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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO
DISSERTAO DE MESTRADO
O TEATRO DE JOS DE ANCHIETA ARTE E PEDAGOGIA NO BRASIL COLNIA
Autor: Paulo Romualdo Hernandes Orientador: Prof. Dr. Joaquim Brasil Fontes Jnior
Campinas, SP
2001
Este exemplar corresponde redao final da dissertao defendida por Paulo Romualdo Hernandes e aprovada pela Comisso Julgadora. Data: ____/____/____ Assinatura: _______________________ COMISSO JULGADORA: _____________________________________________ Prof> Dr. Joaquim Brasil Fontes Jnior _____________________________________________ Profa. Dra. Eveline Borges Itapura de Miranda ______________________________________________Profa. Dra. Roseli Aparecida Cao Fontana
ii
Paulo Romualdo Hernandes, 2001.
CATALOGAO NA FONTE ELABORADA PELA BIBLIOTECA DA FACULDADE DE EDUCAO/UNICAMP
Bibliotecrio: Gildenir Carolino Santos - CRB-8/5447
Hernandes, Paulo Romualdo. H43t O teatro de Jos de Anchieta : arte e pedagogia no Brasil colnia / Paulo Romualdo Hernandes. -- Campinas, SP : [s.n.], 2001. Orientador : Joaquim Brasil Fontes Jnior. Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de
Campinas, Faculdade de Educao.
1. Anchieta, Jos de, 1534-1597. 2. Teatro. 3. Educa- o. 4. Arte. 5. Brasil - Colonizao - Histria I. Fontes Jnior, Joaquim Brasil. II. Universidade Estadual de Campinas.
Faculdade de Educao. III. Ttulo.
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Jos de Anchieta, um ser especial, um professor
Sonhava tocar violo, cantar, mas tinha medo. Certo dia, passados
muitos dias, anos de minha vida, ajudado por um paciente professor, enfrentei o medo e, vendo sangrar
os meus dedos, ficar rouca a minha voz, realizei o meu sonho, toquei e
cantei "Aquarela" de Vincius e Toquinho. Que imensurvel,
inesquecvel e eterna felicidade.
"Em uma folha qualquer eu desenho um navio de partida. E com alguns bons amigos bebendo de bem com a vida.
Giro um simples compasso e num instante eu fao um mundo. De uma Amrica a outra fcil passar em um segundo".
(Aquarela) Toquinho e Vincius de Moraes
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Maria Lcia e Gabriel, meus amores, companheiros em mais esta empreitada.
Aos meus queridos, barulhentos e falantes familiares, os Hernandes e os Queiroz Guimares.
Aos meus queridos amigos que sopram o vento sempre a meu favor: Joaquim Brasil Fontes, Roseli Cao Fontana, Snia
Giubilei, Marcos Francisco Martins e Marins, Asccio dos Reis Pereira e Fabiana, Anielise.
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AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Joaquim Brasil Fontes Jnior pela orientao do trabalho. Prof. Dr. Eveline Borges Itapura de Miranda, Prof. Dr. Roseli Aparecida Cao Fontana, e a Prof. Dr. Mrcia Strazzacapa Hernandez, membros da banca de qualificao e defesa pelas sugestes e contribuies.
FAPESP - Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo, pelo apoio financeiro e pelos pareceres cientficos sempre importantes.
Rosngela, bibliotecria da Companhia de Jesus, em Itaici (SP), que alm
de colocar minha disposio um dos maiores acervos de obras jesuticas, do pas, ainda me possibilitou entrevistar o padre Armando Cardoso, maior conhecedor da vida e obra de Anchieta, hoje com 95 anos de idade e trabalhando como nunca.
Ao Gil, bibliotecrio da Faculdade de Educao, Unicamp, Cidinha, Nadir,
Rita, da secretaria de Ps-Graduao que me apoiaram e tornaram sempre as coisas mais fceis.
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RESUMO
Esta tese procura colocar em evidncia que, ao contrrio dos postulados de uma crtica tradicional, o teatro anchietano no pode ser circunscrito e compreendido apenas na esfera do pedaggico, pois ele tambm um conjunto de signos postos em movimento no intuito de criar iluses cnicas. neste sentido que ele aqui estudado, no campo da semitica da histria da cultura e de uma tradio do teatro medieval. Esse trabalho de investigao nos leva a concluir que a fora do teatro de Anchieta repousa basicamente num magistral exerccio de signos em que a arte e educao esto indissoluvelmente ligados.
ABSTRACT
The present thesis will try to prove that on the contrary of what is assumed in traditional criticism, Anchieta's theatre cannot be restricted and comprehended only within a pedagogic sphere, whereas it is also a collection of signs put in motion with the intention to create scenical illusions. Thereby it is to be studied here, in the area of culture's history semiotics and of a medieval theatre tradition. This research leads into the conclusion that the strength of Anchieta's theatre remains essentially on a perfect practice of signs in which art and education are indissolubly connected.
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xi
SUMRIO
PRLOGO.......................................................................................... 1
JOS DE ANCHIETA: ATOR/PERSONAGEM................................. 7
EENGAT. A "BOA FALA"............................................................ 21
VISO PANORMICA DO "AUTO DA PREGAO UNIVERSAL" 35
O "AUTO DA PREGAO UNIVERSAL": UMA LEITURA ATENTA 49
ENCONTROS E DESENCONTROS NO PALCO. O
SENSUALISMO INDGENA... O ESPIRITUALISMO CRISTO......
77
REFERNCIAS.................................................................................. 145
1
PRLOGO
O Teatro de Anchieta um captulo de nossa histria cultural e espiritual; com
esse ttulo, ele figura nos bons manuais de literatura brasileira, que nos ensinam
tratar-se de um tipo de encenao caracterstico do perodo colonial, posto em
movimento para converter (em nome do cristianismo que a coroa portuguesa tinha
assumido como misso estender s terras de alm-mar) os viciosos moradores
daquelas regies relutantes verdadeira f.
Permitam-me, contudo, iniciar este trabalho assumindo o lugar do Prlogo das
velhas comdias latinas e proferir, da boca de cena com minha boca de mscara,
esta pergunta que poderia parecer inquietante no ponto de partida de um trabalho
que tem por tema o teatro de Anchieta: esse teatro existe, como encenao
visando exclusivamente a catequese? um teatro pedaggico?
esse intrigante jogo entre arte, pedagogia, religio, teatro e catecismo, tendo
como palco ou sala de aula o Brasil quinhentista, que vou tentar encenar nesta
dissertao.
O teatro de Anchieta tem sido visto de forma geral por especialistas de
literatura, teatro, histria, religio, como obra de catequese: um "teatrinho" para o
catecismo. Mas, seja ele teatrinho-catecismo ou arte dramtica, antes de mais
nada um acontecimento que se localiza em meio mata atlntica do Brasil no
sculo XVI. Ao refletir, ento, sobre este evento histrico, sendo ele teatrinho-
catecismo ou arte dramtica (como Prlogo, tenho o direito de insistir no meu
tema, repetindo-o, como faziam os velhos comediantes para o gudio de uma
platia composta de doutos ou incultos romanos), vieram tona os possveis
encontros e desencontros entre duas culturas totalmente diferentes que se
reuniam "na sala de aula" em meio a mata ou na representao teatral no adro de
alguma Igreja de taipa coberta de palha. Os encontros e desencontros essa
2
"dialtica da colonizao" so uma forma do combate travado entre o europeu e
jesuta Anchieta e o seu sonho ou delrio: a vida que ele queria ensinar o aluno ou
nativo-espectador a viver. Afrontamento de duas culturas, no palco da selva, ao
pio dos pssaros, aos guinchos de macacos e rugidos de bestas, silvos de serpes:
de um lado uma religio velha apenas de mil e quinhentos anos, mas sustentada
pelo poder das palavras e dos canhes; de outro , o nativo com seus costumes e
religies talvez muito mais antigos mas nus, e armados apenas de plumas e
flechas. Passa no ar uma guia carregando nas garras um animal selvagem que
no sabemos qual seja: isso pode ser apenas um elemento casual para o nosso
drama ou um vaticnio.
Para colocar esta reflexo no jogo do combate verbal uma grande dificuldade
entretanto se impunha: penetrar no dilogo anchietano. Uma grande dificuldade
que deriva em primeiro lugar da inquietante aura de poder que brilha em torno
deste beato que ser sem dvida o primeiro santo brasileiro a ser canonizado,
embora espanhol de nascimento: como dialogar com a divina misso que pulsa
nestes textos, sem faz-lo de fora, como um etnlogo observando uma religio
considerada primitiva? Segundo, porque se trata de um texto (dilogo e
representao) produzido num pas de no-letrados, o Brasil quinhentista,
tornando, portanto, muito difcil o seu estabelecimento*; e ainda, por que boa
parte dos dilogos foram feitos na lngua mais falada da costa do Brasil, o tupi.
Quanto primeira grande dificuldade, relacionada ao nome de seu autor, foi
preciso antes de mais nada desconstruir este poder de santo, que o sobrecarrega,
e tentar chegar o mais prximo possvel do homem e talvez dramaturgo Jos de
Anchieta. Muito embora jamais tenhamos condies de conhecer o verdadeiro
homem, era preciso chegar o mais perto dele, ou afastar-se dessa imponente e
brilhante imagem de santo que pode cegar os olhos do leitor ou estudioso de suas
obras. Essa tarefa se tornou relativamente possvel graas existncia de cartas
outras informaes, poemas e epopias, alm da leitura de vrias biografias da
* O estabelecimento de um texto medieval tarefa complicada; na maioria dos textos, caso do teatro de Anchieta, realizado a partir de manuscritos que apresentam dificuldades, como lacunas e borres, partes faltando, vazios, que acabam sendo completadas, corrigidas pelos copiadores e por aqueles que tm a funo de estabelecer estes textos. Um estudioso de obras medievais, portanto, dificilmente, ter em mos, ou vista, o texto original.
3
poca e outras atuais. Foi necessrio, tambm exercer um mtier de novelista,
tentando imaginar o homem Anchieta vivendo a histria quinhentista portuguesa e
brasileira, e, ao mesmo tempo, fazer-se ensasta e pesquisador-romancista,
divagando sobre que tipo de formao teatral que poderia ter tido o estudante e
provvel apreciador do teatro portugus da poca.
