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RAP Rio de Janeiro 36(6):879-904, Nov./Dez. 2002 O trabalho como profissão: a racionalidade do compromisso* Hermano Roberto Thiry-Cherques** S UMÁRIO: 1. Introdução; 2. A ponte; 3. Na corda bamba; 4. O portal. S UMMARY: 1. Introduction; 2. The bridge; 3. Walking the tightrope; 4. The doorway. P ALAVRAS-CHAVE : profissionalismo; trabalho; organizações; racionalidade; compromisso. K EY WORDS : professionalism; work; organizations; rationality; commitment. Neste artigo são apresentados e discutidos os principais traços do profission- alismo como forma de sobrevivência nas organizações contemporâneas. Após algumas considerações introdutórias, o conceito de profissionalismo e a sua adequação à racionalização das relações capital/trabalho são analisa- dos com base em estudos e pesquisas acadêmicas. A análise efetuada sugere que o profissionalismo, a despeito do seu insulamento, tem ajudado aos tra- balhadores a suportarem o fardo das pressões do sistema. Work as a profession: rationality of commitment The purpose of this article is to present and discuss the main traits of profes- sionalism as a way to survive in contemporary organizations. After a few introductory remarks, the concept of professionalism and its suitability to a rationally oriented relationship between workers and organizations are * Artigo recebido em ago. e aceito em nov. 2002. ** Professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da FGV. O autor é grato ao professor Enrique Saravia e ao pesquisador Roberto da Costa Pereira pelos comentários à versão inicial deste texto. E-mail: [email protected].

O trabalho como profissão: a racionalidade do compromisso*

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R A P Rio de J ane i ro 36 (6 ) :879 -904 , Nov . /Dez . 2002

O trabalho como profissão: a racionalidade do compromisso*

Hermano Roberto Thiry-Cherques**

S U M Á R I O : 1. Introdução; 2. A ponte; 3. Na corda bamba; 4. O portal.

S U M M A R Y : 1. Introduction; 2. The bridge; 3. Walking the tightrope; 4. Thedoorway.

P A L A V R A S - C H A V E: profissionalismo; trabalho; organizações; racionalidade;

compromisso.

K E Y W O R D S : professionalism; work; organizations; rationality; commitment.

Neste artigo são apresentados e discutidos os principais traços do profission-alismo como forma de sobrevivência nas organizações contemporâneas.Após algumas considerações introdutórias, o conceito de profissionalismo ea sua adequação à racionalização das relações capital/trabalho são analisa-dos com base em estudos e pesquisas acadêmicas. A análise efetuada sugereque o profissionalismo, a despeito do seu insulamento, tem ajudado aos tra-balhadores a suportarem o fardo das pressões do sistema.

Work as a profession: rationality of commitment

The purpose of this article is to present and discuss the main traits of profes-sionalism as a way to survive in contemporary organizations. After a fewintroductory remarks, the concept of professionalism and its suitability to arationally oriented relationship between workers and organizations are

* Artigo recebido em ago. e aceito em nov. 2002.** Professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) daFGV. O autor é grato ao professor Enrique Saravia e ao pesquisador Roberto da Costa Pereirapelos comentários à versão inicial deste texto. E-mail: [email protected].

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explored on the bases of academic surveys and studies. It is suggested thatprofessionalism, in spite of its aloofness, has been enabling workers to getthrough systems stress.

1. Introdução

O conceito de profissionalismo foi estabelecido nos primeiros anos do sécu-lo XX, quando a vida cotidiana prenunciava o fim da Belle Époque e vaticina-va a catástrofe da guerra que estava por vir. Uma época em que o mal-estarhavia se instalado na cultura.

Aqueles foram anos libertários. Procurava-se a autonomia individual, ogoverno do próprio destino, a ponte para a soberania de si mesmo. Foramanos de esforços ansiosos para construir vínculos que permitissem escapar deuma operosidade sem outro propósito que o da sobrevivência material.

