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alma lá. Sem pressa. Uma pausa para aproveitar e saborear as refeições. Parece impossível fazer um almoço em casa no meio da semana, ou plantar suas próprias ervas, legumes e verduras, mas para muitos não é. Mais de 83 mil pessoas no mundo seguem o Slow Food, o movimento, que teve berço na Itália e prega o resgate das tradições na culinária, além do prazer do preparo e da degus- tação. “O Slow Food é uma filosofia de vida. É apre- ciar o que se come, e você é aquilo que come. Não podemos incorporar esse ritmo frenético de hoje em dia” – diz Luis Henrique Brown, 47 anos, associado ao Convivium Slow Food do Rio de Janeiro. Em 1986, o jornalista italiano Carlo Petrini fundou o movimento Slow Food, que pretende resgatar as raízes da culinária de cada região e valorizar os ingredientes frescos, típicos de cada localidade, assim como realçar o pre p a ro caseiro e o prazer de sentar-se à mesa para degustar uma refeição. Como símbolo, o movimento adotou um caracol, refletindo, justa- mente, a desaceleração no ritmo de vida. O projeto desenvolvido por Petrini partiu da insatisfação de algumas pessoas, entre elas o estilista italiano Valentino, que se revoltou quando descobriu que uma filial da cadeia de fast food McDonald´s tinha se instalado debaixo de seu ateliê, na Piazza de Spagna, em Roma. Ele não estava p reocupado só com a sua alimentação, mas indignado com o cheiro de fritura das batatas que “gruda- va” em suas roupas. O Slow Food não foi criado apenas para fazer oposição ao fast food. O movimento foi concebido como um resgate das tradições gastronômicas de cada região. Trata-se de uma opção de vida, uma opção pela saúde, uma via alternativa para quem quer mudar os hábitos: “O movimento não é contra o hambúrguer em si, mas contra as mudanças que o fast food traz à vida, a fast life. Comer devagar não é sentar e levar três horas comendo, mas sim pensar o que você vai comer e resgatar também os valores da alimen- tação reunindo a família e os amigos. O Slow Food une ética e prazer e quer devolver a dignidade cul- tural à alimentação” – explica Margarida No- gueira, líder do Slow Food no Brasil. Petrini encontrou em suas raízes inspirações para o movimento. Desde a infância, quando viajava com o pai, ferroviário, teve a oportunidade de co- nhecer pessoas de todas as partes da Itália. Aprendeu a perceber que cada povoado guarda segredos e tradições particulares. Sua mãe, ver- CAROLINE GREGORY , JULIA GUTNIK, LUISA SÁE ROBERTA MAIA O tempo de comer Slow Food: o prazer das garfadas Janeiro/Junho 2006 38 O jornalista italiano Carlo Petrini, fundador do Slow Food Divulgação

O tempo de comer - Portal PUC-Rio Digitalpuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/11 - o tempo de comer.pdf · queijos, salames, vegetais, cereais, chocolates e fru-tas. Para impedir que

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alma lá. Sem pressa. Uma pausa paraaproveitar e saborear as refeições. Pareceimpossível fazer um almoço em casa nomeio da semana, ou plantar suas

próprias ervas, legumes e verduras, mas paramuitos não é. Mais de 83 mil pessoas no mundoseguem o Slow Food, o movimento, que teve berçona Itália e prega o resgate das tradições naculinária, além do prazer do preparo e da degus-tação. “O Slow Food é uma filosofia de vida. É apre-ciar o que se come, e você é aquilo que come. Nãopodemos incorporar esse ritmo frenético de hoje emdia” – diz Luis Henrique Brown, 47 anos, associadoao Convivium Slow Food do Rio de Janeiro.

Em 1986, o jornalista italiano Carlo Petrini fundouo movimento Slow Food, que pretende resgatar asraízes da culinária de cada região e valorizar osi n g redientes frescos, típicos de cada localidade, assimcomo realçar o pre p a ro caseiro e o prazer de sentar- s eà mesa para degustar uma refeição. Como símbolo, omovimento adotou um caracol, refletindo, justa-mente, a desaceleração no ritmo de vida.

