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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO
GUSTAVO LEONARDO MAIA PEREIRA
O TCU e o controle das agências reguladoras de infraestrutura: controlador
ou regulador?
São Paulo
2019
GUSTAVO LEONARDO MAIA PEREIRA
O TCU e o controle das agências reguladoras de infraestrutura: controlador
ou regulador?
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Mestrado Acadêmico da Escola de Direito de São
Paulo da Fundação Getulio Vargas, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em Direito
e Desenvolvimento.
Linha de pesquisa: Instituições do Estado
Democrático de Direito e Desenvolvimento Político e
Social.
Orientador: Prof. Titular Dr. Carlos Ari Vieira
Sundfeld.
São Paulo
2019
Pereira, Gustavo Leonardo Maia.
O TCU e o controle das agências reguladoras de infraestrutura: controlador ou regulador? / Gustavo Leonardo Maia Pereira. - 2019.
194 f.
Orientador: Carlos Ari Sundfeld.
Dissertação (mestrado) - Fundação Getulio Vargas, Escola de Direito de São Paulo.
1. Agências reguladoras de atividades privadas. 2. Brasil. Tribunal de Contas da União. 3. Autonomia administrativa. 4. Controle administrativo. 5. Discricionariedade administrativa. I. Sundfeld, Carlos Ari. II. Dissertação (mestrado) - Escola de Direito de São Paulo. III. Fundação Getulio Vargas. IV. Título.
CDU 336.126.55(81)
Ficha Catalográfica elaborada por: Isabele Oliveira dos Santos Garcia CRB SP-010191/O
Biblioteca Karl A. Boedecker da Fundação Getulio Vargas - SP
GUSTAVO LEONARDO MAIA PEREIRA
O TCU e o controle das agências reguladoras de infraestrutura: controlador
ou regulador?
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Mestrado Acadêmico da Escola de Direito de São
Paulo da Fundação Getulio Vargas, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em Direito
e Desenvolvimento, com o auxílio da Bolsa Mário
Henrique Simonsen.
DATA DE APROVAÇÃO: 19/03/2019
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Titular Dr. Carlos Ari Vieira Sundfeld
(Orientador)
Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio
Vargas
Prof. Dr. André Janjácomo Rosilho
Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio
Vargas
Prof. Dr. Eduardo Ferreira Jordão
Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação
Getulio Vargas
Prof. Dr. Jacintho Arruda Câmara
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
AGRADECIMENTOS
Que aventura! Sonhei muito com tudo isso, mas viver foi realmente muito melhor.
Salve, Belchior!
E ela só foi possível, e incrível, graças ao apoio e companhia de pessoas a quem não
posso deixar de agradecer.
Em primeiro lugar, agradeço enormemente aos professores do programa de mestrado
acadêmico da FGV Direito SP. Foram generosos comigo de uma maneira que jamais
esquecerei! Além de todo o fraterno apoio, tive o incentivo institucional da bolsa de pesquisa
Mário Henrique Simonsen.
Contei com a atenciosa, paciente e dedicada orientação do professor Carlos Ari
Sundfeld, cuja jovialidade intelectual não é sequer disfarçada pelos seus cabelos brancos. Seu
entusiasmo, inteligência, ceticismo e criatividade engrenam uma comunidade acadêmica
vibrante – o Grupo Público -, formada por jovens talentosos que pensam o Direito “fora da
caixa”, à qual o professor Carlos Ari me integrou de maneira extremamente generosa. Nela,
tenho aprendido demais com craques como Juliana Palma, André Rosilho, Yasser Gabriel e
André Braga, que hoje tenho a honra de chamar de amigos.
Aos jovens da “melhor pior turma” da história do mestrado da FGV, agradeço pela
convivência na Rua Rocha. Sofremos, mas vivemos bastante! Pé na tábua!
Essa aventura toda começou com um sonho que sonhei junto com dois “amigos-irmãos”,
Júlio Borges e Danilo Miranda, que me incentivaram verdadeiramente a retomar a vida
acadêmica. Cada um acabou seguindo um caminho diferente, Danilo na PUC/SP e Júlio nos
EUA, mas acho que agora completo um ciclo que iniciamos juntos. Da mesma “turma”, Dimitri
Brandi, que me recebeu em São Paulo como família, de braços e coração abertos. Colegas de
profissão exemplares, parceiros de todas as horas, certamente eu não estaria aqui se não fosse
por eles.
Agradeço à Advocacia-Geral da União, instituição que, além de me proporcionar tantos
aprendizados e experiências, e alimentar em mim o ideal de tentar ajudar a construir um país
melhor, incentivou-me a fazer o mestrado, licenciando-me das atividades profissionais durante
o primeiro ano de curso, o que foi fundamental para que eu conseguisse acompanhar o ritmo.
Para que esse afastamento se viabilizasse institucionalmente, precisei contar com a
compreensão de alguns chefes, e aí não posso deixar de agradecer nominalmente a Maria Paula,
minha chefa na Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil, que me apoiou desde o
primeiro instante, quando nem eu mesmo acreditava que esse projeto se tornaria realidade.
Meu irmão, Zé de Bruno, a quem a minha condição de irmão mais velho só me permitia
enxergar como um menino, mas que se revelou, no momento mais difícil de nossas vidas, um
homem maduro, responsável e generoso, o que foi crucial para que eu pudesse persistir até aqui.
Minha mãe, minha grande amiga, “Maria”, com quem aprendi o valor da autonomia, da
perseverança e da amizade. “Mas é preciso ter força...é preciso ter raça...é preciso ter gana
sempre...quem traz no corpo a marca...Maria, Maria...mistura a dor e a alegria.” Te amo!
Daniela, a alegria dos meus dias, que me mostra docemente como a vida é boa e pode
ser bem mais simples! Todo o meu amor é pouco, diante de tudo o que ela é pra mim!
Minhas avós Aila e Manan, que sempre incentivaram de perto, por meio do exemplo
sobretudo, os meus estudos, de alguma forma vieram comigo até aqui, tenho certeza! Dra. Aila,
que quando entrei na faculdade me presenteou com um vade mecum dedicado “ao mais querido
dos colegas”, que guardarei sempre com carinho, certamente estaria radiante! Manan, pessoa
cuja dimensão em minha vida eu não consigo nem descrever, saberia entender, mais do que
qualquer outra pessoa, tudo o que estou sentindo agora, e sentiria junto comigo, como sempre
fez!
Já cheguei a ter a mais absoluta certeza de que não teria a menor graça fazer isso tudo
sem o olhar atento e orgulhoso do meu pai. Mas hoje sei que foi ele que me trouxe até aqui! Só
eu sei! Herdei dele três grandes paixões: pelo sertão, pelos cavalos e pelo Colégio Militar de
Fortaleza. Mas, além dessas “heranças”, que me proporcionaram um tesouro de oportunidades,
experiências e amizades, aprendi com ele o valor do estudo e do conhecimento, o que faz com
que todo o esforço tenha verdadeiro sentido.
Brasília-São Paulo-Fortaleza, fevereiro de 2019.
RESUMO
A pesquisa orienta-se pelo objetivo de buscar compreender, a partir de elementos empíricos,
como se dá a interação entre o Tribunal de Contas da União (TCU) e as agências reguladoras
de infraestrutura, bem como se o controle observa os limites de suas competências. O Brasil
adotou o modelo de agências reguladoras autônomas como arranjo institucional para viabilizar
a desestatização de atividades e serviços antes atribuídos exclusivamente ao Estado,
notadamente nos setores de infraestrutura. As características da autonomia dos órgãos
reguladores, contudo, encontram-se em constante redefinição. Decorrem, em grande medida,
não só do que consta das normas, mas também das interações entre as agências e outros órgãos
estatais e do grau de abertura da regulação à participação pública. A análise de elementos
relevantes da engrenagem institucional em que estão inseridas as agências revela que a
autonomia decisória idealizada normativamente está em certa medida desfigurada. Como órgão
de controle externo, o TCU tem exercido regulares fiscalizações sobre a regulação,
especialmente sobre os contratos de concessão e normas regulatórias. Embora tenha um
discurso de que deve respeitar a discricionariedade das agências, há indícios de que a Corte
extrapola os limites de suas competências e acaba funcionando como uma instância de revisão
regulatória. Ao fazer controle de legalidade sobre toda a atividade regulatória, e não apenas
sobre questões afetas à atividade financeira do Estado, e expedir atos de comando, o que inclui
a aplicação de sanções, baseados em parâmetros como a economicidade e a legitimidade, o
TCU contraria o arranjo de competências previsto na ordem jurídica e substitui o regulador,
derrogando, assim, o regime legal de autonomia das agências. A partir de análise empírica de
casos apreciados pelo TCU, referentes a 5 (cinco) setores de infraestrutura, foram mapeadas 8
(oito) estratégias e métodos utilizados pelo órgão de controle para interferir na regulação, o que
possibilitou que fosse confrontada a dinâmica do controle com a repartição de poderes vigente,
a fim de testar a hipótese segundo a qual na interação entre o TCU e as agências há prevalência
do controle por substituição em detrimento do controle por cooperação. O resultado desse
quadro é que o TCU, ao revisar de maneira abrangente a regulação, acaba manejando a
discricionariedade reservada ao regulador, abandonando, em certa medida, o papel de
controlador externo e assumindo a função de regulador.
PALAVRAS-CHAVE: Agências reguladoras; autonomia; mecanismos de controle; Tribunal
de Contas da União; competências; discricionariedade; substituição do regulador pelo
controlador.
ABSTRACT
The research is guided by the objective of seeking to understand, from empirical elements, how
is the interaction between the Federal Court of Accounts (FCA) and the regulatory agencies of
infrastructure, as well as if the control observes the limits of its competences. Brazil has adopted
the model of independent regulatory agencies as an institutional arrangement to make feasible
the privatization of activities and services previously attributed exclusively to the State,
especially in the infrastructure sectors. The characteristics of regulatory agency autonomy,
however, are constantly being redefined. They stem, to a large extent, not only from the rules,
but also from the interactions between agencies and other state bodies and from the degree of
openness of regulation to public participation. The analysis of relevant elements of the
institutional gear in which the agencies are inserted reveals that normatively idealized decision
autonomy is to some extent disfigured. As an external control body, the FCA has exercised
regular oversight on regulation, especially on concession contracts and regulatory standards.
Although it has a speech that must respect the discretion of the agencies, there are indications
that the Court goes beyond the limits of its powers and ends up functioning as a regulatory
review body. By making legality control over all regulatory activity, and not only on issues
related to the state's financial activity, and issuing acts of command, which includes the
application of sanctions, based on parameters such as economicity and legitimacy, the FCA
opposes the arrangement of powers provided for in the legal order and replaces the regulator,
thereby derogating from the statutory system of agency autonomy. From an empirical analysis
of cases assessed by the FCA, referring to 5 (five) infrastructure sectors, 8 (eight) strategies and
methods were mapped out by the control body to interfere in the regulation, which allowed the
control dynamics to be confronted with the current division of powers, in order to test the
hypothesis that in the interaction between the FCA and the agencies there is a prevalence of
substitution control. The result of this scenario is that the FCA, in overhauling the regulation,
ends up managing the discretion reserved to the regulator, leaving to some extent the role of
external controller and assuming the role of regulator.
KEYWORDS: Regulatory agencies; autonomy; control mechanisms; Federal Court of
Accounts; powers; discretion; replacement of the regulator by the controller.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
METODOLOGIA E CAMINHO A SER PERCORRIDO ................................................. 17
CAPÍTULO 1 – AUTONOMIA DAS AGÊNCIAS REGULADORAS NO BRASIL ...... 20
1. A ascensão do Estado Regulador no Brasil ........................................................................... 20
2. A relação entre autonomia e controle .................................................................................... 25
3. Agências reguladoras brasileiras em ação ............................................................................ 28
3.1. Modelo presidencialista de regulação ....................................................................................... 29
3.2. O recurso hierárquico impróprio e a AGU ................................................................................ 32
3.3. O contingenciamento orçamentário........................................................................................... 34
3.4. As nomeações dos dirigentes .................................................................................................... 35
3.5. Controle parlamentar ................................................................................................................. 36
3.6. Controle social e procedimentalização da regulação................................................................. 37
3.7. Balanço sobre mecanismos de controle e diálogo institucional ................................................ 41
4. A discricionariedade no Estado Regulador ........................................................................... 43
5. A segurança jurídica e os setores de infraestrutura ............................................................. 46
CAPÍTULO 2 – A ampliação do controle da Administração Pública e o Tribunal de
Contas da União ...................................................................................................................... 50
1. Considerações iniciais ............................................................................................................. 50
2. As bases teóricas da expansão do controle da Administração Pública ............................... 52
3. Instituições Superiores de Controle ....................................................................................... 56
4. O Tribunal de Contas da União ............................................................................................. 60
4.1. A evolução histórica do TCU .................................................................................................... 60
4.2. O TCU na Constituição de 1988 ............................................................................................... 63
4.3. As competências do TCU – e seus limites ................................................................................ 66
4.3.1. Auditorias operacionais e a dimensão cooperativa do controle ........................................ 72
4.4. Estrutura e organização do TCU ............................................................................................... 77
4.5. O processo no TCU ................................................................................................................... 79
5. Uma reflexão sobre a teoria das funções neutrais ................................................................ 82
6. A ampliação do controle e seus impasses e dilemas.............................................................. 85
CAPÍTULO 3 – A interação entre o TCU e as agências reguladoras de infraestrutura . 89
1. Introdução ................................................................................................................................ 89
2. Limites das competências do TCU em relação às agências ................................................. 92
3. O que diz o TCU sobre os limites de suas competências e os benefícios do controle ........ 99
3.1. O leading case - Acórdão nº 1.703/2004................................................................................. 102
4. O TCU e a segurança jurídica .............................................................................................. 107
5. O TCU como antídoto contra a captura do regulador ....................................................... 108
6. O TCU e o controle social ..................................................................................................... 110
7. A relação entre governança e controle – o argumento das capacidades institucionais ... 113
8. Standards e procedimentos para a definição da intensidade do controle ......................... 117
CAPÍTULO 4 - Análise de casos dos setores de infraestrutura e mapeamento de
estratégias de controle .......................................................................................................... 120
1. Apresentação dos casos ......................................................................................................... 120
1.1. Setor Rodoviário: caso Rodovia de Integração do Sul (RIS) .................................................. 120
1.2. Setor de petróleo: caso Saturno ............................................................................................... 128
1.3. Setor de portos ......................................................................................................................... 130
1.3.1. Caso afretamento ............................................................................................................. 130
1.3.2. Caso THC 2 ..................................................................................................................... 131
1.4. Setor aeroportuário: caso Galeão ............................................................................................ 135
1.5. Setor Elétrico: caso leilão de transmissão ............................................................................... 142
2. Mapeamento de estratégias .................................................................................................. 145
2.1 Controle prévio dos editais das concessões ............................................................................. 145
2.1.1 A sistemática do controle das concessões – estrutura e procedimento............................ 146
2.1.2 Os casos ........................................................................................................................... 149
2.2 Equiparação de recomendações a determinações ...................................................................... 154
2.3. Questionamentos sobre a motivação ........................................................................................ 158
2.4. O poder de punir ....................................................................................................................... 160
2.5. Utilização de argumentos e jurisprudência baseados na Lei nº 8.666/93 ................................. 165
2.6. Revisão de normas regulatórias ................................................................................................ 169
2.7. A adoção de medidas cautelares ............................................................................................... 172
2.8. O uso de princípios e da noção de interesse público como fundamentos decisórios ............... 175
3. Considerações finais sobre o mapeamento de estratégias.................................................. 178
CONCLUSÕES ..................................................................................................................... 180
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 188
ANEXO – Acórdãos do Plenário do TCU analisados na pesquisa .................................. 194
12
INTRODUÇÃO
É tal a complexidade das atividades
administrativas do Estado, aliás dia a dia
crescente, que o problema jurídico-político do
controle do seu exercício se apresenta como um
dos mais graves, tanto na estruturação, como na
fisiologia do Estado.
(Seabra Fagundes, 1979)
O modelo de agências reguladoras autônomas foi adotado no Brasil para lidar com o
desafio de implementar uma nova estratégia de atuação do Estado no domínio econômico, que
passaria a ser cada vez menos produtor e cada vez mais regulador1, o que significaria, em grande
medida, a contratualização de uma série de atividades públicas.
A adoção de um novo arranjo institucional impôs relevantes desafios no campo do
controle. A eficácia do novo modelo de intervenção do Estado na economia, especialmente no
que diz respeito à exploração de infraestrutura pública, depende do funcionamento de toda a
engrenagem, merecendo atenção especial as interações entre as agências reguladoras e os
mecanismos de controle.2
Na literatura estrangeira, Martin Lodge e Lindsay Stirton (2012, p. 352) destacam que
os mecanismos de controle do exercício discricionário por instituições não-majoritárias de
poderes delegados estão no centro das discussões sobre o Estado Regulador.
Mario Schapiro (2016, p. 326) aponta que os mecanismos de controle são variáveis
críticas da atuação do Estado. Sua operação contribui para um uso do poder ajustado aos valores
democráticos e republicanos, favorecendo ações responsivas. O contrário, segundo o autor,
também é verdadeiro: “quando mal calibrados, oferecem incentivos distorcidos e favorecem
escolhas equivocadas.”
Não basta, para que se compreenda adequadamente o funcionamento da regulação,
estudar abstratamente a autonomia das agências – ou seja, a análise estrita das normas que
regem sua atuação. É fundamental estudar a qualidade dessa autonomia, contrastando o arranjo
1 Recomendação de 31 de maio de 1996 do Conselho de Reforma do Estado: “O projeto de reforma do Estado
visa substituir o antigo estatismo pelo moderno Estado regulador. O aparato regulatório existente é enorme,
obsoleto, burocratizante e, em essência, intervencionista, sendo necessário primeiro desregular para, a seguir,
regular por novos critérios e formatos mais democráticos, menos intervencionistas e burocratizados”. 2 De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), “o modo como as
agências são estruturadas, dirigidas, controladas, dispõem de recursos e prestam contas - incluindo a natureza das
relações entre o tomador de decisão regulatória, atores políticos, o legislador, a administração executiva, os
processos judiciais e as entidades reguladas - constrói a confiança no regulador e é crucial para a efetividade da
regulação.”
13
formal com o contexto político e com a prática institucional – o que exige a compreensão da
interação entre agências e demais instituições do Estado.
Dessa forma, considerados os variados mecanismos de controle a que estão sujeitas as
agências reguladoras de infraestrutura no Brasil, tem ganhado enorme importância no cenário
político-institucional brasileiro a fiscalização exercida pelo Tribunal de Contas da União
(TCU). Daí a impactante, e talvez até exagerada, afirmação de Mendonça (2017), no sentido de
que “a Corte de Contas é o maior regulador brasileiro”, que denota a proeminência que o TCU
vem assumindo na conformação das políticas públicas, inclusive regulatórias, fazendo com que
a interação entre as agências e o TCU mereça atenciosa observação e reflexão.
A partir da década de 90, a reorientação estatal fez com que certas atividades
econômicas, de elevada relevância e interesse sociais, cuja titularidade ou dever de executar
eram cometidos com exclusividade ao Poder Público, ou fossem privatizadas, ou passassem a
ser desempenhadas mediante parcerias (contratos) com agentes privados, sujeitos a intensa
supervisão e regulação3.
A criação de entidades reguladoras com grau reforçado de autonomia emerge, assim,
como a contraparte institucional da reorientação da atuação estatal, espécie de fiadora do
compromisso regulatório, a fim de assegurar segurança jurídica e atratividade para os
investimentos privados, e, ao mesmo tempo, democratizar os canais de circulação de poder,
mediante transparência e participação públicas.
Vale destacar que a regulação por meio de entidades autônomas, no Brasil, assim como
em outras partes do mundo, alcança tanto os setores em que há algum tipo de reserva estatal –
prestação de serviços públicos e exploração de monopólios estatais – como atividades
eminentemente privadas, as chamadas atividades econômicas em sentido estrito. Interessa-nos
aqui especialmente as agências encarregadas do primeiro tipo de atividades, essencialmente
ligadas à infraestrutura pública.
Ocorre que as agências se posicionam em uma complexa engrenagem institucional, cujo
funcionamento é que determina, efetivamente, o alcance e as reais características da sua
autonomia, que se encontra sob permanente e intensa tensão provocada pelos movimentos de
expansão, retração e interação dos mecanismos de controle incidentes sobre a regulação.
3 Não faltam autores, como, por exemplo, Carlos Ari Sundfeld (2000), Odete Medauar (2017) e Alexandre Aragão
(2013), para advertir acerca do equívoco existente na associação entre criação de agências reguladoras e
absenteísmo estatal, uma vez que o que houve foi uma mudança de estratégia, que implicou, em certa medida, em
aumento da regulação.
14
Aceita-se, assim, no presente trabalho, a provocação de Pereira Neto; Adami; Lancieri
(2014, p. 185), no sentido de que cabe à academia dar sua contribuição ao aperfeiçoamento da
regulação no Brasil por meio do aprofundamento da análise dinâmica do ambiente institucional
no qual se inserem os órgãos reguladores.
E nessa engrenagem tem relevância especial a nossa Corte de Contas. O TCU, embora
exista desde 18934, tem na Constituição de 1988 um marco de desenvolvimento institucional,
sobretudo em virtude da ampliação de suas competências na direção do controle de performance
da Administração, e não mais apenas do controle de conformidade.
Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Câmara (2013) enfatizam o protagonismo que o TCU
vem assumindo, cada vez ampliando mais sua atuação, procurando não só participar das
discussões sobre as variadas questões de que se ocupa a Administração, como influir de modo
efetivo na alteração de comportamentos dos agentes estatais, na adoção de políticas públicas.
Os autores destacam, nessa linha:
O crescente interesse da Corte no funcionamento da Administração, nas suas
várias estruturas, inclusive das agências reguladoras, buscando controlá-las
tanto pelo ângulo financeiro quanto pelo estritamente administrativo, até
mesmo em matéria regulatória.
Parece, assim, especialmente interessante compreender como se dá, à luz do arranjo de
competências posto no Direito vigente, a interação entre as agências reguladoras de
infraestrutura, entidades dotadas de autonomia reforçada, que, apesar de organicamente
integrarem o Executivo, não são a ele hierarquicamente subordinadas, e o ramo controlador
independente do Estado.
Dessa forma, no plano teórico, o tema a ser explorado no trabalho coloca em evidência
uma questão relevante: a autonomia das agências afeta de alguma forma o controle? Torna, em
alguma medida, peculiar o controle sobre elas exercido?
Era comum que as posições doutrinárias se situassem nos extremos: autores defendendo
que não há nada que diferencie o controle a ser exercido sobre as agências daquele que incide
sobre os demais órgãos e entidades da Administração Pública (DI PIETRO, 2002) e outros
entendendo ser bastante restritos os limites e possibilidades dos órgãos de controle externo em
relação às atividades finalísticas das agências (BARROSO, 2000).
4 O TCU foi idealizado por Rui Barbosa e criado, em 1890, por meio do Decreto nº 966-A, de 07 de novembro de
1890, mas só foi efetivamente instalado em 1893, após a edição do Decreto Provisório nº 1.166, de 12 de dezembro
de 1892, que disciplinou a organização do tribunal, fruto de iniciativa do Ministro da Fazenda da época, Innocêncio
Serzedello Corrêa.
15
Atualmente, já há um certo consenso em torno da ideia de que há sim um espaço
relevante de interação entre o TCU e as agências, mas que este seria, em alguma medida,
moldado, diferenciado, pelas peculiaridades evolvidas na regulação e pelo regime de autonomia
das entidades reguladoras, além de delimitado pelas normas de competência do órgão
controlador.
É certo que, vencida a etapa de reformar os marcos regulatórios e efetivamente criar,
instalar e estruturar as agências, há ainda um grande caminho a ser percorrido no sentido de
ampliar a capacidade regulatória das agências reguladoras no Brasil, ainda muito desafiada por
peculiaridades de nosso sistema político, pela baixa mobilização da sociedade civil, pelas
profundas desigualdades sociais e pela tradição patrimonialista da Administração Pública
brasileira. O equilíbrio entre autonomia e controle é também um fator crucial para o incremento
da capacidade regulatória.
A Corte de Contas vê a si própria como um importante ator no aprimoramento da
regulação no Brasil (MONTEIRO; ROSILHO, 2017, p. 52). O Min. Benjamin Zymler, do TCU,
já chegou a enfatizar que “a Corte é o órgão com melhores condições potenciais para
desenvolver uma visão sistêmica do modelo regulatório brasileiro” (ZYMLER, 2009, p. 240).
Tem crescido nos últimos tempos, contudo, o número de autores preocupados com o
avanço do TCU sobre as competências regulatórias, o que representaria uma substituição
indevida do regulador pelo controlador, gerando insegurança jurídica, ao contrário do que
costumam afirmar os integrantes do Tribunal.
Vitor Schirato (2013), por exemplo, afirma que distorções no sistema de controle, como
a substituição do regulador pelo controlador, têm contribuído para a “deterioração do sistema
regulatório” (SCHIRATO, 2017).
O próprio ministro Benjamin Zymler (2009, p. 239) já alertou para o risco de que a
Corte de Contas, no controle exercido sobre as concessões, contribua para o aumento da
incerteza jurisdicional5:
(...) se esta Corte de Contas invadir o âmbito de competência das agências
reguladoras, ainda que movida pela busca do interesse público, o TCU
contribuirá para o incremento da “incerteza jurisdicional”, que gera o receio
de que os contratos não serão cumpridos na forma em que foram celebrados
e implica o incremento do custo indireto de transação dos investimentos
internacionais, (...)
5 Expressão cunhada pelos economistas Pérsio Arida, Edmar Bacha e André Lara Resende, visando a explicitar o
custo de transação associado às incertezas regulatórias dos investimentos realizados no Brasil (In: Crédito, Juros
e Jurisdição. Conjecturas sobre o Caso Brasileiro. 2003.)
16
Floriano Marques Neto e Juliana Palma (2017) entendem haver um deslocamento de
competência da esfera administrativa para a esfera controladora. Segundo os autores,
recomendações são entendidas como determinações6, pois o TCU confunde os regimes,
dizendo acreditar que a sua interferência acarretará a melhoria da regulação.
Ao mesmo tempo, a literatura especializada tem chamado atenção para a importância
da dimensão dialógica e colaborativa do controle, enfatizando o seu viés cooperativo, que
deveria prevalecer na fiscalização operacional (de performance), inclusive como forma de
reforçar a aprendizagem interinstitucional (MENDONÇA, 2012) e evitar a sobrecarga de
controle (accountability overload)7.
Dessa forma, a presente pesquisa orienta-se justamente pela tentativa de compreender
como tem funcionado o controle do TCU sobre a atividade das agências reguladoras de
infraestrutura, a partir da leitura do arranjo formal de competências e da observação de como
tem o Tribunal se organizado e estruturado, e efetivamente atuado, a fim de verificar
concretamente o papel que o órgão de controle tem desempenhado em relação ao
funcionamento do modelo regulatório por meio de entidades autônomas.
É possível afirmar que tem havido um deslocamento de competências das agências
reguladoras para o TCU? Tem o TCU, em alguma medida, substituído o regulador?
A hipótese do presente trabalho é a de que há uma predominância do controle por
substituição em detrimento do controle por cooperação, a partir da utilização inadequada – que
extrapola os limites de competências estipulados pelo Direito - dos parâmetros e técnicas de
controle pelo TCU. Haveria, assim, verdadeira derrogação do regime de autonomia conferido
por lei às agências reguladoras pelo controle praticado pelo TCU.
Assumindo, assim, o controle como uma variável crítica da atuação do Estado, o
funcionamento do novo padrão de intervenção estatal, considerado central na estratégia de
desenvolvimento adotada pelo país, depende da calibragem do controle.
6 As recomendações, em tese, não possuem cunho mandatório, deveriam funcionar como uma espécie de sugestão
do TCU, a título de colaboração com a gestão pública. As determinações, por sua vez, servem para o TCU veicular
ordens, em caso de constatação de ilegalidades. 7 Segundo Marianna Willeman (2017, p. 293): “Assiste-se, atualmente, um fenômeno que pode ser caracterizado
como accountability overload, ou seja, à sobrecarga e à superposição de instâncias de controle sobre a ação
administrativa, que, não raro, chega a comprometer a própria eficiência da gestão pública em decorrência de seus
excessos e de suas patologias. O culto à cultura do controle não pode ignorar suas externalidades negativas e seus
efeitos indesejados A tomada de decisão pública submete-se a tantas instâncias de controle hoje em dia que o
administrador público chega a ser desencorajado a pensar em soluções criativas e heterodoxas para os problemas
enfrentados, tantos são os riscos que acaba por assumir. Ações colaborativas devem ser fomentadas, promovendo-
se o aprendizado interinstitucional, para evitar a accountability overload.”
17
Dessa maneira, o estudo do aperfeiçoamento do modelo de regulação da infraestrutura,
com enfoque crítico em relação aos mecanismos de controle, vistos de maneira dinâmica e
contextual, dialoga diretamente com a compreensão da importância de que o Brasil detenha um
modelo jurídico-institucional apropriado às suas necessidades e especificidades, própria das
formulações do “Direito e Desenvolvimento”.
METODOLOGIA E CAMINHO A SER PERCORRIDO
O tema em estudo é estruturado em torno de alguns consensos teóricos e retóricos. Não
há controvérsia quanto à necessidade de que a regulação por meio de entidades autônomas seja
submetida a um sistema de controle efetivo. Da mesma forma, é uníssono o discurso no sentido
de que o TCU não pode substituir o regulador, devendo fazer um controle de segunda ordem8,
sem interferir no jogo regulatório. A questão é que a teoria e o discurso, em um tema tão sensível
e complexo, precisam ser testados na prática, daí a relevância da pesquisa empírica sobre a
prática e a dinâmica do controle.
O trabalho terá, assim, uma dimensão descritiva, em que serão analisadas as
competências e características dos órgãos reguladores e do TCU, e uma dimensão empírica, na
qual se buscará descrever como as competências controladoras têm sido exercidas na prática,
especificamente no que diz respeito à fiscalização de licitações e contratos de concessão e à
supervisão de normas regulatórias.
Serão descritas, em um primeiro momento, as circunstâncias de criação, as
características essenciais e os objetivos fundamentais do modelo de regulação de infraestrutura
por meio de órgãos autônomos no Brasil, bem como a engrenagem em que inseridas essas novas
entidades, com ênfase, sob uma perspectiva funcionalista, em seus mecanismos de diálogo
institucional e controle.
Em seguida, serão analisados os atos normativos, desde a Constituição até instruções
normativas do TCU, levando em conta a dimensão histórico-evolutiva do órgão no Brasil,
referentes ao conjunto de competências da Corte de Contas.
A partir daí a pesquisa ocupar-se-á específica e empiricamente da observação do
controle exercido pelo TCU sobre a atuação das agências reguladoras de infraestrutura.
Buscaremos confrontar, tendo o arranjo de competências previsto na ordem jurídica vigente
8 No Acórdão nº 1.703/2004, considerado um leading case na matéria, o TCU disse que o controle realizado pela
Corte sobre as agências é de segunda ordem, “sendo seu objeto a atuação das agências reguladoras como agentes
estabilizadores e mediadores do jogo regulatório, e não o jogo regulatório em si.”
18
como pando de fundo, o discurso do TCU e as formulações teóricas sobre os limites da interação
entre o órgão e as agências com a prática do controle.
Além do meu interesse particular pelo estudo do funcionamento das agências
reguladoras de infraestrutura, a delimitação da pesquisa justifica-se também pelo fato de a
regulação de infraestrutura se dar, em grande medida, por meio de instrumentos contratuais, e
não apenas normativos, o que acaba ampliando consideravelmente o espaço de interação entre
as agências e o TCU, em comparação com o controle exercido sobre as entidades que regulam
atividades econômicas em geral.
Considerando a multiplicidade de setores e a grande quantidade de fiscalizações
realizadas pelo TCU, haveria inúmeros recortes possíveis para a presente pesquisa, a fim de que
se pudesse colher uma amostra consistente e representativa da interação entre as agências e o
órgão de controle externo.
Optei por apresentar uma análise de casos múltiplos, sendo 2 (dois) referentes ao setor
rodoviário; 1 (um) referente a aeroportos; 2 (dois) do setor portuário; 1 (um) do setor elétrico;
1 (um) referente ao setor de petróleo.
Farei uma análise detalhada de cada um dos casos, acreditando, dessa forma, conseguir
ilustrar de maneira satisfatória a dinâmica do controle realizado pelo TCU sobre as agências
reguladoras de infraestrutura. Priorizo, assim, uma observação mais minuciosa de um número
menor de casos, em detrimento de um olhar superficial sobre uma quantidade mais expressiva
de acórdãos.
Acredito que o fato de a análise ser multisetorial e envolver casos relevantes para os
respectivos setores, seja pela importância do tema para o setor específico ou por serem
referenciados pelo próprio TCU como leading cases, assegurará a consistência e
representatividade da amostra.
Além dos casos que serão apresentados, alguns outros acórdãos serão referidos e, em
alguma medida analisados, ao longo do trabalho, inclusive o Acórdão nº 240/2015, referente à
auditoria operacional em que a Corte de Contas avaliou o nível de governança regulatória das
agências reguladoras dos setores de infraestrutura. Serão colocados em evidência, ainda,
acórdãos indicados pelo próprio TCU como representativos dos debates havidos no Tribunal
sobre os limites e possibilidades do controle realizado pelo TCU em relação às agências
reguladoras9.
9 Tomou-se como referência aqui dois conjuntos de acórdãos: um apresentado por dirigente do TCU em evento
ocorrido no Tribunal – “Diálogo Público: Atuação do TCU nas Desestatizações e Regulação dos Serviços
Públicos”, para “esclarecimento sobre a atuação do TCU nas desestatizações do governo federal e na regulação
19
Ao todo, portanto, foram manuseados e analisados, em maior ou menor profundidade,
e serão expressamente mencionados no presente trabalho, um total de 31 acórdãos do TCU10,
para que se possa tentar compreender, com base empírica, algumas características dessa
interação entre as agências reguladoras de infraestrutura e a Corte de Contas.
A partir da análise dos casos, sem qualquer pretensão de avaliar a qualidade das
intervenções do TCU, ou mesmo afirmar quais seriam as causas da substituição do regulador
pelo controlador, foi possível mapear algumas estratégias que são utilizadas pelo TCU, por
meio do manuseio de técnicas e ferramentas de controle, para interferir na regulação.
Com isso, será possível testar a hipótese segundo a qual o TCU tem utilizado de forma
desequilibrada e inadequada, à luz das normas de competência vigentes, as ferramentas de
fiscalização e privilegiado o controle por substituição em detrimento do controle por
cooperação.
dos serviços públicos”, realizado em Brasília, em 15/10/2018, integralmente gravado e disponível no canal do
TCU no Youtube; e outro referido por representante do MP no Acórdão 2.121/2017. 10 Os acórdãos estão listados no Anexo.
20
CAPÍTULO 1 – AUTONOMIA DAS AGÊNCIAS REGULADORAS NO BRASIL
1. A ascensão do Estado Regulador no Brasil
Os desafios da regulação em um país como o Brasil não são triviais - seja em virtude
das características do nosso sistema presidencialista11, seja em virtude da tradição
patrimonialista e clientelista da administração pública brasileira, pressionada por interesses de
grupos influentes e bem organizados, ou mesmo da dificuldade em compatibilizar a eficiência
econômica e a equidade em setores tão sensíveis para a sociedade, marcada por tantas
disparidades socioeconômicas (COUTINHO, 2014).
Na década de 90, pressionado por uma grave crise econômico-gerencial do Estado, o
Brasil passou a vivenciar um progressivo processo de desestatização, por meio do qual gestão
e investimentos relacionados a várias atividades antes monopolizadas pelo Estado, notadamente
no setor de infraestrutura, passaram a ser transferidos ou compartilhados com a iniciativa
privada.
Ocorreram reformas constitucionais e legais, para quebrar certos monopólios, para
reformar (parcialmente) o Estado, o que incluiu a privatização de várias empresas estatais, e
houve uma significativa proliferação de normas destinadas a disciplinar a contratualização das
relações entre Estado e particulares.
O modelo de agências reguladoras independentes12 despontou, então, sob os influxos da
globalização e da pressão internacional em torno de um conjunto de medidas que se
convencionou chamar de Consenso de Washington13, como o arranjo ideal para implementar o
novo padrão de intervenção estatal – assentado em negócios público-privados e regulação.
Sérgio Guerra (2017, p. 144) explica que:
Naquela fase, a segregação de competências entre a Administração Pública
direta e a indireta para a regulação autônoma de utilidades públicas
estratégicas, apresentou-se como sendo fundamental para: (i) criar um
ambiente propício à segurança jurídica dos contratos com o Estado e atração
de capital privado (notadamente estrangeiro); e (ii) descentralizar a
governança estatal sobre temas complexos e preponderantemente técnicos,
emprestando-lhes certa previsibilidade e tornando-as menos suscetíveis aos
11 Ver Abranches, Sérgio Henrique Hudson de. Presidencialismo de Coalizão: o dilema institucional brasileiro.
Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro. Vol. 31, n.1, 1988, p. 5 a 34. 12 Carlos Ari Sundfeld (2000, p. 24) alerta que independência é uma expressão exagerada, tratando-se de
“afirmação retórica com o objetivo de acentuar o desejo de que a agência seja autônoma em relação ao Poder
Executivo, que atue de maneira imparcial e não flutue sua orientação de acordo com as oscilações que, por força
até do sistema democrático, são próprias desse poder”. 13 Ver explicação contextual sobre a ascensão do Estado Regulador em países em desenvolvimento em DUBASH,
Navroz K.; MORGAN, Brownen. Understanting the rise of the regulatory state of the South. Regulation &
Governance (2012) 6, 261-281.
21
embates e interesses político/partidários típicos das rotinas do Congresso
Nacional.
A noção de compromisso regulatório surge como peça central na compreensão desse
processo, já que a justificativa para a implementação desse novo modelo é, em grande medida,
justamente a busca por um sistema que garanta que as intervenções regulatórias sejam
orientadas por critérios técnicos, e não pautadas por interesses políticos ou ideológicos, e que
tenham estabilidade, não ficando a política regulatória sujeita a alterações bruscas em caso de
mudança de governo ou da coalizão partidária.
Fica evidente, aqui, uma concepção ressignificada de segurança jurídica, da essência
do Estado Regulador, que consistiria não em afastar as intervenções, mas em torná-las mais
previsíveis (RODRIGUEZ, 2011).
De acordo com a teoria do principal-agente, a delegação para agências reguladoras é
uma solução para o problema da credibilidade do compromisso regulatório. O agente garante a
terceiros que o principal, de quem recebeu o mandato regulatório, não irá modificar suas
promessas ex post. A criação de entidades com autonomia reforçada fornece, em tese, um nível
maior de segurança para investidores, aumentando, assim, o nível de investimento (PRADO,
2016, p. 77).
Para que isso ocorra, segundo Cassese (2006, p. 151), “não basta a separação entre
regulador e operador. É também necessária a separação entre regulador e governo, cujo fim é
evitar a politização das decisões.”
Idealmente, a regulação levada a efeito pelas agências deve ser capaz de produzir um
ambiente equilibrado, em que não haja favorecimento de uns em detrimento de outros. Em
teoria, a inovação institucional – entidades autônomas - visa a proteger os processos
governamentais contra as distorções oriundas do facciosismo14, o que revela a dimensão
madisoniana15 do arranjo.
Ocorre que a teoria da captura já havia abalado significativamente a crença na
independência decisória, fomentando ricos debates em torno do desenho institucional dos
órgãos reguladores e de seu grau de autonomia, bem como de seus procedimentos decisórios
(MATTOS, 2017, p. 176).
14 De acordo com Olson, “os países são bem ou mal sucedidos conforme sejam mais ou menos dominados por
grupos de interesse. Países muito dominados têm seus recursos drenados por esses grupos. Instituições que
propiciem um cenário favorável para a existência de múltiplos investidores e alta competitividade eleitoral são
decisivas para o desenvolvimento”. 15 Para Madison, em The Federalist n. 10, “o maior perigo para um sistema político reside nas facções – grupos
privados bem organizados que usurpam o poder governamental para fazer valer seus interesses, contrários ao
público em geral”
22
Cass Sunstein (2004, p. 152) descreve o modelo consolidado nos EUA após o New Deal
e defende o movimento de expansão dos mecanismos de controle pelos três poderes, ocorrido
especialmente na década de 80:
A autonomia das agências, em suma, tem servido não como garantia da
administração neutra, mas como fonte de vulnerabilidade para pressões de
grupos bem organizados. O controle por parte dos três ramos constitucionais
do governo é um corretivo promissor.
De acordo com a descrição de Sunstein (2004), nos EUA, com a expansão das agências
independentes após o New Deal, quase como um quarto poder da república, com funções quase-
legislativas, quase-executivas e quase-jurisdicionais, houve uma reação ao déficit de
legitimação democrática do insulamento burocrático. Em um primeiro momento, por meio da
expansão dos mecanismos jurídicos (judiciais) de controle, e, num segundo momento, da
institucionalização e proteção de mecanismos de participação pública, do qual o Federal
Administrative Procedural Act (APA) pode ser considerado um marco. Por fim, já a partir do
governo Reagan (anos 80), houve um claro movimento de expansão do controle das agências –
pelo Executivo (através do Office of Management and Budget - OMB) e pelo Legislativo.
Enquanto nos Estados Unidos a preocupação girou essencialmente em torno da
vulnerabilidade da regulação aos interesses específicos de agentes de mercado que o
insulamento burocrático gerava, no Brasil o facciosismo – patrimonialismo e corporativismo -
é uma característica enraizada do sistema político e da Administração Pública. Aqui, portanto,
o risco de captura é sobretudo interno ao próprio Estado, dominado por forças políticas que se
associam a agentes econômicos a fim de garantir o favorecimento de seus interesses
particulares.
Na estratégia de desenvolvimento que vigorava no Brasil até o final da década de 80, o
Estado tinha ampla participação no setor produtivo, por meio de empresas estatais, cuja gestão
era muito influenciada por interesses políticos de curto prazo, fazendo com que as empresas
fossem utilizadas como instrumentos de política econômica anti-inflacionária
(contingenciamento de preços e tarifas – as chamadas tarifas demagógicas) e de políticas
redistributivas frequentemente ineficientes (COUTINHO, 2014, p. 71).
Dessa forma, a Reforma do Estado dos anos 90, além de superar uma grave crise fiscal,
por meio de privatizações de empresas e concessão de utilidades públicas, pretendia,
idealmente, dissolver os anéis burocráticos16, promovendo a passagem de uma administração
16 Expressão cunhada por Fernando Henrique Cardoso para explicar a forma de organização de grupos de interesse
no interior da burocracia estatal brasileira, por meio da qual grupos privilegiados tinham acesso aos canais de
circulação do poder e definição das políticas públicas.
23
burocrática para uma administração gerencial e democratizando os acessos aos canais de
circulação do poder.
Não houve, contudo, um esforço maior em torno da inserção das características
essenciais do novo arranjo regulatório no desenho constitucional17, tendo sido a autonomia das
agências delineada essencialmente com base em leis setoriais, que preveem mecanismos
destinados a conferir autonomia ao órgão, procuram demarcar os seus limites e estabelecem as
formas de interação com os outros ramos do Estado.
Conforme explicação de Sundfeld (2000, p. 19), as várias agências nem seguiram um
modelo comum, nem têm competências idênticas. Mesmo assim há semelhanças gerais,
conforme o autor:
São entidades com tarefas tipicamente de Estado: editam normas, fiscalizam,
aplicam sanções, resolvem disputas entre empresas, decidem sobre
reclamações de consumidores. Gozam de autonomia em relação ao
Executivo: seus dirigentes têm mandato e, por isso, não podem ser demitidos
livremente pelo Presidente ou Governador; suas decisões não podem ser
alteradas pela Administração Central, e assim por diante. Sua tarefa?
Ordenar setores básicos da infraestrutura econômica.
A linha central do desenho institucional das agências criadas no Brasil, inspirado no
modelo norte-americano e já influenciado pelos debates ocorridos nos EUA nas décadas de 70
e 80, é a autonomia reforçada, assegurada por meio de decisões colegiadas, especialização
técnica, estabilidade dos dirigentes, certo grau de independência financeira, participação
pública nos processos decisórios, e sujeita a variados mecanismos de controle.
No caso brasileiro, em que parte central da estratégia consiste em delegar para a
iniciativa privada a exploração e a gestão de serviços públicos, tem sido função das agências
dos setores de infraestrutura, além de produzir normas setoriais, de acordo com os limites da
habilitação conferida por lei, estruturar, implementar e fiscalizar as relações contratuais entre o
Estado e a iniciativa privada. A regulação administrativa, portanto, dá-se tanto através da
produção normativa, como por meio dos editais de licitação e contratos de parcerias público-
privadas (em sentido amplo) e da gestão desses contratos (SUNDFELD, 2014).
As agências brasileiras interagiram, nesses 20 anos, em uma engrenagem político-
institucional renovada, fruto da recente redemocratização, em que o reconhecimento da
diversidade social e dos diferentes interesses ganha outro status jurídico e político, porém ainda
17 A Constituição de 1988 teve sim a pretensão de reordenar a participação do Estado na economia, de revitalizar
o papel da sociedade civil, de fortalecer mecanismos de accountability, - mas não de instituir uma rede de agências
com autonomia em relação à Presidência da República. A mudança do modelo regulatório ocorreu em um segundo
momento, já no meio da década de 90, e, embora tenha contado com mudanças constitucionais pontuais, não foi
feita dentro da Constituição.
24
marcada por uma proeminência do Poder Executivo18, tendo em vista o poder de influência do
Presidente da República sobre a agenda legislativa, a centralização das decisões orçamentárias,
a fragmentação partidária e a ainda forte presença estatal em alguns setores19.
Ao mesmo tempo, consolidaram-se em meio a um movimento de fortalecimento dos
mecanismos e órgãos de controle de políticas públicas e de probidade, seja por meio de ações
civis públicas movidas por associações ou pelo Ministério Público, ações de improbidade, ou
de cada vez mais intensas fiscalizações do Tribunal de Contas da União (TCU).
A autonomia real das agências brasileiras, portanto, é conformada por inúmeros
mecanismos de controle, formais e informais, e interação institucionais, que têm sido cada vez
mais estudados, haja vista a preocupação em compreender o funcionamento contextual da
regulação no Brasil.
O TCU, em sede de auditoria operacional, cujos resultados foram veiculados por meio
do Acórdão nº 240/201520, fez uma análise do padrão de governança das agências reguladoras
de infraestrutura21, com o propósito de investigar “se existem condições favoráveis para que o
processo decisório das agências seja transparente e produza decisões técnicas livres de
ingerência”22. A conclusão foi no sentido de que “não há bases mínimas para a tomada de
decisões estritamente técnicas, transparentes e livre de ingerências.”23 Exploraremos logo
adiante alguns dos pontos levantados pelo TCU.
18 Há estudos que indicam que a Constituição brasileira de 1988 foi uma das que mais concedeu poderes
legislativos ao Presidente, entre mais de 40 constituições de várias partes do mundo (Prado, 2016, p. 80). 19 A despeito da onda de privatizações, ainda há forte presença estatal em vários setores, como o aeroportuário
(Infraero), o elétrico (Eletrobrás e concessionárias estaduais), o petrolífero (Petrobrás), por exemplo. 20 Em um levantamento multisetorial, com uma análise geral sobre o nível de governança, o TCU veiculou dados
e opiniões específicas sobre cada uma das agências, revelando que, embora o diagnóstico global seja negativo, há
diferenças expressivas entre as agências. 21 Foram auditadas pelo TCU: ANAC, ANEEL, ANP, ANATEL, ANTAQ e ANTT. 22 Nas análises anteriores, o TCU já havia identificado as seguintes falhas: má fiscalização de contratos; baixo
percentual de recebimento de multas; falta de transparência no processo decisório; excessiva demora na indicação
e nomeação de dirigentes; baixo controle social; falta de institucionalização de análise de impacto regulatório
(AIR); forte contingenciamento orçamentário; outras. 23 Foram, essencialmente, 6 (seis) os aspectos analisados pela Corte de Contas: nomeação dos dirigentes; política
de conflito de interesses; autonomia financeira; transparência; utilização de análise de impacto regulatório; e
estratégia organizacional (gestão de riscos). A tabela abaixo, elaborada pelo TCU e constante do acórdão, resume
alguns dos achados da auditoria, servindo como uma espécie de mapa da governança regulatória no país:
25
Há estudos e elaborações doutrinárias que mostram como que a politização das
nomeações dos dirigentes das agências, a precária processualização24 da regulação e o
desequilíbrio do controle incidente sobre a regulação, têm provocado a deterioração do sistema
regulatório brasileiro (SCHIRATO, 2013).
A seguir, buscaremos descrever, com base em formulações doutrinárias orientadas pela
preocupação de compreender o funcionamento das agências em contexto, pesquisas empíricas
já realizadas, e dados levantados pelo TCU, alguns dos principais mecanismos que influenciam
o funcionamento das agências reguladoras de infraestrutura e conformam sua autonomia.
2. A relação entre autonomia e controle
A questão central do presente trabalho, referente aos limites e possibilidades da
interação entre as agências reguladoras autônomas e o órgão de controle externo, no caso o
TCU, relaciona-se ao que Majone (1997, p. 79) considera o principal problema normativo do
Estado Regulador: “fazer com que a independência e a responsabilização democrática das
agências tornem-se valores complementares que reforcem um ao outro, e não valores
antitéticos.”
Conforme Colin Scott (2014, p. 481), “o estabelecimento de reguladores independentes
impõe um desafio para a governança democrática em geral e para a public accountability em
particular.” Refletindo sobre a responsabilização (accountability25) no Estado Regulador, o
autor (2017, p. 86) apresenta o dilema típico da relação entre autonomia e controle:
Os debates sobre responsabilização têm de enfrentar o desconfortável dilema
sobre como conceder suficiente autonomia a esses atores de modo a habilitá-
Embora o TCU não tenha dito isso expressamente, da análise da tabela extrai-se facilmente uma espécie de ranking
da governança regulatória, de acordo com a “fotografia” daquele momento, na qual ANTT e ANTAQ figuram nas
piores colocações, denotando o maior grau de deterioração de sua capacidade regulatória, segundo a análise do
TCU. 24 Baixa participação social e mecanismos de análise de impacto regulatório ainda muito incipientes. 25 Pinho e Sacramento (2009), no trabalho “Accountability: já podemos traduzi-la para o português?”, buscam uma
síntese para o conceito: “accountability encerra a responsabilidade, a obrigação e a responsabilização de quem
ocupa um cargo em prestar contas segundo os parâmetros da lei, estando envolvida a possibilidade de ônus, o que
seria a pena para o não cumprimento dessa diretiva.”
26
los a desempenhar suas tarefas, assegurando, ao mesmo tempo, um grau
adequado de controle.
Na literatura nacional, Carlos Ari Sundfeld (2000, p. 24) aponta a complexidade em
compatibilizar a autonomia com um regime adequado de controles:
O desafio, aqui, como em qualquer processo de autonomização, é o de
construir um sistema de controles e influências que assegurem uma atuação
democrática, atenta a interesses gerais e à ordem jurídica.
Interessante que se compreenda que as agências reguladoras são, elas próprias,
instâncias de controle de setores sensíveis26. Conforme Floriano Marques Neto (2000, p. 75):
Aumenta a necessidade regulatória porque, deixando o Estado de ser ele
próprio provedor do bem ou serviço de relevância social, tem ele que passar
a exercer algum tipo de controle sobre essa atividade, sob pena de estar
descurando de controlar a produção de uma utilidade dotada de
essencialidade e relevância.”
Tipicamente, as agências posicionam-se, então, como instâncias controladoras, a quem
cabe mediar e equilibrar relações complexas, multipolares, que envolvem, no mínimo três polos
de interesses: os provedores dos serviços e utilidades públicas; os usuários, efetivos e
potenciais; e o governo. Marques Neto (2000, 82) descreve o arranjo como o mais adequado
para mediar os interesses, em comparação com os espaços tradicionais de Poder:
As autoridades reguladoras autônomas se caracterizam como espaços
privilegiados de mediação e interlocução com as corporações
contemporâneas, assim entendidos os grupos de interesse cada vez mais
numerosos, complexos, articulados e relevantes no cenário nacional e
internacional. Nesse contexto, revelam-se mais adequados como espaços de
mediação de conflitos que os espaços tradicionais do Parlamento, do
Judiciário e mesmo dos organismos centrais do Executivo.
Fundamental, então, que haja autonomia em relação aos três polos, evitando, assim, a
captura da regulação por qualquer um deles.
A falta de accountability eleitoral dos reguladores sempre foi motivo de enorme
preocupação e fundamento das críticas que apontam o suposto déficit democrático das agências
reguladoras.
Além disso, a superação da crença na neutralidade dos reguladores, fez com que a
atenção se voltasse para saber como limitar a discricionariedade por meio de constrangimentos
substanciais e procedimentais (LODGE; STIRTON, 2012, p. 353).
26 Marques Neto (2000, p. 84) utiliza a síntese do sociólogo Philip Selznik para descrever a regulação enquanto
um mecanismo de controle setorial: “regulação deve entender-se por um controle prolongado e localizado,
exercitado por uma agência pública, sobre uma atividade à qual a comunidade atribui relevância social”.
27
Por isso, a doutrina aponta a necessidade de que as entidades reguladoras se submetam
a um regime peculiar de controle. É consensual a noção de que a autonomia dessas entidades
não as imuniza ao controle. Defende-se, porém, que a atividade se sujeite a controles
apropriados e específicos.
No Brasil, Floriano Marques Neto (2004, p. 219), compreendendo a regulação
justamente a partir da perspectiva de equilíbrio de múltiplos interesses internos ao sistema
regulado, entende que a atividade regulatória demanda um arranjo de controle diferenciado.
Giandomenico Majone (1997) defende que a conciliação entre independência
(autonomia) e responsabilização é possível mais por meio de uma combinação de mecanismos
de controle, do que por intermédio de uma supervisão exercida a partir de qualquer ponto do
sistema político:
Tentei mostrar que a independência e a responsabilização podem ser
conciliadas por meio de uma combinação de mecanismos de controle, mais
que por meio de uma supervisão exercida a partir de qualquer ponto do
sistema político, quais sejam objetivos estatutários claros e limitados para
proporcionar normas de desempenho que não sejam ambíguas; exigências de
fundamentação de decisões e exigências em termos de transparência para
facilitar o exame judicial e a participação pública; disposições relativas ao
devido processo legal para assegurar a justiça entre os inevitáveis
ganhadores e perdedores de decisões reguladoras; profissionalismo para
resistir à interferência externa e para reduzir o risco do uso arbitrário da
discricionariedade que dispõem as agências.
E aí, entende que, quando um sistema desses, de controles múltiplos, funciona como
deve, ninguém controla uma agência, mas a agência está “sob controle” (MAJONE, 1997).
A literatura especializada defende, portanto, que o controle se dê a partir de uma
sofisticada combinação de mecanismos e ferramentas, e não por meio de uma instância revisora
ou supervisora. Reconhece Marques Neto (2004, p. 200), contudo, que a doutrina tem
enfrentado alguma dificuldade para demarcar com precisão os mecanismos e princípios que
devem ser manejados no sentido de controlar a atuação do Estado enquanto regulador da
atividade econômica.
Para Marcelo Bermeguy (2008, p. 104), em publicação do TCU:
A operação de mecanismos de controle sobre os reguladores é fator mitigador
das diversas imperfeições do ambiente regulatório. Além disso, o controle
externo colabora para a equalização da percepção dos interesses de
diferentes pólos de interesse por parte dos reguladores.
De fato, os mecanismos de controle devem atuar para equilibrar os interesses em jogo,
fazendo com que o regime de autonomia realmente produza equidistância. Mas a questão
revela-se especialmente complexa porque a multiplicidade de interesses envolvida na regulação
28
faz com que, da mesma forma, sejam necessários mecanismos múltiplos de controle, que, por
sua vez, também são orientados por interesses (MARQUES NETO, 2004).
Na doutrina estrangeira, Colin Scott (2017, p. 108), ao tratar das ferramentas de controle
da regulação, enfatiza que “esses mecanismos estão em tensão um em relação ao outro no
sentido de que são movidos por diferentes preocupações, poderes, procedimentos e culturas, o
que resulta em agendas e capacidades concorrentes.”
Daí, então, a necessidade de que haja equilíbrio entre os mecanismos de controle, a fim
de haja também equilíbrio entre os interesses. Conforme Lodge e Stirton (2012, p. 364), “o
incremento de uma visão de accountability e o consequente fortalecimento de seus dispositivos
institucionais enfraquece os demais.”
Assim, no modelo de regulação por meio de entidades autônomas, deseja-se que a
discricionariedade seja exercida por entidades com grau de autonomia reforçada em relação aos
ciclos político-partidários, de acordo com critérios técnicos, observados requisitos
procedimentais rigorosos e sujeitos a um arranjo específico e equilibrado de controle, que
assegure abertura à participação social.
Em uma dimensão liberal, vale enfatizar, de defesa em face de possíveis arbitrariedades
e violações a direitos, individuais ou coletivos, a regulação por meio de entidades autônomas
sujeita-se a ampla contestabilidade perante o Judiciário. É o que a literatura chama de legalismo
adversarial (SCHAPIRO, 2018).
Está, assim, na base do conceito da autonomia conferida aos reguladores no Brasil a
ideia de que as decisões setoriais, na exata medida da habilitação conferida pelo Poder
Legislativo, de acordo com os limites materiais e procedimentais estabelecidos pela lei e pela
Constituição, cuja observância é sujeita a ampla contestabilidade perante o Poder Judiciário,
sejam tomadas pelas agências em última instância, ou seja, não possam ser revisadas por outras
esferas estatais.
A necessidade, contudo, de assegurar que a atuação dos reguladores seja orientada pelo
interesse geral, e não por interesses específicos de qualquer um dos polos envolvidos nas
complexas relações setoriais, impõe desafios relevantes quanto à escolha e estruturação de
mecanismos adequados de controle.
3. Agências reguladoras brasileiras em ação
As agências reguladoras já estão estruturadas e em funcionamento no Brasil há cerca de
20 anos e têm sido objeto de bastante análise e debate doutrinário, notadamente no que tange à
29
sua compatibilidade com os princípios da separação de poderes e da democracia. Cresce,
contudo, o interesse pela compreensão dinâmica e contextual dos mecanismos de controle
jurídico, político e social incidentes sobre essas entidades, como forma de compreender os reais
e concretos delineamentos daquele que é o atributo qualificador e diferenciador das agências –
a autonomia.
A literatura estrangeira, como se vê em Robert Baldwin; Martin Cave e Martin Lodge
(2012), tem enfatizado que as instituições formais são apenas um fator de influência para a
determinação do grau de autonomia das agências, o que tem deslocado a atenção dos estudiosos
para o fortalecimento da capacidade e governança dos órgãos reguladores.
Parece fundamental, assim, para o estudo do controle exercido pelo TCU, objetivo
central do trabalho, que se tenha uma visão sobre os outros mecanismos de controle, formais e
informais, incidentes sobre a regulação, para que se compreenda a dimensão real da autonomia
das agências no Brasil e não se tenha uma visão idealizada ou descontextualizada do nosso
sistema regulatório.
No Brasil, Carlos Ari Sundfeld, ainda no ano 2000, alertava para o risco de idealizações
de modelos abstratos e para a necessidade de compreensão das complexidades da realidade:
É inevitável reconhecer que a defesa apaixonada de um modelo de agências
independentes pode carregar, no mínimo, uma forte carga de ingenuidade.
Protótipos abstratos costumam gerar monstrengos no mundo real, cujas
complexidades com frequência se encarregam de distorcer, mesmo sem negá-
los explicitamente, todos os belos princípios de que se partiu. Sonhar com
autoridades equilibradas, imparciais, tecnicamente preparadas,
democráticas, comprometidas com os interesses gerais, respeitadoras do
Direito, etc, em nada garante que a realidade vá se ajustar aos sonhos. Cada
instituição comporta um lento e dolorido processo de criação e depuração.
