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85 RESUMO O TEMA DA LIBERDADE RELIGIOSA NA POLÍTICA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX: UMA VIA PARA A COMPREENSÃO DA SECULARIZAÇÃO DA ESFERA POLÍTICA 1 Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 19, n. 38, p. 85-99, fev. 2011 Recebido em 6 de março de 2009. Aprovado em 12 de abril de 2009. Gilson Ciarallo A secularização das instituições tem sido um tema muito recorrente nas Ciências Sociais das últimas déca- das, sobretudo em razão de sua complexidade conceitual, o que propicia olhares diversos para as relações que ao longo da história estabelecem-se entre religião e outras esferas sociais. Uma dessas relações é a que se pode observar entre religião e política. A “Secularização” consiste na autonomização das esferas da sociedade em relação à religião. Aspectos da autonomização da esfera política em relação à religião são colocados sob análise considerando as discussões sobre liberdade religiosa travadas no cenário político do Brasil do século XIX. Nesse contexto, o padroado e as idéias ultramontanas estiveram intimamente relacionadas com rupturas e permanências identificadas no campo das idéias políticas, considerando-se os temas de natureza religiosa. Embora tenha sido marcante a presença do clero na atividade política do período sob análise, com a extinção do padroado e o advento da República os discursos religiosos deixa- ram aquela esfera, passando a manifestar-se exclusivamente no âmbito eclesiástico, de forma proselitista. A configuração social que se desenha à luz desse tema permite idenficar sinais da efetivação da secularização da esfera política em fins do século XIX. O argumento presente contribui para esclarecer o tema da secula- rização no Brasil. Ao separarem-se Igreja e Estado, e ao tornar-se cada vez menos expressiva a presença do clero nos processos decisórios oficiais, a esfera política secularizou-se, permitindo localizar a experiência sociocultural brasileira ao lado de outras experiências socioculturais componentes da modernidade oci- dental. PALAVRAS-CHAVE: secularização; Parlamento Imperial brasileiro; liberdade religiosa; autoridade ecle- siástica. I. INTRODUÇÃO A “secularização” das instituições tem sido um tema muito recorrente nas Ciências Sociais das últimas décadas, sobretudo em razão de sua com- plexidade conceitual, o que propicia olhares di- versos para as relações que ao longo da história estabelecem-se entre religião e outras esferas so- ciais. Uma dessas relações é a que se pode obser- var entre religião e política. Para tratar da secularização da esfera políti- ca é necessário considerar o sentido que o con- ceito secularização tem nessa discussão, espe- cificamente. E para isso não se pode ignorar que secularização é um conceito que passou por metamorfoses diversas, tornando possível, in- clusive, o seu estudo genealógico, conforme faz Marramao (1997). Isso deu ensejo aos diver- sos significados que o termo ganhou ao longo do tempo. O significado mais recorrente da seculariza- ção nos estudos das Ciências Sociais é o que Dobbelaere (1981; 1999) tipifica como seculari- zação no nível macro. É considerando essa tipificação que utilizo o termo neste artigo. Le- vando em conta, então, esse sentido estrito, a se- cularização consiste na autonomização das esfe- ras da sociedade em relação à religião 2 . Assim, 1 Agradeço pelos comentários e sugestões dos professores que fizeram os pareceres, os quais contribuíram muito para a elaboração da versão final do texto. 2 Além de sua acepção no nível macro, a secularização também aparece como pluralização da religião, no nível de

O TEMA DA LIBERDADE RELIGIOSA NA POLÍTICA BRASILEIRA DO ... · 5 Termo utilizado desde o século XI, referindo-se aos cristãos que buscavam a liderança de Roma (do outro lado da

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 38: 85-99 FEV. 2011

RESUMO

O TEMA DA LIBERDADE RELIGIOSA NA POLÍTICABRASILEIRA DO SÉCULO XIX:

UMA VIA PARA A COMPREENSÃO DA SECULARIZAÇÃODA ESFERA POLÍTICA1

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 19, n. 38, p. 85-99, fev. 2011Recebido em 6 de março de 2009.Aprovado em 12 de abril de 2009.

Gilson Ciarallo

A secularização das instituições tem sido um tema muito recorrente nas Ciências Sociais das últimas déca-das, sobretudo em razão de sua complexidade conceitual, o que propicia olhares diversos para as relaçõesque ao longo da história estabelecem-se entre religião e outras esferas sociais. Uma dessas relações é a quese pode observar entre religião e política. A “Secularização” consiste na autonomização das esferas dasociedade em relação à religião. Aspectos da autonomização da esfera política em relação à religião sãocolocados sob análise considerando as discussões sobre liberdade religiosa travadas no cenário políticodo Brasil do século XIX. Nesse contexto, o padroado e as idéias ultramontanas estiveram intimamenterelacionadas com rupturas e permanências identificadas no campo das idéias políticas, considerando-se ostemas de natureza religiosa. Embora tenha sido marcante a presença do clero na atividade política doperíodo sob análise, com a extinção do padroado e o advento da República os discursos religiosos deixa-ram aquela esfera, passando a manifestar-se exclusivamente no âmbito eclesiástico, de forma proselitista. Aconfiguração social que se desenha à luz desse tema permite idenficar sinais da efetivação da secularizaçãoda esfera política em fins do século XIX. O argumento presente contribui para esclarecer o tema da secula-rização no Brasil. Ao separarem-se Igreja e Estado, e ao tornar-se cada vez menos expressiva a presença doclero nos processos decisórios oficiais, a esfera política secularizou-se, permitindo localizar a experiênciasociocultural brasileira ao lado de outras experiências socioculturais componentes da modernidade oci-dental.

PALAVRAS-CHAVE: secularização; Parlamento Imperial brasileiro; liberdade religiosa; autoridade ecle-siástica.

I. INTRODUÇÃO

A “secularização” das instituições tem sido umtema muito recorrente nas Ciências Sociais dasúltimas décadas, sobretudo em razão de sua com-plexidade conceitual, o que propicia olhares di-versos para as relações que ao longo da históriaestabelecem-se entre religião e outras esferas so-ciais. Uma dessas relações é a que se pode obser-var entre religião e política.

Para tratar da secularização da esfera políti-ca é necessário considerar o sentido que o con-ceito secularização tem nessa discussão, espe-cificamente. E para isso não se pode ignorar

que secularização é um conceito que passou pormetamorfoses diversas, tornando possível, in-clusive, o seu estudo genealógico, conforme fazMarramao (1997). Isso deu ensejo aos diver-sos significados que o termo ganhou ao longodo tempo.

O significado mais recorrente da seculariza-ção nos estudos das Ciências Sociais é o queDobbelaere (1981; 1999) tipifica como seculari-zação no nível macro. É considerando essatipificação que utilizo o termo neste artigo. Le-vando em conta, então, esse sentido estrito, a se-cularização consiste na autonomização das esfe-ras da sociedade em relação à religião2. Assim,

1 Agradeço pelos comentários e sugestões dos professoresque fizeram os pareceres, os quais contribuíram muito paraa elaboração da versão final do texto.

2 Além de sua acepção no nível macro, a secularizaçãotambém aparece como pluralização da religião, no nível de

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cada subsistema da sociedade passa a produzirseus próprios valores e normas independentementede normas religiosas neles vigentes anteriormen-te. Exemplos disso são a emancipação da educa-ção em relação à tutela eclesiástica e a separaçãoentre igreja e estado.

A acepção da secularização comoautonomização das esferas em relação à religiãoestá presente, por exemplo, nos estudos de Berger(1985, p. 119), o qual coloca em questão o “pro-cesso pelo qual setores da sociedade e da culturasão subtraídos à dominação das instituições e sím-bolos religiosos”, manifestando-se na “retirada dasIgrejas cristãs de áreas que antes estavam sob seucontrole ou influência”.

No cenário político brasileiro do século XIXalguns temas tiveram especial confluência com otema da secularização das instituições. Dentre es-tes, o tema da liberdade religiosa ganha importân-cia especial por colocar em evidência as discus-sões relacionadas com a quebra do monopólioreligioso mantido pela Igreja Católica até então.São essas discussões que coloco em perspectivaneste artigo, no intuito de lançar luz sobre as rup-turas e permanências que se conjugaram no cam-po das idéias políticas do século XIX. Esse olhar,por sua vez, contribui para a compreensão deconfigurações históricas peculiares nas quais asesferas religiosa e política relacionaram-se, con-vergindo para a autonomização da esfera políticaem relação à religião.

