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Aplicações do Cadastro Multifinalitário na Definição de Políticas de Solo Urbano 1
1
O Território, as Pessoas e suas Relações Jurídicas1
Miguel Águila
Diego Alfonso Erba
Índice
1. Introdução ..............................................................................................................................2
2. Estado, População e Território ............................................................................................2
3. As Coisas Imóveis.................................................................................................................4
4. Relação Jurídica Pessoas-Coisas Imóveis.........................................................................9
A posse ......................................................................................................................................10
O domínio e a propriedade ........................................................................................................11
As propriedades vertical e horizontal.........................................................................................14
5. Descrição Geométrica, Jurídica e Econômica da Parcela ..............................................15
Identificação geométrica............................................................................................................15
Identificação jurídica ..................................................................................................................20
1 Neste capítulo definiremos, do ponto de vista jurídico, as pessoas, as coisas e as relações que podem existir entre elas, debido à importância que estes temas têm para o Cadastro Territorial. A teoria foi desenvolvida basicamente em função das realidades uruguaia e argentina, com o objetivo de exemplificar (e não de doutrinar), posto que entre as Tarefas que foram vinculadas a este capítulo, está a descrição da realidade do teu país.
O Território, as Pessoas e suas Relações Jurídicas
Aplicações do Cadastro Multifinalitário na Definição de Políticas de Solo Urbano 2
1. Introdução
O estabelecimento de limites para as propriedades imóveis leva à realização de trabalhos
técnicos que deverão estar de acordo com a forma de organização do patrimônio imobiliário do
Estado e com as normas legais que a regulem.
A fixação deste limites, seja por um trabalho profissional ou por procedimentos técnicos de uma
oficina especializada, deve embasar-se em um cuidadoso estudo dos direitos sobre a
propriedade e na conciliação destes direitos com os fatos presentes no terreno.
Os direitos que se exercem sobre uma porção de território estão limitados pelos direitos que
possuem os titulares dos bens lindeiros (vizinhos).
As unidades ou objetos territoriais capazes de serem objeto de direito privado, se unirão,
ademais, para aqueles bens objeto de direitos públicos, para formar o território físico do Estado.
Por tanto devemos realizar uma resenha dos conceitos de Território, domínio privado,
propriedade e posse, para ter uma base conceitual para apoiar os elementos de identificação
territorial que fazem para as células primárias objeto de direito e unidades-base dos registros
cadastrais.
2. Estado, População e Território
No marco jurídico que caracteriza a maioria dos países da América Latina contemporânea, o
Estado pode ser definido do ponto de vista material como o povo organizado em uma unidade
jurídica, dentro de um território determinado, submetido ao império da lei e cujo objetivo é
realizar fins públicos de ordem jurídico-social. Como vemos, o território é a base física sobre a
qual o Governo exerce sua autoridade com o objetivo de conseguir sua mais racional e completa
utilização.
Na definição clássica podemos identificar os três elementos do Estado: população, território e poder estatal, os quais analizaremos a seguir.
A existência de população é o elemento essencial do Estado. Sem habitantes não tem sentido
nem o Direito, nem o Estado.
O Território, as Pessoas e suas Relações Jurídicas
Aplicações do Cadastro Multifinalitário na Definição de Políticas de Solo Urbano 3
População e Nação: não se pode examinar a coletividade humana sem a existência de grupos
sociais, podendo-se considerar a Nação como uma sociedade natural de humanos, de unidade
de território, de origem, de costumes, de língua, reunidos em uma comunidade de vida e
consciência social, levando desta união todas as mudanças originadas na própria dinâmica
social.
Podem ser consideradas formas diferenciadas de tratar dentro do Estado aos grupos étnicos,
tribais, etc., entendendo-os como unidades de população com características de nação,
agrupadas dentro do Estado pelo acordo social de todos seus habitantes.
Essa comunidade deve ser suficientemente diferenciada de outras e solidária entre si para que
seus membros tenham plena consciência de que constituem uma unidade política e que
encontrem conveniência na manutenção desta unidade.
Isto pode levar a uma consideração especial destes grupos e dos territórios que ocupam (e de
estarem suficientemente consolidados) para merecer tratamento especial quando se organiza a
divisão administrativa do território (condicionando as características das unidades cadastrais).
Vejamos um exemplo particular, que relaciona uma parcela como propriedade coletiva de um
grupo humano unido por vínculos especiais:
Se for observada a cartografia parcelaria da zona norte da Suécia (Nordkalloten), se apreciam
algumas imensas parcelas que praticamente cruzam a Suécia, desda Finlândia até a Noruega. A
forma e extensão destas parcelas estão relacionadas com os corredores de migração dos renos,
que constituem a base econômica da Nação Sami (Lapões), pertencendo cada parcela a
organizações de origem tribal altamente desenvolvidas, evidenciando o profundo respeito pelo
modo de vida de uma minoria étnica de grande significação por parte do governo sueco.
As pessoas podem classificar-se em físicas ou jurídicas. Cada habitante é uma pessoa física,
enquanto que as pessoas jurídicas podem ser associações ou instituições formadas para a
consecução de um fim e reconhecidas pela ordem jurídica como sujeitos de direito. As pessoas
jurídicas são pessoas jurídicas, distintas dos sujeitos que as integram.
Segundo as normas particulares de cada país, algumas pessoas jurídicas são de existência
legal, como pode ser o Estado, os Municípios, a Igreja e o Fisco.
Voltando à análise global, a coletividade humana a qual nos referimos necessariamente deve
assentar se em um território, que é justamente o que constitui o âmbito espacial onde têm
validade as normas jurídicas ditadas pelo Estado.