Quanto ao estabelecimento do texto, o dilogo e a sua representao, contei,
felizmente, com o hbito que tinham os jesutas em registrar todos os passos
dados pela Companhia de Jesus pelos lugares em que passou, onde trabalhou,
atravs de cartas trimestrais regulares, alm de informaes, histrias, realizaes
emitidas pelos seus principais. Especificamente quanto ao estabelecimento do
texto do teatro em si, o que facilitou o trabalho foi o costume que tinham os
homens da Companhia de espalhar por todos os lugares em que estavam
presentes, cpias das peas que tinham causado um bom efeito no espectador,
principalmente no indgena, caso que reputo serem as peas de Anchieta, a fim de
que fossem usadas para representao nesses lugares. Assim, temos uma grande
quantidade de textos autgrafos e cpias feitas na poca das peas que foram
reunidas em Teatro Obras Completas pelo maior especialista vivo em Anchieta,
o Padre Armando Cardoso, que foi base, suporte, para as minhas reflexes.
Outra grande dificuldade que se apresentou ao entrar no texto est relacionada
lngua em que ele foi escrito, o tupi, que era para mim um desafio quase
intransponvel, no sendo eu especialista em idiomas indgenas, antigos ou
modernos. Existem no entanto primorosas tradues do teatro de Anchieta, entre
elas a do padre Cardoso j citado, como tambm a de Eduardo Navarro,
conhecido estudioso de tupi, para citar as mais atuais, ou as de Maria de L. de
Paula Martins e Guilherme de Almeida, um pouco mais antigas, entre outras. A
partir destas tradues fiz uma leitura atenta, constituindo quase que uma nova
verso, pois as preocupaes destes tradutores eram muito diferentes das minhas
por terem sido executadas em outro solo ideolgicos e conduzidas por outros
objetivos.
4
E aqui o Prlogo retoma um dos seus motes, provando seu talento de
comediante: seja arte dramtica ou catecismo, o teatro de Anchieta um
acontecimento histrico; seja representao/encenao pedaggica e portanto
aula de catequese, ele tem enredo, argumento, assunto prprio para um pblico
especfico, e assim uma forma de representao cnica situada no tempo: para
aproximar-se dele preciso consider-lo na ordem dos acontecimentos e dos
efeitos. Como faz-lo?
Em primeiro lugar, muita leitura muito atenta das tradues existentes.
Tentativas de recuperar os seres nas palavras pronunciadas... e ouvidas; e
perguntar: quem as disse, quando, dirigindo-se a quem? Que ser, homem, animal
ou divindade designa o personagem Guaixar (chefe Tamoio) ao se apresentar no
Auto da Pregao Universal, e igualmente no Auto de So Loureno, como: xe
aangus mixyra? As tradues registram: eu sou o grande diabo ou diabo
assado, o que imediatamente compreendido pelo leitor/espectador cristo, mas
e para o indgena, pblico alvo tanto do teatro ou do "teatrinho catecismo" falado
em tupi, o que poderia significar o termo diabo? Dispunha ele desse conceito
moderno, cristo, articulado dialtica do bem e do mal? Saberemos algum dia o
que foi, para o habitante do Brasil no sculo XVI, aangus mixyra?
Como se v, tratava-se de um conjunto de textos crivado de armadilhas, no
qual entretanto eu desejava penetrar, valendo-me, obviamente, de muita ajuda.
Alm de todas as tradues j citadas acima, foi preciso espalhar pela mesa de
estudos a opinio dos especialistas em tupi, dos dicionrios, dos vocabulrios
(entre eles alguns do sculo XVI e XVII que se encontram manuscritos na
Biblioteca Nacional), mtodos, gramticas (entre elas a de Anchieta para a lngua
mais falada na costa do Brasil), de alguns cronistas da poca. Isto foi feito e
revelou, acredito, muito segredos contidos tanto no teatro, no dilogo, quanto na
convivncia entre nativos e estrangeiros e seus combates: ideolgicos, culturais,
sociais, polticos. Recuperada, pelo menos aproximadamente, a materialidade das
palavras temos; assim, posso agora revelar que Xe aangus mixyra quer dizer
5
aproximadamente Eu sou o grande esprito malfazejo das matas assado.
Surgiria, como se v, um novo desafio: que poderia significar para o
espectador indgena daquele teatro e/ou aula de catecismo um chefe tamoio que
se diz esprito malfazejo das matas assado? Se dos nossos dias um poltico a si
mesmo designasse como grande diabo assado, fatalmente, sem maiores
explicaes, o ouvinte que pertencesse ao meio social do falante entenderia
rapidamente sem maiores explicaes. Certamente, tambm, na atmosfera social
do Brasil quinhentista um personagem apresentando-se para o pblico (sobretudo
o indgena) como sendo um chefe indgena e ao mesmo tempo um esprito
malfazejo das matas (talvez at para o no indgena) sua fala seria entendida da
mesma forma. Assim, foi preciso, aps recuperar os referentes das palavras ditas
pelos personagens do dilogo anchietano, recompor de forma aproximada o meio
social em que foram ditas, pois s assim seria possvel perceber o seu efeito, o
seu significado, naquele momento e para aquele espectador. Ser um esprito
malfazejo das matas significa entre outras coisas ser algum, no caso um chefe
tamoio, que morreu como um covarde e efeminado (no no sentido que estas
palavras teriam hoje e sim naquele para o indgena do Brasil quinhentista) e por
isso mesmo no podia ir para a "boa" terra dos ancestrais. Para trazer de volta o
sentido de expresses como aangus assado e sua "vida" social no universo das
matas brasileiras quinhentista, contei com a ajuda de cronistas da poca: o prprio
Anchieta, Manoel da Nobrega, Jean de Lery, Andr Thevet, Simo de
Vasconcelos, Hans Staden entre outros; tambm me apoiei nos trabalhos de
especialistas, socilogos e antroplogos contemporneos: A. Metraux, Florestan
Fernandes, Srgio Buarque de Holanda; e de etnlogos: Pierre Clastres e Claude
Lvi-Strauss. Ao repatriar ou trazer de volta ao solo da lngua portuguesa o
aangus assado e outros elementos do universo indgena presentes no teatro
anchietano, foi possvel perceber alguns encontros e desencontros existentes nos
intervalos entre a vida e a ideologia crist medieval, espiritualista, e a vida e
ideologia indgena, sensualista.
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Assim, enquanto o trabalho avanava, eu me sentia cada vez um pouco mais
prximo de imaginar como teria sido a realidade social vivida pelo seu autor, o
Anchieta dramaturgo ou professor de catecismo; um pouco mais longe, portanto,
daquela outra imagem poderosa de santo e mais perto das palavras e sentidos
que poderiam ter no momento em que e para quem foram ditas; mais longe
daquilo que se quer que elas tenham dito. Tratando-se de tarefa complicada s
possvel a longo prazo, rodei, neste mestrado que deve ser realizado em dois
anos e meio, em torno de um nico texto: o segundo ato do Auto da Pregao
Universal.
A escolha foi motivada por vrias razes: trata-se de um autgrafo redigido em
tupi, o que significa dizer que contou com a participao (atuao e platia)
indgenas; ele considerado o primeiro auto de Anchieta, no muito extenso,
contando de pouco mais de quatrocentos verso, tendo sido retomado parcialmente
ou inteiro em vrios outros autos; completo, ou seja, tem comeo, meio e fim,
apresentando, assim autonomia semntico-teatral.
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JOS DE ANCHIETA: ATOR/PERSONAGEM
A construo de uma imagem1.
O tempo incorporou Jos de Anchieta, definitivamente histria da colonizao
do Brasil; em torno do seu nome pulsa uma aura de eptetos, quase sempre
valorativos, embora pontuada aqui e ali por uma suspeita ou acusao . De
qualquer modo, algum venervel, imensa figura de cristo e catlico, baluarte
da religio nas selvas do Novo Mundo, vista como um dos principais responsveis
pela transformao do nativo brasileiro e do Brasil num pas portugus, catlico e
cristo. o que pensam tanto aqueles que enfatizam o lado positivo dessa
empresa (ele vinha salvar as naes indgenas da barbrie em que viviam),
quanto aqueles que detectam na ao dos missionrios uma das razes do
desterro espiritual em que vivemos e do aniquilamento da cultura primitiva.
V-se em Anchieta um dos fundadores da maior cidade do Brasil: So Paulo, e
tambm da cidade do Rio de Janeiro. um beato em processo de santificao: o
primeiro santo brasileiro? ainda um heri nacional que ajudou a Mem de S,
terceiro governador do Brasil Colnia, a expulsar os franceses do litoral carioca.
Mas por que no v-lo tambm como um anti-heri, a esse homem que ajudou
a submeter e subjugar uma nao de dimenses continentais ao domnio e
explorao da Coroa portuguesa e da Igreja Catlica? Autor de uma gramtica em
tupi, da lngua mais falada no Brasil e autor de textos descritivos da fauna e da
1 E o padre chamou a vbora e veio a seu chamado; assentou-se e tomou-a com a sua mo, e a ps no regao, afagando-a; tomou disto motivo para falar aos ndios de Deus, e lhes encarecer como todas as coisas, at aquele animal to feroz, obedeciam a quem obedecia e guardava os mandamentos de Deus. E passado algum tempo nesta prtica, deitou uma beno cobra, e a mandou fosse quietamente, como fez.. Pero Rodrigues, Vida do Padre Jos de Anchieta da Companhia de Jesus. So Paulo: Loyola. 1988 p. 183. Uma vez voltando eu para Piratininga de certa povoao de portugueses, para onde a obedincia me fizera ir com outro irmo a ensinar a doutrina, encontrei uma cobra enroscada no caminho; fazendo o sinal da cruz, bati-lhe com o basto e matei-a. Pouco depois comearam a sair outros do ventre materno: e sacudindo eu o cadver, apareceram outros filhos ainda, em nmero de onze, todos animados e j perfeitos, exceto dois. ...s descansamos em Jesus, Senhor nosso, que o nico que pode fazer com que nenhum mal soframos, andando assim por cima de serpentes. Jos de Anchieta. Cartas, Informaes, Fragmentos Histricos e Sermes. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo. 1988 p. 125.
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flora brasileira, Anchieta perguntam-se seus detratores no pode tambm ser
responsabilizado pela destruio da cultura primitiva e o desaparecimento de uma
lngua em que se diziam mitos, oraes e, sem dvida, a histria de um povo?
Inscrito no panteo da literatura brasileira como um de nossos primeiros
poetas, Anchieta, autor de um contraditrio teatro-catequese, tambm um ator
que atua no desenrolar deste drama que a nossa histria: venervel e poderoso
personagem, um medieval na alba do Renascimento, convertendo selvagens nas
florestas do Novo Mundo. Mas, se deixarmos de lado esse personagem/autor/ator,
quem seria o homem Jos de Anchieta?
No sei se possvel responder a essa questo: Jos de Anchieta um
constructo verbal, um texto, em suma, obsessivamente feito e refeito por bigrafos
como Pero Rodriguez, Quiricio Caxa, Ferno Cardim, entre outros que conviveram
com ele e que j iniciaram a inveno de uma imagem com caractersticas
prprias do seu tempo. O mesmo fizeram posteriormente os especialistas em
teatro, literatura, histria, artes plsticas ou os religiosos que recriaram essa figura
a partir da ideologia de sua prpria poca.
