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i UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO O TEATRO DE JOSÉ DE ANCHIETA ARTE E PEDAGOGIA NO BRASIL COLÔNIA Autor: Paulo Romualdo Hernandes Orientador: Prof. Dr. Joaquim Brasil Fontes Júnior Campinas, SP 2001 Este exemplar corresponde à redação final da dissertação defendida por Paulo Romualdo Hernandes e aprovada pela Comissão Julgadora. Data: ____/____/____ Assinatura: _______________________ COMISSÃO JULGADORA: _____________________________________________ Prof> Dr. Joaquim Brasil Fontes Júnior _____________________________________________ Profa. Dra. Eveline Borges Itapura de Miranda ______________________________________________ Profa. Dra. Roseli Aparecida Cação Fontana

o Teatro de José de Anchieta

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO

    DISSERTAO DE MESTRADO

    O TEATRO DE JOS DE ANCHIETA ARTE E PEDAGOGIA NO BRASIL COLNIA

    Autor: Paulo Romualdo Hernandes Orientador: Prof. Dr. Joaquim Brasil Fontes Jnior

    Campinas, SP

    2001

    Este exemplar corresponde redao final da dissertao defendida por Paulo Romualdo Hernandes e aprovada pela Comisso Julgadora. Data: ____/____/____ Assinatura: _______________________ COMISSO JULGADORA: _____________________________________________ Prof> Dr. Joaquim Brasil Fontes Jnior _____________________________________________ Profa. Dra. Eveline Borges Itapura de Miranda ______________________________________________Profa. Dra. Roseli Aparecida Cao Fontana

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    Paulo Romualdo Hernandes, 2001.

    CATALOGAO NA FONTE ELABORADA PELA BIBLIOTECA DA FACULDADE DE EDUCAO/UNICAMP

    Bibliotecrio: Gildenir Carolino Santos - CRB-8/5447

    Hernandes, Paulo Romualdo. H43t O teatro de Jos de Anchieta : arte e pedagogia no Brasil colnia / Paulo Romualdo Hernandes. -- Campinas, SP : [s.n.], 2001. Orientador : Joaquim Brasil Fontes Jnior. Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de

    Campinas, Faculdade de Educao.

    1. Anchieta, Jos de, 1534-1597. 2. Teatro. 3. Educa- o. 4. Arte. 5. Brasil - Colonizao - Histria I. Fontes Jnior, Joaquim Brasil. II. Universidade Estadual de Campinas.

    Faculdade de Educao. III. Ttulo.

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    Jos de Anchieta, um ser especial, um professor

    Sonhava tocar violo, cantar, mas tinha medo. Certo dia, passados

    muitos dias, anos de minha vida, ajudado por um paciente professor, enfrentei o medo e, vendo sangrar

    os meus dedos, ficar rouca a minha voz, realizei o meu sonho, toquei e

    cantei "Aquarela" de Vincius e Toquinho. Que imensurvel,

    inesquecvel e eterna felicidade.

    "Em uma folha qualquer eu desenho um navio de partida. E com alguns bons amigos bebendo de bem com a vida.

    Giro um simples compasso e num instante eu fao um mundo. De uma Amrica a outra fcil passar em um segundo".

    (Aquarela) Toquinho e Vincius de Moraes

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    Maria Lcia e Gabriel, meus amores, companheiros em mais esta empreitada.

    Aos meus queridos, barulhentos e falantes familiares, os Hernandes e os Queiroz Guimares.

    Aos meus queridos amigos que sopram o vento sempre a meu favor: Joaquim Brasil Fontes, Roseli Cao Fontana, Snia

    Giubilei, Marcos Francisco Martins e Marins, Asccio dos Reis Pereira e Fabiana, Anielise.

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    AGRADECIMENTOS

    Ao Prof. Dr. Joaquim Brasil Fontes Jnior pela orientao do trabalho. Prof. Dr. Eveline Borges Itapura de Miranda, Prof. Dr. Roseli Aparecida Cao Fontana, e a Prof. Dr. Mrcia Strazzacapa Hernandez, membros da banca de qualificao e defesa pelas sugestes e contribuies.

    FAPESP - Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo, pelo apoio financeiro e pelos pareceres cientficos sempre importantes.

    Rosngela, bibliotecria da Companhia de Jesus, em Itaici (SP), que alm

    de colocar minha disposio um dos maiores acervos de obras jesuticas, do pas, ainda me possibilitou entrevistar o padre Armando Cardoso, maior conhecedor da vida e obra de Anchieta, hoje com 95 anos de idade e trabalhando como nunca.

    Ao Gil, bibliotecrio da Faculdade de Educao, Unicamp, Cidinha, Nadir,

    Rita, da secretaria de Ps-Graduao que me apoiaram e tornaram sempre as coisas mais fceis.

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    RESUMO

    Esta tese procura colocar em evidncia que, ao contrrio dos postulados de uma crtica tradicional, o teatro anchietano no pode ser circunscrito e compreendido apenas na esfera do pedaggico, pois ele tambm um conjunto de signos postos em movimento no intuito de criar iluses cnicas. neste sentido que ele aqui estudado, no campo da semitica da histria da cultura e de uma tradio do teatro medieval. Esse trabalho de investigao nos leva a concluir que a fora do teatro de Anchieta repousa basicamente num magistral exerccio de signos em que a arte e educao esto indissoluvelmente ligados.

    ABSTRACT

    The present thesis will try to prove that on the contrary of what is assumed in traditional criticism, Anchieta's theatre cannot be restricted and comprehended only within a pedagogic sphere, whereas it is also a collection of signs put in motion with the intention to create scenical illusions. Thereby it is to be studied here, in the area of culture's history semiotics and of a medieval theatre tradition. This research leads into the conclusion that the strength of Anchieta's theatre remains essentially on a perfect practice of signs in which art and education are indissolubly connected.

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    SUMRIO

    PRLOGO.......................................................................................... 1

    JOS DE ANCHIETA: ATOR/PERSONAGEM................................. 7

    EENGAT. A "BOA FALA"............................................................ 21

    VISO PANORMICA DO "AUTO DA PREGAO UNIVERSAL" 35

    O "AUTO DA PREGAO UNIVERSAL": UMA LEITURA ATENTA 49

    ENCONTROS E DESENCONTROS NO PALCO. O

    SENSUALISMO INDGENA... O ESPIRITUALISMO CRISTO......

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    REFERNCIAS.................................................................................. 145

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    PRLOGO

    O Teatro de Anchieta um captulo de nossa histria cultural e espiritual; com

    esse ttulo, ele figura nos bons manuais de literatura brasileira, que nos ensinam

    tratar-se de um tipo de encenao caracterstico do perodo colonial, posto em

    movimento para converter (em nome do cristianismo que a coroa portuguesa tinha

    assumido como misso estender s terras de alm-mar) os viciosos moradores

    daquelas regies relutantes verdadeira f.

    Permitam-me, contudo, iniciar este trabalho assumindo o lugar do Prlogo das

    velhas comdias latinas e proferir, da boca de cena com minha boca de mscara,

    esta pergunta que poderia parecer inquietante no ponto de partida de um trabalho

    que tem por tema o teatro de Anchieta: esse teatro existe, como encenao

    visando exclusivamente a catequese? um teatro pedaggico?

    esse intrigante jogo entre arte, pedagogia, religio, teatro e catecismo, tendo

    como palco ou sala de aula o Brasil quinhentista, que vou tentar encenar nesta

    dissertao.

    O teatro de Anchieta tem sido visto de forma geral por especialistas de

    literatura, teatro, histria, religio, como obra de catequese: um "teatrinho" para o

    catecismo. Mas, seja ele teatrinho-catecismo ou arte dramtica, antes de mais

    nada um acontecimento que se localiza em meio mata atlntica do Brasil no

    sculo XVI. Ao refletir, ento, sobre este evento histrico, sendo ele teatrinho-

    catecismo ou arte dramtica (como Prlogo, tenho o direito de insistir no meu

    tema, repetindo-o, como faziam os velhos comediantes para o gudio de uma

    platia composta de doutos ou incultos romanos), vieram tona os possveis

    encontros e desencontros entre duas culturas totalmente diferentes que se

    reuniam "na sala de aula" em meio a mata ou na representao teatral no adro de

    alguma Igreja de taipa coberta de palha. Os encontros e desencontros essa

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    "dialtica da colonizao" so uma forma do combate travado entre o europeu e

    jesuta Anchieta e o seu sonho ou delrio: a vida que ele queria ensinar o aluno ou

    nativo-espectador a viver. Afrontamento de duas culturas, no palco da selva, ao

    pio dos pssaros, aos guinchos de macacos e rugidos de bestas, silvos de serpes:

    de um lado uma religio velha apenas de mil e quinhentos anos, mas sustentada

    pelo poder das palavras e dos canhes; de outro , o nativo com seus costumes e

    religies talvez muito mais antigos mas nus, e armados apenas de plumas e

    flechas. Passa no ar uma guia carregando nas garras um animal selvagem que

    no sabemos qual seja: isso pode ser apenas um elemento casual para o nosso

    drama ou um vaticnio.

    Para colocar esta reflexo no jogo do combate verbal uma grande dificuldade

    entretanto se impunha: penetrar no dilogo anchietano. Uma grande dificuldade

    que deriva em primeiro lugar da inquietante aura de poder que brilha em torno

    deste beato que ser sem dvida o primeiro santo brasileiro a ser canonizado,

    embora espanhol de nascimento: como dialogar com a divina misso que pulsa

    nestes textos, sem faz-lo de fora, como um etnlogo observando uma religio

    considerada primitiva? Segundo, porque se trata de um texto (dilogo e

    representao) produzido num pas de no-letrados, o Brasil quinhentista,

    tornando, portanto, muito difcil o seu estabelecimento*; e ainda, por que boa

    parte dos dilogos foram feitos na lngua mais falada da costa do Brasil, o tupi.

    Quanto primeira grande dificuldade, relacionada ao nome de seu autor, foi

    preciso antes de mais nada desconstruir este poder de santo, que o sobrecarrega,

    e tentar chegar o mais prximo possvel do homem e talvez dramaturgo Jos de

    Anchieta. Muito embora jamais tenhamos condies de conhecer o verdadeiro

    homem, era preciso chegar o mais perto dele, ou afastar-se dessa imponente e

    brilhante imagem de santo que pode cegar os olhos do leitor ou estudioso de suas

    obras. Essa tarefa se tornou relativamente possvel graas existncia de cartas

    outras informaes, poemas e epopias, alm da leitura de vrias biografias da

    * O estabelecimento de um texto medieval tarefa complicada; na maioria dos textos, caso do teatro de Anchieta, realizado a partir de manuscritos que apresentam dificuldades, como lacunas e borres, partes faltando, vazios, que acabam sendo completadas, corrigidas pelos copiadores e por aqueles que tm a funo de estabelecer estes textos. Um estudioso de obras medievais, portanto, dificilmente, ter em mos, ou vista, o texto original.

