ‘ será buscada longe dos fenômenos. Se a mente da pessoa é aprisionada por fenômenos ilusórios Onde a Realidade pode ser achada, quando todos o fenômenos são irreais? Seres sensíveis são móveis; objetos Inanimados são estáticos. Aquele que se treina através do exercício de imobilidade (Não adquire nenhum benefício) além de se tornar tão estagnado quanto um objeto inanimado. Sendo capazes de descobrir a verdadeira Imobilidade Haverá a Imobilidade dentro da Atividade.

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Imobilidade apenas (como a dos objetos inanimados) é [tão somente] Imobilidade (e não Dhyana), Nos objetos inanimados não será achada a semente do Estado Búddhico. Aquele que é adepto da discriminação dos vários Dharmalaksana Habita imóvel no ‘Primeiro Princípio’ (Nirvana). Assim são todas as coisas a serem percebidas, e este é o funcionamento de Tathata (Assim Ser). Trilhadores do Caminho, Esforçai-vos e prestai atenção Pois, como seguidores da Escola Mahayana, Não sois apegados àquele tipo de conhecimento Que vos aprisiona à roda de nascimento e morte. Com aqueles que são simpatizantes Vamos conversar sobre o Budismo. Para aqueles cujo ponto de vista difere dos nossos Vamos tratá-los educadamente e assim fazê-los felizes. (Mas) disputas são estranhas à nossa Escola, Porque elas são incompatíveis com o Tao virtuoso. Ser sectário e discutir com os outros em descuido deste dharma Sujeita a Essência da Mente à amargura da existência mundana.

Tendo ouvido estes versos, a assembléia fez reverência

em um só corpo. Conforme os desejos do Patriarca, eles concentraram suas mentes para pôr estes versos em real prática, e se refrearam em sucumbir a controvérsias religiosas.

Vendo que o Patriarca faleceria no futuro próximo, o Monge-chefe, Fa Hai, depois de se prostrar duas vezes perguntou, “Senhor, após vossa entrada no Nirvana, quem será o herdeiro do manto e do Dharma?”.

“Todos os meus sermões”, respondeu o Patriarca, “desde o tempo em que eu pregava no monastério Ta Fan,

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até hoje, podem ser copiados para divulgação em um tratado a ser intitulado ‘Sutra Proferido no Alto Assento do Tesouro do Dharma’ [Dharmaratha]. Cuidem bem dele e o transmitam de uma geração para outra para a salvação de todos os seres sensíveis. Aquele que fala de acordo com estes ensinamentos fala o Dharma Verdadeiro”.

“Assim será com a transmissão do Dharma. Sobre a transmissão do manto, esta prática será descontinuada. Por que? Porque vós todos tendes fé implícita em meu ensino, e sendo livres de todas as dúvidas vós levareis a cabo o maior objetivo de nossa Escola. Além disso, de acordo com o significado profundo dos versos de Bodhidharma, o primeiro Patriarca, na transmissão do Dharma, o manto não tem necessidade de ser transmitido. Os versos dizem:”

O objeto de minha vinda para esta terra (i.e., a China) É transmitir o Dharma para a libertação daqueles sob ilusão. Uma Flor com cinco pétalas será completada. Depois disso, o fruto amadurecerá naturalmente.

O Patriarca acrescentou, “Virtuosa Audiência, purificai

vossas mentes e escutai. Aquele que deseja atingir o Conhecimento Que Tudo Conhece de um Buddha deveria compreender o ‘Samadhi do Objeto Específico’ e o ‘Samadhi do Modo Específico’. Em todas as circunstâncias nós deveríamos nos libertar dos apegos aos objetos, e nossa atitude para com eles deveria ser neutra e imparcial. Não deixeis que nem o sucesso nem o fracasso, ganhos ou perdas, vos preocupe. Estai tranqüilos e serenos, modestos e adaptáveis, simples e imparciais. Tal é o ‘Samadhi do Objeto Específico’. Em todas as ocasiões, se estamos de pé, caminhando, sentados ou reclinados, sejamos absolutamente corretos. Então, permanecendo em nosso santuário, e sem o mínimo movimento, estaremos virtualmente no Reino da Terra Pura. Tal é o ‘Samadhi de Modo Específico’“.

