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O ensaio aponta relações do teatro pós dramático - tal como cunhou Hans-Thies Lehmann - e a performance da artista Kenia Dias.
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UFMG – FACULDADE DE LETRAS
Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários (Pós-Lit)Seminário de teoria da literatura e outras disciplinas: leituras da crítica teatral
contemporânea a partir de análises de textos dramáticos/espetaculares
Prof. Dr. Marcos Antônio Alexandre
____________________________________________________________________
O teatro pós dramático e algumas reflexões sobre o poder na performance Lambe Lambe de Kenia Dias
Davi Pantuzza Marques
1. Apresentação
O presente ensaio é uma análise da performance Lambe Lambe da pesquisadora, atriz e diretora
Kenia Dias e de sua dissertação de mestrado defendida na Universidade de Brasília, “Da rua à cena:
trilhas de um processo criativo” (2005), que aborda todo o processo de pesquisa e construção que
levaram à performance. A escolha de tal trabalho se justifica em primeiro lugar pelo enfoque dado à
corporeidade na criação teatral, tema particularmente interessante para as minhas pesquisas em
artes cênicas. Em segundo lugar porque percebemos que todo o processo criativo traz reflexões
sobre a questão da identidade, do apoderamento dos sujeitos e do teatro pós dramático – temas e
territórios de investigação muito abordados durante a disciplina “Leituras críticas do teatro
contemporâneo”.
Sobre o teatro pós dramático (LEHMANN, 2007), questões muito pertinentes surgem para
pensarmos os processos de criação, de construção de sentido e a performance cênica na cena
contemporânea atual. Para o nosso propósito, escolhemos pensar o que ocorre quando a “fábula” e o
“texto dramático” deixam de ser o foco da cena ou simplesmente desaparecem; quais novas formas
de interpretação se fazem necessárias para pensarmos outros regimes de “signagem” que estão
fundamentalmente baseadas no corpo; e o que ocorre num processo de criação interdisciplinar e
arriscado como é o caso da performance que nos propusemos analisar.
No outro aspecto, sobre o tema da identidade, podemos rememorar algumas de nossas discussões
em sala que partiram de questões sobre como: podemos pensar o indivíduo hoje após a derrocada
das fronteiras e dos binarismos na política e no pensamento pós modernos (Irazábal); como dizer do
outro e como pensar a nós mesmos através dos processos de des/re territorialização constantes que
passamos a viver (Goméz-Peña); como pensar os processos de produção de subjetividade num
contexto histórico como dos países da América Latina que viveram cruéis períodos de ditadura
militar (Gambaro, Zamgaro, Radrigán e Grupo Yuyachkani); como pensar o sujeito no contexto da
exclusão, solidão, da incomunicabilidade, da fragmentação (Brie e De La Parra); ou mesmo como
pensar o sujeito com relação a intolerância e a diferença (Bando de Teatro Olodum). Não iremos
abordar todas as questões aqui lembradas, mas especialmente focaremos na reflexão sobre a relação
entre poder e identidade, ou melhor, sobre as relações entre o apoderamento da vida e a constituição
das identidades.
2. A performance “Lambe lambe”
Entramos na sala e uma mulher com um vestido surrado está andando em círculos. A sala está
neutra. Há apenas uma cadeira à esquerda, um monte de jornais à direita no chão. Encima dos
jornais está uma bolsa também surrada. À medida que a ação de andar em círculos transcorre, o
corpo começa a se transformar e passamos a enxergar uma figura mais curvada e aparentemente
envelhecida e mais rígida. Os movimentos da caminhada começam a se tornar mais penosos e
lentos. Agora já com as costas bastante curvada, a figura definitivamente se metamorfoseou em
outra coisa. Um novo estado corporal se configura.