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    poca e outras atuais. Foi necessrio, tambm exercer um mtier de novelista,

    tentando imaginar o homem Anchieta vivendo a histria quinhentista portuguesa e

    brasileira, e, ao mesmo tempo, fazer-se ensasta e pesquisador-romancista,

    divagando sobre que tipo de formao teatral que poderia ter tido o estudante e

    provvel apreciador do teatro portugus da poca.

    Quanto ao estabelecimento do texto, o dilogo e a sua representao, contei,

    felizmente, com o hbito que tinham os jesutas em registrar todos os passos

    dados pela Companhia de Jesus pelos lugares em que passou, onde trabalhou,

    atravs de cartas trimestrais regulares, alm de informaes, histrias, realizaes

    emitidas pelos seus principais. Especificamente quanto ao estabelecimento do

    texto do teatro em si, o que facilitou o trabalho foi o costume que tinham os

    homens da Companhia de espalhar por todos os lugares em que estavam

    presentes, cpias das peas que tinham causado um bom efeito no espectador,

    principalmente no indgena, caso que reputo serem as peas de Anchieta, a fim de

    que fossem usadas para representao nesses lugares. Assim, temos uma grande

    quantidade de textos autgrafos e cpias feitas na poca das peas que foram

    reunidas em Teatro Obras Completas pelo maior especialista vivo em Anchieta,

    o Padre Armando Cardoso, que foi base, suporte, para as minhas reflexes.

    Outra grande dificuldade que se apresentou ao entrar no texto est relacionada

    lngua em que ele foi escrito, o tupi, que era para mim um desafio quase

    intransponvel, no sendo eu especialista em idiomas indgenas, antigos ou

    modernos. Existem no entanto primorosas tradues do teatro de Anchieta, entre

    elas a do padre Cardoso j citado, como tambm a de Eduardo Navarro,

    conhecido estudioso de tupi, para citar as mais atuais, ou as de Maria de L. de

    Paula Martins e Guilherme de Almeida, um pouco mais antigas, entre outras. A

    partir destas tradues fiz uma leitura atenta, constituindo quase que uma nova

    verso, pois as preocupaes destes tradutores eram muito diferentes das minhas

    por terem sido executadas em outro solo ideolgicos e conduzidas por outros

    objetivos.

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    E aqui o Prlogo retoma um dos seus motes, provando seu talento de

    comediante: seja arte dramtica ou catecismo, o teatro de Anchieta um

    acontecimento histrico; seja representao/encenao pedaggica e portanto

    aula de catequese, ele tem enredo, argumento, assunto prprio para um pblico

    especfico, e assim uma forma de representao cnica situada no tempo: para

    aproximar-se dele preciso consider-lo na ordem dos acontecimentos e dos

    efeitos. Como faz-lo?

    Em primeiro lugar, muita leitura muito atenta das tradues existentes.

    Tentativas de recuperar os seres nas palavras pronunciadas... e ouvidas; e

    perguntar: quem as disse, quando, dirigindo-se a quem? Que ser, homem, animal

    ou divindade designa o personagem Guaixar (chefe Tamoio) ao se apresentar no

    Auto da Pregao Universal, e igualmente no Auto de So Loureno, como: xe

    aangus mixyra? As tradues registram: eu sou o grande diabo ou diabo

    assado, o que imediatamente compreendido pelo leitor/espectador cristo, mas

    e para o indgena, pblico alvo tanto do teatro ou do "teatrinho catecismo" falado

    em tupi, o que poderia significar o termo diabo? Dispunha ele desse conceito

    moderno, cristo, articulado dialtica do bem e do mal? Saberemos algum dia o

    que foi, para o habitante do Brasil no sculo XVI, aangus mixyra?

    Como se v, tratava-se de um conjunto de textos crivado de armadilhas, no

    qual entretanto eu desejava penetrar, valendo-me, obviamente, de muita ajuda.

    Alm de todas as tradues j citadas acima, foi preciso espalhar pela mesa de

    estudos a opinio dos especialistas em tupi, dos dicionrios, dos vocabulrios

    (entre eles alguns do sculo XVI e XVII que se encontram manuscritos na

    Biblioteca Nacional), mtodos, gramticas (entre elas a de Anchieta para a lngua

    mais falada na costa do Brasil), de alguns cronistas da poca. Isto foi feito e

    revelou, acredito, muito segredos contidos tanto no teatro, no dilogo, quanto na

    convivncia entre nativos e estrangeiros e seus combates: ideolgicos, culturais,

    sociais, polticos. Recuperada, pelo menos aproximadamente, a materialidade das

    palavras temos; assim, posso agora revelar que Xe aangus mixyra quer dizer

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    aproximadamente Eu sou o grande esprito malfazejo das matas assado.

    Surgiria, como se v, um novo desafio: que poderia significar para o

    espectador indgena daquele teatro e/ou aula de catecismo um chefe tamoio que

    se diz esprito malfazejo das matas assado? Se dos nossos dias um poltico a si

    mesmo designasse como grande diabo assado, fatalmente, sem maiores

    explicaes, o ouvinte que pertencesse ao meio social do falante entenderia

    rapidamente sem maiores explicaes. Certamente, tambm, na atmosfera social

    do Brasil quinhentista um personagem apresentando-se para o pblico (sobretudo

    o indgena) como sendo um chefe indgena e ao mesmo tempo um esprito

    malfazejo das matas (talvez at para o no indgena) sua fala seria entendida da

    mesma forma. Assim, foi preciso, aps recuperar os referentes das palavras ditas

    pelos personagens do dilogo anchietano, recompor de forma aproximada o meio

    social em que foram ditas, pois s assim seria possvel perceber o seu efeito, o

    seu significado, naquele momento e para aquele espectador. Ser um esprito

    malfazejo das matas significa entre outras coisas ser algum, no caso um chefe

    tamoio, que morreu como um covarde e efeminado (no no sentido que estas

    palavras teriam hoje e sim naquele para o indgena do Brasil quinhentista) e por

    isso mesmo no podia ir para a "boa" terra dos ancestrais. Para trazer de volta o

    sentido de expresses como aangus assado e sua "vida" social no universo das

    matas brasileiras quinhentista, contei com a ajuda de cronistas da poca: o prprio

    Anchieta, Manoel da Nobrega, Jean de Lery, Andr Thevet, Simo de

    Vasconcelos, Hans Staden entre outros; tambm me apoiei nos trabalhos de

    especialistas, socilogos e antroplogos contemporneos: A. Metraux, Florestan

    Fernandes, Srgio Buarque de Holanda; e de etnlogos: Pierre Clastres e Claude

    Lvi-Strauss. Ao repatriar ou trazer de volta ao solo da lngua portuguesa o

    aangus assado e outros elementos do universo indgena presentes no teatro

    anchietano, foi possvel perceber alguns encontros e desencontros existentes nos

    intervalos entre a vida e a ideologia crist medieval, espiritualista, e a vida e

    ideologia indgena, sensualista.

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    Assim, enquanto o trabalho avanava, eu me sentia cada vez um pouco mais

    prximo de imaginar como teria sido a realidade social vivida pelo seu autor, o

    Anchieta dramaturgo ou professor de catecismo; um pouco mais longe, portanto,

    daquela outra imagem poderosa de santo e mais perto das palavras e sentidos

    que poderiam ter no momento em que e para quem foram ditas; mais longe

    daquilo que se quer que elas tenham dito. Tratando-se de tarefa complicada s

    possvel a longo prazo, rodei, neste mestrado que deve ser realizado em dois

    anos e meio, em torno de um nico texto: o segundo ato do Auto da Pregao

    Universal.

    A escolha foi motivada por vrias razes: trata-se de um autgrafo redigido em

    tupi, o que significa dizer que contou com a participao (atuao e platia)

    indgenas; ele considerado o primeiro auto de Anchieta, no muito extenso,

    contando de pouco mais de quatrocentos verso, tendo sido retomado parcialmente

    ou inteiro em vrios outros autos; completo, ou seja, tem comeo, meio e fim,

    apresentando, assim autonomia semntico-teatral.

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    JOS DE ANCHIETA: ATOR/PERSONAGEM

    A construo de uma imagem1.

    O tempo incorporou Jos de Anchieta, definitivamente histria da colonizao

    do Brasil; em torno do seu nome pulsa uma aura de eptetos, quase sempre

    valorativos, embora pontuada aqui e ali por uma suspeita ou acusao . De

    qualquer modo, algum venervel, imensa figura de cristo e catlico, baluarte

    da religio nas selvas do Novo Mundo, vista como um dos principais responsveis

    pela transformao do nativo brasileiro e do Brasil num pas portugus, catlico e

    cristo. o que pensam tanto aqueles que enfatizam o lado positivo dessa

    empresa (ele vinha salvar as naes indgenas da barbrie em que viviam),

    quanto aqueles que detectam na ao dos missionrios uma das razes do

    desterro espiritual em que vivemos e do aniquilamento da cultura primitiva.

    V-se em Anchieta um dos fundadores da maior cidade do Brasil: So Paulo, e

    tambm da cidade do Rio de Janeiro. um beato em processo de santificao: o

    primeiro santo brasileiro? ainda um heri nacional que ajudou a Mem de S,

    terceiro governador do Brasil Colnia, a expulsar os franceses do litoral carioca.

    Mas por que no v-lo tambm como um anti-heri, a esse homem que ajudou

    a submeter e subjugar uma nao de dimenses continentais ao domnio e

    explorao da Coroa portuguesa e da Igreja Catlica? Autor de uma gramtica em

    tupi, da lngua mais falada no Brasil e autor de textos descritivos da fauna e da

    1 E o padre chamou a vbora e veio a seu chamado; assentou-se e tomou-a com a sua mo, e a ps no regao, afagando-a; tomou disto motivo para falar aos ndios de Deus, e lhes encarecer como todas as coisas, at aquele animal to feroz, obedeciam a quem obedecia e guardava os mandamentos de Deus. E passado algum tempo nesta prtica, deitou uma beno cobra, e a mandou fosse quietamente, como fez.. Pero Rodrigues, Vida do Padre Jos de Anchieta da Companhia de Jesus. So Paulo: Loyola. 1988 p. 183. Uma vez voltando eu para Piratininga de certa povoao de portugueses, para onde a obedincia me fizera ir com outro irmo a ensinar a doutrina, encontrei uma cobra enroscada no caminho; fazendo o sinal da cruz, bati-lhe com o basto e matei-a. Pouco depois comearam a sair outros do ventre materno: e sacudindo eu o cadver, apareceram outros filhos ainda, em nmero de onze, todos animados e j perfeitos, exceto dois. ...s descansamos em Jesus, Senhor nosso, que o nico que pode fazer com que nenhum mal soframos, andando assim por cima de serpentes. Jos de Anchieta. Cartas, Informaes, Fragmentos Histricos e Sermes. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo. 1988 p. 125.

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    flora brasileira, Anchieta perguntam-se seus detratores no pode tambm ser

    responsabilizado pela destruio da cultura primitiva e o desaparecimento de uma

    lngua em que se diziam mitos, oraes e, sem dvida, a histria de um povo?