II. A PRESENÇA DO CLERO NO PARLAMEN-TO IMPERIAL

No Brasil o processo de secularização da esfe-ra política esteve intimamente ligado à extinçãodo padroado, o que ocorre como decorrência doprocesso de autonomização da esfera política emrelação à religião. O padroado, que sobreviveu paraalém do período colonial, consistia em instituiçãoatrelada ao período de reconquista ibérica, tendosurgido como um compromisso entre a Santa Sée o governo português3.

Ao lado da extinção do padroado, outra evi-dência da secularização como autonomização daesfera política em relação à religião consiste nodecréscimo do envolvimento do clero na vida po-lítico-partidária. Eram numerosos os clérigos de-putados provinciais, nacionais e senadores doImpério. No Parlamento, por exemplo, é grande onúmero de clérigos nas primeiras legislaturas, de-crescendo progressivamente nas legislaturas se-guintes. Vislumbra-se, dessa maneira, um traçoimportante das relações entre Estado e Igreja noBrasil imperial, o que corrobora a fusão entre es-sas esferas em um primeiro momento, seguida daprogressiva autonomização da esfera estatal emrelação à religião.

De 80 deputados escolhidos na primeira elei-ção geral organizada no Brasil, vinte e três deleseram clérigos. A Constituinte de 1823, por suavez, contou com 21 clérigos, entre bispos e pa-dres. Iniciando-se as atividades das instituiçõesconstitucionais, em 1826, de um total de 103 clé-rigos, 23 foram eleitos para compor a legislaturada Câmara dos Deputados. A Tabela 1 mostra aredução progressiva desse número no decorrerdas sucessivas legislaturas.

De uma forma geral, foi grande a participaçãodo clero no processo legislativo e administrativodo país durante o período imperial. Participaramda Câmara dos Deputados do Império 223 mem-bros do clero, eleitos para as 20 legislaturas listadasna Tabela 1. Participação significativa, porém sen-sivelmente decrescente4. A 10ª Legislatura será aúltima a ser marcada por uma participação maissignificativa do clero. Tal diminuição progressivaé comentada por Octávio Tarquínio de Sousa(1988), que salienta a perda do monopólio inte-lectual mantido pela Igreja até as primeiras déca-das do século XIX. Contribuiu para isso a inau-

análise meso, e como privatização da religião, no nível micro.Neste último nível a secularização refere-se aos processosmediante os quais a religião passa a ser coisa da esferaprivada, exclusivamente. Neste artigo restringimo-nos àacepção do conceito no nível macro.3 Do padroado decorria o direito da Coroa portuguesa deadministrar os negócios eclesiásticos de seus domínios,

direito originariamente concedido pelos papas aos reis dePortugal mediante bulas diversas.4 A principal obra utilizada como fonte de informaçõesdesta pesquisa é O clero no Parlamento brasileiro(BRASIL, 1978). Essa obra de sete volumes reúne ospronunciamentos dos clérigos que ocuparam cadeiras emambas as casas do Parlamento brasileiro. Cinco volumesforam publicados pela Câmara dos Deputados, todos emassociação com a Fundação Casa de Rui Barbosa. O primeirodos volumes publicados pela Câmara reúne as intervençõesdos parlamentares clérigos da constituinte de 1823, ao passoque os outros foram dedicados às legislaturas dos clérigosna Câmara dos Deputados, de 1826 a 1889.

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TABELA 1 – NÚMERO DE CLÉRIGOS NAS LEGISLATURAS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS (PERÍODOIMPERIAL)

FONTE: O autor, a partir de Brasil. Câmara dos Deputados (1978).

guração no Brasil das duas faculdades de estudosjurídicos em São Paulo e Recife, as quais iriamabastecer as câmaras do Império, restringindo,desta maneira, o espaço de inserção que nelas ti-nha o clero no início das atividades legislativas

Erigia-se, dessa forma, o tipo de funcionáriomais adequado às exigências dos quadros admi-nistrativos estatais, que iam paulatina e cada vezmais expressivamente ganhando os traços carac-terísticos do tipo burocrático de organização. Aolongo desse processo, não só o elemento clericalabandonava gradativamente o cenário administra-tivo, como também a formação desses quadros

imperiais. Essas escolas jurídicas seguiriam ver-tentes distintas daquelas orientadas pelo direitocanônico e pelos códigos lusitanos tradicionais,os quais dariam lugar às influências do pensamentoliberal europeu (SCHWARTZMAN, 2001, p. 73).

administrativos emergia destituída do elementosagrado.

A participação inicial do clero na política doBrasil imperial parece mais expressiva se consi-derarmos sua presença na galeria dos presidentesda Câmara dos Deputados, sobretudo até meadosdo século XIX. No Quadro 1 seguem listadas assucessivas presidências nos respectivos períodosde seu exercício.

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FONTE: O autor, a partir de Brasil. Câmara dos Deputados (1978).NOTA: 1. Clérigos.

QUADRO 1 – GALERIA DOS PRESIDENTES DA CÂMARA DOS DEPUTADOS NO PERÍODO IMPERIAL (1826A 1847)

É, portanto, expressiva a presença do clero naliderança da Câmara. Dos primeiros 25 manda-tos, sete foram ocupados por clérigos (5º, 8º, 11º,14º, 15º, 19º e 25º mandatos). O Arcebispo daBahia, D. Romualdo Antônio de Seixas, um dospaladinos do “ultramontanismo”5, ocupou a ca-deira por duas vezes, no período de 1828 a 1829,

e em 1841 – o 5º e o 19º mandatos, respectiva-mente. Entretanto, do 26º ao 57º mandatos, ne-

5 Termo utilizado desde o século XI, referindo-se aoscristãos que buscavam a liderança de Roma (do outro ladoda montanha). É relativo também à defesa do ponto de

vista dos papas, aos que davam apoio à política papal,freqüentemente em oposição aos partidários do Imperador.O tipo de pensamento que no século XIX é conhecidocomo ultramontanismo refere-se aos conceitos e atitudesconservadores da Igreja, geralmente opondo-se às correntesliberais que emergiram a partir da Revolução Francesa. Nessesentido, ser ultramontano é ser ortodoxo, é pautar-se nosditames doutrinários propugnados pelas bulas romanas,independentemente das correntes de pensamento locais.

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nhum clérigo terá ocupado a cadeira da presidên-cia da Câmara. Seguem-se, assim, de 1847 a 1889,32 mandatos, em sua maioria ocupados por ex-alunos das faculdades de direito em Pernambucoe São Paulo.

Esse progressivo enfraquecimento da presen-ça do clero no Parlamento deve ser entendido tam-bém como um dos resultados do avanço das fren-tes liberais no país, as quais se deparavam comos obstáculos provenientes do conservadorismodo clero militante na política, sobretudo aquele devertente ultramontana. Esse clero esforçava-separa manter forte presença nos quadros diretivosdo país, sob os auspícios de Roma. A presençainicial na liderança da Câmara é um dos indicado-res desse empenho, tendo a seu favor o artigo 95da Constituição de 1824, segundo o qual eramexcetuados dentre os cidadãos hábeis a seremnomeados deputados aqueles que não professas-sem a religião do Estado.

Entretanto, ao passo que o Estado seculariza-va-se, autonomizando-se em relação à religião,avançavam nos processos decisórios entendimen-tos favoráveis ao quadro do pensamento liberal,ao qual estava atada uma idéia de mundo moder-no, e com ele o desenvolvimento da indústria e dademocracia. A tais entendimentos, por sua vez,não se chegavam sem que se travassem caloro-sos embates entre a ala liberal, pró-secularização,e a ala conservadora que queria ver mantida a fu-são entre as esferas política e religiosa. Eraconstitutiva desta última ala a maioria dos cléri-gos que ocuparam cadeiras nas atividades parla-mentares imperiais.

III. O TEMA LIBERDADE RELIGIOSA E SUACONJUGAÇÃO NO CENÁRIO POLÍTICO

As diversas manifestações em prol ou contraa liberdade religiosa dentro do cenário nacionalsão essenciais para compreender-se a natureza dopluralismo religioso que passou a caracterizar afisionomia da sociedade brasileira no século XX.Os embates que nessa matéria são travados noParlamento em muito contribuem para elucidar apresença da doutrina católica como única fontesimbólica com aura sagrada, ao mesmo tempo emque apontam os movimentos em direção à quebrade tal monopólio. Menck (1995, p. 151) atentapara centralidade e importância que ganhou amatéria na Assembléia Constituinte do Império,identificando como temas confluentes a liberdade

de culto, a liberdade de expressão, a liberdade depensamento e a migração de colonos europeus.