O Território, as Pessoas e suas Relações Jurídicas
Aplicações do Cadastro Multifinalitário na Definição de Políticas de Solo Urbano 4
No contexto deste capítulo, interessa analisar com certa profundidada relação que existe entre
as pessoas e o território, sendo este último o foco principal de estudo.
3. As Coisas Imóveis
As coisas que o homem têm a sua disposição e sobre as quais exerce direitos privativos
constituem seu patrimônio. Porém, em geral, todo aquilo que a pessoa possui envolve o
cumprimento de certas obrigações. Por conseguinte, ao considerar o patrimônio de uma pessoa
se deve ter em conta também o passivo constituído por suas obrigações, o que diminui o ativo.
Assim, o patrimônio pode ser definido como o conjunto de direitos e obrigações de uma pessoa
que têm valor econômico.
A maioria dos Códigos Civís baseados no direito romano (como a maioria da América Latina),
designa com o nome de bens ou coisas a tudo que tem uma medida de valor e pode ser objeto
de propriedade. Ao princípio esta definição atendia somente as coisas materiais, mas a evolução
do direito desmaterializou o conceito, ampliando-o a todo elemento de riqueza suscetível de
apropriação e então todo o conjunto constitui o ativo do patrimônio das pessoas. Esse conjunto
agrupa coisas bastante diferentes, tais como edifícios, terras, rendas, marcas de fábrica, direitos
de autor, etc.
As primeiras classificações dos bens se fazem em bens corpóreos e incorpóreos (Quadro 1).
Entre os primeiros se encontram as coisas materiais, enquanto que entre os bens incorpóreos
estão os direitos e ações.2 Fundado no critério de mobilidade, os bens corpóreos podem ser
classificados em móveis e imóveis. O bem móvel pode ser trasportado de um lugar para outro,
seja movendo-se por si mesmo, como os animais (semoventes) ou por meio de força externa,
como as coisas inanimadas, enquanto que os bens imóveis são as coisas que não podem ser
transportadas de um lugar para outro, como terras, minas ou edifícios. Esta distinção é
importante porque as leis podem estabelecer diferentes normas para a regulação do comércio
jurídico destas classes de bens e, o que importa a este curso, diferentes formas de controlar e
registrar.
En geral, os imóveis podem ser agrupados em 3 categorias:
2 Código Civil Uruguaio
O Território, as Pessoas e suas Relações Jurídicas
Aplicações do Cadastro Multifinalitário na Definição de Políticas de Solo Urbano 5
a) imóveis por natureza, entre os quais encontramos o solo, o subsolo, as plantações
(enquanto aderem ao solo), os edifícios, pontes, canais, túneis, etc., ou seja, tudo o que é
consolidado definitivamente, seja na superfície do solo ou seja em seu interior. É importante
destacar que os produtos dos imóveis, tais como as madeiras, frutos, areia, metais de uma mina
ou pedras de uma pedreira, se consideram móveis ainda antes de sua separação, para permitir
que sejam constituídos direitos a favor de outras pessoas que não o dono.
b) imóveis por destino, são aqueles bens que por natureza são móveis, mas que se
consideram imóveis a título de acessórios de um imóvel ao qual se unem. Por exemplo, as
cerâmicas de um pavimento, os tubos das canalizações, etc.
c) imóveis por radicação, por exemplo, as coisas embutidas nas paredes formando um corpo
com elas assim como as estátuas localizadas em nichos construídos expressamente no edifício.
Os direitos sobre os bens incorpóreos se dividem em direitos reais e direitos pessoais. O
direito real é o que temos sobre uma coisa ou contra uma coisa, sem relação com uma
determinada pessoa. O direito sobre a coisa pressupõe o domínio ou um desmembramento do
domínio. O direito contra a coisa pode ser constituído meramente por garantia, como a penhora
e a hipoteca.
Um dos elementos essenciais dos direitos reais é o objeto ou coisa e, entre outras condições,
este objeto deve ser determinado. Isto demonstra a importância da definição do objeto sobre o
qual se exerce o direito e no contexto deste curso sem dúvida nos referimos à coisa imóvel.
Os direitos pessoais são os que podem ser reclamados das pessoas que, por um ato seu ou
pela disposição da lei, contraíram obrigações.
Entre os direitos reais e pessoais podemos assinalar três diferenças importantes:
a) o direito real é um direito direto sobre uma coisa, enquanto que o direito pessoal é
essencialmente uma relação entre duas pessoas, um credor e um devedor;
b) os elementos do direito real são dois: o sujeito ativo e a coisa, enquanto que no direito
pessoal são três: o sujeito ativo (credor), o sujeito passivo (devedor) e a obrigação;
c) os direitos reais tendem a persistir e transmitir-se, enquanto que os pessoais tendem a
extinguir-se pelo cumprimento liberatório do obrigado.
Os direitos e ações se classificam em móveis ou imóveis segundo o tipo de bem sobre o qual se
aplicam. Assim, o direito de usufruto sobre um imóvel é imóvel, a ação de um comprador para a
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entrega do sítio comprado é imóvel, e uma hipoteca, que tem por objeto uma quantidade de
dinheiro, é móvel.
Quadro 1 – Classificação dos Bens
Bens móveis Inanimados
Semoventes
Bens corpóreos
Bens imóveis
Imóveis por natureza
Imóveis por destino
Imóveis por radicação
Direitos reais
BENS
Bens incorpóreos Direitos pessoais
Para os efeitos administrativos, o território se subdivide em unidades de gestão que podem ser
províncias, departamentos, municípios, etc., dependendo da organização política do país. As
subdivisões seguintes nos levam a considerar qual é a célula elementar de território e a
conclusão é que são os polígonos sobre os quais as pessoas podem exercer algum direito,
sendo este o objeto de registro no Cadastro Territorial.