    Inscrito no panteo da literatura brasileira como um de nossos primeiros

    poetas, Anchieta, autor de um contraditrio teatro-catequese, tambm um ator

    que atua no desenrolar deste drama que a nossa histria: venervel e poderoso

    personagem, um medieval na alba do Renascimento, convertendo selvagens nas

    florestas do Novo Mundo. Mas, se deixarmos de lado esse personagem/autor/ator,

    quem seria o homem Jos de Anchieta?

    No sei se possvel responder a essa questo: Jos de Anchieta um

    constructo verbal, um texto, em suma, obsessivamente feito e refeito por bigrafos

    como Pero Rodriguez, Quiricio Caxa, Ferno Cardim, entre outros que conviveram

    com ele e que j iniciaram a inveno de uma imagem com caractersticas

    prprias do seu tempo. O mesmo fizeram posteriormente os especialistas em

    teatro, literatura, histria, artes plsticas ou os religiosos que recriaram essa figura

    a partir da ideologia de sua prpria poca.

    Esta imagem foi se formando gradualmente e comeou a se compor j durante

    sua vida, de forma s vezes contraditria: hoje ele seria o santo de que a Igreja

    Catlica tanto necessita; houve o momento em que se encarnou nele o heri

    nacional; para uma concepo histrica da literatura ele primeiro estrangeiro a

    escrever em brasileiro. Mscaras, portanto: o Evangelizador, o Poeta, o

    Dramaturgo, mas tambm o Anti-Heri. Mscaras que acabaram por soterrar a

    realidade e a materialidade de homem de um tempo e lugares determinados e que

    foi dialeticamente sendo transformado e transformando as idias, a histria das

    comunidades em que viveu, assim como a sua histria e as obras que deixou.

    Estudando o mundo lendrio nascido das conquistas castelhanas na Amrica,

    Srgio Buarque de Holanda refere-se a algumas biografias do Padre Anchieta

    (quase hagiografias), inscrevendo-as num gnero que, por definio, deve dar

    crdito ao sobrenatural, mas chamando tambm a ateno para o fato de que

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    certas idias bem precisas e at pragmticas servissem de reforo simples

    devoo visionria sempre aberta possibilidade de raros portentos, isto ,

    milagres esses relatos teriam assim uma ambio mais definida:

    como seja a de ver eternamente glorificada a obra missionria dos inacianos nesta parte do novo mundo atravs da canonizao de um de seus maiores apstolos de sorte que o Brasil nada ficasse a dever s ndias. Anchieta canarino de ascendncia basca seria como a rplica americana de So Francisco Xavier, outro basco2.

    De uma pequena ilha no Atlntico para um centro estudantil portugus

    As poderosas mscaras com que o tempo foi vestindo o personagem/ator

    Anchieta, representando-o ora ao lado do bem: o santo; ou, ento, do mal: o anti-

    heri, fizeram desaparecer completamente do cenrio como poderia ter sido a vida

    do menino Anchieta no vilarejo em que ele nasceu.

    So Cristovo da Laguna, Tenerife, numa das ilhas Canrias: neste lugar

    iniciou, certamente, sua formao, no interior de uma cultura, de uma religio, de

    uma concepo de arte e teatro.

    O santo ou anti-heri em cena faz vir mente aquela figura velha e encurvada

    escrevendo poemas na areia, Virgem Maria, apagando com seu brilho intenso

    outras possveis figuras e imagens de Anchieta. Brilho fulminante que faz

    desaparecer da vida do menino/personagem (na imaginao do pesquisador-

    romancista, desta dissertao/encenao) aquele perodo que para todo menino

    o de maior deslumbramento e que deve, com certeza, fazer parte das suas

    criaes artsticas e de sua viso de mundo: as festas populares prprias do

    lugarejo em que nasceu, pantomimas, teatro, msicas, o riso, as rezas, os teatros

    de fantoches que viveu nas Ilhas Canrias, que foram colonizadas tanto por

    portugueses e sua cultura, como por espanhis.

    Bisneto de conquistadores da ilha (sua me Mncia Diaz de Clavijo y Llarena

    era parente daqueles que so considerados como os primeiros colonizadores da

    2 Srgio Buarque de Holanda, Viso do Paraso. So Paulo: Brasiliense. 1994 p. 135.

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    ilha), Anchieta convive at seus quatorze anos com um ambiente de mltiplas

    culturas (africanas, europias, nativas), recm se descobrindo e se modificando,

    numa atmosfera no muito diferente da que mais tarde encontraria no Brasil. O

    pai, Juan de Anchieta, funcionrio do Governo, proveniente da Biscaia na

    Espanha, era parente distante de Incio de Loyola, o fundador da Companhia de

    Jesus.

    Aos quatorze anos de idade saiu do pequeno vilarejo em que vivia para ir com

    seu meio irmo mais velho, filho do primeiro casamento de sua me, Pedro

    Nunes, para a metrpole quinhentista, europia e portuguesa, Coimbra. Coimbra

    neste momento o grande centro estudantil de Portugal e um dos maiores centros

    da Europa. Por l se discute de tudo um pouco, com as idias humanistas

    fervilhando, vindas principalmente da Frana, trazidas por Andr de Gouveia que

    foi reitor do Colgio de Guienne, em Bourdeux e orientador do Colgio Real, mais

    tarde das "Artes", de Coimbra.

    Anchieta ingressa neste Colgio em 1548, perodo de maior efervescncia das

    idias humanistas. Um ano antes chegara ao Colgio Real o professor e

    dramaturgo escocs Jorge Buchanan que segundo Luciana Stegnano Picchio,

    vinha ensinar e tinha muitas esperanas de ver as representaes pblicas de suas adaptaes de Eurpides, um Alceste e uma Media, e sobretudo das suas tragdias originais, o Jephthes e o Baptiste, j levadas cena em Bordeux, como recorda Montaigne nos ssais.3

    Teve como professor outro renomado humanista, Diogo de Teive, tambm

    dramaturgo, cujas peas colocavam em cena temas bblicos como Golias, mas

    que j apresentavam caractersticas das tragicomdias, que alcanariam seu

    esplendor atravs dos jesutas. O drama humanista coloca em cena no final da

    idade mdia e incio da moderna o teatro "profissional organizado e inspirado na

    esttica e nos temas das tragdias e comdias do antigo teatro greco/romano.

    Representaes teatrais que aconteciam em lugares apropriados, as salas de

    teatro, os sales das cortes e contavam com um espectador especfico, o homem

    culto.

    3 Luciana Stegagno Picchio. Histria do Teatro Portugus. Lisboa: Portuglia Editora.[sd]

  • 11

    Se fssemos escolher um marco para a "Renascena" do teatro, a data seria 1486. o ano em que a primeira tragdia de Sneca foi montada em Roma pelos humanistas e a primeira comdia de Plauto pelo duque de Ferrara. E foi nesse ano tambm que saiu do prelo a De Architectura (Dez Livros sobre a Arquitetura) de Vitrvio, uma contribuio essencial para plasmar o palco e o teatro segundo o modelo da Antiguidade. 4

    O teatro humanista se contraps ao teatro medieval, encenaes populares

    com temas da religio crist. Representao pedaggica que colocava em cena

    os bons e maus costumes, os mistrios, a vida dos mrtires e dos santos da Igreja

    Catlica, tinha lugar nos adros das igrejas, nas praas das vilas e cidades

    europias, nos dias de festas religiosas. Anchieta, homem culto, mas religioso,

    teve certamente, que passar por esta contradio.

    Um grande terremoto, ideolgico, e no fenmeno natural, devasta Coimbra

    nesses tempos: a Inquisio. Diogo da Teive, considerado calvinista e heterodoxo,

    preso e pelo mesmo motivo Buchanan expulso de Portugal. Este fenmeno

    soterra, acredito, o mpeto do teatro do Renascimento em Portugal e, dos seus

    escombros se fortalecem os autos e atos de f de esttica medieval.

    Neste momento difcil, porque passa Coimbra, preciso fazer entrar em cena,

    a voz da imaginao do pesquisador-romancista. O jovem Anchieta, ento com

    dezessete anos, deve ter sofrido muito com este abalo. Considerado um grande

    latinista, j no Brasil iria escrever uma epopia, De Gestis Men de S, em latim e

    inspirada na Eneida, de Virglio. Era no mnimo conhecedor do Grego, j que

    comparou algumas caractersticas entre o tupi e essa lngua. Com certeza

    apreciador das peas teatrais que aconteciam nos ptios do Colgio das "Artes"

    realizadas pelos seus professores Buchanan e Diogo da Teive, pois mais tarde se

    tornaria um grande poeta e criador teatral.

    Alm do que era filho de cristo novos, por parte de sua me sendo o irmo

    Pedro, que o acompanhou Coimbra, cristo novo inteiro. Cristos novos e seus

    parentes que foram duramente perseguidos pelos tribunais do Santo Ofcio. Em

    4 Margot Berthold, Histria Mundial do Teatro. So Paulo: Editora Perspectiva, 2000 p. 270.

  • 12

    1551, Anchieta ir ingressar em uma nova ordem religiosa que est surgindo na

    Europa, a Companhia de Jesus, que convite do Rei D. Joo III, est se

    fortalecendo e crescendo em Portugal, principalmente nas colnias portuguesas.

    J que o pesquisador-romancista entrou em cena, dando voz imaginao,

    preciso deixa-lo continuar com seu delrio criativo. Talvez o momento difcil por

    que passava Coimbra, perigoso principalmente para os humanistas, cristos

    novos ou parentes de cristos novos, o prestgio que tinham os jesutas para o rei

    D. Joo III e o prestgio que tinha Incio de Loyola junto Igreja Catlica e aos

    reis espanhis, tenham influenciado e muito na deciso do jovem de dezessete

    anos para aderir de corpo e alma Companhia de Jesus e a seus trabalhos de

    evangelizao e propagao da f crist e da ideologia catlica pelas longnquas

    colnias de Portugal. importante mencionar ainda que o fundador desta ordem,

    Incio de Loyola, teria salvo da morte o pai de Anchieta, condenado por participar

    da revolta dos Comuneros quando, ento, ele se viu obrigado a transferir-se para

    Tenerife, segundo biografia realizada pelo Padre Viotti.

    Do efervescente centro estudantil portugus floresta atlntica

    Em 1553, com vinte um anos, Anchieta, atravessaria o perigoso Oceano

    Atlntico, travessia sem dvida precria, desembarcando na Bahia, juntamente

    com outros padres e irmos da Companhia de Jesus, que tambm doentes,

    buscavam nos ares do Brasil, segundo indicaes de mdicos da poca, sua

    nica esperana de cura. Entre esse padres e irmos jesutas estava Luiz da Gr,

    que se tornaria o segundo provincial do Brasil em substituio a Manoel da

    Nbrega, ele que tinha sido o reitor do Colgio das Artes em Coimbra a partir de

    setembro de 1550 e com quem Anchieta estudou, no perodo do grande perigo.