Nas diversas sessões da Constituinte,registrados no Diário da Assembléia Geral Cons-tituinte e Legislativa do Império do Brasil (BRA-SIL, 1874), é possível vislumbrar a polarizaçãodos discursos. É manifestando essa polarizaçãoque, de um lado, claramente liberal, Antônio Carlostomava a defesa do projeto, acompanhado por Mo-niz Tavares, que era clérigo – liberal, todavia –,afirmando que naquele contexto era político e nãoteólogo (em um legítimo posicionamento favorá-vel à autonomia das esferas). Ressaltando a liber-dade religiosa como direito dos mais sagrados,Moniz Tavares manifestava-se contra a intolerân-cia, as perseguições e o constrangimento intelec-tual. Francisco Carneiro, por sua vez, atribuía aoparágrafo referente à liberdade religiosa “um dosque mais honra fazem aos ilustres redactores doprojecto” e, lembrando as perseguições dos ju-deus em Portugal, indagava: “Seremos nós hojemenos justos e menos liberais do que foram osportugueses em tempos chamados escuros?”(idem, p. 195) Para José Joaquim Carneiro deCampos, o projeto levantava voz em respeito aum direito inalienável de todo o homem. Atentava,dessa maneira, para princípios bastante caros aopensamento liberal.

Engrossando a fileira dos liberais, Carneiro daCunha requeria a aprovação do artigo como haviasido redigido, pois “as luzes do século nos mos-tram que a todos devemos abrir a porta” (idem, p.199), ao que se unia Vergueiro, que também de-fendeu o princípio da tolerância. Rocha Francodestacou-se por sua manifestação em favor daextensão da liberdade religiosa ao judaísmo, re-querendo aditamento ao artigo. Fizeram coro a taladitamento Carvalho e Mello, Montezuma e Fran-cisco Carneiro, dentre outros.

Do outro lado do embate, visivelmente con-servador, Maciel da Costa levantava, na sessão desete de outubro, a primeira crítica ao projeto detolerância, apontando nele uma contradição base-ada no fato de que o Brasil era uma nação inteira-mente católica. Fazendo coro ao lado de Macielda Costa, Dom José Caetano da Silva Coutinhoacrescentava que de modo algum aprovaria tal li-berdade se considerada em seu sentido amplo.Padre Manuel Rodrigues da Costa, temendo seracusado de perjuro por falta de defesa à religião

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católica, propôs a exclusão do artigo, após consi-derações acerca dos “perversos dogmas deCalvino, de Lutero e de muitos outros heresiarcasque se quiseram erigir em reformadores” (idem,p. 185). E, fazendo do Parlamento seu púlpito,acrescentava à maneira do sermão: “Se depois desermos ilustrados pela revelação, se depois de ter-mos abraçado a religião católica romana, admitís-semos, dentro de nós mesmos, um culto diferen-te daquele que nos foi revelado, e adotássemos osque o demônio tem introduzido, servindo-se deseus emissários para os inculcar como verdadei-ros, levantaríamos altar contra altar dentro damesma nação” (BRASIL, CÂMARA DOS DEPU-TADOS, 1978, v. 1, p. 260).

O deputado José da Silva Lisboa, por sua vez,também pedia a supressão do parágrafo, já que, aseu ver, era prejudicial aos princípios do catoli-cismo. Temia facultar aos já católicos o direito deabandonar a religião oficial, abrindo brechas àsheresias. Que fosse, então, restrito aos estrangei-ros que traziam a indústria.

Mesmo após várias horas de trabalho, seguidasem diversas sessões, o tema não chegou a ser es-gotado pela Constituinte6. Atribuo a causa de taldificuldade ao próprio caráter do tema em um mo-mento de transformações conturbadas, momentosnos quais os conflitos acirravam-se, dando lugar apolarizações. E em contextos conflituosos polari-zados tende a ser mais custoso o entendimento edispendioso o acordo.

Decorrente da forte presença do elemento re-ligioso na Assembléia Constituinte, saliente-se aancoragem da Constituição de 1824 no arcabouçoreligioso do pensamento católico do Brasil da pri-meira metade do século XIX. Jurada pelo Impe-rador em cerimônia solene na Catedral do Rio deJaneiro no dia 25 de março de 1824, a Carta daLei – como era chamada – inaugurava-se com aCarta Imperial, reiterando a tradição do chama-mento a Deus (NÓBREGA, 1998, p. 19), assina-da “em Nome da Santíssima Trindade”.

Estando assim legitimada de modo sacramen-tal, a Carta expressava-se claramente em matériade religião. O monopólio da Igreja Católica eragarantido juridicamente, como assegurava o arti-go 5º. Às outras religiões era permitido o culto,porém, em casas “sem forma alguma exterior detemplo”. Somente a religião oficial poderiaexteriorizar os símbolos de sua fé nas constru-ções, monopolizando assim o direito de utilizaçãodos mais poderosos aparatos de proselitismo, so-bretudo aqueles que permitiam a domesticação deimagens e símbolos no reservatório de conheci-mentos compartilhados. Dessa maneira, o cotidi-ano dos indivíduos, sua forma de ver o mundo,bem como suas atividades, costumes e hábitosdiários eram impregnados pela sempre presente econstante atividade religiosa da Igreja Católica, nocentro da cidade, junto à praça, ao som dos sinos,ao ritmo da música sacra, à sombra das imagens.

A tais elementos adicione-se a monopolizaçãodos sacramentos mais fundamentais como o ba-tismo e o casamento, o que impedia aos estran-geiros de religiões acatólicas manifestarem-se nes-ses ritos. Thomas Davatz, o colono protestantesuíço que viveu no Brasil de meados do séculoXIX, apontou a contradição que via entre a liber-dade religiosa admitida constitucionalmente e aprática dos batismos, monopolizada pela religiãooficial. Reclamava que os filhos de protestantessó podiam ser batizados na igrejas católicas e queo padre não aceitava protestantes como padrinhosde batismo (DAVATZ, 1980, p. 137-138). Isso aju-da a compreender o motivo da confluência entreos temas liberdade religiosa e migração de colo-nos europeus nas discussões do Parlamento Im-perial.

Cumpre ressaltar que a observância da reli-gião oficial era condição para que autoridades exer-cessem seu ofício. O Imperador, seu herdeiro econselheiros de Estado deveriam jurar manter areligião católica. O compromisso a religião oficialprincipiava o juramento a ser proferido por eles:“Juro manter a Religião Católica Apostólica Ro-mana”. Assim requeriam os artigos 103, 106 e141 da Constituição de 1824.

Tal compromisso com a religião oficial chega-va a ser estendido – e cobrado – aos deputados aolongo das legislaturas. Cite-se, a exemplo disso,trecho do debate ocorrido durante a 15a Legislatura,a 27 de março de 1873, por ocasião das discus-sões travadas à época da Questão Religiosa: “O

6 Menck (1995, p. 159) salienta que, com a dissolução daConstituinte, apenas o inciso III do artigo sétimo doprojeto havia sido aprovado: a liberdade religiosa comodireito individual. Não se chegou a dar fim à discussãoacerca dos limites dessa liberdade, acerca de quais seriamos direitos característicos da primazia da Religião do Estadoe nem acerca de como e sob qual forma os demais cultosseriam aceitos.

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Sr. Leandro Bezerra: - Esses deputados que pre-gam o liberalismo, permita-se-me dizer, faltam aojuramento que prestaram de manter, primeiro quetudo, a religião do Estado, isto é, a católica apos-tólica romana.

O Sr. Silveira Martins: - Não há tal, primeiroque tudo o país não é nenhum convento.

O Sr. Pinto de Campos: - Primeiro que tudo areligião católica apostólica romana, e V. Ex.ª sabeque segundo disposição constitucional não se podeser deputado sem pertencer a esta religião, e dejurar mantê-la” (BRASIL. CÂMARA DOS DEPU-TADOS, 1978, v. 5, p. 111).

A presença dos clérigos no Parlamentocorrespondia à presença de guardiões daquelesdispositivos constitucionais. Saliente-se que o epi-sódio supracitado ocorre 50 anos depois de jura-da a Carta da Lei do Império, tal era a força dasprerrogativas da religião oficial.