Nos sistemas cadastrais vigentes esta unidade de registro é identificada com nomes distintos,
apesar de referir-se ao mesmo objeto. Consultando a literatura internacional se encontra uma
forte convergência para o termo parcela, o qual é utilizado também em outros idiomas latinos e
anglo-saxões: parcelle (francê), particella (italiano) e parcel (inglês).
Além das numerosas formas de denominação, existem também diferentes conceitos de parcela.
Por exemplo, a Lei Nacional de Cadastro da República Argentina define “parcela” como sendo a
coisa imóvel de extensão territorial contínua, delimitada por um polígono de limites, pertencente
a um proprietário ou a vários em condomínio, possuída por uma pessoa ou várias em comum,
cuja existência e elementos essenciais constam em um documento cartográfico proveniente de
um ato de levantamento territorial, inscrito no organismo de Cadastro. A mesma lei cita como
elementos constitutivos da parcela sua localização em relação às causas jurídicas que lhes dão
origem e suas medidas lineares, angulares e de superficie do imóvel, considerando
fundamentais a avaliação fiscal e a descrição de seus lindeiros.
O Território, as Pessoas e suas Relações Jurídicas
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Essa definição de parcela é muito similar à adotada pelos demais países que formam o Cone Sul
das Américas, embora difira um pouco da definição de alguns países da Europa (inclusive
aqueles que inspiraram os sistemas sul-americanos). Vejamos uma redação que, embora tenha
as mesmas bases, se apresenta com ligeiras diferenças conceituais (tomando como exemplo o
texto do Decreto 318/95 sobre Consideração e Registro de Planos das normas uruguaias):
Definição de parcela - se denomina parcela a toda unidade imóvel cadastral de domínio
privado dos particulares, com identificação fiscal ou municipal, dimensionada e
identificada sob seus aspectos geométrico, econômico e jurídico.
Se considera como tal toda extensão superficial continua, situada em uma mesma seção ou
localidade cadastral, que pertence a uma pessoa física ou jurídica ou a várias em condomínio.
Uma das diferenças importantes é que neste texto a parcela não tem forçosamente que estar
medida para existir (pode ser anterior à exigência de medição para transmitir o domínio),
atendendo ao critério de que a definição da parcela é cadastral e portanto administrativa e a
definição legal do objeto de direito é o produto do plano de medição, elemento requerido pelo
Registro de Propriedade para registrar direitos sobre o objeto. Pela lógica, com o tempo os dois
criterios devem convergir, e no futuro todas as parcelas terão sido medidas, mas a existencia em
si da parcela não está condicionada a que esteja ou não medida.
Isto se aplica também para as diferentes formas de definir os objetos territoriais de direito. Em
alguns de nossos países (e esta situação está se generalizando) a definição se realiza mediante
um ato de medição realizado por um profissional especializado, agrimensor, topógrafo,
engenheiro agrimensor, engenheiro geógrafo, etc. (dependendo das incumbências profissionais
definidas legalmente). Em outros, a definição parcelaria é um trabalho realizado mediante
procedimentos de levantamento em massa, normalmente fotogramétricos.
Independentemente das particularidades de cada jurisdição (não é interesse dos autores impor
conceitos nem tomar parte por um ou outro caminho), é evidente que a delimitação correta da
parcela é fundamental.
Desta forma vamos além da superfície ou da “terra seca”, integrando o subsolo, as águas
jurisdicionais e o espaço aéreo.
Os limites, objeto de registro no Cadastro, são entes culturais concebidos pela razão de quem
interpreta um documento ou os fatos existentes no território. Servem de base para determinar
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(segundo o critério profissional) onde começa e onde termina um direito de propriedade, uma
jurisdição, uma divisão política ou administrativa ou a soberania de uma nação.3
Os limites entre parcelas podem ou não estar materializados, mas naqueles países onde as
trasmisições de domínio devem embasar-se em planos de medição se existe um título de
propriedade registrado, existe o limite pois, por definição, é um acordo de vontades que nasce no
direito como objeto ideal e se transforma em real quando é materializado pelo profissional
habilitado.4 Os limites são representados nos documentos cartográficos por meio de linhas,
porém na verdade são superfícies verticais. As linhas correspondem à projeção destas
superfícies sobre o plano de representação, como demonstra a Figura 1.
Do ponto de vista cadastral (segundo o critério argentino) existem dois limites: o limite legal, que
corresponda uma linha imaginária que
não pode ser localizada no terreno sem
um sinal que a materialize, o que exige
para sua determinação o estudo dos
títulos da parcela em questão e dos
títulos correspondentes para as
propriedades vizinhas, e o limite da
posse, o qual é determinado pelo uso
do imóvel, materializado por entes
naturais ou antropológicos.
Em alguns países (como é o caso do
Uruguai) os limites possesórios são
especialmente definidos em planos
especiais, para a eventualidade de se
pretender fazer uso do instituto da
usucapião. Nos planos de medição
normais também devem ser
estabelecidos os limites possesórios
assim como os que resultam dos títulos
para efeitos de base probatória em um eve
3 Bianco, Carlos. El Catastro Territorial e la Publicidad4 Moretto, J. Apuntes de clase, UNR, 1985.
Figura 1 – Visão espacial do limite
de Políticas de Solo Urbano 8
ntual juízo de usucapião.
Inmobiliaria. UNR, 1986.