Nessa linha, analisarei como os poderes Executivo e Legislativo têm se relacionado,
controlado ou interferido na regulação. Refletirei, ainda, sobre o controle social e participação
pública nas decisões e atividades das agências reguladoras, tendo como referência os insumos
teóricos que indicam o potencial democrático dessas entidades.
3.1. Modelo presidencialista de regulação
Existem consistentes formulações, no âmbito acadêmico, que apontam a influência que
o Poder Executivo central – Presidência da República e ministérios - tem exercido sobre a
atividade regulatória, delegada para as agências reguladoras para ser desempenhada, em tese,
com grau reforçado de autonomia.
30
Prado (2016) entende as relações das agências com o sistema político no Brasil por meio
da teoria do domínio presidencial, diferente, portanto, da teoria que, segundo a autora, explica
a relação nos EUA – domínio congressual. Elaborada com base na ideia de principal-agente,
no caso brasileiro o principal seria o Poder Executivo, enquanto nos Estados Unidos seria o
Congresso, de acordo com as diferenças expressivas na divisão de poderes entre o Presidente e
o Parlamento nos dois países.
Mattos (2017), por sua vez, argumenta que, sobretudo nos governos dos Presidentes
Lula e Dilma, teria havido uma forte inflexão, por razões ideológicas, no modelo de regulação
brasileiro, evidenciada pelo deslocamento do locus decisório - das agências para os gabinetes
dos ministérios e da Casa Civil da Presidência da República -, o que caracterizaria o que chamou
de “modelo presidencialista de regulação”.
De fato, foram várias as intervenções regulatórias realizadas pelo Poder Executivo, em
diferentes setores, às vezes por medida provisória, submetida a rito abreviado de deliberação
no Congresso Nacional e mecanismos fracos de controle, ora por decreto - ato regulamentar
normalmente elaborado com baixa transparência e diálogo27 -, ou mesmo por portarias
ministeriais, que se justificariam, em tese, pela competência para definição de políticas públicas
a serem observadas pelas agências reguladoras.
Sem desprezar a influência do viés ideológico dos governantes, tal qual apontado por
Mattos (2017), parece importante chamar atenção, no entanto, para as características peculiares
do arranjo político-institucional brasileiro, em especial do sistema presidencialista aqui
implantado - que tem muito mais em comum com o regime presidencialista adotado em países
da América Latina do que com o arquétipo norte-americano (CHEIBUB; ELKINS;
GINSBURG, 2011) -, que influenciam o fenômeno em questão. Há, pois, elementos centrais da
engrenagem institucional e da cultura política brasileiras que determinam a caracterização desse
“modelo presidencialista de regulação”, fazendo com que o fator ideológico seja insuficiente
para explicar o seu funcionamento nesses moldes.
A singular combinação existente no Brasil entre um presidencialismo forte,
representação parlamentar em bases proporcionais, o que induz ao multipartidarismo, eleição
com lista aberta e financiamento empresarial, distanciou muito o funcionamento do sistema
político brasileiro do arranjo estadounidense, em que o Presidente tem menos poderes
27 Raramente a Casa Civil da Presidência da República faz consultas ou audiências públicas sobre matérias a serem
veiculadas por decretos. Quando editados, sequer são publicadas as razões que levaram os órgãos do governo a
propor o teor daquela medida ao Presidente da República.
31
legislativos, as eleições parlamentares são majoritárias e há apenas dois partidos competitivos
eleitoralmente.
Escrevendo alguns meses antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, Sérgio
Abranches (1988) enfatizou a heterogeneidade da sociedade brasileira e os seus impactos sobre
o funcionamento do sistema político, procurando mostrar, assim, como a combinação de
representação parlamentar proporcional, multipartidarismo e concentração de poderes no
presidente, em um país marcado por clivagens sociais e regionais, resultariam no singular
“presidencialismo de coalizão”.
Promulgada a Constituição, de fato reunindo os elementos institucionais que Abranches
apontava como geradores de impasses e crises, foram previstos a separação de poderes; a
representação proporcional com lista aberta, sem cláusula de barreira; uma Câmara Alta que
garantiu (sobre) representação aos Estados menos populosos; e presidente forte (com poderes
e iniciativa legislativos, veto, controle sobre a execução orçamentária e nomeação de muitos
cargos). E, além disso, não houve nenhuma restrição explícita ao financiamento eleitoral por
empresas.
O presidencialismo levaria, ainda, segundo Bruce Ackerman (2014), à politização da
burocracia – o presidente e seus ministros competem com os parlamentares de diversos
segmentos pelo controle da burocracia. Tendo em vista a necessidade do governo de formar
coalizões, os burocratas buscam apoio em ambos os ramos, muitas vezes recebendo respaldo
de partido diferente daquele do presidente ou mesmo do ministro a que está subordinado.
Parece intuitivo, assim, que a gestão da infraestrutura, ante sua importância geopolítica
e, portanto, seu caráter estratégico de ponto de vista político, além dos vultosos valores de
investimentos e receitas envolvidos, tenha sempre estado – e assim continue - no centro do raio
de interesses e negociações políticas.
É evidente que o novo paradigma de intervenção do Estado na economia – parcerias
com a iniciativa privada e regulação -, assim como o arranjo institucional criado para lhe dar
suporte – agências reguladoras -, não têm o condão de acabar, de uma hora para outra, com a
tradição patrimonialista e clientelista da Administração Pública e das relações entre políticos,
burocratas e empresários. Se, antes, lideranças partidárias - regionais e nacionais - interferiam
nas nomeações, gestão, investimentos e contratações de empresas estatais -, agora querem
interferir também na regulação, sendo, assim, natural a sua associação com os grupos
empresariais atuantes no setor.
Diante de todo esse quadro, o grande desafio parece ser fortalecer a capacidade
institucional do Estado para lidar com essa realidade. De forma ideal, a regulação deveria ser
32
caracterizada pela cessão da capacidade decisória sobre aspectos técnicos em sistemas
complexos para entidades descentralizadas e especializadas em troca da busca por credibilidade
e estabilidade, demonstrando-se, com isso, que a regulação estatal deixa de ser assunto de
Governo para ser assunto de Estado (GUERRA, 2017, p. 133-134).
O que se vê, contudo, é um sistema que induz à centralização das decisões nas instâncias
políticas, incentivada, de um lado, pelo interesse do governo em compor coalizões e angariar
apoio político, e, de outro, pelo interesse dos agentes econômicos em busca de obter a regulação
mais favorável aos seus interesses.
3.2. O recurso hierárquico impróprio e a AGU
A ausência de subordinação hierárquica das agências ao Executivo não as exime do
dever de observar e cumprir as políticas públicas setoriais estipuladas pelas instâncias políticas
competentes – Congresso Nacional e Poder Executivo central28. É da natureza do arranjo
regulatório. Afinal, as agências são autônomas, e não soberanas, nem independentes.
Binembojm (2006, p. 291) chama atenção para a importância da conexão entre as ações
implementadas pelas agências e um planejamento macroeconômico global do governo, de
modo a evitar a chamada “visão de túnel” em determinados mercados regulados. Não preconiza,
contudo, a submissão de toda e qualquer proposta ao Poder Executivo, nem uma análise de
custo-benefício à moda norte-americana. Enfatiza que “seria de bom alvitre que a lei
distribuísse claramente as competências entre governo e agências e dispusesse sobre as formas
de adequação entre elas”.
É preciso ter em vista que, de uma maneira geral, não há uma distribuição muito clara
das competências entre ministérios e agências reguladoras, assim como não existe uma
distinção auto-evidente entre o que são políticas públicas e o que é regulação técnica. Como
observa Alexandre Aragão (2012, p. 391),
Integram o próprio conceito de política pública uma imensa fluidez e
constante adaptação às mudanças da realidade socioeconômica subjacente,
fazendo com que política pública e a implementação da política pública
funcionem de maneira circular e retro-operativa.
28 É o que explica Aragão (2012, p. 390): “Uma característica homogênea dos controles das agências reguladoras
pela Administração Central, prevista nas suas respectivas leis instituidoras, é a submissão à política pública traçada
pela Administração central, seja pelo próprio Presidente da República, pelo Ministro de Estado ao qual estão
vinculadas, ou por Conselho setorial integrado total ou majoritariamente por agentes hierarquicamente
subordinados ao Chefe do Poder Executivo.”
33
Essa relação não é despida de complexidade, sobretudo quando se pensa nas formas de
operacionalizar, concretamente, o controle de eventual inobservância pelas agências das
políticas públicas setoriais.
É nesse contexto que emerge a discussão referente ao Parecer AC 51/2006, da
Advocacia-Geral da União (AGU), aprovado pelo Presidente da República e, portanto,
vinculante para toda a administração pública federal29, que reconheceu a possibilidade de os
ministérios receberem recursos hierárquicos impróprios interpostos em face de decisões das
agências que extrapolem suas competências legais ou desobedeçam às políticas públicas
setoriais.
Na prática, acaba restando à AGU competência para dirimir eventual conflito entre
ministério e agência, por meio de análise casuística, já que, nem a legislação nem referido
parecer normativo trazem parâmetros mínimos para que se compreenda onde termina a diretriz
de política pública, e, portanto, a competência do ministério, e onde começa a implementação
da política por meio da regulação, e, portanto, a atribuição da agência.
Porém, embora a AGU tenha sido idealizada pelo poder constituinte como uma
instituição apartada dos três poderes30, na prática a instituição tem funcionado com estrita
vinculação ao Poder Executivo e sujeita a pressões político-partidárias, seja em virtude da
possibilidade de o Advogado-Geral da União ser exonerado ad nutum pelo Presidente da
República, seja em virtude da subordinação administrativa de suas unidades aos Ministros de
Estado31 32.
O que parece é que, se, de um lado, a observância das políticas públicas governamentais
pelas agências é essencial para que as entidades não acabem se tornando entidades soberanas e
desconectadas dos demais eixos de ação do Estado, de outro, na prática pode ser utilizada como
pretexto para intervenções pontuais do governo sobre a regulação, que é justamente o que se
pretende evitar por meio da autonomia decisória conferida às agências.
29 Por força do § 1º do art. 40 da LC 73/93. 30 A AGU é prevista no art. 131 da Constituição, no Capítulo IV – Das Funções Essenciais à Justiça – ao lado do
Ministério Público, da Defensoria Pública e da Advocacia, como órgão competente para fazer o assessoramento
jurídico do Poder Executivo e para representar judicial e extrajudicialmente a União (os três poderes, portanto). 31 Art. 11 da Lei Complementar nº 73/93. 32 A ADI n. 4.297, em trâmite no STF, questiona a constitucionalidade da subordinação das unidades da AGU aos
dirigentes da Administração Pública, sob o argumento de que a subordinação deveria ser exclusiva ao Advogado-
Geral da União.
34
3.3. O contingenciamento orçamentário
Diferentemente do que ocorre nos EUA, onde o poder do Presidente para cancelar ou
atrasar alocação de recursos orçamentários atribuídos pelo Congresso às agências é sujeito a
controle parlamentar, no Brasil o Chefe do Poder Executivo tem elevado poder de ingerência
sobre o montante de recursos de que as agências reguladoras efetivamente dispõem.
Além de serem as agências vinculadas, no orçamento, ao respectivo ministério
supervisor, o Presidente da República detém o poder de iniciativa da lei orçamentária; dispõe
da prerrogativa de veto; e pode limitar a execução orçamentária, ou seja, o empenho de
despesas, por meio de decreto, o que é conhecido no jargão do direito financeiro como
contingenciamento orçamentário.
Há estudos que apontam para a utilização do contingenciamento orçamentário33 como
mecanismo poderoso de redução da autonomia das agências (PALMA; SALAMA, 2016). No
mesmo sentido, Mariana Prado; Mario Schapiro e Diogo Coutinho (2016) revelam dados
segundo os quais, em algumas agências, como a ANTAQ, a limitação de execução orçamentária
chega a 41%.
Quanto ao tema, o TCU, por ocasião de auditoria operacional realizada nas agências de
infraestrutura34, diagnosticou que:
a) as agências se submetem aos ditames gerais do processo orçamentário; o
contingenciamento orçamentário é a praxe; b) não existem mecanismos
especiais que as diferenciem de outras unidades orçamentárias; c) em geral,
não existe a autossuficiência, que é a capacidade de suas próprias receitas
bancarem suas despesas, e, quando há, os recursos são retidos pelo Executivo
para alavancagem do superávit primário; e d) não existem mecanismos
formais que garantam estabilidade dos recursos destinados a elas.
Recomendou, então, à Casa Civil “a realização de estudos com vistas a alterar as regras
orçamentárias no sentido de distinguir as agências reguladoras das demais autarquias no trato
orçamentário, dotando-as de real autonomia financeira”. Não se tem notícia, contudo, da adoção
de nenhuma medida para alteração do quadro.
Como se vê, na prática, as agências reguladoras não dispõem de efetiva autonomia
orçamentária, já que decisões fundamentais sobre a dotação e execução dos recursos são
tomadas pela administração central. Às agências só resta a tradicional barganha junto aos órgãos
responsáveis – Casa Civil, Ministério do Planejamento e Ministério da Fazenda.
33 Vale ressaltar que essas medidas alcançam inclusive as agências consideradas “superavitárias”, que são aquelas
cujo montante arrecadado por meio da imposição de multas aos agentes regulados é superior às suas despesas. 34 Acórdão nº 240/2015 – Plenário.
35
3.4. As nomeações dos dirigentes
Os dirigentes das agências são nomeados pelo Presidente da República, mediante
sabatina e aprovação pelo Senado Federal, para exercer um mandato, durante o qual não podem
ser exonerados ad nutum. Em teoria, essa dinâmica constitui elemento essencial da noção de
autonomia das agências. Na prática, contudo, deparamo-nos com alguns problemas e
distorções.
Na mesma auditoria operacional acima referida, o TCU fez uma associação direta entre
o (alto) grau de vacância dos cargos de direção das agências e o (baixo) nível de autonomia e
governança das agências35.
O que o TCU diagnosticou foram longos períodos de vacância nos cargos de direção
das agências. Em 2015, cinco das dez agências reguladoras federais funcionavam com diretores
interinos, cargos vagos ou presidentes improvisados. O TCU chegou a diagnosticar, em
auditoria realizada em 2011, que “as ausências de ocupação de vagas nos Conselhos e Diretorias
das agências auditadas chegavam a impossibilitar a tomada de decisão, considerando os
quóruns mínimos necessários para deliberação das matérias”.
Em vista disso, recomendou a Corte de Contas que a Casa Civil da Presidência da
República adotasse as medidas necessárias para a regulamentação do art. 10 da Lei n.
9.986/2000, segundo o qual o regulamento de cada agência deve disciplinar a substituição dos
dirigentes em seus impedimentos ou afastamentos, bem como no período de vacância36.
A academia também tem apontado a fragilização da autonomia das agências que esse
(des) arranjo provoca. Juliana Palma e Bruno Salama (2016, p. 8-9) mostram que a demora no
preenchimento dos cargos demora de 2 meses a 1 ano37, e chamam a atenção para o caso da
ANTT, que chegou a ficar 5 meses paralisada por falta de quórum deliberativo. Carlos Ari
Sundfeld (2016) vai direto ao ponto: “a realidade da política brasileira deteriorou as agências”.
O autor sugere, então, que seja editado decreto regulamentando o processo de indicação dos
35 Segundo o TCU: “As agências com maiores percentuais de vacância em suas Diretorias e Conselhos são as de
fraco desempenho nas dimensões analisadas. Em situação oposta, as agências menos afetadas por vácuos em seus
colegiados são as que atendem aos requisitos mínimos de transparência do processo decisório, possuem uma
estratégia organizacional instituída ou estão em estágio avançado de implementação e tomaram providências no
sentido de se capacitarem para implementar AIR [Análise de Impacto Regulatório] em seus processos decisórios. 36 Foram editados, então, os Decretos n. 7.703 e 7.863, ambos de 2012, referentes a ANTT e ANTAQ, que viviam
situações críticas de falta de quórum, estabelecendo que, durante o período de vacância, o ministro de Estado da
pasta respectiva pode designar servidores efetivos do quadro da agência para exercer interinamente a função, sem
sabatina e sem mandato, portanto. Resultado: conforme identificado pelo TCU na auditoria de 2015, os interinos
permanecem por longos e indefinidos períodos nos cargos, sem qualquer estabilidade. Outras agências, como ANP,
ANEEL e ANAC sequer possuem regras para substituição durante as vacâncias. 37 Pesquisa referente ao período compreendido entre 2006 e 2016.
36
dirigentes, com estipulação de prazos e impondo que os processos de substituição por término
de mandato sejam iniciados com antecedência em relação ao termo final.
De fato, é intuitiva a fragilização decorrente das vacâncias prolongadas e da nomeação
de interinos, seja em virtude da sobrecarga ou mesmo da paralisia que as vacâncias podem
gerar, seja em razão da falta de independência que um interino, interessado em ser efetivado,
tende a apresentar em relação às instâncias políticas responsáveis por efetivá-lo e eventualmente
interessadas em influenciar a regulação.
O Projeto de Lei nº 6.621/2016 (conhecido como “PL das Agências Reguladoras”)38
procura lidar com o problema, ao pretender introduzir mudanças na Lei n. 9.986/200039, para,
além de prever requisitos mínimos de capacidade técnica dos dirigentes, estipular prazos para
o preenchimento dos cargos e a instituição de uma lista tríplice. De acordo com o projeto, os
mandatos passariam a ser de 5 anos, em todas as agências, vedada a recondução.
Deve-se destacar, ainda, quanto à questão, que o Senado Federal tem a importante
função de sabatinar e aprovar, ou não, os nomes indicados pelo Presidente da República, um
mecanismo típico do sistema de freios e contrapesos, que visa, em tese, justamente a garantir a
autonomia das agências.
Ocorre que, na prática, a Casa Legislativa não tem sido especialmente criteriosa nessa
função, o que se infere a partir do número muito reduzido de agentes que são sabatinados em
algum grau de detalhe e reprovados pelos senadores (PEREIRA NETO; ADAMI; LANCIERI,
2014, p. 160).
O que se vê, no final das contas, é que, além das vacâncias prolongadas, os cargos,
quando preenchidos, são ocupados por pessoas indicadas por critérios políticos, e não
necessariamente técnicos e curriculares. Em levantamento de 201840, constatou-se que, dos 40
cargos de diretoria, 32 estão preenchidas por pessoas ligadas a partidos políticos.
3.5. Controle parlamentar
Deve-se considerar, ainda, que, antes mesmo de emergir, no plano normativo, a
competência do Poder Executivo para dar as diretrizes de política pública, cabe ao Poder
Legislativo estabelecer os standards dentro dos quais deve a regulação se conformar,
38 O projeto de lei, cuja tramitação se iniciou no Senado Federal (PLS nº 52/2013), foi aprovado em 05/12/2018
pela Câmara dos Deputados, com alterações no texto aprovado pelo Senado, para onde retornou para nova
apreciação. 39 Lei que “dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras e dá outras providências.” 40 Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/nomes-indicados-por-partidos-politicos-sao-maioria-nas-
agencias-reguladoras-22909012
37
possuindo, em tese, ainda, o poder de veto legislativo, previsto genericamente no art. 49, V, da
Constituição Federal, com base no qual pode sustar atos do Poder Executivo que exorbitem do
poder regulamentar.
Na prática, porém, no que diz respeito às agências, o instrumento não tem recebido um
uso sistemático, e sim pontual, quando, em assuntos de maior repercussão midiática, o
Congresso quer marcar posição em sentido contrário, e não necessariamente por identificar
exorbitância41.
O certo é que, no Brasil, diferentemente dos EUA, a intensidade da accountability
horizontal das agências diretamente em relação ao Congresso Nacional é muito baixa, bastando
ver que, atualmente, apenas a ANATEL é obrigada por lei a enviar relatórios anuais ao
Parlamento.
Conforme explica Maria Rita Loureiro (2018), se o Poder Legislativo já é “fraco” na
sua função primordial de elaboração de leis, é ainda mais débil na sua função “secundária” de
fiscalização. O Congresso faz controle político-partidário do Executivo e não propriamente um
controle da burocracia, destaca a autora.
O PL das Agências, já mencionado, pretende estender a obrigação acima referida a todas
as entidades reguladoras (§2º do art. 15) e obrigar o dirigente máximo de cada agência a
comparecer, anualmente, perante o Senado Federal para prestar contas do desempenho da
entidade respectiva.
3.6. Controle social e procedimentalização da regulação
Nos debates sobre regulação, não se pode perder de vista que um dos diferenciais do
modelo institucional de regulação implantado no Brasil, já sob a influência das críticas e
elaborações desenvolvidas nos EUA nas décadas de 70 e 80, é a ampliação da permeabilidade
da Administração à participação dos setores da sociedade afetados ou interessados na regulação.
Daí, então, a ênfase dada por Paulo Mattos (2017, p. 160) ao tema:
Na análise das transformações ocorridas no funcionamento da burocracia
estatal brasileira para a regulação de mercados pós-reformas da década de
1990, a principal mudança que pudemos identificar foi a introdução de
mecanismos de participação pública institucionalizados no controle do poder
discricionário que o burocrata tem ao formular normas.
No plano teórico, a regulação administrativa desponta como uma “nova” categoria de
escolha pela Administração Pública, sendo a manifestação estatal que mais se aproxima de um
41 Ver em: https://jota.info/colunas/supra/congresso-x-agencias-limites-para-os-outros-19122016
38
modelo ideal para equilibrar subsistemas complexos, mediando e ponderando os diversos
interesses ambivalentes. Sempre com uma visão prospectiva e sem pender para qualquer um
dos lados (GUERRA, 2016, p. 101).
Se a emergência desse novo arranjo institucional – entidades reguladoras com
autonomia reforçada - revela, em alguma medida, descrença no princípio majoritário, e, ao
mesmo tempo, baixa incidência do mecanismo tradicional de accountability vertical – eleições
-, não significa, de forma alguma, desprezo pelo valor democrático.
Pelo contrário. Conceitualmente, é da essência do Estado Regulador e dessa nova
estrutura montada para viabilizar a oferta de serviços de alta relevância social, dar voz à
sociedade – regulados e usuários. Daí o especial interesse em torno de outros mecanismos de
accountability vertical, que não as eleições, e a atenção dada por estudiosos ao potencial
democrático desse novo modelo (MATTOS, 2017).
Cardoso (2006, p. 17), comentando a reforma do Estado dos anos 90 levada a efeito
durante o seu governo, deixa clara a dimensão do que se pretendia com o novo arranjo:
Agora, o que se requer é algo muito mais profundo: um aparelho do
Estado que, além de eficiente, esteja orientado por valores gerados
pela própria sociedade. Um aparelho de Estado capaz de
comunicar-se com o público de forma desimpedida. Essa passagem
é um dos grandes desafios do mundo contemporâneo.
De forma geral, as leis de criação das agências brasileiras, em sintonia com a Lei do
Processo Administrativo (Lei n. 9.784/99), trouxeram disposições que obrigam os entes à
realização de audiências e consultas públicas antes da elaboração ou alteração de normas42,
justamente com a finalidade de ampliar a participação pública na regulação.
Embora o avanço seja notável, essa obrigação tem evoluído de forma assimétrica, já que
cada agência tem propiciado maior ou menor participação, em conformidade com atos internos
infralegais ou outras normas de aplicação setorial.
Atualmente, os editais de licitação de parcerias dos diversos setores também são
submetidos a audiência e/ou consulta públicas, havendo, ainda, alguma divergência e
resistência em relação a aditivos de prorrogação4344.
42 De uma forma geral, as leis setoriais veiculam a obrigação de a agência a realizar audiência ou consulta pública
antes da edição de atos normativos. 43 Veja-se, por exemplo, o caso recente da prorrogação de contrato de concessão de trecho da BR 040 (Nova Subida
da Serra de Petrópolis), em que a ANTT entendeu que não estava obrigada a consultar a sociedade e o TCU
determinou a anulação da cláusula de prorrogação, dentre outros motivos, por falta de audiência pública. 44 A recente Lei nº 13.448/2017, contudo, que estabelece diretrizes para prorrogação antecipada e relicitação de
parcerias dos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário, prevê a obrigatoriedade de realização de consulta
pública nessas hipóteses específicas – prorrogação antecipada e relicitação.
39
Mas a participação não depende apenas da existência de procedimentos
institucionalizados. Depende da mobilização e organização da sociedade civil e da capacidade
de obter e compreender informações sobre os assuntos a serem deliberados.
Nem todos os cidadãos têm as mesmas condições de participação, e, embora isso seja
tomado como um fato inerente a sociedades capitalistas complexas, é ainda mais evidente em
um país marcado pela desmobilização da sociedade civil, pela má distribuição da informação e
do conhecimento e pela elevada desigualdade socioeconômica (BINEMBOJM, 2008, p. 303).
Sobretudo em países em desenvolvimento, são muito evidentes as desiguais condições
de participação dos diversos segmentos interessados ou afetados por uma regulação. Há estudos
que indicam que, no Brasil, as participações em consultas e audiências públicas realizadas pelas
agências reguladoras dos setores de infraestrutura, por exemplo, são amplamente dominadas
pelas empresas, havendo baixíssima participação dos consumidores/usuários e da academia.
Nesse sentido o argumento de Juliana Palma (2015), segundo o qual a participação
pública no processo decisório da Administração Pública é caracterizada pelo
neocorporativismo, uma vez que as empresas reguladas ocupam posição central e utilizam o
espaço para fazer prevalecer os seus interesses.
Palma (2015) pontua, ainda, que, no caso brasileiro, além das desigualdades e
assimetrias, a baixa participação da sociedade em geral é, em grande medida, determinada por
um alto grau de desconfiança em relação à Administração Pública, como um reflexo dos
“traumas da ditadura”. Dessa forma, as associações representativas de consumidores, por
exemplo, tendem a preferir defender suas posições e interesses perante o Judiciário a participar
do processo decisório junto à Administração.
Crescem, assim, o interesse e preocupação em torno da efetiva ampliação e
aperfeiçoamento das condições de participação pública e controle social45, como mecanismo de
legitimação e fortalecimento da autonomia decisória das agências reguladoras.
Na visão de Mattos (2017, p. 198), levando em conta que a ação de grupos de interesse
é um dado da realidade, e, portanto, pressuposta, o aperfeiçoamento das condições de
45 É nesse sentido a Recomendação n. 2 do Conselho sobre Política Regulatória e Governança da OCDE:
“Respeitar os princípios de um governo aberto, incluindo transparência e participação no processo regulatório para
garantir que a regulação sirva ao interesse público e para que seja informado das necessidades legítimas dos
interessados e das partes afetadas pela regulação. Isto inclui a oferta de canais efetivos (incluindo online), para que
o público possa contribuir para o processo de preparação de propostas regulatórias e para a qualidade da análise
técnica. Os governos devem assegurar que regulações sejam compreensíveis e claras e que as partes possam
facilmente compreender seus direitos e obrigações.”
40
participação é determinante para a legitimação do conteúdo da regulação, o que o leva a
argumentar nos seguintes termos:
A garantia de que interesses privados dos grupos mais privilegiados não se
sobreponham ao interesse de grupos menos privilegiados na sociedade civil
está exatamente no aperfeiçoamento e no controle, por meio do Direito, dos
mecanismos de participação pública que possibilitam que as partes afetadas
registrem seus argumentos nos processos decisórios sobre o conteúdo da
regulação.
Com base em uma concepção procedimental – habermasiana - de democracia, Mattos
(2017) defende enfaticamente a expansão de mecanismos deliberativos de accountability
vertical, que seriam os instrumentos de participação e controle não limitados a processos
eleitorais.
É a partir dessa perspectiva que Mattos (2017, p. 202) defende o deslocamento da
avaliação de legitimidade da regulação com base na eficiência (ex post) para a legitimação a
partir da deliberação e da participação (ex ante).
Não sem problematizar em torno do risco de menosprezo de questões substantivas, bem
como da assimetria de informações e conhecimento, Julia Black (2006) enfatiza a função
deliberativa da procedimentalização da regulação, ressalvando, contudo, que a
procedimentalização e a deliberação devem ser considerados o ponto de partida, e não o ponto
de chegada.
A procedimentalização é coerente com a dimensão multipolar das relações em questão,
em sintonia com os novos paradigmas do Direito Administrativo e com as necessidades e
desafios contemporâneos. É fundamental para a constituição de um ambiente deliberativo –
esfera pública – onde devem ser expostos e interagir as necessidades, as alternativas e os
interesses envolvidos.
Nesse contexto, emerge o interesse e a preocupação em torno da consolidação da Análise
de Impacto Regulatório (AIR), como ferramenta destinada a qualificar o processo decisório
estatal.
Concebida inicialmente como um mecanismo de aferição da eficiência econômica,
diretamente associada à relação entre custos e benefícios, portanto, e, em um primeiro
momento, vista até como uma espécie de “freio” à regulação, pode-se dizer que a compreensão
da ferramenta evoluiu no sentido de tornar-se um instrumento capaz de auxiliar o regulador,
com a participação dos interessados, a encontrar e a justificar a adequação da regulação, ou
seja, como um esforço pragmático para garantir que a regulação responda adequadamente – a
41
melhor alternativa dentre as disponíveis - aos problemas que efetivamente importam
(SUNSTEIN, 2001).
A adoção da AIR já é fortemente recomendada pela OCDE ao Brasil há algum tempo,
tendo as agências reguladoras, incialmente a partir de uma iniciativa da administração central
(PRO-REG46), adotado, cada uma a seu modo e com base em regramentos internos próprios,
procedimentos incipientes de análise de impacto regulatório.
A MP nº 727, que criou, no primeiro dia do Governo Temer, ainda interino, o Programa
de Parcerias e Investimentos (PPI), estipulava a obrigação de realização de análise de impacto
regulatório pelos órgãos e entidades públicas envolvidos nos empreendimentos do programa1.
Porém, quando de sua conversão em lei (Lei nº 13.334/2016) pelo Congresso Nacional, o
dispositivo foi suprimido.
O PL das agências consubstancia um esforço relevante no sentido de aperfeiçoar a
accountability vertical dos órgãos reguladores, procurando lidar, pelo menos em parte47, com
as questões tratadas neste tópico, seja por meio da estruturação da AIR (arts. 4º, 5º e 6º); da
obrigatoriedade de que as reuniões de diretoria sejam públicas e gravadas em meio eletrônico,
bem como tenham as pautas e atas publicizadas nos prazos especificados (art. 8º); do
detalhamento do procedimento de consulta pública (art. 9º); e da estruturação de ouvidorias
(arts. 24 e 25).
Há ainda, portanto, no Brasil, a necessidade de se avançar na direção do
aperfeiçoamento dos mecanismos de controle e participação social, com os olhos voltados para
a necessidade de que todos os segmentos compreendam o conteúdo da regulação, sejam
efetivamente ouvidos e seus interesses sejam considerados no processo decisório.
3.7. Balanço sobre mecanismos de controle e diálogo institucional
Conceitualmente, já não havia grandes dúvidas quanto ao caráter limitado da autonomia
das agências, pois, do contrário, de autonomia não se trataria, e sim de verdadeira soberania ou
independência48.
46 Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação, criado por meio do Decreto
nº 6.062, de 16 de março de 2007. 47 O PL ainda parece bastante tímido, especialmente em relação às audiências públicas, pois previu apenas
genericamente a possibilidade de a agência convocá-la antes da tomada de decisão em matéria relevante (art. 10).
Da mesma forma, pouco evolui em relação à qualificação das respostas a serem dadas pelas agências às
contribuições oriundas das consultas e audiências, limitando-se a estabelecer um prazo para divulgação dos
relatórios na internet (arts. 9º, § 5º e 12).
48 Mesmo nos EUA, onde as entidades nasceram com elevado grau de autonomia, a ponto de serem chamadas até
hoje de independentes, a expansão dos mecanismos de controle já deu conta de estabelecer e ajustar vários limites.
42
O que se vê, no entanto, é que os limites dessa autonomia, pensando especificamente no
caso brasileiro, estão em constante disputa e (re) definição, que se dá no campo das normas,
mas também no campo da dinâmica institucional.
A observação do Direito em ação revela que a autonomia das agências brasileiras
prevista na legislação é moldada por características específicas de nosso sistema e cultura
políticos, de nossa sociedade e da tradição da Administração Pública brasileira, que conformam
a sua autonomia de facto.
O caminho percorrido parece mostrar que há um elevado grau de interferência da
administração central – Presidente da República e ministérios – sobre a atuação das agências,
seja por meio da possibilidade de revisarem impropriamente as suas decisões, seja por meio do
manuseio inadequado das regras de nomeação de dirigentes ou do contingenciamento
orçamentária. Ao mesmo tempo, é baixa a accountability das agências em relação ao Poder
Legislativo e bastante elevada perante o TCU, conforme será desenvolvido mais adiante. Por
sua vez, a estruturação de mecanismos de participação pública ainda não parece dar conta de
canalizar equitativamente as vozes de todos os segmentos interessados na regulação, revelando
a fragilidade do controle social incidente sobre a atividade regulatória.
As reformas regulatórias promoveram o transplante da base jurídica regulatória para
países dotados de uma outra base institucional, como era o caso do Brasil. É o que Mario
Schapiro (2018) chama de “coexistência de tecnologias de governança econômica” – o Estado
Regulador e o Estado Desenvolvimentista.
Não se pode esquecer, ainda, que todos esses instrumentos de controle convivem com
uma intensa sindicabilidade judicial, já que, tendo em vista a cláusula constitucional de
inafastabilidade da jurisdição, as possibilidades de ação do Judiciário são amplas, e, pelas
características do nosso sistema judicial, muito casuística. Toda a análise empreendida acima
pressupõe, portanto, um presente e extenso controle judicial, tanto sob o aspecto procedimental
quanto substantivo da regulação.
Verifica-se, assim, que a qualidade da autonomia das agências brasileiras, na atualidade,
está seriamente comprometida. Os mecanismos de controle incidentes sobre a regulação
parecem dar sinais claros de desbalanceamento.
Por razões de eficiência, legitimidade e segurança jurídica, a aposta do modelo de
regulação por entidades autônomas, em termos ideais, consiste em fazer com que a regulação
seja produzida em ambientes tecnicamente especializados, isolados do ciclo político-eleitoral,
permeáveis à participação social e sujeitos a rigorosos limites materiais e procedimentais,
controláveis mediante ampla contestabilidade perante o Poder Judiciário.
43
Eficiência, no sentido de que a regulação seja especializada, orientada por critérios
técnicos e atenda à dinâmica, especificidade e timing setoriais. Legitimidade, no sentido de que
seja produzida de maneira transparente e mediante ampla participação e controle sociais, sem
favorecer indevidamente nenhum dos interesses em disputa. Segurança jurídica, no sentido de
que as regras não sejam alteradas conforme conveniências político-partidárias e de que as
decisões e intervenções sejam operadas por meio de mecanismos estáveis e previsíveis.
Controles descalibrados, seja em função da forte centralização de poder no Presidente
da República e nos ministérios, do reduzido nível de participação social, ou de eventuais
sobreposições indevidas do TCU, podem comprometer a consolidação do complexo e
sofisticado arranjo regulatório em suas três dimensões fundamentais – eficiência, legitimidade
e segurança jurídica.
4. A discricionariedade no Estado Regulador
O debate acerca dos contornos da noção de discricionariedade é fundamental para a
compreensão dos limites do controle. Afinal, segundo a hipótese do trabalho, o TCU extrapola
suas competências e, em alguma extensão, substitui o regulador no exercício de escolhas
regulatórias (e, portanto, discricionárias).
Já vista como o “cavalo de Troia” do Direito Administrativo em um Estado de Direito
(ENTERRÍA, 1962, p. 167), a expansão da discricionariedade é diretamente relacionada à
ampliação do intervencionismo estatal. Em sua concepção clássica, era centrada na
conveniência e oportunidade, a serem avaliadas livremente pelo administrador público.
Essa visão passou a ser questionada, sob a ótica de que a ideia de “espaço livre” daria
margem a arbitrariedades. A mera conveniência e oportunidade do administrador, excludente
da participação da sociedade na definição dos interesses, dificultaria a demarcação de limites
entre a discricionariedade e o arbítrio (GUERRA, 2017, p. 81).
Odete Medauar (2017, p. 239) explica que a crescente heterogeneização dos interesses
e tecnicização no tratamento dos assuntos a cargo da Administração, com a consequente
proliferação de centros titulares de poderes, foi tornando a discricionariedade em sua concepção
clássica insuficiente para atender às necessidades contemporâneas. A atenção em relação ao
tema, antes muito centrada no ato administrativo, foi se deslocando para o processo e
mecanismos decisórios, com ênfase na crescente adoção de práticas consensuais.
44
Indicando a influência da doutrina italiana, especialmente de Massimo Severo Gianinni,
a professora Medauar (2017) destaca a tendência de a discricionariedade se afirmar como “um
instrumento de ponderação comparativa de interesses.”
Pode-se dizer, então, que a discricionariedade vai se transformando na medida em que
se alteram os paradigmas da intervenção estatal. Com a ascensão do Estado Regulador, a ideia
de discricionariedade foi assumindo uma nova roupagem, rebatizada de discricionariedade
técnica. A discricionariedade seria, então, balizada não mais por oportunidade e conveniência,
e sim por critérios técnicos. Ao mesmo tempo, a dificuldade intrínseca em controlar o conteúdo
dos atos administrativos – já não mais classificáveis em totalmente vinculados ou totalmente
discricionários – fez com que a doutrina passasse a defender que o foco de atenção se deslocasse
para o controle dos processos formativos das decisões e atos da Administração.
O Direito passa, assim, a servir mais para estruturar processos de decisão que assegurem
que o resultado seja aceitável, compatível com a reflexividade da vida social, do que para impor
fins substantivos (TEUBNER, 1983).
Em setores sensíveis, complexos e caracterizados por relações multipolares, a regulação
emerge como uma função estatal destinada a equilibrar os interesses em subsistemas regulados,
e que se utiliza dos instrumentos conferidos pela lei para suprir as falhas de mercado, mediar e
ponderar os diversos interesses ambivalentes. Sempre com uma visão prospectiva e,
idealmente, sem pender para qualquer um dos lados (GUERRA, 2017, p. 151).
Nessa perspectiva, aponta-se na doutrina uma nova reformulação da ideia de
discricionariedade. Na base das escolhas administrativas do Estado Regulador estaria não mais
um juízo político de conveniência e oportunidade de uma autoridade, e sim a preponderância
técnica, identificada a partir da aplicação de metodologia científica, empirismo, diálogo e
participação pública.
De acordo com a lição de Guerra (2017, p. 279):
O regulador deixa de fazer suas escolhas com base exclusivamente em sua
ótica, naquilo que reputa ser conveniente e oportuno, de difícil – se não
impossível – compreensão e sindicabilidade por terceiros, para encarar o
caso concreto de modo sistemático e transparente, sob uma interpretação
analítica e empírica.
A regulação dos setores de infraestrutura impõe desafios severos. Envolve relações de
longo prazo, sujeitas a contingências das mais diversas ordens, pressionadas por múltiplos
interesses, cuja mediação requer flexibilidade, responsividade e certa neutralidade.
A necessidade de renegociar os contratos, no curso da sua execução, incluindo ou
excluindo investimentos, de aplicar complexas matrizes de risco, de decidir acerca da
45
conveniência de prorrogar contratos, de atualizar os níveis de serviço de acordo com a evolução
tecnológica, preservando o equilíbrio econômico-financeiro e o oferecimento adequado e
continuado das utilidades públicas, impõe ao regulador complexidades e dificuldades reais.
Da mesma forma, no exercício do poder normativo, o regulador precisa produzir
soluções concretas a partir de comandos legais com baixa densidade normativa ou baseados em
estruturas normativas genéricas. Conforme Marques Neto (2000, p. 95),
A relação das agências reguladoras com o Direito se dá em face de uma nova
legalidade: a lei define as metas principais e os contornos da atividade do
órgão regulador, cometendo-lhe (nestes limites e sob o controle do Judiciário
e do próprio Legislativo) ampla margem de atuação. Atuação, esta, que segue
um novo tipo de discricionariedade, pautado fundamentalmente pelos
objetivos definidos na lei para serem implementados no setor regulado.
A discricionariedade é, assim, uma técnica decisória essencial, para que o regulador se
desincumba do ônus de equilibrar essas relações e resolver problemas concretos, influenciados
por inúmeros fatores, cuja complexidade e dinamicidade impedem que a lei aponte clara e
antecipadamente as soluções.
Em recente relatório produzido sobre a regulação de infraestrutura logística no Brasil, a
London School of Economics and Political Science (LSE, 2017)49 apontou o que seria uma
característica central do debate sobre a regulação no Brasil: o fato de ser orientado por uma
ênfase na redução da discricionariedade, o que, segundo os pesquisadores, é um caminho
infrutífero para se pensar a melhora da capacidade regulatória. Propõe, assim, que seja
construído um ambiente propício para o exercício de uma discricionariedade disciplinada,
mediante o aperfeiçoamento dos processos decisórios, produzindo, assim, decisões mais
informadas; e a criação de instrumentos de engajamento que incentivem relacionamentos
menos adversariais e que não gerem aversão ao risco. Tudo isso a fim de criar “espaços seguros”
de decisão.
O desafio institucional consiste justamente em construir o ambiente mais capacitado
possível para lidar com os conflitos e interesses. A aposta do modelo de regulação por meio de
entidades autônomas é a de que as agências reguladoras, dotadas de estrutura adequada,
procedimentos transparentes, abertas à participação social, sujeitas a um sistema equilibrado de
controle, seriam esse ambiente.
49 Disponível em: http://www.lse.ac.uk/accounting/CARR/pdf/Impact/Brazil-infrastructure-logistics--translated-
FINAL.pdf
46
É inerente a esses setores, dada a complexidade e o caráter dinâmico das relações, a
necessidade de maior flexibilidade nas decisões, fazendo com que o regulador tenha que
manejar, em ambiente controlado, a discricionariedade técnica enquanto instrumento decisório.
É por isso que a discricionariedade no Estado Regulador deve, então, ser exercida em
outras bases, sujeitando-se a constrangimentos especiais, tanto materiais quanto formais. As
exigências procedimentais que incentivam a participação dos agentes interessados visam a
assegurar que os interesses em jogo sejam conhecidos e fiquem às claras, incrementando, assim,
a transparência do processo decisório.
O controle do ambiente (e do procedimento) em que manejada a discricionariedade e
feitas as escolhas regulatórias pode contribuir decisivamente para o aperfeiçoamento da técnica
decisional e, consequentemente, da regulação. Se, contudo, houver substituição do regulador
pelo controlador, não haverá controle da discricionariedade, e sim uma mudança do ambiente
em que ela será exercitada.
5. A segurança jurídica e os setores de infraestrutura
Humberto Ávila (2017, p. 79) adverte que “a segurança se torna assim um tema quando
a insegurança se alastra”. É importante perceber, pois, que, no Brasil, as preocupações em torno
da segurança jurídica estão na ordem do dia, sob várias perspectivas. Manifestam-se nos debates
e propostas da campanha presidencial de 2018, nas reivindicações de entidades representativas
de setores da economia, nas discussões sobre as incertezas produzida pelas decisões do
Judiciário, dos órgãos de controle e da própria Administração Pública – cujo símbolo maior
talvez seja a edição da Lei nº 13.655/201850 -, e na publicação de livros e artigos acadêmicos.
Na atualidade, em que as relações sociais são cada vez mais complexas e os interesses
cada vez mais fragmentados, a incerteza jurídica é inerente, sendo um desafio central para o
Estado contemporâneo lidar com ela, evitando que a natural incerteza produza um aumento
indesejável da insegurança jurídica.
O esgotamento do paradigma liberal, em que as normas seriam editadas por um corpo
eleito, em caráter geral e abstrato, de maneira a garantir o contrato e a propriedade, conferir
tratamento equânime a todos, cabendo ao Judiciário, retrospectivamente, dirimir os conflitos e
aplicar o Direito, levou ao surgimento de novos padrões de intervenção estatal.
50 Conforme sua ementa, a lei inclui na LINDB disposições sobre segurança jurídica e eficiência na aplicação do
Direito Público.
47
Passou-se a demandar cada vez mais do Estado, especificamente do Poder Executivo, e
as leis passaram, assim, a ser cada vez mais ambíguas e recheadas de princípios e valores
abstratos, a serem concretizados pelo administrador público, em um primeiro momento por
meio da execução e prestação direta de uma série de atividades, e, em um segundo momento,
por meio da desestatização de gestão e investimentos e de regulação administrativa.
Como já visto, a pretensão de garantir segurança jurídica às relações travadas sob o novo
modelo de intervenção estatal – regulação de parcerias público-privadas - constitui uma das
ideias-força da implementação das agências reguladoras de infraestrutura no Brasil.
No âmbito do direito administrativo dos negócios51, Sundfeld e Câmara (2018, p. 43)
explicam que a figura do contrato público de concessão tem sido, ao longo do tempo, a principal
resposta de nosso ordenamento ao desafio de obter segurança jurídica. Conforme os autores,
“com a contratualização imagina-se amarrar as partes a um conjunto estável de regras
vinculantes, dando previsibilidade à relação entre Estado regulador e empreendedor privado.”
Sérgio Guerra (2017, p. 357) adverte, contudo, que “na delegação de serviços públicos
– com prazo total de 50 ou 60 anos – os editais e contratos de concessão que conformam,
juntamente com as normas, o marco regulatório, não preveem, logicamente, todas as variantes
técnicas do serviço concedido.” Por isso, pode ser necessário, no caso concreto, que o regulador
proceda a revisões contratuais para além dos limites postos na lei geral de licitações e contratos
administrativos.
Sob essa mesma perspectiva, propõe Alexandre Aragão (2012) que o Direito
Administrativo passe a ver o contrato de concessão como um processo, ou seja, um plexo de
relações jurídicas que “podem e devem, muito além apenas da oitocentista teoria da imprevisão,
ser adequados ao longo do tempo diante das exigências dos problemas que forem sendo
verificados, a partir da experiência da execução.”
No estudo produzido pela LSE (2017), acima referido, os pesquisadores enfatizaram
que, em setores complexos, com relações de longo prazo, como é o caso das concessões de
infraestrutura, a incerteza é inerente. Apontaram ser essencial, então, a existência de
mecanismos consistentes de renegociação de contratos incompletos, como os de concessão,
bem como que o Estado detenha capacidade institucional para lidar com as necessidades que
surgirão no período, com as pressões de grupos de interesse, inovações tecnológicas e riscos
inerentes a esse tipo de projeto.
51 Expressão utilizada por Carlos Ari Sundfeld (2014), para referir-se à parcela do direito administrativo que cuida
ou resulta da regulação administrativa dos negócios de que a administração é parte.
48
É certo que a preocupação com a previsibilidade e credibilidade do compromisso
regulatório precisa dialogar com a necessária flexibilidade e adaptabilidade que se impõe a
contratos dessa natureza - de longo prazo, relacionais e complexos.
Conforme síntese de Ávila (2016, p. 81), a segurança jurídica não requer
imodificabilidade, mas apenas que “a modificação, pressuposta e permitida, seja feita de forma
estável e calculável.”
Acontece que, à medida que as relações se tornaram mais complexas, os interesses mais
fragmentados, houve, também, a proliferação dos centros de produção e aplicação do Direito.
O surgimento das agências reguladoras é uma manifestação desse fenômeno, assim como o
surgimento e/ou o fortalecimento dos órgãos de controle. O policentrismo institucional
(CANOTILHO, 2002) do mundo contemporâneo faz com que haja uma verdadeira dispersão
de centros de poder, ou seja, multiplicidade de órgãos encarregados de produzir e/ou aplicar o
Direito.
Se, de um lado, esse processo acarreta uma superespecialização, tendo em vista o caráter
cada vez mais técnico, complexo e específico, dos assuntos a cargo da Administração Pública,
provoca também uma concorrência entre autoridades, sejam elas administradoras e reguladoras
ou controladoras.
A incompletude dos contratos de concessão e sua necessidade de adaptação não deve
ser enxergada como falha regulatória, mas tem acabado abrindo espaço para disputas entre
regulador e controlador em torno das opções a serem tomadas.
No caso das concessões de infraestrutura, em que há regulação (e, portanto, controle)
por parte das agências, e estão sujeitas a intensa fiscalização do TCU, há um risco considerável
de sobreposição e substituição. Daí ser pertinente o alerta de Willeman (2017, p. 324), no
sentido de que “as mais diversas instâncias de accountability precisam promover estratégias
dialógicas que minimizem as contradições e incoerências inevitavelmente produzidas quando
múltiplos órgãos exercem autoridade sobre um mesmo campo de ação.”
Tendo em vista a edição de normas com conteúdo cada vez mais abstrato, vago, e muitas
vezes ambíguo, deixando-se para o âmbito da aplicação concreta, por meio de decisões tomadas
pelo regulador, a densificação do conteúdo normativo, é comum, como se verá mais adiante,
que os órgãos de controle adotem interpretação própria acerca de princípios e valores abstratos
para afastar juízos concretos feitos pelo administrador/regulador e até para aplicar sanções.
O manuseio de princípios tem feito com que órgãos de controle, como o Judiciário e o
TCU, encarregados de realizar controle de legalidade de ações administrativas, anulem ou até
49
mesmo substituam decisões regulatórias, com o argumento de que determinado princípio não
foi observado.
Nas contratações públicas, muitas das discussões acabam girando em torno da definição
do que seria o “interesse público” no caso concreto. E aí, não raras vezes, a opção feita pelo
regulador é afastada pelo controlador sob o fundamento de que o interesse público não está
sendo atendido, a despeito da intrínseca dificuldade em se definir o que é o interesse público
em situações em que há vários interesses públicos em questão.
Bogéa (2018), chamando atenção para a distinção conceitual entre incerteza jurídica e
insegurança jurídica, esclarece que esta deve ser compreendida como consequência das
patologias institucionais nos mecanismos de gestão estatal daquela.
Eventuais disfuncionalidades, como sobreposições e substituições no sistema de
controle, podem comprometer severamente a previsibilidade e, por consequência, a segurança
jurídica. Há, assim, o desafio de construir elevada capacidade regulatória para lidar com a
incerteza e evitar que ela se convole em insegurança jurídica.
A possibilidade de a decisão do controlador, tomada com base em princípios, suplantar
a escolha regulatória, que se almeja baseada em critérios técnicos especializados e adotada
mediante participação, diálogo e realismo, adiciona inevitável dose extra de incerteza ao
ambiente regulatório. Não se pode, assim, desprezar o risco de essa “disputa” em torno da
interpretação mais correta acerca de princípios afetar significativamente a segurança jurídica.
Segundo Ávila (2016, p. 80), quando há um elevado grau de insegurança, o indivíduo
evita ações que estimulam a integração, reprimindo-se, assim, a cooperação social. Aplicando-
se essa ideia no âmbito do Direito Administrativo, em que se busca reforçar um paradigma
horizontal, consensual e cooperativo de atuação entre Estado e sociedade, pode-se imaginar
que, em um ambiente de insegurança jurídica, serão reprimidos os interesses e esforços da
iniciativa privada em engajar-se em empreendimentos de utilidade pública.
50
CAPÍTULO 2 – A ampliação do controle da Administração Pública e o Tribunal de
Contas da União
1. Considerações iniciais
Entre o início do século passado e a promulgação da Constituição de 1988, houve uma
progressiva dilatação da amplitude do controle sobre os atos da Administração Pública,
sobretudo pela via judicial, que atinge gradativamente cada um dos elementos do ato
administrativo, numa emulação de avanços realizados alguns anos antes no Direito Francês
(JORDÃO, 2017).
Na doutrina, conforme relato de Eduardo Jordão (2017, p. 351), foi perceptível o
otimismo relativamente generalizado com esta ampliação do controle, que parece reforçar a
proteção dos cidadãos contra os abusos (frequentes) das autoridades administrativas.
André Rosilho (2016) avalia que o ambiente da Assembleia Nacional Constituinte era
favorável à ampliação dos controles sobre a administração, muito por conta da desconfiança
que se tinha do Executivo — basta lembrar que o país, após longo período ditatorial, de pujança
quase absoluta do Poder Executivo.
Sundfeld (2014, p. 67), destacando o papel que teve a Constituição de 1988 como um
marco no controle e condicionamento da autoridade, constata que:
O espaço da administração e das autoridades administrativas, que a tantos
juristas parecia bem claro nos tempos iniciais, passou a ser muito disputado
por outras instituições públicas (Legislativo, Judiciário, Tribunais de Contas,
Ministério Público, entidades paraestatais), e mesmo por organizações não
governamentais.
Com a redemocratização, portanto, houve uma expansão significativa dos mecanismos
de controle, não apenas em relação à dimensão liberal - proteção de direitos do cidadão em face
do Estado -, mas também quanto à dimensão gerencial - qualidade da gestão pública.
Conforme acentuam Arantes, Loureiro, Couto e Teixeira (2017), “a utilização de
mecanismos de controle de resultados da administração pública é uma das maiores novidades
em termos de accountability democrática.” A Constituição de 1988 seguiu, em certa medida,
tendência contemporânea na direção de atribuir aos órgãos de controle competência para avaliar
a qualidade das políticas públicas.
O Direito brasileiro tem hoje, portanto, um sofisticado (e complexo) arranjo de
instituições e ferramentas de controle sobre a atividade administrativa, internos e externos,
políticos e jurídicos, estatais e sociais. Deve-se compreender a atividade de controle da
51
Administração Pública a partir de um sistema de controle, que funciona por meio da interação
de vários mecanismos, ora autônomos, mas muitas vezes interdependentes.
Junto com a autonomização e reconfiguração, sobretudo em nível federal, do Ministério
Público, a independência do Judiciário, a estruturação dos controles internos – controladorias -
, a reestruturação das Advocacias Públicas, há também um nítido fortalecimento dos Tribunais
de Contas, sendo de especial interesse para este trabalho o Tribunal de Contas da União.
Embora a história do Tribunal de Contas da União seja antiga e confunda-se com a
própria trajetória republicana do país, a Constituição de 1988 é um marco no desenvolvimento
institucional do órgão.
O TCU passou a atuar nas duas dimensões do controle - liberal e gerencial -, de acordo
com as competências e respectivos limites previstos na Constituição. Embora esse arranjo
procure delimitar as atribuições e impor necessárias interações entre instituições, para que não
haja sobreposições e usurpações, é importante perceber que não há, em nenhum lugar do
mundo, outra instituição superior de controle com poderes tão abrangentes quanto o Tribunal
de Contas brasileiro (WILLEMAN, 2017, p. 254). O órgão de controle de contas, inspirado na
tradição francesa das Cour de Comptes, encarnou também, em alguma medida, a função de
auditor de performance, típica dos National Audit Offices da tradição anglo-saxã.
Apesar da inegável expansão da abrangência do controle exercido pelo TCU, suas
competências são bem delimitadas pela ordem jurídica, e sua histórica vocação e orientação
institucional – controle da atividade financeira do Estado – não foi substancialmente alterada,
pelo menos não a partir do que consta das normas em vigor.
A atuação desse sofisticado (e disperso) sistema de controle, que tem, em âmbito
federal, o Tribunal de Contas da União como uma peça central, tem causado algumas
preocupações e perplexidades. Embora ainda haja níveis elevados de ineficiência e corrupção
na Administração Pública a serem combatidos, a falta de coordenação das múltiplas instâncias
e a existência de muitos pontos de sobreposição – alguns previstos na legislação e outros não –
tem despertado um olhar crítico da academia, por desafiar a efetividade da Administração
Pública.
52
2. As bases teóricas da expansão do controle da Administração Pública
Como desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, Seabra
Fagundes52foi relator de acórdão célebre53, em 1948, considerado o leading case da teoria do
desvio de poder no Brasil, no qual foi concedido mandado de segurança a empresa de ônibus
que se insurgiu contra ato da Inspetoria de Trânsito do Estado que proibira o tráfego de veículos
da empresa em determinados horários. No caso, o TJ/RN entendeu que, embora fosse da
competência do órgão estadual a regulação dos horários e condições de trânsito, a vedação
imposta à impetrante servia tão somente ao interesse particular de empresa concorrente, e não
ao interesse público.
“O ato que, encobrindo fins de interesse público, deixe à mostra finalidades pessoais,
poderá cair na apreciação do Poder Judiciário, não obstante originário do exercício de
competência livre”, trecho que constou da ementa do julgado, revela a ideia nuclear da teoria:
a discricionariedade administrativa é limitada pela finalidade pública.
A doutrina de Seabra é considerada um ponto de virada no estudo do controle da
Administração Pública, já que enfrenta a concepção tradicional na época, segundo a qual o
poder discricionário do Estado seria incontrastável, vez que a oportunidade e conveniência dos
atos administrativos estariam fora do alcance do Poder Judiciário.
Essa visão da insindicabilidade dos chamados atos discricionários era amparada por uma
ideia de que o Judiciário não poderia examinar os fatos que permeavam a ação administrativa.
Apenas a “matéria de Direito” estaria abrangida pela legalidade, apta a justificar o crivo judicial,
portanto.
Seabra inaugurou uma nova visão sobre a extensão da sindicabilidade dos atos
administrativos, defendendo que não haveria margem de liberdade para o administrador público
no que tange à finalidade do ato. À base de todo ato estatal deveria estar, invariavelmente, o
interesse público, cabendo ao Judiciário, a partir da verificação da existência dos motivos e de
sua correlação com a lei, controlar a finalidade do ato administrativo, mesmo quando praticado
no exercício de competência livre (discricionária).
52 Mais ligado à política do que à academia, foi Desembargador do Tribunal de Justiça do seu Estado aos 25 anos,
ingresso por meio da recém-criada regra do quinto constitucional, mas logo afastou-se da magistratura para ser
Interventor do Estado do Rio Grande do Norte. Chegou a ocupar também a função de Consultor-Geral da
República, no Governo Dutra, mas por pouco tempo, ante o restabelecimento da vedação à ocupação de cargos
administrativos por magistrados. Biografia em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-
biografico/miguel-seabra-fagundes 53 Disponível em: bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/10789/9778
53
Daí a formulação segundo a qual “no que concerne à competência, à finalidade e à
forma, o ato discricionário está tão sujeito aos textos legais quanto qualquer outro.” A visão do
jurista potiguar, portanto, traz subjacente noção fundamental para o desenvolvimento do Direito
Administrativo a partir de então: a de que não existe ato discricionário, e sim poder
discricionário, consistente na margem de liberdade conferida pela lei ao administrador em
relação a alguns aspectos (elementos, conforme construções teóricas posteriores) do ato
administrativo.
Apesar da oposição de Themístocles Cavalcanti54, as elaborações acerca do controle por
desvio de finalidade, encontraram consistente apoio e desenvolvimento doutrinários em autores
como Victor Nunes Leal55 e Caio Tácito56.
Victor Nunes Leal, em comentário sobre o acórdão referido, que também se notabilizou,
exaltou a importância da inovação jurisprudencial promovida pelo TJ/RN, “já que os tribunais
sempre declararam os atos discricionários insuscetíveis de apreciação jurisdicional, sem
aprofundar a questão da possível arbitrariedade do poder discricionário.”
O carioca Caio Tácito57, que também foi Consultor-Geral da República (Governo JK),
e Desembargador (do TJ/RJ), contribuiu muito para a tonificação das ideias acerca do controle
por desvio de poder a partir de uma reflexão teórica sofisticada e inovadora acerca dos
elementos do ato administrativo, que chama de centro do sistema planetário do Direito
Administrativo. Teorizou sobre os elementos do ato administrativo, dando contornos mais
didáticos à ideia de que o ato administrativo não é indivisível, demonstrando que a
discricionariedade não seria um atributo do ato em si, mas um poder que a lei pode reservar ao
administrador em relação a alguns aspectos do ato, em maior ou menor extensão.