Esta imagem foi se formando gradualmente e comeou a se compor j durante
sua vida, de forma s vezes contraditria: hoje ele seria o santo de que a Igreja
Catlica tanto necessita; houve o momento em que se encarnou nele o heri
nacional; para uma concepo histrica da literatura ele primeiro estrangeiro a
escrever em brasileiro. Mscaras, portanto: o Evangelizador, o Poeta, o
Dramaturgo, mas tambm o Anti-Heri. Mscaras que acabaram por soterrar a
realidade e a materialidade de homem de um tempo e lugares determinados e que
foi dialeticamente sendo transformado e transformando as idias, a histria das
comunidades em que viveu, assim como a sua histria e as obras que deixou.
Estudando o mundo lendrio nascido das conquistas castelhanas na Amrica,
Srgio Buarque de Holanda refere-se a algumas biografias do Padre Anchieta
(quase hagiografias), inscrevendo-as num gnero que, por definio, deve dar
crdito ao sobrenatural, mas chamando tambm a ateno para o fato de que
9
certas idias bem precisas e at pragmticas servissem de reforo simples
devoo visionria sempre aberta possibilidade de raros portentos, isto ,
milagres esses relatos teriam assim uma ambio mais definida:
como seja a de ver eternamente glorificada a obra missionria dos inacianos nesta parte do novo mundo atravs da canonizao de um de seus maiores apstolos de sorte que o Brasil nada ficasse a dever s ndias. Anchieta canarino de ascendncia basca seria como a rplica americana de So Francisco Xavier, outro basco2.
De uma pequena ilha no Atlntico para um centro estudantil portugus
As poderosas mscaras com que o tempo foi vestindo o personagem/ator
Anchieta, representando-o ora ao lado do bem: o santo; ou, ento, do mal: o anti-
heri, fizeram desaparecer completamente do cenrio como poderia ter sido a vida
do menino Anchieta no vilarejo em que ele nasceu.
So Cristovo da Laguna, Tenerife, numa das ilhas Canrias: neste lugar
iniciou, certamente, sua formao, no interior de uma cultura, de uma religio, de
uma concepo de arte e teatro.
O santo ou anti-heri em cena faz vir mente aquela figura velha e encurvada
escrevendo poemas na areia, Virgem Maria, apagando com seu brilho intenso
outras possveis figuras e imagens de Anchieta. Brilho fulminante que faz
desaparecer da vida do menino/personagem (na imaginao do pesquisador-
romancista, desta dissertao/encenao) aquele perodo que para todo menino
o de maior deslumbramento e que deve, com certeza, fazer parte das suas
criaes artsticas e de sua viso de mundo: as festas populares prprias do
lugarejo em que nasceu, pantomimas, teatro, msicas, o riso, as rezas, os teatros
de fantoches que viveu nas Ilhas Canrias, que foram colonizadas tanto por
portugueses e sua cultura, como por espanhis.
Bisneto de conquistadores da ilha (sua me Mncia Diaz de Clavijo y Llarena
era parente daqueles que so considerados como os primeiros colonizadores da
2 Srgio Buarque de Holanda, Viso do Paraso. So Paulo: Brasiliense. 1994 p. 135.
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ilha), Anchieta convive at seus quatorze anos com um ambiente de mltiplas
culturas (africanas, europias, nativas), recm se descobrindo e se modificando,
numa atmosfera no muito diferente da que mais tarde encontraria no Brasil. O
pai, Juan de Anchieta, funcionrio do Governo, proveniente da Biscaia na
Espanha, era parente distante de Incio de Loyola, o fundador da Companhia de
Jesus.
Aos quatorze anos de idade saiu do pequeno vilarejo em que vivia para ir com
seu meio irmo mais velho, filho do primeiro casamento de sua me, Pedro
Nunes, para a metrpole quinhentista, europia e portuguesa, Coimbra. Coimbra
neste momento o grande centro estudantil de Portugal e um dos maiores centros
da Europa. Por l se discute de tudo um pouco, com as idias humanistas
fervilhando, vindas principalmente da Frana, trazidas por Andr de Gouveia que
foi reitor do Colgio de Guienne, em Bourdeux e orientador do Colgio Real, mais
tarde das "Artes", de Coimbra.
Anchieta ingressa neste Colgio em 1548, perodo de maior efervescncia das
idias humanistas. Um ano antes chegara ao Colgio Real o professor e
dramaturgo escocs Jorge Buchanan que segundo Luciana Stegnano Picchio,
vinha ensinar e tinha muitas esperanas de ver as representaes pblicas de suas adaptaes de Eurpides, um Alceste e uma Media, e sobretudo das suas tragdias originais, o Jephthes e o Baptiste, j levadas cena em Bordeux, como recorda Montaigne nos ssais.3
Teve como professor outro renomado humanista, Diogo de Teive, tambm
dramaturgo, cujas peas colocavam em cena temas bblicos como Golias, mas
que j apresentavam caractersticas das tragicomdias, que alcanariam seu
esplendor atravs dos jesutas. O drama humanista coloca em cena no final da
idade mdia e incio da moderna o teatro "profissional organizado e inspirado na
esttica e nos temas das tragdias e comdias do antigo teatro greco/romano.
Representaes teatrais que aconteciam em lugares apropriados, as salas de
teatro, os sales das cortes e contavam com um espectador especfico, o homem
culto.
3 Luciana Stegagno Picchio. Histria do Teatro Portugus. Lisboa: Portuglia Editora.[sd]
11
Se fssemos escolher um marco para a "Renascena" do teatro, a data seria 1486. o ano em que a primeira tragdia de Sneca foi montada em Roma pelos humanistas e a primeira comdia de Plauto pelo duque de Ferrara. E foi nesse ano tambm que saiu do prelo a De Architectura (Dez Livros sobre a Arquitetura) de Vitrvio, uma contribuio essencial para plasmar o palco e o teatro segundo o modelo da Antiguidade. 4
O teatro humanista se contraps ao teatro medieval, encenaes populares
com temas da religio crist. Representao pedaggica que colocava em cena
os bons e maus costumes, os mistrios, a vida dos mrtires e dos santos da Igreja
Catlica, tinha lugar nos adros das igrejas, nas praas das vilas e cidades
europias, nos dias de festas religiosas. Anchieta, homem culto, mas religioso,
teve certamente, que passar por esta contradio.
Um grande terremoto, ideolgico, e no fenmeno natural, devasta Coimbra
nesses tempos: a Inquisio. Diogo da Teive, considerado calvinista e heterodoxo,
preso e pelo mesmo motivo Buchanan expulso de Portugal. Este fenmeno
soterra, acredito, o mpeto do teatro do Renascimento em Portugal e, dos seus
escombros se fortalecem os autos e atos de f de esttica medieval.
Neste momento difcil, porque passa Coimbra, preciso fazer entrar em cena,
a voz da imaginao do pesquisador-romancista. O jovem Anchieta, ento com
dezessete anos, deve ter sofrido muito com este abalo. Considerado um grande
latinista, j no Brasil iria escrever uma epopia, De Gestis Men de S, em latim e
inspirada na Eneida, de Virglio. Era no mnimo conhecedor do Grego, j que
comparou algumas caractersticas entre o tupi e essa lngua. Com certeza
apreciador das peas teatrais que aconteciam nos ptios do Colgio das "Artes"
realizadas pelos seus professores Buchanan e Diogo da Teive, pois mais tarde se
tornaria um grande poeta e criador teatral.
Alm do que era filho de cristo novos, por parte de sua me sendo o irmo
Pedro, que o acompanhou Coimbra, cristo novo inteiro. Cristos novos e seus
parentes que foram duramente perseguidos pelos tribunais do Santo Ofcio. Em
4 Margot Berthold, Histria Mundial do Teatro. So Paulo: Editora Perspectiva, 2000 p. 270.
12
1551, Anchieta ir ingressar em uma nova ordem religiosa que est surgindo na
Europa, a Companhia de Jesus, que convite do Rei D. Joo III, est se
fortalecendo e crescendo em Portugal, principalmente nas colnias portuguesas.
J que o pesquisador-romancista entrou em cena, dando voz imaginao,
preciso deixa-lo continuar com seu delrio criativo. Talvez o momento difcil por
que passava Coimbra, perigoso principalmente para os humanistas, cristos
novos ou parentes de cristos novos, o prestgio que tinham os jesutas para o rei
D. Joo III e o prestgio que tinha Incio de Loyola junto Igreja Catlica e aos
reis espanhis, tenham influenciado e muito na deciso do jovem de dezessete
anos para aderir de corpo e alma Companhia de Jesus e a seus trabalhos de
evangelizao e propagao da f crist e da ideologia catlica pelas longnquas
colnias de Portugal. importante mencionar ainda que o fundador desta ordem,
Incio de Loyola, teria salvo da morte o pai de Anchieta, condenado por participar
da revolta dos Comuneros quando, ento, ele se viu obrigado a transferir-se para
Tenerife, segundo biografia realizada pelo Padre Viotti.
Do efervescente centro estudantil portugus floresta atlntica
Em 1553, com vinte um anos, Anchieta, atravessaria o perigoso Oceano
Atlntico, travessia sem dvida precria, desembarcando na Bahia, juntamente
com outros padres e irmos da Companhia de Jesus, que tambm doentes,
buscavam nos ares do Brasil, segundo indicaes de mdicos da poca, sua
nica esperana de cura. Entre esse padres e irmos jesutas estava Luiz da Gr,
que se tornaria o segundo provincial do Brasil em substituio a Manoel da
Nbrega, ele que tinha sido o reitor do Colgio das Artes em Coimbra a partir de
setembro de 1550 e com quem Anchieta estudou, no perodo do grande perigo.
Estava tambm nesta embarcao o segundo governador geral do Brasil Colnia,
D. Duarte da Costa5
5 Viotti, Jos de Anchieta, [sl] Tenenge; Fundao Emlio Odebrecht, Sociedade Brasileira de Educao, 1986, p14
13
A armada que traria Jos de Anchieta partiu de Lisboa a 8 de maio de 1553,
chegando ao Brasil em 13 de julho deste mesmo ano. A viagem deve ter sido
tima, comparada s navegaes da poca, movidas pela inconstncia dos
ventos, das calmarias, tempestades e dos tripulantes, viagens que quase sempre
duravam muitos meses e vitimavam com escorbuto muitos de seus navegantes.