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Os limites antropológicos definidos pelo encontro de dois títulos de propriedade devem ser
assinalados de maneira clara e inconfundível mediante marcos (o termo marco tem sua origem
no idioma alemão, que usava a palavra mark para designar o referencial do limite, usando-se
também em países de fala hispanica o termo mojones). Quando os limites são definidos por
elementos naturais tais como divisores de água ou rios, pode-se prescindir da demarcação. Nos
dois casos, tanto os marcos quanto os elementos naturais podem inclusive ter caráter de
sinalização, mas somente terão valor legal se existir um documento cartográfico devidamente
aprovado que os revele como tais.5
A propriedade da parcela poderá corresponder a um particular (individual), a um grupo de
proprietários pro indiviso, a um grupo de co-proprietários em proporções estabelecidas em um
documento, ser um bem fiscal ou privado do Estado ou fiscal municipal (para aquelas normas
que aplicam esta diferença). Segundo a organização política e as divisões seguintes do território,
poderíamos integrar os bens fiscais dos Estados, Províncias, Municípios, etc.
Estabelecida a precisão, vamos partir da base de que o território é um conjunto de bens de
propriedade privada (parcelas), conectados entre si por bens nacionais de uso público
(normalmente estradas e ruas).
4. Relação Jurídica Pessoas-Coisas Imóveis
A relação jurídica obrigacional é um vínculo entre duas ou mais pessoas em razão do qual uma
delas pode pretender algo a que a outra está obrigada.
Quem intervém nas relações jurídicas são os sujeitos de direito. O que tem o direito é o sujeito
ativo e o que tem a obrigação é o sujeito passivo, e neste contexto nos interessa o vínculo que
eles têm com as coisas imóveis.
As coisas imóveis podem estar na posse de alguém ou estarem submetidas à propriedade
pública ou particular.
5 HAAR, o Cadastro e a Cartografia. 1992.
O Território, as Pessoas e suas Relações Jurídicas
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A posse
Se diz que uma coisa imóvel está na posse de uma pessoa quando ela, por si ou por outro, a
tem sobre seu poder com intenção de submetê-la ao exercício de um direito. Os elementos da
posse são o corpus (elemento material) e o animus (desejo de possuir). A relação entre corpus e
animus será diferente conforme a causa jurídica sobre a qual o possuidor fundamente o ânimo.
No caso dos imóveis, o corpus é constituído pela porção de território delimitado por elementos
antropológicos (cercas, muros, etc.) ou naturais (cursos de água, divisores de águas, etc.). O
polígono assim definido é o imóvel que o possuidor de fato tem.
Segundo o Código Civil argentino haverá posse das coisas, quando alguma pessoa, por si ou
por outro, tenha uma coisa sob seu poder, com intenção de submetê-la ao exercício de um
direito de propriedade.6
A posse se verifica pela apreensão ou ocupação efetiva da coisa, ou seja, executando sobre a
coisa atos que correspondem ao dono.
Em quase todos os Códigos baseados no código Civil Francês (com algumas variações) se
enumeram os direitos que têm o possuidor (se diz que “a posse é um fato que gera direitos”):
a) presume-se que seja o proprietário enquanto não se prove o contrário,
b) pode instaurar ações possesórias, a não ser que sua posse seja violenta ou
clandestina,
c) depois de um lapso de tempo (por exemplo, um ano), completo e não interrompido,
adquire o direito de posse,
d) os frutos da coisa são seus, e
e) pode obter o domínio e os demais direitos reais, cumprindo os requisitos da lei
(através da usucapião).
O direito de posse indicado no ítem (c) se adquire com certas condições, tais como que a posse
seja pública (a vista de todos), pacífica (sem o uso de violência), contínua e não interrompida
(com a assiduidade e frequência com que realizaria atos de posse um proprietário), não
6 Art. 2.351 do Código Civil Argentino.
O Território, as Pessoas e suas Relações Jurídicas
Aplicações do Cadastro Multifinalitário na Definição de Políticas de Solo Urbano 11
equívoca (que o objeto esteja suficientemente determinado para que não deixe lugar a duvidas)
e com ânimo de dono (o possuidor age como se fosse proprietário).
A legislação brasileira que trata da posse se encontra no Código Civil, Livro III - Do Direito das
Coisas, Título I – Da Posse, Capítulo I – Da Posse e sua Classificação. Esta norma define o
possuidor como sendo toda pessoa que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos
poderes inerentes ao domínio ou propriedade.7
Este Código ainda classifica como justa as posses que não sejam violentas, clandestinas ou
precárias,8 e de boa fé aquelas em que o possuidor ignora o vício ou o obstáculo que lhe impeça
a adquisição da coisa ou do direito possuído.9
Em resumo, a posse pode ser classificada como:
- legítima, quando é produto do exercício de um direito real,
- ilegítima: quando é exercida sem título ou com título nulo,
- de boa fé, quando há posse ilegítima por erro ou ignorância, e
- de má fé, quando há consciência da ilegitimidade.
Finalmente, consideramos importante destacar, devido ao impacto que estes conceitos têm na
atividade cadastral, as diferenças que existem entre posse e ocupação (ou detenção). A
ocupação não contém o ânimo de dono. Os códigos indicam a ocupação como uma forma de
adquirir o domínio, mas especificam que corresponde às coisas que não pertencem a ninguém
(este tema será desenvolvido no capítulo O Cadastro e os Assentamentos Irregulares).