Aproximando-se, então, de Seabra Fagundes, defende que a administração serve a
“interesses públicos caracterizados, não sendo lícito ao agente servir-se de suas atribuições para
satisfazer interesses pessoais, sectários ou político-partidários, ou mesmo a outro interesse
público que não se filie ao seu âmbito de competência.” Daí sua contundência em afirmar que
54 Autor influente e prócer do pensamento estatista, também ex-consultor geral da República (do Governo Vargas)
e que viria a ser Ministro do STF, que entendia que o controle por desvio de finalidade era típico da jurisdição
contenciosa-administrativa, conforme doutrina do detournment de pouvoir, e incompatível com o sistema de
jurisdição una. 55 Foi Consultor-Geral da República e Chefe da Casa Civil do Governo JK; professor da UFRJ e Ministro do STF
(1960-1969). Foi afastado do Supremo pelo AI nº 5. 56 Embora Victor Nunes Leal reconhecesse que a jurisdição administrativa do Conselho de Estado francês
contemplava uma extensão maior de controle, enquanto Caio Tácito e Seabra Fagundes não viam qualquer
relevância na diferença de sistema de jurisdição, os três são importantes vozes dessa mudança de perspectiva e de
alcance do controle jurisdicional. 57 Biografia disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/caio-tacito-sa-viana-
pereira-de-vasconcelos
54
“a regra de competência não é um cheque em branco e que a finalidade legal é o teto do poder
discricionário.”
Toda a mudança de perspectiva parece estar essencialmente centrada na possibilidade
de “avanço” da análise judicial sobre os motivos da ação administrativa, a fim de que se
identifique o atingimento, ou não, da finalidade pública. Se, até então, a matéria fática estava
fora do raio de ação do Judiciário, com o giro provocado pelos autores aqui referidos, passou-
se a entender “não bastar que, em tese, a lei admita um certo resultado, fazendo-se necessário
o nexo de causalidade entre o objeto e os motivos.”
Caio Tácito, diferentemente de Seabra Fagundes - que não estava especialmente
preocupado em explicar e justificar o poder discricionário do Estado, apesar de ser a tônica da
doutrina na época -, parecia bem mais empenhado em vincar a expansão do intervencionismo
estatal, explicitando ser a tônica dos regimes políticos da época o deslocamento da abstenção
para a intervenção, reconhecendo, assim, um progressivo declínio dos Parlamentos em favor
do fortalecimento do Poder Executivo, desde o fim da 1ª Guerra Mundial.
Ou seja, ao mesmo tempo que defende a controlabilidade judicial da finalidade, demarca
o campo de atuação livre da Administração – discricionariedade. Posiciona, então, o controle
de legalidade como a contraface da ampliação da discricionariedade, falando, assim em um
regime de liberdade vigiada, ideia bem sintetizada na seguinte passagem (TÁCITO, 1975, p.
6):
Vimos, inicialmente, que a crise da Administração Pública moderna reside no
equilíbrio entre a dilatação da atividade discricionária e o reforço do
controle de legalidade. Na fase atual de intervencionismo administrativo, é
necessário propiciar meios de ação eficiente aos entes públicos, mas impedir
que eles se coloquem à margem da lei.
É marcante também, na obra do professor carioca, a preocupação com o risco de
substituição do administrador pelo juiz, enfatizando “não caber ao juiz, mesmo perante erros e
desacertos, substituir a ação executiva pelo arbítrio da toga. A ditadura judiciária será tão nociva
quanto o descritério da Administração.” Cita, então, famosa passagem de Victor Nunes Leal,
segundo a qual “no estudo do controle do poder discricionário, a doutrina tem de utilizar
instrumentos de precisão, para não vestir um santo com a roupa do outro, substituindo o arbítrio
administrativo pelo arbítrio judiciário.”
Nessa trilha, um dos pontos altos do pensamento de Caio Tácito, capaz de inspirar
reflexões sobre problemas bem contemporâneos, é a consciência da dificuldade, em uma
sociedade (pós) moderna, marcada pela diversidade e antagonismo de grupos de interesse, em
determinar o que representa, no terreno prático, no caso concreto, a consecução da finalidade e
55
do interesse públicos. Há, assim, um reconhecimento de que o conflito contamina o agir
administrativo, dada a complexidade da sociedade e consequente imprecisão da ideia de
interesse público, de forma que o fenômeno social, conforme palavras do autor, “não se
escraviza a coletes de força, nem a esquemas teóricos.”
Percorrendo o pensamento dos “clássicos brasileiros”, fundamental mencionar a
doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello, que se associou às ideias de Seabra e Caio, mas
se difundiu em um contexto em que o país se redemocratizava e que culminou com a
promulgação da Constituição Federal de 1988.
Citando passagem famosa de Seabra, segundo a qual “administrar é aplicar a lei de
ofício”, Bandeira de Mello (2007, p. 924) sumariza o esforço doutrinário feito pelos que lhe
antecederam dizendo que “no Estado de Direito a Administração só pode agir em obediência à
lei, esforçada nela e tendo em mira o fiel cumprimento das finalidades assinadas na ordenação
normativa.” O autor (2006, p. 955) reforçou as bases teóricas que justificaram a progressiva
dilatação do controle judicial da discricionariedade administrativa, ancorando-se na cláusula
constitucional de inafastabilidade da jurisdição - art. 5º, XXXV, da CF/88:
É, pois, precisamente em casos que comportam discrição administrativa que
o socorro do Judiciário ganha foros de remédio mais valioso, mais
ambicionado e mais necessário para os jurisdicionados, já que a pronúncia
representa a garantia última para contenção do administrador dentro dos
limites de liberdade efetivamente conferidos pelo sistema normativo.
Pode-se dizer que Bandeira de Mello (2006, p. 96) vai além de seus antecessores, na
medida em que defende, em obra cuja primeira edição já foi escrita após a Constituição,
intitulada “Discricionariedade e controle jurisdicional”, o controle judicial com base em
princípios extraídos da nova ordem constitucional:
A razoabilidade – que, aliás, postula a proporcionalidade – a lealdade e boa
fé, tanto como o respeito ao princípio da isonomia, são princípios gerais do
Direito que também concorrem para conter a discricionariedade dentro de
seus reais limites, assujeitando os atos administrativos a parâmetros de
obediência inadversável.
Bandeira de Mello (2006, p. 923) é, pois, entusiasta da força normativa dos princípios e
do seu manuseio como parâmetro de controle:
Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer.
A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico
mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave
forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do
princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema,
subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu
arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.
56
Como se vê, o que também é diagnosticado por Eduardo Jordão (2017, p. 354), há uma
progressão clara e unidirecional para um sempre maior controle da Administração Pública:
Há inclusão de novos elementos sob controle, criação de conceitos e
doutrinas que servem de fundamento para a intervenção judicial e mesmo
uma cultura geral que favorece a limitação da liberdade administrativa, como
forma de evitar abusos.
O certo é que a realidade do controle evoluiu de uma tradição imperial que praticamente
barrava qualquer tipo de interferência na atividade administrativa, para uma multiplicidade de
instituições e ferramentas destinadas a exercer algum tipo de crivo sobre as escolhas
administrativas.
3. Instituições Superiores de Controle
As instituições superiores de controle financeiro têm origem, historicamente, em duas
preocupações: uma gerencial, referente à necessidade de administrar bem os recursos públicos,
e a outra relacionada à apreensão liberal com a limitação do Poder Executivo (SPECK, 2000,
p. 31). Conforme o autor, a primeira nasce no âmbito da própria Administração e dá origem a
instituições fiscalizadoras inicialmente alocadas no âmbito do próprio Poder Executivo. A
segunda surge nos primeiros órgãos representativos, como as Cortes Gerais medievais, e será
retomada por seus sucessores, os organismos representativos que formaram o Poder Legislativo
em sistemas políticos modernos.
Willeman (2017, p. 101) ressalta não haver um modelo de Instituição Superior de
Controle (ISC) convencionalmente apontado como ideal ou ótimo58. Na verdade, segundo a
autora, as evidências empíricas sinalizam que, embora o desenho institucional tenha relevância,
os fatores mais decisivos e críticos para explicar a efetividade da atuação das ISC associam-se
à dinâmica política mais ampla, subjacente às relações travadas entre Legislativo e Executivo.
Conforme a autora (2017, p. 102), os modelos referenciais de ISCs usualmente
privilegiados pela doutrina especializada são: (i) o modelo de Westminster, que corresponde à
formatação de auditoria ou controladoria-geral monocrática; (ii) o modelo napoleônico, que
guarda paridade com o sistema judicial ou quase-judicial das Cortes de Contas; e (iii) o modelo
58 Na mesma linha, Sundfeld e Câmara (2013, p. 190) destacam que, na experiência internacional, não há um
modelo único de controle externo das contas públicas, especialmente de suas contratações: “De acordo com as
opções constitucionais ou legais, podem variar: o perfil institucional do órgão externo de controle, a natureza
jurídica de suas decisões, a matéria objeto de análise, o universo de sujeitos controlados, o momento da verificação
e os efeitos produzidos. Não há consenso entre os especialistas em relação a qual seria ‘o melhor’ método, nem há
plena identificação entre dado modelo e o sistema republicano e democrático de Estado.”
57
colegiado de auditoria ou controladoria-geral, que consiste em uma variação do modelo de
Westminster, guardando estreita relação com o sistema de auditoria da tradição anglo-saxônica,
exceto pela composição colegiada das instâncias dirigentes.
É evidente que as variações presentes nesses modelos ideais se associam às diferenças
de arquitetura constitucional e de trajetória histórica de cada país.
A autora enfatiza que a distinção essencial entre os três modelos diz respeito à posição
da ISC no arranjo institucional de cada país, o que repercute diretamente no espectro de
competências reconhecido à instituição. Assim, os modelos de controladoria ou auditoria-geral
– sejam monocráticos ou colegiados – diferenciam-se do modelo de tribunal de contas, na
medida em que os primeiros são órgãos vinculados à estrutura de um dos Poderes do Estado,
via de regra do Legislativo, e não exercem competências decisórias e sancionatórias próprias,
atuam normalmente por meio de recomendações submetidas ao crivo do Parlamento. O modelo
napoleônico de Cortes de Contas já é bem diferente, pois constitui um novo componente em
relação à clássica separação de Poderes, sendo usualmente reconhecidos como órgãos
autônomos ou independentes em relação aos Poderes orgânicos do Estado, embora guardando
relação de maior proximidade com o Legislativo.
Os modelos das instituições de controle variaram muito conforme o país e no decorrer
do tempo, de acordo com circunstâncias e peculiaridades históricas, políticas e culturais, mas é
certo que o modelo francês, onde foi criado um Tribunal de Contas, em 1807, abriu uma nova
dimensão para a configuração institucional e serviu de exemplo para a criação de instituições
similares em muitos países, inclusive no Brasil.
Os Tribunais de Contas possuem competências decisórias próprias e normalmente
exercem controle de natureza quase-judicial59, ou até mesmo judicial60, não se limitando a
expedir recomendações ou a depender da intermediação do Legislativo para fazer valer suas
posições.
Nas Cortes de Contas, a estrutura deliberativa é formada por um colegiado de
magistrados, sob a presidência rotativa de um de seus membros. Como “juízes”, os integrantes
dos Tribunais de Contas costumam gozar de estabilidade ou vitaliciedade conferida por lei.
Essa semelhança com as cortes judiciárias explica, em certa medida, o predomínio da formação
59 Os Tribunais de Contas brasileiros possuem algumas competências de julgamento, porém destituídas dos
atributos da inércia e da definitividade que caracterizam a função jurisdicional. 60 Em alguns países, o Tribunal de Contas possui competência para julgar, como órgão judicial de última instância,
as contas prestadas por agentes públicos.
58
jurídica dos membros e quadros técnicos desse tipo de ISC, bem como sua tradicional ênfase
nas auditorias de conformidade.
Em descrição sobre as características da Cour de Comptes francesa, que nitidamente
inspirou a criação do Tribunal de Contas da União brasileiro, Willeman (2017) relata que o
julgamento das contas dos gestores públicos é, historicamente, a principal atribuição da Corte
e eixo fundamental de sua atuação. Trata-se de controle prioritariamente de regularidade,
focado na aferição do respeito ao conjunto das normas orçamentárias, contábeis e financeiras
aplicáveis à gestão pública, ensejando, em caso de inobservância, aplicação de sanção aos
responsáveis. Apenas recentemente, por meio da Revisão Constitucional de 2008, passou a
competir à Corte de Contas assistir o Parlamento na avaliação das políticas públicas, de maneira
que as auditorias de performance foram incorporadas aos trabalhos da Cour de Comptes.
O Government Accountability Office (GAO), norte-americano, por sua vez, segue o
modelo de auditoria monocrática ou de controladoria-geral, atuando por delegação do
Congresso. Em seu sítio eletrônico na internet, o GAO é apresentado como “órgão
independente e apartidário que trabalha para o Congresso.” O órgão é dirigido por uma
instância decisória monocrática, cujo titular, o “Controlador-Geral dos Estados Unidos”, é
escolhido pelo Presidente da República a partir de lista apresentada pelo Congresso, para
mandato não renovável de quinze anos, conforme o GAO Act.
O GAO, ao passo que dá prevalência às práticas de auditoria de performance
(desempenho), em detrimento das análises de conformidade, não produz comandos coercitivos.
Seja quando realiza auditorias em órgãos governamentais, seja quando promove investigações
quanto a denúncias de ilegalidade em matéria orçamentária, ou quando exerce sua atribuição
de revisar, sob o ponto de vista procedimental, os atos normativos editados pelos órgãos do
governo, seus relatórios e recomendações são submetidos ao Congresso, para deliberação final.
De uma forma geral, o fortalecimento das Instituições Superiores de Controle é
compreendido como forma alternativa de endereçar uma série de problemas políticos
contemporâneos, com ênfase para a crise do padrão representativo de democracia e as
debilidades do esquema partidário-eleitoral, revelando importante faceta do que Philip Pettit
chamou de “democracia contestatória”.
Colin Scott (2014, p. 475) associa o desenvolvimento das instituições de controle ao
reconhecimento da capacidade limitada dos parlamentos em manter os governos efetivamente
sob controle.
A existência desses órgãos é justificada pela dimensão republicana da democracia, que,
segundo Guilhermo O’Donnell (1997), impõe a existência de mecanismos de accountability
59
vertical, associada preponderantemente à competitividade eleitoral e ao controle social, e
horizontal, que, segundo o autor argentino:
É a existência de agências estatais que têm o direito e o poder legal e que
estão de fato dispostas e capacitadas para realizar ações que vão desde a
supervisão de rotina a sanções legais ou até o impeachment contra ações ou
emissões de outros agentes ou agências do Estado que possam ser
qualificadas como delituosas.
Marcus André Melo (2012) destaca o controle externo como peça central da qualidade
institucional de um país, sendo, assim, fundamental para a consecução de objetivos econômicos,
fiscais e sociais.
Historicamente, a América Latina caracterizou-se pela debilidade de suas instituições
de checks and balances – ou de accountability horizontal. Os débeis controles exercidos pelo
Legislativo e Judiciário refletem um padrão histórico caracterizado pelo autoritarismo e
governos militares na região. A transição para a democracia nas últimas duas décadas tem sido
acompanhada por intenso reformismo institucional que se estendeu amplamente para a área do
controle externo (MELO, 2012, p. 2)
Como visto, apenas recentemente, passou a constar da agenda de discussões de algumas
Cortes de Contas a incorporação de competências e técnicas de auditoria voltadas à avaliação
do desempenho das políticas públicas – controle de performance, como é o caso do TCU na
Constituição Federal de 1988.
Se a mudança de paradigmas do Direito Administrativo, com destaque para a superação
da rigidez lógico-formal em favor da busca pelos resultados e eficiência na gestão pública, foi
determinante para a reforma do Estado, também influenciou a inclusão da dimensão operacional
(desempenho) no raio de atuação dos órgãos de controle, mesmo daqueles tradicionalmente
orientados ao controle de conformidade.
Em obra coletiva destinada a estudar detalhadamente a auditoria operacional, Pollitt e
Summa (2008), a partir da observação da experiência em 5 países (França, Reino Unido,
Finlândia, Holanda e Suécia), relacionam o desenvolvimento do instituto com a difusão de
programas de reforma da Administração Pública.
Conforme os autores (2008, p. 26), ainda que os detalhes dos programas de reforma
tenham variado consideravelmente entre um país e outro, a maioria deles deu ênfase à
descentralização (ou seja, autonomização de órgãos e entidades públicas) e à administração de
resultados. Assim, consideram altamente provável que haja uma conexão entre estes dois
fenômenos: “de um lado o crescimento da auditoria operacional; e de outro, a busca por uma
60
nova solução ao antigo problema governamental de se conceder autonomia, enquanto,
concomitantemente, se retém o controle.”
Pollitt e Summa (2008, p. 29) reportam o conteúdo de manual do NAO do Reino Unido,
que reconhece que a auditoria operacional teve que responder ao fato de que “dois terços dos
negócios governamentais é agora levado a cabo por agências; o resultado e a implementação se
tornou mais importante que o procedimento; e há maior envolvimento do setor privado na
implementação de programas custeados pelo Poder Público.”
É uma mudança de paradigmas. As organizações públicas devem mudar de um sistema
de controle baseado nos meios (inputs) para um orientado pelos resultados (outputs).
De acordo com essa linha de pensamento, a reforma do Estado dos anos 80 e 90, mundo
afora, também teria provocado uma reorientação do controle. É interessante perceber, contudo,
que, no Brasil, as reformas mais profundas na Administração Pública, ocorridas na segunda
metade da década de 90, que incluíram a desestatização de uma série de atividades e a criação
das entidades regulatórias autônomas, ocorreram depois da introdução das auditorias de
performance no rol de competências do TCU, que constam do texto original da Constituição de
1988.
Sendo assim, será que as mutações que já aconteciam na área do controle mundo afora
influenciaram o constituinte no desenho institucional atribuído ao TCU, antes mesmo que se
iniciasse a reorientação do modo de intervenção estatal, que, como se sabe, foi efetivado muito
mais por reformas posteriores do que pelo texto promulgado em outubro de 1988? Ou seria
descontextualizada a afirmação de que o constituinte desenhou o TCU para realizar um novo
tipo de controle (de resultados), já que o texto original da Constituição concebeu um modelo
essencialmente burocrático de Administração Pública, que seria reformado – na direção de uma
Administração gerencial - apenas alguns anos depois?
Não parece fácil responder a essa questão, nem é objetivo deste trabalho. Mas parece
relevante compreender as peculiaridades contextuais, a fim de que se possa refletir
adequadamente sobre as características, competências e vocações das instituições. É bem
possível que ambas as hipóteses acima aventadas sejam parcialmente verdadeiras.
4. O Tribunal de Contas da União
4.1. A evolução histórica do TCU
A Constituição de 1824 não previa qualquer instituição superior de controle, como já
havia em alguns países europeus na época, de maneira que cabia ao ministro das Finanças
61
apresentar o balanço de receitas e despesas e à Câmara o “exame da administração passada e
dos abusos nela introduzidos”.61
Durante o Império, houve várias propostas de criação de uma instituição encarregada
do controle da execução orçamentária, em que o foco principal era o excesso de despesas, e não
desvio ou corrupção. Speck (2000, p. 38) relata que os administradores gastavam mais do que
lhes cabia conforme o orçamento, o que levou os próprios ministros da Fazenda a propor, em
várias ocasiões, a criação de um sistema de controle.
O Tribunal de Contas da União foi, então, finalmente previsto pela Constituição de
1891, que incorporou a ideia contida no Decreto nº 966-A62, redigido por Rui Barbosa63 e
editado em 1890 pelo Governo Provisório. Na qualidade de Ministro da Fazenda do Governo
Provisório, Barbosa argumentava que a reforma do controle das finanças públicas era uma das
pedras angulares para a edificação republicana.64
O Brasil adotou o modelo francês, em que a instituição de controle foi dotada de amplas
garantias e independência, desempenhando, com certa autonomia, funções de apoio à
Administração e ao Legislativo ao mesmo tempo, com integrantes selecionados conjuntamente
pelo Executivo e pelo Legislativo (indicação pelo Presidente e confirmação pelo Senado).
Speck (2000, p. 43) resume as características principais da instituição superior de
controle brasileira, criada com o advento da Primeira República e mantida sem grandes
modificações durante mais de meio século, da seguinte maneira:
1) A instituição teria status constitucional; 2) seus membros seriam
selecionados pelo Executivo e pelo Legislativo em conjunto; 3) esses membros
teriam amplas garantias vinculadas ao seu cargo; 4) as decisões seriam
tomadas de forma colegiada; 5) o Tribunal julgaria as contas dos
administradores; 6) a instituição relataria ao Legislativo sobre a execução
financeira do governo; e 7) o Tribunal teria a função de registrar previamente
as ordenações de despesas dos administradores, para que elas se tornassem
efetivas.
61 Constituição de 1824, art. 37. 62 O decreto não chegou a ser regulamentado, mas é referido pelo próprio TCU quando trata da origem histórica
da instituição. 63 O nome do prédio que sedia, em Brasília, o Tribunal de Contas da União - Palácio Ruy Barbosa - é uma
homenagem ao seu idealizador. 64 Nas palavras de Rui Barbosa: “É, entre nós, o sistema de contabilidade orçamentária defeituoso em seu
mecanismo e fraco na sua execução. O Governo Provisório reconheceu a urgência inadiável de reorganizá-lo; e a
medida que vem propor-vos é a criação de um Tribunal de Contas, corpo de magistratura intermediária à
administração e à legislatura, que, colocado em posição autônoma, com atribuições de revisão e julgamento,
cercado de garantias contra quaisquer ameaças, possa exercer as suas funções vitais no organismo constitucional,
sem o risco de converter-se em instituição de ornato aparatoso e inútil.”
62
Zymler e Almeida (2008, p. 134) contam que o Tribunal, constituído inicialmente com
grande poder, sofreu um “enfraquecimento” com a Revolução de 1930, já que passou a apenas
informar aos Ministros de Estado as irregularidades detectadas e, a partir da Constituição de
1937, o controle passou a ser realizado a posteriori. Com a redemocratização de 1946, a Corte
recuperou prestígio e ampliou suas competências, passando a examinar também os atos de
pessoal. O controle continuou sendo posterior, com hipóteses de controle concomitante e com
a possibilidade de a legislação estipular hipóteses de controle prévio.
Os autores dão conta, ainda, de que, no governo militar, o Tribunal sofreu novo declínio,
tendo sido conferido poder ao Presidente da República para derrogar as impugnações da Corte,
ad referendum do Congresso, e determinar a execução dos atos considerados irregulares pelo
Tribunal. Destacam, por outro lado, o que chamaram de importantes inovações do ponto de
vista técnico:
Assim, foi formalizada a distinção entre os controles interno e externo, foi
prevista a realização de auditorias e inspeções e foi abolido o controle prévio,
sem embargo da possibilidade de haver um controle concomitante.
Como se vê, na trajetória do Tribunal de Contas da União não houve variações drásticas
em relação ao perfil institucional do órgão. Conforme diagnóstico de Willeman (2017, p. 128),
não se encontra registros que apontem algum debate em torno de qualquer modelo que não
fosse o francês, tradicionalmente vocacionado para o controle de conformidade, não havendo
referência aos modelos de inspiração anglo-saxônica, em que se dá ênfase ao controle de
performance.
Não houve mudanças, nem grandes problematizações, em relação ao modelo de
composição do órgão, já que prevaleceu a nomeação dos ministros pelo Presidente da República
mediante aprovação do Senado. Aos nomeados, historicamente foram asseguradas as mesmas
prerrogativas atribuídas aos magistrados dos tribunais superiores, inclusive a vitaliciedade.
A competência central do TCU, concernente ao julgamento das contas apresentadas
pelos gestores públicos, assim como a emissão de parecer prévio sobre as contas do Presidente
da República, também prevaleceram durante praticamente todo o período.
O único ponto que foi objeto de significativa oscilação diz respeito ao momento de
realização do controle. Com alguma variação, entre mecanismos de veto absoluto ou limitado,
prevaleceu durante a República Velha65 o controle prévio, em que o TCU figurava como
65 A Constituição de 1937 acabou com o controle prévio, que foi restaurado pela Constituição de 1946.
63
verdadeiro veto player, até o advento da Constituição de 1967, que instituiu o controle a
posteriori.
4.2. O TCU na Constituição de 1988
A Carta de 1988 conferiu independência ao TCU, manteve o regime de nomeação e
vitaliciedade dos ministros, expandiu significativamente a abrangência do controle, ao prever
o controle de performance (auditorias operacionais) e adotar como parâmetros de fiscalização
a legitimidade e a economicidade6667 - juntamente com a legalidade -, e adotou o controle a
posteriori como regra.
O texto constitucional ampliou, ainda, o rol de sujeitos à fiscalização do Tribunal,
explicitando que “qualquer pessoa física ou entidade pública que utilize, arrecade, guarde,
gerencie ou administre dinheiros, bens ou valores públicos pelos quais a União responda, ou
que em nome desta assuma obrigações de natureza pecuniária”68 passaria a ter o dever de prestar
contas.
Pesquisas sobre os debates acerca do TCU na Assembleia Nacional Constituinte
evidenciam, contudo, que não houve discussões mais aprofundadas e uma reflexão mais
abrangente sobre o tipo de sistema de controle externo que se pretendia implementar69. Os
debates acabaram ficando polarizados entre duas propostas sobre o regime de indicação dos
membros da Corte de Conta e sobre o tempo de permanência no órgão.
Em detalhado estudo sobre os debates havidos na Assembleia Nacional Constituinte
acerca do TCU, André Rosilho (2016, p. 77) chama atenção para o ambiente favorável, naquela
ocasião, ao fortalecimento dos órgãos de controle:
66 Rosilho (2016, p. 116) chama atenção para a incerteza acerca dos reais contornos desses parâmetros
(legitimidade e economicidade): “A despeito da dificuldade de conceituá-los, o importante é destacar que eles
não ensejam avaliações propriamente jurídicas, baseadas no binômio legal/ilegal (ou, mais genericamente
falando, permitido/proibido). Envolvem, isto sim, avaliações de outra natureza — econômica (custo/benefício),
política (adequado/inadequado), filosófica (justo/injusto), etc.” 67 O texto original da Constituição não utilizava o vocábulo eficiência, que foi incluído dentre os princípios da
Administração Pública apenas em 1998, por meio da EC nº 19. Os parâmetros de legitimidade e economicidade,
utilizados para balizar e orientar o controle de performance, são equiparados ao que, na literatura estrangeira,
denomina-se eficiência, eficácia e efetividade. 68 Este texto, original do parágrafo único do art. 70 da CF/88, foi posteriormente alterado pela EC 19/98, para
ampliar ainda mais o rol: Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize,
arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou
que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária. 69 André Rosilho (2016, p. 76) constatou, a partir da leitura dos anais da Assembleia Nacional Constituinte, que
“o grau de reflexão do constituinte sobre o modelo de controle externo a ser desempenhado pelo TCU e sobre as
externalidades (positivas e negativas) que as normas que delineou produziriam foi baixo.” Afirma, ainda, que “a
ausência de reflexão sobre um modelo ‘ótimo’ de controle é nítida.”
64
O ambiente da constituinte era bastante propício à ampliação das
competências e do espaço de atuação de instituições de controle da
administração pública (Legislativo, tribunais de contas, ministério público,
etc.), vez que o país acabava de emergir de um período ditatorial (de pujança
quase absoluta do Poder Executivo, portanto). Em reação quase natural ao
período ditatorial que a precedeu, o constituinte frequentemente raciocinou
em contraposição ao Executivo, produzindo, com isso, condições ideais para
o florescimento de instituições voltadas a fiscalizar e a conter a
administração.
A Constituição trouxe, também, relevantes inovações relacionadas à composição do
Tribunal, que continua sendo formado por 9 (nove) Ministros, mas 2/3 passaram a ser indicados
pelo Congresso Nacional sem designação prévia pelo Presidente da República, e 1/3 indicados
pelo Chefe do Executivo e sujeitos à aprovação parlamentar. Dos 3 (três) indicados pelo
Executivo, 2 (dois) devem necessariamente ser escolhidos dentre integrantes do corpo
profissional do Tribunal de Contas70.
A literatura aponta a vitaliciedade (ou mandatos mais extensos que o ciclo eleitoral), o
formato colegiado e as demais garantias do cargo como mecanismos para contrabalançar a
origem política dos integrantes do Tribunal, neutralizando, assim, o que Bruno Speck (2000)
chama de “lealdade de origem”. Adicionalmente, a divisão do poder decisório com o corpo
profissional do órgão e critérios de seleção por qualificação e experiência profissionais também
são recursos importantes.
Há, contudo, reflexões críticas na doutrina acerca da inefetividade desses mecanismos
no arranjo institucional brasileiro, que não teria conseguido criar a neutralidade política
desejada. (WILLEMAN, 2017).
A doutrina nacional enfatiza a independência e autonomia do Tribunal de Contas em
relação aos poderes da República, reafirmadas e reforçadas com a nova ordem constitucional,
que lhe incumbiu de competências próprias e conferiu aos seus integrantes garantias e
prerrogativas idênticas àquelas atribuídas aos membros do Judiciário.
Conforme Willeman (2017, p. 29), é equivocado, à luz da Constituição de 1988,
caracterizar os Tribunais de Contas como meros órgãos auxiliares de qualquer dos Poderes da
República. Conquanto ainda haja determinadas funções exercidas em auxílio ao controle
externo titularizado pelo Legislativo – especialmente a emissão de parecer prévio sobre as
contas anuais da chefia do Poder Executivo para posterior julgamento pelo Parlamento -, é
inegável que em inúmeros outros aspectos o controle exercido pelas Cortes de Contas assume
vida própria e autônoma.
70 1 (um) da carreira de auditor e outro da carreira do MP junto ao Tribunal de Contas.
65
No mesmo sentido, a professora Odete Medauar (2014):
A Constituição Federal, em artigo algum, utiliza a expressão órgão auxiliar;
ela apenas dispõe que o controle externo do Congresso Nacional será
exercido com o auxílio do Tribunal de Contas; a sua função, portanto, é de
exercer o controle financeiro e orçamentário da Administração em auxílio ao
poder responsável, em última instância, por essa fiscalização. Tendo em vista
que a própria Constituição assegura ao Tribunal de Contas as mesmas
garantias de independência do Poder Judiciário, impossível considerá-lo
subordinado ao Legislativo ou inserido na estrutura do Legislativo. Se sua
função é atuar em auxílio ao Legislativo, sua natureza, em razão das próprias
normas da Constituição, é a de órgão independente desvinculado da estrutura
de qualquer dos três poderes. A nosso ver, por conseguinte, o Tribunal de
Contas configura instituição estatal independente.
Zymler e Almeida (2008, p. 137) entendem que a Constituição Federal estabeleceu entre
o Congresso Nacional e o TCU uma relação de cooperação, e não hierárquica ou de
subordinação.
Sundfeld e Câmara (2013, p. 179), por sua vez, embora enfatizem as competências
próprias do TCU, não deixam de enxergá-lo como um órgão auxiliar:
É indiscutível a importância do Tribunal de Contas no equilíbrio de forças
entre os Poderes integrantes do Estado Brasileiro. Órgão dotado de
prerrogativas especiais, ele atua como auxiliar do Legislativo na função de
controle externo da Administração (art. 71 da CF). Mas não é por ser auxiliar
do Legislativo que ele não desempenha, de modo autônomo, competências
próprias.
É certo, também, que, apesar de a Corte de Contas possuir um rol substancioso de
competências autônomas relevantes, existe, de fato, uma relação cooperativa entre o TCU e o
Poder Legislativo, já que o controle externo não é monopolizado pelo TCU, ao contrário, é
exercido primariamente pelo Congresso71.
Além disso, como visto, a Constituição estipulou e ampliou os critérios a serem adotados
pelo TCU em sua atividade, demarcando a expansão da atuação do Tribunal para além do
controle de legalidade/conformidade, e fazendo a fiscalização incidir também sobre a gestão
operacional do Estado, ou seja, instituindo o controle de performance.
Parece inquestionável, contudo, que a expansão de competências e poderes verificada
encontra limites na própria Constituição e na legislação. É fundamental compreender quais os
parâmetros que o TCU pode utilizar em relação a cada um dos objetos sob sua fiscalização e,
da mesma forma, quais produtos/resultados pode produzir.
71 É o que se extrai do caput do artigo 71 da CF/88, segundo o qual “o controle externo, a cargo do Congresso
Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União”.
66
Pode parecer difícil, já que, conforme adverte Rosilho (2016, p. 331), “as normas
responsáveis por prever e delinear as competências e atribuições do Tribunal de fato são abertas
e em boa medida lacônicas”, mas não impossível.
Conforme Rosilho (2016, p. 336), seria juridicamente impróprio supor que o Texto
Constitucional teria facultado ao TCU praticar atos sancionatórios ou atos de comando em
quaisquer matérias (inclusive as de cunho operacional) por meio de quaisquer parâmetros de
controle (inclusive aqueles não necessariamente referenciados no Direito, como legitimidade e
economicidade). Equivaleria a transformar o órgão de controle externo em revisor geral da
Administração.
Sundfeld e Câmara (2013, p. 181) chamam atenção para o fato de que o TCU não é
instância revisora da atividade administrativa, que seja competente para corrigir ilegalidades
em toda e qualquer decisão tomada no exercício da função administrativa. São categóricos, ao
enfatizar que “Corte de Contas não é Conselho de Estado.”
Mesmo aqueles que interpretam de forma mais extensiva as competências do TCU,
enfatizam “não ser possível concluir que os Tribunais de Contas possam se substituir ao
administrador público na definição de escolhas estatais legítimas, analisando a conveniência e
oportunidade (mérito) de uma determinada medida.” (WILLEMAN, 2017, p. 30).
4.3. As competências do TCU – e seus limites
Em um arranjo institucional complexo e policêntrico, como é típico das democracias
contemporâneas, é fundamental compreender e respeitar os limites das competências
estipulados pelo Direito, sob pena de uma instituição usurpar as funções de outra, disseminando
insegurança jurídica.
Constitui, assim, questão central para o desenvolvimento do presente trabalho, antes
mesmo de compreender as possibilidades de interação entre o TCU e as agências reguladoras,
entender se a Corte de Contas pode fazer controle de conformidade legal em relação a toda e
qualquer atuação administrativa, bem como se, ao fiscalizar a performance/desempenho de um
órgão ou entidade da Administração, pode fazer prevalecer suas posições, adotadas com base
em critérios de legitimidade e economicidade.
A ampliação de competências do TCU levada a efeito pela Constituição de 1988 foi
bastante significativa, porém não ilimitada. O texto constitucional aponta os limites dos
poderes, a partir de uma combinação de objetos, parâmetros e produtos do controle.
67
De fato, quanto aos objetos, o Tribunal passou a fiscalizar, além dos aspectos
orçamentário, financeiro, contábil e patrimonial da atividade administrativa, também a
dimensão operacional. Esta consiste, basicamente, em avaliar a performance da Administração,
que pode ser resumida, de acordo com a literatura internacional, na economicidade, efetividade
e eficiência da ação estatal. Pode, assim, o Tribunal, realizar auditorias e inspeções de natureza
contábil, financeira, orçamentária e operacional. É o que diz o art. 71, IV da CF/8872.
No que se refere aos parâmetros, a Constituição também expandiu as possibilidades de
controle, ao dizer, no caput do art. 70, que inaugura a seção IX, intitulada “da fiscalização
contábil, financeira e orçamentária”73, que os objetos acima referidos serão fiscalizados quanto
à legalidade, legitimidade e economicidade.
É importante ressaltar que o controle externo não é exercido só pelo TCU. É exercido
primariamente pelo Congresso Nacional. O Tribunal possui várias competências autônomas74,
como se verá mais adiante, mas tem também atribuições colaborativas, de fato auxiliares75, para
usar a terminologia empregada na Constituição. Deve a Corte de Contas atuar, quando não
estiver no exercício de competência autônoma, para produzir elementos, apoiar e subsidiar o
controle feito pelo titular da competência, que é o Poder Legislativo.
O art. 71, da CF/88, elenca os vários poderes autônomos do TCU, que são, na verdade,
os produtos do controle. Tem, assim, o TCU competência para: (i) julgar, ele próprio, as contas
dos ordenadores de despesas e demais responsáveis pela guarda ou utilização de recursos
públicos (inciso II); (ii) efetuar o registro de atos de pessoal e de aposentadoria de servidores
dos órgãos e entidades do Poder Público federal (inciso III); (iii) adotar medidas cautelares
visando a prevenir lesão ao erário – sustação de ato (inciso X); (iv) imputar débito, com força
executiva, aos responsáveis por danos causados ao erário (§ 3º); (v) aplicar multas e outras
sanções legalmente previstas em caso de irregularidades (inciso VIII); (vi) determinar a adoção
das medidas corretivas necessárias em caso de atos ilegais (inciso IX); (viii) prestar informações
72 Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas
da União, ao qual compete:
IV - realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de
inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas
unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso
II; 73 Interessante notar que o título da seção não inclui os objetos patrimonial e operacional. Não parece que isto
signifique a exclusão desses aspectos do raio de incidência do controle, já que estão expressamente mencionados
no rol de competências previsto nos arts. 70 e 71. Mas denota, pelo menos, a centralidade da fiscalização da
atividade financeira na atuação do TCU, parecendo ser esta, historicamente, sua vocação e orientação
institucionais. 74 Autônomos porque o TCU não depende de outros órgãos ou Poderes para exercitá-los. 75 O caput do art. 71 da CF/88 diz que o controle externo é exercido pelo Congresso Nacional, com o auxílio do
Tribunal de Contas da União.
68
ao Congresso Nacional sobre os resultados das fiscalizações (inciso VII); e (ix) representar
perante outras instâncias competentes para apuração e responsabilização (inciso XI).
São bem extensos e amplos, como se vê, os objetos, parâmetros e produtos do controle
exercido pelo TCU. Mas as possibilidades de combinação entre eles não são totalmente livres,
também são delimitadas pela Constituição.
Nesse sentido, a síntese de Sundfeld e Câmara (2013, p. 182), segundo a qual “a
fiscalização do Tribunal de Contas é bem ampla no que se refere a seu objeto e parâmetro, mas
é muito condicionada quanto a seu produto.”
Há quem entenda que o controle de legalidade exercido pelo TCU se estenderia sobre
qualquer atividade administrativa desempenhada pelas entidades sujeitas à jurisdição da Corte
de Contas (FIDALGO, 2011). Os limites de sua atuação não estariam adstritos à matéria
financeira propriamente dita, mas, sim, a qualquer questão inerente à atuação administrativa. O
próprio TCU, é importante dizer desde já, entende da mesma maneira, como ficará mais claro
na parte do trabalho em que serão analisados detalhadamente alguns casos relevantes apreciados
pela Corte.
De acordo com essa lógica, estaria o TCU habilitado a fiscalizar a conformidade de
todos os atos regulatórios das agências reguladoras, mas também, por exemplo, a regularidade
de licenças ambientais do IBAMA, de decisões do CADE que examinam atos de concentração
de empresas, das resoluções e circulares do Banco Central, e por aí vai.
Essa posição mais expansiva, acerca das competências do TCU, contudo, não parece ter
amparo no texto constitucional. Em sua tese de doutoramento, André Rosilho (2016, p. 217)
demonstrou que:
Apesar de a Constituição ter genericamente autorizado o Tribunal a proceder
a fiscalizações dos mais variados tipos e capazes de abarcar os mais variados
objetos (art. 71, IV, da Constituição), só aquelas que envolvam matérias
financeiras, orçamentárias, contábeis e patrimoniais é que o autorizarão a
agir impositivamente, via edição de atos sancionatórios ou via edição de atos
de comando. É que as atribuições e competências do TCU que envolvem a
prática de atos impositivos (sanções ou atos de comando) foram desenhadas
(inclusive historicamente) para serem desempenhadas em um específico
campo de atuação (o financeiro), e não no ambiente mais amplo em que o
TCU, com o tempo, passou a ser legitimado a atuar.
O autor (2016, p. 334) esclarece por que nos regimes constitucionais anteriores não
havia muita dúvida quanto às possibilidades de controle:
Foi assim na Constituição de 1891, de 1934, de 1937, de 1946, de 1967 e de
1969. A legislação historicamente associou o exercício de toda e qualquer
competência e atribuição do TCU — tanto aquelas inseridas no seu campo de
jurisdição direta como aquelas inseridas no seu campo de jurisdição indireta
69
— à realização de controle de legalidade exclusivamente em matérias
financeiras. Pelo fato de todas as suas atividades de controle terem sido
associadas aos mesmos parâmetros e às mesmas matérias, o espaço para
dúvidas acerca de suas possibilidades e limites de controle era menor.
De acordo, então, com uma interpretação mais restritiva76, portanto, pode-se dizer que
as competências impositivas, ou seja, para dar ordens e aplicar sanções, são restritas à atividade
financeira – em sentido amplo - da Administração (aspectos orçamentário, financeiro – em
sentido estrito -, contábil e patrimonial), e devem ser orientadas pelo parâmetro da legalidade.
Basta ver que os dispositivos da Constituição que tratam de atos impositivos, associam sempre
atividade financeira e legalidade. É o caso do inciso VIII, que dispõe sobre a aplicação de
sanção em caso de ilegalidade de despesa; prossegue no inciso IX, com a possibilidade de o
TCU assinar prazo (determinar, portanto) para que o órgão ou entidade adote as providências
necessárias, em caso de ilegalidade; e do inciso X, que prevê a sustação do ato, caso não seja
atendida a determinação prevista no inciso IX.
De maneira coerente com a lógica acima descrita, a Lei nº 8.666/93, que disciplina as
licitações e contratos administrativos pertinentes à contratação de obras, compras e serviços
pela Administração Pública, atribui expressamente, em seu art. 113, competência ao TCU para
realizar o controle de despesas decorrentes dos instrumentos regidos pela lei em referência:
Art. 113. O controle das despesas decorrentes dos contratos e demais
instrumentos regidos por esta Lei será feito pelo Tribunal de Contas
competente, na forma da legislação pertinente, ficando os órgãos
interessados da Administração responsáveis pela demonstração da
legalidade e regularidade da despesa e execução, nos termos da Constituição
e sem prejuízo do sistema de controle interno nela previsto.
§ 1º Qualquer licitante, contratado ou pessoa física ou jurídica poderá
representar ao Tribunal de Contas ou aos órgãos integrantes do sistema de
controle interno contra irregularidades na aplicação desta Lei, para os fins
do disposto neste artigo.
§ 2º Os Tribunais de Contas e os órgãos integrantes do sistema de controle
interno poderão solicitar para exame, até o dia útil imediatamente anterior à
data de recebimento das propostas, cópia de edital de licitação já publicado,
obrigando-se os órgãos ou entidades da Administração interessada à adoção
de medidas corretivas pertinentes que, em função desse exame, lhes forem
determinadas.
No âmbito de sua atuação indireta, ou seja, não impositiva, o TCU tem amplo espectro
de ação, podendo analisar a performance da Administração – dimensão operacional (ou
gerencial) da atividade estatal -, à luz da legitimidade e economicidade, e levantar dados e
informações, emitir orientações e sugestões, a fim de colaborar com a gestão pública. Pela
76 Utilizo a expressão restritiva para contrastar com expansiva, mas entendo que é uma interpretação estrita da
Constituição e coerente com a evolução histórica do TCU no Brasil e com suas características institucionais.
70
importância do tema para o propósito do presente trabalho, trataremos com um pouco mais de
detalhe das auditorias operacionais e da dimensão cooperativa do controle em tópico específico.
Ou seja, só matérias financeiras em sentido amplo — isto é, que de algum modo digam
respeito a receitas ou despesas públicas — compõem seu campo de atuação direta. Em relação
às demais matérias, sobre as quais eventualmente se debruça no bojo de auditorias operacionais,
o Tribunal não tem poder de intervenção direta e específica e, portanto, não tem a possibilidade
de emitir atos de comando. Nessas outras searas (que não financeiras), a Corte de Contas poderá
agir de outra maneira (não impositivamente), apoiado em outras competências e atribuições
(ROSILHO, 2016, p. 219).
Além disso, caso identifique, durante suas inspeções e auditorias, o cometimento de
ilegalidades em atividades que não a financeira, tem o TCU competência para representar
perante as instâncias competentes para apuração e responsabilização.
É coerente com o sistema jurídico brasileiro, caracterizado pela multiplicidade e
policentrismo institucionais, a competência para representar perante outros órgãos, tendo em
vista a fragmentação de competências, típica de arranjos contemporâneos de freios e
contrapesos.
Nessa linha, Speck (2000, p. 165) acentua que
A sua função como órgão de controle também é produzir informações
relevantes, para que outras instâncias possam tomar decisões e criar
iniciativas. Não somente o parlamento é um possível receptor dos relatórios
do Tribunal de Contas, mas o público em geral também pode funcionar como
transmissor de falhas apontadas. As funções do Tribunal, como perito, são a
criação de competência para outras instâncias que tomam decisão.
Fundamental ressaltar, nessa linha, que a competência sancionatória do TCU, de
extrema relevância para incentivar os administradores a gerirem os recursos públicos em
conformidade com os ditames legais, é restrita aos casos de ilegalidades em matéria financeira,
seja em virtude de um ato específico, ou de contas julgadas irregulares.
Veremos mais adiante, em tópicos específicos, que a Lei Orgânica do TCU e o
Regimento Interno do TCU vão além dessa moldura constitucional e ampliam as possibilidades
de aplicação de sanção e de adoção de medidas cautelares, reforçando a concepção expansiva
que o Tribunal tem acerca de suas competências.
No que tange ao momento da fiscalização, a Constituição estabeleceu, como regra, o
controle posterior, delimitando expressamente as hipóteses de controle prévio. Este foi previsto
apenas nos casos de registro de admissão de atos de pessoal e de aposentadorias e pensões,
conforme inciso III do art. 71.
71
Contudo, o TCU tem feito, ainda, como será detalhado mais à frente, controle prévio de
modelagens, editais e contratos de concessões de infraestrutura, com base em normas editadas
pelo próprio Tribunal.
Deve-se mencionar, por fim, a competência do TCU para editar regulamentos. Primeiro,
importante ficar claro que a Constituição não atribuiu ao TCU poder normativo, na verdade
nada disse a respeito. Foi a LOTCU que previu, em seu art. 3º77, o poder regulamentar do
Tribunal, que foi habilitado, com isso, a “expedir atos e instruções normativas sobre matéria de
suas atribuições e sobre a organização dos processos”.
Rosilho (2016, p. 123) lembra que, na Assembleia Nacional Constituinte, o TCU
pleiteou a inserção de dispositivo que lhe conferisse poder normativo, para que o Tribunal
“pudesse editar normas voltadas a organizar aspectos puramente processuais”, conforme
esclarecimento do ministro do TCU Ewald Pinheiro junto aos congressistas. Mas ainda assim
o pleito não vingou.
O autor realça o caráter lacônico do dispositivo da LOTCU que deu ao TCU poder
regulamentar, mas defende que este seria restrito ao regramento de aspectos procedimentais
ligados ao desempenho concreto de suas atribuições e ao funcionamento interno do próprio
Tribunal (ROSILHO, 2016, p. 125).
Na mesma linha, Barroso (1996, p. 140), para quem:
O Tribunal de Contas não tem competência constitucional para exercer o
poder regulamentar, que é privativo do Executivo. A lei que se refere ao
exercício de tal competência deve ser interpretada conforme a Constituição,
com o sentido de que o órgão de contas desfruta de competências normativas
inferiores, e não do poder de editar regras gerais e abstratas. Não tem o
Tribunal competência para editar regulamentos de execução, regulamentos
autônomos, nem muito menos para invadir a esfera de reserva legal, com o
fim de impor obrigações, estabelecer requisitos ou ditar vedações que não
tenham apoio na lei.
Ocorre que o TCU parece ter interpretação diferente desse arranjo normativo e tem
produzido normas com alcance que ultrapassa esses limites. Basta ver, no que pertine ao tema
central deste trabalho, as instruções normativas que obrigam a Administração Pública a
submeter ao TCU os editais de licitações das concessões públicas antes de sua publicação,
notadamente a recente Instrução Normativa nº 81/2018, que será detalhada mais adiante. Trata-
77 Art. 3° Ao Tribunal de Contas da União, no âmbito de sua competência e jurisdição, assiste o poder
regulamentar, podendo, em conseqüência, expedir atos e instruções normativas sobre matéria de suas atribuições
e sobre a organização dos processos que lhe devam ser submetidos, obrigando ao seu cumprimento, sob pena de
responsabilidade.
72
se de competência – o controle prévio de editais – não prevista na legislação e que passa a ter
fundamento apenas na norma do TCU.
Rosilho (2016, p. 274) chama atenção para a estratégia do TCU de expandir os limites
do controle, por meio do exercício do poder normativo:
Observa-se, no entanto, que não raro o TCU, sob o pretexto de regulamentar
suas competências e atribuições, tem se valido do seu poder normativo para
conferir à legislação “interpretação” peculiar, que, na prática, acaba
alargando suas possibilidades de controle via edição de atos de comando
para além dos limites fixados pelas normas constitucionais e legais.
O autor (2016, p. 355) resume, então, sua concepção acerca dos limites estipulados pela
Constituição para o exercício de competências impositivas pelo TCU:
Olhar atento para as normas constitucionais revela que as competências do
TCU inseridas no seu campo de jurisdição direta (para praticar atos
sancionatórios e atos de comando), e todas as atribuições a elas vinculadas,
só poderão ser exercidas em matérias estritamente financeiras (financeiras,
contábeis, orçamentárias ou patrimoniais), única e exclusivamente mediante
controle de legalidade. Essa conclusão está calcada tanto na redação
expressa da Constituição, como no fato de que interpretá-la de outra maneira
importaria em descaracterizar o Tribunal como órgão de controle externo.
O TCU, porém, possui visão distinta acerca dos limites de seus poderes. Além de dizer
expressamente que possui competência para realizar um controle de legalidade amplo, sobre
todas as atividades da Administração, também emite atos de comando orientados por critérios
de legitimidade e economicidade. Trataremos disso com mais profundidade mais adiante.
Mendonça (2012, p. 153) é realista ao dizer que “as instâncias de controle sempre
tenderão a autointerpretações maximizadoras de seu poder. É natural que seja assim. Há uma
vis expansiva das entidades de controle.”
Para facilitar a leitura e compreensão do argumento da pesquisa, e pela relevância para
o tema da interação específica entre o TCU e as agências reguladoras de infraestrutura, algumas
competências do TCU serão exploradas detalhadamente no capítulo final do trabalho, em que
serão apresentadas algumas estratégias utilizadas pelo Tribunal para interferir na regulação. É
o caso (i) do controle prévio de editais e contratos; (ii) do poder sancionatório; e (iii) da adoção
de medidas cautelares.
4.3.1. Auditorias operacionais e a dimensão cooperativa do controle
A literatura internacional aponta a mudança de orientação do controle, conforme trecho
da obra de Charles Waline, traduzido e transcrito por Willeman (2017):
73
A partir do momento em que eles têm o mesmo objetivo – o aprimoramento
da gestão pública – controlador e controlado estão ambos vocacionados à
colaboração. Donde a emergência, na problemática do controle, da noção de
‘conselho’, que poderia parecer paradoxal até pouco tempo atrás. Admite-se,
hoje em dia, que um bom trabalho de controle repousa sobre um diagnóstico
compartilhado entre controlador e controlado, diagnóstico este que deve
permitir a melhor aceitação e absorção das diretrizes preconizadas com a
avaliação. Passa-se, assim, de uma lógica ‘coercitiva’ para uma lógica do
‘conselho’, considerando que o controlado está, na imensa maioria dos casos,
de boa fé e sinceramente empenhado em aprimorar sua gestão.
A ênfase no viés cooperativo do controle visa justamente a fortalecer uma concepção
dialógica que reduza o potencial invasivo na esfera discricionária da Administração e
proporcione, ao mesmo tempo, o amadurecimento e a evolução das decisões na matéria
(WILLEMAN, 2017, p. 237).
Embora pareça alinhar-se mais à interpretação expansiva das competências do TCU,
Willeman (2017) defende enfaticamente que a perspectiva dialógica e colaborativa deve pautar
a interação entre a Corte de Contas e as agências reguladoras, proporcionando o intercâmbio de
informações, a crítica construtiva de pontos de vista e o aprendizado interinstitucional.
É certo que o Tribunal tem muito a contribuir com a atividade administrativa, na sua
condição institucional de observador externo independente, como enfatiza André Rosilho
(2016), por meio do controle operacional/de performance, no qual pode atuar, e já vem atuando,
subsidiando a gestão pública com boas práticas, dados e informações levantados em suas
auditorias.
Rosilho (2016, p. 297) elenca as características do TCU que o qualificam a dar relevante
contribuição ao aprimoramento da gestão pública, por meio das auditorias operacionais: o fato
de o Tribunal (i) ocupar posição institucional privilegiada (observador externo independente);
(ii) possuir corpo técnico plural e extremamente qualificado; (iii) possuir estrutura interna
sofisticada e especializada nos mais variados nichos do Estado; e (iv) ser capaz de centralizar
dados e informações advindas de toda a administração pública — em tese permitindo-o
identificar gargalos e refletir sobre melhores práticas na administração.
O autor (2016, p. 343) argumenta, ainda, no sentido de que o controle, em sua dimensão
cooperativa, teria até mais efetividade e capacidade de influenciar a Administração Pública:
A capacidade que o TCU tem de impactar e de influir (nos demais Poderes,
na gestão financeira e administrativa do Estado e em órgãos de controle em
geral) teoricamente é até mesmo maior quando age no seu âmbito de
jurisdição indireta, pois está menos engessado pelo Direito, é capaz de
alcançar com sua ação universo significativamente mais amplo de atores e,
pelo fato de nesse ambiente não agir por meio de comandos, mas
essencialmente por meio de diálogo e de cooperação, pode fazer com que suas
ideias e propostas tenham maior receptividade junto a seus jurisdicionados.
74
A Constituição previu, no art. 71, IV, a competência do TCU para realizar auditorias de
natureza contábil, financeira, orçamentária, e também operacional, por iniciativa própria ou a
pedido do Congresso Nacional. Importante notar que a competência para realizar a fiscalização
operacional propriamente dita foi atribuída ao Congresso Nacional, nos termos do art. 70. O
TCU pode realizar auditorias, para levantar informações, subsidiar o controle a ser realizado
pelo Poder Legislativo (o inciso VI do art.71 prevê que o TCU prestará ao Congresso Nacional
as informações solicitadas pelo Congresso Nacional sobre os resultados das auditorias
realizadas) e produzir sugestões de aprimoramento da Administração Pública.
Pollitt e Summa (2008) enfatizam que não há uniformidade de tratamento entre os países
em relação às auditorias operacionais. E a legislação brasileira também não detalha exatamente
o que seria a auditoria operacional, fazendo com que os autores e controladores brasileiros
busquem na literatura e experiência estrangeiras as referências para conceituar e exercitar as
auditorias operacionais. Nem mesmo a Lei Orgânica e o Regimento Interno do TCU trazem
seções dedicadas às auditorias operacionais.
Segundo Moreira Neto (Curso, p. 634), a fiscalização operacional recai sobre “a busca
da eficiência administrativa, por meio da maximização quantitativa e qualitativa dos resultados,
com a minimização dos dispêndios.”
É bem disseminada a noção de que as auditorias operacionais instrumentalizam a
chamada accountability de performance. Para exercer controle de performance, é fundamental
o detalhamento das expectativas em termos de resultados – e não em termos de regras,
regulamentações ou processos.
Conforme Willeman (2017, p. 266), no âmbito de uma auditoria operacional, os órgãos
de controle podem formular propostas de aperfeiçoamento e contribuir para melhorar o seu
impacto na sociedade. A autora demarca, assim, uma diferença essencial entre a auditoria
tradicional - de conformidade - e a operacional, ao enfatizar o caráter adversarial da primeira e
cooperativo da segunda:
As auditorias de conformidade, ao se concentrarem na regularidade do
comportamento do gestor público à luz das normas, valorizam as
consequências sancionatórias decorrentes dos erros e das irregularidades
detectadas. As auditorias de performance seguem lógica diversa: valorizam
o acerto, a busca pelo bom e satisfatório desempenho através do incremento
de medidas cooperativas que tornam os atores do ciclo de accountability
aliados e parceiros, e não adversários.
75
A mesma autora (2017, p. 287) relaciona os tipos de auditoria com os parâmetros e
produtos do controle, destacando que, enquanto nas fiscalizações de conformidade legal as
conclusões assumem caráter coercitivo e podem ensejar determinações e sanções dirigidas aos
órgãos e gestores fiscalizados, “nas auditorias operacionais predomina o exame de resultados
sob o prisma da legitimidade, eficiência e eficácia, sendo suas conclusões veiculadas por meio
de recomendação ao órgão controlado.”
Willeman (2017, p. 297) deixa bem clara a dimensão dialógica do controle de
performance, executado por meio de auditorias operacionais, com base em parâmetros outros
que não a legalidade:
O referencial ideal no controle de legitimidade é o incremento de arranjos
dialógicos e colaborativos, que possam favorecer uma atuação coordenada
entre as diversas instâncias que participam do processo de tomada de decisão
pública. O caminho natural nas deliberações pressupõe, assim, a adoção de
fórmulas não coercitivas, prestigiando-se o eixo pedagógico do controle
externo, em particular mediante a utilização de recomendações à
administração controlada.
Fundamental compreender, então, que as fiscalizações operacionais, orientadas pelos
critérios de economicidade e legitimidade, não podem dar ensejo a atos de comando,
impositivos. É justamente a dimensão cooperativa do controle.
O membro do MP junto ao TCU, Lucas Rocha Furtado, já teve a oportunidade de
salientar a importância das auditorias operacionais na prática do TCU, como ferramenta de
análise dos resultados da Administração Pública e desprovida de viés coercitivo. A
manifestação consta do Acórdão nº 1.703/2004:
O TCU, no exercício do controle externo, assimilou essas transformações e
tem se dedicado, com grande êxito, ao estudo e à prática de trabalhos de
fiscalização de natureza operacional, visando aferir a atuação finalística do
Estado no exercício de suas funções e no cumprimento de seus deveres. Além
disso, a fiscalização operacional tem propiciado o aperfeiçoamento da
atuação estatal, pois, a partir dela tem sido sugeridas soluções para
problemas detectados nos trabalhos de campo.
E aí aponta as auditorias operacionais como mecanismo fundamental de interação entre
o TCU e as agências:
O controle do TCU sobre o exercício do poder discricionário das agências
reguladoras amolda-se, a toda evidência, ao escopo de uma auditoria
operacional, na medida em que o objetivo desse tipo de fiscalização, que
muito se diferencia da fiscalização que busca a aferição da conformidade
legal dos atos administrativos, visa ao exame, com fins prospectivos, dos
meios e dos resultados alcançados pelo Estado no cumprimento de seu dever
constitucional de prestar, diretamente ou mediante delegação, serviços
públicos adequados à coletividade. Diferentemente do que ocorre nas
76
fiscalizações de conformidade legal, cujas conclusões podem dar ensejo a
determinações dirigidas ao fiscalizado, com o fim de que esse último sane os
problemas detectados, nas fiscalizações de natureza operacional, em que o
TCU avalia resultados à luz de parâmetros de eficiência, eficácia e
economicidade, as conclusões dão ensejo ao encaminhamento de
recomendações ao fiscalizado. Cientificado do conteúdo dessas
recomendações, poderá o fiscalizado, também no exercício de seu poder
discricionário, decidir pela sua implementação;
O TCU tem feito regulares auditorias operacionais nas agências, por meio das quais tem
produzido relevantes diagnósticos sobre a governança dessas entidades, que podem ajudar a
aperfeiçoar a sua capacidade regulatória. Seja por meio de análises mais gerais, como a que
resultou no Acórdão nº 240/2015, na qual a Corte buscava avaliar o processo decisório no
âmbito das agências reguladoras de infraestrutura, identificou inúmeros déficits78 e fez várias
recomendações; ou através de auditorias específicas, como a que analisou os procedimentos de
fiscalização dos contratos da 2ª Etapa do Programa de Concessões de Rodovias Federais –
Acórdão nº 3.237/2013; e a que avaliou a governança da ANAC (enquanto regulador) e da
INFRAERO (enquanto sócia minoritária das concessões de Brasília, Guarulhos, Viracopos,
Galeão e Confins), para acompanhar os contratos de concessão aeroportuária – Acórdão nº
548/2014.