As viagens eram de tal maneira sofrveis que chegar ao Brasil e recuperar a sade
era uma das "vises do paraso" que acabavam tendo os europeus das Amricas,
como nos conta Srgio Buarque de Holanda em seu livro:
Era principalmente (no, porm, exclusivamente no caso do escorbuto que o marinheiro, aps navegao extenuante, efetuada em condies que muito deixariam a desejar do ponto de vista da higiene, sujeito a dietas de todo inadequadas, combalido de corpo e esprito, teria probabilidades maiores de um restabelecimento capaz de impressionar pela rapidez. Compreende-se pois como, iniciadas as extensas navegaes atlnticas, ao largo de mares ainda mal praticados, onde a escassa familiaridade com as correntes, os ventos, at mesmo as possveis direes, expunha os veleiros a inesperada calmarias ou a demoras excessivamente prolongadas (e era nestes casos que a "peste do mar" se fazia sentir com mais sanha), o restabelecimento radical, obtido algumas vezes logo aps o desembarque, teria todas as aparncias de um sucesso misterioso e sobrenatural. Tanto mais quanto se tratava de praga ainda mal conhecida dos viajantes, habituados muitas vezes a navegaes vista da terra, onde eram numerosas as ocasies de desembarque.6
Anchieta teria se sentido to bem na viagem que se ocupou da cozinha da nau
em que estava7.
Desembarcando na Bahia deve ter trazido consigo, como qualquer jovem,
latente na memria as lembranas e ideologias do seu tempo, e do lugar onde
nascera como tambm do perodo que vivera na metrpole portuguesa: a
mudana para Coimbra, os ensinamentos que tivera na escola jesuta, e ainda, o
que era prprio de suas aptides: uma facilidade e um olhar aguado para
aprender novas lnguas (ele desenvolver rapidamente uma gramtica do Tupi,
aos moldes das latinas), mas ainda que escrevia versos em castelhano, assim
6 Srgio Buarque de Holanda, op. cit. p 208. 7 Viotti, op. cit. p 14.
14
como em portugus, e em latim. Sua lngua nativa era o basco. Vivendo em um
lugar desconhecido e em tudo diferente daquele de Coimbra, especialmente,
aproveitando-se das aptides que tinha para as letras e o olhar aguado,
escreveu, entre dificuldades como a de no dispor de tinta e papel, poemas, autos
e cartas histricas, religiosas e poticas com descries da vida e da flora e fauna
brasileiras. Alm disso comps um teatro em vrias lnguas, no meio da mata
Atlntica, entre homens nativos e estrangeiros (estranhos ao local como ele), que
conseguia misturar personagens e temas nativos e europeus.
Anchieta, no Brasil, ficou na Bahia at outubro de 1553, lugar em que iniciara
assim que chegou a estudar o tupi, a lngua mais falada da costa. Em outubro
embarca com o padre Leonardo Nunes, que viera com o padre Manoel da
Nobrega, 1549, para So Vicente, lugar em que a amizade dos portugueses com
os nativos j se fazia intensa e onde os padres jesutas esto tendo mais sucesso.
A caravela em que viajam aoitada por uma terrvel tempestade em Abrolhos,
correndo srios riscos de naufrgio, mas conseguem se salvar chegando no
Esprito Santo para reparar os estragos. Foram ajudados pelos ndios certamente
porque o padre Leonardo Nunes, e talvez at mesmo Anchieta, j sabiam falar a
lngua deles, seguindo viagem, chegando em So Vicente em 24 de Dezembro de
1553.
De So Vicente segue com o padre Miguel Paiva e com mais doze ou treze
irmos jesutas, para a aldeia nova de Piratininga e participa da construo de
uma casa e uma igreja pequenas e muito frias como as descreve Anchieta,
recebendo o nome de So Paulo, por ser inaugurada com uma missa em 25 de
janeiro de 1554, dia que se deu a converso deste santo ao cristianismo. Na
construo da casa e da igreja so ajudados pelos ndios do lugar, cujos filhos
iriam ser catequizados. Inicia imediatamente o ensino de latim para os irmos
jesutas que na sua maioria foram recrutados pelo Padre Leonardo Nunes para a
Companhia de Jesus no Brasil. Homens que viviam aqui antes mesmo da
chegada dos jesutas, alguns deles por serem "bons lnguas" como o caso dos
alunos de latim, de Anchieta, que acabaram morrendo entre os ndios e se
15
tornando mrtires, Pero Crreia e Joo de Souza. Com certeza houve entre os
irmos uma troca muito interessante, o grande latinista, e os "bons lnguas"
resultando, j em 1555, uma gramtica da lngua mais falada no Brasil, feita pelo
irmo Anchieta, aos moldes da gramtica latina, que se espalhou rapidamente por
todos os colgios da Companhia e em 1595, contava com uma primeira edio
em Portugal. O personagem Anchieta fala, ensina. O jovem Anchieta segue os
ensinamentos da sua ordem: ouve, aprende. Figura na constituio da Companhia desenvolvida por seus fundadores o famoso Perinde ac
cadaver (assim como um cadver), indicando que seus membros devem acima de tudo
obedincia aos seus superiores na Igreja e na Companhia e respeito aos moradores dos lugares
por eles visitados. Acima de tudo ouvir, ou antes, misturar prudncia e audcia nas misses: S
tudo a todos...8.
Ao chegar ao Brasil em 1549, a Ordem dos Jesutas, de formao recente, contava com muito
poucos adeptos, vindo para este pas com alguns poucos padres e irmos, com esta formao
ideolgica de submisso aos povos do lugar a fim de claramente poder conquist-los. Dificilmente
poderiam se impor como queremos crer hoje e fazer as mudanas que muitas vezes imaginamos
em nossas escolas e aulas de histria ou literatura portuguesa de forma repentina e to eficiente,
transformando um lugar de dimenses continentais, a cultura desse povo, que tinha sua
organizao cultural, e que de repente, como obra de um santo, como numa magia, passaria a
falar o portugus, abandonar os seus tradicionais costumes para viver segundo os cristos.
Anchieta entra para a Companhia de Jesus em 1551 e chega ao Brasil em 1553; isto quer dizer
que ele traz certamente consigo este espirito: prudncia e audcia junto ao povo do lugar, s tudo
a todos: assim, no difcil imaginar que seu teatro fale muito mais a lngua e a linguagem do
povo deste lugar do que propriamente a sua prpria lngua ou a que hoje se pretende ter sido sua.
Vestido com as mscaras poderosas de um personagem/ator santo ou anti-
heri, Anchieta algum que produziu um teatro em terras brasileiras com o nico
objetivo de catequizar e evangelizar os ndios e os colonos. Fazendo uso deste
forte instrumento pedaggico que a representao das cenas crists, faladas em
tupi, realizada com personagens e atores indgenas e europeus, msicas e danas
indgenas e tambm aquelas trazidas na sua memria, transformou o Brasil "(este
pas continente) "pago" em catlico e cristo. Como se esta comunidade no
tivesse existncia passada ou mesmo presente e reconhecesse em Jos de
Anchieta algum superior (como visto hoje) que
8 Jean Lacouture. Os Jesutas: 1. Os conquistadores; Porto Alegre: L&PM, 1994, p 111
16
lhes ensinasse uma cultura e uma maneira de viver. Como se essa comunidade
que existia ou que se formara muito antes da chegada dos jesutas no contasse
com pessoas vivas e atuantes: ndios guerreiros e canibais, homens europeus
degredados, fugitivos da inquisio, donos de escravos, aventureiros, religiosos, e
religiosos sem vocao, visitadores da Companhia de Jesus, do Santo Ofcio,
como se estas pessoas fossem simplesmente alunos bem comportados das
encenaes religiosas feitas por um santo ou anti-heri. Como se os ndios
guerreiros, que tinham na guerra e na vingana talvez a principal forma de
organizao de sua sociedade, fossem meninos mal ajuizados indo para o teatro
levar caro.
Nada fcil foi a vida e o trabalho do irmo Anchieta em Piratininga, vivendo em
uma casinha juntamente com outras 20 pessoas, como ele mesmo conta em sua
primeira carta, lugar que tinha catorze metros de comprimento com dez de largura,
feita de pau e barro e coberta de palhas, que servia de dormitrio, despensa,
enfermaria, refeitrio, cozinha, e sala de aula. Sala de aula que muitas vezes
acabava sendo ao ar livre, para fugir do fumo que ficava na "casinha". Entenda-se:
no frio da mata e dos rios que serpenteavam o lugar. Alunos, quase sempre
meninos ndios, semi-nmades, que de uma hora para outra desapareciam junto
com seus pais nas migraes da tribo. Constantes ataques de ndios inimigos dos
tupinambs, seus amigos, entre eles principalmente os carijs. Alm disso a
grande solido de um lugar estranho ao seu, sua cultura, solido que Anchieta
descreveu para os seus colegas de Portugal, preparando aqueles que viriam.
Tambm vos digo que no basta com qualquer fervor sair de Coimbra, seno que necessrio trazer alforge cheio de virtudes adquiridas, porque de verdade os trabalhos que a Companhia tem nesta terra so grandes e acontece andar um irmo entre os ndios seis, sete meses no meio da maldade e seus ministros e sem ter outro com quem conversar seno com eles; donde convm ser santo para ser irmo da Companhia9.
9 Jos de Anchieta. Cartas, Informaes, Fragmentos Histricos e Sermes. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo Editora da Universidade de So Paulo. 1988, p 74
17
Jos de Anchieta, o jovem de 21 anos que chegou a Salvador na Bahia em
1553, como irmo da Companhia de Jesus, viveu e conviveu com os povos do
Brasil, sejam eles ndios, inimigos dos jesutas e portugueses, como os tamoios de
Iperoig, hoje, Ubatuba, com quem estivera por alguns meses negociando as
pazes, sejam amigos como os Temimin do Espirito Santo ou "escravos" aqueles,
agregados nos aldeamentos. Viera para ensinar, catequizar, mas teve que
aprender, ouvir "s tudo a todos , aprender a lngua do pas para se
comunicar e compreender sobre as coisas do lugar. Manejando a lngua, entrava-
se mais facilmente no que poderamos chamar de ideologia indgena: seus mitos,
religio, sua organizao social. Somente ento se poderia ensinar os bons e
criticar os maus costumes segundo evidentemente uma viso crist ,valendo-
se de festas religiosas e encenaes teatrais. O padre e dramaturgo Anchieta
criou dilogos teatrais com personagens da vida social indgena para falar na
lngua deles e ao seu espectador sobre a maneira boa de viver (nos
aldeamentos junto aos abar) e o que "mau" (os rituais e costumes indgenas):
neste sentido cria um teatro evidentemente pedaggico, no sentido em que
tambm eram os autos religiosos e de moralidades medievais.