Em 7 de junho de 1905, um grupo de artistas de Dresden, na Alemanha,autodenominado “Die Brücke” (A Ponte),1 pretendia apenas proclamar a in-tenção de uma experiência espiritual e emocional, mas acabou expressando oespírito de uma época. Fartos da academia e impregnados da rebeldia do mo-mento, esses artistas lançaram sua ponte sobre o tempo, até Albert Dürer e osícones germânicos, e sobre o espaço, até a arte inédita da África e da Oceania(Galloway, 1974). Incisivo e cromático, o expressionismo, que então surgia naAlemanha, não estava só. No mesmo ano, os fauves, liderados por Matisse, ex-puseram no Salon d’Automne. O cubismo apareceria em 1906. O futurismo, deMarinetti, com sua estética da máquina e da violência, em 1909.

Em 1901, com Maeterlink, as pontes que então se estenderam procura-vam a saída de uma vida social tão mecânica como a das abelhas. Cumpr-iram as travessias mais inesperadas. Para o Oriente, onde padeciaabandonada a Madame Butterfly, de Puccini, em 1904; para o tempo perdidode Proust, em 1913; para o interior da angústia humana com Wilde, no Deprofundis, de 1905; para o cerne do espírito com Bergson, de La évolutioncréatrice, de 1907; para a essência da alma com Freud, da psicanálise, de1910. Perseguiram desesperadamente a veracidade, fosse a da pintura abso-luta de Kandinsky, em 1908,2 fosse a da linguagem de Saussurre, da lingüísti-

1 Inicialmente, integravam o Die Brücke, Ernst Ludwig Kirchner (1880-1938) e Erich Heckel(1883-1970). Mais tarde, juntaram-se ao grupo Otto Mueller (1874-1930), Max Pechstein (1881-1955) e Emil Nolde (1867-1956).2 Que liderou outro grupo expressionista, o “Cavaleiro Azul” (Der Blaue Reiter), fundado em 1912. Aequipe editorial do Der Blaue Reiter começou com Franz Marc (1880-1916) e Wassily Kandinsky(1866-1944). Também faziam parte do grupo August Macke (1887-1914) e Paul Klee (1879-1940).

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ca geral, de 1916; ou, mesmo, a veracidade do pensamento apodíctico deHusserl, da fenomenologia, de 1913.3 Queriam alcançar a certeza de tudo.4

Com a guerra, as pontes foram destruídas ou se dirigiram a outras mar-gens. A única certeza é a de que as certezas são impossíveis. Os devaneiosromânticos e revolucionários se perderam ao longo do século XX. Restaramuns poucos sonhos e uma visão de mundo idealizada. Restaram algumasidéias, entre as quais, a do profissionalismo que procede do desencanto domundo, da insensibilidade da economia e da desumanização das organiza-ções. Uma idéia que espelha o ideal de sobreviver espiritualmente em uma so-ciedade centrada na materialidade econômica, subordinada à frivolidade eregida pelo absurdo dos totalitarismos.

O profissionalismo atravessará o século XX como tentativa de manter aconfiança em um mundo incerto e agressivo. Para ele, confluirão duas vert-entes conceituais. Uma, intelectual, de domínio do conhecimento, que vemdos mestres da Antiguidade, passa pela Revolução Industrial e chega até nóscomo sinônimo de eficiência e seriedade. Outra, baseada em procedimentos(procedural), do reconhecimento e da responsabilidade, que vem da ars roma-na, se consolida nas guildas, passa pelo trabalho de ofício e chega ao sécu-lo XX como sinônimo de autonomia e confiabilidade. Da primeira vertente,procede o entendimento do profissionalismo designativo do corpo de conhec-imento teórico, do treinamento técnico, da competência, da expertise, da jus-ta remuneração e do julgamento racional. Da segunda, o profissionalismoligado à independência, ao reconhecimento institucionalizado, ao comprom-isso, à disciplina, à legitimação entre pares.

No texto que se segue, abordaremos o profissionalismo que chegou aténós como uma das formas que os trabalhadores encontram para resistir, ma-terial e espiritualmente, às pressões dos sistemas econômico e institucional vi-gentes. Utilizamos dados e informações das pesquisas5 que vimos realizando