O corpo enrijecido e meio corcunda vai diminuindo seu passos até passar a habitar um espaço mais
restrito da sala. Através de movimentos mais concentrados, duros e pesados, a figura mergulha num
estado rangente. O corpo permanece praticamente no mesmo lugar e passamos a perceber micro
movimentos mais internos agora que realmente nos passa uma sensação de grande desconforto e
abalo. Daquele corpo em estado natural de uma mulher se deslocando em círculos, passa-se a uma
situação animalesca, à beira de alguma convulsão. São nítidos os espasmos e as contrações que o
corpo expele diante de nós.
Digamos assim que um outro momento é instaurado a partir desse corpo convulso. A mulher animal
passa então a buscar uma interlocução com um outro, a plateia, que está à sua frente para autorizar
uma determinada imagem que ela supostamente deveria cumprir. Há um jogo de espelho onde o
corpo da mulher começa a criar deformações no rosto, e a cada imagem fornecida, ela pede
aprovação. Uma série de imagens são formadas especialmente através da deformação do rosto.
Então, a partir desse outro que nunca se satisfaz, a mulher encontra um outro momento para tentar
suprir a aprovação.
É nesse momento que se inicia um jogo de sedução. Ela passa a se dirigir novamente ao olhar alheio
virada de costas e sentada no chão buscando poses sensuais e exibindo as costas nuas. Deixando o
vestido cair ela agora produz uma situação de conquista tirando sua roupa. Completamente nua,
uma outra sequência de movimentos é produzida (que não saberei detalhar de memória) até postar-
se bem próxima do público.
Sutilmente, a mulher começa a pegar alguns pertences e objetos dos próprios espectadores. É muito
interessante como nesse momento se cria um interessante jogo de apropriação e absorção do outro
que, sem dúvida, se sente estranhamente “pertencido” naquela relação submetida a não se sabe o
que e como. A mulher que há pouco se encontrava esvaziada e submetida, estabelece uma relação
aparentemente contrastante: ela age afirmativamente detendo o que não é seu. De fato, me parece,
ela continua a relação anterior, reforçando-a de forma excêntrica: ela ainda se afirma através do que
não é verdadeiramente seu, sua condição ainda depende do que é alheio.
Depois de “varrer” por alguns espectadores diretamente portando seus objetos, a mulher vai até um
monte de folhas de jornal do outro lado da sala ao fundo. Ela deixa alguns pertences no chão e
começa a se vestir com os jornais. Cria-se uma dança estranha que não me recordo bem agora até
ela se postar do outro lado da sala. Nitidamente ansiosa e em estado quase catatônico, a mulher pára
e simplesmente urina de pé interrompendo um movimento que não se sabe quando foi iniciado.
Uma enorme quantidade de urina inunda os jornais e escorre por ela formando uma grande poça no
chão. Lentamente ela vai se desvencilhando daquela situação até se encontrar livre dos jornais.
Cria-se então o último momento da performance quando ela se aproxima da plateia e abre sua bolsa.
Ela tira sua carteira e dela começa a colocar documentos, cartões de bancos, comprovantes... no
chão logo à sua frente. A partir de então inicia-se o mesmo jogo de aprovação do início quando ela
dialogava com um outro. A mulher começa então a colocar os documentos no seu corpo nu e pedir
aprovação da plateia.
3. Aspectos pós dramáticos do processo criativo da performance
A performance Lambe Lambe de Kenia Dias foi resultado de um longo processo de pesquisa
realizado durante sua dissertação de metrado na Universidade de Brasília. De antemão, havia o
desejo de investigar um processo criativo entre o corpo excluído e o corpo do ator em situação de
performance. Para isso, a pesquisadora recorreu a um intenso trabalho de campo no qual ela
investigou dezenas de moradores de rua de Brasília. No primeiro capítulo da dissertação, Kenia
desenvolve toda uma análise sociológica sobre a exclusão social – o que significa estar “fora”, à
margem da sociedade, sem lugar na dinâmica do mundo do trabalho. No segundo capítulo, ela
desenvolve um estudo de perto de cinco moradores de rua que ela escolheu com foco em dois
campos de investigação: análise dos espaços ocupados e análise dos corpos através do método de
análise de movimento de Rudolf Laban. No terceiro e último capítulo, ela desenvolve como ocorreu
a interpretação cênica do material estudado e coletado em campo através da investigação de
movimentos, corpos e situações.