Anchieta morre em 1597 em Reritiba. Ele nos legou escritos em tupi, um teatro,
poesias e as cartas que contm informaes preciosas sobre a vida, os
costumes, a religio, a sociedade indgena, como tambm sobre sua interveno
nesse mundo novo.
Imago
Pero Rodriguez narra: O personagem Anchieta e um quase naufrgio.
No ano de mil quinhentos e oitenta e cinco, vindo do Rio de Janeiro para a Bahia o padre Cristvo de Gouveia, segundo visitador geral desta provncia, e com ele o Padre Jos e outros religiosos lhes deu uma to grande tormenta, que os ia lanar costa dos arreciffes, e todos, at a gente do mar, se davam j por perdidos, e assim deixavam de marear o navio.
18
Os padres debaixo da tolda, se estavam aparelhando para bem morrer, confessando-se uns aos outros. Porm o Padre Jos estava em cima da coberta, em p, pegado s cordas do navio, com os olhos no cu, fazendo seu ofcio de rogar a Deus pelo remdio e vidas de todos. Neste momento chegou a ele um irmo, pedindo-lhe o ouvisse de confisso. Respondeu-lhe: "no agora necessrio". Acudiu o irmo: por qu? No se h de perder o navio?" Respondeu o padre: "no" Secundou o irmo, para se afirmar mais na resposta: "havemo-nos de afogar, havemos de morrer? Aqui o padre ento, como agastado, levantou algum tanto a voz, dizendo que no.10
Anchieta narra: um quase naufrgio
...quando no entanto comeava a descansar, eis que tudo se perturba na ameaadora escurido da noite, os ventos sopram com violncia do sul, caem imensos aguaceiros, e, revolvido em todos os sentidos, o mar abalava violentamente a embarcao, a qual, j gasta pelo tempo, pouca resistncia oferecia: aberta embaixo para as ondas, estava tudo coberto d' gua; esgotava-se o poro em cima para as chuvas quatro ou cinco vezes por hora e, para dizer verdade, nunca se esvaziava; ningum podia conservar-se a p firme, mas andando s gatinhas e para dizer a corriam uns pelo tombadilho, outros cortavam os mastros, aqueloutros preparavam as cordas e amarras: neste momento, a lancha, que estava atada extremidade do navio, foi arrebatada pelo mar, partindo-se o cabo que a prendia; ento comeamos todos a tremer e a sentir veemente terror: via-se a morte deante dos olhos; toda a esperana de salvao estava posta em uma corda e, quebrada esta, a nave ia inevitavelmente despedaar-se nos baixios que a cercavam pela popa e pelos lados; corre-se a confisso: j no vinha cada um por sua vez, mas dois a dois e o mais depressa que cada qual podia. Em uma palavra, fora fastidioso contar tudo que se passou; rompeu-se a amarra: "Est tudo acabado"! gritaram todos.11
Pero Rodriguez narra: O naufrgio de um santo personagem
10 Pero Rodriguez op. cit. p 93 11 Jos de Anchieta, Cartas, Informaes, Fragmentos Histricos e Sermes. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo Editora da Universidade de So Paulo. 1988, p 118.
19
Chegaram os navegantes a uma cachoeira ou salto do rio por onde navegavam a remo, e os padres iam rezando as horas da Conceio de Nossa Senhora, seno quando se vo todos ao fundo com a canoa, em altura de quatro de quatro ou cinco braas de gua, mas todos saem a nado, s o bom padre Jos no aparece. No sofreu o corao ao ndio deixar ali o padre, sem saber o que era feito dele. Mergulha e anda-o buscando por bom espao de tempo, e no o achando, vem-se acima a tomar flego e descansar um pouco. Deita-se outra vez de mergulho, e quer Deus que o ache, assentado no fundo. Pega dele pela roupa, e o padre deixa-se vir sem aferrar do ndio, e desta maneira vem acima so e salvo, com suma alegria e satisfao dos presentes. Esteve debaixo da gua obra de meia hora, no desacordado, antes muito em juzo, lembrando-se de trs coisas, como depois dizia: de Jesus, e da Virgem purssima sua Me, e de no beber gua como de fato aconteceu.12
12 Pero Rodriguez, op. cit. p 93
20
21
eengat. A "boa fala"
A fala sagrada dos ndios
A fala, a palavra, para os ndios, segundo Pierre Clastres, era e sagrada.
e por, belas palavras para os guarani, eengat, literal boa fala para os
tupis13. Quando uma criana ndia nasce, segundo este estudioso, quem lhe d o
nome o pai paj, ou o pai kara e esse nome a prpria vida e nele est contido
todo o destino que deve ter este recm-nascido.
A atribuio do nome, escolhido pelos deuses, transforma o indivduo em um ser vivo. O sacerdote, a quem cabe ler e dizer o nome, no pode cometer erros nessa busca da identidade, pois o nome, tery mo, quem-faz-se-elevar-o-fluxo da Palavra; marca, sinal do divino sobre o corpo, ele a vida.14
A escolha do nome no aleatria; est relacionada a algum fato marcante e
escolhido, pela me segundo Clastres, ou, para A. Metraux, pelos feiticeiros entre
os apapovucas, ou ainda para os tupinambs por um verdadeiro conselho. A
personalidade do futuro ndio estava designada tambm no nome; assim, se um
recm-nascido recebesse o nome de algum animal que a me tivesse comido,
desse receberia sua personalidade, num jogo em que o ser derivaria do logos. Da
carne de jaguar ingerida se deduz que o recm-nascido, mediado pela palavra que
o designar, certamente se tornaria um grande caador e guerreiro, com um
destino de chefe prefigurado. O jaguar era um animal caador to potente quanto
os melhores caadores indgenas, disputava com eles a mesma caa, era uma
muito difcil presa; somente os grandes caadores conseguiam ca-lo. Nos
dilogos anchietanos temos alguns exemplos desta importncia. No Auto da
Pregao Universal destaco dois: Aimbir(ai, bicho preguia; pirera, pele) que
13 Cf. Pierre Clastres, A Fala Sagrada Mitos e Cantos Sagrados dos ndios Guarani. Trad: Ncia Adan Bonatti. Campinas: Papirus, 1990, p 11 14 idm, p 111.
22
segundo o dicionrio de Orlando Bordoni15 a pele do bicho preguia. Aimbir
figura histrica descrita por Anchieta como um temido chefe tamoio nos seus
informes um dos personagens do mal no dilogo. Na estrofe que cito a seguir
apresentado pelo seu companheiro e "chefe" Guaixar:
Oikob Tenho f Eis aqui meu ajudante Xe pytybanamet, em meu ajudante que e parente verdadeiro, o que 50 Xe pyri mar tekora, 50 meu mr colaborador, mora perto de mim, meu Xe yrnamo okibae: queimado no mesmo ardor, companheiro de oca: Tubixakat Aimbir O grande chefe Aimbir. que torna os miausba maus Miausba moangaipapra,
dos ndios pervertor o grande chefe Aimbir,16
H, tambm, os ndios Arakaj. Recebiam este nome por causa do seu chefe
Maracaj guas, gato grande17 e historicamente eram parentes e vizinhos, no
Esprito Santo, dos ndios Temimin (amigos dos padres). No dilogo aparecem
como sendo seduzidos pelos personagens do mal:
Karaibeb:
Emon sek su Por isso j usa o bando por causa disso eles esto Arakaj sapeku buscar os Arakaj visitando os Arakaj na 285 mundpe iporerasu... 285 que se vo aprisionando armadilha fazendo-os cair Aimbir: Arakaj, te, ombory. estes gostam do desmando Arakaj, enfim, tornam-se Ojoj mar seku... vida que lhes apraz alegres vivendo com nossas maldades18.
Anchieta, nos seus informes sobre os ndios, tambm nos fala da importncia
que tinham os bons lnguas para os tupinambs:
Fazem muito caso entre si, como os Romanos, de bons lnguas e lhes chamam senhores da fala e um bom lngua acaba com eles quanto quer e lhes fazem guerras que matem ou no matem e que vo a parte ou a outra, e senhor de vida e morte e ouvem-no toda uma noite e s vezes tambm o dia sem dormir nem comer e para experimentar se bom lngua e
15 Orlando Bordoni, Dicionrio: A lngua Tupi na Geografia Brasileira. Curitiba, [s.d.]. 16 Trad. Pe Armando Cardoso, O Teatro de Anchieta. Obras Completas, 3 Volume . So Paulo: Loyola, 1977, p 122 17 Cf: Pierre Clastres, Crnica dos ndios Guayaki. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. A. Metraux, A Religio dos Tupinambs. So Paulo: Companhia Editora Nacional, [s.d.]. 18 trad. Pe Armando Cardoso, op cit. p. 122
23
eloqente, se pem muitos com ele toda uma noite para o vencer e cansar, se no o fazem, o tm por grande homem e lngua. Por isso h pregadores muito estimados que os exortam a guerrear, matar homens e fazer outras faanhas desta sorte.19
Ao colocar na fala dos seus personagens as eengat, boa fala, em tupi,
Anchieta sabia o sagrado significado que elas representariam para o espectador
indgena. O grande valor que teria a palavra viva, sedutora, insinuante.
A importncia da palavra falada est ainda relacionada ao fato de os indgenas
no escreverem e assim toda a sua histria, tradio, conhecimento, religio
serem transmitidos, at os dias de hoje, como atestou Clastres, de gerao em
gerao, sob forma oral. A palavra falada pelos personagens, no dilogo
anchietano, em lngua indgena, era muito mais que cdigos estticos escolhidos
por seu autor para a comunicao e transmisso da ideologia crist: estavam, isto
sim, sobrecarregados de significados, religiosidade e histria indgenas. A fala em
cena na lngua dos ndios teria uma importncia que talvez ns homens modernos
dos computadores sequer percebamos.
Hoje em dia guardamos todas as nossas informaes em disquetes de
computador, vrios, e estamos muito perto, ns leitores de jornal, de sermos
chamados de esprito ignorantes e sem ideal pelas geraes futuras. Temos
muitas dificuldade em entender Plato fazendo defesa no Fedro do oral em
detrimento do escrito, visto o primeiro como um elemento fecundador dos espritos
e o segundo como simples registro mnemotcnico do pensamento. Como
entender os ndios que no escrevem e mantiveram vivos muitos costumes
milenares? Pierre Clastres ficou encantado ao perceber, vivendo junto aos ndios,
que eles mantinham, no sculo XX, vivas, muitas das tradies descritas pelos
cronistas do sculo XVI, intactas, e outras com algumas introdues feitas naquele
mesmo perodo pelos jesutas. Ficou um tanto quanto decepcionado ao saber que
os seus amigos ndios mantinham em segredo muito a respeito dos seus rituais
e religio, mesmo depois de algum tempo vivendo junto a eles e sentir-se
19 Jos de Anchieta, Cartas, Informaes, Fragmentos Histricos e Sermes. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo Editora da Universidade de So Paulo. 1988, p 441
24
participante daquela comunidade. Entendeu, entretanto, a importncia do segredo
para eles, a muitos dos quais certamente jamais teremos acesso, de forma que
ignoraremos para sempre o essencial de suas vidas, costumes e rituais. Mas no
estariam eles presentes na obra de Anchieta, j que viveu e conviveu
intensamente com os ndios praticamente toda a sua vida20?