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“Aquele que está completo com estas duas formas de Samadhi pode ser comparado ao solo cujo interior está com sementes. Coberto com lama, as sementes recebem desta forma nutrição e crescem até a fruta amadurecer”.

“Minha pregação para vós agora pode ser comparada à estação das chuvas, que traz umidade para uma vasta área de terra. A Natureza de Buddha dentro de vós pode ser comparada à semente que, sendo umedecida pela chuva, crescerá rapidamente. Aquele que leva a cabo minhas instruções certamente atingirá a Bodhi. Aquele que segue meu ensinamento certamente alcançará o soberbo fruto (do Estado Búddhico). Escutai meus versos:”

As sementes-Buddha ocultas em nossa mente Brotarão na vinda da chuva que a tudo abarca. A ‘flor’ da doutrina, tendo sido intuitivamente alcançada, Permitirá colher o fruto do Esclarecimento.

Então ele acrescentou, “O Dharma é não-dual e assim é

a Mente. O Caminho é puro e acima de todas as formas. Eu vos advirto não usar esses exercícios para meditação em silêncio ou para manter a mente ‘em branco’. A mente é por natureza pura, assim não há nada para se ambicionar ou do qual desistir. Esforçai-vos, e ide (difundir o ensino) onde quer que as circunstâncias vos leveis”.

Pouco depois, os discípulos fizeram reverência e se retiraram.

No oitavo dia da sétima Lua, o Patriarca deu uma súbita

ordem aos seus discípulos para que se preparasse um barco para Hsin Chou (seu lugar de nascimento). Em um só corpo eles rogaram ardente e humildemente para que ficasse.

“É natural que eu vá”, disse o Patriarca, “pois a morte é o resultado inevitável do nascimento, e até mesmo os vários Buddhas que aparecem neste mundo têm de passar por uma

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morte terrestre antes de entrar em Parinirvana. Não pode haver exceção para meu corpo físico o qual deve repousar em algum lugar”.

“Depois de vossa visita a Hsin Chou”, rogou-lhe a assembléia, “por favor volte para cá em breve”.

“Folhas mortas voltam para onde sua raiz está, e quando eu primeiramente surgi, boca eu não tinha”, respondeu o Patriarca.

Então eles perguntaram, “Para quem, Senhor, transmitireis o ‘Útero do Olho do Verdadeiro Dharma’?”.

“Homens de princípio o terão, e aqueles que estão livres de conceitos arbitrários o entenderão”.

Eles perguntaram mais adiante, “Irá qualquer calamidade cair sobre vós no futuro?”.

“Cinco ou seis anos depois de minha morte”, respondeu o Patriarca, “um homem virá cortar minha cabeça. Eu fiz a seguinte profecia a qual vos peço que, por favor, recordai:”

Ao topo da cabeça do pai, são feitos oferecimentos, Pois a boca deve ser alimentada. Quando a calamidade de ‘Man’ acontecer, Yang e Liu serão os oficiais.

Ele acrescentou, “Setenta anos depois de minha partida

dois Bodhisattvas do Leste, um leigo e o outro monge, irão falar contemporaneamente, disseminando a Lei amplamente, estabelecendo nossa Escola em uma base firme, renovando nossos monastérios e transmitindo a doutrina a numerosos sucessores”.

“O senhor pode nos permitir conhecer por quantas gerações o Dharma foi transmitido, do aparecimento do Buddha mais antigo até agora?”, perguntaram os discípulos.