Ainda que permitidas, outras religiões não con-tavam com iguais condições a fim de penetrar natradicionalmente católica sociedade brasileira doséculo XIX. O monopólio da Igreja Católica erasempre novamente assegurado, inclusive – a exem-plo dos artigos constitucionais supracitados – pe-las vias que legitimavam uma autoridade políticade tipo marcadamente tradicional, a qual, por suavez, guardava nítidas afinidades com o pensamentocatólico de então, rigorosamente único, especial-mente aquele sob os auspícios da atividade cleri-cal ultramontana.

Assim como a Constituição de 1824, tambémo Código Criminal do Império, de 1830, apresen-tava avanços relativos em matéria de liberdadereligiosa, ao mesmo tempo em que privilegiava areligião do Estado. Tal operação evidencia-se noteor dos artigos que se sucedem, ora protegendoa liberdade de culto, ora enfatizando a proteção àreligião do Estado. Sob a rubrica “dos crimes contraa liberdade individual”, aponta o artigo 191: “Per-seguir por motivo de religião ao que respeitar a doEstado e não offender a moral publica” (TINÔCO,2003, p. 369). É ilícito perseguir se se respeita areligião do Estado. A liberdade religiosa tem, por-tanto, restrições. Não fica claro, todavia, em queconsiste o respeito e o desrespeito à religião cató-lica. A depender da apreciação, o desrespeito po-deria ser invocado injustamente, restringindo ain-da mais a liberdade garantida.

Sob o título “Offensa da religião, da moral e

bons costumes”, o artigo 276 do mesmo códigoenquadra aquele que “celebrar em casa ou edificioque tenha alguma fórma exterior de templo, oupublicamente em qualquer lugar, o culto de outrareligião que não seja a do Estado” (idem, p. 499).Há liberdade de culto, porém somente os prédiosda religião do Estado podem ter a aparência detemplo, de “casa de Deus”, de local sagrado, rea-firmando o teor do já mencionado artigo 5º daConstituição de 1824.

Sob o mesmo título, no artigo 277, deve cum-prir pena mínima de um mês e máxima de seismeses de prisão aquele que “abusar ou zombar dequalquer culto estabelecido no Imperio por meiode papeis impressos, lithographados ou gravados,que se distribuirem por mais de quinze pessoas,ou por meio de discursos proferidos em publicasreuniões, ou na occasião e lugar em que o cultose prestar”. Proteção também garantida a outrasexpressões religiosas. Contudo, no artigo seguin-te, observe-se que deve cumprir pena mínima dequatro meses – quatro vezes mais que a pena mí-nima relativa ao artigo anterior – e máxima de umano – o dobro da pena máxima relativa ao artigoanterior – na prisão aquele que “propagar por meiode papeis impressos lithografados ou gravados,que se distribuirem por mais de quinze pessoas,ou por discursos proferidos em publicas reuni-ões, doutrinas que diretamente destruam as ver-dades fundamentais da existencia de Deus e daimortalidade da alma” (idem, p. 499-500). Com-preende-se, destarte, que é restrita a liberdade re-ligiosa no período imperial.

Cabe atentar para a tendência à restrição daliberdade religiosa que se verifica em episódiocurioso narrado por Daniel P. Kidder, o viajante eministro protestante que missionava no Brasil de1837 a 1840 sob a incumbência da American BibleSociety, distribuindo publicações como o NovoTestamento. O Arcebispo da Bahia, ultramontanoe parlamentar – o qual ocuparia a cadeira de Pre-sidência da Câmara pela segunda vez em 1841 –incriminava tal distribuição, acusando-as de feriras crenças da religião do Estado, já que as publi-cações consistiam em “exemplares adulterados oumutilados das Escrituras” (KIDDER, 1980, p. 63).Quanto aos folhetos, consistiam em “blasfêmiascontra a Igreja Católica Romana” (ibidem).

Tal episódio é representativo das tensões quetiveram lugar no Brasil do século XIX, corrobo-rando a tendência à restrição da liberdade religio-

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sa oficialmente admitida. Não obstante, a despei-to dessa conjugação de fatores presentes noarcabouço jurídico imperial, faziam-se expressi-vas as correntes liberais favoráveis ao alargamen-to da liberdade religiosa, sobretudo quando apare-cia como condição para o desenvolvimentopropugnado pela frente liberal. Ademais, a liber-dade religiosa era um dos elementos designativosda sociedade burguesa.

A fim de fazer avançar a liberdade religiosa,era necessário enfraquecer o catolicismo de ver-tente ultramontana, cujo conservadorismo recru-descia ao passo que a Igreja e o papado eram con-frontados pela vertente liberal (VIEIRA, 1980).Esse catolicismo conservador, o da reforma ca-tólica, que se queria ver homogêneo, à luz dosditames da Igreja Romana, fortalecia-se à medidaque eram recebidos no Brasil eclesiásticos estran-geiros afinados com o tradicionalismo católico deRoma.

Ações com vistas a enfraquecer oultramontanismo permeavam as atividades do Par-lamento imperial. Evento representativo de taisações consistiram nas proposições legislativascontra a vinda de frades estrangeiros formuladaspor Bernardo Pereira Vasconcelos e Raimundo Joséda Cunha Matos na sessão da Câmara de 9 denovembro 1827 (BRASIL, 1875, p. 187). Apre-sentavam, dessa maneira, resistência ao cresci-mento do ultramontanismo no Brasil. Na legislaturaseguinte, em 1828, é Antônio Francisco de Paulae Sousa quem apresenta projeto de lei com vistasa vetar o ingresso de todas as ordens religiosasestrangeiras no Império. Genericamente denomi-nadas “jesuítas”, tais ordens seriam enquadradasna lei pombalina antijesuítica de 1759. Manifesta-ram-se contra este e outros projetos semelhantesD. Romualdo Antônio de Seixas, Arcebispo daBahia e Presidente da Câmara nesse período, eDom Marcos Antônio de Sousa, Bispo doMaranhão. Com muita lógica, os clérigos aponta-vam a contradição que os projetos engendravam:já que o Brasil admitia a entrada de indivíduos deoutras religiões, não podia proibir a entrada de clé-rigos católicos, ministros da religião oficial doEstado.

No embate travado vislumbra-se a militânciade fortes guardiões do tradicionalismo católico,ao mesmo tempo líderes parlamentares e lídereseclesiásticos. Militância que não era sem razão,pois em seus discursos parlamentares, sobretudo

na sessão de 17 de maio de 1828 (BRASIL, 1876,p. 91-102), os deputados liberais falavam em de-portar os frades estrangeiros, pois perturbavam aordem estabelecida, espalhando “idéias absolutase idéias transmontanas” (idem, p. 95) segundoPaula e Souza; eram “inimigos de todas as luzesdo século” (idem, p. 96), nas palavras de CruzFerreira; para Cunha Matos, “muito inúteis e pre-judiciais” (idem, p. 97); Bernardo Pereira Vascon-celos exigia que fossem punidos por ensinarem oultramontanismo; José Lino Coutinho falava naimportação de outro tipo de imigrante, diferentedos frades estrangeiros, que trouxessem a indús-tria e as artes.

Durante a terceira legislatura (1834-1837),Dom Romualdo expressava indignação diante danotícia de que a Regência, por intermédio da Se-cretaria do Império, havia tomado providênciascom vistas a contratar dois missionários luteranosa fim de catequizar indígenas. Tal feito parece estarsintonizado com o posicionamento de LinoCoutinho em legislatura anterior, representando asdiversas ações provenientes da vertente liberal queprocuravam dar maior consistência à liberdadereligiosa admitida oficialmente.

IV. MANIFESTAÇÕES DO DEBATE NA IM-PRENSA

Ações como as narradas acima estenderam-seao longo do período imperial, tematizando artigosna imprensa de tendência liberal, a qual opunha-se ao intenso e constante movimento romanizadordo clero que no Brasil fortalecia-se na medida emque recebia clérigos estrangeiros mais sintoniza-dos com Roma. Veja-se, a exemplo dessa corren-te de imprensa, o trecho do editorial intitulado “OClericalismo”, publicado no periódico da corteGazeta de Notícias de 20 de julho de 1883: “Lápela Europa, para testas coroadas e nucastonsuradas vão mal os tempos, o céu está carre-gado de nuvens, sopra um vento morno, precur-sor de tempestades... os jesuítas vêm, como avesde arribação, fugindo à estação cruel, prepararemos ninhos onde se agasalhem e procriem” (AZZI,1992, p. 95).