    Estava tambm nesta embarcao o segundo governador geral do Brasil Colnia,

    D. Duarte da Costa5

    5 Viotti, Jos de Anchieta, [sl] Tenenge; Fundao Emlio Odebrecht, Sociedade Brasileira de Educao, 1986, p14

  • 13

    A armada que traria Jos de Anchieta partiu de Lisboa a 8 de maio de 1553,

    chegando ao Brasil em 13 de julho deste mesmo ano. A viagem deve ter sido

    tima, comparada s navegaes da poca, movidas pela inconstncia dos

    ventos, das calmarias, tempestades e dos tripulantes, viagens que quase sempre

    duravam muitos meses e vitimavam com escorbuto muitos de seus navegantes.

    As viagens eram de tal maneira sofrveis que chegar ao Brasil e recuperar a sade

    era uma das "vises do paraso" que acabavam tendo os europeus das Amricas,

    como nos conta Srgio Buarque de Holanda em seu livro:

    Era principalmente (no, porm, exclusivamente no caso do escorbuto que o marinheiro, aps navegao extenuante, efetuada em condies que muito deixariam a desejar do ponto de vista da higiene, sujeito a dietas de todo inadequadas, combalido de corpo e esprito, teria probabilidades maiores de um restabelecimento capaz de impressionar pela rapidez. Compreende-se pois como, iniciadas as extensas navegaes atlnticas, ao largo de mares ainda mal praticados, onde a escassa familiaridade com as correntes, os ventos, at mesmo as possveis direes, expunha os veleiros a inesperada calmarias ou a demoras excessivamente prolongadas (e era nestes casos que a "peste do mar" se fazia sentir com mais sanha), o restabelecimento radical, obtido algumas vezes logo aps o desembarque, teria todas as aparncias de um sucesso misterioso e sobrenatural. Tanto mais quanto se tratava de praga ainda mal conhecida dos viajantes, habituados muitas vezes a navegaes vista da terra, onde eram numerosas as ocasies de desembarque.6

    Anchieta teria se sentido to bem na viagem que se ocupou da cozinha da nau

    em que estava7.

    Desembarcando na Bahia deve ter trazido consigo, como qualquer jovem,

    latente na memria as lembranas e ideologias do seu tempo, e do lugar onde

    nascera como tambm do perodo que vivera na metrpole portuguesa: a

    mudana para Coimbra, os ensinamentos que tivera na escola jesuta, e ainda, o

    que era prprio de suas aptides: uma facilidade e um olhar aguado para

    aprender novas lnguas (ele desenvolver rapidamente uma gramtica do Tupi,

    aos moldes das latinas), mas ainda que escrevia versos em castelhano, assim

    6 Srgio Buarque de Holanda, op. cit. p 208. 7 Viotti, op. cit. p 14.

  • 14

    como em portugus, e em latim. Sua lngua nativa era o basco. Vivendo em um

    lugar desconhecido e em tudo diferente daquele de Coimbra, especialmente,

    aproveitando-se das aptides que tinha para as letras e o olhar aguado,

    escreveu, entre dificuldades como a de no dispor de tinta e papel, poemas, autos

    e cartas histricas, religiosas e poticas com descries da vida e da flora e fauna

    brasileiras. Alm disso comps um teatro em vrias lnguas, no meio da mata

    Atlntica, entre homens nativos e estrangeiros (estranhos ao local como ele), que

    conseguia misturar personagens e temas nativos e europeus.

    Anchieta, no Brasil, ficou na Bahia at outubro de 1553, lugar em que iniciara

    assim que chegou a estudar o tupi, a lngua mais falada da costa. Em outubro

    embarca com o padre Leonardo Nunes, que viera com o padre Manoel da

    Nobrega, 1549, para So Vicente, lugar em que a amizade dos portugueses com

    os nativos j se fazia intensa e onde os padres jesutas esto tendo mais sucesso.

    A caravela em que viajam aoitada por uma terrvel tempestade em Abrolhos,

    correndo srios riscos de naufrgio, mas conseguem se salvar chegando no

    Esprito Santo para reparar os estragos. Foram ajudados pelos ndios certamente

    porque o padre Leonardo Nunes, e talvez at mesmo Anchieta, j sabiam falar a

    lngua deles, seguindo viagem, chegando em So Vicente em 24 de Dezembro de

    1553.

    De So Vicente segue com o padre Miguel Paiva e com mais doze ou treze

    irmos jesutas, para a aldeia nova de Piratininga e participa da construo de

    uma casa e uma igreja pequenas e muito frias como as descreve Anchieta,

    recebendo o nome de So Paulo, por ser inaugurada com uma missa em 25 de

    janeiro de 1554, dia que se deu a converso deste santo ao cristianismo. Na

    construo da casa e da igreja so ajudados pelos ndios do lugar, cujos filhos

    iriam ser catequizados. Inicia imediatamente o ensino de latim para os irmos

    jesutas que na sua maioria foram recrutados pelo Padre Leonardo Nunes para a

    Companhia de Jesus no Brasil. Homens que viviam aqui antes mesmo da

    chegada dos jesutas, alguns deles por serem "bons lnguas" como o caso dos

    alunos de latim, de Anchieta, que acabaram morrendo entre os ndios e se

  • 15

    tornando mrtires, Pero Crreia e Joo de Souza. Com certeza houve entre os

    irmos uma troca muito interessante, o grande latinista, e os "bons lnguas"

    resultando, j em 1555, uma gramtica da lngua mais falada no Brasil, feita pelo

    irmo Anchieta, aos moldes da gramtica latina, que se espalhou rapidamente por

    todos os colgios da Companhia e em 1595, contava com uma primeira edio

    em Portugal. O personagem Anchieta fala, ensina. O jovem Anchieta segue os

    ensinamentos da sua ordem: ouve, aprende. Figura na constituio da Companhia desenvolvida por seus fundadores o famoso Perinde ac

    cadaver (assim como um cadver), indicando que seus membros devem acima de tudo

    obedincia aos seus superiores na Igreja e na Companhia e respeito aos moradores dos lugares

    por eles visitados. Acima de tudo ouvir, ou antes, misturar prudncia e audcia nas misses: S

    tudo a todos...8.

    Ao chegar ao Brasil em 1549, a Ordem dos Jesutas, de formao recente, contava com muito

    poucos adeptos, vindo para este pas com alguns poucos padres e irmos, com esta formao

    ideolgica de submisso aos povos do lugar a fim de claramente poder conquist-los. Dificilmente

    poderiam se impor como queremos crer hoje e fazer as mudanas que muitas vezes imaginamos

    em nossas escolas e aulas de histria ou literatura portuguesa de forma repentina e to eficiente,

    transformando um lugar de dimenses continentais, a cultura desse povo, que tinha sua

    organizao cultural, e que de repente, como obra de um santo, como numa magia, passaria a

    falar o portugus, abandonar os seus tradicionais costumes para viver segundo os cristos.

    Anchieta entra para a Companhia de Jesus em 1551 e chega ao Brasil em 1553; isto quer dizer

    que ele traz certamente consigo este espirito: prudncia e audcia junto ao povo do lugar, s tudo

    a todos: assim, no difcil imaginar que seu teatro fale muito mais a lngua e a linguagem do

    povo deste lugar do que propriamente a sua prpria lngua ou a que hoje se pretende ter sido sua.

    Vestido com as mscaras poderosas de um personagem/ator santo ou anti-

    heri, Anchieta algum que produziu um teatro em terras brasileiras com o nico

    objetivo de catequizar e evangelizar os ndios e os colonos. Fazendo uso deste

    forte instrumento pedaggico que a representao das cenas crists, faladas em

    tupi, realizada com personagens e atores indgenas e europeus, msicas e danas

    indgenas e tambm aquelas trazidas na sua memria, transformou o Brasil "(este

    pas continente) "pago" em catlico e cristo. Como se esta comunidade no

    tivesse existncia passada ou mesmo presente e reconhecesse em Jos de

    Anchieta algum superior (como visto hoje) que

    8 Jean Lacouture. Os Jesutas: 1. Os conquistadores; Porto Alegre: L&PM, 1994, p 111

  • 16

    lhes ensinasse uma cultura e uma maneira de viver. Como se essa comunidade

    que existia ou que se formara muito antes da chegada dos jesutas no contasse

    com pessoas vivas e atuantes: ndios guerreiros e canibais, homens europeus

    degredados, fugitivos da inquisio, donos de escravos, aventureiros, religiosos, e

    religiosos sem vocao, visitadores da Companhia de Jesus, do Santo Ofcio,

    como se estas pessoas fossem simplesmente alunos bem comportados das

    encenaes religiosas feitas por um santo ou anti-heri. Como se os ndios

    guerreiros, que tinham na guerra e na vingana talvez a principal forma de

    organizao de sua sociedade, fossem meninos mal ajuizados indo para o teatro

    levar caro.

    Nada fcil foi a vida e o trabalho do irmo Anchieta em Piratininga, vivendo em

    uma casinha juntamente com outras 20 pessoas, como ele mesmo conta em sua

    primeira carta, lugar que tinha catorze metros de comprimento com dez de largura,

    feita de pau e barro e coberta de palhas, que servia de dormitrio, despensa,

    enfermaria, refeitrio, cozinha, e sala de aula. Sala de aula que muitas vezes

    acabava sendo ao ar livre, para fugir do fumo que ficava na "casinha". Entenda-se:

    no frio da mata e dos rios que serpenteavam o lugar. Alunos, quase sempre

    meninos ndios, semi-nmades, que de uma hora para outra desapareciam junto

    com seus pais nas migraes da tribo. Constantes ataques de ndios inimigos dos

    tupinambs, seus amigos, entre eles principalmente os carijs. Alm disso a

    grande solido de um lugar estranho ao seu, sua cultura, solido que Anchieta

    descreveu para os seus colegas de Portugal, preparando aqueles que viriam.

    Tambm vos digo que no basta com qualquer fervor sair de Coimbra, seno que necessrio trazer alforge cheio de virtudes adquiridas, porque de verdade os trabalhos que a Companhia tem nesta terra so grandes e acontece andar um irmo entre os ndios seis, sete meses no meio da maldade e seus ministros e sem ter outro com quem conversar seno com eles; donde convm ser santo para ser irmo da Companhia9.

    9 Jos de Anchieta. Cartas, Informaes, Fragmentos Histricos e Sermes. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo Editora da Universidade de So Paulo. 1988, p 74

  • 17

    Jos de Anchieta, o jovem de 21 anos que chegou a Salvador na Bahia em

    1553, como irmo da Companhia de Jesus, viveu e conviveu com os povos do

    Brasil, sejam eles ndios, inimigos dos jesutas e portugueses, como os tamoios de

    Iperoig, hoje, Ubatuba, com quem estivera por alguns meses negociando as

    pazes, sejam amigos como os Temimin do Espirito Santo ou "escravos" aqueles,

    agregados nos aldeamentos. Viera para ensinar, catequizar, mas teve que

    aprender, ouvir "s tudo a todos , aprender a lngua do pas para se

    comunicar e compreender sobre as coisas do lugar. Manejando a lngua, entrava-

    se mais facilmente no que poderamos chamar de ideologia indgena: seus mitos,

    religio, sua organizao social. Somente ento se poderia ensinar os bons e

    criticar os maus costumes segundo evidentemente uma viso crist ,valendo-

    se de festas religiosas e encenaes teatrais. O padre e dramaturgo Anchieta

    criou dilogos teatrais com personagens da vida social indgena para falar na

    lngua deles e ao seu espectador sobre a maneira boa de viver (nos

    aldeamentos junto aos abar) e o que "mau" (os rituais e costumes indgenas):

    neste sentido cria um teatro evidentemente pedaggico, no sentido em que

    tambm eram os autos religiosos e de moralidades medievais.