“Os Buddhas que apareceram neste mundo são muitos para serem numerados”, respondeu o Patriarca. “Mas nos deixe começar dos últimos sete Buddhas. São eles”:

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“Do último kalpa (o Alamkarakalpa): Buddha Vipasyin Buddha Sikhin Buddha Visvabhu Do kalpa presente (o Bhadrakalpa): Buddha Krakucchanda Buddha Kanakamuni Buddha Kasyapa Buddha Sakyamuni” De Buddha Sakyamuni, o Dharma foi transmitido a: 1º Patriarca Arya Mahakasyapa 2º Patriarca Arya Ananda 3º Patriarca Arya Sanakavasa 4º Patriarca Arya Upagupta 5º Patriarca Arya Dhritaka 6º Patriarca Arya Michaka 7º Patriarca Arya Vasumitra 8º Patriarca Arya Buddhanandi 9º Patriarca Arya Buddhamitra 10º Patriarca Arya Parsva 11º Patriarca Arya Punyayasas 12º Patriarca Bodhisattva Asvaghosa 13º Patriarca Arya Kapimala 14º Patriarca Bodhisattva Nagarjuna 15º Patriarca Kanadeva 16º Patriarca Arya Rahulata 17º Patriarca Arya Sanghanandi 18º Patriarca Arya Gayasata 19º Patriarca Arya Kumarata 20º Patriarca Arya Jayata 21º Patriarca Arya Vasubandhu 22º Patriarca Arya Manorhita 23º Patriarca Arya Haklenayasas 24º Patriarca Arya Simha

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25º Patriarca Arya Basiasita 26º Patriarca Arya Punyamitra 27º Patriarca Arya Prajnatara 28º Patriarca Arya Bodhidharma (o primeiro Patriarca Zen na

China) 29º Patriarca Grande Mestre Hui K’u 30º Patriarca Grande Mestre Seng Ts’an 31º Patriarca Grande Mestre Tao Hsin 32º Patriarca o Grande Mestre Hang Yen E eu sou o 33º Patriarca (o sexto Patriarca na China).

Assim o Dharma foi passado de um Patriarca para outro. Daqui por diante, meus discípulos sucessores, vós devereis transmiti-lo à posteridade, de uma geração para outra, de forma que a tradição possa ser mantida.

No terceiro dia da oitava Lua do ano de Kuei Chou, o

segundo Ano da Era Hsien T’ien (A.D. 713), depois de alimentar-se no Monastério Kuo En, o Patriarca dirigiu-se aos seus discípulos como segue:

“Por favor, sentai-vos, pois eu vou me despedir”. Logo após Fa Hai falou ao Patriarca, “Mestre, vós

podeis deixar para a posteridade instruções exatas por meio das quais as pessoas sob ilusão possam perceber a natureza de Buddha?”

“Não é impossível”, respondeu o Patriarca, “para estes homens perceber a Natureza de Buddha, contanto que eles se harmonizem com a natureza dos seres sensíveis comuns. Mas buscar o Estado Búddhico sem tal conhecimento seria em vão até mesmo se a pessoa gastasse aeons de tempo na procura”.

“Agora, irei mostrar-vos como vos familiarizares com a natureza dos seres sensíveis dentro de vossas mentes, e assim perceber a Natureza de Buddha oculta em vós. Conhecer Buddha significa nada mais do que conhecer os seres sensíveis; sendo os últimos ignorantes de que são

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Buddhas em potencial, um Buddha [ao contrário] não vê nenhuma diferença entre ele mesmo e os outros seres. Quando os seres sensíveis percebem a Essência da Mente, eles são Buddhas. Se um Buddha está sob ilusão em sua Essência da Mente, ele é então um ser comum. Pureza na Essência da Mente faz de seres comuns tornarem-se Buddhas. Impureza na Essência da Mente reverterá mesmo um Buddha em um ser comum. Quando vossa mente está distorcida ou corrompida, sereis seres comuns com a Natureza de Buddha em vós. Por outro lado, quando direcionardes vossas mentes para a pureza e correção por até mesmo um momento, vós sereis um Buddha”.