Tipos de ação como essa, porém, encontrarãosempre novamente, no período imperial, as opo-sições características do conservadorismo que viana liberdade religiosa uma ameaça àhomogeneidade religiosa da nação, bem como aocaráter de religião oficial atribuída ao catolicismo,o que lhe garantia posições tão estratégicas no

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mundo da política, como se pode perceber na atu-ação parlamentar dos eclesiásticos. Talconservadorismo deu nascimento a várias publi-cações periódicas, leigas e clericais, que, em opo-sição ao princípio de liberdade religiosa, levanta-vam a bandeira da religião oficial do Estado. Umdesses periódicos, O Bom Ladrão, foi editado nadiocese de Mariana a partir de 1 de janeiro de 1876.Combativo, posicionava-se contra as frentes libe-rais que se faziam expressivas à época da Ques-tão Religiosa, sobretudo quando se falava em altosom acerca da separação entre Igreja e Estado: “oEstado sem o elemento religioso é um cadáversem vida, sem ação, e em via de completo aniqui-lamento” (idem, p. 47-48). Em 20 de março de1876, O Bom Ladrão trazia o artigo intitulado “Aproteção da Igreja pelo Estado”, que mencionavaa Carta de 1824, fazendo lembrar as obrigaçõesque tinha o Estado para com a religião católica,com vistas a sua proteção, impedindo que fosseultrajada e punindo os desacatos a ela dirigidos(ibidem).

Também expressando contínua e efusivamenteo conservadorismo típico dos discursos contra aliberdade religiosa e enfatizando o caráter oficialda religião do Império, um grupo de intelectuaiscatólicos reuniu-se em Pernambuco em um mo-vimento de oposição às vagas do liberalismo7. Den-tre tais intelectuais cita-se, por exemplo, JoséSoriano de Souza e Pedro Autran da MattaAlbuquerque, sendo este o redator do periódico OCatólico, instrumento privilegiado na veiculaçãodas idéias do grupo.

Reiterando a importância que o tema da liber-dade religiosa ganhava no período, atente-se parao título da obra que José Soriano de Souza escre-ve em 1867: A religião do Estado e a liberdade deculto. Nela, admite a existência concreta de umaameaça considerável à exclusividade da religiãooficial: “o Brasil está sendo ameaçado em suascrenças tradicionais, e já avista uma temperatura

religiosa, presságio certo de impendentes perigossobre a unidade de suas crenças e profissão pú-blica e exclusiva de sua fé católica” (Souza apudPEREIRA, 1982, p. 27).

A noção de liberdade, incluindo a religiosa,característica do conjunto de valores da socieda-de burguesa, é vista pelos liberais como sinal dedesenvolvimento e progresso. De outra parte, parao tradicionalismo católico expresso no discursode José Soriano de Souza, essa mesma liberdadeestá associada a um vendaval, o “vendaval dasliberdades modernas” que começava a açoitar oBrasil.

Liberdade religiosa para o tradicionalismo ca-tólico só se encaixava como expediente para ummal. O mal, nesse contexto, tomava as formas dadiversidade religiosa. Desse mal, porém, não so-fria o Brasil, raciocinavam os tradicionalistas.Conseqüentemente, restava perguntar: “a que vemportanto o remédio da liberdade de cultos, se nãoexiste a doença da diversidade de religião?” (ibidem)Uma vez presente o mal da diversidade religiosa,não pode a verdade subsistir, sendo ela una. Talunidade só poderia estar em um lugar: no catoli-cismo, e nele de maneira exclusiva, concluía JoséSoriano de Souza: “a liberdade ou pluralidade decultos supõe no Estado a existência, pelo menos,de duas religiões, e nesse caso ou ambas ou aomenos uma será falsa” (ibidem).

No periódico O Católico Pedro Autran da MattaAlbuquerque levantava-se como audaz defensordo regime de aliança entre o poder eclesiástico e opoder civil. Tal defesa, por sua vez, não era semrazão. Corria cada vez mais destemida a idéia li-beral da necessidade de autonomia dos poderes,idéia que não era de todo imprópria ao poder ecle-siástico, pois vivia a reclamar dos abusos do Es-tado em assuntos nitidamente localizados na esfe-ra espiritual, como se dizia. Assim é que O Cató-lico consistia em uma das derradeiras vozes con-servadoras, porém leigas (não eclesiásticas), danação. O mundo novo que surgia já não admitia aconvivência do princípio de liberdade religiosacom aquele da união entre a Igreja e Estado. Issoconsistia em erro fatal para os tradicionalistas.

O caráter combativo dos posicionamentos pró-prios dos tradicionalistas de Pernambuco fica maisevidente se levarmos em conta os estudos refe-

7 Dois estudiosos debruçaram-se longamente sobre essemovimento: Nilo Pereira (1970), em Conflitos entre a Igrejae o Estado no Brasil e Tiago Adão Lara (1988), emTradicionalismo católico em Pernambuco. São dos trabalhosdesses autores grande parte do material utilizado por mimpara a análise do “tradicionalismo em Pernambuco”, comoo chamaram.

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rentes a temas religiosos do visceralmente liberalTobias Barreto, estudos em grande medida pro-duzidos em resposta aos artigos de MattaAlbuquerque em O Católico. Vistos em conjunto,vislumbra-se o espírito da época, na qual os ventosdo liberalismo, da ciência e da razão vão de encon-tro ao conservadorismo católico. Dentre os escri-tos do jurista sergipano, Professor da Faculdadede Direito em Recife a partir de 1881, cita-se osversos publicados durante a polêmica contra osartigos de Matta Albuquerque em O Católico:

“Mote

Fradecos, tocai o sino – Que o Católico mor-reu.

Glosa

Um velho feito menino, – Por força da cadu-quice

Quis lutar, ó que sandice – Fradecos, tocai osino!

Não julgueis que é destino – Tachá-lo assimde sandeu...

Se em discussões se meteu,

Para tomar uma sova – Carolas, abri-lhe a cova

Que o Católico morreu

Tal é na terra o destino – Das ciências passa-geiras

Morreu vomitando asneiras...

Fradecos tocai o sino! – Não teve auxílio divi-no

Nem a Suma lhe valeu

Como é que assim se perdeu – Tão sábio guiadas almas?

Quem for ímpio, bate palmas – Que o Católi-co morreu” (BARRETO, 1978, p. 59-60).

Alguns trechos desses versos referem-se aomovimento que afirmava a escolástica como basefilosófica do clero. Tobias Barreto cita especifi-camente “as páginas sebentas da Suma de S. To-más”, retratando o “ar dogmático” que faz da fi-losofia algo petrificado, sem movimento (idem,p. 58-59).

V. MANIFESTAÇÕES DERRADEIRAS DO CLE-RO NO PARLAMENTO IMPERIAL

No Parlamento, depois de um período em que

a participação do clero fora bem menos significa-tiva, seria na 20ª Legislatura – última do períodoimperial – que a voz dos clérigos far-se-ia ouvida,em matéria de liberdade de cultos. Saliente-se queé nessa legislatura (1886-1888) que o clero voltaa ter uma representação razoável na Câmara, con-tando com seis clérigos. Referindo-se ao projetode Gaspar Silveira Martins acerca da liberdade decultos, o qual já havia passado no Senado, o cléri-go José Lourenço da Costa Aguiar afirmava, em19 de junho de 1888, ter sido muito imprudente aapresentação do projeto naquela ocasião, em que“todos vêem que as instituições do país perigam”(BRASIL, 1978, v. 5, p. 258).

Mâncio Caetano Ribeiro, por sua vez, depoisde ter pedido a palavra por mais de um mês paratrazer à Câmara representações contra o projeto,atacou-o na sessão de 30 de agosto de 1888. Re-feriu-se ao projeto como “presente de gregos”,como “propaganda descarada das doutrinas do li-beralismo moderno”, que partia de princípio opostoao da Constituição, princípio este que permitia dis-tinguir “uma religião verdadeira entre todas as re-ligiões” (idem, p. 268-269).