O domínio e a propriedade
Ao entrar no campo do Direito Real, vemos que as coisas imóveis podem ser de propriedade
pública ou particular. Os bens públicos podem ser de uso público (como as praças, caminhos
públicos, rios (em geral os navegáveis), as margens destes rios e do mar, as pontes, as obras
conservadas as custas do Estado, assim como as terras que, estando dentro dos limites
7 Art. 1.196 (Art. 485 no código anterior). 8 Art. 1.200 (Art. 489 no código anterior). 9 Art. 1.201 (Art. 490 no código anterior).
O Território, as Pessoas e suas Relações Jurídicas
Aplicações do Cadastro Multifinalitário na Definição de Políticas de Solo Urbano 12
territoriais do Estado, não têm outro dono); ou bens de uso privativo do Estado que não são de
acesso livre para a população (como por exemplo os edificios da administração pública).
No campo da propriedade privada, o dominio se considera como o direito de gozar e dispor de
uma coisa arbitrariamente, sempre e quando isto não seja contra a Lei ou contra o direito de
outras pessoas.
O dominio ou propriedade se considera como uma propriedade inerente à coisa, um vínculo que
a liga ao dono e que não pode ser rompido sem um ato seu ou de sua inatividade associada ao
ato de um terceiro (caso da propriedade perdida por usucapião).
No direito romano se consideravam três atributos básicos do domínio: jus utendi, direito de usar
a coisa; jus fruendi, direito de receber os frutos da coisa, e jus abutendi, direito de abusar da
coisa (até mesmo destrui-la).
Podem ser citados também outros dois atributos da propriedade, jus possidendi (a posse do
proprietário) e jus persequendi (direito de reivindicação). Esta situação pode receber distintas
cores conforme a legislação local. Na transmissão da propriedada transmissão da posse pode
ser presumida – entende-se que ocorre em conjunto com os demais direitos (caso do Brasil) - ou
não, e então será apontada explicitamente nos documentos – “transmissão da propriedade e da
posse” (caso do Uruguai).
Os códigos atuais indicam como base da propriedade dos bens o direito de gozar e dispor da
coisa, compreendendo nestes direitos:
a) o direito aos frutos da coisa e ao que for acrescentado,
b) o direito de usar a coisa,
c) o direito de mudar a forma da coisa,
d) o direito de destrui-la,
e) o direito de impedir aos demais que se sirvam dela e de reivindica-la de qualquer um
que injustamenta a possua, e
f) o direito de alienar a coisa no todo ou em parte (transferir direitos).
O exercício destes direitos está subordinado `as restrições das leis ou dos regulamentos, tais
colmo, por exemplo:
O Território, as Pessoas e suas Relações Jurídicas
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a) limitações legais – a mais importante é a desapropriação, normalmente apoiada na
norma constitucional (que pode prever o “uso social da terra”),
b) limitações administrativas - são consequencia de um acordo social variável dentro de
um mesmo território (caso das normas municipais), tais como a servidão de alineação, que
obriga que a edificação siga uma linha estabelecida, as limitações de áreas ou alturas máximas
para as construções, etc.
c) a teoría do abuso do direito – se entende por tal o exercício do direito de forma que
possa prejudicar a um terceiro ou ao interesse comum.
Quase todos os textos constitucionais latino-americanos afirmam que a propriedade é um direito
inviolável, mas sujeito ao que estabeleçam as leis editadas por razões de interesse geral.
O exercício do direito de propriedade pode ser regulado por leis baseadas em razões de
interesse geral, mas normalmente por esta via não se pode chegar a eliminar o direito de
propriedade. Para isto são necessários procedimentos cercados de mais garantias que uma
simples regulamentação.
Para este fim existe, com algumas variações em cada país, o instituto da desaproriação, que
indica que “ninguém pode ser privado de sua propriedade (propriedade sobre determinado bem,
não ao direito de ser proprietário) a não ser em casos de necessidade ou utilidade pública,
declaradas por lei e recebendo do uma justa e prévia indenização”.
A diferença do que foi indicado neste parágrafo para a legislação de países socialistas, é que
nesses países existe o direito de propriedade ou direito a ser proprietário, mas está suprimida a
possibilidade de ser proprietário dos bens que sejam meios de produção, como uma fazenda,
uma fábrica e até de um comércio varejista dependendo do grau de socialização a que haja
chegado este Estado.
Em razão destas diferenças a declaração universal de direitos fundamentais das Nações Unidas
de 1948 adoptou uma fórmula segundo a qual todo indivíduo tem direito a gozar da propriedade,
seja individual, seja coletivamente, cobrindo as duas possibilidades de organização social.
O Território, as Pessoas e suas Relações Jurídicas
Aplicações do Cadastro Multifinalitário na Definição de Políticas de Solo Urbano 14
As propriedades vertical e horizontal
No âmbito do direito, a definição clássica do que podemos denominar propriedade vertical se
extende do solo para o subsolo (com as limitações do direito de minas) e para cima (o espaço
aéreo), com as limitações das normas de direito aeronáutico. Vemos que nesta visião da
propriedade o direito vai “do inferno até o céu”, o qual reafirma a idéia tridimensional do limite
expressada anteriormente e representada na Figura 1.
Com o surgimento da função social da propriedade, numerosas restrições foram impostas,
surgindo paralelamente os edifícios de vários pisos. Estos fatos fizeram mudar a visão da
propriedade o que impactou ao Cadastro Territorial fortemente. Vejamos alguns exemplos.
O regime de propriedade horizontal10 estabelece que os diversos pisos de um edifício e os
apartamentos em que se divide cada piso, assim como os apartamentos de edifícios térreos,
sempre que tenham saída para a via pública diretamente ou por uma passagem de propriedade
comum, poderão pertencer a distintos proprietários. A Figura 2 mostra como se distribui
espacialmente a propriedade e deixa claro porque quanto mais vertical é o edifício, mais
propriedade horizontal há, ao contrário do que normalmente imaginamos.