“Dentro de nossa mente há um Buddha, e aquele Buddha interior é o Buddha real. Se Buddha não for buscado dentro de nossa mente, onde acharemos o real Buddha? Não duvideis que aquele Buddha está dentro de sua mente, fora da qual nada pode existir. Considerando que todas as coisas ou fenômenos são a produção de nossa mente, o Sutra diz, ‘Quando a atividade mental começa, coisas vem a existir; quando a atividade mental cessa, as coisas deixam igualmente de existir.’ Ao separar-me de vós, irei vos legar versos intitulados ‘O Buddha Real da Essência da Mente’. Em futuras gerações, os que entenderem seu significado perceberão a Essência da Mente e atingirão o Estado Búddhico. Assim são os versos”:

A Essência da Mente ou Tathata (Assim Ser) é o Buddha real, Enquanto as visões errôneas e os três elementos venenosos são Mara. Iluminado por Visões Corretas, nós estimulamos o Buddha dentro de nós. Quando nossa natureza é dominada pelos três elementos venenosos É dito que somos possuídos por Mara;

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Mas quando Visões Corretas eliminam de nossa mente estes elementos venenosos Mara será transformado em um Buddha real. O Dharmakaya, o Sambhogakaya e o Nirmanakaya – Estes três Corpos emanam de Um (a Essência da Mente). Aquele que pode perceber este fato intuitivamente Semeou a semente, e recolherá os frutos do Esclarecimento. É do Nirmanakaya que nossa Natureza Pura emana; Dentro do último, o primeiro será achado. Guiado pela Pura Natureza, o Nirmanakaya trilha o Correto Caminho, e vai algum dia atinjir o Sambhogakaya, perfeito e infinito. ‘Pura Natureza’ é uma conseqüência natural de nossos instintos sensuais; Nos libertando da sensualidade, atingimos o Puro Dharmakaya. Quando nosso temperamento é tal que não somos mais escravos dos cinco objetos de sensação, E quando percebemos a Essência da Mente mesmo que por apenas um momento, então a Verdade nos é revelada. Se formos afortunados a ponto de sermos seguidores da Escola Súbita nesta vida, Em um instante veremos o Bhagavat de nossa Essência da Mente. Aquele que busca o Buddha (externamente) praticando certas doutrinas Não sabe onde o real Buddha será achado. Aquele que pode perceber a Verdade dentro da sua própria mente Cultivou a semente do Estado Búddhico. Aquele que não percebeu a Essência da Mente e busca o Buddha externamente É um tolo motivado por desejos equivocados. Eu deixei, portanto, à posteridade o ensinamento da Escola Súbita

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Para a salvação de todos os seres sensíveis que se preocuparem em praticá-lo. Ouçai-me, discípulos futuros! Seu tempo será desperdiçado se negligenciares em pôr este ensino em prática.

Tendo recitado estes versos, ele acrescentou, “Cuidai-vos. Depois de minha passagem, não caí nos hábitos mundanos, chorando e lamentado. Nem mensagens de condolência devem ser aceitas, nem luto deve ser usado. Estas coisas são contrárias ao Ensino Correto, e aquele que as faz não é meu discípulo. O que vós deveis fazer é conhecer vossa própria mente e perceber vossa própria Natureza Búddhica, a qual nem descansa nem se move, não nasce nem deixa de existir, não vem nem vai, não afirma nem nega, não fica nem parte. Para que vossas mentes não sucumbam à ilusão e assim não capteis o [correto] significado, eu repito estas palavras para permitir-vos perceberdes vossa Essência da Mente. Depois de minha morte, se levardes a cabo minha instrução e a praticardes adequadamente, o fato de meu ser estar longe de vós não fará diferença. Por outro lado, se vós fordes contra meu ensino, nenhum benefício seria obtido, até mesmo se eu continuasse aqui”.

Então ele proferiu outros versos:

Imperturbável e sereno, o homem ideal não pratica nenhuma virtude. Auto-centrado e imparcial, ele não comete nenhum pecado. Tranqüilo e silencioso, ele deixa de ver e ouvir. Harmônica e bem organizada, sua mente não habita em nenhuma parte.

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Havendo articulado tais versos, ele sentou-se reverentemente até a terceira hora da noite. Então, abruptamente disse aos seus discípulos, “Parto agora!”, e rapidamente faleceu. Uma fragrância peculiar penetrou seu quarto, e um arco-íris lunar surgiu, parecendo unir terra e céu. As árvores na floresta empalideceram, e os pássaros e feras choraram tristemente.