    Anchieta morre em 1597 em Reritiba. Ele nos legou escritos em tupi, um teatro,

    poesias e as cartas que contm informaes preciosas sobre a vida, os

    costumes, a religio, a sociedade indgena, como tambm sobre sua interveno

    nesse mundo novo.

    Imago

    Pero Rodriguez narra: O personagem Anchieta e um quase naufrgio.

    No ano de mil quinhentos e oitenta e cinco, vindo do Rio de Janeiro para a Bahia o padre Cristvo de Gouveia, segundo visitador geral desta provncia, e com ele o Padre Jos e outros religiosos lhes deu uma to grande tormenta, que os ia lanar costa dos arreciffes, e todos, at a gente do mar, se davam j por perdidos, e assim deixavam de marear o navio.

  • 18

    Os padres debaixo da tolda, se estavam aparelhando para bem morrer, confessando-se uns aos outros. Porm o Padre Jos estava em cima da coberta, em p, pegado s cordas do navio, com os olhos no cu, fazendo seu ofcio de rogar a Deus pelo remdio e vidas de todos. Neste momento chegou a ele um irmo, pedindo-lhe o ouvisse de confisso. Respondeu-lhe: "no agora necessrio". Acudiu o irmo: por qu? No se h de perder o navio?" Respondeu o padre: "no" Secundou o irmo, para se afirmar mais na resposta: "havemo-nos de afogar, havemos de morrer? Aqui o padre ento, como agastado, levantou algum tanto a voz, dizendo que no.10

    Anchieta narra: um quase naufrgio

    ...quando no entanto comeava a descansar, eis que tudo se perturba na ameaadora escurido da noite, os ventos sopram com violncia do sul, caem imensos aguaceiros, e, revolvido em todos os sentidos, o mar abalava violentamente a embarcao, a qual, j gasta pelo tempo, pouca resistncia oferecia: aberta embaixo para as ondas, estava tudo coberto d' gua; esgotava-se o poro em cima para as chuvas quatro ou cinco vezes por hora e, para dizer verdade, nunca se esvaziava; ningum podia conservar-se a p firme, mas andando s gatinhas e para dizer a corriam uns pelo tombadilho, outros cortavam os mastros, aqueloutros preparavam as cordas e amarras: neste momento, a lancha, que estava atada extremidade do navio, foi arrebatada pelo mar, partindo-se o cabo que a prendia; ento comeamos todos a tremer e a sentir veemente terror: via-se a morte deante dos olhos; toda a esperana de salvao estava posta em uma corda e, quebrada esta, a nave ia inevitavelmente despedaar-se nos baixios que a cercavam pela popa e pelos lados; corre-se a confisso: j no vinha cada um por sua vez, mas dois a dois e o mais depressa que cada qual podia. Em uma palavra, fora fastidioso contar tudo que se passou; rompeu-se a amarra: "Est tudo acabado"! gritaram todos.11

    Pero Rodriguez narra: O naufrgio de um santo personagem

    10 Pero Rodriguez op. cit. p 93 11 Jos de Anchieta, Cartas, Informaes, Fragmentos Histricos e Sermes. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo Editora da Universidade de So Paulo. 1988, p 118.

  • 19

    Chegaram os navegantes a uma cachoeira ou salto do rio por onde navegavam a remo, e os padres iam rezando as horas da Conceio de Nossa Senhora, seno quando se vo todos ao fundo com a canoa, em altura de quatro de quatro ou cinco braas de gua, mas todos saem a nado, s o bom padre Jos no aparece. No sofreu o corao ao ndio deixar ali o padre, sem saber o que era feito dele. Mergulha e anda-o buscando por bom espao de tempo, e no o achando, vem-se acima a tomar flego e descansar um pouco. Deita-se outra vez de mergulho, e quer Deus que o ache, assentado no fundo. Pega dele pela roupa, e o padre deixa-se vir sem aferrar do ndio, e desta maneira vem acima so e salvo, com suma alegria e satisfao dos presentes. Esteve debaixo da gua obra de meia hora, no desacordado, antes muito em juzo, lembrando-se de trs coisas, como depois dizia: de Jesus, e da Virgem purssima sua Me, e de no beber gua como de fato aconteceu.12

    12 Pero Rodriguez, op. cit. p 93

  • 20

  • 21

    eengat. A "boa fala"

    A fala sagrada dos ndios

    A fala, a palavra, para os ndios, segundo Pierre Clastres, era e sagrada.

    e por, belas palavras para os guarani, eengat, literal boa fala para os

    tupis13. Quando uma criana ndia nasce, segundo este estudioso, quem lhe d o

    nome o pai paj, ou o pai kara e esse nome a prpria vida e nele est contido

    todo o destino que deve ter este recm-nascido.

    A atribuio do nome, escolhido pelos deuses, transforma o indivduo em um ser vivo. O sacerdote, a quem cabe ler e dizer o nome, no pode cometer erros nessa busca da identidade, pois o nome, tery mo, quem-faz-se-elevar-o-fluxo da Palavra; marca, sinal do divino sobre o corpo, ele a vida.14

    A escolha do nome no aleatria; est relacionada a algum fato marcante e

    escolhido, pela me segundo Clastres, ou, para A. Metraux, pelos feiticeiros entre

    os apapovucas, ou ainda para os tupinambs por um verdadeiro conselho. A

    personalidade do futuro ndio estava designada tambm no nome; assim, se um

    recm-nascido recebesse o nome de algum animal que a me tivesse comido,

    desse receberia sua personalidade, num jogo em que o ser derivaria do logos. Da

    carne de jaguar ingerida se deduz que o recm-nascido, mediado pela palavra que

    o designar, certamente se tornaria um grande caador e guerreiro, com um

    destino de chefe prefigurado. O jaguar era um animal caador to potente quanto

    os melhores caadores indgenas, disputava com eles a mesma caa, era uma

    muito difcil presa; somente os grandes caadores conseguiam ca-lo. Nos

    dilogos anchietanos temos alguns exemplos desta importncia. No Auto da

    Pregao Universal destaco dois: Aimbir(ai, bicho preguia; pirera, pele) que

    13 Cf. Pierre Clastres, A Fala Sagrada Mitos e Cantos Sagrados dos ndios Guarani. Trad: Ncia Adan Bonatti. Campinas: Papirus, 1990, p 11 14 idm, p 111.

  • 22

    segundo o dicionrio de Orlando Bordoni15 a pele do bicho preguia. Aimbir

    figura histrica descrita por Anchieta como um temido chefe tamoio nos seus

    informes um dos personagens do mal no dilogo. Na estrofe que cito a seguir

    apresentado pelo seu companheiro e "chefe" Guaixar:

    Oikob Tenho f Eis aqui meu ajudante Xe pytybanamet, em meu ajudante que e parente verdadeiro, o que 50 Xe pyri mar tekora, 50 meu mr colaborador, mora perto de mim, meu Xe yrnamo okibae: queimado no mesmo ardor, companheiro de oca: Tubixakat Aimbir O grande chefe Aimbir. que torna os miausba maus Miausba moangaipapra,

    dos ndios pervertor o grande chefe Aimbir,16

    H, tambm, os ndios Arakaj. Recebiam este nome por causa do seu chefe

    Maracaj guas, gato grande17 e historicamente eram parentes e vizinhos, no

    Esprito Santo, dos ndios Temimin (amigos dos padres). No dilogo aparecem

    como sendo seduzidos pelos personagens do mal:

    Karaibeb:

    Emon sek su Por isso j usa o bando por causa disso eles esto Arakaj sapeku buscar os Arakaj visitando os Arakaj na 285 mundpe iporerasu... 285 que se vo aprisionando armadilha fazendo-os cair Aimbir: Arakaj, te, ombory. estes gostam do desmando Arakaj, enfim, tornam-se Ojoj mar seku... vida que lhes apraz alegres vivendo com nossas maldades18.

    Anchieta, nos seus informes sobre os ndios, tambm nos fala da importncia

    que tinham os bons lnguas para os tupinambs:

    Fazem muito caso entre si, como os Romanos, de bons lnguas e lhes chamam senhores da fala e um bom lngua acaba com eles quanto quer e lhes fazem guerras que matem ou no matem e que vo a parte ou a outra, e senhor de vida e morte e ouvem-no toda uma noite e s vezes tambm o dia sem dormir nem comer e para experimentar se bom lngua e

    15 Orlando Bordoni, Dicionrio: A lngua Tupi na Geografia Brasileira. Curitiba, [s.d.]. 16 Trad. Pe Armando Cardoso, O Teatro de Anchieta. Obras Completas, 3 Volume . So Paulo: Loyola, 1977, p 122 17 Cf: Pierre Clastres, Crnica dos ndios Guayaki. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. A. Metraux, A Religio dos Tupinambs. So Paulo: Companhia Editora Nacional, [s.d.]. 18 trad. Pe Armando Cardoso, op cit. p. 122

  • 23

    eloqente, se pem muitos com ele toda uma noite para o vencer e cansar, se no o fazem, o tm por grande homem e lngua. Por isso h pregadores muito estimados que os exortam a guerrear, matar homens e fazer outras faanhas desta sorte.19

    Ao colocar na fala dos seus personagens as eengat, boa fala, em tupi,

    Anchieta sabia o sagrado significado que elas representariam para o espectador

    indgena. O grande valor que teria a palavra viva, sedutora, insinuante.

    A importncia da palavra falada est ainda relacionada ao fato de os indgenas

    no escreverem e assim toda a sua histria, tradio, conhecimento, religio

    serem transmitidos, at os dias de hoje, como atestou Clastres, de gerao em

    gerao, sob forma oral. A palavra falada pelos personagens, no dilogo

    anchietano, em lngua indgena, era muito mais que cdigos estticos escolhidos

    por seu autor para a comunicao e transmisso da ideologia crist: estavam, isto

    sim, sobrecarregados de significados, religiosidade e histria indgenas. A fala em

    cena na lngua dos ndios teria uma importncia que talvez ns homens modernos

    dos computadores sequer percebamos.