Superfície terrestre
Planos horizontales
Planos verticales
Superfície terrestre
Planos horizontales
Planos verticales
Figura 2 – Representação espacial das propriedades vertical e horizontal
10 Argentina - Lei nº 13.512, Uruguai - Lei nº 10.751
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O proprietário é dono exclusivo de seu apartamento e co-proprietário dos bens vinculados ao uso
comum, como terreno, estrutura, paredes principais, muros, pisos, escadas, a área do elevador,
etc.
Neste sistema, para delimitação do direito de propriedade das superficies verticais se agregam
planos horizontais, definindo uma porção de espaço que é o objeto de propriedade.
Esta visão da propriedade impactou o cadastro pois se pensamos somente na propriedade
vertical é “mais fácil” representar cada parcela em um plano. Cada linha que corresponde ao
limite surge da interseção da superficie que a limita (parede, rio, cerca, etc.) com o terreno.
Porém quando temos que representar mais de uma propriedade sobre o mesmo plano de
projeção o problema de administração desta base cartográfica se amplia e merece a
estruturação de bases de dados mais complexas.
5. Descrição Geométrica, Jurídica e Econômica da Parcela
No modelo cadastral físico-econômico-jurídico que caracteriza a maioria dos países latino-
americanos, um dos objetivos do cadastro é a correta descrição destes aspectos em cada
parcela. Justamente as grandes diferenças que existem entre os sistemas cadastrais existentes
estão, em grande parte, na forma e no conteudo desta descrição.
Em termos gerais, a descrição geométrica (o física) é necessária para definir a localização e as
dimensões de cada parcela, e a descrição jurídica permite relaciona-la com o titular de direito ou
possuidor, existindo vários níveis de conexão, de acordo com a forma de relacionamento entre o
Cadastro e o Registro da Propriedade e os requisitos necessários para a inscrição das
trasmissões de propriedade nas duas instituções. Finalmente, a identificação econômica
corresponde ao valor, seja calculado ou estimado, mas que é único (este tema será amplamente
desenvolvido no Capítulo Avaliação de Imóveis para Fins Fiscais).
Identificação geométrica
A seguir colocamos alguns conceitos que ajudam a compreender a importância da identificação
geométrica da parcela.
O Território, as Pessoas e suas Relações Jurídicas
Aplicações do Cadastro Multifinalitário na Definição de Políticas de Solo Urbano 16
No âmbito cadastral se usa o termo delimitar, entendendo por tal o conhecimento de “com quem
se limita” ou “com o que se limita” a parcela, que está além da precisão geométrica com que foi
determinado o limite dos direitos que este conhecimento implica.
C. Ghiringhelli
N
A. ArismendiM. Iguini
Camino Braselli
C. Ghiringhelli
N
A. ArismendiM. Iguini
Camino Braselli
Durante muito tempo, em alguns de nossos paises, se considerava que uma parcela estava
delimitada quando se sabia quem eram os proprietários lindeiros, e por esse motivo era
suficiente que a parcela estivesse
individualizada como aquela porção de
território que tinha limites ao Norte com C.
Ghiringhelli, ao Leste com A. Arismendi, ao
Oeste com M. Iguini e tinha frente ao Sul para
a Estrada Braselli. Este conceito tem sua
origem em uma visão contenciosa de saber
com quem podemos ter conflitos de limites. A
ausência do limite e/ou de sua localização
podería levar à negação da parcela e a que
não podemos falar de uma parcela sem
limites ou sem localização. Os atributos limite
e localização poderão estar mais ou menos
determinados, mas não podem faltar nunca na
definição da parcela.
Vemos então que, além dos lindeiros, devemos conhecer corretamente as dimensões e a
localização da parcela. O dimensionamento consiste na definição geométrica dos limites, sendo
esta uma condição imprescindível para integrar a parcela dentro do “quebra-cabeças” do
território, que corresponde à cartografia parcelaria, dando consistência ao encontro de umas em
relação a suas lindeiras. Uma parcela está dimensionada se conhecemos suas medidas lineares
e angulares ou as coordenadas de seus vértices. As diferentes formas de dimensionar têm
relação estreita com as formas de localizar a parcela, podendo ser esta relativa (não
georeferenciada) ou absoluta (georeferenciada).
Até poucos anos, grande parte dos levantamentos realizados com fins cadastrais utilizava o
sistema de posicionamento relativo, o qual consistia, no caso das parcelas urbanas, em
determinar um ponto de amarração a partir do qual se media a distância ao longo da linha de
edificação (que divide o domínio público do privado), até um dos vértices da parcela.
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Entre as maiores dificuldades deste método se encontra justamente a determinação do ponto de
amarração o qual, embora devesse ser único, acaba sendo subjetivo, particularmente quanto se
trabalha em áreas que não estão completamente consolidadas. O deslocamento deste ponto
acaba provocando deslocamento da parcela, o que resulta na generalizada e conhecida
confusão de limites ou superposição de título de propriedade que caracteriza numerosos
cadastros latino-americanos. As sucessivas medições que se realizam da mesma parcela
acabam gerando diferentes medidas, as quais normalmente alteram os novos títulos gerados,
aumentando a incerteza. Em resumo, voltando à idéia da carta parcelaria vista como um quebra-
cabeças, ao adotar um sistema de posicionamento relativo é muito provável que acabemos
tendo muitas peças para arma-lo, mas ela perteneceriam a diferentes jogos, tornando a tarefa
impossivel.