A fala (sagrada) para os europeus que viviam no Brasil
A palavra falada no tinha menos importncia para o homem europeu do fim da
Idade Mdia do que para o indgena do Brasil. pelo quinto sentido, o ouvido, por
onde entravam os ensinamentos da Igreja, isto , por meio do qual a verdade real
se tornava conhecida contra a verdade aparente dos outros sentidos:
Verdadeiramente isto carne e sangue, s na aparncia po e vinho; certo que foi po e vinho outrora, mas viste que foi transformado por Moiss em carne e sangue com a minha ajuda, embora por causa disto a Natureza disputasse e se ofendesse. Aviso-te pois, e intimo-te que por ti seja entendido e firmemente crido que isto carne e sangue; e no te importe que ao tacto, vista, ao olfato e ao padadar te possa parecer po e vinho.21
Apesar de a escrita fazer parte da cultura europia, toda uma tradio, pelo
menos religiosa, histrica, era feita de forma oral, para o homem no letrado
praticamente toda a populao europia, e ainda considerando que estamos
falando dos europeus que viviam no Brasil, excetuam-se como letrados, apenas
os homens da igreja, uns poucos e raros mercadores e talvez alguns judeus
fugidos dos tribunais do Santo Ofcio.
Os jesutas aproveitaram em suas estratgias para espalhar o cristianismo da
igreja catlica a importncia que tinha a fala ou pelo menos a pregao na Europa
medieval, a importncia que se atribua aos bons pregadores nas praas das
cidades ou nas feiras, certamente feitos na lngua local, como podemos ver nesta
passagem de Huizinga:
20 Cf: Pierre Clastres, Crnica dos ndios Guayaki. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. 21 Antonio Jos Saraiva, Gil Vicente e o Fim do Teatro Medieval. [sl] Publicaes Europa-Amrica, 2 ed. 1965. p 80
25
Mais raros do que as procisses e as execues eram os sermes dos pregadores itinerantes que vinham despertar o povo com a sua eloquncia. O moderno leitor de jornais no capaz de imaginar a violncia da impresso causada pela palavra sobre espritos ignorantes e desprovidos de qualquer ideal. O franciscano frei Ricardo pregou em Paris, em 1429, durante dez dias consecutivos. Comeava s cinco horas da manh e falava sem interrupo at s dez ou onze, quase sempre no Cemitrio dos Inocentes. Quando, ao terminar o seu dcimo sermo, anunciou que era o ltimo porque no tinha mais permisso de pregar mais, grandes e pequenos choraram to comovida e amargamente como se estivessem a ver enterrar os melhores amigos; e ele tambm. 22
A grande massa se aglomerava nas procisses para ouvir os sermes, para
participar dos autos populares, dos espetculos teatrais dialogados que
certamente agia sobre seu imaginrio, despertando foras interiores. Tambm o
homem europeu, como o indgena, pelo menos os de esprito ignorante e
desprovidos de qualquer ideal, tinham na palavra a fonte para o conhecimento da
religio, da histria, da ideologia do seu tempo.
Los predicadores llenaban las plazas; solo ellos sabam encontrar los argumentos y el lenguaje que llegaram al "pueblo". Savanarola dice "Nuestros prelados, para tener clices, quitan lo que es de los pobres, sin los cuales no pueden vivir. Pero sabis lo que quiero decir? En la Iglesia primitiva los clices eran de madera y los prelados de oro; hoy la Iglesia tiene prelados de madera y clices de oro". Bernardino de Siena es consciente de su capacidad de comunicacin: "Cuando voy predicando de lugar em lugar, cuando llego a un pueblo, me las ingenio para hablar siempre segn su vocabulrio.23.
Anchieta eengat. A boa fala de Anchieta
Quando os jesutas chegaram ao Brasil em 1549, traziam a disposio de
pregar, ensinar para os habitantes deste lugar o verbo divino, transformando em
cristos, pela palavra, os que aqui viviam. E em que lngua Deus se expressava
22 Johan Huizinga, O Declnio da Idade Mdia. Braga: Editora Ulisseia, 1996, p 12. 23 Os pregadores tomavam as praas; s eles sabiam encontrar os argumentos e a linguagem que chegavam ao povo. Savanarola disse: "Nossos prelados, para ter clices, tiram o que dos pobres, sem o que no podem viver. Mas sabeis o que eu quero dizer? Na Igreja primitiva os clices eram de madeira e os prelados de ouro; hoje a Igreja tem prelados de madeira e clices de ouro". Bernardino de Siena consciente de sua capacidade de comunicao: "Quando vou pregando de lugar em lugar, quando chego a um povo, procuro aprender para falar sempre segundo seu vocabulrio". Franco Cardini, Europa 1492, Milan: Anaya Editoriale, 1989 p 188.
26
prioritariamente na Idade Mdia? Em latim, a lngua culta da Europa crist, que
era conhecida apenas pelos letrados. Na Europa de ento, preces e missas eram
feitas em latim para um homem que no precisava entender o que estava sendo
dito, j que conhecia todo o poder daquelas palavras, que somente os homens
santos poderiam conhecer totalmente, os padres, que eram as palavras das
Sagradas Escrituras escritas, ditadas, por Deus. Este homem do povo no letrado
sabia do poder de Deus e de sua palavra certamente atravs das histrias,
sermes, peas teatrais, cantigas populares, pregaes enfim de uma tradio
falada (encenada com quadros vivos) de boca em boca milenariamente e na sua
lngua. Na Idade Mdia, importante observar ainda, a catedral quase um livro,
pois o fiel analfabeto pode seguir a histria sagrada e compreend-la
perfeitamente nos vitrais, nos afrescos das paredes e nos relevos feitos na pedra.
Cada um desses signos portador de uma histria, isto , de sentidos. Assim,
Deus falava pela mediao da imagem. Mas tambm no interior ou no adro das
catedrais que so representados os mistrios, primeiro em latim e mais tarde nas
lnguas nacionais. De qualquer maneira, mesmo quando ainda representados em
latim, os mistrios eram compreendidos pelo fiel, pois eram representados em
determinadas datas consagradas Natal, Paixo, etc. de modo que se tornavam
imediatamente inteligveis. A esses signos, visuais e verbais necessrio
acrescentar o teatro como espetculo e, sobretudo, a msica, cuja funo de
envolvimento sensual nem preciso enfatizar.
Neste clima de sensualismo, envolvendo todos os sentidos, se desenvolve a
esttica do teatro anchietano. Seja aquele representado para o espectador nativo
ou, ento, para o estrangeiro, que vivia a muito tempo nas matas brasileiras.
Anchieta faz uso de signos visuais e verbais totalmente inteligveis para que seu
"analfabeto" espectador, pudesse compreender e se envolver com aquilo que est
acontecendo em cena. Esta preocupao se multiplica quando se pensa no
espectador indgena que no tem qualquer familiaridade com os signos, visuais ou
verbais, da religio crist. possvel perceber em muitos momentos da criao
teatral anchietana este aspecto fundamental. Como exemplo destaco a descrio
27
feita pelos personagens do mal, no segundo ato do Auto da Pregao Universal,
em torno da figura do bem, o Karaibeb, ao ele entrar em cena:
Aimbir: ke! Ab reku a Olha l esse sujeito aqui! Ab est realmente xe renopuapuma que me est ameaando eu o atacarei, atacarei to! A, mbape ke Oh! que ser o que vejo? Oh! realmente, que coisa, kanind oby jasora? Parece azul Canind kanind azul o que ? 190 Ndojabyi mur arra... 190 ou uma arara de p Igual a uma maldita arara Guaixar: Karaibeb ae
E um anjo o que entrevejo
Karaibeb mesmo
Tapia raronsra guarda dos escravos guardio dos tapia24.
O personagem karaibeb (kara = caraba, feiticeiro, curandeiro e beb =
voador) representa em cena o bem e tem relao com os abar, padres, e com
Tup. A figura do kara* era uma das mais importantes e prestigiadas na
sociedade e religio indgena (como perceberam os cronistas da poca), trata-se
de seres que circulavam livremente por vrias tba; eram considerados por todos
como possuidores de poderes sobrenaturais, entre eles possivelmente o de beb,
voar*, da karaibeb. A forma como ele descrito - uma arara kanind azul - no
deixa de ser aquela na qual os ndios - principalmente os tapuias -, se trajavam em
suas festas religiosas e rituais.
Signos visuais, verbais que aparecem em cena e que talvez pudessem ser
compreendidos pelo espectador nativo, pois que fazem parte de sua vida
cotidiana. Inteligveis, tambm para o colonizador, j que a esttica teatral
aquela que lhe era certamente conhecida das representaes teatrais populares
nos adros das igrejas, das praas, feiras, europias medievais.*
24 Trad. Pe Armando Cardoso op. cit. p 126 * Karaibeb nas tradues recebe o significado de anjo ou cristo, talvez porque os portugueses tivessem sido considerados kara (carabas) pelos ndios; e porque o vocbulo Beb ter significado de voador. * Voar pode ter o significado neste caso de ir muito rpido de tba em tba. * Mesmo a fala, em tupi, e os personagens, para o colono, no deixavam de fazer a parte, agora, de sua vida cotidiana.
28
Os efeitos visuais deveriam ser espetaculares - e aqui preciso recorrer ao
pesquisador-romancista -, j que imagino qual sensao no deveria causar a
presena em cena do karaibeb - caracterizado como um pssaro/ndio- dividindo
a cena com os dois personagens do mal, que (parece) estavam fantasiados como
"anga" esprito maus das matas, ou diabos:
Guaixar:
Eite serobi. intil seu alento: eles dizem acreditar em vo. Ereipysyr tene eu tos arrebatarei tu os socorrer em vo, nde po su anosne, apesar do teu sustento. de tuas mos eu os tirarei Abeb ko ybyt ja. eu vo como este vento, eu vo como este vento 375 Ano, arobebne... 375 com eles eu voarei eu tambm corro, eu com ele voarei
.