O liberalismo moderno de que fala CaetanoRibeiro continuava sendo veementemente confron-tado pela vertente conservadora, possivelmente demaneira mais aguerrida, em um momento em queo ideário da república ganhava novos adeptos.Nessas circunstâncias, mesmo às vésperas de suasubstituição, recorrer à Carta de 1824 para fazervaler a condição de religião oficial do Catolicismoconsistia ainda em uma ação bastante conseqüen-te do clero militante na política.

A não aprovação do projeto acerca da liberda-de de cultos levou Silveira Martins a atacar aque-les que o confrontaram. Em resposta a estes ata-ques, Caetano Ribeiro, na sessão de 12 de outu-bro de 1888, acusava Silveira Martins de fanatis-mo anticatólico e de advogar a causa da heresia(idem, p. 280).

“Fanatismo anticatólico” e “causa da heresia”representam dois dos fatores constitutivos do ce-nário. O primeiro consistiu no anticlericalismo de-senvolvido no decorrer das décadas. Quase sem-pre marcaram sua posição, em uma atitudeanticlerical, aqueles que engrossavam as fileiras domovimento liberal moderno. A alguns desses o pró-prio Caetano Ribeiro denominava “liberalismo com-pletamente radical” (ibidem). O segundo elemento– causa da heresia – consistia na defesa de direitos

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iguais para outros grupos religiosos, em sua maio-ria protestantes já instalados, especialmente nasregiões Sul e Sudeste do país. Em grande medidaintegrados economicamente – sobretudo os alemãesluteranos –, os novos grupos religiosos, bem comoas demandas advindas da política exterior do impé-rio, contribuíam para tornar insustentáveis as de-corrências do regime de religião oficial.

Essas, então, foram as últimas vozes do clerona Câmara considerando o tema da liberdade reli-giosa. Produziram discursos intensos e aguerri-dos que corroboravam o clima conflituoso ins-taurado no cenário político. As polarizações deli-neavam-se quase sempre onde quer que emergis-se a dança de conservadores e liberais. A liberda-de religiosa, por sua vez, era uma das matériasque mais geraram a dança e as polarizações.

VI. A PREDOMINÂNCIA DE UM TIPO PECU-LIAR DE DECISION MAKER

Referi-me anteriormente ao anticlericalismo deTobias Barreto confrontando o movimento tradi-cionalista dos leigos de Pernambuco. Esseanticlericalismo, geralmente constitutivo do pen-samento liberal do período imperial, encontra con-sonância na campanha de Rui Barbosa em favorda liberdade religiosa. Foi ele um dos protagonis-tas no movimento em favor da liberdade religiosa,o qual alcançou o processo decisório de maneiradecisiva. Em seus escritos o anticlericalismo podeser recortado como um tema recorrente, rivali-zando contra o ultramontanismo romanizante quepor sua vez fazia-se mais expressivo a partir dasegunda metade do século XIX.

Em sua grande introdução à tradução do livrode Döllinger (1930), O Papa e o Concílio8, RuiBarbosa empenhava-se fervorosamente ao lado dosliberais, dando especial atenção ao tema da liber-dade religiosa, em sua defesa, “tão congenial aohomem e tão nobre, e tão frutificativa, e tãocivilizadora, e tão pacífica, e tão filha do evange-lho” (BARBOSA, 1977, p. 419). Atentava para a

importância dessa liberdade, enfatizando os tra-ços do pensamento liberal que afirmavam o prin-cípio da autonomia do indivíduo: “nenhum direitoestá senão posterior a esse, ao que tem por objetoo homem interior, a atividade, a integridade, a in-dependência da razão” (idem, p. 419-420).

A Constituição de 1891 foi promulgada apóster seu projeto revisto e modificado por Rui, ten-do ganhando o caráter de instituição jurídica secu-larizada. Incorporava, dessa forma, a “impreterívelliberdade” de que falava Rui Barbosa em sua intro-dução à tradução do livro de Döllinger. Manifes-tam essa incorporação os parágrafos 1º, 7º, 28º e29º: “§ 3o Todos os indivíduos e confissões religi-osas podem exercer pública e livremente o seuculto, associando-se para esse fim e adquirindobens, observadas as disposições do direito comum.

§ 7o Nenhum culto ou igreja gozará de sub-venção oficial, nem terá relações de dependênciaou aliança com o governo da União, ou o dos Es-tados.

§ 28o Por motivo de crença ou função religio-sa, nenhum cidadão brasileiro poderá ser privadode seus direitos civis e políticos nem eximir-se documprimento de qualquer dever cívico.

§ 29o Os que alegarem motivo de crença religi-osa com o fim de se isentarem de qualquer ônusque as leis da República imponham aos cidadãos, eos que aceitarem condecorações ou títulosnobiliárquicos estrangeiros perderão todos os di-reitos políticos” (BALEEIRO, 2001, p. 97 e p. 99).

Sublinhe-se o mero fato de ser Rui Barbosa apessoa a assumir papéis tão fundamentais ligadosà confecção da Carta. Rui Barbosa era um dosprotagonistas do movimento liberal contra o cle-ricalismo, o ultramontanismo e o movimento dareforma católica tridentina que marcaram o cená-rio sociopolítico de grande parte do século XIX.Esses foram movimentos religiosos em grandemedida bem sucedidos em seus objetivos, cujosfrutos continuariam a ser colhidos e administra-dos ao longo das décadas seguintes. Se dentreesses se levantavam os paladinos doultramontanismo, da romanização do catolicismoe da sacralização das instituições sociais, em RuiBarbosa vislumbra-se o típico paladino do libera-lismo e da autonomização das instituições em re-lação à religião, intelectual que influencia de ma-neira decisiva a formulação das instituições jurídi-cas republicanas.

8 Historiador eclesiástico e teólogo liberal de Munique,Döllinger protestava contra o crescente absolutismo papale o reavivamento da teologia escolástica. Manteve-se emoposição ao dogma da Infalibilidade papal, o que lhe custoua excomunhão, em 1871. A obra O Papa e o Concílio foipublicada no Brasil em 1877, sendo conhecida por trazeruma das manifestações contrárias à definição do dogma dainfalibilidade papal.

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Efetivamente, um novo quadro socioculturaldelineia-se nas proximidades da queda do impérioe advento da república, uma nova conjugação so-cial desenha-se e dela é constitutiva o tipo de po-lítico, o tipo de decision-maker, representado porRui Barbosa e demais personalidades influentesnessa transição. Essa mesma conjugação repele otipo de político tão presente nas sessões da Cons-tituinte de 1824 e ao longo das atividades parla-mentares das primeiras décadas do Brasil Imperi-al, representado pelo clérigo que atava em si mes-mo os poderes políticos e eclésiasticos, à maneirade um microcosmo personificado da união entreo trono e o altar, do Estado sob a égide dopadroado.

Atrelado ao princípio de liberdade religiosa,estava aquele da separação entre Igreja e Estado.Assim é que, diferentemente da Constituinte de1824, aquela instalada em 15 de novembro de 1890não admitirá clérigos entre os 205 deputados quedela fizeram parte. Eram em sua maioria juristasformados em São Paulo e Pernambuco – que hádécadas já haviam garantido lugar cativo nas ati-vidades parlamentares –, médicos diplomados naBahia e no Rio, engenheiros civis e militares, jor-nalistas e homens de letras, oficiais do Exército eda Marinha, muitos deles funcionários públicos(BALEEIRO, 2001). Se a presença do clérigo cha-mava a atenção na Constituinte de 1823, é a pre-sença dos militares (46 entre os 205 deputados)que deve ser sublinhada na Constituinte instaladaem 1890, fato que ilustra o avanço do seu notóriodestaque na política para além da proclamação darepública.

Cumpre ressaltar que grande parte dos médi-cos, engenheiros, militares e bacharéis em Direito,que na política desse período de transição tiveramum papel mais ativo, compartilhavam o ideário dopositivismo. Nesse ideário a república consistia emregime ideal para a busca da fase final (a positiva)da trajetória evolucionária preconizada por Comte,uma vez que contribuiria para a superação da fasemetafísica, própria das monarquias hereditárias,baseadas no direito divino dos reis.

Ao lado da militância contra a escravidão econtra o regime monárquico, as idéias positivistasno Brasil defendiam, dentre outras coisas, a sepa-ração entre Estado e Igreja, o casamento civil e asecularização dos cemitérios. Também eram fa-voráveis ao princípio da liberdade religiosa. Ha-via, desta feita, diversas confluências de opiniões

entre os posicionamentos da frente liberal e osposicionamentos dos positivistas, sobretudo quan-do tangenciavam o advento da República. Nessesentido, muito embora no Brasil também se tenhainstalado a Igreja Positivista, que seguiria a traje-tória de Comte em direção à religião da humanida-de, a crença dos positivistas no poder de inter-venção com vistas à marcha progressiva da his-tória teve afinidades com as idéias secularizantesque marcaram o período.