Na décima primeira Lua daquele ano a controvérsia sobre em qual lugar o corpo do Patriarca descansaria deu lugar a uma disputa entre os funcionários governamentais de Kuang Chou, Shao Chou e Hsin Chou, cada grupo ansioso por ter os restos do Patriarca removidos para seu próprio distrito. Os discípulos do Patriarca, junto com outros monges e leigos, tomaram parte na controvérsia. Estando impossibilitados de chegar a qualquer acordo entre eles, eles queimaram incenso e rezaram ao Patriarca para que ele indicasse na direção do vento da fumaça o lugar que ele escolheria. Como a fumaça virou diretamente a Ts’ao Ch’i, o santuário (no qual o corpo foi mantido) junto com o manto herdado e a tigela, foi levado de volta adequadamente para lá no 13º dia da 11ª Lua.

No ano seguinte, no 25º dia da sétima Lua, o corpo foi tirado do santuário, e Fang Pien, um discípulo do Patriarca, emplastou-o com barro perfumado. Recordando a predição do Patriarca que alguém cortaria sua cabeça, os discípulos, como precaução, envolveram seu pescoço com aros de ferro e panos envernizados antes do corpo ser colocado no stupa. De repente, um raio de luz branca saiu do stupa, foi diretamente para o céu, e não se dispersou até três dias depois. O incidente foi informado apropriadamente ao Trono pelos funcionários do Distrito de Shao Chou. Através de ordem imperial, foram erguidas tábuas registrando a vida do Patriarca.

O Patriarca herdou o manto quando tinha 24 anos, teve o cabelo raspado (i.e., foi ordenado) aos 39, e morreu à idade de 76. Durante trinta e sete anos ele pregou para o benefício

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de todos os seres sensíveis. Quarenta e três dos seus discípulos herdaram o Dharma, e através de seu consentimento expresso se tornaram seus sucessores; aqueles que atingiram o esclarecimento e assim saíram do plano de homens comuns eram muito numerosos para serem contados.

O manto transmitido por Bodhidharma como insígnia do Patriarcado, o manto Mo La e a tigela de cristal presenteadas pelo Imperador Chung Tsung, a estátua do Patriarca feita por Fang Pien, e outros artigos sagrados, foram postos sob responsabilidade do guardião do stupa. Eles seriam mantidos permanentemente no Monastério Pao Lin para guardar o bem-estar do templo.

O Sutra falado pelo Patriarca foi publicado e divulgado

para tornar conhecidos os princípios e objetivos da Escola do Dharma. Todos estes passos foram dados pela prosperidade das Três Jóias (i.e., Buddha, Dharma, e o Sangha) assim como para o bem-estar geral de todos os seres sensíveis.

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Apêndice por Ling Tao, o Guardião do Stupa

À meia noite do terceiro dia da oitava lua do ano Ren Xu, no décimo ano da Era Kai Yuan, ruídos semelhantes àqueles feitos pelo raspar de uma serra de ferro foram ouvidos dentro do Stupa no qual os restos do Patriarca permaneciam como relíquia. Acordado pelo alarme, os Bhikkhus viram um homem de negro fugindo do pagode. Subseqüentemente, eles encontraram marcas de raspagem infligidas no pescoço do Patriarca. Relatórios foram diligentemente feitos para o Magistrado Liu Wu Tian e o Magistrado Yang Kan. Após receber a queixa eles fizeram uma extensa procura pelo culpado, que cinco dias depois foi capturado na vila Shi Jiao e enviado a Shao Zhou para julgamento.

Ele declarou que seu nome era Zhang Jing Man, um nativo de Liang Yuen de Ru Zhou, e que no monastério Kai Yuan de Hong Zhou ele tinha recebido 2.000 moedas de um Bhikkhu de Xin Lo (uma região da Coréia) chamado Jin Da Bei, que o ordenou roubar a cabeça do Patriarca para ser enviada à Coréia para veneração.