3 O período 1900-14 é de um grande dinamismo cultural. Desde 1900, ano da grande exposiçãode Paris (com a sua Torre Eiffel) até o episódio de Sarajevo, que marca o início da I GrandeGuerra, a Europa fervilha. O metrô de Paris é inaugurado (1900), o art nouveau se firma, Tho-mas Mann publica Os Buddenbrook (1901), Marie Curie entra para a Sorbonne (1906), Monetpinta as Ninfas, Dreyfus é reabilitado, Picasso, Braque e Matisse definem a plástica do século XX,Walter Gropius prepara a arquitetura e o design contemporâneos, através da Bauhaus. São dessaépoca os balés de Igor Stravinski (O pássaro de fogo, de 1910, Petrouchka, de 1911, e A sagraçãoda primavera, de 1913). Ainda durante a guerra, o Manifesto Dadá alertará contra todos osmanifestos (1916).4 “Vorremmo una certezza”, escreveria Ungaretti, anos mais tarde (Ungaretti, 1975).5 A mais extensa dessas pesquisas visou identificar “modelos de sobrevivência” em indústrias.Esteve voltada para a sobrevivência moral em ambiente industrial (Thiry-Cherques, 2000). Out-ras pesquisas, como a que relacionou o nível tecnológico à produtividade (Thiry-Cherques,1994), tiveram como objeto a sobrevivência material.

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sobre o tema da sobrevivência. Essas pesquisas indicam a existência de diver-sos caminhos de oposição aos constrangimentos que recaem sobre o espíritono mundo do trabalho. Caminhos que ora apontam para uma cisão entre vidae sistema,6 ora para uma rendição da vida ao sistema, ora para uma soluçãointermediária.

O profissionalismo, de que nos ocupamos a seguir, é uma dessas alter-nativas intermediárias entre a rendição e a adesão ao sistema. É uma tentati-va de estabelecer um diálogo entre os trabalhadores e as organizações. Depautar um convívio racional, em que o sistema e a vida se realizariam em es-feras diferentes, em que a interação entre a vida e o sistema consistiria emuma ponte que ligaria a realidade espiritual à realidade material, de forma aque duas lógicas — a da vida e a do sistema — poderiam coexistir.

Dividimos a exposição em três partes. Na primeira (A ponte), examina-mos o profissionalismo como sociabilidade, como laço entre interesses afins ecomo modo racional de coexistência. Na segunda (Na corda bamba), procura-mos identificar as tensões que incidem sobre essa forma de convívio entre otrabalhador e as organizações. Na última (O portal), discutimos a situação doprofissionalismo enquanto estratégia de sobrevivência em um contextoeconômico e administrativo que cada vez mais prescinde do ser humano.

2. A ponte

A ponte liga mas não une. Relaciona sem juntar. Supera, mas não anula a dis-tância entre as margens. Por mais sólida que ela seja, seus dois termos jamaisse encontram. Para muitos dos que vivem o mal-estar da sociedade, como seviveu o mal-estar da cultura no começo do século XX, o profissionalismo, aponte, a ligação entre a vida e o sistema sem que um se imponha sobre o out-ro, se constitui em um caminho para a sobrevivência, um abrigo para o espíri-to ante os constrangimentos do mundo do trabalho.

O mal-estar do início do século XX residia em que o ser humano — quehavia tomado consciência de si como um ente cultural — encontrava-se im-possibilitado de se realizar na sua plenitude. Procurou, então, atravessar as

6 Empregamos “sistema” no sentido empregado por Habermas (1991). O que Habermasdenomina “sistema” (ou mundo sistêmico) é a parte do real regida pela ciência e pela técnica,pelas interações estratégicas da ação, do agir instrumental, o que se baseia na racionalidade. Oconceito aproxima-se do que Weber denominou ação racional quanto aos fins e Horkheimer, deracionalidade instrumental. Adorno e Habermas fazem uso de uma noção mais complexa, aqual envolve a racionalidade cognitiva-instrumental e compreende as abordagens sob os pontosde vista técnico, científico, econômico e administrativo.

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pontes do ego reprimido, da vida amordaçada, da sociedade cristalizada.Fosse a suffragette tolhida politicamente, fosse o trabalhador prisioneiro doformalismo insensato, fosse o marinheiro escravizado do encouraçado Potem-kin ou, como mais tarde explicaria Freud (2000), fossem os vitimados pelacombinação de libido sublimada com agressividade contida — que haviagerado uma “neurose social” —, queriam todos escapar, mudar de vida, at-ravessar para o outro lado. Vivia-se o destempero insurgente contra a socie-dade lúgubre, presumida, insossa.