VII. O DESLOCAMENTO DO DISCURSO PARAA ESFERA RELIGIOSA

O discurso da Igreja Católica contra a li-berdade religiosa é mantido, mesmo depois deperder o status de religião oficial do Estado. Essediscurso, porém, já não tinha a mesma penetra-ção nos quadros político-decisórios oficiais. Aofinal do século XIX e nas primeiras décadas doséculo seguinte, a ação romanizadora caracterís-tica da vertente ultramontana – que, por sua vez,torna-se preponderante na hierarquia da Igreja –desloca-se do cenário próprio do poder políticopara fortalecer sua atividade proselitista, sobretu-do junto à emergente classe média das cidadesurbanizadas. Nas palavras de Moura e Almeida,ao aderir ao Estado liberal, a Igreja renunciava à“função de coadjuvante do Estado na ordenaçãoda sociedade”, exercida até então, para aferrar-seà “função espiritual de levar os homens a abrir-separa um sobrenatural meta-histórico” (MOURA& ALMEIDA, 1997, p. 329). Daí um desloca-mento não só na natureza de sua atividade, comotambém um deslocamento no espaço de atuação,de uma esfera a outra.

Assim é que, nesse período seguinte, o dis-curso católico acerca da liberdade religiosa aban-donava as bases de defesa construídas sobre oprincípio da união entre Igreja e Estado, passandoa falar em nome de uma homogeneidade religiosa,em uma postura proselitista, mais direcionada aosfiéis do que aos quadros diretivos do país. Comefeito, apresentava-se, em estado embrionário, otipo de mentalidade que geralmente é engendradaem um contexto de diversidade religiosa: intensi-ficação da propaganda proselitista e multiplicaçãodos núcleos de formação, motivados sobretudopela competição por fiéis.

No pensamento da hierarquia eclesiástica, ogoverno monárquico, antes sacralizado nos dis-cursos oficiais da Igreja, é agora colocado ao ladode outros tantos tipos de governos, que passam a

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ter um caráter acidental. A religião, porém, sub-siste a qualquer forma de governo, uma vez que é“congênita ao homem”. É essa uma das idéiastransmitidas no artigo intitulado “A Religião e aRepública”, publicado no jornal católicomaranhense Civilização, em 23 de novembro de1889, oito dias após a proclamação da Repúblicae pouco mais de um mês antes do decreto 119-A,que extinguia o padroado.

Vale salientar o tipo de operação mental quepermeia os discursos clericais que, como osupracitado, são publicados no período: anterior-mente, estado monárquico e religião uniam-se fun-dindo as características e as naturezas de ambasas esferas (padroado); depois, o Estado muda denatureza de monárquico para republicano,autonomizando-se da esfera religiosa; a religiãonão muda, pois é congênita ao homem. Eis o tipode raciocínio que agora passa a designar o pensa-mento eclesiástico frente à nova condição da reli-gião, a condição de estar restrita à sua própriaesfera. Aos fiéis, conseqüentemente, não deveassustar essa nova condição. A religião semprefoi e sempre será a mesma, a despeito das trans-formações noutras esferas. Não é ela circunstan-cial como a extinta sacrossanta monarquia. Raci-ocínio bastante pertinente, já que o período emquestão fora palco de transformações profundasna conjugação da sociedade.

No mesmo jornal maranhense, em 4 de janeirode 1890 – seu último ano de publicação –, o dis-curso religioso da Igreja Católica lançava-se aoproselitismo mais aberto, uma vez que se desco-bria desprovido da proteção do Estado, condiçãoque parecia irreversível. Nada restava, portanto,a não ser voltar-se aos fiéis, agindo única e exclu-sivamente em sua própria esfera, em defesa dareligião que “prende-se às consciências por meiode raízes misteriosas, de maneira que ninguémpoderá arrancá-las impunemente” (RODRIGUES,1981, p. 90).

Sob o mesmo título, “A Religião do Estado”, onúmero 483 de Civilização é característico do tipode proselitismo que o discurso eclesiástico passa-va a fazer diante das novas condições abertas àdiversidade religiosa. Dentre várias religiões dis-putando o domínio das consciências, algumasdelas falsas e imorais, somente uma – o Catolicis-mo romano – apresentava-se “com notas ecaracteres da verdade revelada”. Nesse contexto,a liberdade religiosa é concebida como “contrária

à virtude da religião”. Não seria, portanto, liber-dade, mas uma “depravação da liberdade e umaservidão da alma na abjeção do pecado” (idem, p.94-95).

Nesse período de transformações, não só nasrelações entre as esferas, como no interior de cadauma delas – na religiosa, inclusive – também aspastorais coletivas são bastante representativas dosdocumentos do clero para a orientação do povo(idem). A Pastoral Coletiva de 1890, decretadapouco depois da proclamação da república, é umadas representações da mudança de direção do dis-curso acerca da liberdade religiosa: do campo dapolítica para a da defesa proselitista do monopólioreligioso. Defendendo a “unidade da mesma fédentro do grêmio do universal rebanho de Cristo”(idem, p. 28), o discurso assumia as característi-cas do tipo de veículo que dialoga com o povo eperdia aquelas outras designativas do discursoparlamentar. Ao dirigir-se aos fiéis, “dignoscooperadores e filhos diletíssimos”, é à esfera re-ligiosa que se restringe o discurso, não mais nointuito de influenciar o processo decisório da po-lítica, mas sim no esforço de homogeneizar o dis-curso da Igreja, pelas vias do pastoreio.

O novo direcionamento expresso nas pasto-rais é decorrência imediata da continuidade e in-tensificação da ação romanizadora do clero juntoaos seus próprios quadros de formação de cléri-gos e junto a uma massa populacional, nominal-mente católica, porém heterogênea nas formas deexpressão de sua religiosidade. Estando agora osfiéis expostos muito mais facilmente a outras ex-pressões de fé, urgia que se homogeneizassem asformas de expressão do catolicismo, o que torna-ria mais fácil a construção dos fundamentos dorepúdio às religiões acatólicas. Para isso, neces-sário era que esses fiéis considerassem legítimasapenas as ações e os métodos dos clérigos ofici-ais da Igreja Católica Apostólica Romana, rejei-tando, por exemplo, a livre interpretação das es-crituras sagradas, que por sua vez “não serãomandadas aos fiéis para eles examinarem e for-marem por elas a sua fé, independente do ensinoe da tradição da Igreja, como querem hoje os pro-testantes” (idem, p. 30).

Dez anos depois, a exemplo da Pastoral Cole-tiva de 1900, o discurso contra a liberdade religi-osa direcionado à hierarquia eclesiástica e aos fi-éis – logo, ainda dentro dos limites da esfera reli-giosa – fora mantido em suas linhas básicas: “que-

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remos que nossa religião não seja nivelada comos inventos de Lutero e Calvino, com as torpezasde Mafoma, com os delírios de Augusto Comte.Trabalharemos para este desideratum, amados ir-mãos e filhos; e assim prestaremos à pátria o maisassinalado e relevante serviço” (idem, p. 65).

Assim se conjugava o raciocínio do clero ca-tólico em fins do século XIX e início do séculoXX: fazer frente ao protestantismo, aomaometismo e ao positivismo não só é demons-tração de lealdade ao catolicismo; é, também, de-monstração de lealdade à pátria. Ao atrelar a fide-lidade religiosa dos católicos à fidelidade à pátria,o discurso eclesiástico fortalecia seu discursocontra a liberdade religiosa. Lutero, Calvino,Mafoma (variação de Maomé) e Comte não re-presentam a identidade da pátria brasileira. Têmraízes noutras nações. Somente o catolicismo re-presentava a identidade da pátria, pois estivera comela desde seu nascimento. Ser fiel a ele é ser patri-ota. Converter-se a outra religião é negar as pró-prias raízes. Constitui-se, dessa maneira, o tipode discurso proselitista da Igreja Católica no perí-odo.