    Hoje em dia guardamos todas as nossas informaes em disquetes de

    computador, vrios, e estamos muito perto, ns leitores de jornal, de sermos

    chamados de esprito ignorantes e sem ideal pelas geraes futuras. Temos

    muitas dificuldade em entender Plato fazendo defesa no Fedro do oral em

    detrimento do escrito, visto o primeiro como um elemento fecundador dos espritos

    e o segundo como simples registro mnemotcnico do pensamento. Como

    entender os ndios que no escrevem e mantiveram vivos muitos costumes

    milenares? Pierre Clastres ficou encantado ao perceber, vivendo junto aos ndios,

    que eles mantinham, no sculo XX, vivas, muitas das tradies descritas pelos

    cronistas do sculo XVI, intactas, e outras com algumas introdues feitas naquele

    mesmo perodo pelos jesutas. Ficou um tanto quanto decepcionado ao saber que

    os seus amigos ndios mantinham em segredo muito a respeito dos seus rituais

    e religio, mesmo depois de algum tempo vivendo junto a eles e sentir-se

    19 Jos de Anchieta, Cartas, Informaes, Fragmentos Histricos e Sermes. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo Editora da Universidade de So Paulo. 1988, p 441

  • 24

    participante daquela comunidade. Entendeu, entretanto, a importncia do segredo

    para eles, a muitos dos quais certamente jamais teremos acesso, de forma que

    ignoraremos para sempre o essencial de suas vidas, costumes e rituais. Mas no

    estariam eles presentes na obra de Anchieta, j que viveu e conviveu

    intensamente com os ndios praticamente toda a sua vida20?

    A fala (sagrada) para os europeus que viviam no Brasil

    A palavra falada no tinha menos importncia para o homem europeu do fim da

    Idade Mdia do que para o indgena do Brasil. pelo quinto sentido, o ouvido, por

    onde entravam os ensinamentos da Igreja, isto , por meio do qual a verdade real

    se tornava conhecida contra a verdade aparente dos outros sentidos:

    Verdadeiramente isto carne e sangue, s na aparncia po e vinho; certo que foi po e vinho outrora, mas viste que foi transformado por Moiss em carne e sangue com a minha ajuda, embora por causa disto a Natureza disputasse e se ofendesse. Aviso-te pois, e intimo-te que por ti seja entendido e firmemente crido que isto carne e sangue; e no te importe que ao tacto, vista, ao olfato e ao padadar te possa parecer po e vinho.21

    Apesar de a escrita fazer parte da cultura europia, toda uma tradio, pelo

    menos religiosa, histrica, era feita de forma oral, para o homem no letrado

    praticamente toda a populao europia, e ainda considerando que estamos

    falando dos europeus que viviam no Brasil, excetuam-se como letrados, apenas

    os homens da igreja, uns poucos e raros mercadores e talvez alguns judeus

    fugidos dos tribunais do Santo Ofcio.

    Os jesutas aproveitaram em suas estratgias para espalhar o cristianismo da

    igreja catlica a importncia que tinha a fala ou pelo menos a pregao na Europa

    medieval, a importncia que se atribua aos bons pregadores nas praas das

    cidades ou nas feiras, certamente feitos na lngua local, como podemos ver nesta

    passagem de Huizinga:

    20 Cf: Pierre Clastres, Crnica dos ndios Guayaki. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. 21 Antonio Jos Saraiva, Gil Vicente e o Fim do Teatro Medieval. [sl] Publicaes Europa-Amrica, 2 ed. 1965. p 80

  • 25

    Mais raros do que as procisses e as execues eram os sermes dos pregadores itinerantes que vinham despertar o povo com a sua eloquncia. O moderno leitor de jornais no capaz de imaginar a violncia da impresso causada pela palavra sobre espritos ignorantes e desprovidos de qualquer ideal. O franciscano frei Ricardo pregou em Paris, em 1429, durante dez dias consecutivos. Comeava s cinco horas da manh e falava sem interrupo at s dez ou onze, quase sempre no Cemitrio dos Inocentes. Quando, ao terminar o seu dcimo sermo, anunciou que era o ltimo porque no tinha mais permisso de pregar mais, grandes e pequenos choraram to comovida e amargamente como se estivessem a ver enterrar os melhores amigos; e ele tambm. 22

    A grande massa se aglomerava nas procisses para ouvir os sermes, para

    participar dos autos populares, dos espetculos teatrais dialogados que

    certamente agia sobre seu imaginrio, despertando foras interiores. Tambm o

    homem europeu, como o indgena, pelo menos os de esprito ignorante e

    desprovidos de qualquer ideal, tinham na palavra a fonte para o conhecimento da

    religio, da histria, da ideologia do seu tempo.

    Los predicadores llenaban las plazas; solo ellos sabam encontrar los argumentos y el lenguaje que llegaram al "pueblo". Savanarola dice "Nuestros prelados, para tener clices, quitan lo que es de los pobres, sin los cuales no pueden vivir. Pero sabis lo que quiero decir? En la Iglesia primitiva los clices eran de madera y los prelados de oro; hoy la Iglesia tiene prelados de madera y clices de oro". Bernardino de Siena es consciente de su capacidad de comunicacin: "Cuando voy predicando de lugar em lugar, cuando llego a un pueblo, me las ingenio para hablar siempre segn su vocabulrio.23.

    Anchieta eengat. A boa fala de Anchieta

    Quando os jesutas chegaram ao Brasil em 1549, traziam a disposio de

    pregar, ensinar para os habitantes deste lugar o verbo divino, transformando em

    cristos, pela palavra, os que aqui viviam. E em que lngua Deus se expressava

    22 Johan Huizinga, O Declnio da Idade Mdia. Braga: Editora Ulisseia, 1996, p 12. 23 Os pregadores tomavam as praas; s eles sabiam encontrar os argumentos e a linguagem que chegavam ao povo. Savanarola disse: "Nossos prelados, para ter clices, tiram o que dos pobres, sem o que no podem viver. Mas sabeis o que eu quero dizer? Na Igreja primitiva os clices eram de madeira e os prelados de ouro; hoje a Igreja tem prelados de madeira e clices de ouro". Bernardino de Siena consciente de sua capacidade de comunicao: "Quando vou pregando de lugar em lugar, quando chego a um povo, procuro aprender para falar sempre segundo seu vocabulrio". Franco Cardini, Europa 1492, Milan: Anaya Editoriale, 1989 p 188.

  • 26

    prioritariamente na Idade Mdia? Em latim, a lngua culta da Europa crist, que

    era conhecida apenas pelos letrados. Na Europa de ento, preces e missas eram

    feitas em latim para um homem que no precisava entender o que estava sendo

    dito, j que conhecia todo o poder daquelas palavras, que somente os homens

    santos poderiam conhecer totalmente, os padres, que eram as palavras das

    Sagradas Escrituras escritas, ditadas, por Deus. Este homem do povo no letrado

    sabia do poder de Deus e de sua palavra certamente atravs das histrias,

    sermes, peas teatrais, cantigas populares, pregaes enfim de uma tradio

    falada (encenada com quadros vivos) de boca em boca milenariamente e na sua

    lngua. Na Idade Mdia, importante observar ainda, a catedral quase um livro,

    pois o fiel analfabeto pode seguir a histria sagrada e compreend-la

    perfeitamente nos vitrais, nos afrescos das paredes e nos relevos feitos na pedra.

    Cada um desses signos portador de uma histria, isto , de sentidos. Assim,

    Deus falava pela mediao da imagem. Mas tambm no interior ou no adro das

    catedrais que so representados os mistrios, primeiro em latim e mais tarde nas

    lnguas nacionais. De qualquer maneira, mesmo quando ainda representados em

    latim, os mistrios eram compreendidos pelo fiel, pois eram representados em

    determinadas datas consagradas Natal, Paixo, etc. de modo que se tornavam

    imediatamente inteligveis. A esses signos, visuais e verbais necessrio

    acrescentar o teatro como espetculo e, sobretudo, a msica, cuja funo de

    envolvimento sensual nem preciso enfatizar.

    Neste clima de sensualismo, envolvendo todos os sentidos, se desenvolve a

    esttica do teatro anchietano. Seja aquele representado para o espectador nativo

    ou, ento, para o estrangeiro, que vivia a muito tempo nas matas brasileiras.

    Anchieta faz uso de signos visuais e verbais totalmente inteligveis para que seu

    "analfabeto" espectador, pudesse compreender e se envolver com aquilo que est

    acontecendo em cena. Esta preocupao se multiplica quando se pensa no

    espectador indgena que no tem qualquer familiaridade com os signos, visuais ou

    verbais, da religio crist. possvel perceber em muitos momentos da criao

    teatral anchietana este aspecto fundamental. Como exemplo destaco a descrio

  • 27

    feita pelos personagens do mal, no segundo ato do Auto da Pregao Universal,

    em torno da figura do bem, o Karaibeb, ao ele entrar em cena:

    Aimbir: ke! Ab reku a Olha l esse sujeito aqui! Ab est realmente xe renopuapuma que me est ameaando eu o atacarei, atacarei to! A, mbape ke Oh! que ser o que vejo? Oh! realmente, que coisa, kanind oby jasora? Parece azul Canind kanind azul o que ? 190 Ndojabyi mur arra... 190 ou uma arara de p Igual a uma maldita arara Guaixar: Karaibeb ae

    E um anjo o que entrevejo

    Karaibeb mesmo

    Tapia raronsra guarda dos escravos guardio dos tapia24.

    O personagem karaibeb (kara = caraba, feiticeiro, curandeiro e beb =

    voador) representa em cena o bem e tem relao com os abar, padres, e com

    Tup. A figura do kara* era uma das mais importantes e prestigiadas na

    sociedade e religio indgena (como perceberam os cronistas da poca), trata-se

    de seres que circulavam livremente por vrias tba; eram considerados por todos

    como possuidores de poderes sobrenaturais, entre eles possivelmente o de beb,

    voar*, da karaibeb. A forma como ele descrito - uma arara kanind azul - no

    deixa de ser aquela na qual os ndios - principalmente os tapuias -, se trajavam em

    suas festas religiosas e rituais.

    Signos visuais, verbais que aparecem em cena e que talvez pudessem ser

    compreendidos pelo espectador nativo, pois que fazem parte de sua vida

    cotidiana. Inteligveis, tambm para o colonizador, j que a esttica teatral

    aquela que lhe era certamente conhecida das representaes teatrais populares

    nos adros das igrejas, das praas, feiras, europias medievais.*

    24 Trad. Pe Armando Cardoso op. cit. p 126 * Karaibeb nas tradues recebe o significado de anjo ou cristo, talvez porque os portugueses tivessem sido considerados kara (carabas) pelos ndios; e porque o vocbulo Beb ter significado de voador. * Voar pode ter o significado neste caso de ir muito rpido de tba em tba. * Mesmo a fala, em tupi, e os personagens, para o colono, no deixavam de fazer a parte, agora, de sua vida cotidiana.

  • 28

    Os efeitos visuais deveriam ser espetaculares - e aqui preciso recorrer ao

    pesquisador-romancista -, j que imagino qual sensao no deveria causar a

    presena em cena do karaibeb - caracterizado como um pssaro/ndio- dividindo

    a cena com os dois personagens do mal, que (parece) estavam fantasiados como

    "anga" esprito maus das matas, ou diabos:

    Guaixar:

    Eite serobi. intil seu alento: eles dizem acreditar em vo. Ereipysyr tene eu tos arrebatarei tu os socorrer em vo, nde po su anosne, apesar do teu sustento. de tuas mos eu os tirarei Abeb ko ybyt ja. eu vo como este vento, eu vo como este vento 375 Ano, arobebne... 375 com eles eu voarei eu tambm corro, eu com ele voarei

    .