Emblemático da insubordinação, o expressionismo levou às últimas con-seqüências o ideário romântico da alforria da consciência objetiva, do gritoprimal (Ur-schrei), da emancipação da vacuidade (Elger, 1994).7 Trouxe a artepara o campo do conhecimento e do propósito racional (Kandinsky, 1969).Quando em 1913, Die Brücke se dissolveu em Berlim, a transição para a outramargem da arte tinha se firmado (Elger, 1994). Também a razão técnica, comBleriot, já havia atravessado o canal da Mancha, os impérios coloniais já tin-ham começado a ruir, as anquinhas tinham desaparecido e o profissionalismohavia se aberto ao trabalho como uma forma de sobrevivência que per-mitiriaa sociabilidade sem intimidade, a afinidade sem cumplicidade, a racionali-dade sem insensibilidade.

A sociabilidade

A sociabilidade se realiza em várias esferas. Na mais básica, um atributo daespécie e que é essencial à vida em um ambiente hostil, como a sociabilidadedos primatas. Na esfera do grupo, considerando-se que a sociabilidade deri-va do que os antropólogos denominam “destreza social”, isto é, das habili-dades necessárias à vida com padrões cambiantes de organização, em cultu-ras que evoluem e se transformam (Carrithers, 1995). Na esfera intelectual(Humphrey, 1976), a sociabilidade é uma faculdade superior, algo que po-demos desenvolver e deveríamos cultivar.

A sociabilidade profissional é a capacidade de integrar uma organiza-ção sem que seja necessária a alienação da vontade, do espírito. É a aptidãopara conciliar sentimento e necessidade. Com o avançar das formas de organ-ização que suprimem a convivência física e pasteurizam as relações sociais, asociabilidade do consórcio distanciado, do contato efêmero, se firmou comomaneira de sobreviver ao peso exagerado dado ao “mercado” e à “competitiv-

7 Lenin (1979) pregaria a revolução afirmando que “o único princípio organizativo sério temque ser este: rigorosa clandestinidade, escolha minuciosa dos inscritos, preparação de revolu-cionários de profissão”.

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idade”,8 que, internalizados pelas organizações, vêm sendo absorvidos sob aforma medieval da justa, da competição entre pares. A sociabilidade profis-sional é uma forma de sobreviver ao peer system contemporâneo, que não éum sistema de companheirismo, mas de disputa por poder e remuneração.

Na corrida pelo êxito, a habilidade de conviver com o diverso e mu-tante se tornou ainda mais essencial para a sobrevivência no trabalho do quea atualização tecnológica, o conhecimento e as habilidades operacionais. É oque permite que sobrevivamos sem cairmos nos extremos da ruptura ou daadesão aos valores do sistema. É a opção que resta para que haja equilíbrioentre dever e conveniência; a opção reservada aos hábeis, aos socialmentedestros, aos que lançam pontes e constituem elos sem se envolverem afetiva-mente com a organização em que trabalham.9

As afinidades

A sociabilidade profissional consiste no estabelecimento de ligações, sem que,de fato, o profissional se integre, sem que se una ao corpo da organização,seja ao corpo tangível das instalações e do salário, seja ao corpo intangíveldos laços pessoais. O profissional não faz da empresa a sua casa,10 não seavassala ao ganho burocrático, diferencia “coleguismo” de “amizade” e rege oseu engajamento11 com as organizações como um compromisso, como umarecíproca [con] promessa [promittere]. Como um commitment, que não é umabandonar-se, mas uma relação sob contrato, envolvendo deveres, benefícios