Basicamente, dois aspectos fundamentais constituem o caráter pós dramático da criação cênica
Lambe Lambe. Um diz respeito aos aspectos constitutivos dos contextos de investigação (estudo de
campo), da criação e composição cênica como um todo que é a experimentação e o risco. O outro
detém-se a aspectos internos da performance propriamente dita, ou seja, da realização cênica, que é
a autonomia da linguagem cênica centrada no corpo do intérprete. Detemo-nos em ambos aspectos
levando em conta suas abrangências e complexidades.
3.1. Experimentação e risco
Kenia Dias afirma na apresentação de sua dissertação que não havia uma metodologia prévia que
permitiria configurar de antemão o processo criativo, mas, ao contrário, a construção da pesquisa
foi intrínseca a sua própria realização. Isso nos leva a crer que a pesquisadora escolheu assumir o
risco de perder-se – de forma alguma irresponsavelmente, mas, como já foi dito, com um foco
determinado: investigar as relações entre corpos excluídos (moradores de rua) e o corpo do ator em
situação de performance – para então encontrar seu caminho criativo. Verdadeiramente, isso se
configura como um projeto experimental, no sentido de assumir o desconhecido.
Outra característica experimental e de risco, agora de acordo com Lehmann (LEHMANN, 2007: 24
e 38), é percebido na parceria interdisciplinar realizada com artistas pesquisadoras, no caso com
uma doutoranda em psicologia e uma mestranda em artes cênicas, ambas da Universidade de
Brasília (DIAS, 2005: 81). As três pesquisadoras formaram uma rede investigativa na qual cada
uma tinha um objetivo específico: criatividade no movimento pela psicologia (Suzi Martinelli);
autenticidade do movimento no processo criativo em artes cênicas (Giselle Rodrigues); e, enfim,
dramaturgia, que foi o caso de Kenia. Três processos simultâneos se realizavam no qual havia um
ponto em comum: o corpo no contexto da criação, composição e realização cênica.
Ainda na concepção de Lehmann, o risco e a experimentação também estão presentes na escolha
pelo obscurecimento das fronteiras entre gêneros. Mais uma atitude de desconstrução e
reelaboração do entendimento e da prática tradicional em artes cênicas. O questionamento das
fronteiras, como a própria Kenia afirma (Idem: 120), é uma questão chave tanto no processo de
investigação dos corpos excluídos – diluição das fronteiras entre público e privado, revelado e
ocultado no caso das condições de vida dos moradores de rua –, no processo de criação da
performance Lambe Lambe – mistura de teatro, dança e performance –, quanto do processo como
um todo – cruzamento de limites entre pesquisa, pesquisadora, intérprete, atuante e atuação.
3.2. Autonomia da linguagem cênica centrada no corpo do intérprete
Esse segundo aspecto permite-nos igualmente realizar uma análise ampla e complexa da realização
cênica, com foco, portanto, nas impressões e percepções da performance que pudemos presenciar e
na leitura dos estudos presentes na dissertação de mestrado da pesquisadora.