    Aimbir, Aimbir, Aimbir, jaras, mur, tauj, voemos com nossa f, ns levamos, maldito, logo, jand roipyra moesia. A alegrar meus aldees! nossa alegria ausente Ko xe akus. Xe ria... Eu ranjo... eis meus chifres esta minha akus(grande febre?) meus dentes. Aimbir: 380 Je, kob xe poape, 380 esta dentua minha , , eis aqui, minha mo xe roaibuk, xe tyia minha garras e dedes torta, meu rabo comprido, meu gancho25

    Efeitos visuais que se somavam, sem dvidas, aos verbais, j que os

    personagens dialogavam em lngua tupi, fala sagrada indgena, com rimas

    moda europia, dando ao dilogo, em um tom musical, vida aos costumes,

    elementos, figuras, da sociedade indgena. Ao mesmo tempo, cria, certamente, no

    lugar, atravs da fala ritmada, uma atmosfera de fervor religioso cristo, que, por

    ser totalmente nova para o indgena, talvez, por isso mesmo, se tornasse algo

    sobrenatural, indgena que tinha na fala (e ainda mais musical) os princpios

    fundamentais de sua crena.

    25 Trad. Pe Armando Cardoso, op.cit. p 126

  • 29

    O teatro, que fazia parte de uma festa religiosa crist, acontecendo nos

    aldeamentos, contava ainda, como descrevem os cronistas da poca, com a

    presena de meninos ndios, nus, tocando flauta juntamente com os meninos

    rfo, trazidos de Portugal, que cantavam e danavam a moda portuguesa;

    procisses com ndios nefitos entremeados aos cristo - entrando, passando pelo

    meio do terreiro, e saindo das aldeias (volta a cena o romancista) sob o olhar

    curioso dos demais ndios; danas indgenas (com toques secos no cho de terra)

    com batidas firme no terreiro; cantorias dos irmo e padres da Companhia de

    Jesus em latim; cantoria dos ndios no centro das aldeias. Mulheres ndias nuas

    dando louvas a Jesus, em (um certamente estranho) portugus; ndios e ndias

    "pagos" espiando a cena com olhares de estranhamento. em meio a este clima

    sensual que acontece a representao das peas de teatro anchietana colocando

    em cena para todos os sentidos aquilo que ele queria ensinar.

    Manoel da Nbrega pediu a um irmo (acreditamos ser Anchieta) que este

    substitusse um dilogo profano que estava sendo ensaiado pelos portugueses

    para ser apresentado no adro da igreja, para a festa de Natal, por um mais

    adequado a este lugar. Apesar de estar muito longe e afastado do universo

    cultural europeu, vivendo em meio a selva, tendo que desenvolver novas maneiras

    de vida, o portugus queria manter vivo o seu passado, a sua memria e nada

    melhor para esta inteno do que o teatro.* O dilogo profano foi substitudo por

    um dilogo sagrado ( possvel que seja O Auto da Pregao Universal), mas

    escrito na lngua tupi. O fato de ser um auto para substituio a um outro menos

    adequado, vem confirmar a importncia que tinha o teatro como forma de

    expresso para o povo que aqui vivia e no apenas servindo como obra para a

    O auto era profano mas, como pode parecer, no deixava de ser religioso: Quando a Igreja abriu suas portas e deixou o drama escapar para a confuso e a animao das cidades, o fato significou mais do que um simples aumento de espao. A prspera populao da cidade apoderou-se com dedicado fervor do drama, esta nova forma de auto expresso agradvel a Deus e que crescia de forma cada vez mais exuberante. Patrcios, burgueses e artesos tinham a liberdade de apresentar as verdades da f de acordo com sua interpretao da vida. Uma das paredes da nave da Catedral de Limburgo exibia uma tentadora loira, simbolizando a Luxuria: os orgulhosos cidados locais, num de seus dramas ao ar livre, transformaram Maria Madalena numa linda cortes, a quem era permitido levar a mais alegre das vidas mundanas, cantar uma toada profana claramente inspirada em poemas da corte, sentar-se mesa com Jos para uma partida de xadrez e tocar alade. Margot Berthold, op. cit. p 212

  • 30

    propagao da f por parte dos homens da Companhia de Jesus. O fato de ser

    em tupi, que se transformara para o europeu que aqui vivia a sua lngua popular,

    significa dizer que este auto era para ser entendido, por todos os espectadores,

    no apenas ouvido. Mais uma vez a palavra dita no dilogo anchietano revela...

    Anchieta soube unir no seu dilogo duas maneiras de expresso que encantava

    o homem europeu e o indgena ao mesmo tempo. Ao usar a boa fala em tupi

    colocou o universo ideolgico, cultural, histrico do indgena na fala e nos seus

    personagens sem deixar de se dirigir, no entanto, ao cristo, j que o auto a

    disputa entre o bem (cristo para os padres) e o mau (terreno: os males das

    matas, dos anga, dos carabas, das bebedeiras, dos rituais, da antropofagia,

    adultrios... Trata-se de teatro nos moldes dos autos vicentinos que devia ser o

    mais popular para o homem que veio de Portugal para c, mas sem deixar de

    encantar o ndio, j que o dramaturgo usou personagens, indumentrias, de sua

    realidade social. E principalmente para o espectador em geral usou no seu dilogo

    a palavra falada inteligvel.

    A palavra sagrada: falada e escrita

    A escrita, segundo Roland Barthes, acompanha passo a passo a fala se no lhe anterior; isto

    , se consideramos que o homem primitivo, ao interpretar signos, marcas e sinais impressos na

    natureza (como por exemplo um ramo quebrado), estava lendo antes de saber falar. H, se

    entendermos a escrita desta forma, uma linguagem escrita e uma falada. Esta bipolaridade

    grfico/verbal evolui para uma nica quando atravs da fonetizao (e alfabetizao), a linguagem

    escrita subordinou-se linguagem verbal. O homem, a partir de ento, passa a possuir um

    aparelho lingistico nico, instrumento de expresso e de conservao de um pensamento por sua

    vez mais canalizado para a racionalizao26.

    Racionalizao que no caso dos hebreus est ligada ao sagrado:

    a escrita, para os hebreus mais que um simples sistema de signos, porque o prprio Deus se serviu do verbo e da escrita para se revelar. O alfabeto, fundamento da escrita, tambm o elemento essencial e o princpio ordenador da linguagem, que foi o instrumento da criao do mundo, enquanto palavra, e depois enquanto escrita. A palavra de Deus

    26 Cf Roland Barthes e Eric Marty, Oral/escrito, In: Enciclopdia Einaudi, vol. 11. Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1987

  • 31

    suscetvel de interpretao mas, uma vez fixada na sua grafia, imutvel para a eternidade27.

    A fixao do verbo como verdade grafada sem dvida uma das preocupaes de Plato no

    Fedro. Nesse dilogo, tomando como pretexto um discurso do sofista Lisias sobre o amor, esse

    velho erstico que Scrates, inicialmente o desqualifica para em seguida substitu-lo por um de

    sua obra, mostrando, porm, que todas essas falas so geradas por um ncleo que a Mentira.

    ento que ele aponta para o que constitui o eixo de toda fala boa: a Verdade, que em grego se

    diz Aleth, palavra que significa fundamentalmente ilatncia. Ora, a Verdade s se desvela no

    jogo das discusses dialticas: escrita ela se petrifica. E no entanto... o prprio Plato a ela recorre

    quando se trata de registrar os ditos do Mestre, criando um paradoxo no interior do prprio

    platonismo e indicando para a futura vitria da escritura.

    Apesar da unificao do aparelho lingstico atravs da fonetizao muitas diferenas

    continuam a existir entre a palavra falada e a escrita. Plato tinha razo, a palavra falada ao no

    poder ser fixada, no pode ser modificada, rasurada, refeita, traduzida: a palavra de Deus por

    exemplo, foi escrita em semtico, grego, latim, alemo e hoje em dia em centenas de lnguas. Por

    outro lado a palavra escrita no contm o gesto, o corpo e a pulsao de seu autor. Isto no

    significa dizer que a palavra escrita no tenha gesto, corpo e pulsao, seja apenas sinais frios,

    cdigos grafados, talvez ela no possa mesmo ser gestualizada, corporificada e pulsada na fala

    de seu autor, mas mantm vivas o

    gesto, o pulsar, o corpo de um dilogo, de um acontecimento, de uma histria, de um teatro. Uma

    prova disso o prprio debate que Plato disputa com o discurso escrito por Lisias no Fedro.

    A palavra escrita que, como prope Roland Barthes, ficou sem vida, surgiu aps uma forma de

    racionalidade e do advento de um novo sujeito, no final da Idade Mdia e da inveno da palavra

    impressa. A escrita passou, ento, a debruar-se sobre seu prprio corpo e assim ficando restrita

    ao que est impresso, ou seja ao prprio discurso. Foi esta palavra, sem vida, que tornou possvel

    ao filsofo Descartes, duvidar da existncia do ser e no do seu prprio discurso. A palavra sem

    vida congela-se em um labirinto sem sada. Mas a escrita, que no se insere neste contexto,

    semelhante a natureza, faz parte das coisas, tem existncia material:

    a escrita est em relao de analogia com o mundo; a metfora do grande livro da natureza indica claramente que a linguagem, e em particular a escrita, esto prximas das coisas, entrelaam-se nelas. Para exercitar a nossa sageza, Deus semeou a natureza de figuras a decifrar, a interpretar28

    Quando a escrita tem vida material, abre-se e se relaciona com o universo, pulsa, respira,

    treme, adoece, ri, etc. Robison Crusoe, personagem do livro clssico homnimo de Daniel Defoe,

    27 Ibdm 28 Roland Barthes, op. cit., p 53.

  • 32

    chorou de alegria, de medo, armou-se, correu, esperou etc. tudo isso a partir das muitas

    interpretaes que fizera diante de uma nica pegada humana "grafada" nas areias brancas,

    durante a noite, em sua ilha deserta.

    A palavra dita no teatro anchietano era material, principalmente aquela em tupi

    e o seu significado tanto para o indgena que aqui vivia como para o europeu que

    para aqui viera que falava e falou o tupi at meados do sculo XVIII era sagrado.

    A fala, o dilogo, tanto para um quanto para outro, principalmente em se tratando

    de um lugar selvagem, era o nico meio de que dispunham para se aproximarem

    da religio, da histria, dos ancestrais, da memria.

    A palavra escrita do teatro de Anchieta era e material pois segue passo a

    passo a fala indgena, j que foi ele um dos formuladores desta lngua na escrita.

    Alm disso era de fundamental importncia para os trabalhos da Companhia

    propagar a f crist, e assim todas as formas de encantar aqueles que viviam

    prximos a eles era repetida (fazia-se cpia escrita) em todos os lugares que

    porventura eles estivessem: se um determinado dilogo provocava na platia, seja

    europia ou indgena, devoo e fervor, e aumentasse a crena dos espectadores

    na palavra deles, jesutas, era ento copiado e passado para todos os colgios ou

    aldeamentos da costa para serem encenados. Assim aconteceu com os dilogos

    criado por Anchieta que segundo consta foram muitas vezes representado por

    toda a costa brasileira. O dilogo fora escrito e chegou at ns porque certamente

    encantara a todos no momento de sua apresentao. Contm, ento, em suas

    letras todo o vigor de sua materialidade, de sua vida.