O projeto desenvolvido por Petrini partiu dainsatisfação de algumas pessoas, entre elas oestilista italiano Valentino, que se revoltou quandodescobriu que uma filial da cadeia de fast foodMcDonald´s tinha se instalado debaixo de seu

ateliê, na Piazza de Spagna,em Roma. Ele não estava

p reocupado só com asua alimentação, masindignado com ocheiro de fritura dasbatatas que “gruda-va” em suas roupas. O Slow Food não foi

criado apenas para fazer oposição ao fast food. Omovimento foi concebido como um resgate dastradições gastronômicas de cada região. Trata-se deuma opção de vida, uma opção pela saúde, umavia alternativa para quem quer mudar os hábitos:“O movimento não é contra o hambúrguer em si,mas contra as mudanças que o fast food traz àvida, a fast life. Comer devagar não é sentar e levartrês horas comendo, mas sim pensar o que você vaicomer e resgatar também os valores da alimen-tação reunindo a família e os amigos. O Slow Foodune ética e prazer e quer devolver a dignidade cul-tural à alimentação” – explica Margarida No-gueira, líder do Slow Food no Brasil.

Petrini encontrou em suas raízes inspirações parao movimento. Desde a infância, quando viajavacom o pai, ferroviário, teve a oportunidade de co-nhecer pessoas de todas as partes da Itália.Aprendeu a perceber que cada povoado guardasegredos e tradições particulares. Sua mãe, ver-

CAROLINE GREGORY, JULIA GUTNIK, LUISA SÁ E ROBERTA MAIA

O tempo de comerSlow Food: o prazer das garfadas

Janeiro/Junho 200638

O jornalista italiano Carlo Petrini, fundador do Slow Food

Divulgação

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dureira, lhe ensinou a escolher e preparar a comidacom a mesma qualidade que hoje prega o movi-mento.

Segundo o jornalista, uma feijoada servida numbotequim do Rio de Janeiro pode dar tanto prazercomo um prato de um restaurante parisiense de trêsestrelas. “Não se pode fazer um ranking da quali-dade da comida, seja italiana, francesa, ou de lugaralgum. Cada país tem seu patrimônio culinário,que deve ser respeitado como parte do acervo dahumanidade. As receitas são a expressão da cul-tura de um povo, constituem sua identidade.Cozinha é como uma linguagem: eu falo italiano,você fala português, cada um tem seu idioma. Odever de um gastrônomo é respeitar e conhecer asexpressões culinárias dos diferentes povos” – contouPetrini em entrevista à revista Gula, quando esteveno Brasil, em fevereiro de 2005.

Entre os objetivos do Slow Food, estão a proteçãode agricultores que não fazem uso de fertilizantes epesticidas em suas lavouras e a preservação da pro-dução de produtos agrícolas artesanais, tais comoqueijos, salames, vegetais, cereais, chocolates e fru-tas. Para impedir que alimentos artesanais entremem extinção por causa do monopólio das agro-indústrias, o Slow Food desenvolveu o projeto Arcado Sabor, uma alusão à Arca de Noé. Esse projetovisa catalogar todos os produtos que estão sumindopara depois estimular o consumodos mesmos. Para os pequenosprodutores que enfrentam pro-blemas para o cultivo do alimen-to, a Arca do Sabor ofere c eassistência técnica e financeira.

Toda essa preocupação com aalimentação não é em vão. Osdados apontados pelos dirigentesdo Slow Food demonstram que 75% de toda a diver-sidade de produtos alimentícios vem se perdendodesde 1900, na Europa. Nos Estados Unidos, onúmero sobe para 93%. Desde o século passado, 30mil variedades de vegetais se tornaram extintos noplaneta e a cada seis horas outro entra para a lista.

Da cozinha para a sala de aulaEm Bra, na Itália, onde fica a sede do Slow Food,

foi criada a Universidade de Ciências Gastronô-

micas. O curso de três anos tem o objetivo de desen-volver pesquisas internacionais e centros de treina-mento para a cultura de alimentos e estudos gas-tronômicos. Como ideais, renovar métodos de plan-tio, proteger a biodiversidade e manter o relaciona-mento entre gastronomia e ciência da agricultura.Ao longo do curso, os alunos têm a oportunidadede viajar para conhecer produtores, fazendas ecompanhias. Mas o preço é salgado. Os três anos deestudo custam em torno de R$230 mil.

A Universidade, contudo, não ensina a cozinhar.As aulas, ministradas por professores de todo omundo, constituem em estudos sobre história, lite-ratura, economia e ciência da comida.

Aprendendo a comer social-mente

Fora do mundo acadêmico,muitas pessoas implantaram oSlow Food no dia-a-dia. Resol-veram dar um basta na rotinaacelerada e, ao longo de 20 anos,muitos se tornaram membros do

Slow Food International Association, uma entidadesem fins lucrativos, espalhada por mais de 104países.