Corporeidade e linguagem
Como podemos ler uma performance que está totalmente centrada no corpo? Que chaves
interpretativas ou sígnicas podemos utilizar? Como produzir um discurso sobre o movimento, o
devir e a fluidez? E ainda mais: Como podemos realizar uma interpretação coerente de uma
performance que opta por não contar uma história ou que as ações não formam encadeamentos
lineares ou causais? Tais perguntas revelam o caráter pós dramático da encenação, pois cumprem
duas características marcantes desse “novo” tipo de teatro: a corporeidade e a autonomia da
linguagem cênica. O corpo em cena adquire um estatuto “auto suficiente” e a linguagem cênica não
está mais submetida ao texto dramático e seus elementos não mais se conectam de modo inequívoco
((LEHMANN, 2007: 143-157)
Segundo Hans-Thies Lehmann em “Teatro pós-dramático”, o corpo no teatro dramático esteve
disciplinado, treinado e moldado para significar1, ou seja, o corpo cumpre a função de veicular uma
significação, está submetido a uma informação que deveria ser comunicada. Ele é abstraído de sua
densidade material e, portanto, tampouco é tematizado enquanto tal, mas “subtendido” – mera
1 p. 332
ferramenta de transmissão de signos. Aqui, dirá Lehmann, o processo teatral ocorre entre corpos e
não no corpo, como é o caso do novo teatro.
Com o teatro pós dramático o corpo é revalorizado enquanto tal de modo que podemos dizer que
passa a existir a corporeidade. A presença do corpo, sua projeção e sua irradiação (Idem: 157)
passam a ter papel central e fundamental na construção e na percepção da cena. Não que antes o
corpo do ator tinha papel menos importante, mas agora o corpo é visto enquanto tal e passa a ser
tratado autonomamente, desvinculado da função unívoca de significante ou veículo de
significações. O corpo se intensifica, ganha novas dimensões de exploração. O próprio corpo e seu
processo de observação tornam-se objetos estéticos teatrais.
A performance e todo processo criativo de Lambe lambe estão centrados no corpo. Lehmann traz
um conceito interessante que nos permite “ler” grande parte do trabalho que é o de “teatro dançado”
(Ibidem). Com base no ritmo, na música ou na corporeidade erótica, que é o caso da performance
em questão, ele “libera vestígios até então encobertos. Ele intensifica, desloca, inventa impulsos de
movimento e gestos corporais, restituindo assim possibilidades latentes, esquecidas e retidas da
linguagem corporal” (Idem: 158). Tal conceituação é bastante pertinente visto que, tal como já foi
apontado, o processo compositivo de Kenia na sala de trabalho2 esteve baseado nas descobertas de
aspectos físicos e expressivos no próprio corpo da intérprete.
Nesse tipo de teatro, por oposição à “abstração” corporal no teatro dramático, passamos para o
âmbito da “atração”. É no corpo, pelo corpo e a partir do corpo que ocorrem as investigações
cênicas. O corpo vale por si só. Em Lambe Lambe não vemos personagem incorporado, mas
sequências de situações corporais de acordo com ações que ora se conectam ora se desviam e se
afastam. Ao longo dos vinte minutos de performance, vemos o corpo da intérprete passar por
diversos estados alterados. Há oscilações na instituição de sentido (Idem: 335), por isso, há mais
provocação e menos significante. Se é uma dança teatral ou um teatro dançado não importa. O que é
relevante é a pulsação que o corpo adquire, a revelação de seus potenciais. Por isso, trata-se de um
processo teatral no corpo. Ocorre, portanto, a decomposição da intérprete e não a composição de
personagem (Idem: 336).
2 É importante notar que não se trata de “sala de ensaio” como aponta a própria pesquisadora, pois é eixo axial de todo processo não simplesmente transpor para o corpo referências já dadas ou observadas, ou seja, a dramaturgia “surgiu a partir da ação/reação diante da realidade e da vida das pessoas observadas em campo”. Inclusive, daí a dificuldade de categorizar o trabalho, já que os parâmetros de dramaturgia não eram impostos a partir da dança, do teatro ou da performance, mas sim da inter relação das partes da pesquisa: “estudo teórico, estudo de situações em campo, intersecção de pesquisas, laboratórios e eventos” (DIAS, 2005: 114).