  • 33

  • 34

    Viso Panormica do Auto da Pregao Universal

    O estabelecimento do texto

    O Auto da Pregao Universal, considerado o primeiro auto de Anchieta, encenado em So

    Paulo de Piratininga no incio do ano de 1561 ou 1562, tem, na edio proposta pelo padre

    Armando Cardoso, cinco atos, sendo o primeiro e o quinto compostos com um poema longo de

    Anchieta sobre um conhecido tema medieval, o Pelote Domingueiro. O segundo ato, que seria

    autgrafo, contm a luta dos anga (diabos na verso do Padre Cardoso) contra o karaibeb

    (o anjo). O terceiro ato, tambm recomposto a partir de outros autos, contm o desfile dos doze

    pecadores, com texto em portugus. O quarto, a dana dos meninos, com versos em portugus,

    espanhol e tupi, teria sido resgatado parcialmente com um autgrafo, embora no fique claro

    tratar-se de texto escrito pela mo do prprio dramaturgo.

    Uma das dificuldades para se ler um auto como este reside no fato de ter sido

    ele estabelecido, isto , recomposto a partir de indcios, alguns deles muito

    frgeis. Os textos escritos naquele perodo pelos padres da Companhia de Jesus

    sobretudo o seu teatro , alm de serem produzidos no interior de uma cultura

    no-letrada, eram ainda distribudos por todas casas e colgios quando tinham

    alcanado o seu principal objetivo, que era o de encantar ensinando os princpios

    cristos: esse o caso do Auto da Pregao Universal, escrito e reescrito muitas

    vezes por muitos "copistas" e em pocas diferentes. Deve-se tambm levar em

  • 35

    conta que se trata de uma apresentao teatral acontecendo em meio floresta.

    Vejamos como o Pe Cardoso (re)comps o Auto da Pregao Universal:

    Salientamos o pormenor de ter a representao durado trs horas. Isto poderia fazer dificuldades ao texto do auto na Festa de Natal, que de modo algum preencheria tanto tempo. Mas convm relembrar que esse dilogo tupi apenas a parte central da pea. Comparando-o com o de S.Loureno, devemos acrescentar-lhe um prlogo ou 1.o ato, um desdobramento do dialogo em tupi ou 3 ato, como tinham os autos maiores; um espetculo de dana, canto de msica que era o IV ato, e um eplogo ou despedida como V ato. Quais tenham sido estas partes completivas dentre os excertos que se conservam no Caderno de Anchieta, no o sabemos com certeza, s o podemos conjeturar com probabilidades, exceto para a dana que figura no Opp. NN. 24, logo depois do dilogo tupi.29

    O caderno mencionado na citao seria, segundo Maria de L. de Paula

    Martins, uma espcie de dirio de Anchieta, provavelmente iniciado a partir do ano

    1572, pois falta-lhe poemas iniciais, entre eles o Auto da Pregao Universal e o

    pico De Gestis Mem de S, que foram reunidos aps sua morte, ou, ento,

    segundo outros, uma reunio das obras, poemas, cantos, sermes etc. que se

    espalharam pelas casas jesuticas, algumas autografas como o segundo ato do

    Auto da Pregao Universal e outras transcritas por copistas, a maioria dos quais

    desconhecidos para ns. As obras mais importantes dos jesutas, de um modo

    geral, eram distribudas para os principais da Companhia como o autgrafo que

    mencionamos acima, mas as menores, como o canto dos meninos, circulavam

    entre os irmos que cuidavam da catequese dos meninos e que os utilizavam em

    suas aulas cotidianas.

    Assim que Anchieta morreu, Pero Rodriguez e Quircio Caxa, seus

    companheiros e principais da Companhia passaram a construir sua biografia

    tendo em vista a beatificao, cujo processo teve incio, com toda documentao

    pronta, em 1624, menos de trinta anos portanto aps sua morte. Com esse

    propsito, reuniram toda a obra espalhada pelos colgios. importante adiantar

    que o Auto de So Loureno, em que se baseia o padre Cardoso para compor o

    29 Trad. Pe Armando Cardoso, op. cit. p 63

  • 36

    Auto da Pregao Universal em cinco atos, foi encontrada no caderno com as

    obras de Anchieta mas que apenas os atos II (semelhante ao dilogo tupi do Auto

    da Pregao Universal) e o ato III so autgrafos, os outros trs no passando de

    transcries de copistas. O autgrafo, que no trazia ttulo, foi considerado o segundo ato do Auto da Pregao Universal

    pela sugesto de alguns indcios: escrito em tupi, era seguido no caderno por um canto

    considerado pelo padre Cardoso como sendo o quarto ato, a dana dos meninos, composta de

    cantos em portugus, espanhol, e tupi, o que explicaria talvez o Universal do ttulo. O prprio

    Anchieta nos fala de um auto da Pregao Universal composto por um irmo a pedido do padre

    Manuel da Nbrega, e os bigrafos que lhe so contemporneos, Pero Rodriguez e Quircio Caxa,

    assim como Ferno Cardim, nos garantem que este irmo era o prprio Anchieta:

    Era (Manuel da Nbrega) to zeloso de se pregar sempre a palavra de Deus que at aos irmos que lhe pareciam para isso, fazia pregar em portugus e brasil, ainda que no fossem sacerdotes. Por este fim e por impedir alguns abusos que se faziam em autos nas igrejas, fez um ano com os principais da terra que deixassem de representar um que tinham e mandou-lhes fazer outro por um irmo, a que ele chamava Pregao Universal, porque alem de se representar em muitas partes da costa com muito fruto dos ouvintes que com esta ocasio se confessavam e comungavam em particular em So Vicente a fama dele por ser parte na lngua do Brasil se juntou quase toda a Capitania vspera da circunsiso...30

    Um outro indcio aparece em uma das ltimas estrofes deste autgrafo em que o karaibeb

    (anjo) fala dos trs reis (magos), e da estrela guia que, segundo a tradio catlica, se

    comemora em 6 de janeiro, prximo ao Natal e circunciso de Jesus: Xe ab, aj, ko ara pup,

    mosapy Ria rer, jasytat sup e, pitangi pai

    Jesu Kotype imoingbo e: na traduo do padre Cardoso: Eu tambm venho este dia do alm, os

    trs Reis reconduzir e a estrela fazer luzir junto a Jesus, nosso bem, que, menino, a ns quis vir31.

    Outro indcio seriam alguns depoimentos de testemunhas deste acontecimento:

    Por outro lado nos processos de beatificao h depoimento de testemunhas com seus trs nomes que quando meninos foram atores na Pregao Universal em So Vicente. Ora so justamente trs os papis do auto Na Festa de Natal: dois diabos e um anjo.32

    30Jos de Anchieta, Cartas, Informaes, Fragmentos Histricos E Sermes. Introduo de Afrnio Peixoto, Belo Horizonte: Itatiaia, So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1988. 31 Trad. Pe Armando Cardoso, op. cit., p 60 32 Idem, p. 61

  • 37

    Se aceitarmos que estamos diante do Auto da Pregao Universal, podemos considerar ser

    ele o primeiro tambm por indcios: ele faz parte do segundo ato do Auto de So Loureno,

    considerado posterior por ser mais elaborado; ele atribudo pelo prprio Anchieta que na

    poca ainda no era padre a um irmo assim ele modestamente se designaria a si prprio.

    A partir destes indcios quanto autoria e a prioridade temporal do texto, uma deduo se

    impe quanto ao local e data de sua encenao: Piratininga, onde Anchieta viveu no ano de 1561.

    Em 1560 o poderoso governador Mem de S transferiu a Igreja de Santo Andr, lugar onde vivia

    Joo Ramalho, para Piratininga, pois aquele portugus e sua extensa famlia estava em disputa

    com os jesutas. Neste tempo estava com Mem de S o padre Manoel da Nbrega, que teria sido

    o principal causador desta mudana, caracterizando uma vitria dos jesutas sobre Joo Ramalho.

    Na passagem do ano de 1560 para 1561 os principais habitantes portugueses de Santo Andr e

    Piratininga tinham apenas a igreja dos jesutas para realizar as suas festas religiosas: seria esse o

    local em que, segundo as palavras de Anchieta, Nbrega teria solicitado um auto a um irmo em

    troca daqueles que os principais da terra estavam querendo realizar e no seriam to bem

    recebidos no ptio daquela Igreja. Outra fonte parece confirmar essa hiptese: a biografia de

    Quircio Caxa, Breve relao da Vida e Morte do P. Jos de Anchieta, que cita Anchieta como

    autor desse auto encenado em Piratininga. Embora no tendo convivido com o padre em

    Piratininga, Quircio Caxa esteve com ele na Bahia e no Rio de Janeiro, ocasies em que teria tido

    oportunidade para obter informaes sobre essas representaes.

    Os indcios so talvez frgeis e Maria de L. de Paula Martins, que dirigiu a importante publicao

    das Poesias de Anchieta para o quarto centenrio de seu nascimento, 1934, pondera, refletindo a

    partir do caderno manuscrito existente em Roma nos arquivos da Companhia de Jesus, que

    possvel duvidar da autoria de Anchieta em certas poesias desta coletnea(o caderno).

    Surpreende, em obra to volumosa, no se encontra uma nica assinatura do autor33.

    preciso convir, entretanto, e a prpria autora chama nossa ateno para isso, que Anchieta no

    escrevia peas e poemas como um literato mas sim para serem aproveitadas por ele e pelos

    padres da companhia em rcitas ou apresentaes teatrais, sendo apenas por esta razo

    impressas suas obras, muitas vezes por outros. Por outro lado, como a palavra Reritiba aparece

    num verso desse autgrafo sem ttulo (Rerytype amboa, outros mais de Reritiba34), podemos

    supor ser esse o local de sua primeira apresentao. Alis, Anchieta ali viveu no final de sua vida.

    Nesse caso, no se trataria, talvez, do mesmo texto encenado em Piratininga. No autgrafo os

    Temimin, que viviam entre Niteri e no Esprito Santo, aparecem como amigos dos padres e

    como estando ao lado do bem. Assim como aparecem tambm os seus vizinhos os Arakaj. H um

    outro problema para considerar este autgrafo como sendo o primeiro texto de Anchieta, escrito

    33 Maria de L. de Paula Martins, Jos de Anchieta: Poesias. So Paulo: Museu Paulista. 1934, p 12. 34 trad. Pe Armando Cardoso, op. cit. p 123

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    quando de sua passagem por Piratininga: a presena nele dos personagens Aimbir e Guaixar,

    grandes chefes tamoios, que o padre conhecera ou quando estivera entre estes ndios em

    Ubatuba,(1563) ou por ocasio da expulso dos franceses do Rio de Janeiro.(1565). Nada

    impede, entretanto, que os Temimin, Reritiba e estes chefes tamoios e seus feitos tivessem sido

    conhecid