Aimbir, Aimbir, Aimbir, jaras, mur, tauj, voemos com nossa f, ns levamos, maldito, logo, jand roipyra moesia. A alegrar meus aldees! nossa alegria ausente Ko xe akus. Xe ria... Eu ranjo... eis meus chifres esta minha akus(grande febre?) meus dentes. Aimbir: 380 Je, kob xe poape, 380 esta dentua minha , , eis aqui, minha mo xe roaibuk, xe tyia minha garras e dedes torta, meu rabo comprido, meu gancho25
Efeitos visuais que se somavam, sem dvidas, aos verbais, j que os
personagens dialogavam em lngua tupi, fala sagrada indgena, com rimas
moda europia, dando ao dilogo, em um tom musical, vida aos costumes,
elementos, figuras, da sociedade indgena. Ao mesmo tempo, cria, certamente, no
lugar, atravs da fala ritmada, uma atmosfera de fervor religioso cristo, que, por
ser totalmente nova para o indgena, talvez, por isso mesmo, se tornasse algo
sobrenatural, indgena que tinha na fala (e ainda mais musical) os princpios
fundamentais de sua crena.
25 Trad. Pe Armando Cardoso, op.cit. p 126
29
O teatro, que fazia parte de uma festa religiosa crist, acontecendo nos
aldeamentos, contava ainda, como descrevem os cronistas da poca, com a
presena de meninos ndios, nus, tocando flauta juntamente com os meninos
rfo, trazidos de Portugal, que cantavam e danavam a moda portuguesa;
procisses com ndios nefitos entremeados aos cristo - entrando, passando pelo
meio do terreiro, e saindo das aldeias (volta a cena o romancista) sob o olhar
curioso dos demais ndios; danas indgenas (com toques secos no cho de terra)
com batidas firme no terreiro; cantorias dos irmo e padres da Companhia de
Jesus em latim; cantoria dos ndios no centro das aldeias. Mulheres ndias nuas
dando louvas a Jesus, em (um certamente estranho) portugus; ndios e ndias
"pagos" espiando a cena com olhares de estranhamento. em meio a este clima
sensual que acontece a representao das peas de teatro anchietana colocando
em cena para todos os sentidos aquilo que ele queria ensinar.
Manoel da Nbrega pediu a um irmo (acreditamos ser Anchieta) que este
substitusse um dilogo profano que estava sendo ensaiado pelos portugueses
para ser apresentado no adro da igreja, para a festa de Natal, por um mais
adequado a este lugar. Apesar de estar muito longe e afastado do universo
cultural europeu, vivendo em meio a selva, tendo que desenvolver novas maneiras
de vida, o portugus queria manter vivo o seu passado, a sua memria e nada
melhor para esta inteno do que o teatro.* O dilogo profano foi substitudo por
um dilogo sagrado ( possvel que seja O Auto da Pregao Universal), mas
escrito na lngua tupi. O fato de ser um auto para substituio a um outro menos
adequado, vem confirmar a importncia que tinha o teatro como forma de
expresso para o povo que aqui vivia e no apenas servindo como obra para a
O auto era profano mas, como pode parecer, no deixava de ser religioso: Quando a Igreja abriu suas portas e deixou o drama escapar para a confuso e a animao das cidades, o fato significou mais do que um simples aumento de espao. A prspera populao da cidade apoderou-se com dedicado fervor do drama, esta nova forma de auto expresso agradvel a Deus e que crescia de forma cada vez mais exuberante. Patrcios, burgueses e artesos tinham a liberdade de apresentar as verdades da f de acordo com sua interpretao da vida. Uma das paredes da nave da Catedral de Limburgo exibia uma tentadora loira, simbolizando a Luxuria: os orgulhosos cidados locais, num de seus dramas ao ar livre, transformaram Maria Madalena numa linda cortes, a quem era permitido levar a mais alegre das vidas mundanas, cantar uma toada profana claramente inspirada em poemas da corte, sentar-se mesa com Jos para uma partida de xadrez e tocar alade. Margot Berthold, op. cit. p 212
30
propagao da f por parte dos homens da Companhia de Jesus. O fato de ser
em tupi, que se transformara para o europeu que aqui vivia a sua lngua popular,
significa dizer que este auto era para ser entendido, por todos os espectadores,
no apenas ouvido. Mais uma vez a palavra dita no dilogo anchietano revela...
Anchieta soube unir no seu dilogo duas maneiras de expresso que encantava
o homem europeu e o indgena ao mesmo tempo. Ao usar a boa fala em tupi
colocou o universo ideolgico, cultural, histrico do indgena na fala e nos seus
personagens sem deixar de se dirigir, no entanto, ao cristo, j que o auto a
disputa entre o bem (cristo para os padres) e o mau (terreno: os males das
matas, dos anga, dos carabas, das bebedeiras, dos rituais, da antropofagia,
adultrios... Trata-se de teatro nos moldes dos autos vicentinos que devia ser o
mais popular para o homem que veio de Portugal para c, mas sem deixar de
encantar o ndio, j que o dramaturgo usou personagens, indumentrias, de sua
realidade social. E principalmente para o espectador em geral usou no seu dilogo
a palavra falada inteligvel.
A palavra sagrada: falada e escrita
A escrita, segundo Roland Barthes, acompanha passo a passo a fala se no lhe anterior; isto
, se consideramos que o homem primitivo, ao interpretar signos, marcas e sinais impressos na
natureza (como por exemplo um ramo quebrado), estava lendo antes de saber falar. H, se
entendermos a escrita desta forma, uma linguagem escrita e uma falada. Esta bipolaridade
grfico/verbal evolui para uma nica quando atravs da fonetizao (e alfabetizao), a linguagem
escrita subordinou-se linguagem verbal. O homem, a partir de ento, passa a possuir um
aparelho lingistico nico, instrumento de expresso e de conservao de um pensamento por sua
vez mais canalizado para a racionalizao26.
Racionalizao que no caso dos hebreus est ligada ao sagrado:
a escrita, para os hebreus mais que um simples sistema de signos, porque o prprio Deus se serviu do verbo e da escrita para se revelar. O alfabeto, fundamento da escrita, tambm o elemento essencial e o princpio ordenador da linguagem, que foi o instrumento da criao do mundo, enquanto palavra, e depois enquanto escrita. A palavra de Deus
26 Cf Roland Barthes e Eric Marty, Oral/escrito, In: Enciclopdia Einaudi, vol. 11. Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1987
31
suscetvel de interpretao mas, uma vez fixada na sua grafia, imutvel para a eternidade27.
A fixao do verbo como verdade grafada sem dvida uma das preocupaes de Plato no
Fedro. Nesse dilogo, tomando como pretexto um discurso do sofista Lisias sobre o amor, esse
velho erstico que Scrates, inicialmente o desqualifica para em seguida substitu-lo por um de
sua obra, mostrando, porm, que todas essas falas so geradas por um ncleo que a Mentira.
ento que ele aponta para o que constitui o eixo de toda fala boa: a Verdade, que em grego se
diz Aleth, palavra que significa fundamentalmente ilatncia. Ora, a Verdade s se desvela no
jogo das discusses dialticas: escrita ela se petrifica. E no entanto... o prprio Plato a ela recorre
quando se trata de registrar os ditos do Mestre, criando um paradoxo no interior do prprio
platonismo e indicando para a futura vitria da escritura.
Apesar da unificao do aparelho lingstico atravs da fonetizao muitas diferenas
continuam a existir entre a palavra falada e a escrita. Plato tinha razo, a palavra falada ao no
poder ser fixada, no pode ser modificada, rasurada, refeita, traduzida: a palavra de Deus por
exemplo, foi escrita em semtico, grego, latim, alemo e hoje em dia em centenas de lnguas. Por
outro lado a palavra escrita no contm o gesto, o corpo e a pulsao de seu autor. Isto no
significa dizer que a palavra escrita no tenha gesto, corpo e pulsao, seja apenas sinais frios,
cdigos grafados, talvez ela no possa mesmo ser gestualizada, corporificada e pulsada na fala
de seu autor, mas mantm vivas o
gesto, o pulsar, o corpo de um dilogo, de um acontecimento, de uma histria, de um teatro. Uma
prova disso o prprio debate que Plato disputa com o discurso escrito por Lisias no Fedro.
A palavra escrita que, como prope Roland Barthes, ficou sem vida, surgiu aps uma forma de
racionalidade e do advento de um novo sujeito, no final da Idade Mdia e da inveno da palavra
impressa. A escrita passou, ento, a debruar-se sobre seu prprio corpo e assim ficando restrita
ao que est impresso, ou seja ao prprio discurso. Foi esta palavra, sem vida, que tornou possvel
ao filsofo Descartes, duvidar da existncia do ser e no do seu prprio discurso. A palavra sem
vida congela-se em um labirinto sem sada. Mas a escrita, que no se insere neste contexto,
semelhante a natureza, faz parte das coisas, tem existncia material:
a escrita est em relao de analogia com o mundo; a metfora do grande livro da natureza indica claramente que a linguagem, e em particular a escrita, esto prximas das coisas, entrelaam-se nelas. Para exercitar a nossa sageza, Deus semeou a natureza de figuras a decifrar, a interpretar28
Quando a escrita tem vida material, abre-se e se relaciona com o universo, pulsa, respira,
treme, adoece, ri, etc. Robison Crusoe, personagem do livro clssico homnimo de Daniel Defoe,
27 Ibdm 28 Roland Barthes, op. cit., p 53.
32
chorou de alegria, de medo, armou-se, correu, esperou etc. tudo isso a partir das muitas
interpretaes que fizera diante de uma nica pegada humana "grafada" nas areias brancas,
durante a noite, em sua ilha deserta.
A palavra dita no teatro anchietano era material, principalmente aquela em tupi
e o seu significado tanto para o indgena que aqui vivia como para o europeu que
para aqui viera que falava e falou o tupi at meados do sculo XVIII era sagrado.
A fala, o dilogo, tanto para um quanto para outro, principalmente em se tratando
de um lugar selvagem, era o nico meio de que dispunham para se aproximarem
da religio, da histria, dos ancestrais, da memria.
A palavra escrita do teatro de Anchieta era e material pois segue passo a
passo a fala indgena, j que foi ele um dos formuladores desta lngua na escrita.
Alm disso era de fundamental importncia para os trabalhos da Companhia
propagar a f crist, e assim todas as formas de encantar aqueles que viviam
prximos a eles era repetida (fazia-se cpia escrita) em todos os lugares que
porventura eles estivessem: se um determinado dilogo provocava na platia, seja
europia ou indgena, devoo e fervor, e aumentasse a crena dos espectadores
na palavra deles, jesutas, era ento copiado e passado para todos os colgios ou
aldeamentos da costa para serem encenados. Assim aconteceu com os dilogos
criado por Anchieta que segundo consta foram muitas vezes representado por
toda a costa brasileira. O dilogo fora escrito e chegou at ns porque certamente
encantara a todos no momento de sua apresentao. Contm, ento, em suas
letras todo o vigor de sua materialidade, de sua vida.