É curioso apontar que foi depois de assistir à performance que fiquei sabendo que se tratava de uma
pesquisa sobre moradores de rua. No trabalho há referências quase explícitas como o momento de
pegar objetos da plateia ou quando ela se enrola com jornal, mas não se trata de uma exposição
naturalista ou uma transposição de uma realidade da vida nas ruas. Em momento algum percebi
explicitamente uma figura das ruas. Consegui perceber uma mulher, é certo, expropriada, roubada e
submetida, mas nunca uma moradora de rua. Daí, penso, a força de persuasão do trabalho. O corpo
se expõe como sua própria mensagem e ao mesmo tempo profundamente estranho a si mesmo
(Idem: 339). O tempo todo percebemos um corpo conturbado, turbulento, convulsivo, deformado.
Em momento algum percebemos a mendicância explicitamente tal como estamos acostumados a ver
nas ruas da cidade.
Retomemos agora alguns elementos próprios da linguagem teatral pós dramática reconhecidos no
trabalho de Kenia. Além dos aspectos já apontados no tópico sobre o processo criativo da
performance, vale destacar algumas características essenciais para a compreensão da encenação
como pós dramática.
Lehmann, no capítulo “Panorama do teatro pós-dramático” do livro em questão nesse ensaio,
aponta alguns temas que caracterizam a cena pós dramática. Escolhemos quatro que podemos
abordar como referências importantes que estão contidas em Lambe Lambe. São eles:
− Encenação como cerimônia;
− Eliminação da síntese;
− Sinestesia;
− Texto da performance.
Encenação como cerimônia
O teatro dramático, a grosso modo, pode ser caracterizado essencialmente como o desenvolvimento
de ações que contam uma fábula, uma história para os espectadores. Os elementos cênicos – corpos
dos atores, luzes, figurinos, objetos, música etc – devem estar de acordo com o texto dramático, o
enredo (mythos) que, segundo Aristóteles e Brecht, é a alma do drama.
No teatro além do drama percebemos uma autonomização dos elementos que constituem a cena. A
partir de uma construção independente do texto dramático, ou melhor, da ruptura com o
“textocentrismo” ou do logocentrismo, onde o texto e o discurso textual (lógico, fabular) aparece
como vórtice central e aglutinador, a cena do novo teatro estabelece-se através de um envolvimento
de estados interiores e exteriores e menos de uma sucessão ou desdobramento de um enredo (Idem:
113). Ou seja, a cena está menos para a ação e mais para estados e situações.
O teatro passa a ser pensando como uma cerimônia, aquém ou além de sua mera função de
intensificar a atenção do observador. Os diversos elementos ganham densidade e autonomia e toda
uma profusão de procedimentos surgem sem referencial, mas produzindo sentidos, sensações e
impressões difusas.
Eliminação da síntese
Os signos do novo teatro não necessariamente “significam” algo, no sentido de pertencerem a um
referencial unívoco e preciso. Extrapola-se a correspondência significante/significado e se constitui
uma manifestação ou gesticulação que faz, produz sentido (Idem: 137). As concatenações e as
elaborações causais independem do que ocorre em cena – a significação se forma no interior ou no
“teatro percebido” de cada observador e menos na manifestação da materialidade cênica.
A percepção deixa de ser uniformizante e concludente e passa a ser aberta e fragmentada (Idem:
138). Em geral, o teatro pós dramático está associado a sistemas instáveis de interpretação da
realidade (como a teoria do caos) onde fragmentos, pluralidade, simultaneidade e ambiguidades
formam sentidos que configuram a nossa experiência.
Sinestesia
O desenrolar de Lambe Lambe ocorre num contínuo de estados corporais em conjugação com
situações e condições apresentadas. A nossa percepção de espectador flutua ora conectando sentidos
ora desfazendo expectativas. Os gradientes intensivos do corpo nos levam a estados de alerta,
apreensão, repulsa, alívio, compaixão, estranhamento, diversão. Utilizando pouquíssimos materiais,
a performance nos seduz ou nos repele através do jogo corporal que revela movimentos internos e
externos em constante mutação.