Os associados se reúnem em convivias – núcleoslocais do Slow Food – para eventos de degustação, cur-sos de culinária e encontros sociais. Atualmente, há800 convivias espalhadas pelo mundo. A palavra,derivada do latim, significa “conviver”. O C o n v i v i u mSlow Food Rio de Janeiro foi o primeiro criado noBrasil, pela c h e f de cozinha Margarida Nogueira.

Quer um pedacinho? 39

O Slow Food não foi criadoapenas para fazer oposição ao fast food. Foi concebido

como um resgate das tradições gastronômicas

de cada re g i ã o .

Dezenas de pessoas se reunem em Bra, na Itália, paradegustação de vinhos

Divulgação

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Janeiro/Junho 200640

O grupo se reúneem restaurantes dacidade e participa depalestras e degus-tações de alimentosque valorizam aagricultura brasilei-ra. Mas o movimentono Brasil ainda é pe-queno. Segundo Mar-garida, não existemrestaurantes associa-dos ao Slow Food, esim chefs que são

adeptos ao movimento e tentam incorporá-lo emseus restaurantes.

O preço da saúdeO resultado da má alimentação no Brasil já se

reflete na saúde da população. De acordo compesquisas do IBGE, 38,8 milhões de brasileirosacima dos 20 anos estão acima do peso, o que sig-nifica 40,6% da população total do país. Esse dadoalarmante é conseqüência não somente do excessode comida ingerida, mas de uma má educação naescolha dos alimentos e na maneira de comê-los.

Contudo, ter uma alimentação saudável, variadae relaxada é uma utopia para a grande maioria dapopulação brasileira: “Um dos maiores entraves aoboom do Slow Food no país é o preço dos alimentosartesanais. O produto agro alimentar de qualidadecusta caro porque sua produção é fruto de umlongo trabalho” – diz Margarida.

Ser associado ao Slow Food não é simples nembarato, pois a idéia não é criar um movimento po-pular. No país há apenas cerca de 50 pessoas asso-ciadas. Durante algum tempo este número foi umpouco maior, quase 90, mas muitos desistiram.Para ser membro é preciso pagar uma taxa anual,que custa o equivalente a R$140,00, no plano bási-co, e R$280,00 no plano completo. O plano maisbarato dá direito a uma carteirinha de sócio e arevista Slow, editada em italiano, inglês, francês,espanhol e alemão. Não há versão em português, oque dificulta a difusão das idéias no país. Quempaga o dobro ganha maior número de publicações,incluindo a Slow Wine, especializada em vinhos.

Prazer, palavra deordem

“A base da filosofia doSlow Food é o prazer dec o m e r. Comer é um atoque une toda a huma-nidade. Todo mund odevia poder comer ebem” – diz HenriqueBrown.

O jornalista escocêsCarl Honoré, que es-creveu o livro Devagar,explica que desace-lerar não significa fa-zer menos atividades. Depois de entrar para omovimento Slow, ele diz que faz as mesmas coisas,só que com mais prazer e dedicação exclusiva.

Prazer é o ponto alto de todo o movimento. Pularo almoço para pagar contas, comer correndo, oudevorar um sanduíche em frente ao computadortornou-se comum na rotina dos trabalhadores doBrasil e do mundo. Em casa, o raciocínio é pareci-do, comidas congeladas e industrializadas e produ-tos enlatados ganham, a cada dia, mais espaço nasprateleiras domésticas. Segundo a filosofia do SlowFood, este é um pensamento para tolos. Deve-seaproveitar o momento e concentrar-se em umatarefa apenas, no caso, a alimentação.

No ambiente empresarial, as pessoas são va-lorizadas por fazerem várias atividades ao mesmotempo. Não é à toa que em dinâmicas de seleçãopara empregos, para ocupar qualquer vaga asempresas costumam exigir versatilidade por partede seus empregados. Também não é coincidênciaque, cada vez mais, as pessoas reclamem deestresse. Ninguém agüenta levar um ritmo de tra-balho tão pesado, sem um espaço na agenda parasi mesmo.

Engana-se quem acredita que o Slow Food p re g ao isolamento dos seus seguidores, seja vivendo empousadas distantes dos grandes centros urbanos ouvendendo art i g o s a rtesanais, por exemplo. Não ébem por aí. Mesmo quem trabalha em uma multi-nacional e vive em uma metrópole não p re c i s aabrir mão de coisas que dêem prazer. Comer é umadelas.

Capa do manual do Slow FoodAssociation

Roberta Maia Roberta Maia

Margarida Nogueira, líderdo Slow Food no Brasil