Isso porque o controle das atividades finalísticas das agências reguladoras em grande
medida justifica-se pela dimensão gerencial do controle, ou seja, aquela que se volta para a
performance do órgão controlado. Nessa linha, o pensamento de Zymler e Almeida (2008, p.
173):
Por intermédio das auditorias operacionais realizadas nas agências
reguladoras, o TCU fiscaliza, entre outras questões, a execução dos contratos
de concessão ou de permissão. Essa fiscalização poderia ensejar uma
redundância das esferas de controle, visto que uma das principais atribuições
das agências é exatamente fiscalizar esses contratos. Para evitar que essa
indesejável superposição de atividades ocorra, o Tribunal deve exercer uma
fiscalização de segundo grau, buscando identificar se as agências estão
cumprindo bem e fielmente seus objetivos institucionais, dentre os quais
avulta o de fiscalizar a prestação de serviços públicos, sem se imiscuir
indevidamente na área de competência privativa das agências.
78 Analisando as agências reguladoras de infraestrutura, o TCU apontou problemas relacionados a escolha dos
dirigentes, política de conflito de interesses, autonomia financeira, transparência, institucionalização da análise de
impacto regulatório e estratégia organizacional.
77
4.4. Estrutura e organização do TCU
O TCU é formado por 9 (nove) ministros, que se reúnem para deliberações e julgamento
no Plenário e em Câmaras (atualmente duas), conforme competências estabelecidas no
Regimento Interno do Tribunal79.
Além dos ministros, escolhidos conforme critérios e procedimento previsto na
Constituição Federal, já detalhados anteriormente, atuam no TCU os auditores, nomeados pelo
Presidente da República após concurso público de provas e títulos. Os auditores, a teor do § 4º
do art. 73 da Constituição, substituem os ministros, gozando das mesmas garantias e
impedimentos do titular. Embora a Constituição e a Lei Orgânica apenas se refiram à figura do
“auditor”, o Regimento Interno do Tribunal, desde reforma realizada em 2011, passou a dedicar
capítulo aos “ministros-substitutos” – capítulo XI (art. 51 e seguintes) -, e não faz qualquer
menção aos “auditores”.
Atua no Tribunal o “Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União
(MPTCU)”, formado por uma carreira própria, composta de um procurador-geral, três
subprocuradores-gerais e quatro procuradores. O MP oficia em todos os processos que tramitam
na Corte, emitindo parecer após a disponibilização do relatório da unidade técnica e antes do
julgamento pelo Plenário.
A Secretaria do TCU, encarregada da prestação de apoio técnico e da execução de
serviços administrativos, é subdividida em três Secretarias-Gerais: Secretaria-Geral da
Presidência, Secretaria-Geral de Controle Externo e Secretaria-Geral de Administração.
Sob a Secretaria-Geral da Presidência (Segepres) funcionam atividades como assessoria
parlamentar, a ouvidoria, planejamento, comunicação, tecnologia da informação, a escola do
TCU (o Instituto Serzedello Corrêa80), dentre outras.
Já na estrutura da Secretaria-Geral de Administração (Segedam) situam-se as secretarias
de gestão de pessoas; de segurança, de licitações, contratos e patrimônio; de engenharia; e de
orçamento.
79 Aprovado por meio da Resolução TCU nº 246, de 30 de novembro de 2011. 80 Segundo informação constante do site do TCU, o Instituto Serzedello Corrêa (ISC), escola de governo do TCU,
“é a unidade de apoio estratégico vinculada à Secretaria-Geral da Presidência do TCU responsável pelas ações de
Educação Corporativa da Casa. Destina-se a promover o desenvolvimento de competências profissionais e
organizacionais e a educação continuada de servidores e colaboradores desta Corte de Contas, bem como ações
educativas voltadas ao público externo que contribuam com a efetividade do controle e a promoção da cidadania.
Também é responsável pela seleção, formação e integração inicial de novos servidores.”
78
Segepres e Segedam são, como se vê, órgãos incumbidos da execução dos serviços
administrativos, da gestão, portanto, da complexa estrutura administrativa do Tribunal,
indispensável para que este possa desempenhar suas atividades finalísticas, concernentes ao
controle externo da Administração Pública.
À Secretaria-Geral de Controle Externo (Segecex), por sua vez, incumbe a prestação de
apoio técnico, que consiste na realização das atividades de fiscalização propriamente ditas, que
subsidiarão os julgamentos a serem proferidos pelo Tribunal, por meio de seus órgãos
colegiados.
A Segecex conta com unidades descentralizadas nos estados e é dividida em unidades
que, em certa medida, espelham a organização da Administração Pública, conforme os diversos
eixos temáticos de atuação do Estado. Nessa medida, há secretarias de controle externo
encarregadas da análise centralizada de questões transversais a toda a Administração, como
pessoal (Sefip), tecnologia da informação (Sefti) e aquisições logísticas (Selog), e cerca de 16
secretarias de controle externo “temáticas” (Fazenda, Educação, Defesa, Previdência, Saúde,
Ambiental, Infraestrutura, etc.). Em relação aos setores de infraestrutura, há 7 secretarias, que
reúnem os diversos setores e atividades: SeinfraCOM (hídrico, comunicações e mineração);
SeinfraElétrica (energia elétrica); SeinfraOperações (operações especiais em infraestrutura);
SeinfraPetróleo (petróleo e gás natural); SeinfraPortoFerrovia (portos e ferrovias);
SeinfraRodoviaAviação (rodovias e aviação civil); SeinfraUrbana (infraestrutura urbana).
A “clientela” (órgãos e entidades sujeitos à fiscalização de cada uma das unidades) de
cada uma das secretarias é especificamente definida por ato interno do próprio Tribunal de
Contas da União.
A Secretaria dispõe de quadro próprio de pessoal, organizado em plano de carreiras,
cujos princípios, diretrizes, denominações, estruturação, formas de provimento e demais
atribuições são fixados em lei específica81.
São carreiras bem remuneradas, chegando os Auditores Federais de Controle Externo a
auferir rendimentos, considerando a estrutura remuneratória que envolve vencimento básico,
gratificações e funções comissionadas, bem próximos do teto do serviço público federal
81A Lei nº 10.356/2001 dispõe sobre o quadro de pessoal e o plano de carreira do TCU, organizando a “Carreira
de Especialista do Tribunal de Contas da União”, integrada por três cargos: Analista de Controle Externo (1.096
cargos), de nível superior; Técnico de Controle Externo (994 cargos), de nível médio; e Auxiliar de Controle
Externo (30 cargos), de nível básico. A Lei nº 11.950/2009 determinou que os cargos de Analista de Controle
Externo e Técnico de Controle Externo passassem a se chamar Auditor Federal de Controle Externo e Técnico
Federal de Controle Externo, respectivamente.
79
(subsídio do Ministro do STF)82, o que confere bastante atratividade aos concursos e
estabilidade aos quadros de servidores.
Embora sejam o Plenário e as Câmaras os órgãos decisórios do Tribunal, as unidades
técnicas, notadamente as que compõem a Secretaria-Geral de Controle Externo, possuem
grande relevância e influência na conformação da atuação do TCU. Basta ver que as instruções
levadas a cabo pelas secretarias não se sujeitam a interferência ou direcionamento por parte dos
gabinetes dos Ministros e dos órgãos decisórios.
As secretarias de controle externo possuem estrutura robusta, corpo técnico estável, e é
nesse âmbito que têm se verificado a crescente capacitação e especialização técnica do Tribunal
nas diversas áreas de atuação do Estado. Os Ministros, em geral, possuem trajetória política83,
e não técnica, e perfil generalista.
4.5. O processo no TCU
A Instituição Superior de Controle brasileira é estruturada como um tribunal. Apesar de
haver consenso no sentido de que sua função não é jurisdicional, o processo no TCU é, em
grande medida, judicialiforme.
A reorientação vocacional que tanto tem influenciado a atuação do TCU, no sentido de
fazer cada vez mais auditorias de caráter operacional, não se refletiu em seu procedimento. O
processo no TCU, independentemente de qual seja a natureza da fiscalização, continua
orientado pela lógica do controle de conformidade.
Conforme Bruno Speck (2000), a lógica processual e impositiva da atuação do TCU
decorre, em grande medida, da centralidade histórica de sua competência para julgar contas
(SPECK, 2000).
Depreende-se da análise da estrutura e do procedimento no âmbito do TCU que não há
práticas e rotinas muito diferentes em relação a cada tipo de fiscalização. As manifestações do
Tribunal, mesmo em suas auditorias operacionais, embora tecnicamente sofisticadas,
82 Vide as tabelas constantes dos anexos da Lei nº 10.356/2001. 83 Dos 9 ministros atuais, 5 possuem longa trajetória política (o Ministro José Múcio foi prefeito, deputado federal
por 5 mandatos, ministro de relações institucionais do governo Lula; a Ministra Ana Arraes foi deputada federal;
o Ministro Augusto Nardes foi vereador, deputado estadual por 2 mandatos e deutado federal por 3 mandatos; o
Ministro Aroldo Cedraz foi deputado federal por 4 mandatos; e o Ministro Vital do Rego foi vereador, deputado
estadual, deputado federal e senador); 2 foram servidores do Senado Federal (o Ministro Raimundo Carreiro, além
de ter sido vereador, foi Secretário-Geral do Senado de 1995 a 2007; e o Ministro Bruno Dantas, que foi Consultor-
Geral do Senado por 4 anos); 1 era auditor do TCU (o Ministro Benjamin Zymler); e 1 era membro do MP junto
ao TCU (o Ministro Walton Alencar).
80
estruturam-se da mesma forma que os julgamentos de contas, com uma instrução feita pela
unidade técnica, manifestação do MP, voto do relator e deliberação do Plenário.
Os auditores possuem ampla liberdade para fiscalizar e produzir os relatórios, sujeitos à
aprovação no âmbito de cada secretaria, de acordo com a cadeia hierárquica respectiva, mas
não à prévia aprovação ou concordância do ministro relator do caso ou do Plenário.
As proposições veiculadas no relatório da unidade técnica não possuem, formalmente,
cunho mandatório, servindo, a rigor, apenas para instruir e subsidiar a decisão do Plenário, que
pode acolhê-las ou rejeitá-las, total ou parcialmente. No entanto, como se verá adiante, por meio
da análise de casos apreciados pelo Tribunal, as formulações das secretarias, antes mesmo de
serem objeto de deliberação pelos órgãos decisórios já possuem relevante influência e impacto
sobre a Administração Pública.
As sessões do Plenário e das Câmaras são muito semelhantes às sessões dos tribunais
judiciais. Há publicação prévia de pauta de julgamento, possibilidade de inscrição de partes,
advogados ou representantes para realização de sustentação oral, as sessões são conduzidas pelo
ministro presidente, é pública, conta com a participação de representante do MP, há
possibilidade de pedido de vista, etc.
As manifestações do Tribunal são veiculadas por meio de acórdão (uma figura típica
do processo judicial), do qual consta o relatório da unidade técnica, o parecer do MP, os votos
dos ministros relator e revisor, eventualmente de outros ministros, caso apresentem voto em
separado, e, ao final, a lista de recomendações e/ou determinações aprovada pela maioria dos
ministros.
O regimento interno do TCU prevê uma robusta sistemática recursal, reforçando, assim,
o caráter judicialiforme das suas deliberações, em que são admitidos pelo menos 5 recursos
diferentes: reconsideração (em processos de julgamento de contas); reexame (nos casos de atos
sujeitos a registro e nas fiscalizações de atos e contratos); embargos de declaração; recurso de
revisão (espécie de ação rescisória dos julgamentos de contas); e agravo (cabível contra
despachos monocráticos de cunho decisório e contra acórdãos de deferimento de medida
cautelar).
Deve-se observar, contudo, que, por outro lado, se, organicamente, o TCU e seu
processo são judicialiformes, não se verifica nos procedimentos do TCU o mesmo rigor em
relação à observância das garantias processuais. As fiscalizações no TCU podem, e
frequentemente são, instauradas a partir de representações formuladas pela unidades técnicas,
que são responsáveis pela instrução do processo no âmbito do Tribunal. Ou seja, o mesmo órgão
que representa, instrui e apresenta proposta de julgamento ao órgão decisório, que pode gerar,
81
além do bloqueio de ações administrativas, a aplicação de sanção pessoal aos agentes
responsáveis.
Em um caso julgado em 2009, por meio do Acórdão nº 1.201/2009, a ANEEL,
fiscalizada em sede de auditoria operacional, alegou que o processo no TCU teria justamente
um certo caráter “inquisitorial”, uma vez que, na instrução, o TCU limita-se a levantar dados e
elementos técnicos e não oportuniza ao órgão ou entidade fiscalizado a possibilidade de se
manifestar previamente sobre as ilegalidades aventadas pelo Tribunal. E aí, ao prolatar a
decisão, ponderou a agência, o TCU lança determinações baseadas no argumento de que foram
identificadas ilegalidades na ação estatal, sem que o órgão fiscalizado tenha podido se
pronunciar sobre as mesmas antes da formação do convencimento da Corte. O TCU, por sua
vez, ao apreciar a alegação da ANEEL, apenas argumentou que não faria sentido em falar em
caráter inquisitorial, uma vez que as determinações do TCU são orientadas pela perseguição do
interesse público, que é o mesmo objetivo das ações da Administração Pública84.
Observe-se, ainda, que as fiscalizações realizadas pelo TCU, e mesmo suas
deliberações, não são permeáveis a qualquer tipo de participação ou controle social. O TCU
não realiza audiências ou consultas públicas, nem em relação às suas deliberações, nem quanto
às normas que expede. A participação de interessados nos processos é orientada também por
uma lógica judicaliforme, uma vez que devem os mesmos requerer ao relator que lhe seja
facultado integrar formalmente o feito.
Além disso, não há uma sistematização dos entendimentos e orientações do TCU, de
maneira que os órgãos da Administração estão sujeitos a inúmeros acórdãos, sem que se saiba
exatamente, de forma sistematizada, o conteúdo das determinações em vigor. Ou seja, a
“regulação” expedida pelo TCU não é compilada em nenhum tipo de documento, de maneira
que agentes públicos e privados se submetem a um universo de decisões, cuja cognoscibilidade
é, em certa medida, incerta85.
84 Segue o trecho do acórdão: “Não há possibilidade, pois, de uma determinação do Tribunal, que serve ao maior
interesse público, vir a causar qualquer dano à ANEEL que, entidade de direito público, tem o mesmo interesse
do TCU. Seria um raciocínio de lógica bem interessante, embora algo teratológico, aquele que se incumbisse de
demonstrar como uma determinação do Tribunal de Contas viesse a causar ‘lesões’ à ANEEL, se ambos, o TCU
e a ANEEL, são entidades instituídas com vistas a preservar justamente o interesse público.” 85 Parece confirmar essa impressão o fato de o TCU ter lançado, em outubro de 2018, uma nova ferramenta, o
Conecta TCU, apresentada pelo Tribunal em seu site como “um canal de comunicação entre o Tribunal e a
administração pública, para organizar e centralizar o conteúdo da Casa dirigido a gestores de órgãos e entidades,”
cujo principal objetivo é “facilitar ao gestor de modo que conheça e cumpra as determinações do TCU e assim
contribuir com o aperfeiçoamento da administração pública.”85 Reconhece a Corte que, antes da criação dessa
ferramenta, “para acompanhar o que o Tribunal havia emitido a cada órgão ou entidade, gestores dessas unidades
jurisdicionadas precisavam buscar acórdãos relacionados na pesquisa de jurisprudência e cadastrar-se no push de
cada um dos processos de seu interesse.” Com o Conecta TCU, “as UJ podem ver em um único lugar todos os
processos, acórdãos, determinações e recomendações recebidas do Tribunal, de forma contextualizada e
82
5. Uma reflexão sobre a teoria das funções neutrais
A visão de um Estado centralizado e encarregado da tutela do interesse público é cada
vez mais substituída pela ideia de um Estado pluriclasse – expressão de Massimo Severo
Giannini -, pressionado por múltiplos interesses públicos, que de certa forma conflitam em uma
Arena Pública – expressão de Sabino Cassese.
Nesse sentido, a reflexão de Carlos Ari Sundfeld (2014, p. 69):
Também não é mais convincente a figura do interesse público aos cuidados
da Administração (tudo no singular: um interesse e uma Administração). Nas
situações que se apresentam é normal o conflito plural: entre muitos
interesses públicos, aos cuidados de muitos órgãos e entidades, públicas e
semipúblicas. O direito administrativo talvez já não se possa explicar pela
noção de interesse público, e sim pela de conflito público. Será, ele, agora o
direito dos conflitos públicos em arena democrática?
É inegável e inevitável, nesse complexo processo, a fragmentação do Estado, que passa
a ser muito mais plural e policêntrico, ou seja, com várias fontes de produção de normas e
decisões. A multiplicação de novos, variados e ampliados sistemas de produção do Direito é
apontada como a mutação jurídica contemporânea mais importante da pós-modernidade.
(MOREIRA NETO, 2011).
Essa diversificação se dá em meio a um processo de mudanças por que passou, e ainda
passa, o Estado Moderno, no sentido de construir um modelo de organização política menos
autoritária, mais eficiente e mais próxima do cidadão. Menos estatocêntrica e mais
antropocêntrica.
Segundo Moreira Neto (2011, p. 249):
Tornou-se necessário transcender a estreiteza funcional de dois esgotados
paradigmas da modernidade: a exclusividade da produção do Direito
atribuída ao Estado e o dogma da tripartição de poderes. De fato, as funções
de que carecia um Estado pós-moderno já não mais se poderiam confinar aos
dois campos de atividade até então convencionais – a criação e a aplicação
da lei – nem, tampouco e até com maior razão, reduzidos a uma atuação
centralizada monopolizada, fechada em si mesma e concentrada somente em
uma convencional trindade de poderes.
Rompe-se, ainda, com o mito de que a legitimação democrática depende
obrigatoriamente de intermediação partidária. Esta tornou-se insuficiente para países que
desenvolveram uma imensa complexidade social, que não mais se esgota apenas em oferecer
consolidada. É possível também acompanhar prazos de determinações, conhecer a situação de processos e usar
filtros para pesquisa em acórdãos, por exemplo.”
83
canais participativos para a mera escolha de pessoas que devem governar, precisando de novas
vias para a escolha de como se deve governar. (MOREIRA NETO, 2011).
O professor Diogo Moreira Neto (2011) explica a crise de legitimidade dos parlamentos,
seja por se dedicarem cada vez mais apenas aos interesses dos partidos políticos na busca pelo
poder, que chamou de interesses terciários, seja por terem perdido as condições de tempo e de
técnica para exercerem suas funções de controle.
Moreira Neto (2011) apresenta, então, o desenvolvimento de instituições neutras do
ponto de vista político-partidárias, dividindo-as em órgãos constitucionalmente independentes
e órgãos administrativamente autônomos, às quais caberia o exercício de funções neutrais,
como antídoto ao impasse de legitimação. Em suas palavras:
Assim é que, com o objetivo de maximizar a efetivação desses direitos
fundamentais da cidadania, como auspicioso rebento que veio a florescer nos
Estados Democráticos de Direito, conheceram extraordinário
desenvolvimento contemporâneo as funções neutrais, sobrevindas para
ampliar e processualizar os canais participativos, concorrendo para
possibilitar cada vez maior visibilidade e controle sobre as funções de
governança, com o que, atendem à sua primária destinação societal, tudo com
ampliados ganhos, tanto de legitimidade corrente, quanto de legitimidade
finalística, que, com as novas funções, lograram destaque.
Aragão (2013, p. 473) sintetiza a explicação acerca da origem da teoria dos poderes
neutrais:
No advento da Revolução Francesa acreditava-se que apenas os órgãos da
soberania popular, ou seja, os mandatários eleitos, poderiam levar a vida em
sociedade a bom termo. Logo, porém, foi verificada a necessidade da criação
de órgãos estatais com autonomia de gestão e independência funcional para,
fora do círculo político-eleitoral, controlar e equilibrar as relações entre os
titulares dos cargos eletivos para assegurar a observância dos valores
maiores da coletividade. Surgiram, então, os poderes neutrais do Estado, que
abrangem realidades díspares, desde as cortes constitucionais às agências
reguladoras independentes, passando pelos tribunais de contas, conselhos
com sede constitucional, etc.
O que fica claro, portanto, é que a teoria das funções neutrais se propõe a aperfeiçoar
tanto as alternativas decisórias praticadas no Estado, como é o caso da regulação por meio de
entidades autônomas, como os instrumentos de controle, como é o caso dos tribunais de contas.
Ressaltando que são órgãos que possuem escala de autonomia variável, Aragão (2013,
p. 474) descreve as características comuns dessas instituições como sendo: o caráter não eletivo
do provimento dos seus titulares; a natureza preponderantemente técnica das suas funções; e a
independência, ou seja, a ausência de subordinação hierárquica aos poderes políticos eletivos
do Estado como forma de propiciar o exercício imparcial das suas funções em relação aos
diversos interesses que estiverem em jogo.
84
O ponto pertinente à intrínseca relação entre independência e
imparcialidade/neutralidade, porém, merece ser vista com ceticismo. Afinal, a independência
não é, em si mesma, garantia de imparcialidade. A independência pode ser uma marca intrínseca
de certas instituições, ao passo que a imparcialidade é uma nota característica de um ator em
particular. A imparcialidade, para ser exercida, pressupõe independência, mas esta,
isoladamente, não é suficiente para assegurar neutralidade (WILLEMAN, 2017, p. 199).
Alexandre Aragão (2013, p. 474) adverte que “onde há Estado, há política.” De maneira
que “a neutralização dos poderes neutrais do Estado deve ser vista organizacionalmente, como
um requisito para que seja uma alcançada uma maior (mas não absoluta) neutralidade material
e tecnicismo.”
Se, de um lado, como visto, tem-se revelado desafiador retirar a regulação de
infraestrutura do raio de interferência direta do Poder Executivo central e dos interesses
político-partidários, de outro há críticas consistentes ao modelo institucional dos Tribunais de
Contas brasileiros, que não estaria sendo efetivo em neutralizar a influência política
(WILLEMAN, 2017).
Daí a necessidade de que sejam estruturados instrumentos de fiscalização e participação
dos cidadãos nas decisões tomadas por políticos eleitos e também por agentes públicos não
eleitos, os burocratas e dirigentes públicos, tendo em vista a sua crescente importância no
processo decisório estatal.
É corrente o argumento de que as agências padeceriam de uma espécie de déficit
democrático, por não ser dirigida por agentes eleitos e em função de seus dirigentes, em tese,
possuírem autonomia em relação ao poder político.
De fato, as agências reguladoras desafiam a teoria clássica da separação de poderes, mas
isso não quer dizer que se contraponham ao princípio democrático. A regulação por meio de
entidades autônomas almeja tornar a intervenção estatal tecnicamente especializada, mais
transparente e aberta à participação social e, portanto, controlável pela sociedade86.
Da mesma forma que a regulação autônoma impõe desafios do ponto de vista da
legitimidade, que precisaram ser enfrentados por meio da criação de limitações materiais e
formais ao exercício da discricionariedade, os órgãos de controle, constitucionalmente
86 O controle social é uma forma de accountability vertical que opera ininterruptamente, tendo como instrumentos
os mecanismos de consulta popular (plebiscito e referendo), os conselhos consultivos e/ou deliberativos no campo
das diversas políticas públicas, os processos orçamentários participativos, dentre outros. No campo das concessões
de infraestrutura, os instrumentos mais utilizados são as consultas e audiências públicas, em que é oportunizada à
sociedade a apresentação de críticas e sugestões em relação aos estudos de viabilidade técnica, econômica,
financeira e ambiental, e aos documentos jurídicos (edital e contrato) que embasarão a parceria.
85
independentes, como o TCU, por sua vez, também contrastam noções tradicionais de
legitimação do poder. No Brasil, as instituições de controle não são sujeitas a controle e
participação sociais. É muito frágil ainda o que Willeman (2017) chama de “dimensão
diagonal” da accountability, que é justamente a participação da sociedade nas atividades de
controle exercidas por órgãos encarregados da dimensão horizontal da accountability.
Constitui, pois, uma questão jurídico-política contemporânea relevante a dificuldade em
se controlar as chamadas funções neutrais. Como visto, já são bem disseminadas as
preocupações e reflexões sobre a estruturação de um arranjo funcional de accountability dos
órgãos reguladores. Emerge, contudo, o interesse envolvendo o controle de órgãos
constitucionalmente independentes. Constitui, assim, como forma de assegurar a legitimidade
das instâncias de controle, cada vez mais relevante meditar sobre a seguinte pergunta: quem
controla o controlador?
Não é objeto deste trabalho responder a esta pergunta, mas parece relevante colocá-la
em evidência justamente porque a questão central da pesquisa diz respeito à possível
substituição do regulador pelo controlador. Dessa forma, eventuais sobreposições indevidas do
TCU realçam justamente a perplexidade em torno da fragilidade do controle exercido sobre a
instância que, ao fim e ao cabo, estará produzindo a regulação setorial.
6. A ampliação do controle e seus impasses e dilemas
Após assistir a uma intensa expansão dos mecanismos de controle da administração
pública, o que foi visto com grande entusiasmo por praticamente toda a comunidade jurídica e
sociedade civil, vive-se hoje um momento em que o giro pragmático que tem influenciado o
Direito Público brasileiro (BINEMBOJM, 2017) tem orientado um esforço de reflexão sobre a
efetividade e os resultados sociais da atividade controladora.
Rosilho (2016), por exemplo, observa que “esse processo de limitação da
discricionariedade da administração por meio do alargamento de competências e de atribuições
dos controladores não parece ter levado em consideração o eventual impacto que poderia vir a
ter na segurança jurídica.”
Refletindo sobre a atualidade desse quadro de expansão do controle, Juliana Palma e
Floriano Marques Neto (2017) apontam a existência de pelo menos 7 (sete) impasses no
controle da Administração Pública na atualidade. Vejamos alguns desses impasses.
Em primeiro lugar, defendem haver captura das competências públicas, mediante
deslocamento das competências administrativas para órgãos com maior prestígio. Apontam,
86
assim, o aspecto reputacional como fator determinante de um suposto deslocamento de
competências:
No campo da discricionariedade administrativa, a competência tende a se
deslocar no sentido das instituições com maior reputação, exatamente
aquelas que têm atribuição de controlar a atuação das outras, que têm
competência para criticar, censurar, sem muito compromisso com o resultado
de sua atuação. Esse processo gerou uma primazia do controlador sobre a
Administração Pública controlada.
Chamam atenção, ainda, para o viés neopatrimonialista do controle, que não possuiria
orientação institucional acerca de sua dinâmica e limites, e acabaria sendo guiado pelas
predileções pessoais do controlador. Nessa linha, Jordão (2017) alerta para o risco de que a
atividade controladora seja capturada pelos interesses corporativistas de seus agentes, tornando,
assim, “popular” a visão expansiva do controle entre os profissionais do Direito, já que lhes dá
prestígio e poder.
Dentre outros impasses, os autores realçam os malefícios do controle descalibrado para
a gestão pública, seja pelo fato de o administrador de boa-fé acabar se tornando refém do
controle, seja pelo fato de não favorecer decisões definitivas, já que o exercício das
competências administrativas acaba sendo apenas uma fase inicial do processo decisório, que
só se ultimará com a manifestação do controlador.
Marques Neto e Palma (2017, p. 37) defendem então que “as competências
institucionais precisam ser claramente definidas, pois não haverá governança sustentável com
superinstituições pairando sobre as demais.”
Nessa linha, Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Câmara (2013, p. 179), especificamente
sobre o TCU:
A ampliação da atuação do Tribunal de Contas, se, por um lado, é vista
positivamente, pelos benefícios proporcionados por um controle
independente, sério, equilibrado e atuante, de outro lado, suscita
preocupações quanto á delimitação de suas competências.
A visão mais pragmática e menos idealizada acerca do controle defendida por vários
autores traz em si a ideia de que o controle tem ônus e custos87. Sejam os valores incorridos
87 Humberto Ávila (2018, p. 359) antecipa as consequências de um olhar mais pragmático acerca do controle da
administração pública: “Que consequências podem ser esperadas de uma orientação mais pragmática do direito
administrativo para o controle da Administração Pública? Fundamentalmente, esta orientação deverá gerar uma
visão menos idealizada de juízes e controladores. Ainda vige no Direito Brasileiro uma compreensão de que todas
as suas intervenções se fazem “para melhor”: o controlador atuaria para revisar as decisões da Administração
Pública e corrigir seus problemas. Esta visão menos idealizada tenderá a revelar e destacar os custos e os eventuais
problemas da intervenção do controlador.”
87
pela Administração para adequar suas ações às determinações do controlador; sejam os custos
sociais decorrentes da postura cautelosa do administrador, para se precaver de eventuais
contestações – o administrador evita soluções menos ortodoxas; sejam os ônus públicos
decorrentes das opções determinadas pelo controlador em substituição às do administrador.
Constitui noção elementar na literatura sobre public accountability a existência de um
trade-off entre controle e efetividade (LODGE; STIRTON, 2012). É ilusório acreditar que
quanto mais controle melhor será a ação administrativa. Conforme Schapiro (2016), “a relação
entre controle e realização não é a de uma proporção direta, mas a de um “U” invertido.” Isso
significa que o incremento da efetividade das ações estatais não depende da existência de mais
controle, mas sim de uma calibração acertada dos mecanismos existentes.
Martin Lodge e Lindsay Stirton (2012, p. 366) advertem que “efeitos colaterais,
surpresas e consequências não desejadas são um novo item fundamental no menu das ciências
sociais, mas que tem sido sistematicamente negligenciado por aqueles que advogam ‘mais
controle’”.
Willeman (2017, p. 293) chama atenção para os riscos da sobrecarga de controle
(accountability overload):
Assiste-se, atualmente, um fenômeno que pode ser caracterizado como
accountability overload, ou seja, à sobrecarga e à superposição de instâncias
de controle sobre a ação administrativa, que, não raro, chega a comprometer
a própria eficiência da gestão pública em decorrência de seus excessos e de
suas patologias. O culto à cultura do controle não pode ignorar suas
externalidades negativas e seus efeitos indesejados. A tomada de decisão
pública submete-se a tantas instâncias de controle hoje em dia que o
administrador público chega a ser desencorajado a pensar em soluções
criativas e heterodoxas para os problemas enfrentados, tantos são os riscos
que acaba por assumir. Ações colaborativas devem ser fomentadas,
promovendo-se o aprendizado interinstitucional, para evitar a accountability
overload.
Fernando Vernalha Guimarães (2017), na linha de outros autores já citados, aponta
haver uma série de patologias do sistema de controle, notadamente (i) a multiplicidade de
estruturas controladoras; (ii) a descoordenação institucional; (iii) o viés excessivamente
formalista. Enfatiza, ainda, um “cacoete” das instâncias de controle em prestigiar interpretações
reducionistas da discricionariedade administrativa.
É certo que essas críticas e preocupações são contemporâneas de déficits ainda elevados
de eficiência e probidade no âmbito da Administração Pública, assim como de dados e notícias
que enaltecem as ações dos controladores. A percepção de que há um certo descompasso entre
as instituições de controle e a Administração Pública em termos de desenvolvimento
88
institucional também parece alimentar a ideia de que o interesse público estará melhor tutelado
pelos controladores do que pelos gestores.
De fato, em regra os órgãos de controle possuem orçamentos mais robustos, carreiras
mais valorizadas, estruturas mais estáveis, do que os órgãos e entidades fiscalizados, em que os
constrangimentos orçamentários são maiores, o aprendizado é mais fragmentado e há grande
rotatividade nos quadros, notadamente porque há muitos cargos comissionados, de livre
nomeação e exoneração.
Parece, assim, cada vez mais difundida a ideia segundo a qual os controladores –
Tribunais de Contas, Ministério Público e Judiciário – possuem maior capacidade institucional
que o Poder Executivo. Além disso, a difusão de leis que engrenam ferramentas de controle e
interferência na gestão pública, associada à era do Estado principiológico (ÁVILA, 2016), têm
hipertrofiado o poder das instituições de controle.
A disseminação da doutrina dos princípios associa-se, assim, ao fortalecimento
institucional, organizacional e reputacional por que passaram as instituições de controle nos
últimos tempos, contribuindo para que a extensão do controle se amplie, horizontal e
verticalmente. Cada vez mais setores da Administração Pública são objeto de intenso controle,
sob uma perspectiva cada vez mais aprofundada.
Não raras vezes, o TCU e o Judiciário adotam interpretação diferente daquela praticada
pelo administrador, o que é bastante facilitado pelo caráter vago e indeterminado da norma, e
com isso fazem prevalecer as suas opiniões. Temas dotados de maior complexidade, e que
admitem pluralidade de interpretações são aqueles que têm ensejado um ativismo maior do
controlador (GUIMARÃES, 2017, p. 397).
Já não há dúvida, no atual estágio de desenvolvimento do Direito Administrativo, de
que a discricionariedade administrativa precisa ser limitada e deve ser exercida em ambiente
controlado. É preciso que se perceba, contudo, que, na medida em que o controle ensejar o
deslocamento da discricionariedade, ou seja, se o controlador passar a se apropriar da
discricionariedade do administrador, emergirá a preocupação quanto ao controle do novo
ambiente em que se está exercendo a discricionariedade, no caso a instância controladora. É a
perplexidade sintetizada por Sundfeld e Câmara (2013, p. 195): “se o controlador externo virar
administrador em regime de condomínio, quem fará o verdadeiro controle externo?”
89
CAPÍTULO 3 – A interação entre o TCU e as agências reguladoras de infraestrutura
1. Introdução
São tarefas das agências reguladoras dos setores de infraestrutura, como visto, além da
função normativa, estruturar, implementar e fiscalizar as relações contratuais de parceria entre
o Estado e a iniciativa privada destinadas a viabilizar empreendimentos públicos.
Conforme relato de Benjamin Zymler e Guilherme Almeida (2008, p. 156), quando a
prestação de serviços públicos se dava preponderantemente por meio de empresas estatais, a
atuação do controle externo baseava-se na análise da prestação de contas daquelas entidades.
Nessa época, o Tribunal concentrava sua análise nos atos de gestão, praticados no exercício das
atividades-meio das empresas, relegando a um segundo plano a análise do desempenho dessas
entidades na condição de provedoras de serviços públicos.
Com a reorientação do modelo de intervenção estatal, por meio da desestatização de
atividades de utilidade pública, houve também um reposicionamento do controle, que passou,
segundo os autores acima referidos, a analisar a eficiência dos órgãos reguladores e a qualidade
dos serviços oferecidos aos usuários.
O TCU, assim, além de controlar a gestão da infraestrutura quando realizada
diretamente, por meio de autarquias comuns e/ou empresas públicas, tem exercido intensa
fiscalização também sobre o modelo de intervenção indireta, operado por meio das agências
reguladoras.
Em relação às agências reguladoras no Brasil, tem o TCU avaliado o enforcement das
medidas de fiscalização, chegando, inclusive, a identificar e repreender o baixo índice de
arrecadação das multas aplicadas pelos órgãos88. Tem promovido atuação relevante no
acompanhamento prévio e concomitante de todas as etapas dos processos de parceirização de
empreendimentos de infraestrutura89, o que inclui a concepção e modelagem da licitação e a
execução do contrato nos anos que se seguem. Além disso, tem analisado o nível de governança
regulatória das agências90, chegando a recomendar a reestruturação administrativa de
entidades91. Por fim, já aconteceu até de o Tribunal suspender a aplicação ou determinar a
alteração de normas regulatórias92.
88 Acórdão 1.215/2015 – Plenário. 89 Conforme Instruções Normativas n. 27/98, 46, 52 e 81/2018, do TCU. 90 Acórdão nº 240/2015. 91 O TCU chegou a recomendar à ANAC que alterasse a sua estrutura administrativa para acompanhamento das
concessões aeroportuárias. 92 Acórdãos nº 308/2018 e 1.704/2018, por exemplo.
90
Tomando-se como referência as funções constitucionais do TCU, centralmente
relacionadas à verificação da conformidade da atividade financeira do Estado, causa certa
dúvida de conformidade jurídica ver a intensidade do controle exercido pelo Tribunal sobre a
atividade finalística das agências reguladoras, já que estas, como visto, de uma forma geral,
operam a intervenção indireta do Estado.
Há, assim, na doutrina, divergência acerca das possibilidades e limites do controle
exercido pelo TCU sobre a regulação. As posições variam desde quem entende, como Luís
Roberto Barroso (2002), que o Tribunal de Contas não poderia interferir na atividade fim das
agências, pelo fato de esta não implicar dispêndio direto de recursos, até quem defende, como
Benjamin Zymler (2009, p. 240), ser o TCU o órgão que detém “melhores condições para
desenvolver uma visão sistêmica do modelo regulatório brasileiro”, e, portanto, competente
para fazer o controle externo da regulação.
Seja em trabalhos acadêmicos e livros de ministros e servidores, em publicações oficiais
do Tribunal, como manuais e cartilhas, nos relatórios de fiscalização ou nos votos dos ministros,
há relevantes considerações sobre os limites da competência do TCU, sobre resultados do
controle exercido e acerca do impacto (na visão do Tribunal, sempre positivo) que o controle
externo tem causado sobre a regulação. Há grande entusiasmo entre os integrantes do Tribunal
acerca dos efeitos do controle, não sendo poucas as manifestações de ministros e servidores no
sentido de que o controle externo contribui para a melhoria da regulação.
Veja-se, por exemplo, trecho do texto de publicação do TCU, intitulada “Regulação de
Serviços Públicos e Controle Externo”93, em que se faz uma espécie de balanço de 10 anos do
controle exercido pelo Tribunal sobre as concessões:
O controle externo, exercido pelo TCU, sobre as agências reguladoras
garante accountability da gestão regulatória e, sem pretender substituí-las ou
tornar-se instância regulatória, contribui para a melhoria da atuação desses
entes sob os aspectos da eficiência, economicidade, efetividade e eqüidade na
implementação de políticas públicas de regulação.
E há, também, quem veja na forma como o controle tem sido manejado, um fator que
tem contribuído para a deterioração do sistema regulatório brasileiro. Vitor Schirato (2013, p.
270) apresenta o seguinte diagnóstico:
Com frequência cada vez maior, assiste-se, no Brasil, a uma substituição da
discricionariedade da autoridade reguladora pela discricionariedade do
órgão de controle. Sem qualquer deferência, os órgãos de controle refazem
93 Disponível em https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/regulacao-de-servicos-publicos-e-controle-
externo.htm
91
as decisões das autoridades reguladoras, impondo a sua vontade por sobre
as escolhas delas.
No atual estágio da prática institucional e da pesquisa acadêmica, parece pertinente a
advertência de Mendonça (2012) quanto à possibilidade de o TCU controlar a atividade-fim das
agências reguladoras, ao realçar que a verdadeira questão não é se a Corte pode controlar, mas
sim como deve operar o controle. Constitui, nessa perspectiva, uma questão jurídica relevante
compreender os limites e possibilidades da interação entre TCU e agências, à luz da ordem
jurídica vigente.
Além disso, parece fundamental tentar observar e entender a dinâmica do controle
exercido pelo TCU em relação às agências, a partir da análise empírica de seus julgados e da
confrontação de seu discurso com a prática.
Nessa perspectiva, a pergunta formulada por Monteiro e Rosilho (2017, p. 32), em
estudo sobre a relação entre o órgão de controle externo e as agências: “como o TCU, órgão
que exerce controle externo sobre toda a Administração Pública Federal, interpreta a autonomia
conferida por lei às agências reguladoras?”
Em recente estudo sobre a regulação de infraestrutura de transportes no Brasil,
pesquisadores da LSE (2017), com base em entrevistas realizadas com agentes públicos de
diversas áreas da Administração Federal, apontaram o TCU como “meta-regulador”,
atribuindo-lhe função ambígua, vez que ora funciona como um espaço apto a proteger decisões
técnicas contra pressões políticas; ora é considerado problemático, pois suas posições muitas
vezes não refletem o ambiente de decisão regulatória setorial e eventualmente extrapolam os
limites de suas competências.
Recentemente, o Ministro Bruno Dantas concedeu entrevista à Folha de São Paulo94,
na qual rebate críticas de interferência em órgãos de regulação com o argumento central de que
“o TCU interfere mais em agências com governança pobre.”
De acordo com a visão do ministro Bruno Dantas, que não é isolada dentro do Tribunal,
como se verá mais adiante, o TCU é mais interventivo nos órgãos em que a governança é pior,
havendo, assim, uma relação direta entre a capacidade institucional do órgão controlado e a
intensidade do controle.
Embora admitam que as intervenções do Tribunal são bastante qualificadas e suas
soluções em geral substancialmente melhores do que as dos gestores públicos, Rosilho (2016)
94 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/08/tcu-interfere-mais-em-agencias-com-
governanca-pobre-diz-ministro-do-tribunal.shtml. Acesso em 26/08/2018.
92
e Jordão (2016) apontam claramente entender que o TCU tem ultrapassado os limites de suas
competências no controle, não só da regulação, mas da Administração Pública como um todo,
e enfatizam o reflexo negativo desse fenômeno na segurança jurídica dos setores regulados, que
pode ficar abalada diante da multiplicidade de controles e de eventuais substituições do
regulador pelo controlador.
O próprio TCU reconhece os riscos para a estabilidade e segurança jurídica do ambiente
regulatório caso extrapole suas competências e abandone sua posição de controlador externo e
se substitua ao regulador. Por essa razão, o Tribunal é enfático em dizer que o controlador não
pode substituir o regulador e que a fiscalização é de segunda ordem, ou seja, que recai sobre as
agências reguladoras como mediadoras do jogo regulatório, e não sobre o jogo regulatório em
si. É emblemático desse discurso o Acórdão 1.703/2004, considerado um leading case no tema
– limites do controle exercido pelo TCU sobre as atividades finalísticas das agências
reguladoras.
Ao mesmo tempo, parcela da doutrina tem colocado cada vez mais em evidência a
dimensão cooperativa do controle, como uma forma de assegurar uma relação profícua entre o
TCU e as agências, que, ao mesmo tempo, assegure a possibilidade de a Corte de Contas
contribuir com o aprimoramento da regulação e evite o esvaziamento dos órgãos reguladores
enquanto ambiente de mediação e decisão.
O presente trabalho é movido justamente pelo esforço de compreender a interação entre
o órgão de controle externo e as agências reguladoras, a partir da observação empírica da
atuação do Tribunal em relação à regulação de setores de infraestrutura, tendo como pano de
fundo o arranjo de competências estabelecido no ordenamento jurídico brasileiro e os aportes
teóricos que orientam a intervenção estatal por meio de entidades reguladoras autônomas.
2. Limites das competências do TCU em relação às agências
Não há dúvida que as agências reguladoras, como autarquias que são, devem prestar
contas aos Tribunais de Contas quanto às verbas públicas por elas despendidas e ao patrimônio
que administram (ARAGÃO, 2012, p. 363).
As questões residem, não no controle das atividades-meio, que geram diretamente
despesas a serem suportadas pelo erário, mas sim no controle das atividades-fim das agências
reguladoras, não necessariamente geradoras de despesas e efetivamente inseridas na esfera de
poder decisório que o regime de autonomia conferido por lei às agências visa a resguardar de
interferências externas.
93
Alexandre Aragão (2013, p. 363) coloca o problema da seguinte maneira: podem os
Tribunais de Contas controlar os atos de regulação que as agências expedem sobre os
respectivos setores regulados? Podem controlar a autorização de aumento de tarifa ou do
reequilíbrio econômico-financeiro de determinada concessão? Podem controlar uma
fiscalização ineficiente?
Há autores, como Barroso (1999) e Justen Filho (2002), que entendem que os atos das
agências, referentes a suas atividades finalísticas, por não gerarem despesas a serem arcadas
pelo Estado, não estariam sujeitos ao controle da Corte de Contas.
Aragão (2013, p. 364) apresenta outra visão:
Ao nosso ver, o Tribunal de Contas pode realmente controlar tais atos de
regulação, uma vez que, imediata ou mediatamente, os atos de regulação e de
fiscalização sobre os concessionários de serviços públicos se refletem sobre
o erário. Por exemplo, uma fiscalização equivocada pode levar à não
aplicação de uma multa; a autorização indevida de um aumento de tarifa leva
ao desequilíbrio econômico-financeiro favorável à empresa, o que, entre
outras alternativas, deveria acarretar na sua recomposição pela majoração
do valor da outorga devida ao Poder Público, etc.
Floriano Marques Neto (2000, p. 97) defende, de longa data, com os olhos voltados para
a realidade brasileira, que o controle das atividades-meio das agências reguladoras, que chama
de gestão, deve ser realizado pelos mecanismos tradicionais, como controladorias e Tribunal
de Contas. Em relação à atividade-fim, dada sua complexidade, defende um controle triplo,
associado ao indesviável controle judicial:
O cumprimento de sua função de implementar os objetivos e metas da política
pública para o setor deve ser controlado pelo Poder Executivo, pelo Poder
Legislativo e pela Sociedade. Os mecanismos de controle são
complementados com a natural submissão de todos os atos das agências ao
indesviável controle judicial.
Embora não detalhe como seriam concretamente operados esses mecanismos, a
passagem transcrita serve para evidenciar que o autor não cogita de um controle direto pelo
TCU sobre a atividade regulatória. É possível que se admita, conforme essa visão, que o TCU
auxilie o Congresso em sua função fiscalizadora, levantando dados e informações, por meio de
suas auditorias e inspeções.
Marianna Willeman (2017, p. 303) ressalta que não há qualquer fundamento
constitucional para que as agências reguladoras invoquem uma suposta imunidade ao controle
e à fiscalização pelos Tribunais de Contas, mas compreende que a regulação impõe
especificidades no que tange à atuação do TCU:
O entendimento que restringe aprioristicamente não é o mais adequado, deve-se
investigar a delimitação do alcance do controle, a fixação de seus limites e de
94
suas possibilidades, atentando-se para as vicissitudes da atuação técnica das
entidades independentes.
Há, contudo, autores, como Di Pietro (2002, p. 65), que entendem não haver diferenças
entre o controle que os tribunais de contas realizam nos órgãos e nas entidades da
Administração Pública e o controle que deve ser realizado nas agências reguladoras. Para a
autora “nenhuma lei poderá limitar a competência do Tribunal de Contas, uma vez que tal
competência origina-se da Constituição Federal.”
De fato, parece que parte significativa das questões envolvidas nas concessões de
infraestrutura, notadamente seus aspectos financeiros, dizem respeito à atividade financeira (em
sentido amplo) do Estado, estando, assim, de alguma forma, no raio de incidência do controle
de legalidade realizado pelo TCU. São considerados aspectos financeiros das concessões,
dentre outros: (i) os parâmetros de revisão de reajustes tarifários; (ii) os processos de
reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos; e (iii) a fixação de preço mínimo para outorgas
de concessão (MONTEIRO; ROSILHO, 2017).
O controle específico dos aspectos financeiros de contratos administrativos é
disciplinado, no plano infraconstitucional, de maneira genérica, por norma que abrange todas
as contratações públicas, no art. 113, § 2º, da Lei nº 8.666/9395. A norma, que dispõe sobre o
controle de despesas decorrentes dos contratos pelo Tribunal de Contas e fala textualmente em
demonstração da legalidade da despesa, prevê a possibilidade de o Tribunal de Contas solicitar
cópia de edital já publicado e determinar a adoção de medidas corretivas eventualmente
necessárias.
Vera Monteiro e André Rosilho (2017) enxergam no dispositivo fundamento para o
exercício de controle de legalidade sobre os aspectos financeiros das concessões pelo TCU. Isso
não significa, contudo, que o controle exercido pelo TCU sobre os arranjos de parceria entre o
Estado e a iniciativa privada deva ser orientado pelos mesmos parâmetros que regem as
contratações diretas – Lei de Licitações e Contratos. Há um regime jurídico específico, mais
flexível e adaptável às contingências de contratos relacionais e de longo prazo, que dá suporte
95 Art. 113. O controle das despesas decorrentes dos contratos e demais instrumentos regidos por esta Lei será
feito pelo Tribunal de Contas competente, na forma da legislação pertinente, ficando os órgãos interessados da
Administração responsáveis pela demonstração da legalidade e regularidade da despesa e execução, nos termos
da Constituição e sem prejuízo do sistema de controle interno nela previsto.
§ 2º Os Tribunais de Contas e os órgãos integrantes do sistema de controle interno poderão solicitar para exame,
até o dia útil imediatamente anterior à data de recebimento das propostas, cópia de edital de licitação já
publicado, obrigando-se os órgãos ou entidades da Administração interessada à adoção de medidas corretivas
pertinentes que, em função desse exame, lhes forem determinadas.
95
às parcerias público-privadas (em sentido amplo) – Lei de Concessões, Lei de PPPs, Lei do
PPI, etc.
Para rebater o argumento de Luís Roberto Barroso, no sentido de que o TCU não poderia
exercer fiscalização que não tenha caráter contábil, financeiro ou orçamentário, Zymler e
Almeida (2008, p. 231) argumentam que a competência mais ampla do TCU, para fiscalizar
inclusive atividades-fim das agências reguladoras, decorreria de sua atribuição constitucional
para empreender auditorias operacionais:
Esse poder-dever deflui das competências constitucionais da Corte de Contas
Federal, especialmente daquela que autoriza a realização de auditorias
operacionais(art. 71, IV, da Carta Magna).
(...)
Assim, a afirmação do Professor Luís Roberto Barroso de que o TCU possui
competência apenas para realizar fiscalizações de caráter contábil,
financeiro ou orçamentário, apesar do justo prestígio angariado por seu
autor, não merece prosperar.
O que se vê, portanto, é que a interação entre o TCU e as agências se dá, basicamente,
por meio da combinação de dois mecanismos: a análise de editais e contratos de concessões; e
as auditorias operacionais.
Fundamental ressaltar, desde já, que a análise dos editais e contratos de concessão
efetuada pelo TCU na prática não tem se restringido aos aspectos meramente financeiros,
alcançando toda a modelagem das parcerias. Nem tem sido realizada a posteriori, como manda
a lei, e sim desde o estágio mais inicial de concepção dos projetos. Como a análise de aspectos
financeiros já estaria autorizado pelo art. 113, º 2º, da Lei nº 8.666/93, o TCU parece justificar
a amplitude do controle que realiza também com a competência para operar auditorias
operacionais. Vejamos o que dizem Zymler e Almeida (2008, p. 173):
Por intermédio das auditorias operacionais realizadas nas agências
reguladoras, o TCU fiscaliza, entre outras questões, a execução dos contratos
de concessão ou de permissão. Essa fiscalização poderia ensejar uma
redundância das esferas de controle, visto que uma das principais atribuições
das agências é exatamente fiscalizar esses contratos. Para evitar que essa
indesejável superposição de atividades ocorra, o Tribunal deve exercer uma
fiscalização de segundo grau, buscando identificar se as agências estão
cumprindo bem e fielmente seus objetivos institucionais, dentre os quais
avulta o de fiscalizar a prestação de serviços públicos, sem se imiscuir
indevidamente na área de competência privativa das agências.
A competência para realizar auditorias operacionais parece funcionar como verdadeiro
“guarda-chuva” para o TCU se debruçar sobre todas as atividades finalísticas das agências. Seja
por meio da análise ampla (não apenas de aspectos financeiros) de editais e contratos, da
supervisão e revisão de normas regulatórias, bem como de regras e estrutura de funcionamento
96
dessas entidades. É o que enfatizam Monteiro e Rosilho (2017, p. 55): “é a competência
constitucionalmente prevista para a realização de auditorias operacionais que tem servido de
base para a fiscalização sobre a atividade reguladora em si.”
Vão desde auditorias como a que avaliou o nível de governança regulatória em todas as
agências do setor de infraestrutura e fez uma série de recomendações para o fortalecimento do
processo regulatório96; até a auditoria operacional realizada no setor portuário que resultou na
determinação de revisão da resolução da ANTAQ que disciplinava a THC 2 e na aplicação de
multa em face de diretores e ex-diretores da agência97.
Acontece que, quando o TCU faz controle de legalidade em relação a outras matérias
que não a financeira, ou quando expede atos de comando com base em fiscalização operacional
(a partir de critérios de eficiência, legitimidade, economicidade), extrapola os limites
estipulados pela Constituição, pelo menos de acordo com a compreensão restritiva exposta no
capítulo anterior.
Parece importante, aqui, realçar que é bem clara na Constituição a dimensão liberal -
compreendida como a preocupação em conter a atuação arbitrária do Estado - do controle
realizado pelo TCU, mas é também bastante específica e focada: a legalidade da atividade
financeira do Estado. O controle liberal amplo, a fim de evitar violações a direitos individuais,
difusos ou coletivos, a ser exercido em face das agências reguladoras, cabe tipicamente ao Poder
Judiciário.
Nessa perspectiva, também parece ser reservado ao Judiciário o controle de legalidade
e constitucionalidade de normas regulatórias, enquanto típica função jurisdicional. Ou, em caso
de extrapolação pelo regulador dos limites estabelecidos pelo legislador para o exercício da
função normativa, pelo Poder Legislativo, com fundamento na competência prevista no art. 49,
V, da CF/88.
O TCU, contudo, não parece ter dúvida quanto à sua competência para fazer o controle
de constitucionalidade de normas, não apenas daquelas expedidas pelas agências reguladoras,
mas até mesmo de leis. O TCU costuma invocar a Súmula 347 do STF98 para justificar a sua
competência para realizar controle de constitucionalidade.
Acontece que o verbete foi aprovado em 1963, época em que o ordenamento jurídico
brasileiro ainda não previa controle abstrato de constitucionalidade, e foi baseado em um único
96 Acórdão nº 240/2015. 97 Acórdão nº 1.704/2018. 98 Súmula 347: O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das
leis e dos atos do Poder Público.
97
julgado99, no qual o STF reconhecera ao Tribunal de Contas do Estado do Ceará a possibilidade
de deixar de aplicar norma já declarada inconstitucional anteriormente pelo Poder Judiciário.
Em decisão recente, no MS nº 35.410, o Ministro Alexandre de Moraes, do STF100,
deixou claro que “é inconcebível que o Tribunal de Contas da União, órgão sem qualquer
função jurisdicional, exerça controle difuso de constitucionalidade nos processos sob sua
análise.” O Ministro considerou que a competência para declarar, ainda que em caráter difuso,
a inconstitucionalidade de uma norma, é exclusiva da função jurisdicional, e considerou
superada pela nova ordem constitucional a Súmula 347.
Associando, assim, (i) a compreensão de que possui competência para fazer um controle
de legalidade de toda a atividade regulatória com (ii) o “guarda-chuva” do controle operacional,
o TCU acaba fazendo uma fiscalização ampla, que abrange todas as atividades regulatórias.
Essa concepção expansiva adotada pelo TCU acerca de suas competências coloca em
tensão os limites do regime de autonomia conferido por lei às agências reguladoras.
São pilares essenciais da autonomia das agências (i) a estabilidade dos dirigentes; (ii) o
estabelecimento de fontes próprias de recursos; (iii) a não-vinculação hierárquica a qualquer
instância de governo; (iv) inexistência de revisão hierárquica de seus atos, ressalvada a revisão
judicial.
O regime de autonomia das agências reguladoras no Brasil, em sua dimensão real e
funcional, está, como demonstrado no primeiro capítulo, em grande medida comprometido.
Difícil afirmar que as agências brasileiras detenham efetiva autonomia decisória, já que as
características essenciais acima referidas já estão bem desfiguradas no sistema regulatório
brasileiro. Por exemplo, a ideia de que as decisões das agências não podem ser revistas por
outras instâncias de poder, a não ser pelo Judiciário, já foi mitigada, como visto, desde a edição
do Parecer AGU AC 51, aprovado pelo Presidente da República. De uma maneira geral, o
modelo presidencialista de regulação acaba viabilizando um conjunto de mecanismos de
influência muito relevante da Administração central em relação às agências.
Há, assim, tanto quem entenda que a falta de autonomia real e de capacidade
institucional das agências no Brasil, associada à deficiência dos outros mecanismos de controle
incidentes sobre a regulação, justificaria um grau mais intenso de intervenção do TCU, como
quem defenda que a atuação do órgão de controle externo brasileiro contribui justamente para
minar a autonomia dessas entidades. Ou seja, há quem conceba a intensidade do controle pelo
99 RMS 8.372, DJ de 26/04/1962. 100 Há várias outras medidas liminares deferidas por ministros do STF em casos semelhantes, como, por exemplo,
no MS nº 29.123, do Min. Gilmar Mendes.
98
TCU como uma consequência da deterioração do sistema regulatório (é o caso do ministro
Bruno Dantas, do TCU) - controla mais justamente porque o sistema regulatório está
deteriorado -, como há quem entenda que o excesso de controle pelo TCU é um dos fatores de
fragilização da autonomia das agências, e, consequentemente, da regulação (SCHIRATO,
2013).
Conforme estudo da LSE (2017, p. 39), para alguns, os reguladores no Brasil precisam
de reforço para conseguir mais autonomia; para outros, os reguladores precisam ser submetidos
a um controle mais rigoroso para garantir que haja um processo de decisão consistente.
Defendem os pesquisadores, então, a busca do equilíbrio:
O ideal seria encontrar um equilíbrio entre apoiar a autonomia e a
capacidade dos reguladores para que forneçam serviços de alta qualidade e
fazer com que assumam responsabilidade. Os arranjos existentes no Brasil
enfrentam problemas em ambas as áreas.
Martin Lodge e Lindsay Stirton (2012, p. 363), em estudo específico sobre a
accountability do Estado Regulador, alertam que “defender ‘mais controle’ na regulação é
improvável que se atinja efeitos inteiramente benéficos.” Há, pois, a necessidade de se buscar
a calibragem entre autonomia e controle que leve ao equilíbrio.
Discutindo aspectos teóricos elementares da regulação, Baldwin; Cave e Lodge (2012)
apresentam uma vertente importante do debate sobre accountability dos regimes regulatórios,
que reside em saber se devem ser encorajados overlaps (sobreposições) ou não. Segundo os
autores, para uns a existência de overlaps é uma característica institucional útil, pois ajudaria a
lidar com o problema da captura; para outros, serviria apenas para propiciar impasses,
requerendo, assim, graus muito elevados de cooperação.
Os autores noticiam também a importância que assumiu nos últimos tempos a atuação
de national audit offices (instituições superiores de controle da tradição anglo-saxã) em relação
à regulação, que têm funcionado como “meta-regulators”, indo além da revisão das questões
orçamentárias e fazendo análises avaliativas mais amplas, abrangendo aspectos procedimentais
e de análise de custo-benefício (impacto regulatório).
Importante ressaltar, contudo, primeiro, a importância que a dimensão procedimental,
como mecanismo de controle e legitimação da regulação, efetivamente possui na tradição
anglo-saxã; e, também, que a vocação típica das instituições de controle nos países dessa
mesma tradição é o controle de desempenho, de maneira que, mesmo quando apuram
irregularidades, não costumam ter poderes próprios para tomar medidas reparadoras ou
sancionatórias.
99
Os autores referidos destacam, ainda, serem os procedimentos judicialiformes
inapropriados para lidar com questões policêntricas (BALDWIN; CAVE; LODGE, 2012),
como são as regulatórias, justamente pela dificuldade em processar adequadamente os variados
interesses presentes em relações multipolares dentro da lógica processual judicial.