Essa experiência perceptiva surpreende pela sua natureza extraordinária e plurívoca. Como
expectadores, somos provocados a produzir associações e conexões ativamente. O corpo quase
mudo, exprimindo ruídos, sons guturais, quase glossolálicos nos faz perscrutar um mundo sem
similitudes (Idem: 141). Somos levados a uma comunicação pelos sentidos pela reunião de
diversidades em uma textura perceptiva (Ibidem).
Texto da performance
Pensando na construção cênica de modo mais geral, podemos considerar, com Lehmann (Idem:
142-3), que há três níveis da representação teatral: o texto linguístico, o texto da encenação e o
texto da performance. O primeiro trata do texto escrito e/ou oral predeterminado. O segundo, da
relação do primeiro com os elementos que constituem de modo mais ampla a cena: contribuições
dos atores que extravasam e modificam o texto escrito e/ou falado, figurinos, luzes, espaços,
temporalidades etc. Já a dimensão do texto da performance compõe a situação de montagem como
um todo: “o modo de relação da relação da representação com o espectador, a ambientação temporal
e espacial, o lugar e a função do processo teatral no âmbito social”. Com o desenvolvimento dos
estudos da performance, diz Lehmann, essa dimensão toma um valor mais determinante e
fundamental, até mesmo sobre determinando os dois textos.
Com o teatro pós dramático, os dois primeiros textos – linguístico e da encenação – assumem uma
outra perspectiva de acordo com esse desenvolvimento da noção de texto da performance. Por isso
não podemos dizer que esse novo teatro é apenas mais um tipo de texto da encenação, mas um
modo de operar do teatro – sígnico, contextual, procedimental – que revolve as bases dos dois
primeiros. Diz Lehmann, é um teatro de mais presença e menos representação, mais experiência
partilhada e menos comunicada, mais processo e menos resultado, mais manifestação e menos
significação, mais energia e menos informação.
Analisando essa perspectiva diretamente em Lambe Lambe, podemos assinalar que a performance
se destaca: pela potência do trabalho corporal onde percebemos o desenvolvimento de uma
presença cênica dilatada e menos o da representação de um personagem; pela capacidade
comunicativa de dividir e compartilhar situações com o espectador e menos por “passar” um
comunicado; pelo valorização do trabalho processual: principalmente pela capacidade de absorção
de novos elementos e de modificação do resultado final 3; pelo caráter eminentemente corporal do
trabalho fazendo-o, como já foi dito, se realizar muito mais no registro da manifestação do que no
da significação; e, por fim, pela qualidade sensitiva e material corporal (energia) em detrimento da
3 É importante destacar o que Kenia diz a respeito das mudanças que ocorrem passando por cada experiência de apresentação da performance: “... as relações entre processo e produto não estavam distantes, havendo a literal necessidade de se mostrar o trabalho em virtude de se desenvolvimento. Comecei, então, a perceber que, no caso de Lambe-Lambe, essa necessidade se explicitava por saber que para a performance se desenvolver era preciso que ela fosse tocada pelas situações em que o acaso do espaço e do tempo cotidiano interferisse. Um acaso relacionado a sons, à fisicidade e objetividade do espaço mas, principalmente, um acaso relativo à ação/reação das pessoas.” (DIAS, 2005: 112)
quantidade de informação ou do que exatamente se deseja comunicar.
4. Identidade e apoderamento
Se a mulher de Lambe Lambe não se configura como personagem, ela apresenta uma série de ações
que desenham alguns comportamentos intensivos que constroem um universo – corporal,
situacional, sensitivo, agonizante4. Aliás, vale a pena repetir, não há mesmo um referencial explícito
ou simplesmente de mímese de um corpo que mora na rua. É o próprio corpo da intérprete que
manifesta uma figura feminina em estado de exclusão, rebaixado, dócil, servil, submisso. Corpo
território devastado sugado desertado desviado subtraído. Um corpo sem vontade que se submete. É
sobre esse tipo de corpo que agora iremos discorrer.