A Figura 3 mostra a interpretação gráfica desta situação, na qual a realidade de campo
(denominado em alguns países de Estado de fato) não coincide com a realidade jurídica descrita
no título de propriedade (o Estado de Direito), havendo 3 polígonos quando na realidade devería
ser um único.
Calle
Tiene la Posesión, pero no el Derecho Real de PropiedadTiene el Derecho Real de Propiedad
pero no la Posesión.
Tiene la Posesión y el Derecho Real de Propiedad
ponto de amarre
Calle
Tiene la Posesión, pero no el Derecho Real de PropiedadTiene el Derecho Real de Propiedad
pero no la Posesión.
Tiene la Posesión y el Derecho Real de Propiedad
Calle
Tiene la Posesión, pero no el Derecho Real de PropiedadTiene el Derecho Real de Propiedad
pero no la Posesión.
Tiene la Posesión y el Derecho Real de Propiedad
ponto de amarre
ponto de amarre
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Figura 3 - Confusão de limites causados pelo posicionamento relativo de parcelas e pela
desconexão entre o Cadastro Territorial e o Registro de Imóveis
Os problemas derivados da localização relativa desaparecem ao adotar-se o posicionamento
absoluto das parcelas. Neste sistema cada detalhe levantado recebe uma coordenada
correspondente a um sistema único de referência, podendo ser este municipal, regional ou
nacional.
O documento cartográfico cadastral constitui a base sobre a qual se lançam os múltiplos dados
que discriminam os imóveis, com todas as variáveis estudadas. Para que haja precisão e
confiabilidade na integração da informação, é necessário trabalhar com um sistema único, o qual
deve ser definido pela própria Lei de Cadastro.
A incorporação de controles geodésicos para as medições tem um valor significativo, pois a
localização dos limites (para repor marcos ou determinar modificações possesórias por exemplo)
pode ser efetuada com rapidez e segurança. Cabe agregar que embora a georeferenciação deve
ser vista como um elemento adicional na constitução ou modificação do estado parcelario, a
verdadeira importâcia do tema está em que a atribuição de coordenadas aos vértices oferece a
possibilidade de efetuar controles independentes para as relações de vizinhança (linhas
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municipais de edificação, muros divisórios, marcos correspondentes a planos antigos, etc.) que
devem constar em todo ato de levantamento territorial.11
Atualmente vários países adotaram a georeferenciação de parcelas. A maioria dos exemplos
provém de nações líderes em matéria cadastral como são a Corporação de Informação
Geográfica da Província canadense de New Brunswick, o National Land Survey da Suecia, o
National Land Survey and Cadastre da Dinamarca e, mais recentemente, também o Brasil, em
seu novo Sistema Nacional de Cadastro Rural.
É possível que as argumentações apresentadas no sejam suficientemente convincentes e, por
isto, para compreender claramente a importância e os alcances da georeferenciação, a questão
deve ser analizada em um contexto mais amplo (o qual faremos mais adiante), sobretudo
interpretando o funcionamento da tecnologia SIG com seus principais paradigmas e os novos
conceitos de integração.
Ante as diferentes considerações apresentadas até aqui surgem as seguintes perguntas: “que
cartografia necessito para levar adiante meu Cadastro?” e “com que precisão devo medir e
localizar as parcelas?”.
Para encontrar as respostas é necessário conhecer o contexto jurídico e tecnológico de cada
jurisdição e definir, a partir deles, quais são os fins para os quais foi estabelecido o Cadastro.
Já foi visto que os dados cadastrais são fundamentais para a cobrança do imposto predial e, se
somente fossem utilizados para este fim não é necessário contar com cartografia de detalhe,
nem mesmo de mediana precisão. Por outro lado, se a cartografia serve para dar respaldo à
propriedade e será utilizada como base para um SIG, será necessário georreferenciar com
precisões sub-métricas (na área rural) e centimétricas (na área urbana).
Assim podemos concluir que somos nós que temos que saber para que desejamos levantar,
atualizar ou reformar um Cadastro. Devemos ter nós mesmos o conhecimento e os conceitos
claros para não acreditar piamente em assessoramentos que podem oferecer soluções distintas
por razões comerciais. Também temos que ter a suficiente amplitude de visão para poder
imaginar um sistema que sirva à jurisdição e não somente a uma de suas repartições, evitando
problemas de competência administrativa, a duplicação de esforços e investimentos, a
11 Ibars, Leonardo. Disponível em www.agrimensoreschubut.org.ar, consultado em Dezembro de 2002.
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multiplicação de cartografias, etc., que são sinônimos de ineficiência funcional e financeira e que
favorecem ou nos deixam de reféns do prestador do serviço.
Finalmente, acreditamos conveniente destacar que devemos ponderar quanto ao custo e
oportunidade cada vez que nos defrontamos com temas de definição parcelaria contrapondo
sempre aos fins do cadastro que necessitamos: os mapas cadastrais e outros sistemas de
informação territorial, sempre devem estar baseados em uma rede de pontos de controle
homogêneos, preferentemente relacionados a uma rede geodésica nacional de controle. Embora
a principal questão seja que a posição de cada parcela deve ser correta com relação a seu
entorno imediato, as considerações a mais longo prazo indicam que também deve ser correta
sua posição no espaço, com respeito ao sistema de coordenadas nacionais. Os investimentos de
tempo e custos para o estabelecimento de uma boa rede geodésica básica, poucas vezes
resultam antieconômicas.12
Identificação jurídica
A correta e precisa definição da parcela, como foi discutido acima, são fundamentais quando o
cadastro dá apoio à segurança da propriedade da terra.