Tendo tomado este depoimento, o Magistrado Liu reservou seu julgamento, e foi pessoalmente a Cao Xi consultar-se com o discípulo mais velho do Patriarca, Ling Tao, sobre qual seria a sentença adequada. Ling To disse, “De acordo com a lei do estado, a sentença de morte deve ser passada. Mas como a misericórdia é o ponto chave do Budismo, o qual ensina que entes queridos e inimigos devem ser tratados igualitariamente, acrescido ao fato de que a veneração religiosa é o motivo do crime, o ofensor deve ser perdoado”. Muito impressionado, o Magistrado Liu exclamou, “Agora começo a perceber quão liberais e de mente equilibrada são os Budistas!” O prisioneiro foi posto em liberdade.

O Imperador Su Zong, que desejava fazer veneração ao manto e à tigela do Patriarca, enviou um embaixador a Cao Xi para escoltar os objetos com o devido respeito até o palácio real. Eles foram mantidos lá até o primeiro ano de Yong Tai, quando o Imperador Dai Zong teve um sonho na noite do quinto dia da quinta lua, em que o Patriarca lhe

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pedia para que retornasse as relíquias. No sétimo dia na mesma lua, o seguinte édito endereçado a Yang Jian declarava:

“Uma vez que Sua Majestade sonhou que o Mestre do Dhyana Wei Lang pedia a restituição do manto e da tigela herdados, o Marechal Zhen Guo (‘Pilar do Estado’, um título de honra) Liu Chong Jing está, portanto, incumbido de escoltá-los com a devida reverência para Cao Xi. Estas relíquias são consideradas pelo Imperador como valores do império, e vós sois ordenados a guardá-las apropriadamente no monastério Bao Lin e a dar ordens expressas aos Bhikkhus, os quais receberam instruções especiais do Patriarca, a exercer cuidado especial em sua proteção, de forma que nenhum dano lhes seja infringido”.

Tempos depois, as relíquias foram roubadas várias vezes, mas em cada ocasião foram recuperadas após o ladrão fugir para longe.

O Imperador Xian Zong conferiu ao Patriarca o título póstumo de ‘Da Jian’ (O Grande Espelho, ou O Grande Visionário) e escreveu o epigrafo ‘Yuan He Ling Zhao’ (O Espírito Harmonioso Brilha Divinamente) no Stupa.

Outros materiais biográficos recordando a vida do Patriarca foram encontrados nas tábuas escritas pelo Chanceler Wang Wei, Magistrado Liu Zong Yuan, Magistrado Liu Yu Xi, e outros, todos da Dinastia Tang.

Sarve Bhavantu Mangalam

Pratique a Paz.

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Apêndice da Edição Brasileira

Imagens de Buddha e dos Patriarcas

Esta sequência de interessantes desenhos pretende representar a hierarquia que se inicia em Buddha e segue com os 33 Arahants (Patriarcas) segundo a descrição contida no capítulo X do Sutra de Hui Neng. As imagens foram retiradas da mesma edição usada para a esta tradução.

A maior parte das imagens se baseia em uma

surpreendente reconstituição das feições dos mestres, a partir da análise das descrições e características de personalidade de cada um, preservadas ao longo dos séculos pela tradição oral e escrita.

Ainda assim devemos considerar estes trabalhos como

simples representações, e não uma retratação fiel da aparência dos envolvidos.

É de se notar que Shakyamuni Buddha aparece

segurando a flor de lótus, em uma clara alusão ao episódio do “girar a flor”, símbolo da primeira manifestação do “espírito do zen” (conforme comentado na Introdução).

Tam Huyen Van

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Sobre o Tradutor Brasileiro

Nascido em 1962, Claudio Miklos iniciou sua prática no budismo aos 17 anos, através da tradição Zen Soto. Participou de retiros e freqüentou locais de prática na região do Rio de Janeiro. Aos 28 anos começou a organizar grupos de estudos sobre o Budismo tradicional, sempre na qualidade de praticante zen leigo. Em 1994 morou na China (Hong Kong) onde realizou uma peregrinação pessoal a diversos templos budistas da região do sul da China, com o objetivo de conhecer mais profundamente a tradição espiritual a qual se dedica. A partir de 1996 filiou-se informalmente à escola zen vietnamita - escola do Inter-ser (Tiep Hien) - liderada por Thich Nhat Hanh, cujos ditames e orientações vêm seguindo desde então. Em 2001 recebeu, em cerimônia formal ocorria durante um retido de Plena Atenção em Teresópolis e organizado pelo Centro Lótus e coordenado pelos monges Phap An e Phap Ung, da tradição Inter-ser, o Nome de Dharma Tam Huyen Van (Maravilhosa Nuvem do Coração).