A partir da análise do arranjo constitucional e legal de competências, parece bem claro
que não se optou no Brasil por um regime de accountability baseado em sobreposições. Pelo
contrário, as leis que instituíram as agências reguladoras parecem conferir a estas, nos estritos
limites das leis de criação e dos marcos regulatórios setoriais, competência para regular os
respectivos setores com autonomia, ou seja, para decidir em última instância. Da mesma forma,
as normas habilitadoras de competência do TCU delimitam seus poderes, a partir de uma
combinação bem específica de parâmetros e instrumentos de controle, que não autoriza a
sobreposição. Portanto, segundo o Direito vigente, o TCU não é uma instância de revisão ou
supervisão regulatória.
3. O que diz o TCU sobre os limites de suas competências e os benefícios do controle
O TCU vê a si próprio como um ator importante no aprimoramento da regulação.
Zymler e Almeida (2008) afirmam que:
Sendo o TCU o órgão que examina, sob diferentes aspectos, a atuação de
agentes reguladores em praticamente todos os setores da economia, ele detém
as melhores condições potenciais para desenvolver uma visão sistêmica do
modelo regulatório brasileiro.
Em publicação do Tribunal, Gomes; Coutinho e Wanderley (2008, p. 27) defendem que
“o controle do TCU tem-se mostrado bastante tempestivo e com relevantes contribuições para
o aperfeiçoamento do sistema.”
De uma maneira geral, integrantes do Tribunal costumam dizer que o controle realizado
pelo TCU, em síntese: (i) favorece o controle social da regulação; (ii) funciona como um
antídoto à captura dos reguladores pelos regulados; e (iii) garante a segurança jurídica das
relações travadas nos setores. Além disso, alguns Ministros já expressaram publicamente que o
controle pelo TCU seria justificado pelos baixos níveis de governança das agências vis a vis a
elevada capacidade institucional da Corte de Contas. Esses quatro argumentos serão analisados
e discutidos com maior detalhe mais adiante.
É, portanto, muito positiva a visão que o TCU tem sobre os benefícios gerados pelo
controle externo exercido pelo Tribunal em relação às agências reguladoras de infraestrutura.
100
Ao mesmo tempo, o TCU (Ministros e servidores, seja nos processos de fiscalização ou em
trabalhos acadêmicos) tem um discurso muito consistente no sentido de que o Tribunal não
pode se substituir às agências, devendo, assim, respeitar a autonomia e discricionariedade do
regulador.
Talvez a expressão mais encontrada nos acórdãos do TCU referentes à fiscalização de
atividades finalísticas das agências seja a que diz que o controle exercido pelo Tribunal é de
segunda ordem, “sendo seu objeto a atuação das agências reguladoras como agentes
estabilizadores e mediadores do jogo regulatório, e não o jogo regulatório em si”101.
Há diversas manifestações, em acórdãos do TCU, sobre os limites das competências do
órgão controlador, no sentido de que o Tribunal não pode, segundo seus próprios integrantes,
substituir-se aos reguladores. O Acórdão nº 1.703/2004, de relatoria do min. Benjamin Zymler,
que será analisado em detalhes mais adiante, é considerado um marco da reflexão do TCU sobre
suas competências em relação ao controle das agências. Monteiro e Rosilho (2017, p. 35), ao
comentarem o acórdão, apontam que “o leitor tem a sensação de que o ministro utilizou o caso
concreto como ‘veículo’ para desenvolver uma espécie de ‘roteiro’ ou ‘guia’ que pudesse, no
futuro, balizar o TCU quando do controle dos atos praticados e das atividades desenvolvidas
pelas agências reguladoras.” Segundo esses autores, são “as regras de etiqueta do controle do
ambiente regulatório”, estipuladas pelo próprio TCU.
E a diretriz central desse “roteiro” é justamente a de que o controle não deve recair sobre
a regulação em si, mas apenas sobre a atuação das agências, sendo, pois de segunda ordem.
Embora ao dizer que a fiscalização incidirá apenas sobre a atuação das agências, e não sobre o
jogo regulatório em si, o TCU pareça transmitir a ideia de que faria apenas um controle de
performance (desempenho) das agências, ao mesmo tempo o Tribunal é bem enfático em
defender a sua competência para fazer o controle (estrito) de legalidade de toda a atividade
regulatória.
Apesar de não admitir que o controle do Tribunal se restrinja à atividade financeira das
agências reguladoras, ficou bem demarcada no “guia” traçado no leading case referido a ideia
de que ao TCU só caberia intervir em casos de ilegalidade estrita, ou seja, quando o regulador
deixasse de observar uma orientação legal expressa.
O discurso de que o controle é de segunda ordem, com isso querendo dizer que a
discricionariedade deve ser respeitada, foi reforçado ao longo do tempo e se mantém até os dias
101 Trecho do Acórdão nº 1.703/2004, rel. min. Benjamin Zymler.
101
atuais. Em acórdãos elencados por dirigente do TCU em evento recente102 como paradigmáticos
da questão, a linha é a mesma. Veja-se, por exemplo, o Acórdão nº 2.302/2012, referente a
concessão rodoviária conduzida pela ANTT:
O TCU há muito vem afirmando seu entendimento de fiscalização de segunda
ordem nas agências reguladoras, ou seja, cabe aos entes reguladores a
fiscalização de primeira ordem, bem como as escolhas regulatórias, cabendo
ao Tribunal verificar se não houve ilegalidade ou irregularidade na atuação
dessas autarquias especiais.
Da mesma forma, o Acórdão 402/2013, em que o TCU analisou a questão da outorga
de terminais de uso privado pela ANTAQ:
Sem embargo de reconhecer que as orientações advindas das análises
técnicas efetivadas pelo Tribunal contribuem para as agências reguladoras
pautarem-se dentro dos princípios constitucionais da legalidade e da
eficiência, enfatizo que o controle do TCU é de segunda ordem, na medida
que o limite a ele imposto esbarra na esfera de discricionariedade conferida
ao ente regulador.
Portanto, entendo que, neste processo, são duas as preocupações deste
Tribunal: primeira: verificar se a Antaq violou o ordenamento jurídico,
quando da prática dos atos que ora se analisa; segunda: não invadir a esfera
de discricionariedade da Antaq nem pretender substituí-la nas suas funções
privativas.
Em recente decisão, materializada no Acórdão nº 2.121/2017, de relatoria do Ministro
Bruno Dantas, que teve, inclusive, ampla repercussão, por tratar de TACs celebrados pela
ANATEL com empresa de telefonia, o TCU vai na mesma linha:
Esta Corte exerce, neste caso, o chamado “controle de segunda ordem”, com
o objetivo de verificar a regularidade da atuação da agência no exercício de
suas atividades finalísticas, jamais substituindo o regulador.
Insisto: o TCU não é instância revisora ou recursal das decisões da agência.
(...)
A meu ver, temos de cuidar para que nossas decisões não inviabilizem as
iniciativas do Poder Público, em respeito ao mérito administrativo e à
confiança nos gestores, fator essencial para o surgimento de uma
administração de caráter mais gerencial.
O Ministro Bruno Dantas, recentemente103, também tornou pública reflexão sobre os
limites do controle do TCU em relação às agências, defendendo a diretriz de autocontenção:
O TCU tem se esmerado em realizar auditorias operacionais que identificam
fragilidades, riscos e oportunidades de aperfeiçoamento na gestão
governamental. Justamente por navegar nos mares da eficiência, e não no
controle estrito da legalidade, é preciso resistir à tentação de substituir o
102 “Diálogo Público: Atuação do TCU nas Desestatizações e Regulação dos Serviços Públicos”, para
“esclarecimento sobre a atuação do TCU nas desestatizações do governo federal e na regulação dos serviços
públicos”, realizado em Brasília, em 15/10/2018, integralmente gravado e disponível no canal do TCU no Youtube. 103 Em artigo “O risco de infantilizar a gestão pública”, publicado em O Globo, em 06/01/2018. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/opiniao/o-risco-de-infantilizar-gestao-publica-22258401
102
gestor público nas escolhas que cabem ao Poder Executivo, e é essa a
autocontenção que defendo.
Buscaremos confrontar esse discurso com a prática do controle, a partir da análise de
casos, a fim de verificar se o TCU se restringe mesmo a um controle de legalidade estrita,
limitando-se a fazer sugestões quando não concorda com as opções regulatórias. A literatura
que analisa a expansão do controle da Administração Pública, como visto, aponta haver indícios
de que o Tribunal faz prevalecer as suas opções, orientadas por critérios outros que não a
legalidade, substituindo-se, assim, ao administrador.
É importante enfatizar que, como se vê, nem mesmo o discurso do TCU alinha-se à
posição segundo a qual o controle de legalidade seria restrito à atividade financeira do Estado.
O Tribunal considera-se habilitado pela ordem jurídica a realizar controle amplo de legalidade
sobre todas as atividades administrativas, inclusive regulatórias. Mas, no discurso, é firme o
TCU em dizer que não pode dar ordens ao regulador que não sejam amparadas pelo critério da
legalidade estrita.
3.1. O leading case - Acórdão nº 1.703/2004
O Acórdão nº 1.703/2004, no qual o TCU analisou a execução do contrato de concessão
da rodovia Rio-Teresópolis, especificamente no que diz respeito à manutenção de seu equilíbrio
econômico-financeiro, é considerado um leading case na análise do comportamento do
Tribunal em relação à atividade-fim das agências reguladoras. Em vários casos posteriores, até
os dias atuais, os ministros do Tribunal fazem referência a trechos do voto do ministro Benjamin
Zymler, relator daquele julgamento.
Isso porque, além da análise do caso concreto, foram tecidas longas e relevantes
considerações sobre a função fiscalizatória do TCU em relação à regulação, que foram
veiculadas como uma espécie de “guia” para a atuação do Tribunal no controle de concessões.
No caso, discutiu-se basicamente se, para fins de cálculo da tarifa de pedágio, deveria a
agência ter levado em consideração a Taxa Interna de Retorno (TIR) “alavancada” ou
“desalavancada”. Enquanto a primeira leva em consideração os custos reais de financiamento
incorridos pelo particular, a segunda não computa esse dado da realidade, deixando fora do
cálculo os custos do capital.
Diante de uma omissão do edital e do contrato, que não tratavam do assunto, a unidade
técnica do TCU defendeu a utilização da TIR não alavancada, em homenagem à modicidade
103
tarifária, o que foi, em um primeiro momento, acolhido pelo Plenário, que determinou à agência
a aplicação da TIR desalavancada, inclusive retroativamente.
Após pedido de reexame, o Tribunal decidiu apenas recomendar à ANTT a adoção da
TIR desalavancada, por entender que não incorrera o regulador em nenhuma desconformidade
legal, já que a legislação não oferecia nenhuma disposição clara sobre alavancagem financeira,
passando, assim, a entender que a agência tinha margem de discricionariedade para decidir,
ainda que o TCU considerasse não ter sido a escolha regulatória a melhor possível.
Para fundamentar essa mudança de posição, constam do acórdão longas considerações,
especialmente do ministro Benjamin Zymler e do então procurador-geral do Ministério Público
junto ao TCU, Lucas Rocha Furtado, sobre o papel da Corte de Contas em relação ao controle
das concessões de infraestrutura.
O representante do MP chamou atenção para a centralidade da questão tarifária na (re)
definição do modelo de intervenção estatal. Contrapondo os riscos e problemas das “tarifas
demagógicas” praticadas pelas estatais, que acabavam tendo que suportar com recursos
públicos sérios déficits, e a necessidade de adoção de uma política tarifária sustentável, foi
atribuída, assim, explica o procurador, às agências reguladoras a função de zelar pelas diretrizes
fixadas na Lei nº 8.987/95, evitando-se os erros ocorridos no passado.
Lucas Furtado, em sua manifestação, que foi de elevada relevância para o desfecho do
julgamento, disse que:
Tão importante quanto a busca da modicidade tarifária é a busca da
continuidade, da regularidade, da eficiência, da segurança, da atualidade e
da generalidade do serviço público, condições essas que somente se realizam
a contento quando a empresa concessionária satisfaz razoavelmente suas
expectativas de investidor. A preocupação exclusiva com a modicidade
tarifária pode remeter o sistema de prestação de serviços públicos à já
comentada situação a que outrora chegaram as empresas estatais
concessionárias, às quais era imposta a prática das já comentadas “tarifas
demagógicas”. Àquela época, os déficits gerados nas estatais pela prática de
tarifas insuficientes eram sistematicamente cobertos com recursos públicos,
mas, no atual modelo de concessões, não há, em regra, garantia de socorro
estatal às empresas privadas concessionárias, pelo que as “tarifas
demagógicas” que lhes forem eventualmente impostas podem implicar sua
quebra e, por conseguinte, a frustração do interesse público perseguido na
concessão.
Fica, aí, evidente a preocupação do representante do MP com o risco de enviesamento
do controle, que se consumaria na matéria com eventual preponderância da modicidade tarifária
em detrimento de outros aspectos do conceito de serviço público adequado. Nesse sentido,
dirige-se diretamente ao TCU:
104
Não é papel desta Corte defender exclusivamente os interesses da coletividade
usuária ou os de qualquer outra parte envolvida na concessão, cabendo-lhe
zelar pela consecução do interesse público, consubstanciado na prestação de
serviços públicos adequados por meio de concessões. Consequentemente, o
Tribunal não deve pautar sua ação pela busca exclusiva da modicidade
tarifária.
O argumento foi decisivo para o Plenário não acatar a proposta da unidade técnica, que,
invocando o princípio da modicidade tarifária, defendia a utilização da TIR não-alavancada.
Lucas Furtado refutou expressamente a visão dos técnicos nos seguintes termos:
Ressalte-se que não procede nem mesmo o argumento de que a adoção do
método da TIR não-alavancada se faz obrigatório no tipo de concessão ora
em comento porque essa opção favorece a modicidade tarifária, que é
defendida em lei. Afinal, o serviço adequado não se configura com a
consecução isolada da modicidade tarifária, mas com a satisfação simultânea
de todas as condições previstas no § 1º do artigo 6º da Lei nº 8.987/1995.
Privilegiar a realização de qualquer uma daquelas condições,
negligenciando-se as demais, afeta negativamente a saúde da concessão e,
por conseguinte, o interesse público.
O posicionamento de Furtado veicula, ainda, sofisticada reflexão sobre o papel das
agências reguladoras, defendendo que as mesmas funcionem como arenas decisórias
democráticas, ou seja, como um ambiente em que se articulam os diversos interesses enredados
em uma concessão de infraestrutura. Dessa forma, em sintonia com os novos paradigmas do
Direito Administrativo e da intervenção estatal, compreende a impossibilidade de se definir,
aprioristicamente, o interesse público, reconhecendo, assim, a existência de diversos interesses
públicos e a necessidade de convergência entre interesses públicos e privados para a consecução
do bem comum.
Com base nisso, o procurador e professor Lucas Furtado explica a necessidade de que o
regulador (que na passagem ele chama de conciliador) possua margem de autonomia e
discricionariedade para lidar com a complexa tarefa de equilibrar os interesses e fixar tarifas
adequadas, que não sejam nem discriminatórias nem deficitárias.
Furtado preocupa-se, ainda, em vincar, de forma ampla, a competência do TCU para
controlar as concessões, dizendo caber ao TCU examinar os contratos, ainda que se alegue que
não envolvam a gestão de recursos públicos, isso porque a competência para a realização de
inspeções e auditorias pelo Tribunal teria sido estabelecida “em função da pessoa do controlado,
e não em função da natureza dos recursos geridos.” Propõe, contudo, que sejam respeitados
justamente os limites da autonomia e discricionariedade conferidas por lei às agências, sob pena
105
de o TCU abandonar sua função controladora e assumir o papel de administrador, em
substituição às agências.
Vale destacar, ainda, a passagem em que o então procurador-geral ressalta que mesmo
no uso de recomendações o TCU precisaria ter cautela, para prevenir o risco de gerar incertezas
no ambiente regulatório:
Todavia, há que se advertir que, até mesmo na realização de fiscalizações de
natureza operacional acerca de atos circunscritos ao campo discricionário
das agências reguladoras, deve o TCU atuar com extrema cautela. Afinal, as
agências reguladoras podem decidir discricionariamente sobre a
implementação daquilo que lhes recomenda o Tribunal em sede de
fiscalização de natureza operacional. Contudo, as recomendações emanadas
do TCU podem, eventualmente, gerar sérios conflitos, de difícil superação e
de indesejáveis repercussões, com a linha regulatória adotada pela agência.
Essas situações podem suscitar dúvidas e intranqüilidades nos investidores,
configurando-se a situação de "incerteza jurisdicional” acima referida.
As incertezas no processo regulatório colocam em xeque o próprio modelo
inaugurado no Brasil com a criação das agências, em que se visou
proporcionar campo seguro, confiável e, portanto, propício à realização de
grandes investimentos no país.
Apoiado nas reflexões do representante do Ministério Público, o ministro relator fez
relevantes considerações sobre o papel e os limites do TCU no controle das concessões.
Faz, então, relevantes considerações sobre os limites da atuação do Tribunal,
enfatizando que o TCU “deve atuar de forma complementar à ação das entidades reguladoras
no que concerne ao acompanhamento da outorga e da execução contratual dos serviços
concedidos.” Nessa mesma passagem, o Ministro emprega expressão que se tornou “clássica”
nos debates sobre o tema, ao dizer que “a fiscalização do Tribunal deve ser sempre de segunda
ordem, sendo seu objeto a atuação das agências reguladoras como agentes estabilizadores e
mediadores do jogo regulatório”, não devendo, assim, incidir sobre o jogo regulatório em si.
O ministro Zymler reconheceu, àquela ocasião (ano de 2004), que o Tribunal já exercera
funções típicas de órgão regulador, ressaltando que essa atuação, embora possa ser considerada
indevida, teria sido necessária. Vale a pena transcrever a literalidade de seu pensamento:
Ressalto que, em várias ocasiões, o Tribunal exerceu funções típicas de órgão
regulador. Essa atuação, que pode ser considerada indevida, foi necessária
quando as agências reguladoras, por se encontrarem em sua fase inicial de
implantação, ainda não dispunham das condições necessárias para exercer
plenamente as respectivas competências.
Prossegue fazendo um diagnóstico de que o contexto fático estaria se alterando, já que
a maior parte das agências reguladoras estava se estruturando, e alerta para o risco de o TCU,
“ao invadir o âmbito de competência das agências reguladoras, ainda que movido pela busca
do interesse público, contribuir para incrementar a ‘incerteza jurisdicional’”.
106
Importante destacar que o Ministro pareceu, na ocasião, influenciado pelo argumento
das capacidades institucionais, entendendo que, enquanto as agências não detinham capacidade
instalada, caberia ao TCU atuar de maneira mais incisiva. Zymler parece, pois, entender, que à
medida que as agências foram se estruturando, passou a faltar competência à Corte de Contas
para interferir no jogo regulatório, inclusive porque poderia contribuir para o aumento da
insegurança jurídica.
Ecoando a manifestação do membro do MP, deixou consignado em seu voto que o TCU
não poderia assumir a condição de defensor dos interesses de quaisquer dos grupos em disputa,
devendo atuar em defesa da estabilidade das regras, do cumprimento dos contratos e da
eficiência do jogo regulatório.
Com base nessas considerações, o Plenário de Ministros faz uma espécie de guia para
orientar a atuação do Tribunal no exercício do controle externo das concessões, utilizando a
tradicional classificação dos atos administrativos em atos vinculados e atos discricionários, para
dizer que:
Quando os atos supostamente irregulares forem do primeiro tipo, ou seja,
quando as entidades reguladoras tiverem violado expressa disposição legal,
o Tribunal pode determinar a esses entes que adotem as providências
necessárias à correção das irregularidades detectadas. Por outro lado,
quando se tratar de atos discricionários, praticados de forma motivada e
visando satisfazer o interesse público, esta Corte de Contas pode unicamente
recomendar a adoção de providências consideradas por ela mais adequadas.
Afinal, nessa última hipótese, a lei conferiu ao administrador uma margem de
liberdade, a qual não pode ser eliminada pelo Tribunal de Contas da União. Contudo, caso o ato discricionário sob enfoque contenha vício de ilegalidade,
esta Corte de Contas será competente para avaliá-lo e para determinar a
adoção das providências necessárias ao respectivo saneamento, podendo,
inclusive, determinar a anulação do ato em questão.
Daí, a partir dessa distinção, o TCU fixou as diretrizes para a utilização de duas das suas
principais ferramentas de controle: a determinação e a recomendação. Ficou decidido que a
primeira deve ser utilizada “quando for detectado o descumprimento de uma norma jurídica” e
a segunda “quando for verificada a existência de providências que possam tornar mais eficiente
a atuação finalística das agências.”
Com isso, como visto, o Plenário contrariou a proposta da área técnica e apenas
recomendou, em vez de determinar, a adoção da TIR não-alavancada, por entender que não
teria havido infringência de qualquer norma jurídica e que a escolha estava inserida na margem
de discricionariedade conferida ao regulador.
Deve-se notar que, no caso, o TCU adotou como “chave” para guiar sua posição a
existência, ou não, de solução prevista expressamente em lei, entendendo que deveria ser
107
respeitada a discricionariedade da agência quando não houvesse um comando legal específico
que obrigasse o regulador a agir dessa ou daquela forma, mesmo havendo interpretação jurídica
baseada em princípio, no caso o da modicidade tarifária, que pudesse sugerir outra solução,
como propunha a unidade técnica.
Ficou delineado, então, que, em relação a atos discricionários o TCU poderia expedir
apenas recomendações, respeitando, assim, a autonomia das agências. E, apenas em caso de
ilegalidades, poderia o TCU determinar à agência as respectivas correções.
4. O TCU e a segurança jurídica
Na publicação do TCU já referida, “Regulação de Serviços Públicos e Controle
Externo”, Gomes, Coutinho e Wanderley (2008, p. 27) afirmam que, “ao garantir transparência,
auditabilidade e segurança jurídica aos atos praticados pelos agentes envolvidos no sistema
regulatório, assegura sobretudo previsibilidade ao sistema.”
Bermeguy (2008, p. 105) argumenta que “o TCU atua no sentido de garantir
previsibilidade ao sistema regulatório, ao verificar a aderência dos atos às leis e regulamentos.”
De fato, o cumprimento das regras constitui noção básica para a existência de
previsibilidade e segurança jurídica. Acontece que há complexidades e variáveis não
contempladas pela afirmação dos autores. Basta ver, por exemplo, que, invariavelmente, o TCU
justifica suas posições com base em interpretação de princípios e conceitos jurídicos
indeterminados, bloqueando, assim, opções regulatórias assentadas em compreensão diversa
acerca do mesmo princípio. A possibilidade de um órgão de controle – e no arranjo institucional
brasileiro há muitos, com bastante autonomia e sem mecanismos de coordenação
interinstitucional – interpretar uma norma aberta, de baixa densidade normativa, cuja definição
precisa acerca de seu conteúdo é difícil, pode tornar, na verdade, o sistema regulatório bastante
imprevisível.
Interessante perceber que, cada vez mais, o TCU tem procurado enfatizar a importância
do controle prévio e concomitante das concessões, que será analisado detalhadamente mais
adiante, como um fator gerador de segurança jurídica. De fato, se for considerada a crescente
interferência do Tribunal sobre as modelagens e sobre as decisões regulatórias, a atuação prévia
e concomitante acaba evitando “surpresas” no curso do processo. A questão, contudo, é que
não se pode deixar de cogitar que o TCU acabe justificando uma atuação para a qual não foi
investido de competência pela lei, como a análise prévia de editais, com a necessidade de
conferir segurança jurídica e previsibilidade, que decorreria justamente do elevado poder de
108
alteração das modelagens de que tem lançado mão, muitas vezes extrapolando os limites de
suas competências.
Como visto, uma das preocupações centrais dos autores e pesquisas que têm refletido,
de forma crítica, sobre o controle, é justamente o seu impacto (negativo) sobre a segurança
jurídica.
Em seu discurso, o próprio TCU enfatiza os riscos para sistema regulatório em caso de
substituição do regulador pelo controlador, reconhecendo, assim, a possibilidade de o controle
produzir incertezas. Na manifestação que apresentou no processo que resultou no Acórdão nº
1.703/2004, o representante do MP junto ao TCU, Lucas Rocha Furtado, realçou a questão:
As incertezas no processo regulatório colocam em xeque o próprio modelo
inaugurado no Brasil com a criação das agências, em que se visou
proporcionar campo seguro, confiável e, portanto, propício à realização de
grandes investimentos no país.
Também no Acórdão nº 1.703/2004, o próprio Plenário manifestou preocupação com o
risco de sua atuação ter efeito inverso, ou seja, minar, em vez de garantir, a segurança jurídica.
Na esteira do voto do min. Benjamin Zymler, o TCU reconheceu a possibilidade de sua atuação
“contribuir para o agravamento da ‘incerteza jurisdicional’, a qual decorre da insegurança
gerada pelos múltiplos e conflitantes controles estatais a que se sujeitam os investimentos
realizados no Brasil.”
A segurança jurídica constitui um dos valores centrais de todo esse esforço em torno da
construção de um novo padrão regulatório, sendo, assim, fundamental entender se o sistema de
controle também atua em prol desse valor ou não. Embora seja altamente desejável e previsível
a incidência do controle, a ausência de parâmetros estáveis que guiem – e limitem - a atividade
controladora pode minar justamente um dos objetivos fundamentais da regulação – conferir
previsibilidade e estabilidade às parcerias de longo prazo entre o Estado e os particulares.
5. O TCU como antídoto contra a captura do regulador
É comum também a afirmação de que o controle pelo TCU funcionaria como antídoto
à captura do regulador pelos agentes regulados ou mesmo pelo governo.
Na visão de Zymler e Almeida (2009, p. 233), “a atuação do TCU amplia o pluralismo
de pressões sobre os reguladores e, consequentemente, ajuda a inibir eventuais relações
clientelistas entre reguladores e agentes econômicos regulados.”
Em publicação do Tribunal, Gomes; Coutinho e Wanderley (2009, p. 14) afirmam
textualmente que “ao reduzir eventuais riscos de captura pelo regulador, o Controle Externo
109
cria condições necessárias para estabilidade das regras, o correto cumprimento dos contratos e
a eficiência da regulação.”
De fato, o risco de captura é um dos problemas centrais do modelo de regulação por
entidades autônomas, mas a afirmação de que o TCU serviria como antídoto contra o problema
carece de comprovação empírica e não leva em consideração uma série de questões e variáveis
importantes.
Não se pode, diante desse tema, em primeiro lugar, deixar de refletir, de forma realista
e crítica, sobre as fragilidades do desenho institucional do TCU, especialmente no que tange à
sua capacidade de gerar a tão almejada “neutralidade”. Há autores, como Marianna Willeman
(2017), que têm se posicionado criticamente em relação ao perfil institucional dos Tribunais de
Contas no Brasil, justamente porque as nomeações têm recaído, preponderantemente, sobre
atores com vínculos ou mesmo histórico político-partidários, e não sobre pessoas com perfil e
trajetória técnicos.
José Vicente Mendonça (2012, p. 155) sintetiza argumento contrário à capacidade do
TCU de atuar de maneira neutra e imparcial, desnaturando, assim, o propósito de blindagem
técnica das decisões regulatórias:
O controle da atividade-fim das agências pelas Cortes de Contas
desnaturaria o propósito de blindagem técnica das decisões regulatórias, pois
permitiria que ministros e conselheiros indicados politicamente subvertessem
entendimentos técnicos. Se, em tese, as agências foram construídas como
diques técnicos de barragem à força da política ordinária, não poderiam suas
decisões vir a ser contestadas por órgãos que, em sua composição e
funcionamento, estariam muito mais próximos ao Poder político.
Na literatura internacional, tratando justamente de instituições superiores de controle,
Pollit (2008, p. 72) alerta que:
Nenhuma independência é absoluta e todas as organizações, ainda que
detenham um alto grau de autonomia assegurado por seus estatutos e
práticas, estão sujeitas a influências de seus ambientes imediatos,
especialmente quando estes ambientes são parcialmente compostos por
políticos poderosos e por servidores públicos do alto escalão.
Aragão (2013, p. 401), ao enfatizar que o risco não é específico das agências, chama
atenção para o fato de a setorização da regulação poder facilitar a captura pelos regulados:
O problema, certamente, não é específico das agências reguladoras,
ocorrendo, em maior ou em menor grau, em toda a administração pública,
aqui e alhures. Todavia, quando um ordenamento é setorizado, os seus
dirigentes, inclusive pela formação técnico-profissional especializada no
setor, tendem a ter um contato mais estreito e frequente com os agentes
econômicos regulados, o que, se por um lado é positivo, por outro, se não
forem criados os instrumentos necessários, poderá levar à parcialidade das
agências.
110
Sendo assim, a afirmação de que o TCU ajudaria a evitar a captura pelos agentes
regulados parte da premissa de que o Tribunal, em tese, é isolado do setor regulado. Deve-se
questionar, contudo, em que medida é verdadeiro o “insulamento” do Tribunal em relação aos
atores setoriais. A partir do momento em que o TCU se torna um agente central do sistema
regulatório, é natural que os regulados procurem influenciar as decisões do órgão, da mesma
forma como fazem em relação às agências. Não se pode, portanto, desprezar o risco de os
conflitos setoriais penetrarem no Tribunal e influenciarem as suas decisões. O risco de captura
é, pois, inerente ao jogo regulatório.
Para combater os riscos de captura das agências, a literatura tem apostado na interação
equilibrada e eficiente dos diversos mecanismos de controle, como a procedimentalização, a
transparência, as políticas que previnam conflitos de interesses, a fiscalização exercida pelas
instituições de controle e a revisão judicial. Todos ainda carentes de muito aperfeiçoamento,
como já visto ao longo do trabalho. Mas e a eventual captura do TCU, como pode ser
combatida? Considerando que o TCU não está sujeito às mesmas exigências e limites, inclusive
procedimentais, impostos aos reguladores, quem controla o TCU?
6. O TCU e o controle social
É da essência do ideal do modelo de regulação por entidades autônomas que as agências
reguladoras sejam permeáveis à participação e sujeitas ao controle social, havendo, assim, a
ambição de democratizar os canais de circulação de poder, ampliando a accountability vertical.
O controle social é uma forma de accountability vertical que opera ininterruptamente,
tendo como instrumentos os mecanismos de consulta popular (plebiscito e referendo), os
conselhos consultivos e/ou deliberativos no campo das diversas políticas públicas, os processos
orçamentários participativos, dentre outros. No campo da regulação de infraestrutura, os
instrumentos mais utilizados são as consultas e audiências públicas, em que é oportunizada à
sociedade a apresentação de críticas e sugestões em relação aos estudos de viabilidade técnica,
econômica, financeira e ambiental, e aos documentos jurídicos (edital e contrato) que embasam
as parcerias. Da mesma forma, em relação à edição de normas pelas agências reguladoras, que
normalmente submetem suas propostas de normas a audiência e consulta públicas.
É fundamental, para que haja controle social, como já visto no primeiro capítulo, a
transparência das ações estatais, regras que incentivem o pluralismo e coíbam o privilégio de
alguns grupos em relação à maioria desorganizada, assegurando condições equânimes de
participação e influência.
111
O TCU costuma dizer que sua atuação incrementa o controle social e aponta a baixa
capacidade de mobilização dos usuários como um das justificativas para o controle realizado
pelo Tribunal sobre as agências.
Em publicação do Tribunal, Bermeguy (2008, p. 102) afirma que
Verifica-se que o controle externo exercido pelos tribunais de contas – no
caso deste trabalho, mais especificamente pelo Tribunal de Contas da União
– contribui para equalizar os insumos informacionais que embasam um ato
regulatório entre os diversos grupos de interesse, constitui rede de
relacionamento entre o controle e o regulador, fato que pode se contrapor à
idéia de monopólio de representação de interesses, e atua no sentido de
garantir previsibilidade ao sistema regulatório pela verificação de aderência
dos atos às leis e aos regulamentos.
Trecho do voto do Ministro Benjamin Zymler, no Acórdão nº 1.703/2004, também
relaciona a atuação do TCU com o controle social:
Finalmente, deve-se considerar que a atuação do Tribunal de Contas da
União, analisando detalhadamente os atos praticados pelas agências e
divulgando o resultado de seus trabalhos, facilita sobremaneira o exercício
do controle social. Afinal, os usuários dos serviços públicos não dispõem de
assessoria profissionalizada para fazer frente aos interesses dos grupos mais
organizados. Ressalto que um dos desafios das democracias modernas é a
construção de um modelo de governo baseado no controle exercido pela
sociedade civil sobre os detentores do poder político.
Na doutrina, Marianna Willeman (2017, p. 290) acredita no papel do TCU em
incrementar o controle social, afirmando que “as conclusões alcançadas na avaliação do
Tribunal de Contas fornecem informações para os cidadãos interessados e, com isso, contribui
para o fortalecimento da vertente social do controle sobre a administração.”
As afirmações de que o TCU favorece o controle social, contudo, não contam com
consistente comprovação empírica. Em tese, é possível que as instituições de fiscalização
contribuam para a criação de um ambiente propício ao desenvolvimento do controle social,
levantando dados e informações, prestando uma espécie de “assessoria” para a parcela da
sociedade civil interessada naquela política pública, mas desmobilizada e desprovida de
recursos técnicos específicos. Mas não se pode esquecer que o TCU não tem canais
institucionais estruturados para captar a opinião da sociedade civil, o que certamente fragiliza
a sua capacidade para efetivamente colocar em evidência no debate regulatório os interesses
dos usuários das utilidades públicas, por exemplo.
Basta ver que os órgãos de controle, como o TCU, não são sujeitos, pelo menos na
realidade brasileira, a níveis mínimos de controle e participação sociais. É muito frágil ainda o
que Willeman (2017, p. 32) chama de “dimensão diagonal” da accountability, que é justamente
112
a participação da sociedade (accountability vertical) nas atividades de controle exercidas por
órgãos encarregados da dimensão horizontal da accountability.
Willeman (2017, p. 325), ressaltando o fato de que a realização de audiências públicas
ainda é uma prática extremamente tímida nos Tribunais de Contas do país, reflete sobre a
necessidade de fortalecimento da legitimidade da atuação das Cortes de Contas, justamente por
meio da aproximação com a sociedade civil e da submissão dos órgãos de controle às mesmas
exigências impostas à Administração Pública:
Por fim, e talvez esse seja o aspecto crucial para o fortalecimento da
legitimidade da atuação dos Tribunais de Contas, é primordial que sejam
pensadas estratégias para aproximá-los da sociedade civil, sujeitando-os,
eles próprios, mais intensamente à accountability. Por uma questão de
coerência, as Instituições Superiores de Controle devem ser as primeiras a se
sujeitarem às mesmas exigências inerentes à prestação de contas quanto à
extensão, ao conteúdo e à qualidade da atividade que exercem.
Chama atenção o fato de que o TCU não promove audiências e consultas públicas nem
em relação às deliberações tomadas nos julgamentos, mesmo as mais abrangentes, nem quando
edita normas que regem as fiscalizações e atividades do Tribunal, que possuem relevante
impacto sobre as atividades administrativas e mesmo sobre a iniciativa privada.
Veja-se, por exemplo, a recente Instrução Normativa nº 81/2018, que passará a
disciplinar a análise pelo Tribunal dos processos de desestatização e terá enorme impacto sobre
a administração pública reguladora de infraestrutura e sobre os agentes regulados, mas não foi
objeto de qualquer procedimento de consulta ou diálogo aberto à participação pública, seja da
sociedade, de empresas ou de órgãos e gestores públicos.
O déficit de participação social na fiscalização que o Tribunal exerce sobre a regulação
fica bem evidente quando se percebe que as agências submetem os editais e contratos das
concessões a audiência pública e são obrigadas a enviar a documentação para o TCU já com as
contribuições da audiência (art. 3º da IN nº 81/2018), mas as alterações determinadas ou
recomendadas pelo Tribunal não se submetem a qualquer escrutínio ou debate público.
O que tem o TCU feito que mais se assemelha a audiências com participação pública
são os “Diálogos Públicos”104, eventos promovidos pelo Tribunal para apresentar e discutir os
mais diversos temas relacionados com o controle externo da Administração Pública. Mas não
104 No ano de 2018, foram realizados 11 eventos dessa natureza, sobre os mais diferentes temas, como o projeto
de lei nº 7.448/2017 (estava em fase de sanção/veto e resultou na Nova LINDB), a judicialização de benefícios
concedidos pelo INSS, a nova lei das estatais, os desafios de financiamento dos estados e municípios, e justamente
a atuação do TCU nas desestatizações e regulação dos serviços públicos, que foi o penúltimo evento do ano. Em
2017, também foram 11, e, em 2016, 16 eventos. No site do TCU, há informações sobre os “Diálogos Públicos”
desde 2013. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/dialogo-publico/eventos/
113
funcionam como espaços de discussão de propostas, normas ou decisões do TCU, e sim como
seminários, em formato livre, em que especialistas no tema, ministros e servidores do Tribunal,
integrantes da Administração Pública, juízes, parlamentares, acadêmicos, fazem apresentações
e palestras, com oportunidade para perguntas pela plateia ao final.
Em trabalho intitulado “Accountability in the Regulatory State”, Lodge e Stirton (2012),
a partir de uma perspectiva, já várias vezes enfatizada neste trabalho, de que o regime de
accountability da regulação deve ser estruturado a partir da combinação de múltiplas
ferramentas, enfatizam que a preponderância de um mecanismo de controle pode enfraquecer
os demais.
Sendo assim, o exercício das competências dialógicas e colaborativas, mediante
levantamento de dados e informações relevantes, junto com a adoção de medidas e criação de
canais que visem ao engajamento de reguladores, governo, usuários e agentes regulados, em
discussões públicas sobre a regulação setorial, certamente pode favorecer o controle social. Já
o predomínio das competências impositivas pode acabar servindo apenas para hierarquizar o
controle e concentrá-lo no TCU. Portanto, parece-nos que o reforço descalibrado da
accountability horizontal – fiscalização pelo TCU – pode, na linha da reflexão de Lodge e
Stirton (2012), inibir, em vez de incentivar, o controle e a participação sociais – accountability
vertical.
7. A relação entre governança e controle – o argumento das capacidades
institucionais
Tem sido recorrente, no debate sobre os limites e possibilidades do controle da
Administração Pública, a defesa de posições fundadas no argumento das capacidades
institucionais.
Em um primeiro momento, o argumento serviu para conter, ou pelo menos tentar, o
avanço do controle judicial sobre as escolhas administrativas. Em síntese, a ideia era a de que
o Judiciário não detinha capacidade institucional suficiente para lidar com os aspectos técnicos
específicos, para levar em consideração o impacto global de uma determinada posição, ou para
dialogar satisfatoriamente com os sujeitos afetados direta ou indiretamente por uma decisão.
É possível, contudo, identificar a utilização do argumento para justificar um movimento
no sentido inverso, qual seja, de ampliação da abrangência do controle, especialmente pelo
TCU.
114
Recentemente, o Ministro Bruno Dantas concedeu entrevista à Folha de São Paulo105,
na qual “rebate críticas de interferência em órgãos de regulação de concessões” com o
argumento central de que “o TCU interfere mais em agências com governança pobre.”
Dizendo-se adepto da posição de que o Tribunal faz controle de segunda ordem, sem
substituir o regulador, Dantas afirmou:
Sempre defendi a jurisprudência majoritária, que é que nosso controle às
agências reguladoras seja de segunda ordem. A gente checa os critérios que
foram usados para tomar a decisão. Isso não quer dizer que o TCU quer
substituir a escolha do regulador.
E aí articulou o argumento referido acima, no sentido de que a baixa governança
ensejaria um controle mais intenso:
Se pegar o número de intervenções do TCU em agências e o quadro da
governança, você vai ver que [a maior parte das intervenções] é nas agências
com governança pobre, que não fazem avaliação de impacto regulatório, que
adotam decisões desamparadas da lei.
Há uma relação entre a baixa governança da agência e a atuação mais forte
do TCU.
No Acórdão 1.174/2018, em que analisou a modelagem de concessão rodoviária a cargo
da ANTT, o ministro Bruno Dantas fez novamente considerações relativas à falta de capacidade
institucional da Administração Pública, o que justificaria, a seu ver, a intervenção do
controlador. Em suas palavras, “a administração pública federal se tornou refém de suas
próprias ineficiências no âmbito administrativo, as quais abrem espaço para a ação dos órgãos
de controle.”
Também a partir de um argumento baseado em capacidades institucionais, Zymler e
Almeida (2009, p. 232) procuram justificar a intensidade do controle realizado pelo TCU
afirmando que “nosso aparelho judicial ainda não se encontra suficientemente preparado para
responder tempestiva e adequadamente a questões versando sobre regulação.” Os autores
(2008, p. 234) põem em dúvida também a capacidade da Administração Direta para verificar
se as agências estão atuando em consonância com as políticas públicas traçadas por quem detém
competência para tanto, o que justificaria a intervenção do TCU:
Aduz-se que a Administração direta não está preparada para aferir o
desempenho e aderência das ações das agências reguladoras às políticas e
diretrizes formuladas pelo Governo em decorrência do sensível enxugamento
ocorrido durante o Governo Fernando Henrique Cardoso.
105https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/08/tcu-interfere-mais-em-agencias-com-governanca-pobre-diz-
ministro-do-tribunal.shtml. Acesso em 26/08/2018.
115
Na mesma linha, em publicação do próprio TCU, Vidigal (2008, p. 64) justifica a
extensão do controle do TCU com base na fragilidade do controle exercido pelo que chama de
“poderes constituídos”:
Há certa corrente doutrinária que defende a tese de que o controle externo
exercido pelos tribunais de contas deve se restringir ao controle relacionado
a gestão dos recursos públicos, ou seja, referente à aplicação dos bens e
serviços públicos a seu cargo. Entretanto, entendemos que em vista da ainda
fragilidade do controle direto exercido pelos poderes constituídos, cabe aos
tribunais de contas a importante missão, sem evidentemente substituir as
agências reguladoras, de fiscalizar se os mercados estão sendo regulados de
forma a proporcionar a neutralidade entre os agentes regulados e a
estabilidade de suas relações.
Conforme Leal e Werneck (2018), a expressão capacidades institucionais designa uma
peça de um argumento segundo o qual:
Qualquer julgamento sobre a adequação de uma teoria da decisão jurídica
ou sobre o comportamento institucional relativamente a outras instituições
deve levar a sério as capacidades reais de tomadores de decisão e os efeitos
dinâmicos relacionados à adoção de uma certa postura decisória.
Esquadrinhando a teoria das capacidades institucionais, a partir do raciocínio de Cass
Sunstein e Adrian Vermeule (2002), Leal e Werneck (2018) explicam que o foco não está na
decisão de casos singulares (“qual instituição deve resolver este caso?”), “mas nas decisões
tomadas por instituições sobre como decidi-los e com os efeitos dessas metadecisões sobre o
equilíbrio institucional (‘qual instituição deve resolver, daqui para frente, todos os casos desse
tipo?’)”.
Os autores sintetizam, então, a ideia central do argumento, explicando que “a pergunta
mais importante a ser respondida não é ‘como decidir este caso?’, mas sim ‘quem deve decidir
questões desse tipo em um arranjo institucional determinado?’”.
É pressuposto de qualquer arranjo de alocação de competências que atores
institucionais tomarão eventualmente decisões erradas, a despeito do método de decisão por
eles aplicado. E isso não é motivo para se descartar o arranjo. De acordo com Leal e Werneck
(2018), na verdade, uma vez definido que um método de decisão é o menos pior no agregado,
em um mundo de incertezas e erros inevitáveis, os erros pontuais decorrentes da aplicação dos
mesmos devem servir apenas para reforçar os compromissos da instituição com as suas
metaescolhas.
O raciocínio pressuposto pelo argumento de “capacidades institucionais” pode ser
resumido da seguinte forma: uma comparação empiricamente informada sobre os custos e
116
benefícios de se alocar, no agregado, a prerrogativa de resolução de um determinado problema
a uma determinada instituição dentre várias instituições possíveis (LEAL E WERNECK, 2018).
Considerar aspectos empíricos e comparar as habilidades e limites concretos de
diferentes instituições são, portanto, os principais méritos anunciados pelo argumento das
capacidades institucionais.
Deve-se ter atenção, contudo, em relação ao risco de o argumento ser manejado
mediante idealização de uma das instituições em exame, enquanto as capacidades de outras
instituições são investigadas de maneira empiricamente informada. É o que Sunstein e
Vermeule (2002) chamam de “institucionalismo assimétrico”. No caso, como em uma “falácia
do nirvana”, as capacidades de uma instituição são definidas com base em elementos empíricos
(que enfatizam, sobretudo, os limites dessa instituição), enquanto o outro lado da comparação
é idealizado106.
A construção teórica em torno das capacidades institucionais visa, sobretudo, a não se
deixar aprisionar por abordagens formalistas e abstratas, fundadas exclusivamente em regras
formais de competência ou de “separação de poderes”. Pretende, essencialmente, que sejam
colocadas em primeiro plano considerações empíricas e realistas acerca das condições concretas
dos tomadores de decisão. Isso não significa, contudo, que os dados empíricos sirvam para
justificar o deslocamento de competências, no caso concreto, de uma instituição para outra.
O funcionamento de um sistema de checks and balances, em um regime democrático,
pressupõe a distribuição de competências e poderes entre várias instituições públicas, a partir
de normas constitucionais e/ou legais, e o respeito mútuo a esse arranjo institucional.
Invariavelmente, essa organização é orientada pela dupla finalidade de conferir efetividade às
ações do Estado e impedir o arbítrio de governantes e burocratas, mediante mecanismos de
controle recíprocos.
Costuma estar na base do arranjo, também, uma concepção acerca da capacidade
institucional de cada órgão ou entidade para executar cada uma das tarefas distribuídas. Ou seja,
presume-se que o legislador distribui as competências e os poderes de acordo com a capacidade
institucional de cada um dos atores.
Eventuais mudanças acerca dessa concepção podem servir tanto para orientar reformas
destinadas a reforçar a capacidade institucional de determinado órgão, como, até mesmo, para
106 É comum que o entusiasmo quanto ao papel do Tribunal seja ancorado em uma visão em certa medida idealizada
acerca da capacidade institucional do Tribunal. É preciso que a questão seja encarada com mais realismo, sem
idealismos, para o que a pesquisa empírica pode contribuir decisivamente.
117
promover alterações na distribuição de competências, que devem, necessariamente, ser
operadas no plano normativo.
Do contrário, caso as competências sejam transferidas apenas no plano fático, com base
no argumento de que uma instituição é (ou está) mais capacitada do que outra, sem que haja um
rearranjo legal e/ou constitucional, instaurar-se-á um ambiente de competição interinstitucional,
o que, no limite, significará a subversão do Estado de Direito. Esse ambiente, que naturalmente
gera sobreposições indevidas e dispersão decisória, tende a ser fértil em insegurança jurídica e
ineficiência.
Conforme lição de Ávila (2016, p. 698), em densa obra sobre a Teoria da Segurança
Jurídica, a Constituição, ao instituir, em seu art. 1º, um Estado Democrático de Direito,
estabelece que o Direito deve servir como instrumento assecuratório de segurança também
frente ao próprio Direito, “uma vez que a atuação estatal só pode se dar por meio do exercício
de poderes previstos em regras de competência e por meio das fontes e dos procedimentos
previstos pelo Direito.”
Além disso, a afirmação de que um é mais capacitado que o outro é de complexa
demonstração, estando a comparação sempre sujeita a idealizações e déficits informacionais.
Haveria intrínseca dificuldade em se indicar o nível de (baixa) governança que autorizaria a
intervenção do TCU107. Por fim, o fato de a avaliação sobre a governança ser feita pelo próprio
TCU também é preocupante, já que, no limite, pode ensejar que o TCU intervenha quando e
onde quiser.
Para Schirato (2013, p. 271), em texto em que aponta a deterioração do sistema
regulatório, “a falta de competência técnica e o aparelhamento das autoridades não justificam
a hipertrofia dos controladores, sob pena de colapso institucional completo – situação em que,
ao que me parece, quase se encontra o sistema brasileiro.”
8. Standards e procedimentos para a definição da intensidade do controle
É bem marcada na doutrina e no discurso do próprio TCU a preocupação em torno da
definição de standards, ou seja, de parâmetros básicos que orientem a atividade controladora,
conferindo-lhe, assim, o mínimo de previsibilidade.
Marianna Willeman (2017, p. 298) defende, como standard central, aplicável ao
controle exercido pelo TCU em relação a toda a Administração Pública, que “diante de decisões
107 No Acórdão nº 240/2015, o TCU veicula resultado de auditoria operacional das agências, na qual avaliou a
governança regulatória, mas não contém parâmetros que sirvam à eventual calibragem do controle conforme o
nível de governança.
118
discricionárias, deve ser aplicado o princípio geral de autocontenção, como forma de
compatibilizar a separação de poderes e a especialização funcional.”
Especificamente em relação ao controle da regulação, Willeman (2017, p. 302) afirma:
Em linha de princípio, as Cortes de Contas devem seguir padrões de
autocontenção, reconhecendo, com humildade e prudência, que não lhes
compete formular escolhas regulatórias em substituição às agências,
particularmente quanto a aspectos técnicos próprios e específicos do
segmento regulado.
Defende, então, uma espécie de controle de legalidade contido, já que restrito a hipóteses
de “ilegalidade regulatória formal” (WILLEMAN, 2017, p. 304). Segundo a autora, “quando
não houver vício procedimental ou ilegalidade flagrante, incide a regra geral de autocontenção.”
Além disso, não cogita da intervenção do TCU em casos de atos regulatórios
normativos, argumentando que este caberia apenas ao Poder Legislativo (WILLEMAN, 2017,
p. 304).
Mendonça (2012) faz um esforço de sistematização de standards destinados a orientar
a atividade de controle dos Tribunais de Contas em relação às atividades das agências
reguladoras, de maneira que não haja substituição do regulador pelo controlador: (i) quanto à
atividade-meio, os Tribunais de Contas possuem ampla competência; (ii) quanto à atividade-
fim, vale o princípio geral da autocontenção por parte dos Tribunais de Contas: fortíssima
preferência prima facie pelas razões técnicas expendidas pela agência, que só não devem
subsistir diante de fortíssimas razões contrárias; (iii) podem exercer controle pleno sobre (a)
vícios procedimentais da decisão ou da elaboração da norma e (b) vícios de participação; (iv)
controle pleno quando a agência estiver praticando ilegalidade rigorosamente literal; (v) quanto
à qualidade da regulação, os TCs devem agir apenas expedindo recomendações não vinculantes.
Em seu discurso, o TCU costuma restringir as hipóteses de intervenção a casos de
ilegalidade estrita, ainda que não relacionados apenas à atividade financeira do Estado. É a ideia
central do Acórdão nº 1.703/2004, apontado como um dos leading case sobre os limites de
possibilidades do controle.
Permeia todas essas posições a noção de deferência, que seria justamente o exercício de
autocontenção do controlador, diante das opções regulatórias, por reconhecer que não lhe
compete rever escolhas tomadas dentro dos limites previstos na ordem jurídica, ainda que possa
eventualmente ter preferências distintas.
Apesar dos esforços acima referidos, é muito incipiente ainda, no Brasil, o estudo dos
procedimentos para determinação da intensidade do controle dos atos administrativos. Há
alguma reflexão sobre o controle judicial, compreendendo toda a Administração Pública, ou
119
apenas as agências reguladoras, mas em relação ao controle exercido pelo TCU os estudos são
ainda mais superficiais e as fórmulas propostas vagas e simplificadoras.
Em estudo de direito comparado sobre procedimentos de determinação da intensidade
do controle judicial sobre atos da Administração Pública, Eduardo Jordão (2016, p. 10)
apresenta os principais modelos adotados em diferentes jurisdições: (i) utilização de categorias
formais, baseadas em esquemas binários, como discricionariedade/vinculação; e (ii) a
determinação da intensidade pelos próprios tribunais, mediante ponderação das circunstâncias
do caso concreto.
O autor mostra que a utilização de estruturas simples para a determinação da intensidade
do controle não impede que, na prática, os tribunais integrem ao seu raciocínio, de forma sub-
reptícia, variáveis e ponderações por elas não contempladas (JORDÃO, 2016, p. 19).
Resume, então, os esforços verificados em três jurisdições (Itália, Canadá e EUA), na
busca de um modelo ideal, oscilando entre procedimentos muito simplificados, apoiados em
análises formalistas binárias, e operações muito complexas, que buscam, a partir de um enfoque
funcionalista, fazer um exame mais contextualizado das decisões administrativas. Mostra,
então, que os primeiros se revelaram insustentáveis e ilusórios, enquanto as últimas se
mostraram sofisticadas demais, o que lhes torna pouco operacionais.
Em relação ao controle exercido pelo TCU sobre as agências, existe uma fórmula
proposta pelo próprio Tribunal: controle de legalidade estrita de atos, sejam eles vinculados ou
discricionários. Mas a formulação evidentemente não alcança toda a complexidade dos casos,
e, na prática, o que se vê é que o TCU inclui outras variáveis em sua análise, tais como a sua
compreensão acerca da capacidade institucional do órgão controlado, e não observa a própria
diretriz.
O certo é que não há um desenvolvimento consistente, nem na doutrina nem na
jurisprudência do TCU, acerca dos procedimentos destinados a definir a intensidade do controle
a ser exercido pelo Tribunal em relação às agências.
A análise de casos a seguir ajudará a observar se, na prática, o TCU utiliza standards
que orientem suas intervenções, conferindo, assim, alguma previsibilidade ao controle. A nossa
hipótese é que a noção de deferência não influencia de maneira relevante a atitude do Tribunal,
que analisa detalhadamente e revisa todo o conteúdo da regulação.
120
CAPÍTULO 4 - Análise de casos dos setores de infraestrutura e mapeamento de
estratégias de controle
1. Apresentação dos casos
Serão analisados a seguir acórdãos do Plenário do TCU referentes a fiscalizações
empreendidas pelo Tribunal em casos relevantes de cada um dos seguintes setores de
infraestrutura: rodoviário, aeroportuário, petrolífero, elétrico e portuário. Em todos os casos, o
controle exercido pelo TCU incide sobre atos praticados, ainda que não exclusivamente, por
agências reguladoras. Há tanto casos que envolvem o acompanhamento de concessões (de
serviços ou de exploração de monopólio), como situações em que o TCU analisou normas
regulatórias produzidas pelas agências.
A análise dos casos que será apresentada a seguir ajudará a identificar alguns métodos
e estratégias empregados pelo TCU para interferir na regulação, tendo presente a preocupação
de confrontá-los com os limites e possibilidades do controle pela Corte de Contas.
Será possível, além de verificar se o TCU maneja suas competências dentro dos limites
estipulados pela legislação, observar se o Tribunal se orienta pelos standards por ele mesmo
estipulados para sua atuação no controle da regulação.
1.1. Setor Rodoviário: caso Rodovia de Integração do Sul (RIS)
No Acórdão nº 1.174/2018108, de 23/05/2018, o Plenário do TCU, sob a relatoria do
ministro Bruno Dantas, analisou o primeiro estágio do acompanhamento da concessão do lote
rodoviário denominado Rodovia de Integração do Sul (RIS)109, em conformidade com o rito da
Instrução Normativa nº 46/2004.
O processo de desestatização, conduzido pela ANTT, com participação do Ministério
dos Transportes, Portos e Aviação Civil110 e da Secretaria do PPI, foi instruído no âmbito do
TCU pela SeinfraRodoviaAviação.
De acordo com a sistemática prevista nas Instruções Normativas 27/98 e 46/2004, o
primeiro estágio de acompanhamento é centrado na análise dos estudos de viabilidade do
108 O TCU faz uma espécie de balanço acerca da experiência brasileira em concessões rodoviárias, especialmente
no que diz respeito ao controle realizado pelo TCU, a partir de um levantamento das recomendações e
determinações que o TCU fez nas etapas anteriores e dos impactos que tiveram na evolução do modelo
concessório. 109 Composto pelas rodovias BR 101/RS, BR 290/RS, BR 386/RS e BR 448/RS. 110 Ao MTPA coube a aprovação dos estudos de viabilidade produzidos pela Triunfo Participações e Investimentos,
contratada por meio de Procedimento para Manifestação de Interesse Público (PMI).
121
empreendimento, tendo se tornado uma praxe também a análise das minutas de edital e do
contrato de concessão.
A unidade técnica expôs que o TCU percebeu que a análise dos estudos de viabilidade,
focada na redução de eventuais excessos de custos de serviços estimados para a concessão, tem
revelado baixa efetividade. Isso por uma razão bem pragmática: as empresas vencedoras dos
últimos leilões ofereceram deságios muito significativos em relação ao valor da tarifa, da ordem
de 40 a 50%, tornando praticamente inócuos os apontamentos do TCU quanto às inconsistências
de custos.
Destaca que, de outro lado, é durante a fase de execução contratual que têm sido
verificados os problemas mais graves, como o inadimplemento contratual pelas
concessionárias, a inserção de novas obras nos contratos e problemas relacionados ao equilíbrio
econômico-financeiro das concessões.
Com base nessas considerações, a SeinfraRodoviaAviação justifica por que optou por
privilegiar, na fiscalização da concessão da Rodovia de Integração do Sul, “os elementos
estruturantes da minuta contratual que têm proporcionado, direta ou indiretamente, uma baixa
eficiência do serviço público”.
Essa visão é endossada pelo Plenário do Tribunal111, conforme se depreende de trecho
do voto do Ministro Bruno Dantas, relator do caso:
Diante desse cenário, o exame empreendido pela SeinfraRodoviaAviação
privilegiou os elementos estruturantes da minuta contratual que supostamente
estariam proporcionando, direta ou indiretamente, os problemas acima
relatados. Portanto, foram verificadas minuciosamente cláusulas contratuais
referentes a mecanismos de aditamento para a inserção de obras e
obrigações; disposições atinentes às inexecuções contratuais (reequilíbrio,
penalidades etc.); cláusulas editalícias; aspectos do plano de exploração
rodoviária (PER); e recomendações e determinações feitas pelo TCU em
processos de concessões recentes.
Pode-se resumir os riscos identificados pela unidade técnica nos seguintes aspectos: (a)
procedimento de inclusão de novas obras e obrigações durante a execução contratual; (b)
condições para prorrogação contratual; (c) critérios para recomposição do equilíbrio
econômico-financeiro; (d) penalidades contratuais; (e) restrição à competitividade e óbice à
obtenção da proposta mais vantajosa (mediante o mecanismo de aporte adicional ao capital
social previsto na minuta do edital); (e) incorreções nos investimentos previstos nos estudos de
viabilidade; (f) falhas em estimativas dos custos operacionais; (g) inconsistências em
111 Essa constatação parece, inclusive, ter orientado a alteração de sistemática de acompanhamento levada a efeito
com a edição da Instrução Normativa nº 81/2018, que acabou com a divisão da fiscalização em estágios e reforçou
o controle prévio dos aspectos estruturantes da licitação e do contrato.
122
parâmetros do programa de exploração rodoviária (PER); e (h) inobservância de determinações
e recomendações anteriores do TCU.
Para endereçar esses riscos, a SeinfraRodoviaAviação propôs ao Plenário a adoção de
32 determinações e 1 recomendação, bem como que fosse proibida a realização da licitação
enquanto a ANTT não implementasse todas as determinações.
Paralelamente, fez uma proposição ainda mais contundente, no sentido de que o
Tribunal impedisse a ANTT de celebrar qualquer contrato de concessão enquanto não se
estruturasse de forma adequada e compatível112.
Considerando que várias das correções que viriam a ser determinadas pelo TCU, tanto
neste caso como em outros, são baseadas em cláusulas abertas, como o interesse público, e
princípios jurídicos, como a supremacia do interesse público, a moralidade, a impessoalidade,
a eficiência, a modicidade tarifária, na introdução de seu voto o ministro Bruno Dantas fez uma
defesa do manuseio de princípios pelo TCU:
Outro ponto de relevo é que, de forma geral, os riscos apontados residem
exatamente nas situações em que a legislação é omissa e os mecanismos
atualmente postos, seja em contratos ou editais, têm se mostrado
insatisfatórios em assegurar a execução a contento das avenças. Logo, é
válido invocar os princípios de direito para buscar a solução mais
consentânea com o interesse público, desde que aplicáveis ao problema
concreto em exame.