Do ponto de vista cartográfico existem basicamente duas possibilidades na América Latina:
naqueles países onde existe o plano de medição, o posicionamento relativo é suficiente pois a
parcela está bem definida em sí e se amarra a um ponto determinado, definindo os limites em
relação às parcelas lindeiras com uma adequada precisão relativa, apoiando a segurança de
propriedade do ponto de vista contencioso, enquanto que onde não existe esse documento
jurídico-técnico, certamente a georeferenciação faz uma grande diferença.
Porém, independentemente do sistema que se utilize, do ponto de vista administrativo e jurídico
é importante destacar a importância da continuidade espacial que a parcela deve ter. A continuidade territorial implica que qualquer par de pontos de uma parcela possa unir-se com
uma poligonal, sem que esta corte seus limites, nem limites municipais, de localidades ou seções
cadastrais.
12 Grupo Ad Hoc de Especialistas em Sistemas de Medição Cadastral e de Informação Territorial das Nações Unidas - 1985.
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Os imóveis com uma única identificação cadastral, divididos em relação à forma precedente,
gerarão novas unidades que deverão ser delimitados e receber identificação independente na
oportunidade do registro.
A consideração de continuidade que tratamos e que não é somente uma continuidade
topológica, deve-se tornar clara, de forma prática, para um melhor entendimento. Não se pode
considerar uma parcela sem continuidade, separada por outra parcela de domínio privado oo
fiscal ou por um bem de domínio público.
Do ponto de vista prático:
não pode haver uma parcela que tenha partes em diferentes estados, províncias,
municípios, distritos, etc. (Figura 4a),
não pode haver uma parcela com partes em unidades cadastrais diferentes: localidades
urbanas diferentes, parte urbana x parte rural, unidades de conservação cadastral diferentes,
etc. (Figura 4b),
a maioria das legislações indica que os bens nacionais de uso público dividem parcelas,
ou seja, não pode haver uma mesma parcela nos dois lados de um caminho ou nos dois lados
de um rio considerado bem nacional de uso público.
JurisdicciónA
JurisdicciónB
Lpimite del perímetro urbano
Zona Rural
Lpimite del perímetro urbano
Zona Rural
a) b)
Figura 4 – Casos onde os polígonos (em verde) não podem ser considerados parcelas
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A identificação jurídica no cadastro não contempla apenas aspectos da parcela, mas também
relativos a seu detentor. Voltando `a definição de parcela, recordamos que em seu texto
encontramos a frase: “... que pertence a pessoa física o jurídica ou a várias em condomínio ...”.
A referência a pessoa física ou jurídica não merece maiores comentários e permite que o Estado
possua bens fiscais ou que Sociedades Anônimas sejam titulares de direitos sobre uma parcela,
mas é importante a referência a condomínios pois vale tanto para os condomínios legais (por
exemplo aqueles que se estabelecem entre os herdeiros que adquirem a propriedade de um
imóvel por sucessão) quanto para os contratuais (aqueles em que há vontade de dois ou mais
indivíduos de possuirem um bem em comum).
Esta referência apresenta a condição de um objeto de direito, de que não pode ser propriedade
de dois titulares, exceto que sejam estabelecidas condições de condomínio.
No momento da dissolução de um matrimônio, a porcentagem que corresponderá ao casal e a
seus filhos dependerá das normas legais que regulam a divisão de bens e a existência ou não de
acordos pré-matrimoniais.
Em outro tipo de condomínios como, por exemplo, os imóveis em regime de Propriedade
Horizontal, a porcentagem que cada co-proprietário recebe de co-propriedade normalmente será
proporcional ao valor de sua unidade individual.
Esta distinção é extremamente importante e para entender seu impacto, analizemos o caso
prático de fusão (união) de parcelas. Esta operação administrativa que realiza o organismo
cadastral não afeta os direitos pré-existentes e deve ser tratada com muitíssimo cuidado para
não gerar problemas legais pela coexistência de direitos espacialmente definidos previamente ao
ato, o que podería gerar uma parcela em colisão com sua própria definição.
Se fundimos parcelas que pertencem ao mesmo proprietário, a parcela resultante resultará
homogênea em quanto a seu titular de domínio, mas se fundimos parcelas de distintos
proprietários, geramos uma unidade sobre a qual se aplicam direitos espacialmente definidos
que não constituirão um condomínio. Vejamos alguns exemplos:
1. O proprietário A e o proprietário B desejam fundir suas parcelas. Depois da fusão, eles não
serão proprietários cada um de 50% da parcela fundida, mas terão títulos das parcelas
anteriores à fusão, a não ser que tenham gerado um condomínio, mediante compras cruzadas
de quotas-partes de cada propriedade. É importante prever esta situação para a eventualidade
do falecimento de algum dos proprietários.
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2. O proprietário das parcelas A e B adquiriu A antes de se casar e B depois de casado. Se o
cadastro não é cuidadoso ao autorizar a fusão destas parcelas, ante a eventual dissolução do
matrimônio teríamos uma parte definida da parcela que seria um bem do casal e outra parte
apenas do marido, e deveríamos retornar à situação anterior, para poder transmitir
separadamente as partes que correspondem à parcela B. Mas se a fusão foi realizada por uma
exigência municipal para poder construir um edifício que se localiza sobre a divisa, tal volta atrás
não será simples.
3. Ao admitir frações de parcelas que não constituem parcelas independentes como garantias
hipotecárias, se criam problemas na eventualidade de se ter que proceder à execução da dívida
hipotecária.
Obviamente existem mais exemplos, com as particularidades de cada marco jurídico e
levantamos esta questão somente para ressaltar as Tarefas da Semana.
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