.Durante mais de 20 anos têm se dedicado a coordenar pequenos grupos informais de prática e estudos da filosofia budista, tendo participado em 2005 da fundação do Colegiado Buddhista Brasileiro, organização sem fins lucrativos que visa fomentar o conhecimento e a tradição budista no Brasil.

Claudio Miklos não representa oficialmente, no Brasil, a Ordem Lam Te Tiep Hien (Escola zen vietnamita do Interser). Seus textos e argumentos não devem ser considerados, necessariamente, como opiniões tradicionais desta escola zen-budista, e nem devem ser usados como referência oficial para nenhuma instituição budista.

Aos interessados em conhecer a tradição budista liderada pelo mestre Thich Nhat Hanh, convidamos conhecer o site oficial de sua escola em http://www.plumvillage.org

Para conhecer o trabalho brasileiro do Centro Lótus de Estudos Budistas (responsável pelas iniciativas mais organizadas

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de prática na escola Tiep Hien de Thich Nhat Hanh no Brasil) liderado pela coordenadora Hildeth Farias, entrem em contato através do e-mail: [email protected]

E-mail de contato do tradutor: [email protected]

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Agradecimentos Finais Gostaria de oferecer meus profundos respeitos e

agradecimento ao incentivo e palavras de apoio dos meus companheiros fundadores do Colegiado Buddhista Brasileiro. Seu trabalho e liderança como professores de Dharma, assim como suas realizações em apoio à correta divulgação e desenvolvimento do Budista no Brasil é digno de louvor e admiração.

Professores de Dharma: Sh. Haku-Shin - (Rev. Wagner Bronzeri - Escola Jodo-Shin-

Shu - Templo Apucarana Nambei Honganji, PR) Monge Gensho (Petrúcio Chalegre – escola Soto Zen

Japonesa, SC) Mahasadhammajotikadhaja Dhanapala (Prof. Ricardo

Sasaki – fundador do Centro de Estudos Budistas Nalanda– escola Theravada, MG)

Shaku Hondaku (Prof. Maurício Ghigonetto – Escola Jodo Shinshu – Terra Pura – Dharmanet, SP)

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Sobre o Colegiado Buddhista Brasileiro Colegiado Buddhista Brasileiro, entidade sem fins lucrativos

que surge no Brasil com o objetivo maior de contribuir para a difusão, sustentação e correta orientação dos ensinos de Buddha.

Sendo uma instituição criada e sustentada no respeito e apoio a todas as escolas tradicionais budistas, sem distinção, o CBB tem por finalidade fomentar e desenvolver ações para a elevação e progresso do ensino das filosofias budistas em todas as suas manifestações legítimas.

O CBB surge sob a égide do correto esforço em prol da tolerância, paz, ética e respeito a todos os seres vivos e à Terra, sua sustentadora. Seus fundadores se comprometem profunda e honestamente a exercer a prática do Dharma, de modo a fomentar cada vez mais a Verdade, Sabedoria e Justiça entre todos os grupos, sociedades, culturas, religiões e crenças saudáveis da humanidade.

O CBB igualmente se compromete a lutar pacificamente e de forma apolítica para dirimir a crueldade, ignorância, fanatismo, discriminação e preconceitos no Brasil e no mundo, contribuindo assim para o desenvolvimento da consciência, base para toda transformação real do indivíduo e das sociedades.

O CBB está aberto à participação eventual de todos os praticantes budistas, monásticos ou leigos, de todas as escolas. É aberto igualmente à participação de todos os simpatizantes e interessados brasileiros no estudo e aprimoramento do Dharma.

Site do CBB: http://cbb.bodhimandala.com

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