Fundamental ressaltar que a posição do ministro relator, que foi referendada pelo
Plenário, reflete uma contradição importante com a lógica que orientou o acordão de 2004,
referido acima como leading case, em que o TCU entendeu haver discricionariedade do gestor
justamente por não existir texto de lei indicando uma solução específica. No acórdão de 2018,
como se vê, o Tribunal parece inverter essa lógica e justifica suas intervenções fundamentadas
em princípios justamente quando não houver resposta legal específica. No acórdão de 2004, a
unidade técnica sugeria que a Corte obrigasse, por meio de determinação, a agência a adotar
determinada posição, com fundamento no princípio da modicidade tarifária, o que foi rechaçado
pelo Plenário.
A despeito de ter enaltecido bastante o trabalho da unidade técnica, o ministro relator,
no que foi seguido pelos demais ministros, afastou algumas das determinações propostas pela
SeinfraRodoviaAviação, e converteu outras em recomendação, como se verá adiante.
112 Dessa proposta da unidade técnica depreende-se a visão que o Tribunal, ou pelo menos parte dele, tem do
alcance das competências e do poder do TCU. A unidade técnica do Tribunal encarregada da fiscalização das ações
de infraestrutura dos setores rodoviário e aeroportuário julgou que o órgão de controle externo poderia impedir o
Poder Executivo de celebrar qualquer contrato de concessão rodoviária. A proposta, como se verá, não foi acolhida
pelo Plenário.
123
A unidade técnica verificou que a modelagem da concessão da RIS manteve algumas
características das 3 etapas anteriores de concessões rodoviárias que teriam contribuído, na
visão do órgão, para os problemas enfrentados pelas concessões vigentes.
O TCU tem entendido que um dos problemas centrais das concessões rodoviárias diz
respeito ao elevado índice de inexecução contratual por parte das concessionárias113. Soma-se
a isso o fato de serem frequentemente incluídos novos investimentos nos contratos, que
acarretam os reajustes das tarifas de pedágio, a despeito do inadimplemento de obrigações
previstas originalmente. É o que diz textualmente a SeinfraRodoviaAviação na análise da
concessão da RIS:
Pelo exposto, em que pese a inexecução sistemática de investimentos, as
tarifas não sofreram reduções significativas, tendo havido em muitos casos
crescimento acima da inflação. Todas as concessões da 1ª etapa tiveram
crescimento da tarifa acima do IPCA acumulado, destacando-se o caso da
Concepa e da CRT, cujas tarifas subiram 70% além da inflação do período.
Apesar dos níveis de inexecução acima dos 76% das concessões da 2ª etapa
em 2016, apenas na concessão da BR-116/324/BA verificou-se crescimento
tarifário inferior à inflação. Apesar da paralisação das duplicações após o
início da cobrança dos pedágios, as tarifas da 3ª etapa andaram próximas ao
IPCA, verificando-se apenas três casos de crescimento tarifário abaixo do
índice de preços do consumidor.
A Seinfra argumenta com base nos princípios da impessoalidade e da eficiência para
suportar sua crítica às inclusões de novas obras:
Além de afrontar o dever de licitar e os princípios a que a Administração está
submetida, notadamente a impessoalidade e a eficiência, o mecanismo
favorece um comportamento oportunista dos concessionários, que não raro
apresentam propostas agressivas nas licitações, deixam de executar as
intervenções previstas originalmente no contrato de concessão, e alavancam
seus ganhos por meio da inserção de novas obras nos contratos.
Diante da previsão de que a inclusão de novas obras ensejaria o reequilíbrio econômico-
financeiro por meio da aplicação do “fluxo de caixa marginal”114, os técnicos do TCU deixaram
113 O quadro de inexecuções das obrigações contratuais assumidas pelas concessionárias da 1ª e 2ª etapas de
concessões, no tocante às obras de ampliação de capacidade e melhorias, foi apresentado nos votos condutores dos
Acórdãos 283/2016-Plenário e 943/2016-Plenário, ambos de relatoria do Min. Augusto Nardes. 114 Conforme descrição contida no Acórdão nº 2.759/2012, “o fluxo de caixa marginal é metodologia aprovada
pela Resolução ANTT 3.651/2011 para recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de
concessão de rodovias federais quando forem incluídos novas obras e serviços não previstos originalmente no
PER. Decorreu de representação formulada no TCU, no âmbito do TC 026.335/2007-4, em que foram arguidos
prejuízos aos usuários em razão das elevadas taxas de rentabilidade das concessionárias da 1ª Etapa do Programa
de Concessões Rodoviárias e o impacto sobre as tarifas básicas de pedágio dos novos investimentos a serem
incluídos no PER. O instrumento deve ser aplicado, por meio de aditivos contratuais, aos contratos da 1ª Etapa e
da 1ª fase da 2ª Etapa do Programa de Concessões Rodoviárias. Desse fluxo de caixa farão parte os dispêndios e
as receitas marginais, ou seja, que decorram do novo investimento ou serviço. Para cálculo da receita, será
considerado, de pronto, o volume de tráfego real verificado nos anos anteriores ao evento que der causa à
formulação do fluxo de caixa marginal, estimando-se o crescimento até o final da concessão. Ano a ano, por
124
consignado que “a metodologia preconizada pela ANTT conduz, invariavelmente, a um notável
desequilíbrio da avença em desfavor dos usuários.”
A lógica que orientou o raciocínio da unidade técnica é a de que o valor das novas obras,
incluídas posteriormente, não seriam alcançados pelos descontos propiciados pela
competitividade da licitação, o que violaria o art. 37, XXI, da CF/88 (obrigação de manter o
equilíbrio econômico-financeiro original dos contratos firmados com a Administração).
Interessante notar, contudo, que a metodologia do fluxo de caixa marginal foi
desenvolvida pela ANTT e disciplinada por meio da Resolução ANTT nº 3.651/2011, que,
inclusive, foi avaliada positivamente pelo TCU115. Assim, conforme observação de Maurício
Portugal (2018), “pode-se dizer que o TCU foi partícipe da decisão que levou à utilização do
fluxo de caixa marginal no caso da RIS.” Ainda assim, a unidade técnica responsável pelo caso
opôs-se à adoção da sistemática.
Registre-se que a unidade técnica argumentou que o fluxo de caixa marginal era
apropriado apenas para a 1ª etapa de concessões, cujos contratos foram celebrados com taxas
internas de retorno muito elevadas, de maneira que a modelagem resultava na inclusão de novos
investimentos em condições desfavoráveis ao interesse público. Seria, assim, indevida a
aplicação da metodologia aos contratos das 2ª e 3ª etapas, assim como à RIS, por contrariar a
modicidade tarifária:
Ocorre que ao expandir a aplicação da Resolução ANTT 3.651/2011 para os
contratos de concessões mais recentes (segunda e terceira etapas) ,
arrematados com significativos deságios, obteve-se resultado oposto ao
interesse público perseguido com as deliberações pretéritas do Tribunal, ou
seja, as novas obras passaram a ser incluídas nos contratos de concessão por
valores majorados de várias vezes em relação àqueles que constaram da
proposta original.
Dessa forma, a observância da metodologia e dos parâmetros preconizados
pelos normativos da ANTT não garante que os dispositivos constitucionais e
legais que tratam da manutenção das condições efetivas da proposta e da
modicidade tarifária requerida para a prestação de serviço adequado (art.
37, inc. XXI, da Constituição Federal; art. 6º, § 1º, art. 9º, § 4º, ambos da Lei
8.987/1995) serão atendidos.
A unidade técnica especulou, assim, que a metodologia poderia abrir a oportunidade
para que obras e serviços, que sabidamente seriam necessários ao longo do contrato, sejam
propositalmente omitidos do objeto da licitação e posteriormente incluídos por meio de
ocasião da revisão tarifária ordinária, o tráfego estimado será substituído pelo real verificado. A taxa de desconto
a ser utilizada no fluxo de caixa marginal será calculada de acordo com a fórmula do Custo Médio Ponderado de
Capital (WACC, em inglês), descrita no art. 8º da Resolução ANTT 3.651/2011. O fluxo marginal fica vinculado
à taxa de desconto calculada no momento em que for formulado, até o final da concessão.” 115 Vide Acórdão nº 2.759/2012 – Plenário, rel. Min. José Múcio Monteiro.
125
aditivos. Argumenta que esse risco seria especialmente grave nos procedimentos para
manifestação de interesse (PMI) em que a empresa que elabora os estudos de viabilidade pode
participar do certame.
A SeinfraRodovia entendeu, em síntese, portanto, que obras são contratadas, sem
licitação e pelo preço teto dos sistemas oficiais de referência, a partir de projetos elaborados
pelas concessionárias e que posteriormente são executados sem fiscalização efetiva.
Assim, com visão restritiva acerca da possibilidade de inclusão de novos investimentos
durante a execução do contrato, a unidade técnica propôs que o Tribunal expedisse
determinação dirigida à ANTT para que “aprimore as regras da minuta de contrato
concernentes a inclusão de obras, investimentos e obrigações, de forma a melhor aproveitar as
condições vantajosas estabelecidas pela proposta vencedora, em atendimento ao disposto no
art. 37, XXI, da CF/88, no art. 9º, § 4º, da Lei 8.987/95 e no art. 65, §1º, da Lei 8.666/93.”
Além da proposta de determinação genérica no sentido de que sejam aprimoradas as
regras contratuais para inclusão de novos investimentos, a Seinfra sugeriu que o Tribunal
determinasse à ANTT o estabelecimento de limites e condições para a inserção e exclusão de
obras ou obrigações do contrato de concessão, “incluindo objetos que não poderão ser incluídos
ou excluídos posteriormente”, e apontou como fundamento os princípios da licitação, da
impessoalidade, moralidade e eficiência.
A unidade técnica opôs-se, ainda, à possibilidade de prorrogação contratual por prazo
idêntico ao da concessão; à metodologia de aplicação do Fator D116 para fins de reequilíbrio
econômico-financeiro; à exigência de adicional de capital social em caso de deságio superior a
10%; à possibilidade de implantação de contornos urbanos como alternativa à execução de
obras de manutenção de nível de serviço; às regras sobre penalidades, inclusive quanto à
permissão para conversão de multas em novos investimentos; dentre outras.
Antes da apreciação pelo Plenário, embora a ANTT tivesse, em um primeiro momento,
rebatido os apontamentos feitos pela unidade técnica, a agência passou a aceitar,
pragmaticamente, parte das proposições da unidade técnica117 e apresentou uma série de
medidas destinadas a endereçar os riscos apontados pela Seinfra, tais como: i) vedação à
inclusão de investimentos em ampliação de capacidade e melhorias nos primeiros e nos últimos
116 Conforme descrição do TCU, “o Fator D é um percentual fixo, estabelecido antes da licitação, com base nos
valores das obras e dos serviços que constaram do estudo de viabilidade em relação à tarifa-teto, calculada para o
certame; posto de outra maneira, o Fator D é uma estimativa da representatividade (percentual) de determinada
obrigação contratual em relação ao conjunto de todas as obrigações contratuais assumidas pela concessionária ao
longo de trinta anos.” 117 Nota Técnica nº 01/2018/COOUT/SEUINF, da Superintendência de Exploração da Infraestrutura
Rodoviária/ANTT, exarada em 11/04/2018, no processo nº 50500.352371/2017-68.
126
cinco anos do contrato; ii) inclusão de novos investimentos restrita às revisões quinquenais; iii)
inclusão de contornos urbanos condicionada à demonstração da vantajosidade e ao comparativo
de projetos executivos, audiência pública e reequilíbrio apenas da diferença de custo; iv)
instituição de estoque de obras, com vedação à inclusão de obras de melhorias por fluxo de
caixa marginal antes de seu término; v) estabelecimento de limitações e condições para
prorrogação do prazo contratual; dentre outras.
A agência não concordou, contudo, com a obrigação de estipular no contrato os objetos
que não poderiam vir a ser incluídos ou excluídos posteriormente, tendo em vista a
impossibilidade de se fazer essa previsão em relação a um contrato de longo prazo, tendo em
vista o caráter dinâmico das necessidades da rodovia. Com base nesse argumento, defende a
flexibilidade e mutabilidade dos contratos de concessão, afastando, assim, o tratamento que se
costuma conferir aos contratos administrativos comuns. Eis a síntese do argumento da ANTT:
Assim, o que está sendo proposto é o estabelecimento de limites e condições
possíveis e previsíveis para a inserção de obras. Contudo, a imprevisibilidade
de um contrato de concessão impede que sejam previstos todos os objetos que
poderão ser incluídos ou excluídos, tendo em vista as necessidades
decorrentes das necessidades futuras da rodovia ou de fatos supervenientes.
O ministro relator, no que foi seguido pelo Plenário, com fundamento no parecer
lançado pelo representante do MP, embora tenha concordado com a necessidade de
aprimoramento das regras contratuais, entendeu que não se deveria obrigar o concessionário,
por ocasião da inclusão de novas obras, a vincular-se ao desconto oferecido na proposta
vencedora, “isso porque não se poderia transferir para o concessionário o risco de se ver
obrigado a realizar investimentos que não foram previstos inicialmente no contrato,
comprometendo sua remuneração com a vinculação ao desconto oferecido.”
Da mesma forma, deixou o Plenário de acolher a proposta de estipulação dos objetos
que não poderão ser incluídos ou excluídos posteriormente, justamente por entender que “uma
regulamentação demasiadamente exaustiva poderia atribuir rigidez excessiva a um contrato de
longo prazo.”
Sobre a inclusão de novas obras, o ministro relator referiu-se ao art. 22 da Lei nº
13.448/2017, recentemente editado para prescrever que não se aplicam às concessões os limites
do art. 65, §§ 1º e 2º da Lei nº 8.666/93. O ministro ressaltou, contudo, que, ainda que sejam
afastados os limites da Lei de Licitações, afigurar-se-ia recomendável que algum limite fosse
estabelecido no edital e no contrato, de forma a explicitar a regra do jogo para os licitantes e
para os usuários. Por considerar que a questão está inserida na esfera de discricionariedade da
Administração, o plenário endereçou-a na forma de recomendação.
127
Foram, então, expedidas determinações genéricas, em relação à inclusão e exclusão de
obras e obrigações, fundamentadas em princípios (como licitação, impessoalidade, eficiência
e moralidade), no sentido de “aprimorar as regras da minuta de contrato concernentes à inclusão
de obras, investimentos e obrigações”, e “estabelecer no edital e na minuta de contrato limites
e condições para a inserção e exclusão de obras ou obrigações do contrato de concessão”.
Em relação às regras para prorrogação contratual, o Plenário, diante da nova redação
proposta pela ANTT, expediu determinação também genérica, no sentido de que sejam
“estabelecidas regras objetivas e restritivas para disciplinar a prorrogação de contrato,
admitindo-se a medida apenas nos casos excepcionais em que essa se mostre indispensável à
manutenção da qualidade do serviço e da modicidade tarifária, instituindo prazos curtos, bem
inferiores aos do contrato original.”
Quanto aos mecanismos de recomposição do reequilíbrio econômico-financeiro, o
Plenário afastou as propostas de determinação formuladas pela unidade técnica, dizendo que
as soluções estavam inseridas na esfera de discricionariedade do regulador. Da leitura do voto
condutor, contudo, o que parece é que o Plenário na verdade concordou com a posição da
agência e discordou da unidade técnica do tribunal.
No que tange à exigência de capital social adicional nos casos de deságio superior a
10%, em relação à qual a unidade técnica se opôs veementemente, o Plenário entendeu que a
posição do regulador estava fundamentada na tentativa de lidar com um problema concreto,
concernente às propostas aventureiras, e limitou-se a recomendar o monitoramento da
efetividade da regra.
Com relação às penalidades contratuais, depois de a ANTT concordar em não prever no
contrato os acordos substitutivos de sanção, o Plenário afastou a proposta de determinação
formulada pela Seinfra e recomendou à ANTT avaliar a conveniência de elevar os valores das
multas.
Quanto à possibilidade de utilização de contornos urbanos como alternativa à execução
das obras de ampliação de capacidade e de manutenção do nível de serviço, cuja exclusão foi
proposta pela Seinfra, o Plenário acabou por admitir a cláusula, mas desde que em condições
muito específicas e sob regras rígidas e restritivas. Em relação a essa questão, unidade técnica
e Plenário argumentaram com base na falta de capacidade de fiscalização da agência para lidar
com regras tão flexíveis.
Interessante notar, por fim, que o Plenário, ao analisar a proposta radical da unidade
técnica no sentido de que a ANTT fosse impedida de celebrar contratos de concessão até que
estivesse melhor estruturada, embora não tenha acolhido a sugestão, não disse que o Tribunal
128
não teria poderes para adotar medida dessa magnitude. Limitou-se a ponderar o impacto
concreto da mesma e a argumentar que faltariam elementos que a justificassem:
Com efeito, pela abrangência da análise levada a efeito sobre a estrutura de
fiscalização da ANTT, reputo inexistir elementos de convicção suficientes
para impedir a continuidade do processo concessório até que a Agência
disponha de estrutura de fiscalização adequada. A meu ver, uma medida
dessa magnitude, ainda que sob a forma de recomendação, precisa ser
avaliada com maior profundidade, estudando os processos internos da
agência relativos ao exercício da função fiscalizadora, conhecendo, por
exemplo, sua força de trabalho e sua política de gestão de riscos, a qual
inclusive foi objeto de aprovação em abril de 2017. Tal medida ainda
careceria de uma melhor avaliação das consequências de suspender a
política federal de concessão rodoviárias, que seria o real efeito desta
determinação.
1.2. Setor de petróleo: caso Saturno
No Acórdão 672/2018 – Plenário, julgado em 28 de março de 2018, sob a relatoria do
ministro Aroldo Cedraz, o Tribunal apreciou e adotou proposta de medida cautelar elaborada
pela Secretaria de Fiscalização de Infraestrutura de Petróleo e Gás Natural (SeinfraPetróleo).
No caso, a SeinfraPetróleo analisou a 15ª Rodada de Concessão de blocos terrestres e
marítimos, com vistas à outorga de contratos de concessão para atividades de exploração e
produção de petróleo e gás natural, realizada pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e
Biocombustíveis (ANP).
Segundo a SeinfraPetróleo, as informações técnicas disponíveis indicariam que os
Blocos S-M-534, S-M-645 e Saturno comporiam um mesmo reservatório de petróleo, de modo
que a sua licitação em separado traria o risco de futura unitização (celebração de Acordos de
Individualização da Produção).118 Dessa forma, a decisão de ofertar os blocos em separado
contrariaria as melhores práticas da indústria do petróleo, e poderia depreciar economicamente
as respectivas áreas para os processos licitatórios.
Por ocasião da oitiva dos órgãos envolvidos, ANP e CNPE sustentaram que uma
possível unitização não seria um problema, pois a subdivisão de áreas propiciaria maior
competitividade e atratividade nas licitações. Alegaram ainda que, com os dados até então
obtidos, não se poderia inferir, com razoável certeza, os limites dos blocos em questão — sendo
incerto o risco de unitização.
118 Segundo José Alberto Bucheb, discussões sobre a individualização da produção (unitização) “surgem quando
uma jazida de petróleo ou gás natural se estende por dois ou mais blocos contíguos, cujos direitos de exploração e
produção pertencem a concessionários diferentes” (Direito do Petróleo – a regulação das atividades de exploração
e produção de petróleo e gás natural no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 183).
129
Mesmo assim, a SeinfraPetróleo manteve sua posição quanto à insuficiência de
fundamentação, e, com a proximidade do certame, o Plenário do TCU determinou
cautelarmente, na véspera do leilão, a suspensão dos procedimentos de oferta pública dos
Blocos S-M-645 e S-M-534.
Embora as manifestações da unidade técnica tragam muitos elementos e argumentos
que questionam diretamente as escolhas da Administração no caso, o relator, em seu voto,
buscou enfatizar mais as deficiências procedimentais e de fundamentação, o que justificaria, na
sua visão, a suspensão do leilão, na véspera de sua realização, por entender que não haveria
elementos que permitissem se chegar a uma conclusão segura acerca do acerto e da
vantajosidade da modelagem, além de ter a ANP descumprido o procedimento previsto na IN
27/98.
Segue trecho do voto do Ministro Relator Aroldo Cedraz, em que ele procura dizer que
não está a questionar a escolha administrativa:
Verifico que em momento algum se questionou a opção adotada pelo CNPE, mas
tão somente se apontou a ausência de justificativas para a decisão tomada (...).
Não é demais lembrar que, a despeito de a decisão de se outorgar determinado
bloco de petróleo se encontrar na esfera de discricionariedade do Poder
Concedente, isso não o exime da observância ao princípio da motivação dos atos
administrativos.
A análise do caso, contudo, parece evidenciar que o Tribunal, na verdade, decidiu sustar
a licitação por não concordar com a opção da administração, por considerá-la antieconômica, e
não por identificar uma ilegalidade. Basta ver que o relatório da unidade técnica, ratificado pelo
Plenário, foi dedicado a explicar a razão pela qual a opção da administração por licitar os blocos
em separado seria menos vantajosa para a União, em termos econômicos, do que a opção de
licitar os blocos em conjunto. O Tribunal estimou uma desvantagem da ordem de 2 bilhões de
reais.
Além disso, como visto, a ANP e o CNPE fundamentaram sua escolha, tanto na
incerteza da unitização, como na ampliação da competitividade que a licitação naqueles moldes
propiciaria, não parecendo ser um caso típico de falta de motivação, capaz de tornar ilegal o
certame. A intervenção do TCU, com a suspensão do leilão na véspera de sua realização, com
inegáveis impactos sobre as expectativas do mercado, foi orientada, em grande medida, pela
ideia de que a opção do administrador não era a melhor, segundo a ótica do Tribunal, ainda que
não fosse rigorosamente ilegal.
O Tribunal também utilizou como fundamento para a decisão cautelar o fato de a ANP
não ter observado os prazos da IN TCU nº 27/98, para disciplinar o acompanhamento de
130
processos de concessão. Além das críticas existentes na doutrina quanto ao controle prévio
realizado pelo TCU com fundamento em norma por ele próprio editada, interessante notar que
referida instrução normativa referia-se textualmente a concessões de serviços públicos, noção
que sabidamente não abrange a exploração de petróleo, atividade econômica em sentido estrito.
1.3. Setor de portos
1.3.1. Caso afretamento
No acórdão nº 380/2018, de relatoria do ministro Bruno Dantas, o TCU determinou a
suspensão dos efeitos, por meio de medida cautelar, da Resolução ANTAQ nº 01/2015, que
disciplina requisitos para o afretamento de embarcação estrangeira, sob o fundamento de que o
ato da agência teria extrapolado os limites previstos em lei e na Constituição para o exercício
de poder normativo, ao exigir mais do que a lei permitiria.
O julgamento chamou atenção, primeiro, por ter o Plenário contrariado integralmente a
posição da unidade técnica, que se posicionou de forma contrária à concessão da medida, tanto
por não vislumbrar periculum in mora, já que a norma estava em vigor desde 2015, como por
entender não ter a ANTAQ agido fora dos limites de sua competência.
Além disso, nem a unidade técnica nem o Plenário expuseram, de forma clara, o
fundamento da competência do TCU para determinar a suspensão dos efeitos de uma norma.
No acórdão, consta apenas o argumento do Min. Zymler no sentido de que a “natureza jurídica
de serviço público de transporte aquaviário atrai a incidência do Direito Administrativo e a
competência do TCU.” Mas o Tribunal não apontou as regras constitucionais ou legais que
habilitariam a ação do TCU nesse caso.
Da análise do acórdão, verifica-se que o Tribunal fez controle de juridicidade da norma
regulatória, concluindo o Plenário, por 5 x 3, que a agência normatizou matéria que a
Constituição teria reservado para regulamentação exclusiva pelo Poder Legislativo:
A agência reguladora possui certa autonomia para, dentro dos parâmetros
estabelecidos pelo legislador, dispor, de maneira geral, sobre a ordenação do
transporte aquático. Contudo, especificamente no tocante à matéria do
parágrafo único do art. 178 em comento, que trata justamente da competência
para estabelecer “as condições em que o transporte de mercadorias na
cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações
estrangeiras”, o constituinte não deixou margem para tanto. A constituição
foi taxativa ao determinar que apenas lei formal poderia dispor sobre essa
matéria. Nesse contexto, entendo que não poderia a Antaq, por meio de
resolução, ter criado novas condições para o afretamento de embarcações
estrangeiras além daquelas já previstas pelo legislador ordinário na Lei
9.432/1997. Vale dizer, por mais alargado que seja o poder normativo das
131
agências reguladoras, é evidente que ele não alcança conteúdos reservados à
regulamentação exclusiva de lei formal.
O relator argumentou ainda que Nota Técnica do CADE119 “conclui pela existência de
efeitos negativos da norma no mercado de navegação de cabotagem brasileiro.” Guiando-se,
assim, pela posição do CADE, o Ministro aponta que a resolução da ANTAQ pode ser
prejudicial ao setor de navegação de cabotagem, por restringir a competitividade. Sobre a
questão, contudo, o ministro Benjamin Zymler alertou para o fato de que “a aventada restrição
à competitividade se insere no âmbito da competência do Conselho Administrativo de Defesa
Econômica – CADE”, razão pela qual defendeu que a questão fosse considerada de menor
relevância pelo TCU por ocasião do julgamento.
Além da incidência da competência do CADE sobre a matéria, interessante notar que o
TRF da 1ª Região, analisando exatamente a mesma resolução, entendeu que a agência atuara
em conformidade com os limites do poder normativo. Na prática, contudo, a despeito do sistema
de jurisdição uma vigente no Brasil, que confere apenas às decisões judiciais o atributo da
definitividade, a agência viu-se compelida a deixar de aplicar a norma, ante o risco de seus
dirigentes virem a ser punidos pelo TCU.
1.3.2. Caso THC 2
Por meio do Acórdão nº 1.704/2018, de relatoria da ministra Ana Arraes, o TCU
analisou a Resolução ANTAQ nº 2.389/2012, que dispõe sobre a possibilidade de operadores
(terminais) portuários cobrarem a THC2120 dos recintos alfandegados (terminais
retroportuários) pelos serviços de segregação de contêineres, nas operações de importação.
119 O acórdão não esclarece a que título e em que contexto teria sido emitida a posição do CADE. O certo é que,
por se tratar de nota técnica, não constitui pronunciamento do plenário da autoridade antitruste. 120 Os terminais portuários fazem jus ao recolhimento da Terminal Handling Charge (THC), que é um preço
cobrado em função dos serviços de movimentação horizontal de contêineres. Já a THC2 constitui uma
denominação extraoficial de uma taxa adicional exigida por esses terminais para efetuar a segregação e a liberação
de contêineres quando estes se destinam a recintos alfandegados independentes, nas operações de importação. A
THC2, embora o início de sua cobrança remonte a momento anterior às concessões de arrendamento portuário
para empresas privadas, tem sido questionada nas relações entre os terminais arrendados e os recintos
alfandegados. Argumenta-se basicamente, contra a cobrança, que os serviços de segregação e de liberação de
contêineres não representam custos adicionais ou que tais custos estariam abarcados pela THC.
132
O TCU reconhece, no acórdão, que se trata de tema bastante controvertido121 no setor
portuário122, noticiando a existência de decisões judiciais em sentidos diferentes e de posições
divergentes no âmbito da agência ao longo da última década.
Sem entrar no mérito acerca do tema tratado pela Resolução que foi objeto da análise
do TCU, pode-se dizer, em resumo, que a ANTAQ, ao regular a matéria, reconheceu
expressamente que os serviços de segregação e entrega a terminais retroportuários, por ocasião
da importação, não são remunerados pela THC, e autorizou sua cobrança à parte. Além disso,
a regulação optou por deixar que o valor da tarifa seja definido por livre negociação entre os
agentes de mercado envolvidos, no caso os terminais portuários e os recintos alfandegados
independentes, também chamados de terminais retroportuários123. Além disso, previu a
possibilidade de fixação de um teto tarifário para a THC2 pelas autoridades portuárias.
Da análise do extenso acórdão, verifica-se que o Plenário do Tribunal, seguindo a
posição defendida pelo Ministério Público de Contas, entendeu que a resolução não conteria
qualquer ilegalidade específica124125. A linha seguida pelo MP e pela ministra relatora foi a de
que a ANTAQ teria regulado mal126, ou seja, não teria cumprido adequadamente as finalidades
para as quais foi criada. O TCU considerou que a ANTAQ, ao optar deliberadamente por
121 A controvérsia diz respeito a uma distinção conceitual, referente à definição dos serviços que seriam, de fato,
incluídos na cesta de serviços, ou Box Rate, e aqueles que seriam realizados à parte pelos terminais portuários,
merecendo remuneração própria. Isto é, a questão jurídica fundamental reside na dúvida sobre o que exatamente é
remunerado pela THC, se toda a movimentação da carga, inclusive a segregação e entrega a terminais
retroportuários, caso assim deseje o importador, hipótese em que não faria sentido a cobrança da chamada THC2,
ou se apenas a retirada da embarcação e o empilhamento no terminal, havendo, assim, um serviço adicional não
remunerado pela THC. Tal controvérsia, no entanto, não foi solucionada pela recente decisão do Tribunal de
Contas. 122 No relatório de fiscalização, há informação de que a contenda tem se estabelecido nos portos de Salvador/BA
e de Santos/SP desde 2002. O debate vem ocorrendo em múltiplas esferas de competência, contando-se com
decisões favoráveis e contrárias à pertinência da taxa. Há questionamentos nos âmbitos judiciais, tanto federal
quanto estaduais, no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), na própria Antaq e mesmo no TCU. 123 Conforme sumarização da Ministra Relatora do acórdão, “a controvérsia acerca da THC2 envolve atores de um
mercado regulado pela Agência Nacional de Transporte Aquaviário. Trata-se de uma taxa exigida por terminais
de contêineres arrendados em portos públicos organizados, em face de recintos alfandegado independentes. Ambos
atuam na cadeia logística do comércio exterior, mas apenas os terminais portuários possuem interface com o
transporte aquaviário. Dessa forma, as arrendatárias dos terminais molhados prestam serviços de carga e descarga
de navios, movimentação de contêineres dentro da área arrendada, armazenagem da carga e despacho aduaneiro.
Por sua vez, os recintos alfandegados independentes localizam-se na retroárea do porto ou noutro ponto do
território nacional, conforme autorização da autoridade aduaneira, e oferecem os mesmos serviços que os terminais
molhados, à exceção da carga e descarga dos navios.” 124 Nesse sentido, o voto condutor do acórdão: “De igual forma, concordei com o MPTCU no sentido de que a
Resolução 2.389/2012 não é ilegal – em que pese sua incapacidade para regular o conflito instaurado –, porque
seus dispositivos não afrontam regras do ordenamento jurídico nacional.” 125 A unidade técnica defendia que a Resolução seria ilegal, por restringir indevidamente o conceito de capatazia,
previsto na Lei de Portos, mas a argumentação não foi acolhida pela relatora e pelo Plenário. 126 Segue trecho da decisão: “a Resolução nº 2.389/2012 não contém elementos capazes de solucionar o embate
histórico sobre a cobrança da THC2. Ao contrário, a agência reguladora desregulamentou o ponto conflituoso e
deixou-o como livre negociação entre o terminal portuário e o recinto alfandegado independente, mesmo
conhecendo a posição privilegiada do primeiro em relação ao segundo na cadeia do comércio exterior.”
133
“deixar a cobrança sob livre negociação entre os terminais portuários e os recintos
alfandegados”, não cumpriu seu mandato legal de regular adequadamente o setor127.
O tema também está no raio de atuação do CADE, há mais de 10 anos, tendo a ministra
relatora no TCU utilizado pronunciamentos do órgão antitruste para reforçar sua argumentação.
A autoridade concorrencial já se pronunciou algumas vezes sobre a cobrança de THC2, antes e
depois da edição da Resolução da ANTAQ, manifestando-se de forma contrária à tarifa em
casos concretos128. No último pronunciamento129, o plenário do CADE, entendeu, por
maioria130, que, mesmo após a regulação da matéria em caráter geral e abstrato pela agência
reguladora setorial, não estaria afastado o caráter anticoncorrencial da cobrança.
Um argumento central utilizado pela ministra relatora no TCU foi o de que o modelo de
liberdade contratual adotado pela regulação da ANTAQ daria margem a eventuais condutas
anticoncorrenciais, tendo em vista a posição dominante do operador portuário em face do
recinto alfandegado131.
Além disso, analisando o processo administrativo que resultou na norma questionada, o
Plenário do Tribunal identificou a alteração de dois dispositivos da Resolução, 1 (uma) semana
após a sua publicação original, sem que tenha sido apresentada qualquer justificativa, o que
teria resultado na eliminação de um instrumento apto, segundo o TCU, a coibir práticas
anticoncorrenciais. Na redação original da norma da ANTAQ, publicada em 22/02/2012, havia,
no art. 5º, a necessidade de observância dos tetos tarifários fixados pela autoridade portuária. O
TCU observou que, em 29/02/2012, a Resolução foi publicada novamente, com uma redação
parcialmente alterada, em que a fixação de teto tarifário, a cargo da autoridade portuária,
127 Conforme trecho da decisão: “Essa atitude configura patente descumprimento do art. 20, inciso II, da Lei nº
10.233/2001 e do art. 2º, inciso II, do Decreto nº 4.122/2002, porquanto a Antaq foi criada tendo como finalidade
regular o mercado de transporte aquaviário e de exploração de infraestrutura portuária; harmonizar os interesses
de usuários e de arrendatárias; arbitrar conflitos de interesse e impedir situações que configurem competição
imperfeita ou infração à ordem econômica e garantir a modicidade das tarifas. Com essa Resolução, a agência
reguladora permanece esquivando-se de regular um mercado de concorrência nitidamente imperfeita, em que se
instalou um conflito há mais de uma década e que ainda não obteve solução satisfatória. Essas características são
impeditivas para que o agente regulador faça a opção por não regular.” 128 O TCU noticia no acórdão a existência de precedente judicial anulando uma das decisões do CADE, em ação
movida pelo Grupo Libra (processo nº 2005.34.00.037482-6), já julgada pelo TRF da 1ª Região e pendente de
julgamento pelo STJ. 129 Processo Administrativo nº 08012.001518/2006-37. 130 O entendimento do plenário do CADE contrariou posição de sua Superintendência-Geral, de sua Procuradoria
Federal e do representante do MPF que lá oficia. 131 Eis o argumento do TCU: “No art. 9º, caput, e parágrafo único, foi esclarecido que o serviço de entrega de
cargas na importação não faz parte da THC nem da Box Rate. Sobre tais serviços, a Resolução declara que, quando
for o caso, a autoridade portuária estabelecerá preço máximo. Entretanto, não há indicação dos casos em que essa
intervenção seria necessária, deixando a decisão ao arbítrio das autoridades portuárias locais. Tampouco há diretriz
para a determinação do valor máximo permitido. Além disso, a Antaq se eximiu de participar ativamente da
resolução do conflito de interesses, delegando essa atribuição difusamente para as autoridades de cada porto, sem
estabelecer orientações e responsabilidades.”
134
passaria a se dar “quando for o caso” (parágrafo único do art. 9º). Isso, na visão do Tribunal,
tornou a norma excessivamente subjetiva e esvaziou sua eficácia132.
Além de determinar que a ANTAQ apresente a composição de custos dos serviços
prestados pelos terminais portuários, a fim de que se tenha insumos para avaliar a pertinência
da THC2, o TCU, ao concluir pela existência de omissão regulatória e atribuir responsabilidade
pessoal aos dirigentes da agência, expediu determinação de tom mais genérico, no sentido de
que a ANTAQ “proceda à revisão da regulamentação concernente à cobrança do serviço de
segregação e entrega de contêiner (SSE ou THC 2), de modo a adequá-la ao novo arcabouço
jurídico-institucional estabelecido pela Lei 12.815/2013 e pela Lei 12.529/2011, com vistas a
dar cumprimento à sua obrigação legal de harmonizar e arbitrar conflitos de interesse entre
terminais portuários e recintos alfandegados independentes.”
Interessante notar que, embora o TCU tenha identificado uma falha procedimental
aparentemente relevante, que foi a alteração do texto da Resolução sem passar novamente pelos
órgãos técnico e jurídico da agência, o Tribunal deixou bem claro que não vislumbrava qualquer
ilegalidade na norma. Considerou problemática a redação supostamente mais vaga e imprecisa,
e que isso configuraria uma grave omissão regulatória, apta a justificar a intervenção do
Tribunal133, na visão dos ministros.
O ministro Benjamin Zymler, em seu voto revisor, enfatizou a relevância do caso,
chamando-o inclusive de leading case, e chamou atenção para o fato de a solução proposta pela
ministra relatora significar uma alteração em relação à praxe do Tribunal:
Ao longo das últimas duas décadas, o TCU tem avaliado a atuação das
diversas agências reguladoras. Nessas ocasiões, o Tribunal tem detectado
irregularidades e determinado as respectivas correções, no exercício do
controle objetivo anteriormente mencionado neste voto.
Entretanto, não é praxe a aplicação de sanções aos responsáveis por
eventuais irregularidades, uma vez que o controle objetivo tem sido
privilegiado em relação ao subjetivo. Assim sendo, tem se buscado
precipuamente solucionar os problemas e afastar as irregularidades.
132 Segue a transcrição do voto: “Sem especificar os casos/portos/terminais que devem adotar a regra, não é
possível predizer a efetividade regulatória do dispositivo, uma vez que seu emprego se coloca como decisão
estritamente subjetiva, afinal, não é orientada por requisitos mínimos que possam caracterizar sequer uma escolha
discricionária. Nos demais artigos da Resolução 2.389/2012, não há referência a qualquer mecanismo regulatório
para coibir eventual uso abusivo do poder de mercado pelos operadores portuários frente aos recintos alfandegados
(...).” 133 Conforme trecho da decisão: “Neste ponto, destaco a necessidade de atuação do TCU, já mencionada no início
deste voto. Em típica fiscalização de segunda ordem, é dever do Tribunal identificar se as agências estão a cumprir
adequadamente seus objetivos institucionais, entre os quais o de fiscalizar e regular as atividades sob sua esfera de
competência. De igual forma, concordei com o MPTCU no sentido de que a Resolução 2.389/2012 não é ilegal –
em que pese sua incapacidade para regular o conflito instaurado –, porque seus dispositivos não afrontam regras
do ordenamento jurídico nacional.”
135
Assim sendo, por se tratar de um leading case, avalio que este processo, no
que concerne à aplicação de multas aos dirigentes de agências reguladoras,
deve ser avaliado com uma atenção ainda maior.
Defendeu, contudo, por uma questão de coerência, que fosse avaliada a responsabilidade
de todos os ex-dirigentes da ANTAQ, desde 2001, quando começaram os conflitos na matéria,
até 2012, quando foi editada a Resolução. O ministro Zymler demonstrou entender que a
conduta daqueles dirigentes que permaneceram efetivamente omissos nesse período seria
potencialmente mais grave do que a postura dos diretores que pelo menos tentaram regular a
matéria, ao editar a Resolução em questão. A proposta apresentada pelo Ministro, de realização
de diligências pela unidade técnica, a fim de que fosse apurada eventual responsabilidade dos
ex-dirigentes, foi acolhida pelo Plenário.
Merece destaque, ainda, o fato de que a análise se deu em sede de auditoria operacional,
teoricamente vocacionada para o aperfeiçoamento da gestão pública, por meio do levantamento
de dados e informações acerca da performance da Administração pública e da expedição de
recomendações. Acabou, como se vê, resultando em uma determinação para a correção da
norma regulatória e aplicação de penalidade a diretores e ex-diretores.
Vê-se, assim, que o Plenário do TCU rechaçou o argumento da unidade técnica de que
a Resolução seria ilegal, mas determinou a elaboração da composição de custos dos serviços
prestados pelos terminais, a fim de que possa avaliar a pertinência da cobrança da THC2. E, ao
mesmo tempo que determinou que a ANTAQ revise a regulamentação do tema, sem especificar
exatamente o conteúdo que deve conter a norma, responsabilizou pessoalmente os dirigentes
responsáveis pela edição da Resolução.
1.4. Setor aeroportuário: caso Galeão
No setor aeroportuário, analisaremos a atuação do TCU no acompanhamento da 3ª
Rodada de Concessões, que abrangeu a desestatização da exploração dos aeroportos do Galeão
(Rio de Janeiro) e de Confins (Minas Gerais). O processo de concessão dos aeroportos do
Galeão e de Confins envolveu discussões relevantes sobre aspectos centrais do certame e da
parceria, e com ampla repercussão na mídia e na sociedade, em que o TCU ocupou posição
central.
Na análise do 1º estágio de acompanhamento da concessão, conforme rito da IN 27/98,
em que foram analisados os estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental (EVTEA) e
alguns aspectos essenciais da licitação e da estrutura contratual, o TCU proferiu os Acórdãos
nº 2.466/2013 (rel. Min. Ana Arraes) e 2.666/2013 (rel. Min. Augusto Sherman). Examinou,
136
ainda, no Acórdão nº 3.026/2013, representação da Comissão de Viação e Transportes da
Câmara dos Deputados, referente a questão específica – restrição à participação de acionistas
de concessionárias -, também tratada nos dois acórdãos referidos acima.
O Tribunal fez uma análise minuciosa de todos os aspectos da modelagem descrita no
EVTEA, tais como: (i) estimativas de receitas e despesas; (ii) aspectos tributários, como a forma
de aplicação do Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura
(REIDI); (iii) investimentos necessários no prazo da concessão; (iv) questões ambientais; e (v)
outros. De uma maneira geral, o TCU chancelou a modelagem proposta pelo poder concedente.
A Corte, porém, levantou questionamentos quanto a dois aspectos centrais do certame,
que protagonizaram as discussões realizadas no Tribunal em relação à concessão dos aeroportos
referidos. O TCU apontou, no Acórdão nº 2.466/2013, não haver justificativa técnica e jurídica
suficiente para (i) motivar a exigência de experiência técnica anterior tão elevada quanto a que
pretendia o poder concedente exigir; e (ii) sustentar a restrição à participação dos
concessionários de aeroportos já concedidos anteriormente no leilão de Galeão e Confins.
No caso, a minuta de edital previa que só poderiam participar do leilão operadores
aeroportuários que detivessem experiência na gestão de aeroportos com movimentação anual
de pelo menos 35 milhões de passageiros134.
As regras incialmente propostas previam, ainda, restrição à participação de
concessionários de aeroportos já concedidos anteriormente (São Gonçalo do Amarante,
Guarulhos, Viracopos e Brasília), que consistia na vedação a que acionistas dos concessionários
detivessem mais do que 15% do consórcio que viesse a participar do leilão.
A unidade técnica encarregada da análise, na época a Sefid Transportes, vislumbrando
prejuízo à competitividade do certame e entendendo ser deficiente a motivação apresentada
para a estipulação das regras referidas, sugeriu que fosse recomendado à ANAC e aos demais
órgãos envolvidos que, em processos de desestatização futuros, apresentasse as justificativas
técnicas que embasem restrições dessa natureza.
O Plenário, contudo, no primeiro acórdão, entendeu que o TCU deveria ser mais
rigoroso e determinar, com fundamento nos princípios da motivação, da isonomia e da seleção
da proposta mais vantajosa, em vez de apenas recomendar, que fossem juntadas àquele
processo de concessão justificativas técnicas suficientes para embasar as restrições propostas,
ou então que fossem ajustadas as exigências.
134 Essa regra constou da Resolução do Conselho Nacional de Desestatização que determinou a realização da
concessão à iniciativa privada.
137
O TCU, mesmo reconhecendo que “não se pode deixar de ponderar as dificuldades em
mensurar objetivamente o valor ideal para a exigência, tendo em vista a natureza do setor, a
existência de poucas concessões semelhantes já licitadas e os riscos de prejuízos para a
qualidade dos serviços”, considerou haver “significativa discrepância entre a exigência atual e
aquela verificada em concessões anteriores, nas quais foi requerida experiência prévia na
operação de aeroporto com apenas cinco milhões de passageiros anuais”.
O órgão de controle vislumbrou, assim, risco à competitividade do certame e
argumentou que a restrição contrariaria a jurisprudência do Tribunal - referente a licitações para
contratação direta (Lei nº 8.666/93)135136 -, quanto à estipulação de requisitos para comprovação
de qualificação técnica137.
Em relação à exigência de experiência em processamento de pelo menos 35 milhões de
passageiros/ano, o poder concedente argumentou, em resumo, que “a seleção de um operador
mais experiente parece benéfica, ante os desafios que as gestões dos aeroportos enfrentarão em
um futuro a médio e longo prazo”. Informou, ainda, que ao menos 33 operadores aeroportuários
no mundo cumpririam o requisito estabelecido, o que asseguraria a competitividade do certame.
Também se reportou à experiência internacional em desestatização de aeroportos,
afirmando que, em média, as concessões avaliadas exigiram comprovação da operação de
aeroportos que processaram 2,2 vezes a quantidade de passageiros do aeroporto concedido, de
forma que, se aplicado esse fator aos casos em tela, seria possível exigir experiência na operação
de aeroportos com 38,5 milhões de passageiros/ano para o Galeão e com 22,9 milhões de
passageiros/ano para Confins.
As justificativas ainda mencionaram que as projeções de crescimento da demanda
nesses aeroportos indicam que, após os dez primeiros anos da concessão (2023) e no final dela,
o aeroporto do Galeão deve estar processando em torno de 35 e 60 milhões de passageiros e o
de Confins, 20 e 43 milhões, respectivamente.
135 Súmula TCU 263/2011: Para a comprovação da capacidade técnico-operacional das licitantes, e desde que
limitada, simultaneamente, às parcelas de maior relevância e valor significativo do objeto a ser contratado, é legal
a exigência de comprovação da execução de quantitativos mínimos em obras ou serviços com características
semelhantes, devendo essa exigência guardar proporção com a dimensão e a complexidade do objeto a ser
executado. 136 Acórdão 2.099/2009. 137 Segue trecho do acórdão: “Ainda que, no caso, não seja exigível aplicar a jurisprudência que fixa o patamar de
50% do quantitativo de itens relevantes da obra/serviço para a exigência de prévia experiência, em razão das
especificidades e da complexidade do objeto da concessão, a legislação é clara ao determinar que a documentação
relativa à qualificação técnica deve se limitar à comprovação de aptidão para o desempenho de atividade pertinente
e compatível em características, quantidade e prazos com o objeto da licitação (art. 30, inciso II, da Lei
8.666/1993). “
138
Diante disso, o poder concedente defendeu perante o TCU que deveria manter a
exigência de 35 milhões de passageiros para o Galeão e diminuí-la para 20 milhões no caso de
Confins, observando-se que, nessas condições, haveria, no mundo, 37 e 74, respectivamente,
operadores de aeroportos com capacidade para participar do leilão.
Ao analisar as justificativas apresentadas, o TCU, no Acórdão 2.666/2013, revisou a
metodologia adotada pelo poder concedente138, e, mesmo deixando registrado que não se tinha
notícia de outros estudos que embasassem a adoção de outro númeri, entendeu que “os estudos
técnicos apresentados são inconsistentes, não embasam e não justificam, de nenhum modo, o
uso do fator 2.2 para o cálculo do requisito em tela.”
Com base nisso, reafirmou o Tribunal que a legislação e a jurisprudência (referentes a
licitações para compras diretas, e não a concessões) “apresentam diretrizes para a questão ao
estabelecerem que as exigências de qualificação técnica e econômica devem ser apenas aquelas
indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”, donde extraiu a conclusão de que
“o nível de exigência de comprovação de qualificação técnica não deve ser superior ao
quantitativo do objeto licitado.” E aí arrematou o TCU:
Portanto, essa exigência não deve ser superior à capacidade de
processamento de passageiros de cada aeroporto à época do início da
concessão, prevista para 2014 (de acordo com dados informados pela
unidade técnica ao meu gabinete, a projeção é de cerca de 22,5 milhões de
passageiros no caso do Galeão e de 12 milhões no caso de Confins). Somente
estudos técnicos específicos e consistentes, e no caso concreto não os há,
poderiam ampliar o nível de exigência que decorre da interpretação razoável
do ordenamento jurídico.
Em conclusão, o Plenário estipulou, a título de recomendação, dois caminhos
alternativos passíveis de adoção pelo poder concedente: a) desenvolver novos estudos
necessários e suficientes para determinar os valores necessários para a comprovação da
qualificação técnica e restringir a exigência editalícia aos valores devidamente fundamentado
por esses estudos, submetendo-os à apreciação do TCU; ou b) fixar no edital, desde logo,
138 Segundo o TCU: “Primeiramente, anoto que não há “informação sobre os critérios adotados para a seleção da
amostra avaliada (projetos de concessões de aeroportos localizados no leste europeu, Rússia, Índia e Peru, no total
de oito), nem sobre a representatividade desses dados, de forma a justificar a utilização do valor médio calculado
nessa amostra como parâmetro internacionalmente aceito. Não constam informações, por exemplo, a respeito da
não inclusão na amostra dos dados relativos aos processos de desestatização da Europa Ocidental, da América do
Norte e da Oceania e, em específico, do Reino Unido, do México e da Austrália, que foram estudados pelo poder
concedente com o objetivo de avaliar a questão da vedação à propriedade cruzada, objeto do tópico seguinte deste
voto. Não houve, também e principalmente, esclarecimentos sobre a não inclusão de dados de outras concessões
(além de Mumbai e Delhi) referentes a aeroportos com movimento de passageiros similar ao dos aeroportos do
Galeão e de Confins.”
139
exigência que tenha como limite máximo os valores projetados para o fluxo de passageiros, no
exercício de 2014 (data de início prevista para a concessão).
Embora tenha expedido recomendação, o Tribunal argumentou de maneira bastante
contundente contra a exigência de experiência prévia no patamar proposto pelo poder
concedente, e incluiu na alternativa “a” a necessidade de submissão prévia ao TCU de eventuais
novos estudos. Com isso, no dia seguinte à publicação do acórdão, o Conselho Nacional de
Desestatização acabou assimilando a recomendação como se determinação fosse e expediu
nova resolução, adotando a alternativa “b”, ao estipular a experiência prévia conforme as
previsões de movimentação para o ano de 2014 (22 milhões para o Galeão e 12 milhões para
Confins).
Como se vê, o Tribunal alegou deficiência na fundamentação, instando o poder
concedente a apresentar justificativas técnicas para a exigência de experiência prévia, mas não
se contentou com a fundamentação apresentada, e acabou por impor, com base em princípios e
na interpretação de legislação e jurisprudência referentes a licitações comuns (compras diretas),
solução diversa daquela aventada pela Administração Pública.
Em relação à questão da restrição à participação de acionistas de concessionários de
outros aeroportos, o poder concedente defendeu que a regra ajudaria a garantir ambiente
competitivo entre os aeroportos concedidos, evitando que se formem oligopólios no setor.
Diferentemente do que aconteceu em relação à questão da experiência prévia, o Plenário
do TCU, por maioria (vencido o min. Raimundo Carreiro), em linha com a proposta da unidade
técnica do Tribunal, acolheu as justificativas do poder concedente:
A partir desse cenário, percebo que, de fato, há diversos fundamentos que
legitimam a decisão do poder concedente de vedar a participação de
acionistas das atuais concessionárias de serviço público de infraestrutura
aeroportuária no certame em tela, com o objetivo de estimular a concorrência
no mercado e de colocar à disposição da sociedade todos os benefícios a ela
inerentes, como melhores resultados em termos de preços e qualidade dos
serviços.
No Acórdão nº 3.026/2013, em que analisou a representação oriunda do Congresso
Nacional, mesmo reconhecendo a existência de metodologias, estudos empíricos e posições de
especialistas diversos daqueles apresentados pelo poder concedente, o TCU manifestou
deferência à opção regulatória:
Similarmente, especialistas na matéria podem divergir sobre a existência e a
relevância das possibilidades de competição entre os aeroportos (parecer
econômico da representação versus notas técnicas da SAC/Anac), pois nem
sempre se baseiam nos mesmos dados empíricos e nos mesmos estudos
técnico-científicos, assim como não se valem das mesmas hipóteses de
evolução do setor. Nessa seara, considerando a autoridade técnico-
140
regulatória de que está investida o poder concedente e as limitações
intrínsecas ao alcance do controle externo, não há como este Tribunal
arbitrar essa disputa desfavoravelmente à agência reguladora quando as
conclusões de suas análises se revelem consistentes com o conjunto de dados,
estudos e hipóteses plausíveis de que se valeu e não exista referencial definido
que possa ser utilizado para avaliar a qualidade desses estudos sobre
competição setorial.
Interessante notar que o Tribunal realça que:
Ainda que se possa ter entendimento diverso daquele concretizado pela
agência reguladora quanto á proibição em exame, não se está diante de um
caso em que a opção técnico-regulatória da agência tenha sido feita
desarrazoadamente, sem os necessários e suficientes estudos técnicos e
jurídicos, hipótese em que se imporiam e se justificariam juridicamente, com
amparo nas leis e na Constituição, determinações corretivas e até cautelares.
Ou seja, o TCU reconhece que não tem competência para fazer prevalecer as suas
preferências em detrimento das escolhas regulatórias (refere-se explicitamente à “autoridade
técnico-regulatória” do poder concedente), em linha com a retórica consolidada no Tribunal de
que o controle é de segunda ordem e não pode substituir o regulador.
Outro ponto relevante no caso dos aeroportos foi que o TCU voltou a recomendar, como
já havia feito em rodadas anteriores139, que a ANAC “reexamine a necessidade de participação
da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (INFRAERO) nas futuras Sociedades de
Propósito Específico e fundamente sua decisão ou estabeleça, na minuta do contrato relativa ao
certame em tela, mecanismo que contribua para diminuição gradativa dessa participação.”
Nos Acórdãos 3.232/2011 e 157/2012, referentes a rodadas anteriores de concessão
aeroportuária, o TCU argumentou que
A permanência da entidade pública no arranjo societário poderia trazer risco à
concessão, por se entender que as atividades da concessionária resultariam mais
bem alinhadas aos interesses públicos em decorrência da atuação diligente da
agência reguladora do que em razão da pretendida participação direta da
Infraero na Sociedade de Propósito Específico – SPE.
O TCU, embora reconheça que “a decisão sobre a participação da Infraero pertença à
seara discricionária do poder concedente”, entendeu haver deficiência na motivação, ao
argumentar que “não há no processo justificativas diferentes daquelas anteriormente
apresentadas para fundamentar essa participação”.
Conforme sintetizado pelo ministro relator, o poder concedente vinha justificando a
participação da Infraero com base no (i) recebimento de dividendos e (ii) possibilidade de
assimilação de boas práticas de gestão com o parceiro privado.
139 Nas 3 primeiras rodadas de concessão aeroportuária, a INFRAERO participou com 49% das ações da SPE.
141
A ausência de “novas razões” fez com que o TCU reiterasse a recomendação feita nos
processos anteriores, no sentido de que fosse reexaminada a conveniência da participação da
INFRAERO.
Chama atenção, ainda, a análise criteriosa realizada pelo TCU no Acórdão 2.905/2014,
de relatoria do min. Marcos Bemquerer Costa, referente ao acompanhamento dos 2º, 3º e 4º
estágios da concessão, em relação ao cumprimento de determinações e recomendações
expedidas pelo Tribunal por ocasião das rodadas anteriores de concessão aeroportuária.
Além de registrar que a recomendação referente à INFRAERO não fora implementada,
o Tribunal enfatizou a inobservância de recomendação expedida no acompanhamento da
concessão dos aeroportos de Guarulhos, Viracopos e Brasília, referente à reversão de receitas
alternativas em prol da modicidade tarifária.
Eis o teor da recomendação contida no Acórdão nº 3.232/2011:
Tendo em vista que o modelo adotado para o contrato de concessão não dá
eficácia ao art. 11 da Lei 8.987/1995 durante a execução contratual, e tão
somente garante seu cumprimento em relação aos valores estimados de
receitas não tarifárias considerados no fluxo de caixa para fins de cálculo do
valor de outorga, propugna-se recomendar à Anac que inclua, na minuta de
contrato de concessão do Aeroporto Internacional de Guarulhos, mecanismo
destinado a garantir, durante a execução contratual, a reversão de receitas
não tarifárias em prol da modicidade das tarifas e/ou dos preços específicos
praticados no próprio aeroporto.
Antecipando-se à possível alegação de que a medida não seria exigível no processo de
concessão em análise, por se tratar de recomendação, o Tribunal invocou a deliberação contida
no Acórdão nº 73/2014, em que o Plenário entendeu não ser facultativo o cumprimento de uma
recomendação:
A recomendação emanada do Tribunal tem como objetivo buscar o
aprimoramento da gestão pública, sendo resultante de avaliação técnica
fundada na perspectiva da missão constitucional do controle externo
atribuída a esta Corte de Contas. A meu ver, trata-se de comando que vai ao
encontro do princípio da eficiência, insculpido no art. 37 da Constituição
Federal vigente. Não representa, por conseguinte, mera sugestão, cuja
implementação é deixada ao alvedrio do gestor destinatário da medida. Se
assim fosse, tornar-se-ia praticamente inócuo o monitoramento previsto no
regimento deste Tribunal.
Por certo, a recomendação não traz em si a natureza coercitiva da
determinação, a qual, via de regra, decorre da inobservância de normas ou
princípios aplicáveis à Administração Pública. Ao passo que do gestor não é
esperado outro proceder que não o cumprimento da determinação, em
relação à recomendação já se admite uma certa flexibilidade na sua
implementação. Assim, pode o administrador público atendê-la por meios
diferentes daqueles recomendados, desde que se demonstre o atingimento dos
mesmos objetivos, ou, até mesmo, deixar de cumpri-la em razão de
142
circunstâncias específicas devidamente motivadas. A regra, entretanto, é a
implementação da recomendação, razão por que deve ser monitorada.”
O ministro relator buscou justificar a coercitividade da recomendação com base no
argumento de que um princípio jurídico, o da modicidade tarifária, é que teria orientado a
adoção da medida pelo Tribunal:
No caso, repito que a recomendação visou a dar plena eficácia ao princípio
da modicidade das tarifas, e não é demais lembrar que um princípio tem
significativa relevância no ordenamento jurídico, pois constitui, segundo a
melhor doutrina, pressuposto lógico e necessário das diversas normas.
E chama atenção para os ônus que devem recair sobre o gestor diante das recomendações
do TCU:
O gestor não pode se negar, sem justificativas, a cumprir as recomendações
do Tribunal efetuadas com o intento de atender os mandamentos do Direito,
sob pena de responsabilidade. Além disso, ainda que não se trate de
recomendação específica para o caso em questão, é esperado que o gestor
eficiente esteja sempre atento às orientações do TCU em deliberações
anteriores e atue, com presteza, no sentido de atendê-las em procedimentos
da mesma natureza quando não houver razão legítima para não segui-las.
Contudo, pelo fato de os contratos já terem sido assinados, concluiu o Plenário ser
suficiente dar ciência à ANAC sobre o não atendimento da recomendação do Tribunal,
alertando para a possibilidade de que “eventuais consequências da ausência dos mecanismos
recomendados venham a ser objeto de análise e responsabilização em trabalhos futuros do TCU
pelo descumprimento do princípio indicado.”
1.5. Setor Elétrico: caso leilão de transmissão
No Acórdão nº 644/2016, de relatoria do ministro Walton Alencar, o TCU decidiu
pedido de reexame da ANEEL em relação à decisão proferida por meio do Acórdão nº
1.293/2015, no qual o Tribunal analisou o primeiro estágio de leilão para concessão de serviço
de transmissão de energia elétrica associado ao sistema da Usina de Belo Monte/PA, e expediu
determinações para que a agência alterasse a metodologia de cálculo da estimativa de valores
dos equipamentos a serem adquiridos pela concessionária.
O caso, além de ilustrar uma importante atuação do TCU no controle externo da
regulação do setor elétrico, envolveu discussão específica sobre os limites e possibilidades de
interferência do TCU em relação às atribuições das agências reguladoras140.