Por sua vez, a atividade proselitista que se ini-ciava mais intensamente não era gratuita. Oproselitismo só se faz pertinente em um contextoem que não mais se garante a exclusividade davisão religiosa de mundo. Essa era, efetivamente,a nova condição inaugurada com o advento da

República, pois, com ela, extingue-se o padroado,cai o regime de religião oficial e suprime-se o prin-cípio da união entre Igreja e Estado.

VIII. CONCLUSÕES

Ao longo do artigo, sob o tema da liberdadereligiosa, discorri acerca da presença do elementoclerical em algumas das instituições fundamentaisda nação no período imperial e início do períodorepublicano. As reflexões serviram para lançar luzsobre a seguinte transição: de uma condição deforte presença da religião nas instituições públicaspara uma configuração que viu seu posterior en-fraquecimento, em decorrência do processo deautonomização da esfera política.

O serviço que tais considerações fazem às Ci-ências Sociais brasileiras consiste em contribuirpara uma clareza muito necessária aos estudosque têm confluência com o tema da secularizaçãodo Brasil. Essa clareza necessária pode ser assimenunciada: entendendo-se secularização comoautonomização das esferas sociais em relação àreligião, cumpre afirmar que, ao separarem-seIgreja e Estado, e ao tornar-se cada vez menosexpressiva a presença do clero nos processosdecisórios oficiais, a esfera política secularizou-se, o que permite localizar a experiênciasociocultural brasileira ao lado daquelas outrasexperiências socioculturais que compõem amodernidade ocidental.

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Gilson Ciarallo ([email protected]) é Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB)e Professor do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 37: 295-300 OUT. 2010

THE THEME OF RELIGIOUS FREEDOM IN 19th CENTURY BRAZILIAN POLITICS:TOWARD AN UNDERSTANDING OF SECULARIZATION WITHIN THE POLITICALSPHERE

Gilson Ciarallo

The secularization of institutions has been a recurrent theme in the social sciences over the last fewdecades, largely as a result of its conceptual complexity, a fact which has led to the development ofdifferent ways of looking at the relationships between religion and other social spheres establishedthroughout history. One of these relationships is the one that exists between religion and politics.“Secularization” refers to the increased autonomy of different spheres of society in relation toreligion. Aspects of autonomization of the political sphere in relation to religion are subjected toanalysis, taking discussions of religious freedom carried out on the 19th century Brazilian politicalscene into consideration. Within this context, papal patronage and ultramontanist ideas were intimatelyrelated to the continuities and ruptures identified within the field of political ideas, considering whatreligious themes were at that time. Although clerical presence within the political activities of theperiod was notable, with the extinction of papal patronage and the advent of the Republic, religiousdiscourse migrated from that sphere, now manifesting itself only within the strictly ecclesiasticenvironment and through proselytism. The social configuration that emerged in this light enables usto identify clear signals of secularization of the political sphere toward the end of the 19th century.The present argument contributes to clarifying the theme of secularization in Brazil. With theseparation of Church and State and with the decreasing presence of the clergy within officialdecision-making processes, the political sphere underwent secularization. This in turn allows us tolocate Brazilian socio-cultural experience alongside other socio-cultural experiences that can beconsidered as components of Western modernity.

KEYWORDS: Secularization; Imperial Brazilian Parliament; Religious Freedom; EcclesiasticAuthority.

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REDUCTION OF THE WORK DAY AND QUALITY OF EMPLOYMENT: BETWEENDISCOURSE, THEORY AND REALITY

Daniel Gustavo Mocelin

The goal of this essay is to critically examine the topic of work day reduction, expounding some of theimportant theoretical and empirical dimensions that are often excluded from public debate on thematter. Analyzing some of the characteristics of workers’ contracts within the Brazilian labor market,we demonstrate that there is considerable distance between discourse and academic readings of theissue and its reality. The reduction of the work day is a multi-faceted theme that characterizes acomplex and polysemic debate, stirring the interest of a variety of social agents who are interested inthe matter but whom maintain different conceptions of it, given the heterogeneity of the values that areat stake. We argue that the social implications of a political measure reducing the work day cannot bepredicted. Nonetheless, such a reduction is a historic tendency, linked to socio-economic development.There are marked differences between trade union discourse, political sympathies, theoretical assertionsand empirical evidence on the matter This essay looks at two main dimensions of the topic: quality andquantity of employment. When examined from the quantitative side, the issue of job creation comes tothe fore, in the interests of minimizing the effects of unemployment. When the focus turns to thequalitative side, what is at stake is the issue of the relationship of work activities to wealth and outputs,of providing real improvements in work conditions and worker’s quality of life.

KEYWORDS: Work Day Reduction; Employment; Job Quality.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 37: 303-309 OUT. 2010

LE THEME DE LA LIBERTE RELIGIEUSE DANS LA POLITIQUE BRESILIENNE DU XIXSIECLE: UNE VOIE POUR LA COMPREHENSION DE LA SECULARISATION DE LASPHERE POLITIQUE

Gilson Ciarallo

La sécularisation des institutions est un thème qui a été très abordé dans les sciences sociales lesdernières décennies, surtout en raison de sa complexité conceptuelle, ce qui favorise des différentsregards sur les relations qui sont établies au long de l’histoire entre la religion et d’autres sphèressociales. Une de ces relations, c’est celle que nous pouvons observer entre la religion et la politique.La “sécularisation” est l’autonomisation des sphères de la société par rapport à la religion. Lesaspects de l’autonomisation de la sphère politique par rapport à la religion sont placés sous analyse,en considérant les discussions dans le scénario politique brésilien du XIX siècle sur la liberté religieuse.Dans ce contexte, le patronage et les idées ultramontaines ont été intimement liées aux ruptures etpermanences identifiées dans le domaine des idées politiques, en considérant les thèmes religieux.Bien que la présence du clergé dans l’activité politique de la période sous analyse ait été remarquable,avec l’extinction du patronage et l’avènement de la République, les discours religieux ont quitté cedomaine là, et ont commencé à se manifester seulement dans le cadre ecclésiastique, de façonprosélytique. La configuration sociale qui apparait à partir de ce thème permet d’identifier dessignes de l’effectuation de la sécularisation de la sphère politique à la fin du XIX siècle. L’argumentprésent contribue pour clarifier le thème de la sécularisation au Brésil. Avec la séparation entrel’Eglise et l’Etat, et la présence chaque fois moins expressive du clergé dans les processus décisionnelsfinaux, la sphère politique s’est sécularisée, en permettant de localiser l’expérience socioculturellebrésilienne à côté d’autres expériences socioculturelles qui composent la modernité occidentale.

MOTS-CLES: sécularisation; parlement impériel brésilien; liberté religieuse; autorité ecclésiastique.

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REDUCTION DE LA JOURNEE DE TRAVAIL ET QUALITE DES EMPLOIS: ENTRE LESDISCOURS, LA THEORIE ET LA REALITE

Daniel Gustavo Mocelin

Le but de cet article est d’examiner le thème de la réduction de la journée de travail de façoncritique, en exposant certaines dimensions théoriques et empiriques importantes qui sont normalementexclues du débat public sur la question. En analysant quelques caractéristiques sur le tempsd'embauche des travailleurs dans le marché de travail brésilien, on démontre qu’il existe une grandedistance entre le discours, la lecture académique sur la question et la réalité. La réduction de lajournée de travail est un thème avec des multiples facettes, ce qui caractérise un débat complexe etpolémique, favorisant ainsi l’intérêt de plusieurs agents sociaux sur cette question, mais qui possèdentdifférentes conceptions autour du débat, en raison de l’hétérogénéité des valeurs en jeu. Dansl’article, on soutient que les implications sociales d’une mesure politique de réduction de la journéede travail ne peuvent pas être prévues. Toutefois, on comprend que cette réduction est une tendancehistorique, liée au développement social et économique. Il y a des différences frappantes entre lediscours de syndicat, la sympathie politique par la mesure, les affirmations théoriques et les évidencesempiriques sur la thématique. L’article aborde le thème avec deux dimensions principales: quantitéet qualité de l’emploi. Quand abordé par la perspective de la quantité de l’emploi, il implique laquestion de la création d’emplois, avec l’objectif de réduire au minimum les effets du chômage.Quand abordé par la perspective de la qualité de l’emploi, il implique la question de la richesse desactivités de travail et la meilleure productivité, en fournissant une réelle amélioration dans les conditionsde travail et dans la qualité de vie des travailleurs.

MOTS-CLES: réduction de la journée de travail; emploi; qualité de l’emploi.

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