8 Quanto maior a formação acadêmica dos entrevistados nas pesquisas a que nos referimos,mais esses fatores são vistos como nocivos. Embora possam ser aceitos como necessários noatual estágio da economia, existe o reconhecimento de que devem ser abandonados no futuro,quando a idéia da concorrência deixará de contaminar (colonizar) as relações de trabalho. Istoindica a esperança de que o “trabalho-labor” venha a ser substituído pelo trabalho-opus.9 A convivência harmônica, o espírito de equipe — e também, certo corporativismo — sãoextremamente valorizados pelos que integram o modelo. Na pesquisa sobre a eticidade (Thiry-Cherques, 2000), no item referente aos fatores mais importantes para a organização e o tra-balho, vê-se que os que adotam a atitude profissional — embora atribuam um grau elevado àqualidade, à produtividade e à competitividade — acreditam que esses fatores têm umaimportância declinante.10 Em A casa e a rua (1991), o antropólogo Roberto DaMatta, chama a atenção para a divisãoético/cultural que os brasileiros fazem entre a “casa” e a “rua”. Comenta que tendemos aoenglobamento. Sentir-se bem no trabalho é sentir-se “em casa”. Os trabalhadores entrevistadosnas pesquisas a que vimos nos referindo que adotam uma atitude profissional são uma exceção.Procuram ocultar ou combater esse sentimento.11 O engajamento no sentido que lhe dá Sartre (1960), de dedicação a um propósito medianteescolhas livres.

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e lealdades condicionais (Wallace, 1995). A relação profissional é um liame,não uma fusão. É, ou deve ser, uma escolha, não um dever. Traduz um víncu-lo opcional: uma afinidade eletiva.

O constructo “afinidade eletiva” tem uma história agitada e um signifi-cado preciso. Foi cunhado pelo químico sueco Torbern Olof Bergman,12 paradenominar uma propriedade das substâncias químicas que se ligam devido acertas qualidades próprias, não generalizáveis. Em 1809, foi tomado empres-tado por Goethe como título de uma novela (Goethe, 1999)13 e, desde então,vem sendo associado às simpatias e aversões humanas. Entrou para o sabersocial pelas mãos de Hegel, no parágrafo 754 da Ciência da lógica (Hegel,1969), quando o autor trata das medidas auto-subsistentes. Hegel diz que oconceito de afinidade eletiva — típico da química porque as substânciasquímicas se determinam exclusivamente pela sua relação com as demais sub-stâncias, e existem somente como diferentes das demais — pode ser estendi-do à música e a toda correlação qualitativa em que a diferenciação é dadapela relação a um conjunto de elementos onde haja afinidade com cada mem-bro da série. Na música, explica Hegel, cada nota existe em função de sua re-lação com as demais, em que pese à diferença entre essas notas; consistindo aharmonia nesse “círculo de relações”. Cada nota é, por si, a chave do seu próp-rio sistema e, simultaneamente, elemento secundário dos sistemas das demaisnotas. As harmonias, quaisquer que sejam, são resultantes de afinidades eleti-vas.

O profissionalismo encerra, justamente, esse tipo de afinidade por es-colha. Uma atração em que a unidade, o indivíduo, se diferencia em relaçãoaos demais trabalhadores, ligando-se, harmonicamente, a outras instâncias —como a empresa ou a agência governamental —, as quais são secundárias emrelação ao indivíduo. O profissional é aquele que constrói uma ponte entre asua vida e a das organizações. Que sobrevive ao sistema mediante a internali-zação da dominante do capitalismo, uma tônica que reza que o empregadortirará o máximo proveito da força de trabalho, recompensando-a com o míni-mo possível, e que o trabalhador deverá fazer o mesmo: dar de si o mínimopelo máximo de recompensa que puder obter. As afinidades entre o trabal-hador e o trabalho são resultantes de uma combinação de interesses, de umaeleição, não da empatia ou, muito menos, do afeto.

A mais conhecida utilização do conceito de afinidade eletiva foi a deMax Weber quando esclareceu a relação entre idéias e interesses. Weber(Gerth, 1974) discordava de Marx, para quem as idéias são expressão de in-teresses. Pensava que as idéias não se originam de interesses, mas que, se

12 Bergman (1735-84), entre outras coisas, é o descobridor do mineral torbenite.13 A novela é uma história sobre relações conjugais e adultério. Lembra, em algumas passa-gens, Ligações perigosas, de Laclos.

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uma idéia — tenha ela a origem que tiver — não se coadunar com os interess-es dos membros de um determinado estrato social, não tendo com eles afini-dades eletivas, ela simplesmente será abandonada. A ética protestante e ocapitalismo não têm uma implicação mútua, se não convêm um ao outro(Löwy, 1989). Da mesma forma, o mundo das organizações e o da vida sãomundos afins, que se mantêm cada um em sua margem.