140 Por isso, inclusive, foi citado por representante do TCU em evento promovido pelo Tribunal como um dos
acórdãos relevantes da Corte sobre os limites dessa interação entre controlador e reguladores. O evento: “Diálogo
143
O TCU discordou da forma de cálculo, adotada pela ANEEL, para estimativa de
investimento nos módulos de equipamentos das estações conversoras. Segue descrição contida
no relatório do acórdão:
O TCU determinou à agência que utilizasse o menor valor de cotação, ou
seja, o da empresa Alstom, considerando tolerância de +20% no valor
orçado, conforme informado pela fabricante (item 9.2.1 do Acórdão
1293/2015 – TCU – Plenário).
Para essa estimativa, a ANEEL havia calculado a média dentre seis cotações,
das quais três eram derivadas das cotações feitas para o 1º Bipolo,
atualizadas com base no dólar, e três eram novas, obtidas com possíveis
fornecedores.
A opção da ANEEL consistiu na alteração da metodologia de cálculo da Receita Anual
Permitira (RAP), veiculada por meio de norma da agência, a Resolução nº 653/2015, justificada
pela ANEEL com base em dificuldades verificadas em leilões anteriores, que teriam resultado
em baixo interesse de possíveis concessionários.
Como a RAP é calculada a partir do fluxo de caixa construído com base na estimativa
de investimentos e na projeção de receitas futuras do empreendimento, e será repassada à tarifa,
há relação direta entre a tarifa do consumidor de energia elétrica e os custos de investimentos
previstos.
TCU e ANEEL divergiram, portanto, especificamente acerca da forma de cálculo da
estimativa do valor de determinado equipamento. O Tribunal determinou que a agência
utilizasse o valor mais baixo da cotação, que abrangeu 6 (seis) fornecedores, e não a média
entre os valores cotados, como pretendia a agência.
O Tribunal utilizou como fundamento para sua decisão o entendimento firmado no
Acórdão nº 7.290/2013, da 2ª Câmara, no qual considerou que “quando são cotados
equipamentos fornecidos exclusivamente por poucas empresas, de certo porte, deve-se sim
adotar o mínimo valor cotado”.
A ANEEL questionou a aplicação do precedente mencionado, por ter sido formado em
um processo de fiscalização de compra direta, com base na Lei de Licitações, de equipamentos
pela Administração, e argumentou que a opção da agência favoreceria a competitividade do
leilão, e, consequentemente, a modicidade tarifária. Além disso, defendeu que a escolha
Público: Atuação do TCU nas Desestatizações e Regulação dos Serviços Públicos”, para “esclarecimento sobre a
atuação do TCU nas desestatizações do governo federal e na regulação dos serviços públicos”, realizado em
Brasília, em 15/10/2018, integralmente gravado e disponível no canal do TCU no Youtube. O acórdão foi referido
na palestra do dirigente da Secretaria de Infraestrutura Hídrica, de Comunicações e de Mineração, intitulada
“Independência das agências reguladoras e a atuação do TCU”.
144
regulatória tinha embasamento técnico e que estaria no âmbito da discricionariedade técnica do
regulador.
O TCU, embora reconheça que a jurisprudência se refere a certames para compras
diretas, em que a Administração deve definir o preço máximo que está disposta a pagar por
determinado bem, e que a própria decisão referida admite que não há nenhum texto normativo
que imponha a adoção do menor valor cotado, concluiu que
Dada a quantidade cognoscível de possíveis fornecedores, faz pouco sentido
econômico imaginar que o equipamento viria (ou deveria vir) a ser
contratado por um valor médio, seja pela Administração Pública que
prestaria o serviço de forma direta, seja, no caso concreto, pelo
concessionário que iria prestá-lo de forma indireta.
Sobre o espaço de discricionariedade reservado ao regulador, o Plenário reiterou o que
costuma dizer sobre os limites do controle, ou seja, que o controle é de segunda ordem e que o
Tribunal só pode expedir ordens de comando diante de ilegalidades:
Ressalte-se assim que o controle do TCU sobre os atos de regulação é de
segunda ordem, na medida que o limite a ele imposto esbarra na esfera de
discricionariedade conferida ao ente regulador, sendo vocacionado para
exarar determinações apenas quando for constatada a prática de atos ilegais.
No caso de ato praticado de forma motivada e em prol do interesse público,
cabe ao TCU, apenas, recomendar a adoção das providências que reputar
adequadas. O TCU possui competência para determinar medidas corretivas
a ato praticado na esfera de discricionariedade das agências reguladoras,
desde que esse ato se apresente viciado em seus atributos, a exemplo da
competência, da forma, da finalidade ou, ainda, inexistente o motivo
determinante e declarado, hipóteses nas quais a Corte poderá determinar até
mesmo a anulação do ato (Acórdãos 1703/2004, 200/2007, 602/2008,
1402/2010 e 2241/2013, todos proferidos pelo Plenário).
No caso concreto, como o TCU reconheceu que seu entendimento não encontrava
fundamento em nenhuma regra normativa específica, justificou a determinação expedida com
base em princípios, notadamente da economicidade e da
O Tribunal pode sempre determinar medidas corretivas a ato praticado na
esfera de discricionariedade das agências reguladoras, desde que esse ato
viole o ordenamento jurídico, do qual fazem parte os princípios da
economicidade da administração pública e da modicidade tarifária na
prestação de serviços públicos.
A discricionariedade técnica conferida aos administradores das agências
reguladoras e de qualquer outro ente público não constitui fator impeditivo
para o exercício das competências do TCU. É sempre necessário, dessa
forma, analisar se o ato regulatório viola o que se pode compreender como
ordenamento jurídico, do qual fazem parte os princípios da economicidade
da administração pública e da modicidade tarifária na prestação de serviços
públicos.
145
Interessante perceber que, mais uma vez, a ideia que orientou a posição do Tribunal
foi a da economicidade, que é parâmetro de controle, mas, segundo a posição restritiva exposta
neste trabalho, não justificaria a adoção de atos de comando.
2. Mapeamento de estratégias
Sem a pretensão de identificar a métrica da intensidade do controle, ou mesmo de
descrever, de maneira conclusiva, um padrão de atuação do TCU em relação às agências,
conseguimos mapear, a partir da análise dos casos selecionados, algumas das estratégias
adotadas pela Corte de Contas no controle exercido sobre a regulação. Apontaremos como esses
métodos de controle desafiam os limites de competências estipulados pelo Direito.
Exploraremos, ainda, a comparação da técnica empregada pelo TCU com o discurso e os
parâmetros utilizados em outros julgamentos, apontados pelo próprio Tribunal como leading
cases sobre os limites e possibilidades da relação entre TCU e agências.
Dessa forma, foram mapeadas, como passarei a demonstrar, a partir da análise detalhada
dos casos, 8 (oito) estratégias - ou métodos - principais: (i) controle prévio dos editais e
modelagens das licitações e contratos de concessões; (ii) questionamento da motivação das
decisões e atos regulatórios; (iii) a instrumentalização de princípios e valores abstratos, como a
noção de interesse público, para afastar opções regulatórias; (iv) a supervisão de normas
editadas pelas agências; (v) equiparação de recomendações a determinações; (vi) aplicação de
sanções pessoais a reguladores; (vii) adoção de medidas cautelares; e (viii) utilização de
argumentos e jurisprudência baseados na Lei de Licitações para bloquear opções mais flexíveis
nas concessões.
2.1 Controle prévio dos editais das concessões
O TCU tem participado ativamente da concepção dos projetos de concessões e parcerias
público-privadas, normalmente conduzidos por agências reguladoras, emitindo opiniões que
impactam suas opções fundamentais e em grande medida definem a sua modelagem (Jordão,
2016, p. 62).
Pela relevância do tema, vale a pena tecer uma explicação mais detalhada sobre a
sistemática do controle prévio, a partir da descrição de elementos estruturais e procedimentais.
146
2.1.1 A sistemática do controle das concessões – estrutura e procedimento
O acompanhamento dos procedimentos relativos à concessão da Ponte Rio-Niterói,
aprovado em 1993 a partir de requerimento formulado pelo Ministro Luciano Brandão, é
considerado um marco inicial relevante na atuação do TCU em relação à fiscalização de
concessões de serviços públicos.
Conforme relato de Braga e Buchbinder (2015, p. 1), no requerimento do ministro
Brandão, uma das razões para justificar a necessidade de um monitoramento mais cuidadoso
do TCU foi a “originalidade” da concessão. De fato, tratava-se de medida inovadora, primeira
concessão de infraestrutura à iniciativa privada em décadas, num período em que ainda não
estavam em vigor nem a lei de licitações de 1993, nem a lei geral de concessões de 1995. Segue
trecho de Braga e Buchbinder (2015, p. 2):
À “originalidade” da concessão da Ponte Rio-Niterói, o TCU reagiu, como
visto, com a criação de um procedimento também original, que não estava
previsto na legislação brasileira. Esse procedimento, que perdura até hoje
com certas adaptações e está atualmente detalhado em normativos internos
do TCU, envolve uma análise prévia ou concomitante dos principais
documentos que compõem os processos de outorga de concessões de
empreendimentos de infraestrutura. Estudos de viabilidade do projeto, editais
de licitação e minutas do contrato de concessão devem passar pelo crivo do
TCU ainda nas etapas iniciais dos processos licitatórios de outorga, antes da
assinatura definitiva dos contratos. Em muitos desses processos, regras
editalícias e contratuais tornam-se objeto de negociações e controvérsias
entre o TCU e as agências reguladoras. Assumiu, o tribunal, um verdadeiro
papel de “instância revisora geral”3 dos atos do governo federal voltados
para a licitação de concessões. Quais as consequências?
Desde 1993, portanto, o TCU vem se estruturando para o acompanhamento dos
processos de desestatização, especialmente as concessões e outorgas de serviços públicos e de
monopólios estatais.
Com a finalidade de regulamentar a atuação do Tribunal no acompanhamento das
concessões públicas, foi editada, em 22 de novembro de 1995, a Instrução Normativa nº 10,
substituída três anos depois pela Instrução Normativa nº 27/98, que disciplinou, por muitos
anos, o controle de referidas outorgas de diversos setores de infraestrutura.
Em 1998, foi criada a Secretaria de Fiscalização de Desestatização (muito conhecida
como “Sefid”), que chegou a ser subdividida em “Sefid Energia” e “Sefid Transportes”, para
tratar especificamente de concessões de serviços públicos e de privatizações de ativos estatais.
Atualmente, como já visto, não há mais unidades organizacionais que cuidem
exclusivamente dos processos de desestatização. Houve uma reestruturação da Secretaria do
147
Tribunal, de maneira que a Secretaria-Geral de Controle Externo tem subdivisões temáticas,
como a SeinfraPetróleo, a SeinfraRodoviaAviação, e por aí vai. Assim, de acordo com a
estrutura atual, a mesma unidade técnica, a SeinfraRodoviaAviação, no caso, é encarregada de
analisar tanto os contratos de obras da INFRAERO como as concessões aeroportuárias da
ANAC, por exemplo. Da mesma forma, analisa as licitações realizadas pelo DNIT e as
delegações sob responsabilidade da ANTT.
Note-se que, em um primeiro momento, havia uma única unidade, que analisava as
concessões dos diversos setores, porém especializada em processos de desestatização. Isso, na
opinião de integrantes do próprio Tribunal (Bermeguy, 2008, p. 100), favorecia o
desenvolvimento de uma percepção sistêmica – multisetorial – que possibilitava a “realização
de diagnósticos de aspectos horizontais do sistema regulatório e a identificação de boas práticas
de uma agência que poderiam ser recomendadas a outras.”
Hoje, não é mais uma única unidade técnica, são órgãos especializados setorialmente,
mas não dedicados exclusivamente aos projetos de desestatização, e sim com competência que
abrange tanto os contratos de obras como as concessões. A inexistência de unidades distintas,
especializadas, parece ser circunstância relevante, tendo em vista as diferenças estruturais e
conceituais entre os contratos de obras e as parcerias, que pode impactar no padrão de controle
efetivado pelo Tribunal de Contas em relação aos processos de desestatização.
Voltemos ao procedimento. A partir de 2002, o controle dos processos de revisão
tarifária dos contratos de concessão de distribuição de energia elétrica passou a ser disciplinado
por ato específico, a Instrução Normativa nº 43/2002. Da mesma forma, dois anos depois, o
acompanhamento das concessões rodoviárias foi objeto de norma própria, a Instrução
Normativa nº 46/2004.
Recentemente, em 20 de junho de 2018, o TCU fez relevantes alterações referentes ao
acompanhamento de concessões e privatizações, ao editar a Instrução Normativa nº 81/2018,
que passará a disciplinar a fiscalização dos procedimentos de desestatização cujos editais sejam
publicados a partir de 01 de janeiro de 2019, revogando as normas anteriores.
Na sistemática das instruções normativas anteriores, o acompanhamento era estruturado
em estágios, correspondentes a momentos distintos do processo licitatório, nos quais o órgão
concedente deve encaminhar, nos prazos previstos nas instruções normativas, uma série de
documentos para serem analisados pelo TCU.
O primeiro estágio abrange, essencialmente, os documentos relacionados à análise de
viabilidade do projeto, compreendendo, no caso das concessões rodoviárias (Instrução
Normativa nº 46/2004): a) ato justificativo quanto à conveniência da outorga da concessão; b)
148
comprovante de que o objeto licitado foi incluído no plano de outorgas; c) estudos de
viabilidade técnica e econômica; d) relatoria de estudos, levantamentos, projetos, obras e
investimentos já efetuados, realizados ou autorizados pelo concedente, vinculados ao objeto da
outorga; e) programa de exploração da rodovia; f) relatório sintético sobre os estudos de
impacto ambiental; g) exigências contratuais e legais impostas por organismos internacionais,
quando participarem do financiamento do empreendimento.
Na prática, conforme apontam Braga e Buchbinder (2015), a Administração também
costuma encaminhar ao TCU, para antecipar e prevenir eventuais questionamentos, as minutas
de edital e contrato já no primeiro estágio de fiscalização, que deveriam ser submetidos, de
acordo com as instruções normativas nº 27 e 46 do TCU, apenas no segundo estágio, após a
publicação do edital. Com a edição da IN nº 81/2018, essa prática foi normatizada, passando a
ser obrigatório o encaminhamento prévio dos documentos jurídicos da concessão, o que antes
ocorreria apenas no segundo estágio, depois da publicação do edital.
Recebidos os documentos, a unidade técnica responsável no TCU tem de examinar a
viabilidade operacional, financeira e jurídica do empreendimento, levando em consideração as
informações prestadas pelo poder concedente.
Caso haja indícios de irregularidades, a unidade técnica deve submeter o processo, com
proposta de adoção das medidas cabíveis, à consideração do ministro do TCU relator do caso.
Após, o ministro relator leva o assunto ao plenário do TCU, que avalia os documentos e cálculos
feitos pela agência reguladora e tomará uma decisão sobre o primeiro estágio, aprovando-o ou
não. Se não forem constatadas irregularidades, a unidade técnica deve prosseguir com a
fiscalização e encaminhar o processo ao ministro relator somente após o fim do terceiro estágio.
O segundo estágio abrange, basicamente, os documentos jurídicos da licitação – edital
e minuta contratual – o terceiro estágio a fase de habilitação dos licitantes; o quarto estágio a
de julgamento das propostas; e o quinto estágio141 o ato de outorga, o contrato de concessão
assinado, o programa de exploração rodoviária e a proposta econômico-financeira do licitante
vencedor.
Além disso, o TCU acompanha e fiscaliza toda a execução contratual, verificando a
adequação de reequilíbrios econômico-financeiros, reajustes tarifários, inclusão e/ou exclusão
de investimentos, prorrogações contratuais, e todos os demais eventos que venham a acontecer
no curso da parceria.
141 Apenas no caso da IN 46/2004, que disciplina o controle das concessões rodoviárias, pois a IN 27/98 prevê
apenas 4 estágios.
149
A Instrução Normativa nº 81/2018, editada recentemente, para passar a disciplinar os
processos de desestatização a partir de 01/01/2019, alterou significativamente a sistemática. Ao
passo que não prevê mais a estruturação do acompanhamento em estágios, normatizou a
obrigatoriedade de encaminhamento prévio, com antecedência mínima de 90 dias em relação à
publicação, das minutas de edital e contrato, já com os resultados decorrentes das consultas e
audiências públicas, além dos estudos de viabilidade (art. 3º, caput).
A nova sistemática incluirá o envio ao Tribunal, pelo órgão concedente, com
antecedência mínima de 150 dias, de um extrato do planejamento da desestatização, em que
conste a descrição do objeto, previsão do valor dos investimentos, sua relevância, localização
e cronograma licitatório (art. 2º).
A unidade técnica terá 75 dias para apresentar proposta de mérito142 ao ministro relator
do caso, a fim de que o Tribunal emita pronunciamento quanto à legalidade, legitimidade e
economicidade dos atos fiscalizados (art. 9º, § 1º).
Inovação relevante diz respeito à obrigatoriedade de encaminhamento prévio, com
antecedência mínima de 150 dias, das minutas de termos aditivos de prorrogação ou renovação
de concessões (art. 10). Na sistemática da IN 27/98, o órgão ou entidade concedente tem a
obrigação de informar ao TCU a prorrogação em até 5 dias após a sua formalização (art. 12).
A partir dos casos analisados, que foram regidos pelas instruções normativas revogadas
pela IN 81/2018, pode-se constatar a relevância da participação do TCU na estruturação dos
projetos, desde a sua concepção. O TCU tem analisado, sistematicamente, toda a modelagem
das concessões públicas, abrangendo os estudos de viabilidade, os editais (antes mesmo de sua
publicação) e as minutas contratuais.
2.1.2 Os casos
No “Caso Galeão”, o TCU condicionou a publicação do edital - ou seja, proibiu - até
que fossem atendidas certas condições, ao cumprimento de exigências estipuladas pelo
Tribunal. Além disso, como visto, o TCU revisou toda a modelagem da concessão, incluindo
detalhes de todos os aspectos dos estudos de viabilidade e toda a estrutura da licitação e do
contrato.
142 A própria terminologia utilizada na norma evidencia o caráter judicialiforme e, em certa medida, adversarial,
do controle exercido pelo TCU.
150
No “Caso RIS”, o TCU também fez uma revisão microscópica de todos os detalhes da
modelagem, inclusive de sua estrutura contratual, antes da publicação do edital, e suas opiniões
impactaram de maneira substancial as características finais da concessão143.
No “Caso Saturno”, o leilão foi suspenso na véspera de sua realização, após a publicação
do edital, portanto, mas a ANP foi duramente repreendida por não ter observado uma norma
interna do TCU (a IN nº 27/98) que determinava o encaminhamento prévio dos documentos da
licitação para validação pelo Tribunal.
A atuação do TCU em relação a projetos cujos editais não foram sequer publicados tem
despertado a atenção da doutrina, que tem colocado em debate a seguinte questão (Jordão, 2016,
p. 62): quais poderes detém o TCU na análise prévia de minutas ainda não publicadas de editais
de licitações referentes a projetos de infraestrutura?
Realizar controle prévio ou posterior é um dos elementos essenciais do desenho
institucional de um órgão de controle, sendo bem marcante, como visto, a oscilação entre os
dois modelos na história constitucional brasileira.
Conforme observação de Willeman (2017, p. 251), a atuação prévia do TCU coloca em
evidência o papel de veto player assumido pela Corte de Contas, mitigando a concepção
constituinte que inegavelmente prestigiou, quanto ao timing, o controle concomitante e a
posteriori. Na CF/88, a atuação prévia é excepcional, dizendo respeito apenas à concessão de
aposentadorias e à admissão de pessoal no serviço público.
Da mesma forma que a Constituição, a legislação infraconstitucional não concedeu
poderes ao TCU para fiscalizar previamente editais e contratos. Pelo menos não explicitamente.
O TCU parece considerar que a competência para a análise prévia encontraria abrigo no
art. 18, VIII, da Lei nº 9.491/97, mencionado nos “considerandos” de todas as instruções
normativas do Tribunal que acabaram viabilizando o controle prévio. O dispositivo atribui ao
gestor do Fundo Nacional de Desestatização, no caso o BNDES, o dever de “preparar a
documentação dos processos de desestatização, para apreciação do Tribunal de Contas da
União.” Porém, o texto legal não diz quais seriam os documentos a serem submetidos, muito
menos diz que devam ser analisados pelo TCU antes da publicação do edital.
143 O poder de influência do TCU na modelagem dos projetos de infraestrutura fica bastante em evidência pela
simples constatação de que, no “Caso RIS” a ANTT, diante do relatório da SeinfraRodoviaAviação, antes mesmo
de qualquer deliberação do Plenário, acolheu 7 das 32 determinações propostas pela unidade técnica e sinalizou
que outras 12 poderiam ser atendidas. Apesar da oposição apresentada pela agência e por integrantes do governo,
como visto, os órgãos responsáveis pelo projeto acabaram buscando convergir com o TCU em relação a várias
questões, para viabilizar e acelerar a realização da concessão.
151
A IN nº 81/2018 aponta, ainda, como fundamento para a competência do TCU, os
artigos 5º e 6º, IV, da Lei nº 13.334/2016 (Programa de Parcerias e Investimentos), e o art. 11
da Lei nº 13.448/2017 (relicitação e prorrogação dos contratos de parceria dos setores
rodoviário, ferroviário e aeroportuário). O art. 5º da Lei do PPI impôs a todos os agentes
públicos, da administração pública e dos órgãos de controle, o dever de tratar os
empreendimentos do PPI como prioridade nacional, enquanto o art. 6º, IV determinou que os
órgãos e entidades da administração pública se articulem com os órgãos e autoridades de
controle, para aumento da transparência das ações administrativas e para a eficiência no
recebimento e consideração das contribuições e recomendações. O art. 11 da Lei nº
13.448/2017, por sua vez, impõe, de forma inédita, o encaminhamento prévio de termos aditivos
de prorrogação e dos estudos técnicos que os fundamentem ao TCU.
Interessante notar, contudo, que, se, de um lado, a Lei nº 13.334/2016 de fato veicula
um dever de articulação visando à celeridade e eficiência dos procedimentos, de outro, reforça
o caráter não impositivo (recomendação) das contribuições dos órgãos de controle (art. 6º, IV).
A Lei nº 13.448/2017, a seu turno, embora inove ao prever o encaminhamento das minutas de
termos aditivos e dos respectivos estudos técnicos ao TCU, não diz que a aprovação pelo
Tribunal constitua um requisito necessário para a sua formalização.
No julgamento do Recurso Extraordinário nº 547.063 (rel. Min. Menezes Direito, j.
07/10/2008), o STF entendeu não existir na legislação brasileira norma que autorize o controle
prévio de editais de licitações pelos Tribunais de Contas. No caso, agente público do Estado do
Rio de Janeiro havia sido multado pelo Tribunal de Contas estadual por não ter remetido à
Corte, antes de sua publicação, edital de licitação na modalidade concorrência, descumprindo,
assim, norma editada pelo TCE que impunha a prévia aprovação dos editais pelo Plenário do
Tribunal. Nos debates, o Ministro Marco Aurélio enfatizou que “a submissão prévia de editais
ao Tribunal de Contas significaria a substituição do administrador pelo controlador.”
Nem mesmo as Instruções Normativas nº 27, 46, 52, que regulamentaram o
procedimento de acompanhamento das concessões no âmbito do TCU, conferiram ao Tribunal
o poder de analisar previamente os editais e contratos. O chamado primeiro estágio de
acompanhamento abrangia apenas os estudos de viabilidade, de maneira que, apenas no
segundo estágio, já depois da publicação do edital, seriam analisados pelo TCU os documentos
jurídicos da concessão. A recente IN 81/2008, contudo, normatizou o que já vinha ocorrendo
na prática: a submissão das minutas de edital e contrato ao crivo do TCU antes da abertura do
certame.
152
O TCU costuma invocar razões eminentemente práticas para justificar a sua atuação
prévia (Jordão, 2016, p.75). Na publicação do TCU sobre regulação de serviços públicos,
Gomes; Coutinho e Wanderley (2009, p. 16) argumentam em favor do controle prévio dos
editais de concessão:
Em razão de que os atos delegatórios da prestação de serviços públicos
implicam a celebração de contratos de longo prazo, de valor econômico
elevado e cujo objeto não pode ser descontinuado, é fundamental à eficácia
do controle que este seja concomitante aos procedimentos de outorga ou de
execução contratual, a fim de que qualquer irregularidade detectada possa
ser corrigida previamente à assinatura do contrato. Do contrário, as
determinações e recomendações do TCU com vistas à correção de falhas
poderão ser inócuas, inoportunas ou de alto custo para a sociedade.
No “Caso Galeão”, a Ministra Ana Arraes, relatora do acórdão, defendeu o controle
prévio:
Ante a urgência máxima que se atribui a processos da natureza do ora em
foco, postergar a análise das minutas de edital e de contrato juntadas aos
autos para a etapa de avaliação do 2º estágio [após a publicação do edital]
poderia trazer impactos negativos. Além de reduzir a possibilidade de
contribuição deste Tribunal para o aperfeiçoamento do processo,
aumentaria, nos casos de constatações mais relevantes, o risco de
interrupções indesejáveis no cronograma originalmente previsto.
Jordão (2016, p. 75) considera que esse tipo de argumento é construído com base em
uma concepção idealizada do órgão controlador, pois considera apenas a possibilidade de o
TCU contribuir para o aperfeiçoamento do projeto, deixando, assim, de levar em conta o risco
de que sejam também ampliadas as chances de intervenções indevidas do órgão na esfera de
discricionariedade do gestor público.
Para o autor (2016, p. 65), “toda atuação do TCU sobre minutas de editais ainda não
publicados deverá decorrer de solicitação do próprio administrador público e ter natureza de
mera recomendação.”
Rosilho (2016, p. 230) faz a mesma leitura das normas, qual seja, a de que a legislação
não atribui ao TCU poderes para exercer controle prévio e enfatiza que o TCU adota um
discurso que deixa transparecer certa preferência da instituição pelo controle preventivo - que
supostamente seria mais eficiente e eficaz para combater malfeitos e para evitar ilicitudes ou
irregularidades em geral.
O autor (2016, p. 245) pondera, assim, que o controle prévio pode até ser mais eficiente,
mas entende que a opção do constituinte e do legislador foi claramente fazer do TCU um órgão
de controle posterior, evitando, dessa forma, confusão entre as funções de administrador e
controlador:
153
A técnica do controle preventivo eventualmente pode ser “melhor” do que a
técnica do controle a posteriori (pois visa evitar desvios ou irregularidades
antes que efetivamente ocorram). Ocorre, no entanto, que o Direito optou por
fazer do Tribunal um órgão de controle eminentemente posterior; sua
competência para agir preventivamente é, como visto, bastante delimitada.
Ao fazer essa escolha, o legislador conscientemente quis evitar que o TCU
tivesse funções de “quase administrador”, separando mais marcadamente as
funções de administrar e de controlar.
Ressalte-se que, conforme observa Jordão (2016, p. 77), não é indiferente que o controle
seja prévio ou posterior. O autor afirma ser “intuitivo que o controlador se sentirá mais à
vontade para ir fundo nas opções controladas nos casos em que elas ainda não tenham sido
postas em prática”. Assim, a atuação preventiva tem o efeito prático de aumentar o grau de
interferência do TCU e diminuir a margem de liberdade do regulador.
Rosilho (2016, p. 244) avalia como positiva a iniciativa do TCU de regulamentar as
fiscalizações de processos de desestatização, tendo o Tribunal “nitidamente buscado dar
segurança jurídica ao controle de privatizações e concessões de serviço público num momento
em que esse tipo de projeto estava imerso em grande insegurança jurídica.” Considera,
inclusive, que “o sistema de controle desenhado pelo Tribunal tem contribuído, e muito, para o
desenvolvimento e solidificação de melhores práticas em matéria de concessões.”
Na visão do autor, contudo, as normas editadas pelo próprio TCU, sem colher
fundamento de validade na Constituição ou em lei, alargaram o campo de controle preventivo
exercido pelo Tribunal, transformando-o em uma espécie de segunda instância do Executivo
federal em processos de desestatização (Rosilho, 2016, p. 245). Segue reflexão do autor:
Como sustenta boa parte do TCU, a técnica do controle preventivo
eventualmente pode ser “melhor” do que a técnica do controle a posteriori
(pois visa evitar desvios ou irregularidades antes que efetivamente ocorram).
Ocorre, no entanto, que o Direito optou por fazer do Tribunal um órgão de
controle eminentemente posterior; sua competência para agir
preventivamente é, como visto, bastante delimitada. Ao fazer essa escolha, o
legislador conscientemente quis evitar que o TCU tivesse funções de
“quaseadministrador”, separando mais marcadamente as funções de
administrar e de controlar.
Não é dado ao TCU, por conta disso, “reinterpretar” suas atribuições por
meio do seu poder normativo, ampliando-as em descompasso com o teor da
legislação.
O que se observa, portanto, é que a sistemática de acompanhamento dos processos de
desestatização pelo TCU reveste-se de aspectos bastante peculiares, especialmente porque
estruturada com base em normas editadas pelo próprio TCU, para impor obrigações à
Administração Pública e estipular fases e etapas não previstas em lei para a celebração de
parcerias.
154
2.2 Equiparação de recomendações a determinações
O TCU, além de julgar contas, efetuar o registro de atos de pessoal, aplicar sanções e
sustar atos ilegais, pode, nos termos do art. 250 de seu Regimento Interno, determinar a adoção
de providências corretivas de ilegalidades e recomendar a adoção de providências quando
verificadas oportunidades de melhoria de desempenho.
Determinações e recomendações são, portanto, ferramentas de controle centrais na
atuação do TCU, pois são os mecanismos por meio dos quais o Tribunal se dirige à
Administração Pública, veiculando seus posicionamentos, sejam eles mandatórios
(determinação) ou sugestivos (recomendação).
No Acórdão nº 1.703/2004, detalhadamente analisado anteriormente, e referido pelo
TCU e pela doutrina como um leading case no tema do controle da regulação, em que o
Tribunal fixou balizas para a sua atuação, houve também a preocupação em delimitar as
hipóteses de utilização de determinações e recomendações. Monteiro e Rosilho (2017, p. 40)
sintetizam a posição firmada pelo Tribunal naquela ocasião da seguinte forma:
O TCU, em síntese, criou um padrão, no qual se admitem as seguintes
possibilidades: (i) atos vinculados tidos por irregulares produzirão
‘determinações’; (ii) atos discricionários eivados de vício de legalidade
produzirão ‘determinações’; e (iii) atos discricionários não eivados de vício
de legalidade poderão, no máximo, gerar ‘recomendações’. Esse padrão está
ancorado em duas premissas. A primeira delas é a de que recomendar não
significaria o mesmo que determinar – em tese, recomendações seriam menos
interventivas (ou invasivas) do que determinações. A segunda premissa é a de
que ao TCU seria vedado impor às agências reguladoras medidas que
interferissem na discricionariedade técnica delimitada por suas leis de
criação.
Na mesma linha, o que restou decidido no Acórdão nº 402/2013 (rel. min. Benjamin
Zymler), referente às outorgas de terminais de uso privado (TUPs) pela ANTAQ:
(...) verificada qualquer violação de disposição legal expressa, em ato
vinculado, poderá o Tribunal determinar ao agente regulador que adote
medidas tendentes ao saneamento do ato tido por irregular. Já, no caso de
ato discricionário, praticado de forma motivada e em prol do interesse
público, cabe a esta Corte, tão-somente, recomendar a adoção das
providências que reputar adequadas.
(...)
Somente se forem verificados atos contrários ao Direito caberá a esta Corte
exigir a adoção das necessárias providências para o exato cumprimento do
ordenamento jurídico.
155
No Acórdão 715/2008144 (rel. min. Augusto Nardes), o TCU disse textualmente que
Sempre que a lei e o regulamento abrem campo para a deliberação autônoma
do ente regulador, e não se caracterizam ilegalidades nas decisões das
agências reguladoras, o Tribunal somente lhes endereça recomendações,
respeitando-lhes inclusive a faculdade de avaliar a oportunidade e
conveniência de adotar ou não – as sugestões assim formalizadas. Essas
recomendações, quando formuladas pelo TCU, o são em caráter de
colaboração, sem qualquer vezo coercitivo, de forma a respeitar os limites de
competência técnica e regulamentar que estão assegurados por lei ao ente
regulador.
Como se vê, ficou bem claro na ocasião que às agências seria facultado seguir ou não
as recomendações expedidas pela Corte, de maneira que não se poderia extrair nenhum efeito
jurídico do descumprimento das recomendações do Tribunal.
Da mesma forma, no Acórdão nº 1.313/2010, que tratou da fiscalização realizada pela
ANATEL em relação a grampos telefônicos clandestinos, restou enfatizado o caráter sugestivo
das recomendações do TCU, sob pena de completo esvaziamento das agências:
Portanto, apenas de forma a complementar o trabalho já realizado pela
agência reguladora, pode-se atender parcialmente a recorrente, expedindo-
se recomendações à Anatel. Não é demais dizer que a atuação do TCU neste
caso será meramente sugestiva e não substituirá o exercício das competências
que são próprias e diretamente relacionadas às atividades finalísticas
daquela Autarquia Especial, sob pena de torná-la entidade de mero adorno.
Sendo assim, de acordo com essas diretrizes, o Tribunal só poderia expedir
determinações em casos de ilegalidades; e as recomendações, por sua vez, deveriam ter caráter
sugestivo, sendo, portanto, facultado à Administração segui-las ou não.
Monteiro e Rosilho (2017, p. 47) alertam que “olhar cauteloso para a jurisprudência
revela que as categorias ‘determinações’ e ‘recomendações’, em si consideradas, não são tão
diferentes assim e potencialmente produzem efeitos muito similares (ou até mesmo idênticos)
no tal ‘jogo regulatório’.”
A análise dos casos realizada no presente trabalho parece corroborar a impressão de
Monteiro e Rosilho (2017), como se passa a demonstrar.
No “Caso Galeão”, o TCU vai na direção oposta daquela apontada no Acórdão nº
715/2008, referido acima, em que ficou decidido que “as recomendações são formuladas em
caráter de colaboração, sem qualquer vezo coercitivo.” Basta ver que o Plenário decidiu,
conforme já demonstrado, que “a recomendação não seria mera sugestão”, cuja implementação
144 Referido pelo membro do MP de Contas na deliberação que deu ensejo ao Acórdão nº 2.121/2017 como um
dos julgamentos paradigmáticos sobre os limites das competências do TCU em relação à atividade finalística das
agências reguladoras.
156
ficaria a critério do gestor destinatário da medida. Para diferenciar das determinações, o TCU
disse que uma recomendação admitiria certa flexibilidade, uma vez que o administrador público
poderia atendê-la por meios diferentes daqueles recomendados. De toda forma, deixou bem
claro que “a regra é a implementação da recomendação, razão por que deve ser monitorada.”
Também no “Caso Galeão”, verificou-se que o TCU reiterou recomendação, feita em
rodadas anteriores de concessão, quanto à participação da INFRAERO nas SPEs das
concessões, por entender que o poder concedente não apresentara novas razões que
justificassem a participação da estatal. O que parece, no caso, é que o TCU tinha uma posição
bem clara quanto ao tema, contrária à participação da INFRAERO, mas não encontrou
justificativa suficiente para determinar a exclusão da empresa e atuou por meio de insistentes
recomendações, o que acabou tendo o mesmo efeito prático de uma determinação, já que, na
rodada seguinte de concessões145a regra de participação da estatal foi suprimida.
No “Caso RIS”, como visto, a unidade técnica fez observações bastante contundentes
contra várias das opções do regulador, propondo que o TCU endereçasse uma série de
determinações. Mesmo depois de a agência acatar várias das posições da Seinfra, o Plenário
manteve algumas determinações propostas e converteu outras tantas em recomendação. Ao
fazer essa conversão, o Plenário disse que se tratavam de matérias inseridas na esfera de
discricionariedade do regulador e, por isso, não poderia determinar, mas apenas recomendar.
Mesmo assim, ficou registrada a visão contrária do TCU em relação às opções regulatórias.
Já foi destacada anteriormente a passagem em que o então Procurador-Geral do MP
de Contas, no processo que resultou no Acórdão nº 1.703/2004, ressaltou que, mesmo no uso
de recomendações, o TCU precisa ter cautela, para prevenir o risco de gerar incertezas no
ambiente regulatório. “Embora possam as agências reguladoras decidir discricionariamente
sobre a implementação do que é recomendado, as recomendações podem gerar sérios conflitos,
de difícil superação e de indesejáveis repercussões”, disse o procurador.
Na mesma linha, manifestação do representante do MP em processo que analisou
revisão tarifária do setor elétrico, que resultou no Acórdão 1.201/2009, ressaltou o impacto das
recomendações do TCU:
Ademais, deve-se ter em conta que as recomendações dirigidas pelo TCU a
uma agência reguladora, ainda que juridicamente desprovidas de força
impositiva, costumam ter grande repercussão no comportamento do mercado.
Além disso, as recomendações podem embaraçar a atuação da própria
agência. Afinal, quando esta não concorda com o teor das recomendações
que lhe chegam do Tribunal, vê-se inevitavelmente diante de um sério dilema:
145 Na rodada seguinte, foram concedidos os aeroportos de Fortaleza, Salvador, Florianópolis e Porto Alegre, sem
qualquer participação da INFRAERO nas SPEs.
157
ou decide implementar as recomendações, contrariando suas convicções
técnicas acerca do setor que regula, ou, de outro modo, as rejeita, arcando
com o peso e as conseqüências políticas de se desviar da proposição de uma
instituição que goza de altíssima credibilidade perante a sociedade em geral.
De fato, a conversão das propostas de determinação em recomendação, como fez o
Plenário no “Caso RIS”, pode acabar não alterando o poder de interferência do TCU, tendo em
vista que a simples formalização de visão contrária do Tribunal já tem relevante repercussão.
Interessante notar que o próprio Regimento Interno do TCU, em uma espécie de “ato
falho”, já dá pistas sobre uma certa “confusão” entre os instrumentos. Ao tratar da
recomendação, no inciso III do art. 250, o texto diz que o Tribunal recomendará a adoção de
providências e monitorará o cumprimento das determinações:
Art. 250. Ao apreciar processo relativo à fiscalização de atos e contratos, o
relator ou o Tribunal:
III – recomendará a adoção de providências quando verificadas
oportunidades de melhoria de desempenho, encaminhando os autos à unidade
técnica competente, para fins de monitoramento do cumprimento das
determinações;
Chama atenção, ainda, na análise dos julgados do TCU, que o Tribunal é bastante
rigoroso quanto à necessidade de que o gestor observe determinações e recomendações
anteriores, mesmo que referentes a outros casos concretos. No “Caso Galeão”, além de ter
destacado que já havia recomendado que a Administração reexaminasse a conveniência da
participação da INFRAERO, a Corte repreendeu a ANAC por não cumprir recomendação
expedida na rodada anterior, quanto à reversão de receitas alternativas em prol da modicidade
tarifária, e enfatizou o dever de o gestor eficiente observar sempre as orientações anteriores,
inclusive recomendações:
Além disso, ainda que não se trate de recomendação específica para o caso
em questão, é esperado que o gestor eficiente esteja sempre atento às
orientações do TCU em deliberações anteriores e atue, com presteza, no
sentido de atendê-las em procedimentos da mesma natureza quando não
houver razão legítima para não segui-las.
Como se vê, a observação da prática do TCU revela que o Tribunal parece não seguir
os parâmetros por ele mesmo estipulados no Acórdão 1.703/2004, e não faz uma diferenciação
muito rigorosa entre determinações e recomendações.
Por meio de recomendações, que teoricamente não teriam caráter coercitivo, o TCU
acaba, ainda que em “dois tempos”, escolhendo (determinando) as opções regulatórias. Basta
ver os casos, conforme relatado, em que o TCU recomenda e depois fiscaliza se a recomendação
foi ou não cumprida, ou mesmo quando o TCU reitera recomendações anteriores.
158
A confusão ou equiparação dos efeitos das recomendações aos efeitos de determinações
acaba fazendo, como se vê, com que a visão do TCU tenha especial relevância na definição de
aspectos centrais da regulação. Mesmo quando as opiniões/preferências do Tribunal são
orientadas por critérios de eficiência e economicidade, acabam tendo grande impacto sobre o
setor regulado. Em várias situações, a Administração vê-se obrigada a colocar em prática a
posição do TCU, mesmo quando esta não veicule uma medida saneadora de eventual
ilegalidade.
2.3. Questionamentos sobre a motivação
O dever imposto ao administrador público de motivar os atos e decisões constitui um
dos marcos mais significativos do processo de desenvolvimento teórico e de evolução da prática
institucional, no que diz respeito à contenção do arbítrio e ao controle de ilegalidades e desvios
de poder no âmbito da Administração Pública.
Conforme Medauar (2016, p. 172), “no âmbito do direito administrativo, motivo
significa as circunstâncias de fato e os elementos de direito que provocam e precedem a edição
do ato administrativo.” A enunciação dos motivos, por sua vez, recebe o nome de motivação146.
A motivação das escolhas administrativas, ainda que discricionárias, consolidou-se,
assim, como uma condição elementar para o controle das ações da Administração Pública,
constituindo um dever básico de agentes públicos de todos os níveis e esferas do Estado, ainda
que no exercício de discricionariedade, sob pena, inclusive, de nulidade dos atos praticados.
No Estado Regulador, em que a discricionariedade é constrangida por rigorosos
requisitos procedimentais, que impõem a participação pública no processo decisório, análises
de custo-benefício e transparência, a motivação possui importância capital. É por meio da
enunciação dos motivos que o regulador se desincumbe do ônus de avaliar e ponderar todos os
interesses em “conflito” na questão a ser regulada.
146 A autora conta que, durante muito tempo vigorou a regra da não obrigatoriedade de apresentação dos motivos
do ato administrativo, salvo imposição explícita da norma. A partir de meados da década de 70, essa tendência
vem se invertendo, tendo alguns ordenamentos, como o português, em 1982, constitucionalizado a exigência de
motivação. No Brasil, chegou-se a discutir na Assembleia Constituinte de 1988 a inclusão da motivação como um
dos princípios da Administração Pública, mas não permaneceu no texto definitivo. No entanto, como ensina
Medauar (2016), a ausência de previsão expressa na Constituição não afasta a exigência de motivar, seja em
decorrência do caráter democrático do Estado brasileiro (art. 1º da CF), ou do princípio da publicidade (art. 37,
caput), ou, em se tratando de atuações processualizadas, da garantia do contraditório (art. 5º, LV). Além disso, não
custa lembrar, a motivação consta da Lei nº 9.784/99 (Lei de Processo Administrativo), em seu artigo 2º, como
um dos princípios que devem ser seguidos pela Administração Pública.
159
É comum o TCU questionar os órgãos da Administração Pública, dentre eles as agências
reguladoras, acerca da motivação desta ou daquela escolha administrativa. Nessa perspectiva,
o Tribunal verifica se o gestor público atendeu ao indesviável dever de motivar suas decisões.
Em alguns dos casos analisados, como “Saturno” e “Galeão”, a interação entre o TCU
e os órgãos reguladores deu-se justamente com base na exigência de motivação das escolhas
regulatórias.
A análise do “Caso Saturno”, contudo, parece evidenciar que o Tribunal, na verdade,
decidiu sustar a licitação não por considerar que as escolhas regulatórias não tinham motivação,
mas por não concordar com a opção da administração, por considerá-la antieconômica. Basta
ver que a decisão foi dedicada a explicar a razão pela qual a opção da administração por licitar
os blocos em separado seria menos vantajosa para a União, em termos econômicos, do que a
opção vislumbrada pela unidade técnica de licitar os blocos em conjunto. O Tribunal estimou
uma desvantagem da ordem de 2 bilhões de reais.
Como visto, a ANP e o CNPE fundamentaram sua escolha na incerteza da unitização
dos blocos de exploração e na ampliação da competitividade que a licitação naqueles moldes
propiciaria, não parecendo ser um caso típico de falta de motivação, capaz de tornar ilegal o
certame. A intervenção do TCU, com a suspensão do leilão na véspera de sua realização, com
inegáveis impactos sobre as expectativas do mercado, foi orientada, em grande medida, pela
ideia de que a opção do administrador não era a melhor, segundo a ótica do Tribunal, ainda que
não fosse rigorosamente ilegal.
No “Caso Galeão”, por sua vez, o TCU, antes de determinar a suspensão do
procedimento ou qualquer outra medida mais drástica, instou a Administração a apresentar os
motivos e justificativas técnicas para algumas das regras centrais da licitação, especificamente
a exigência de experiência prévia e a restrição à participação de acionistas de concessionários,
como visto.
Depois que o poder concedente apresentou suas razões, o TCU validou a restrição à
participação de acionistas de concessionários, parecendo concordar com a própria regra
restritiva, mas não aceitou as justificativas relacionadas à exigência de experiência prévia,
chegando, inclusive, a desqualificar toda a metodologia utilizada pela Administração.
Quanto à exigência de experiência prévia como requisito de habilitação técnica, mesmo
depois da apresentação do detalhamento das razões pelo poder concedente, o TCU entendeu
não haver motivação adequada e suficiente. Mas a análise detalhada do acórdão parece revelar
é que o Tribunal na verdade não concordou com a exigência em si, argumentando, inclusive,
160
que ela contrariaria jurisprudência da Corte (referente a compras diretas, e não a concessões,
como visto).
Parece ter ocorrido o mesmo em relação à recomendação para que o poder concedente
reexaminasse a conveniência da participação da INFRAERO nas SPEs vencedoras dos leilões,
no “Caso Galeão”. Como visto, o TCU voltou a recomendar, como já havia feito em rodadas
anteriores, que
A ANAC reexamine a necessidade de participação da Empresa Brasileira de
Infraestrutura Aeroportuária (INFRAERO) nas futuras Sociedades de
Propósito Específico e fundamente sua decisão ou estabeleça, na minuta do
contrato relativa ao certame em tela, mecanismo que contribua para
diminuição gradativa dessa participação.
O Tribunal entendeu haver deficiência na motivação, ao argumentar que “não há no
processo justificativas diferentes daquelas anteriormente apresentadas para fundamentar essa
participação”.
A decisão do poder concedente era fundamentada, como já visto, no interesse em que
a estatal recebesse dividendos da exploração da concessão e na assimilação de expertise e
tecnologia. Não a falta de motivação, mas a ausência de “novas razões” fez com que o TCU
reiterasse a recomendação feita nos processos anteriores, no sentido de que fosse reexaminada
a conveniência da participação da INFRAERO.
Ressalte-se, em relação ao ponto, que o TCU nem disse que a decisão acerca da
participação da INFRAERO era desmotivada, a ponto de justificar a determinação de que fosse
refeito o ato, nem se contentou com as justificativas apresentadas e com a opção da
Administração em manter a estatal nas SPEs, reiterando, assim, a recomendação para
reexaminar a necessidade de participação da empresa.
O que parece acontecer, portanto, é que, não raras vezes, o TCU não concorda com a
motivação do gestor e, por consequência, com a própria decisão administrativa e, a pretexto de
exigir que os atos sejam devidamente motivados, bloqueia ações sob o argumento de que não
teria havido motivação adequada.
2.4. O poder de punir
A Constituição atribuiu ao TCU competência para realizar, além do controle objetivo –
sobre o conteúdo dos atos administrativos -, o controle subjetivo – sobre a conduta dos agentes
-, ou seja, apurar infrações e aplicar, ele próprio, sanção em face dos responsáveis. É diferente
do que ocorre em outras instituições superiores de controle, como o Bundesrechnungshof, da
Alemanha, e o General Accounting Office, dos EUA, que se limitam a detectar as falhas,
161
identificar os responsáveis e informar aos órgãos competentes para processar essas informações
e adotar as medidas cabíveis (Speck, 2000, p. 175).
A competência sancionatória do TCU é, assim, mais uma ferramenta destinada a coibir
e combater desvios e corrupção na Administração Pública, largamente disseminados em vários
níveis e esferas de poder no Brasil. A capacidade para aplicar penalidades assume, assim,
conforme Marianna Willeman (2017, p. 257), caráter estrutural no modelo de accountability
exercido pelo TCU.
O fato de o Tribunal de Contas da União deter competência para julgar contas (art. 71,
II, da CF) e processar autonomamente a responsabilização de agentes faz com que alguns
autores o equiparem a uma espécie de justiça administrativa (Speck, 2000, p. 176). Contudo,
majoritariamente a doutrina considera incompatível com o sistema de jurisdição una brasileiro
o caráter jurisdicional das decisões do Tribunal de Contas (Sundfeld; Câmara; Monteiro; e
Rosilho, 2018).
A competência para impor sanções, da mesma forma como para emitir comandos, é,
como não poderia deixar de ser, limitada pelas normas. É o que se extrai do inciso VIII do art.
71, da CF/88, norma habilitadora da competência sancionatória do TCU:
Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido
com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
VIII - aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou
irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre
outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;
A Constituição previu, assim, a possibilidade de o TCU aplicar sanções, a serem
disciplinadas pela lei, em caso de (i) irregularidade de contas; e (ii) ilegalidade de despesa. A
única sanção já prevista pelo constituinte foi a multa proporcional ao dano causado ao erário,
devendo o legislador estipular outras penalidades.
A irregularidade de contas deve ser apurada em sede de julgamento de contas,
competência prevista no inciso II do mesmo dispositivo constitucional:
II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros,
bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as
fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e
as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade
de que resulte prejuízo ao erário público;
A ilegalidade de despesa, por sua vez, pode ser apurada em qualquer das modalidades
de fiscalização do Tribunal, conforme competências descritas nos demais incisos do art. 71,
seja na apreciação de atos de pessoal (inciso III), na realização de inspeções e auditorias (inciso
162
IV), o que abrange a fiscalização de atos e contratos administrativos, ou na fiscalização de
repasses realizados mediante convênio (inciso V).
No entanto, de acordo com o texto constitucional, da mesma forma que ocorre em
relação aos atos de comando, o TCU só pode aplicar sanções caso verifique ilegalidade
praticada na atividade financeira do Estado (Rosilho, 2016, p. 158).
Para André Rosilho (2016, p. 177),
Ainda que o TCU, na instrução dos processos de julgamento de contas ou em
outros processos de fiscalização, tome contato com matérias variadas (de
cunho administrativo), ele só poderá declarar a ilegalidade de despesas ou a
irregularidade de contas (e, portanto, só poderá sancionar) se forem
constatadas ilegalidades em matéria financeira (em sentido amplo). Na
hipótese de o Tribunal identificar ilegalidades em matérias estranhas à sua
específica área de atuação, lhe caberia apenas representar a quem de direito,
emitir orientações ou levantar dados e produzir informações (a serem
divulgados no formato de relatórios), sem impor gravames a quem quer que
seja. Friso: o TCU não é órgão de revisão geral da atividade administrativa;
o ordenamento jurídico lhe conferiu a possibilidade de de agir
impositivamente em casos específicos, inseridos no seu campo de jurisdição
direta (financeiro).
A Lei Orgânica do TCU, porém, além de estipular as penalidades que podem ser
aplicadas pelo Tribunal (multa; inabilitação para ocupar cargo em comissão; e declaração de
inidoneidade para contratar com o Poder Público), ampliou, em desarmonia com a Constituição,
a meu ver, as possibilidades de aplicação de sanções pelo TCU.
Em seu artigo 16, alínea “b”, a LOTCU previu a possibilidade de as contas serem
julgadas irregulares em virtude da prática de ato de gestão ilegal, ilegítimo ou antieconômico,
bem como por infração a norma de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional
ou patrimonial. Tanto a possibilidade de reprovação das contas em virtude de o TCU considerar
o ato ilegítimo ou antieconômico, como por infração a norma de natureza operacional, parecem
transbordar da moldura constitucional.
Da mesma forma, o art. 58, ao prever a possibilidade de aplicação de multa quando o
TCU constatar a prática de ato que infrinja norma de natureza operacional (inciso II), ou de ato
de gestão ilegítimo ou antieconômico (inciso III).
Conforme Rosilho (2016, p. 168),
Ao editar normas com esse conteúdo, o legislador, mesmo sem apoio na
Constituição, acabou ampliando o espaço para intervenção do Tribunal nas
atividades administrativas; criou, na prática, mais mecanismos por meio dos
quais o TCU poderia pressionar poder público e gestores a incorporar seu
ponto de vista a práticas administrativas, pois caso viesse a discordar de
opções lícitas tomadas pelo administrador, o Tribunal, de acordo com a
LOTCU, poderia declarar suas contas irregulares e lhe aplicar sanções
(mesmo na ausência de dano ao erário).
163
Interessante perceber que a Constituição, ao prever que uma das sanções a serem
aplicadas pelo TCU seria a multa, disse expressamente que esta deveria ser proporcional ao
dano ao erário, reforçando, assim, a ideia de que a penalidade só seria cabível em relação a
atos de gestão financeira, capazes de gravar os cofres públicos, portanto. Essa lógica, contudo,
não foi levada em consideração pela LOTCU, que, além de tudo o que já foi dito, previu
expressamente a possibilidade de aplicação de multa mesmo em casos de contas julgadas
irregulares de que não resultem prejuízo (art. 58, I).
Por fim, deve ser ressaltado o disposto no art. 58, IV, que prevê, genericamente, a
possibilidade de aplicação de multa em caso de não atendimento de decisão do Tribunal, sem
especificar que tipo de decisão, se apenas determinação, ou se também as recomendações,
estariam abrangidas pela norma.
No controle exercido sobre a atividade-fim das agências reguladoras, comumente
fundamentado na competência do Tribunal para fiscalizar a dimensão operacional
(desempenho) da atuação das entidades, o TCU tem privilegiado o controle objetivo, ou seja,
debruça-se sobre os atos e procedimentos, sem, contudo, focar na conduta dos agentes e,
consequentemente, na aplicação de sanções. O controle subjetivo é, segundo o TCU,
excepcional. De fato, faz sentido ser exceção, já que, em regra, o objeto da fiscalização não se
insere no âmbito da atividade financeira do Estado, o que afastaria, segundo uma interpretação
estrita da Constituição, a competência sancionatória do TCU.
Contudo, pode-se observar, a partir da análise dos casos pesquisados, que o TCU,
embora não privilegie o controle subjetivo dos reguladores, eventualmente aplica sanções
mesmo quando não está diante de ilegalidades.
É o que aconteceu no “Caso THC 2”, em que o TCU, em sede auditoria operacional,
disse expressamente não vislumbrar nenhuma ilegalidade na norma da ANTAQ, mas
sancionou, mediante a aplicação de multa, os dirigentes da agência responsáveis pela edição da
resolução e ainda mandou apurar a responsabilidade de todos os dirigentes que, segundo o
Tribunal, permaneceram omissos de 2000 a 2012.
No caso, o TCU invocou como fundamento para a aplicação da multa o art. 58, II, da
LOTCU, que prevê a possibilidade de aplicação de multa quando constatado ato praticado com
infração a norma de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial.
Embora o acórdão não indique expressamente, imagina-se que o TCU tenha considerado haver
alguma desconformidade operacional no caso, sendo certo, de toda forma, que o Tribunal não
164
cogitou de ocorrência de dano ao erário, pois do contrário teria invocado o art. 57 ou mesmo o
art. 58, III, ambos da LOTCU.
Veja-se que, além de não ter apontado nenhuma ilegalidade, a penalidade no caso foi
aplicada sem levar em consideração a ideia, veiculada pelo inciso VIII, do art. 71, da CF, de
que a multa deve ser proporcional ao dano causado ao erário. Sem dano ao erário, parece-me
que não haveria que se falar em multa.
Em outros casos, como o “Caso Galeão”, o TCU chamou atenção para a necessidade de
que fossem observadas orientações anteriores do Tribunal, sob pena de aplicação de sanções,
dando a entender, inclusive, que até mesmo o descumprimento de recomendações poderia dar
ensejo a responsabilização:
O gestor não pode se negar, sem justificativas, a cumprir as recomendações
do Tribunal efetuadas com o intento de atender os mandamentos do Direito,
sob pena de responsabilidade. Além disso, ainda que não se trate de
recomendação específica para o caso em questão, é esperado que o gestor
eficiente esteja sempre atento às orientações do TCU em deliberações
anteriores e atue, com presteza, no sentido de atendê-las em procedimentos
da mesma natureza quando não houver razão legítima para não segui-las.
9.2.1. no caso de recomendações, a repetição da ocorrência nos próximos
certames com o mesmo objeto, sem motivação adequada ou sem adoção de
soluções alternativas para cumprir princípios e normas que nortearam as
orientações deste Tribunal, poderá gerar adoção de providências com vistas
à responsabilização em trabalhos futuros do TCU;
A equiparação das ferramentas – determinação e recomendação -, comentada
anteriormente, acaba impactando na percepção do risco de punição, já que os gestores públicos
vislumbram a possibilidade de serem sancionados mesmo diante do descumprimento de uma
recomendação do Tribunal. Além disso, como se vê do trecho acima transcrito, o TCU exige
que o gestor conheça e implemente todas as orientações expedidas anteriormente, o que não é
trivial147, sob pena de ser responsabilizado.
Como visto, o art. 58, IV, da LOTCU, dispõe genericamente sobre a possibilidade de
aplicação de multa em virtude do não atendimento a decisão do Tribunal, sem especificar que
tipo de decisão ensejaria a penalização, e sem condicionar a cominação da sanção a qualquer
tipo de lesão ao erário.
O que se percebe é que, mesmo o TCU dizendo que, no controle da regulação, a
aplicação de sanções não é o foco, o fato de interpretar de maneira ampliativa suas competências
147 Como visto anteriormente, o TCU exara muitos acórdãos por semana, muitos deles bastante extensos e prolixos
e não existe uma catalogação dos entendimentos e orientações do Tribunal, de maneira que até mesmo para o
gestor bem intencionado e diligente é difícil saber, com razoável segurança, quais são exatamente todas as
orientações do TCU sobre determinada matéria.
165
sancionatórias acaba gerando nos agentes sujeitos à fiscalização do Tribunal um fundado receio
de ser punido.
É certo que a expectativa do controle gera um efeito positivo de fazer com que os
administradores tendam a ser zelosos e cuidadosos (Speck, 2000, p. 191). Por outro lado,
também já é bem disseminado o efeito paralisante que o controle tem exercido sobre a gestão.
Como alertou o Ministro Bruno Dantas148, “agências reguladoras e gestores públicos em geral
têm evitado tomar decisões inovadoras por receio de terem atos questionados. Ou pior: deixam
de decidir à espera de aval prévio do TCU.”
No relatório sobre a regulação de infraestrutura no Brasil, produzido por pesquisadores
da LSE (2017, p. 34), com base em entrevistas junto a servidores de diversas áreas do
Executivo, ficou bem evidente o “receio de ser punido”, gerando, assim, aversão ao risco:
Em geral, os entrevistados expressaram um sentimento geral de preocupação
com a aversão ao risco, que é exacerbada pelo medo de investigações
subsequentes pelo TCU ou por outros órgãos de fiscalização. Mencionou-se
também que a ameaça de investigações pelo TCU aumentaria a aversão ao
risco durante o processo de decisões: não seria inteligente se comprometer
com decisões que, posteriormente, poderiam ser revistas pelo TCU ou por
algum processo judicial.
André Braga149 fez interessante levantamento, com base nos julgamentos do TCU de
2017, para mostrar que a probabilidade de um servidor público federal ser sancionado não é
alta. Cerca de 0,15% do contingente de servidores de órgãos e entidades da União foram
punidos pelo TCU em 2017. No entanto, chama atenção para o fato de que “a percepção do
risco de ser punido é mais relevante do que a efetiva probabilidade da sanção.”
No caso dos reguladores, embora a probabilidade pareça ainda mais baixa, já que o foco
do TCU tem sido o controle objetivo, o risco é concreto e aparentemente pouco controlável, já
que, como visto, o Tribunal interpreta suas competências de modo que mesmo agentes que não
sejam encarregados da gestão financeira do Estado se sujeitem a punição, ainda que não lhes
seja imputada a prática de nenhuma ilegalidade propriamente dita.