Lembremos nossas discussões durante as aulas da disciplina “Leituras críticas do teatro
contemporâneo” a respeito da identidade e do poder. A partir da leitura do texto “El giro político” de
Federico Irazábal e outras referências pudemos construir e estabelecer em nossas discussões um
quadro possível de problemas que concretizam um cruzamento entre esses dois temas. Com o
desenvolvimento da modernidade e da sobreposição da pós modernidade, como podemos pensar a
questão das identidades sociais? Nesses contextos, através do conceito de “homem massa” de
Gramsci que permite pensar os mecanismos de manipulação, apoderamento e controle dos
indivíduos, como pensar a negociação entre individualidade e inserção social – o sujeito se oculta
atrás do sistema até desaparecer? Os indivíduos não estariam sendo apoderados pelas interpretações
dominantes: do capital, da mídia, do Estado? Através dos sistemas de normas, crenças e valores, do
enfrentamento de regimes severos de governo – como foi o caso das ditaduras (especialmente
discutidas no contexto da América Latina) – o corpo social dos sujeitos foram e vão se despojando
de sua autenticidade, originalidade e dignidade.
Podemos, contudo, ir ainda mais adiante pensando nos novos mecanismos de apoderamento que
foram sendo criados ao longo da contemporaneidade, quando Irazábal discute a questão de como
pensar o poder e as identidades no contexto do apagamento das fronteiras – econômicas,
geopolíticas, linguísticas, religiosas, históricas, das lógicas de constituição dos sujeitos. Em outras
palavras, de que forma o poder se torna mais fluido, rizomático, ondulante, anônimo, esparramado
(PELBART, 2006: 1)?
4 LEHMANN, 2007: 335-7.
Estado de sobrevida
A forma adquirida pelo poder e como ele atua na constituição das identidades toma uma dimensão
imanente na contemporaneidade: de tão adentrado e contido em todos tipos de relação entre as
pessoas, fatos, desejos, acontecimentos... se torna impossível identificar uma origem, causa ou fonte
comum que nos permite classificá-lo e enquadrá-lo em alguma lógica eficiente. De acordo com essa
lógica de pensamento, que faz do apoderamento dos corpos e, portanto, das identidades uma
potência imanente e criativa, se torna totalmente indiscernível onde começa a vida e onde começa o
poder sobre ela. Esse tipo de pensamento nos interessa muito aqui devido ao caráter fragmentário e
desviante da narrativa estabelecida em Lambe Lambe.
Na performance, um comportamento especialmente marcante que surge no começo e no final é o
jogo estabelecido com a plateia afim de conseguir a aprovação de sua própria imagem. Nesse
momento, a mulher revela uma potente relação de busca pela própria identidade e de apoderamento
e/ou assujeitamento do próprio corpo. Busca-se uma aprovação, um consentimento do outro para
que possa se valer, se tornar alguém. Poderia-se sim perceber o corpo de uma moradora de rua, mas
também é completamente plausível e mesmo mais interessante perceber o corpo de uma dondoca.
Ou seja, vemos um corpo frágil, mas não necessariamente pobre ou miserável economicamente.
Aqui reside a incrível força do poder – o biopoder (PELBART, 2006)– na vida contemporânea: ele
não só devasta pelas “instituições” consagradas do capitalismo – ciência, capital, Estado, mídia etc
– mas ele mesmo funda e se exerce a partir do próprio núcleo da vida.