33
34
Viso Panormica do Auto da Pregao Universal
O estabelecimento do texto
O Auto da Pregao Universal, considerado o primeiro auto de Anchieta, encenado em So
Paulo de Piratininga no incio do ano de 1561 ou 1562, tem, na edio proposta pelo padre
Armando Cardoso, cinco atos, sendo o primeiro e o quinto compostos com um poema longo de
Anchieta sobre um conhecido tema medieval, o Pelote Domingueiro. O segundo ato, que seria
autgrafo, contm a luta dos anga (diabos na verso do Padre Cardoso) contra o karaibeb
(o anjo). O terceiro ato, tambm recomposto a partir de outros autos, contm o desfile dos doze
pecadores, com texto em portugus. O quarto, a dana dos meninos, com versos em portugus,
espanhol e tupi, teria sido resgatado parcialmente com um autgrafo, embora no fique claro
tratar-se de texto escrito pela mo do prprio dramaturgo.
Uma das dificuldades para se ler um auto como este reside no fato de ter sido
ele estabelecido, isto , recomposto a partir de indcios, alguns deles muito
frgeis. Os textos escritos naquele perodo pelos padres da Companhia de Jesus
sobretudo o seu teatro , alm de serem produzidos no interior de uma cultura
no-letrada, eram ainda distribudos por todas casas e colgios quando tinham
alcanado o seu principal objetivo, que era o de encantar ensinando os princpios
cristos: esse o caso do Auto da Pregao Universal, escrito e reescrito muitas
vezes por muitos "copistas" e em pocas diferentes. Deve-se tambm levar em
35
conta que se trata de uma apresentao teatral acontecendo em meio floresta.
Vejamos como o Pe Cardoso (re)comps o Auto da Pregao Universal:
Salientamos o pormenor de ter a representao durado trs horas. Isto poderia fazer dificuldades ao texto do auto na Festa de Natal, que de modo algum preencheria tanto tempo. Mas convm relembrar que esse dilogo tupi apenas a parte central da pea. Comparando-o com o de S.Loureno, devemos acrescentar-lhe um prlogo ou 1.o ato, um desdobramento do dialogo em tupi ou 3 ato, como tinham os autos maiores; um espetculo de dana, canto de msica que era o IV ato, e um eplogo ou despedida como V ato. Quais tenham sido estas partes completivas dentre os excertos que se conservam no Caderno de Anchieta, no o sabemos com certeza, s o podemos conjeturar com probabilidades, exceto para a dana que figura no Opp. NN. 24, logo depois do dilogo tupi.29
O caderno mencionado na citao seria, segundo Maria de L. de Paula
Martins, uma espcie de dirio de Anchieta, provavelmente iniciado a partir do ano
1572, pois falta-lhe poemas iniciais, entre eles o Auto da Pregao Universal e o
pico De Gestis Mem de S, que foram reunidos aps sua morte, ou, ento,
segundo outros, uma reunio das obras, poemas, cantos, sermes etc. que se
espalharam pelas casas jesuticas, algumas autografas como o segundo ato do
Auto da Pregao Universal e outras transcritas por copistas, a maioria dos quais
desconhecidos para ns. As obras mais importantes dos jesutas, de um modo
geral, eram distribudas para os principais da Companhia como o autgrafo que
mencionamos acima, mas as menores, como o canto dos meninos, circulavam
entre os irmos que cuidavam da catequese dos meninos e que os utilizavam em
suas aulas cotidianas.
Assim que Anchieta morreu, Pero Rodriguez e Quircio Caxa, seus
companheiros e principais da Companhia passaram a construir sua biografia
tendo em vista a beatificao, cujo processo teve incio, com toda documentao
pronta, em 1624, menos de trinta anos portanto aps sua morte. Com esse
propsito, reuniram toda a obra espalhada pelos colgios. importante adiantar
que o Auto de So Loureno, em que se baseia o padre Cardoso para compor o
29 Trad. Pe Armando Cardoso, op. cit. p 63
36
Auto da Pregao Universal em cinco atos, foi encontrada no caderno com as
obras de Anchieta mas que apenas os atos II (semelhante ao dilogo tupi do Auto
da Pregao Universal) e o ato III so autgrafos, os outros trs no passando de
transcries de copistas. O autgrafo, que no trazia ttulo, foi considerado o segundo ato do Auto da Pregao Universal
pela sugesto de alguns indcios: escrito em tupi, era seguido no caderno por um canto
considerado pelo padre Cardoso como sendo o quarto ato, a dana dos meninos, composta de
cantos em portugus, espanhol, e tupi, o que explicaria talvez o Universal do ttulo. O prprio
Anchieta nos fala de um auto da Pregao Universal composto por um irmo a pedido do padre
Manuel da Nbrega, e os bigrafos que lhe so contemporneos, Pero Rodriguez e Quircio Caxa,
assim como Ferno Cardim, nos garantem que este irmo era o prprio Anchieta:
Era (Manuel da Nbrega) to zeloso de se pregar sempre a palavra de Deus que at aos irmos que lhe pareciam para isso, fazia pregar em portugus e brasil, ainda que no fossem sacerdotes. Por este fim e por impedir alguns abusos que se faziam em autos nas igrejas, fez um ano com os principais da terra que deixassem de representar um que tinham e mandou-lhes fazer outro por um irmo, a que ele chamava Pregao Universal, porque alem de se representar em muitas partes da costa com muito fruto dos ouvintes que com esta ocasio se confessavam e comungavam em particular em So Vicente a fama dele por ser parte na lngua do Brasil se juntou quase toda a Capitania vspera da circunsiso...30
Um outro indcio aparece em uma das ltimas estrofes deste autgrafo em que o karaibeb
(anjo) fala dos trs reis (magos), e da estrela guia que, segundo a tradio catlica, se
comemora em 6 de janeiro, prximo ao Natal e circunciso de Jesus: Xe ab, aj, ko ara pup,
mosapy Ria rer, jasytat sup e, pitangi pai
Jesu Kotype imoingbo e: na traduo do padre Cardoso: Eu tambm venho este dia do alm, os
trs Reis reconduzir e a estrela fazer luzir junto a Jesus, nosso bem, que, menino, a ns quis vir31.
Outro indcio seriam alguns depoimentos de testemunhas deste acontecimento:
Por outro lado nos processos de beatificao h depoimento de testemunhas com seus trs nomes que quando meninos foram atores na Pregao Universal em So Vicente. Ora so justamente trs os papis do auto Na Festa de Natal: dois diabos e um anjo.32
30Jos de Anchieta, Cartas, Informaes, Fragmentos Histricos E Sermes. Introduo de Afrnio Peixoto, Belo Horizonte: Itatiaia, So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1988. 31 Trad. Pe Armando Cardoso, op. cit., p 60 32 Idem, p. 61
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Se aceitarmos que estamos diante do Auto da Pregao Universal, podemos considerar ser
ele o primeiro tambm por indcios: ele faz parte do segundo ato do Auto de So Loureno,
considerado posterior por ser mais elaborado; ele atribudo pelo prprio Anchieta que na
poca ainda no era padre a um irmo assim ele modestamente se designaria a si prprio.
A partir destes indcios quanto autoria e a prioridade temporal do texto, uma deduo se
impe quanto ao local e data de sua encenao: Piratininga, onde Anchieta viveu no ano de 1561.
Em 1560 o poderoso governador Mem de S transferiu a Igreja de Santo Andr, lugar onde vivia
Joo Ramalho, para Piratininga, pois aquele portugus e sua extensa famlia estava em disputa
com os jesutas. Neste tempo estava com Mem de S o padre Manoel da Nbrega, que teria sido
o principal causador desta mudana, caracterizando uma vitria dos jesutas sobre Joo Ramalho.
Na passagem do ano de 1560 para 1561 os principais habitantes portugueses de Santo Andr e
Piratininga tinham apenas a igreja dos jesutas para realizar as suas festas religiosas: seria esse o
local em que, segundo as palavras de Anchieta, Nbrega teria solicitado um auto a um irmo em
troca daqueles que os principais da terra estavam querendo realizar e no seriam to bem
recebidos no ptio daquela Igreja. Outra fonte parece confirmar essa hiptese: a biografia de
Quircio Caxa, Breve relao da Vida e Morte do P. Jos de Anchieta, que cita Anchieta como
autor desse auto encenado em Piratininga. Embora no tendo convivido com o padre em
Piratininga, Quircio Caxa esteve com ele na Bahia e no Rio de Janeiro, ocasies em que teria tido
oportunidade para obter informaes sobre essas representaes.
Os indcios so talvez frgeis e Maria de L. de Paula Martins, que dirigiu a importante publicao
das Poesias de Anchieta para o quarto centenrio de seu nascimento, 1934, pondera, refletindo a
partir do caderno manuscrito existente em Roma nos arquivos da Companhia de Jesus, que
possvel duvidar da autoria de Anchieta em certas poesias desta coletnea(o caderno).
Surpreende, em obra to volumosa, no se encontra uma nica assinatura do autor33.
preciso convir, entretanto, e a prpria autora chama nossa ateno para isso, que Anchieta no
escrevia peas e poemas como um literato mas sim para serem aproveitadas por ele e pelos
padres da companhia em rcitas ou apresentaes teatrais, sendo apenas por esta razo
impressas suas obras, muitas vezes por outros. Por outro lado, como a palavra Reritiba aparece
num verso desse autgrafo sem ttulo (Rerytype amboa, outros mais de Reritiba34), podemos
supor ser esse o local de sua primeira apresentao. Alis, Anchieta ali viveu no final de sua vida.
Nesse caso, no se trataria, talvez, do mesmo texto encenado em Piratininga. No autgrafo os
Temimin, que viviam entre Niteri e no Esprito Santo, aparecem como amigos dos padres e
como estando ao lado do bem. Assim como aparecem tambm os seus vizinhos os Arakaj. H um
outro problema para considerar este autgrafo como sendo o primeiro texto de Anchieta, escrito
33 Maria de L. de Paula Martins, Jos de Anchieta: Poesias. So Paulo: Museu Paulista. 1934, p 12. 34 trad. Pe Armando Cardoso, op. cit. p 123
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quando de sua passagem por Piratininga: a presena nele dos personagens Aimbir e Guaixar,
grandes chefes tamoios, que o padre conhecera ou quando estivera entre estes ndios em
Ubatuba,(1563) ou por ocasio da expulso dos franceses do Rio de Janeiro.(1565). Nada
impede, entretanto, que os Temimin, Reritiba e estes chefes tamoios e seus feitos tivessem sido
conhecid