2.5. Utilização de argumentos e jurisprudência baseados na Lei nº 8.666/93
Está amplamente consolidada no direito brasileiro a exigência de que contratos públicos
sejam precedidos de procedimento competitivo (licitação). Conforme explica Sundfeld (2014,
p. 127), há diversas leis a respeito do assunto, aplicáveis a situações ou a contratos diferentes,
148 Em artigo intitulado “O risco de ‘infantilizar’ a gestão pública”, publicado em 06/01/2018, disponível em:
https://oglobo.globo.com/opiniao/o-risco-de-infantilizar-gestao-publica-22258401 149 https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/o-risco-de-ser-punido-e-a-mensagem-do-tcu/
166
com orientações variadas. Essa diversidade legislativa é causa de alguma complexidade e
ambiguidade, levando a questionamentos quanto à validade das licitações, sobretudo por
iniciativa de órgãos de controle.
O regime licitatório e contratual para concessões é, por força das leis de Concessões
(Lei nº 8.987/95) e de PPP (Lei nº 11.079/2005), mais flexível, procurando, assim, lidar com as
contingências de contratos relacionais e de longo prazo, deixa mais espaços para opções
administrativas. Sundfeld (2014, p. 128) considera que “de modo geral e em abstrato, o regime
é adequado para gerar bons procedimentos, transparentes, honestos e competitivos.” Alerta,
contudo, que, “em certos casos, essas opções vêm sendo confrontadas pelos órgãos de controle,
por vezes sob a inspiração do modelo de licitação mais tradicional, da Lei de Licitações, cuja
aplicabilidade às licitações de concessões deveria ser, segundo aquelas leis, bastante limitada.”
Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, o Ministro Bruno Dantas, do TCU, cogita
abertamente que o Tribunal trate as concessões da mesma forma que trata os contratos de obra:
O grande problema é que o tribunal fiscaliza muito licitações e contratos. E,
quando o tribunal passa a analisar modelagem de concessões, atividade
regulatória, muitas vezes não mudamos a chave, a gente olha o contrato de
concessão como se fosse de licitação.
O contrato de concessão é necessariamente de longo prazo e precisa conter
regras de autocalibragem para que seja sustentável. Não pode colocar
cláusulas tão rígidas.
O ministro Benjamin Zymler, em palestra recente150, chamou atenção para a necessidade
de “que se compreenda que há uma flexibilidade inerente aos contratos de concessão, a fim de
que se possa lidar com situações imprevisíveis que venham a ocorrer durante a vida do
contrato.”
A análise dos casos realizada ao longo da presente pesquisa revela que o TCU muitas
vezes utiliza argumentos e jurisprudência baseados na Lei de Licitações, ou seja, relacionados
a contratações diretas de bens e serviços pela Administração Pública, para bloquear a adoção
de opções mais flexíveis em licitações e contratos de concessão.
No “Caso Galeão”, por exemplo, embora o TCU tenha justificado sua posição quanto à
exigência de experiência prévia com base na suposta falta de motivação suficiente e adequada,
viu-se que a Corte foi enfática em dizer que vislumbrava “risco à competitividade do certame”
e argumentou que a restrição contrariaria a jurisprudência do Tribunal quanto à estipulação de
requisitos para comprovação de qualificação técnica.
150 Palestra proferida no “Diálogo Público: Atuação do TCU nas Desestatizações e Regulação dos Serviços
Públicos”, já referido anteriormente.
167
A jurisprudência referida, no caso, como visto, é a Súmula TCU nº 263/2011 e o
Acórdão nº 2.099/2009, ambos construídos em relação a processos de contratação direta, com
base na Lei nº 8.666/93.
A súmula, que se refere expressamente à contratação de obras e serviços, diz que:
Para a comprovação da capacidade técnico-operacional das licitantes, e
desde que limitada, simultaneamente, às parcelas de maior relevância e valor
significativo do objeto a ser contratado, é legal a exigência de comprovação
da execução de quantitativos mínimos em obras ou serviços com
características semelhantes, devendo essa exigência guardar proporção com
a dimensão e a complexidade do objeto a ser executado.
O próprio TCU, ao mesmo tempo que reconhece a dificuldade em aplicar a
jurisprudência que fixa em 50% do quantitativo para a exigência de experiência prévia –
Acórdão nº 2.099/2009 -, em virtude das especificidades e complexidade do objeto da
concessão, reafirma a necessidade de observância de parâmetros da Lei de Licitações:
Ainda que, no caso, não seja exigível aplicar a jurisprudência que fixa o
patamar de 50% do quantitativo de itens relevantes da obra/serviço para a
exigência de prévia experiência, em razão das especificidades e da
complexidade do objeto da concessão, a legislação é clara ao determinar que
a documentação relativa à qualificação técnica deve se limitar à
comprovação de aptidão para o desempenho de atividade pertinente e
compatível em características, quantidade e prazos com o objeto da licitação
(art. 30, inciso II, da Lei 8.666/1993).
No “Caso Galeão”, como já enfatizado, extrai-se da argumentação do ministro relator
expressa menção ao princípio da seleção da proposta mais vantajosa:
Todavia, conforme ficou evidenciado no voto da Ministra Ana Arraes que
fundamentou o acórdão 2.466/2013 – Plenário, os argumentos apresentados
são frágeis para demonstrar que o nível da exigência ora apresentada é
adequado e, portanto, não tem o potencial de restringir indevidamente a
participação no certame, haja vista, em especial, que:
a) os princípios norteadores do Direito brasileiro (arts. 37, inciso XXI, da
Constituição de 1988, 14 da Lei 8.987/1995, 3º e 30 da Lei 8.666/1993) e a
jurisprudência deste Tribunal (súmula TCU 263/2011), além de preverem que
a licitação deve buscar a proposta mais vantajosa para a administração e
seguir os princípios da igualdade, da competitividade, entre outros, apenas
admitem exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à
garantia do cumprimento das obrigações;
Ressalte-se, contudo, que a ideia de que a licitação se destina a garantir a seleção da
proposta mais vantajosa consta apenas, pelo menos de forma expressa, da Lei nº 8.666/93151,
151 Art. 3o A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da
proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será
processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da
moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento
convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.
168
não possuindo expressão equivalente na Lei nº 8.987/95. Esta, ao elencar os princípios que
devem reger as licitações realizadas para a celebração de contratos de concessão, não veicula
ideia semelhante:
Art. 14. Toda concessão de serviço público, precedida ou não da execução de
obra pública, será objeto de prévia licitação, nos termos da legislação
própria e com observância dos princípios da legalidade, moralidade,
publicidade, igualdade, do julgamento por critérios objetivos e da vinculação
ao instrumento convocatório.
A seleção de proposta mais vantajosa relaciona-se de maneira muito direta com a noção
de economicidade152, que, de fato, tem papel bem mais central nas contratações diretas
realizadas pela Administração Pública do que nas concessões e parcerias. É, pois, uma ideia
que, por não estar abrangida pelo conceito de legalidade, não deveria fundamentar a adoção de
atos impositivos pelo controlador, segundo a posição restritiva já exposta ao longo do trabalho.
No “Caso Leilão de Energia”, o TCU obrigou a ANEEL a adotar o menor dentre os
valores cotados no mercado, para estimar os investimentos em equipamentos a serem feitos
pelo concessionário e calcular a Receita Anual Permitida (RAP) do leilão, afastando a opção
da agência, que consistia em estimar o valor com base na média entre 6 (valores) cotados. A
ANEEL fundamentou a metodologia em norma da agência, que visa, segundo alegou, a ampliar
a competitividade dos certames.
Da mesma forma, a Corte invocou como fundamento para sua decisão o entendimento
firmado no Acórdão nº 7.290/2013, da 2ª Câmara, referente a uma licitação para compra de
bens, no qual considerou que “quando são cotados equipamentos fornecidos exclusivamente
por poucas empresas, de certo porte, deve-se sim adotar o mínimo valor cotado”.
Mais uma vez, prevaleceu uma lógica orientada pela economicidade, que é muito
pertinente nas contratações diretas, tanto que prevista expressamente na Lei de Licitações, por
meio da noção de seleção da proposta mais vantajosa, porém não essencial no âmbito das
concessões, que necessariamente envolvem um feixe múltiplo de interesses e valores.
Veja-se, por fim, que, no “Caso RIS”, o Plenário reconheceu que não se poderia aplicar
os limites da Lei nº 8.666/93 às alterações contratuais, em virtude da regra expressa veiculada
pela recente Lei nº 13.448/2017, mas recomendou à ANTT que estipulasse no edital e no
contrato limites específicos, a fim de tornar as regras do jogo transparentes e evitar interesses
oportunistas no futuro.
152 Justen Filho (2016, p. 337), ao comentar o art. 3º, da Lei de Licitações, diz que “a maior vantagem se apresenta
quando a Administração Pública assume o dever de realizar a prestação menos onerosa e o particular se obriga a
realizar a melhor e mais completa prestação. Configura-se, portanto, uma relação de custo-benefício. A maior
vantagem corresponde à situação de menor custo e maior benefício para a Administração Pública.”
169
Em relação ao ponto, embora o TCU não pudesse ignorar a regra trazida pela Lei nº
13.448/2017, que expressamente afastou a aplicação dos limites da Lei de Licitações aos
contratos de concessão, o Tribunal acabou endereçando recomendação orientada pela mesma
lógica do regime de contratações diretas, que era justamente o que a nova legislação visava a
evitar, conferindo maior flexibilidade aos contratos de concessão (PINTO, 2017).
A aplicação de normas e entendimentos firmados em discussões sobre contratações
diretas às concessões de infraestrutura acaba barrando a flexibilidade que se pretendia conferir,
como medida de eficiência, à regulação das parcerias entre o Estado e a iniciativa privada.
2.6. Revisão de normas regulatórias
Como já visto, constitui uma das características essenciais das agências reguladoras o
exercício, em estrita observância aos limites estipulados em lei, de poder normativo, ou seja, a
habilitação para produzir normas gerais e abstratas para disciplinar relações no setor regulado.
Talvez a capacidade normativo-criativa das agências tenha sido, no Brasil e em outros
lugares do mundo, o traço institucional que mais gerou controvérsias e discussões no âmbito
jurídico, tendo em vista a suposta incompatibilidade com os princípios da separação de poderes
e da legalidade.
Pode-se dizer, contudo, que já há, em nível doutrinário, relativo consenso em relação à
possibilidade de as agências reguladoras produzirem normas, desde que autorizadas e balizadas
pela lei.
Não há a menor dúvida quanto à necessidade de que as normas editadas pelas agências
observem rigorosamente os limites constitucionais e legais, assim como é de se supor que
muitas normas são editadas sem observá-los. A dúvida reside, porém, em saber se o TCU dispõe
de competência para fazer o controle de juridicidade das normas das agências.
Marianna Willeman (2017, p. 304) é taxativa em dizer que “não há espaço para
intervenção do TCU em caso de atos regulatórios normativos, cabendo apenas ao Poder
Legislativo.” O Congresso Nacional, como já visto, pode atuar por meio da sua competência
para sustar atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos
limites da delegação legislativa, prevista no art. 49, V, da CF/88.
No “Caso Afretamento”, como visto, em sede de medida cautelar, o Plenário do TCU
entendeu que a Resolução nº 01/2015, da ANTAQ, que estipulava requisitos para o afretamento
de embarcações estrangeiras, seria inconstitucional.
170
Embora diga expressamente no acórdão que “a agência reguladora possui certa
autonomia para, dentro dos parâmetros estabelecidos pelo legislador, dispor, de maneira geral,
sobre a ordenação do transporte aquático”, o TCU entendeu que a ANTAQ teria tratado de uma
matéria que a Constituição, no parágrafo único do art. 178153, reservara para o legislador,
criando, assim, uma reserva legal absoluta.
No caso analisado, o TCU não apontou o fundamento de sua competência. Como visto,
limitou-se a dizer que “a natureza de serviço público da atividade atrairia a competência do
Tribunal.”
É curiosa, contudo, a ressalva feita pelo ministro Zymler, que sugeriu ao relator que
fosse “alterada a redação da medida cautelar alvitrada, no sentido de suspender a prática de atos
concretos pela ANTAQ como base no dispositivo ora sob comento.” É possível especular que
o ministro tenha sentido algum desconforto em declarar a inconstitucionalidade da norma,
parecendo-lhe mais “confortável” determinar que a agência não praticasse atos concretos com
base nela. O efeito prático, contudo, foi o de declaração de inconstitucionalidade da norma
regulatória.
No “Caso THC2”, o TCU também barrou a aplicação de uma norma regulatória, a
resolução da ANTAQ que dispunha sobre a cobrança de uma tarifa (THC2) no setor portuário.
A Corte de Contas determinou, em sede de auditoria operacional, que a ANTAQ procedesse à
revisão da norma, a fim de regular adequadamente o conflito setorial.
No caso, o Tribunal não questionou a competência da agência para disciplinar a matéria.
Entendeu, na verdade, que a entidade havia regulado mal, de maneira inadequada, deixando,
assim, de cumprir sua missão institucional.
O que se verifica no caso é uma análise minuciosa do TCU acerca de conflito verificado
entre agentes de mercado de um setor regulado pelo Estado e a rejeição, pelo órgão de controle
externo, da solução construída pela agência reguladora.
Ao analisar o julgamento do TCU, Floriano Marques e Rafael Véras (2018) disseram
que a decisão da Corte de Contas consagraria a indeferência à regulação, em uma manifestação
do que chamaram de “ativismo do controle externo”.
153 Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à
ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da
reciprocidade. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 7, de 1995)
Parágrafo único. Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de
mercadorias na cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras. (Incluído
pela Emenda Constitucional nº 7, de 1995)
171
Na visão dos autores, a posição do TCU, além de contrariar o regime legal de autonomia
de que se revestem as agências reguladoras, invade espaço reservado ao regulador, interditado
até mesmo ao Poder Legislativo154. Dizem, ainda, que “da mesma forma que o TCU não pode
sindicar constitucionalidade ou adequação de lei em sentido estrito, não tem competência para
expedir comando vinculante ao regulador para desfazer ou refazer ato normativo.”
Em outro caso analisado, o “Caso RIS”, embora o TCU não tenha determinado a
suspensão ou a revisão de uma norma regulatória, o Tribunal, na prática, acabou barrando a
aplicação da Resolução ANTT 3.651/2012, que dispõe sobre a utilização do fluxo de caixa
marginal nas concessões, já que, como visto, o TCU não aceitou o uso da metodologia no caso
concreto, a concessão da Rodovia de Integração do Sul.
Da mesma forma, no “Caso Leilão de Transmissão”, a metodologia utilizada pela
ANEEL, que foi barrada pelo TCU, era baseada em norma da agência, editada mediante os
procedimentos próprios, no exercício do poder normativo que lhe foi atribuído pelo legislador.
Há dúvida sobre a competência do TCU para sustar a eficácia de uma norma, editada
pela agência reguladora, no exercício de poder normativo que lhe foi conferido por lei, e que
não diz respeito, nem mesmo indiretamente, à atividade financeira do Estado.
É bem clara na Constituição a dimensão liberal do controle realizado pelo TCU, mas
parece também bastante específica e focada: a legalidade da atividade financeira do Estado. O
controle liberal amplo, a fim de evitar violações a direitos, a ser exercido sobre as agências
reguladoras, cabe tipicamente ao Poder Judiciário. Seria, assim, exclusiva da função
jurisdicional, a competência para afastar a aplicação de uma norma em razão de sua
incompatibilidade com a Constituição. Tem sido, nesse sentido, inclusive, como já visto, a
sinalização do STF, ainda por meio de decisões monocráticas, em relação à (in) aplicabilidade
da Súmula 347 do STF.
O Tribunal, no entanto, chega até mesmo a desconsiderar o juízo de
legalidade/juridicidade feito pelo Poder Judiciário, a quem cabe, no sistema de jurisdição una,
a última palavra sobre a validade de um ato da Administração Pública. É o que aconteceu no
“Caso Afretamento”, em que o TCU considerou inconstitucional uma norma da ANTAQ que o
TRF da 1ª Região julgara válida.
Como se vê, embora em seu discurso o TCU não questione a autonomia reforçada das
agências, nem o poder normativo que lhes foi conferido por lei, na prática do controle o Tribunal
154 Floriano Marques e Rafael Véras (2018) mencionam a decisão proferida pelo STF na ADI 5501, que suspendeu
a eficácia de lei que liberou a utilização da pílula do câncer sem a autorização da ANVISA. O STF entendeu haver
um espaço reservado ao regulador, que não poderia ser ocupado nem mesmo pelo Poder Legislativo.
172
acaba revisando a regulação setorial, seja com base em argumentos jurídicos – de
inconstitucionalidade ou ilegalidade – ou por simplesmente não concordar com as soluções
normatizadas pelas agências.
2.7. A adoção de medidas cautelares
A análise do texto da Constituição revela que o Poder Constituinte atribuiu ao TCU
competência para adotar medidas cautelares. Mas a habilitação constitucional é bastante
restrita, limitada a hipóteses bem específicas. Para André Rosilho (2016, p. 247):
O Tribunal de Contas, mesmo sendo responsável pela preservação da
legalidade dos gastos públicos, não recebeu a função de intervir diretamente
na atividade administrativa sempre que, na sua avaliação, ocorresse prática
contrária à lei ou à eficiência na gestão pública.
Tratou-se, pois, de uma escolha do constituinte dar ao TCU poderes
cautelares específicos, mas não lhe conferir amplo poder de cautela (como
fez em relação ao Judiciário).
Veja-se que o único poder cautelar previsto na Constituição diz respeito à possibilidade
de sustação de ato administrativo em relação ao qual seja constatada ilegalidade, e mesmo
assim apenas depois de assinado prazo para que o órgão ou entidade responsável adote as
providências necessárias para sanar a ilegalidade. É o que consta dos incisos IX e X do art. 71:
Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido
com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
IX - assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências
necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;
X - sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a
decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal;
A Lei nº 8.443/92 (Lei Orgânica do TCU) previu duas hipóteses adicionais de adoção
de medida cautelar: a) determinar o afastamento temporário de responsáveis pela gestão de
recursos federais (art. 44, caput); e b) decretar a indisponibilidade de bens (art. 44, § 2º).
O Regimento Interno, por sua vez, editado pelo próprio TCU, traz dispositivo que visa
a assegurar verdadeiro poder geral de cautela ao Tribunal:
Art. 276. O Plenário, o relator, ou, na hipótese do art. 28, inciso XVI, o
Presidente, em caso de urgência, de fundado receio de grave lesão ao erário,
ao interesse público, ou de risco de ineficácia da decisão de mérito, poderá,
de ofício ou mediante provocação, adotar medida cautelar, com ou sem a
prévia oitiva da parte, determinando, entre outras providências, a suspensão
do ato ou do procedimento impugnado, até que o Tribunal decida sobre o
mérito da questão suscitada, nos termos do art. 45 da Lei nº 8.443, de 1992.
A norma regimental parece, pois, ir bem além do que foi delimitado pela Constituição
e pela Lei Orgânica, sendo, assim, conforme opinião de Rosilho (2016, p. 252),
173
inconstitucional. Para o autor, o poder conferido ao TCU abrangeria tão somente a sustação de
atos, e não de procedimentos; alcançaria apenas as práticas inseridas no campo da atuação
financeira do Estado; em que sejam verificadas ilegalidades; e quando, após a abertura de prazo
para a regularização, a Administração permanecer inerte.
Dessa forma, fora das hipóteses previstas expressamente no ordenamento jurídico, em
situações de urgência e de risco, caberia ao TCU representar às instâncias competentes para
adotar as medidas cabíveis, papel eminentemente colaborativo, portanto; não de interventor
direto.
De acordo com interpretação dada pelo próprio TCU às suas competências, por meio de
seu Regimento Interno, o Tribunal pode utilizar medidas cautelares para tutelar o interesse
público, considerado de maneira ampla, e não apenas lesões ao erário provocadas pela gestão
ilegal de recursos, além de poder determinar, de imediato, até mesmo sem ouvir a
Administração, a suspensão de atos e procedimentos, bem como a adoção de outras
providências.
A ideia de que o TCU gozaria de poder geral de cautela acabou se consolidando na
prática do Tribunal com o apoio de duas decisões do STF, proferidas no MS nº 24.510 (Plenário,
rel. Min. Ellen Gracie, j. 19.11.2003) e no MS nº 33.092 (2ª Turma, rel. Min. Gilmar Mendes,
j. 24.03.2015), em que a Corte Suprema chancelou medidas cautelares tomadas pelo TCU.
Rosilho (2016, p. 255-256), porém, em análise minuciosa das decisões, demonstra que as
hipóteses discutidas perante o STF se enquadravam rigorosamente nos limites previstos na
legislação, de maneira que não havia justificativa, ou mesmo necessidade, para o STF, naqueles
julgamentos, afirmar que o TCU possuía poder geral de cautela. Segundo o autor, a decisão do
STF “para acertar no alvo, acabou usando munição em excesso.”
A possibilidade de adotar medidas cautelares, então, é uma das ferramentas mais
poderosas do TCU para interferir na gestão pública. Sempre que vislumbra receio de lesão ao
erário ou ao interesse público, o TCU entende possuir amplos poderes para determinar a
suspensão de atos e procedimentos, bem como a adoção de outras providências. É, como se vê,
um poder geral, sem limitações muito claras, para intervir na atividade administrativa, inclusive
regulatória, já que o Tribunal não parece fazer distinção quando o ato emana de agências
reguladoras.
No “Caso Saturno”, o TCU tomou medida de grande impacto sobre a Administração
Pública, notadamente a ANP e o Ministério de Minas e Energia, ao determinar a exclusão, na
véspera da realização do leilão da concessão, dos dois principais blocos de exploração de
petróleo a serem licitados.
174
O Tribunal agiu por meio de medida cautelar, sugerida pela unidade técnica responsável
(Seinfra Petróleo) e proposta ao Plenário pelo ministro Aroldo Cedraz, relator do processo, que
foi aprovada unanimemente. Foi expressamente apontado como fundamento para a medida o
art. 276 do Regimento Interno do TCU. Em sua declaração de voto, o ministro-substituto André
Luís de Carvalho invocou a competência abrangente do TCU, ao argumentar que “em plena
sintonia com a teoria dos poderes implícitos para a fundamentação do poder geral de cautela,
este Plenário deve conceder a pleiteada cautelar suspensiva”.
No caso, como já visto, o TCU não apontou propriamente ilegalidades na concessão dos
blocos de exploração de petróleo. Pareceu, na verdade, não concordar com as razões que foram
apresentadas pelo poder concedente para desestatizar a exploração de dois dos blocos de
petróleo por meio do regime de concessão. Na visão do TCU, o regime de partilha seria mais
vantajoso para a União. A posição da Corte, portanto, parece ter sido orientada mais pela noção
de economicidade do que propriamente pela legalidade.
Além disso, também justificou a adoção da cautelar com base na inobservância, por
parte da ANP, da IN nº 27/98, editada pelo próprio TCU, para disciplinar o acompanhamento
dos processos de concessão, cuja constitucionalidade é questionada por parcela da doutrina,
como já visto neste trabalho. Sendo assim, a rigor, a irregularidade apontada pelo Tribunal não
seria exatamente uma ilegalidade, já que se trata de norma procedimental criada pelo próprio
Tribunal.
No “Caso Afretamento”, o Plenário do TCU, por maioria, determinou, cautelarmente, a
suspensão da Resolução nº 01/2015, da ANTAQ, por considerá-la inconstitucional. No
julgamento, chamou atenção o fato de a norma ter vigência desde 2015, o que fez a unidade
técnica opinar no sentido de que não haveria periculum in mora a justificar a adoção da cautelar.
Em uma interpretação estrita das normas da Constituição e da Lei Orgânica, a
competência cautelar parece voltada a combater atos concretos, que veiculem ilegalidades em
matéria financeira não sanadas pelo agente público responsável, mesmo depois de ser instado
pelo TCU. Mas, de acordo com a interpretação feita pelo próprio TCU, e em alguma medida
chancelada pelo STF, os poderes seriam mais amplos e serviriam para tutelar qualquer lesão,
não apenas ao erário, mas ao interesse público.
O poder cautelar tem sido utilizado pelo TCU, da mesma forma como faz em relação à
gestão pública em geral, para interferir na regulação, já que, a partir de uma compreensão de
que detém poder geral de cautela, apto, portanto, a combater todo e qualquer tipo de risco,
praticamente todos os atos regulatórios revestem-se da precariedade decorrente da possibilidade
de serem suspensos, cautelarmente, pela Corte de Contas.
175
2.8. O uso de princípios e da noção de interesse público como fundamentos decisórios
Especialmente após a promulgação da Constituição de 1988, o ambiente jurídico no
Brasil passou a ser dominado pelo que Humberto Ávila (2018, p. 43) chamou de “euforia do
Estado Principiológico”.
Os princípios passaram, assim, a ser tratados como fundamentos normativos para a
interpretação e aplicação do Direito, responsáveis por conferir unidade e coerência à ordem
jurídica, cuja violação passou a ser considerada mais grave que a infringência à lei.
Em relação ao mundo da Administração Pública, o texto constitucional, em seu art. 37,
estipulou os princípios a que devem obediência todas as esferas do Poder Público: legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência155. Na mesma linha, a Lei nº 9.784/99
(Lei do Processo Administrativo), que elenca os princípios da legalidade, finalidade,
motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório,
segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Essa “euforia” parece ter contagiado também os órgãos de controle. Veiculadores de
valores fundamentais, considerados normas superiores, mas de conteúdo bastante
indeterminado156, os princípios são frequentemente utilizados como fundamentos de decisões
controladoras, das mais diversas instâncias, servindo, assim, para bloquear opções
administrativas e muitas vezes até legislativas.
Parece não ser diferente com o TCU no controle da atividade das agências. Da análise
dos casos apresentados no presente trabalho157, verifica-se que, em praticamente todos, o TCU
invocou princípios jurídicos como fundamento para suas decisões, bloqueando, assim, opções
concretas do regulador.
Em se tratando de contratos de concessão e de regulação de serviços públicos, o
princípio da modicidade tarifária158 é um protagonista especial. Nos casos analisados,
155 O princípio da eficiência não constava do texto original, foi incluído pela EC nº 19/98. 156 Conforme Sundfeld (2014, p. 208), “por convenção, chamamos de princípios textos que somos levados a
entender como normativos mas cujo conteúdo, de tão escasso, não nos revela a norma que supostamente contêm.” 157 No “Caso RIS”, o acórdão menciona a palavra “princípio” pelo menos 75 vezes; no “Caso THC 2”, há pelo
menos 18 referências; no “Caso Afretamento”, o verbete aparece 20 vezes; nos casos “Saturno” e “Leilão da
ANEEL”, 5 vezes em cada um, no mínimo. 158 Embora não tenha sido elencada expressamente como “princípio”, a ideia de modicidade das tarifas consta da
Lei nº 8.987/95, como uma das condições para a caracterização de serviço adequado e é comumente referida na
doutrina e em decisões em geral como “princípio da modicidade tarifária”:
Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos
usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
§ 1º Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança,
atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.
176
verificou-se que, mais de uma vez, a posição do TCU foi fundamentada em torno da ideia de
modicidade tarifária.
No “Caso RIS”, em que o TCU fez uma revisão minuciosa de toda a modelagem
contratual da concessão, várias posições, tanto da unidade técnica como do Plenário, foram
fundamentadas em princípios. O ministro Bruno Dantas, que apresentou o voto condutor do
caso, defendeu expressamente, como visto, o uso de princípios jurídicos para fundamentar as
posições do Tribunal justamente nos casos em que a lei fosse omissa.
Ao determinar a estipulação de regras mais restritivas quanto à inclusão de novas obras
e investimentos, o TCU utilizou como fundamento os princípios da licitação, impessoalidade,
moralidade e eficiência.
No “Caso Galeão”, o Plenário, nos termos do Acórdão nº 2.666/2013, utilizou princípios
jurídicos para fundamentar sua posição contrária às justificativas apresentadas pelo poder
concedente:
Todavia, conforme ficou evidenciado no voto da Ministra Ana Arraes que
fundamentou o acórdão 2.466/2013 – Plenário, os argumentos apresentados
são frágeis para demonstrar que o nível da exigência ora apresentada é
adequado e, portanto, não tem o potencial de restringir indevidamente a
participação no certame, haja vista, em especial, que:
a) os princípios norteadores do Direito brasileiro (arts. 37, inciso XXI, da
Constituição de 1988, 14 da Lei 8.987/1995, 3º e 30 da Lei 8.666/1993) e a
jurisprudência deste Tribunal (súmula TCU 263/2011), além de preverem que
a licitação deve buscar a proposta mais vantajosa para a administração e
seguir os princípios da igualdade, da competitividade, entre outros, apenas
admitem exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à
garantia do cumprimento das obrigações;
Ainda no “Caso Galeão”, buscando atribuir coercitividade a uma recomendação do
Tribunal, o ministro relator argumentou que a posição do Tribunal era orientada por um
princípio, o da modicidade tarifária, que, como tal, teria especial relevância no ordenamento
jurídico.
Da mesma forma, no “Caso Leilão de Transmissão”, o Tribunal veiculou uma
determinação por entender que a opção regulatória contrariava princípios, dentre eles, mais uma
vez, o da modicidade tarifária:
O Tribunal pode sempre determinar medidas corretivas a ato praticado na
esfera de discricionariedade das agências reguladoras, desde que esse ato
viole o ordenamento jurídico, do qual fazem parte os princípios da
economicidade da administração pública e da modicidade tarifária na
prestação de serviços públicos.
Embora o TCU diga, como visto nas discussões do Acórdão nº 1.703/2004 (leading
case, que não deve privilegiar a modicidade tarifária em detrimento de outros aspectos
177
essenciais para a produção de uma regulação equilibrada, pode-se observar, a partir da análise
de casos, que a modicidade tarifária funciona como um vetor da atividade de controle da
regulação. Essa observação é coerente com a ideia, já explorada neste trabalho, de que todo
mecanismo de controle é orientado por interesses. Conforme Sundfeld (2014, p. 209), “órgãos
de controle tiram seu poder e influência do valor que se dê às exigências que lhes caiba
controlar; é compreensível que, para crescerem institucionalmente, eles procurem ampliar
sempre mais esse valor.”
A constatação vai, contudo, de encontro ao discurso do Tribunal, notadamente o que
consta do Acórdão 1.703/2004 (o leading case), analisado anteriormente. No caso, como visto,
o Plenário rejeitou a proposta de determinação da unidade técnica, que era amparada no
princípio da modicidade tarifária, por entender que o Tribunal só deveria interferir de maneira
cogente quando houvesse solução expressamente prevista em lei.
O uso indiscriminado e, muitas vezes, abusivo, dos princípios, passou a despertar a
atenção e preocupação de estudiosos. Para Ávila (2018, p. 44), “os princípios são reverenciados
como bases ou pilares do ordenamento jurídico sem que a essa veneração sejam agregados
elementos que permitam melhor compreendê-los e aplica-los.”
Nessa linha, Sundfeld (2014) chama atenção para o fato de que os aplicadores não
manuseiam os princípios com o mesmo nível de rigor e sofisticação com que fazem os teóricos
que os formularam em âmbito doutrinário. Há, assim, no plano da aplicação, uma tendência à
simplificação e hipergeneralização dos princípios. Daí a afirmação do autor no sentido de que
“princípios vagos podem justificar qualquer decisão” (SUNDFELD, 2014, p. 205). E aí,
“ofuscado e fascinado pela luz forte do princípio, que o encanta, o sujeito não dá muita atenção
ao resto, se sente forte e bom, capaz de resolver tudo sozinho” (SUNDFELD, 2014, p. 180).
Em texto em que reflete sobre usos e abusos em matéria de controle de políticas públicas
pela jurisdição constitucional, Sarlet (2017, p. 345) chama atenção para o uso de princípios
como “conversation stoper”, ou seja, como bloqueadores de toda e qualquer objeção à decisão
controladora que os invoca. Nessa mesma perspectiva, a crítica de Sundfeld (2014, p. 225), para
quem:
O uso retórico de princípios muito vagos vem sendo um elemento facilitador
e legitimador da superficialidade e do voluntarismo”. Belos princípios
ninguém tem coragem de refutar, e muita gente se sente autorizada a tirar
conclusões bem concretas a partir deles. Nesse plano, quase todo mundo tem
alguma razão no que diz.
Os atos do regulador, evidentemente, não podem deixar de perseguir a observância e o
cumprimento dos princípios constitucionais e a concretização do interesse público, mas são
178
decisões que, em regra, são materializadas mais com base em aspectos concretos e dados da
realidade do que em valorações abstratas e interpretação de princípios. Dessa forma, acabam
parecendo possuir estatura inferior em relação às decisões dos controladores, que normalmente
invocam princípios e valores abstratos centrais da ordem jurídica.
Fernando Leal (2016) alerta para a circunstância de que um bom motivo (ou seja, um
princípio) “não dispensa um método decisório racional e controlável”. Sendo assim, a utilização
de princípios como fundamento das decisões, muitas vezes para afastar soluções construídas
pelo regulador, não pode prescindir de procedimentos decisórios consistentes159.
O debate em torno da interpretação de princípios pode acabar resvalando na disputa por
espaços de poder. Com um princípio na mão, uma instituição pode ultrapassar a fronteira e
invadir a competência de outros órgãos. Daí a observação de Sundfeld (2014, p. 206):
O profissional do Direito, ao construir soluções para os casos, tem um dever
analítico. Não bastam boas intenções, não basta intuição, não basta invocar
e elogiar princípios; é preciso respeitar o espaço de cada instituição,
comparar normas e opções, estudar causas e consequências, ponderar as
vantagens e desvantagens. Do contrário viveremos no mundo da
arbitrariedade, não do Direito.
3. Considerações finais sobre o mapeamento de estratégias
Sem qualquer pretensão de medir a intensidade, ou mesmo a qualidade do controle,
conseguimos mapear um conjunto, evidentemente não exaustivo, de estratégias e métodos,
utilizados pelo Tribunal para interferir na regulação. Manuseando ferramentas típicas do
controle externo, muitas vezes com base em interpretações que tangenciam ou extrapolam os
limites de suas competências, o TCU atua diretamente sobre a regulação, conformando o seu
conteúdo.
Já demonstramos em que consiste, essencialmente, cada uma das estratégias
identificadas. Mas parece relevante enfatizar que, embora cada uma tenha sido descrita e
159 Nessa perspectiva, Sundfeld (2014, p. 228), refletindo sobre o controle judicial dos atos da Administração,
coloca em evidência a necessidade de que o controlador assuma o “ônus do regulador”: “Nosso sistema pode até
suportar a delegação da tarefa de regular ao Judiciário. Pode até admitir a substituição de regulações legais ou
administrativas por outras, criadas pelos juízes. Mas é preciso que estes cumpram os mesmos ônus que têm os
reguladores. Elaborar e enunciar com clareza e precisão a regra que, a partir dos princípios, entendem dever ser
utilizada em juízo para resolver os casos concretos, do mesmo modo que o regulador faz regulamentos, com suas
especificações, antes de sair tomando atitudes caso a caso. Estudar com profundidade a realidade em que vão
mexer, entender as características e razões da regulação anterior, identificar as alternativas regulatórias existentes,
antever os possíveis custos e impactos, positivos e negativos, em todos os seus aspectos, da nova regulação judicial
que se cogita instituir, comparar as características da regulação existente e da cogitada. (...) Do contrário teremos
decisões puramente arbitrárias, construídas de modo voluntarista, gerando uma jurisprudência capaz de flutuar ao
sabor das intuições e dos azares – em resumo: pura feitiçaria.”
179
exemplificada separadamente, o TCU na verdade combina as estratégias para fazer prevalecer
suas posições.
O resultado dessa combinação de estratégias é uma ação controladora que não se
restringe à fiscalização da atividade financeira, nem ao controle de legalidade como parâmetro
justificador de atos de comando. O controle, portanto, é horizontalmente amplo, ou seja,
abrange todas as atividades regulatórias, e verticalmente profundo, pois são avaliadas e
eventualmente substituídas as escolhas regulatórias.
A análise empírica realizada também parece colocar em dúvida a lógica segundo a qual
a baixa capacidade e governança regulatórias das agências brasileiras ensejaria uma intervenção
mais profunda. Basta ver que o TCU interveio praticamente com a mesma intensidade em todas
as agências reguladoras de infraestrutura, mesmo naquelas que o Tribunal considera mais
estruturadas e com melhor governança, como é o caso de ANEEL e ANP160. Em relação a
ambas as agências, o TCU afastou opções regulatórias mesmo sem apontar ilegalidades
flagrantes.
Em nenhum momento o TCU parece sinalizar uma deferência maior ao regulador por
considerar que a agência tem um nível mais elevado de governança. De uma maneira geral,
independentemente de qual fosse a agência envolvida, o Tribunal pareceu revisar os
instrumentos regulatórios – normas ou editais e contratos -, mantendo aqueles com os quais
concordava e impondo a alteração nos casos em que discordava.
O quadro parece revelar um Tribunal de Contas que manuseia suas competências de
maneira a funcionar como um revisor-geral da regulação, destoando, assim, do arranjo
normativo de competências previsto no ordenamento jurídico vigente e até mesmo do seu
próprio discurso segundo o qual seria deferente ao regulador e realizaria controle de segunda
ordem.
160 De acordo com a avaliação do nível de governança realizada na auditoria operacional que resultou no Acórdão
nº 240/2015, do qual consta uma tabela que resume a situação de cada uma das agências de infraestrutura,
reproduzida no presente trabalho.
180
CONCLUSÕES
Del rigor en la ciencia
Jorge Luis Borges
En aquel Imperio, el Arte de la Cartografía logró tal
Perfección que el mapa de una sola Provincia ocupaba
toda una Ciudad, y el Mapa del Imperio, toda una
Provincia. Con el tiempo, estos Mapas Desmesurados
no satisficieron y los Colegios de Cartógrafos
levantaron un Mapa del Imperio, que tenía el tamaño
del Imperio y coincidía puntualmente con él. Menos
Adictas al Estudio de la Cartografía, las Generaciones
Siguientes entendieron que ese dilatado Mapa era
Inútil y no sin Impiedad lo entregaron a las
Inclemencias del Sol y los Inviernos. En los desiertos
del Oeste perduran despedazadas Ruinas del Mapa,
habitadas por Animales y por Mendigos; en todo el
País no hay otra reliquia de las Disciplinas
Geográficas.
O conto de Borges fala de um império fictício em que a cartografia atingiu nível de
desenvolvimento tal que os mapas ficaram do tamanho dos territórios que se propunham a
representar.
O controle público, por mais relevante e indispensável que seja, é, em essência, uma
atividade acessória. A atividade principal é a gestão pública (Medauar, 2014). Sem gestão, não
haverá controle. Se o controle ficar “maior” que a gestão, correrá o risco de se tornar, tal qual
aconteceu com os mapas de Borges, inútil.
Embora, como visto, a Constituição de 1988 represente um marco importante no
desenvolvimento institucional do TCU, agregando-lhe independência e ampliando suas
competências, o fenômeno de expansão do controle exercido pela Corte de Contas parece
extrapolar essas fronteiras. A delimitação de competências controladoras tem funcionado mais
como um ponto de partida do que como um ponto de chegada (MOREIRA, 2018)161.
Interessante observar que, em obra doutrinária publicada em 2008, Zymler e Almeida
(2008, p. 230) comentam que o TCU, na época, afirmava em seu site que a missão do Tribunal
era “assegurar a efetiva e regular gestão dos recursos públicos em benefício da sociedade.”
Hoje em dia, 10 anos depois, mas sem que tenha ocorrido qualquer reforma em relação
às competências do Tribunal, o TCU costuma divulgar uma missão institucional bem mais
161 Segue a reflexão de Egon Bockman Moreira (2018): “Quando menos desde o final do breve século 20, o TCU
vem alargando as pessoas e os objetos de suas ações controladoras. Expansão desmesurada, oriunda de
compreensões do TCU a respeito de si mesmo. Assim, ao invés de interpretar suas competências – constitucionais
e legais – como um ponto de chegada, elas têm sido tomadas como pontos de partida. A Constituição e a lei não
se prestariam a limitar os poderes do TCU, mas a permitir que ele vá onde nunca jamais esteve. O que é muito
preocupante.”
181
ampla e ambiciosa, qual a seja, a de “aprimorar a Administração Pública em benefício da
sociedade”162.
A visão do Tribunal acerca de suas competências parece, assim, ter se distanciado, com
o passar do tempo, de sua vocação histórica e específica: o controle da atividade financeira do
Estado. Sob o mesmo regime de repartição de poderes, o TCU parece atribuir a si próprio uma
função muito mais abrangente do que há 10 anos.
As reflexões críticas da doutrina sobre as consequências da expansão do controle,
expostas ao longo do trabalho, parecem movidas pela preocupação em evitar que as instituições
controladoras acabem por esvaziar a gestão pública enquanto ambiente criativo e decisório.
Ao mesmo tempo, os déficits elevados de probidade e eficiência no âmbito da
Administração Pública têm, na prática, criado um ambiente favorável à expansão do controle.
No que diz respeito à regulação, especificamente, a deterioração do sistema regulatório parece
justificar, pelo menos aos olhos dos controladores, intervenções mais profundas do TCU.
Revelou-se especialmente interessante estudar o fenômeno a partir da interação entre o
TCU e as agências reguladoras. Por diversas razões. Primeiro, por se tratar de um ramo do
Estado estruturado mais recentemente, sob um regime diferenciado, de autonomia reforçada,
com dirigentes estáveis, que decidem colegiadamente, e sujeito a mecanismos de accountability
pretensamente também específicos. Além disso, por estar a tarefa de construção da capacidade
regulatória no Brasil em pleno andamento, de maneira que o funcionamento do sistema de
controle, como variável crítica, cumpre papel fundamental nesse processo. Por fim, por ser o
controle da regulação um assunto central na agenda institucional do TCU na atualidade, a ponto
de o ministro Benjamin Zymler ter afirmado, em recente palestra163, ser “o tema em que o TCU
mais contribui com o desenvolvimento nacional.”
No Brasil, a estruturação da instituição superior de controle, nos moldes atuais, ocorreu
com o advento da Constituição de 1988, que engrenava um modelo de Estado
Desenvolvimentista e uma Administração Pública essencialmente burocrática. As reformas
voltadas a impulsionar o Estado Regulador e transformar a máquina burocrática em gerencial
ocorreram alguns anos depois, a partir de meados dos anos 90.
162 É o que consta, por exemplo, da apresentação do documento “O TCU e o Desenvolvimento Nacional”,
divulgado em 2018, no período das eleições presidenciais, em que o Tribunal expõe uma série de propostas,
elaboradas com base nas auditorias e fiscalizações realizadas pelo Tribunal, em relação aos mais diversos setores
(Finanças Públicas, Regulação, Infraestrutura, Saúde, Educação, Meio Ambiente, etc) da Administração Pública
Federal. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/desenvolvimento-nacional/ 163 Palestra proferida no “Diálogo Público: Atuação do TCU nas Desestatizações e Regulação dos Serviços
Públicos”, já referido anteriormente.
182
Mesmo com a inovação promovida pela CF/88, que incluiu o controle de performance
no raio de atuação do TCU, o órgão constitui, em essência, uma instituição de controle pensada
e estruturada para um outro padrão de intervenção estatal, que pode se chamar de direta,
intervencionista ou desenvolvimentista, centrada na taxação e despesa públicas, e não para a
intervenção indireta, subsidiária ou regulatória.
Portanto, o padrão de interação entre as agências reguladoras de infraestrutura e o
Tribunal de Contas da União parece ser, em alguma medida, reflexo justamente da coexistência
entre uma nova tecnologia de governança econômica (o Estado Regulador) e as bases jurídicas
nacionais tradicionais, que engrenaram um Estado Desenvolvimentista, que passam a coexistir
e ter que se acomodar e adaptar, conforme a formulação de Schapiro (2018).
Conforme demonstrado, há um quadro grave de deterioração das agências reguladoras
de infraestrutura no país, que veem o seu regime de autonomia estipulado por lei desfigurado
pela incidência de inúmeros mecanismos, formais e informais, de controle da regulação, em
grande medida marcados pelas características mais enraizadas de nossa tradição jurídica e
política.
O TCU, por sua vez, foi estruturado para fazer controle da atividade financeira do
Estado, não para produzir regulação setorial. Mas o Tribunal tem feito um controle cada vez
mais amplo sobre toda a Administração Pública, que abrange as despesas públicas, a
performance dos órgãos e entidades públicos, e até mesmo a regulação setorial.
Embora tenhamos, ao longo do trabalho, manifestado certo ceticismo em relação a
alguns dos benefícios que o TCU costuma associar à fiscalização que exerce sobre as agências
reguladoras, não tivemos a pretensão específica de avaliá-los nem de refutá-los. Não é disso
que se trata. A questão a que nos propusemos centralmente foi compreender a dinâmica do
controle e contrastá-la com os limites de competências estipulados pelo Direito.
Do ponto de vista normativo, pode-se dizer que o Direito brasileiro não fez do TCU um
revisor-geral dos atos das agências reguladoras, o que significa que lhe é vedado atuar em
substituição ao regulador.
Da análise dos casos apresentados, verifica-se, porém, que, tanto na dimensão liberal,
como na perspectiva gerencial, do controle, o TCU tem uma compreensão expansiva de suas
competências. Sob o prisma liberal, o Tribunal não tem se restringido à fiscalização da
legalidade dos aspectos financeiros das atividades das agências. Tem, na verdade, realizado um
controle amplo de juridicidade de todos os atos regulatórios, inclusive de normas setoriais. Sob
o enfoque gerencial, o Tribunal não se limita a levantar dados e informações, expedir sugestões
183
e atuar colaborativamente, busca maneiras de efetivamente interferir na regulação, fazendo
prevalecer as suas preferências em detrimento das escolhas discricionárias do regulador.
Portanto, embora o TCU tenha um discurso consistente de que realiza um controle de
segunda ordem, querendo, com isso, dizer que sua fiscalização recai apenas sobre a atuação das
agências, e não sobre a regulação em si, o que se vê é que o Tribunal atua diretamente sobre os
instrumentos regulatórios, tais como normas, editais e contratos. Dessa forma, ao participar
ativamente da modelagem da regulação, supervisionando não apenas o desempenho das
agências, mas o conteúdo propriamente dito da regulação, a prática do controle parece não se
amoldar perfeitamente ao discurso do controlador. A expressão controle de segunda ordem
parece, então, dizer bem menos do que o TCU efetivamente faz.
Sob a perspectiva teórica, ou melhor, de confrontação entre a teoria da regulação e a
prática do controle, verifica-se que a autonomia reforçada das agências reguladoras pouco tem
impactado o controle. Isso porque há relevantes sinais de substituição do regulador pelo
controlador, o que ocorre à margem da lei e representa verdadeira derrogação do regime de
autonomia instituído pelas leis que criaram as agências reguladoras. Conforme síntese de André
Braga (2010), se compreendermos autonomia como “a capacidade que determinada
organização possui de usar recursos e fazer escolhas sem necessitar da aprovação de uma
instância superior”, não resta dúvida que a atuação do TCU restringe o espaço de autonomia
conferido pela legislação às agências reguladoras.
Já havia, como visto ao longo do trabalho, vários autores apontando, de maneira
consistente, indícios e riscos da substituição do administrador pelo controlador, mediante o
deslocamento da discricionariedade da gestão para o controle, inclusive em matérias
regulatórias.
Parecia relevante, contudo, e a presente pesquisa pretende justamente com isso
contribuir, conhecer um pouco melhor as estratégias utilizadas pelo TCU para interferir na
regulação. Era fundamental, assim, a fim de testar empiricamente a hipótese de que há
substituição do regulador pelo controlador, confrontar essas estratégias com os limites de
competências estipulados pelo Direito brasileiro.
Embora o TCU, em seu discurso, reconheça o regime de autonomia conferido às
agências, acaba, a partir de uma concepção que combina uma visão otimista sobre suas próprias
capacidades e um diagnóstico negativo acerca da governança regulatória das agências, na
prática, extrapolando os limites de suas competências e operando como um substituto funcional
de um órgão de supervisão e revisão regulatória, papel, que, como visto, não lhe foi reservado
pelo Direito.
184
Pudemos observar, a partir da análise de casos, que o Tribunal faz uma análise
microscópica de toda a modelagem e estrutura contratual das concessões e decide, ponto a
ponto, se “aceita” ou não a opção regulatória. Mesmo quando diz manifestar deferência à
posição do regulador, o que está, na prática, é ratificando a opção regulatória, por com ela
concordar, ou pelo menos não possuir convicção formada em sentido contrário.
Não esteve ao alcance desta pesquisa estabelecer uma métrica do grau de intensidade da
intervenção do TCU. Pode-se dizer, com base nos elementos empíricos levantados, que a
intensidade é variável, depende de uma série de fatores e circunstâncias, o que é confirmado
pela observação de que o Tribunal, muitas vezes, não observa standards por ele mesmo
estipulados.
Embora em várias ocasiões o TCU diga que, ao examinar a regulação, só deve expedir
atos de comando diante de violações à legalidade estrita, na prática o Tribunal afasta ou barra
opções regulatórias sob o argumento de que algum princípio jurídico, ou mesmo o interesse
público, não estaria sendo observado164.
A utilização frequente de princípios como fundamentos de decisões controladoras
contrasta com a dificuldade de normas gerais e abstratas produzirem soluções concretas
aplicáveis a diversos setores. Além disso, apesar de o TCU dizer que o controle não pode pender
para nenhum dos lados e que não deve privilegiar nenhum valor específico, devendo buscar
sempre o equilíbrio do setor regulado, pode-se perceber, a partir da análise dos casos, que a
modicidade tarifária acaba sendo um vetor primordial do controle exercido sobre a regulação.
No exercício de seu poder sancionatório, da mesma forma, foi possível observar que o
TCU aplicou multa a dirigentes de agência reguladora mesmo reconhecendo que não havia
nenhuma ilegalidade no caso, contrariando, inclusive, a orientação predominante no Tribunal
de privilegiar o controle objetivo da regulação. Há, na verdade, a ausência de parâmetros claros
que orientem a aplicação de sanções. Ao entender que pode controlar todos os objetos sob todos
os parâmetros, há sempre o risco potencial de o TCU aplicar sanção.
Embora a presente pesquisa não tenha produzido elementos empíricos capazes de
comprovar a hipótese, não se pode deixar de considerar o risco de que o “receio de ser punido”
pelo TCU iniba mais o “bom gestor”, gerando a já referida “aversão ao risco”, do que o gestor
164 É o que aconteceu, por exemplo, no “Caso RIS”, em que o ministro relator defendeu, com apoio do Plenário,
as intervenções do Tribunal baseadas em princípios justamente nos casos em que não houvesse resposta legal
específica. Essa posição é diametralmente oposta àquela firmada no Acórdão nº 1.703/2004 (o “leading case”),
em que ficou decidido que deveria ser preservada a posição da agência justamente por ela não contrariar nenhuma
determinação legal expressa, por mais que o TCU entendesse que outra solução seria mais adequada.
185
corrupto. Isso porque as sanções que podem ser aplicadas pelo TCU são relativamente leves,
tais como multa e inabilitação para exercício de cargo público, que certamente causam
significativo temor nos administradores públicos honestos e comprometidos com a coisa
pública, mas talvez não tenha um efeito tão dissuasório em relação aos agentes mal
intencionados e corruptos.
A construção da discricionariedade disciplinada depende, segundo o estudo da LSE
(2017), do incremento da capacidade regulatória e de que os instrumentos de contestação
encorajem a aprendizagem em vez do antagonismo.
A ressignificação da discricionariedade administrativa, conforme apontado pela
doutrina, que deixaria de ser vista como um poder da administração para ser concebida como
uma técnica decisional, parece pouco ter repercutido no controle. A fiscalização do TCU parece
recair primariamente sobre os atos em si, e não sobre os processos decisórios. Ao revisar (e,
portanto, controlar) todos os atos regulatórios, sem observar qualquer delimitação quanto ao
objeto, nem quanto ao parâmetro, de fiscalização, o TCU debruça-se sobre o conteúdo da
regulação, e não sobre os processos formativos das decisões. Assim, acaba, na prática,
manejando a própria discricionariedade.
Embora se possa identificar, na prática do Tribunal, um profícuo desenvolvimento de
canais cooperativos, ainda não parece ser a lógica prevalecente, como se pode constatar
inclusive por meio da análise de casos apresentada neste trabalho. Embora possa contribuir, e
de fato contribua bastante, com o aprimoramento da governança regulatória, por meio do
levantamento de informações e difusão de boas práticas, o TCU ainda tem uma atuação
preponderantemente impositiva frente à Administração Pública, o que inclui as entidades
reguladoras.
Parece, pois, haver, como observa André Rosilho (2016, p. 321), uma visão cultivada
pelo TCU de que agir impositivamente teria maior valor do que agir em cooperação, o que
pode, segundo o autor, ajudar a explicar a tendência expansionista de suas possibilidades de
controle para além dos limites constitucionais.
A consolidação da atuação do TCU nos moldes aqui apontados parece ter montado um
regime de incentivos para que o regulador seja deferente ao controlador, e não o contrário. Seja
para prevenir o risco de responsabilização, em certa medida imprevisível, como visto, seja para
evitar que o projeto sofra paralisações, os gestores públicos tendem a procurar convergir o
máximo possível com o TCU. Isso se dá tanto por meio de uma postura de pedir o aval prévio
do órgão de controle, como por meio da repetição de soluções apontadas pelo Tribunal em
outras ocasiões.
186
É famosa a passagem de Victor Nunes Leal (1948), segundo a qual, “no estudo do
controle do poder discricionário, a doutrina tem de utilizar instrumentos de precisão, para não
vestir um santo com a roupa do outro”, referindo-se ao controle judicial, que dominava a cena
na época. É justamente o risco de “vestir um santo com a roupa do outro” que faz Eduardo
Jordão (2016), nos tempos atuais, defender a moderação do controle, a fim de evitar que “as
prognoses incertas do administrador sejam substituídas pelas prognoses igualmente incertas do
controlador.”
A substituição do regulador pelo controlador representa uma das patologias
institucionais da gestão estatal da incerteza, conforme apontado por Bogéa (2018), que podem
transformar a inerente incerteza de setores sensíveis, dinâmicos e complexos, como os de
infraestrutura, em insegurança jurídica.
A Nova LINDB é, em certa medida, uma reação pragmática a esse fenômeno de
“substituição” do administrador pelo controlador, ao impor certos ônus do regulador aos órgãos
de controle. A Lei nº 13.655/18 inseriu na LINDB normas gerais sobre a aplicação do Direito
Público, dirigidas a gestores, juízes, advogados públicos e controladores, com o objetivo de
tornar a aplicação das normas menos dogmática e mais realista165.
A partir da compreensão das características do sistema de controle incidente sobre as
agências, não se pode deixar de considerar o risco de o controle exercido pelo TCU reforçar o
paradigma hierárquico e “estatocêntrico” de controle. Em um contexto de baixa mobilização e
participação social, bem como de débil controle parlamentar, a proeminência do controle do
TCU sobre as agências significa, em última análise, que burocratas estão controlando
burocratas. É desse pressuposto que parte a crítica radical dirigida ao projeto republicano de
democracia contestatória, ante a tendência elitista e de baixa responsabilidade política. Schapiro
(2016) adverte que “controles republicanos demais podem ensejar um ambiente elitista de
tomada de decisão e de implementação das políticas públicas”.
A contraface da autonomia das agências é o controle, sob pena de completo
desvirtuamento da função estatal de regulação. A combinação ideal entre autonomia e controle
reforçará a capacidade regulatória. Essa combinação pode (e deve) ser calibrada ao longo do
tempo. É fundamental, contudo, que eventuais ajustes sejam realizados com base em evidências
165 O art. 20 da nova LINDB determina que “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá
com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.” O art.
22 veicula comando, que naturalmente alcança o controlador, no sentido de que a interpretação das normas de
Direito Público leve em consideração as contingências reais e práticas do gestor, inclusive para decidir acerca da
regularidade de condutas e validade de atos.
187
e por meio das normas, em ambiente democrático, e não por meio de substituições à margem
da lei e de derrogação do regime legal de autonomia.
A autonomia conferida pelo legislador às agências, instrumentalizada, como visto, por
uma combinação sofisticada de mecanismos, só poderia ser limitada pela lei. Afinal, apenas a
fonte que confere a autonomia pode limitá-la (ARAGÃO, 2013, p. 336).
O esforço de modernização institucional levado a efeito nas democracias tem em sua
base a concepção de que a ação estatal deve ser resultado de um conjunto estável de interações,
previstas e delimitadas pelo Direito, entre as instituições, sejam elas dos mais diversos níveis e
esferas da Administração Pública, sejam órgãos autônomos de controle, ou o Poder Judiciário.
O resultado disso seria, o que Carlos Ari Sundfeld chama de “Estado de Instituições”166, típico
de democracias mais maduras, que se contrapõe a um “Estado de individualidades
exuberantes”167, característico do Brasil no momento atual, segundo o mesmo professor, em
que há uma grande quantidade de agentes públicos procurando interferir, de maneira
normalmente qualificada e bem-intencionada, porém descoordenada, na gestão pública.
Sendo assim, concertar os diversos órgãos envolvidos com a implementação de políticas
públicas, de maneira a não submeter os agentes públicos ao pânico decisório, sinalizar
claramente para os agentes econômicos e para a sociedade em geral quais são as instâncias
decisórias competentes, conferir efetividade e previsibilidade, mas também adaptabilidade, aos
atos e às políticas estatais, sem abrir mão do controle, sobretudo social, da ação administrativa,
e da rigorosa responsabilização daqueles que efetivamente cometerem atos ilícitos, parece ser
um dos grandes desafios do Direito Público brasileiro contemporâneo.
A contribuição que se pretendeu aportar com o presente trabalho, por óbvio, não diminui
a importância das pesquisas orientadas pelo desejo de compreender as razões do fenômeno
caracterizado pela substituição do regulador pelo controlador, nem dos estudos que visem a
mensurar os benefícios e malefícios das intervenções dos controladores. Pelo contrário.
Acredita-se que esses esforços são interdependentes e podem, conjuntamente, estimular
reflexões sobre o aprimoramento da regulação e da gestão pública no Brasil.
166 A expressão foi utilizada em palestra proferida no evento “Eficiência da gestão pública e instituições de
controle”, promovido pela Fundação Fernando Henrique Cardoso, em 15/09/2018, cuja íntegra está disponível em:
http://fundacaofhc.org.br/iniciativas/debates/eficiencia-da-gestao-publica-e-instituicoes-de-controle 167 Idem.
188
REFERÊNCIAS
ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presidencialismo de coalizão: o dilema
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ANEXO – Acórdãos do Plenário do TCU analisados na pesquisa
1) Acórdão nº 1.703/2004
2) Acórdão nº 715/2008
3) Acórdão nº 1.201/2009
4) Acórdão nº 2.089/2009
5) Acórdão nº 1.313/2010
6) Acórdão nº 2.261/2011
7) Acórdão nº 3.232/2011
8) Acórdão nº 157/2012
9) Acórdão nº 2.759/2012
10) Acórdão nº 224/2013
11) Acórdão nº 402/2013
12) Acórdão nº 2.466/2013
13) Acórdão nº 2.666/2013
14) Acórdão nº 3.026/2013
15) Acórdão nº 3.237/2013
16) Acórdão nº 7.290/2013
17) Acórdão nº 73/2014
18) Acórdão nº 548/2014
19) Acórdão nº 2.905/2014
20) Acórdão nº 240/2015
21) Acórdão nº 1.215/2015
22) Acórdão nº 1.293/2015
23) Acórdão nº 283/2016
24) Acórdão nº 644/2016
25) Acórdão nº 946/2016
26) Acórdão nº 738/2017
27) Acórdão nº 2.121/2017
28) Acórdão nº 308/2018
29) Acórdão nº 672/2018
30) Acórdão nº 1.174/2018
31) Acórdão nº 1.704/2018