O corpo invadido e roubado da mulher torna-se o corpo “muçulmano”. Conceito apropriado por
Pelbart (Idem: 2-3) de Giorgio Agamben, o “muçulmano” é o “cadáver ambulante, morto vivo,
homem múmia homem concha”, aquele que se submete sem reserva à vontade divina, isto é, à
vontade do outro. Nesse estado, o corpo vivo se torna mera silhueta, figura, manequim, espécime
entre a vida e a morte, entre o humano e inumano: o sobrevivente. A artimanha devastadora dessa
forma de poder reduz a vida à vida biológica, ela produz sobreviventes.
Em Lambe Lambe vê-se um corpo em puro de estado de agonia em busca de alguma forma de se
afirmar enquanto ser. Ser algo, ser alguém. A busca por uma forma adequada diante dos olhos dos
outros por meio de deformações física no rosto, manifestam uma estranhíssima e paradoxal
inconformidade; os ruídos saídos de um corpo que parece não aguentar mais, incapacitado até
mesmo de falar, revelam esse corpo em estado de sobrevida, submetido, devastado; o corpo que se
apropria dos objetos da plateia, novamente surpreende pela desconexão entre o desejo de pedir e a
habilidade de tomar posse do que não é seu; um corpo que se esvai na própria urina, enrolado por
jornais, permanece em estado quase catatônico, débil – sua única condição possível de existência;
então, finalmente, o corpo retorna submetido diante do olhar alheio – reduzido a cartões de
identidade e de crédito, comprovantes de votação, carteirinhas de clubes ou associações. Um corpo
absolutamente despossuído de si, anônimo, ambulante, morto vivo.
Nessa forma de apoderamento das identidades não podemos mais “acusar” ou mesmo identificar as
causas de tais construções. Somos acometidos “por dentro”, nós mesmos, seres consumidores,
informatizados, sem casa, milionários ou miseráveis, gordos ou esqueléticos vagamos perdidos
buscando por nossa própria identidade, esquecida em algum lugar. Despossuídos,
(des)territorializados, desejadores ávidos criamos para nós mesmos formas de nos adaptar às
inseguranças, aos medos e frenesis da vida atual sem exatamente saber para onde caminhamos.
Confiamos cegamente na realização de nós mesmos de acordo com alguma forma exterior dada ou
comprada nos shopping centers.
5. Conclusão
É notável a riqueza e a potência do trabalho Lambe Lambe. Poderíamos ter escolhidos diversas
formas diferentes e inusitadas de criar sentidos para a performance. O fato de que a interpretação
nunca se fecha univocamente faz do teatro uma manifestação extremamente instigante. Talvez seja
por isso que tenha me atraído tanto as conceituações de Lehmann a respeito do teatro pós
dramático: uma forma de encenação que não submete o olhar do outro a conclusões estanques. É
realmente provocador como que essa forma de fazer teatro aproxima as margens entre o teatro e a
vida.
Se o teatro deve cumprir com sua mais potente realização: criar condições instigantes para que
ocorra o encontro entre corpos – observadores e observados, então quero crer que esse encontro
possa realmente elevar as consciências a níveis nunca antes explorados, possibilitar nos arriscarmos
no extraordinário. O teatro não deve jamais ser algum tipo de reprodutor de formas já dadas ou
envelhecidas e capengas: da televisão, da mídia, das vidas ordinárias, mas sim deve promover uma
verdadeira transformação dos seres humanos, para que estes possam se ver e ver tudo o que os
envolve de forma sempre renovada e recriada, desfeita de antigos padrões e fórmulas que
empobrecem nossa existência.
Referências
DIAS, Kenia. Da rua à cena: trilhas de um processo criativo. Dissertação apresentada ao Curso de
Pós Graduação do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade de Brasília,
2005 (manuscrito).
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Tradução: Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac
Naify, 2007.
PELBART, Peter Pál. Vida nua, vida besta, uma vida. Texto escrito a partir de palestra por ocasião
do Festival Alkantara, em Lisboa, 2006
(website: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2792,1.shl)