As relações entre essas instâncias derivam de uma interpretação sis-temática da racionalidade e da sua articulação histórico-cultural em váriosdomínios sociais.14 Os antagonismos e as afinidades entre os domínios permiti-ram a Weber retratar vivamente os atributos dos profissionais, como o do servi-dor público (dever, pontualidade, tarefas ordenadas, hábitos disciplinados), odo ethos das organizações de vizinhança (assistência mútua e fraternidadeeconômica, em situações de crise) ou da burguesia (oposição a privilégios deberço, igualdade formal de oportunidades). A ação objetiva “sem ressentimen-to e sem preconceito” caracteriza o profissional, aquele que vive da e para aprofissão, que dela aufere seu sustento e que a ela se dedica inteiramente.15

Entretanto, essas são configurações da época do surgimento do profis-sionalismo. Época dos funcionários prussianos, do sistema de moradias unifa-miliares. E as afinidades são cativas do seu tempo e da sua situação. Os elosde significado em uma ocasião e circunstância podem não ser os mesmos deoutra. Rimbaud — que inspirou todo o final da Belle Époque e cuja poesia ali-mentou a tristeza da arte da guerra, atravessou os “anos loucos” e influen-ciou o surrealismo — deu uma lista de afinidades entre cores e sons: “A noir,E blanc, I rouge, U vert, O bleu,...”,16 que é, no mínimo, enigmática. As frontei-ras não são claras. Beruf, palavra alemã para “toda sorte de atividade diretivaautônoma”, que se refere tanto à conquista como ao exercício da direção,pode ser traduzida como “profissão”, mas, também, pode ser traduzida como

14 Os conceitos-chave que informam essa articulação são o de “domínio social” e o de “afini-dade eletiva”. Para Weber, a sociedade é fragmentária e contraditória, não pode ser apreendidaem sua totalidade. O foco das análises sociais deve, portanto, recair sobre “domínios de ação”,seja sobre as esferas da vida — o governo, a religião, as leis, a economia —, seja sobre as organ-izações — a família, as empresas, a vizinhança —, seja sobre os grupos de status. A tarefaanalítica é compreender os limites e possibilidades desses domínios, sua gênese, sua confor-mação e as relações que os domínios mantêm entre si. Relações que ora são antagônicas, orasão afins; relações que derivam de afinidades eletivas. Embora nas traduções correntes, princi-palmente na de Parsons para o inglês, o termo “afinidade eletiva” apareça como significando acombinação ou interação entre duas condições culturais, o conceito é bem mais complexo. Com-preende uma atração, uma escolha recíproca e uma combinação. Foi usado por Weber emvários contextos (Buss, 1999).15 Weber, Max. “A política como vocação” (discurso proferido na Universidade de Munique).(Gerth & Mills, 1974).16 No soneto Voyelles (Rimbaud, 1945).

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“vocação”.17 A escolha do que é afim é circunstancial. As opções são estreit-as, as alternativas imponderáveis.

Com propriedade, o surrealista belga René Magritte denominou “afini-dades eletivas” um óleo em que um ovo substitui o pássaro dentro de uma gaio-la.18 O pássaro que ainda não é, está predestinado. Nascemos prisioneiros deescolhas, de circunstâncias. As afinidades entre as organizações e os indivíduossão hoje diferentes do que eram quando do nascimento do profissionalismo.Vivemos em outro tempo, em outra cultura. Quando nos voltamos para o mun-do que aí está, para os resultados das investigações que procedemos, as afini-dades entre os interesses das organizações e os interesses profissionaisaparecem como transacionadas segundo uma racionalidade que envolve cálcu-los, relações e valores muito mais complexos do que aqueles que marcaram oaparecimento do profissionalismo.

As racionalidades

A racionalidade já foi definida de muitas formas. Todas essas formas convergempara uma teoria de escolha de meios e processos que levem a determinados fins.Nenhuma delas resolve o problema de que, para que haja racionalidade, osmeios ou os fins, ou ambos, devem ser racionais, isto é, devem ser frutos da ra-cionalidade, que é justamente o que se quer definir. Também as tentativas deremeter a racionalidade a uma “razão fundante” fracassaram. Nada alcançaram,salvo, levar o problema para o campo de uma das mais árduas disputas filosófi-cas, que é a de se saber o que vem a ser a razão (Olivé, 1988).

Para sermos breves e evitarmos a cilada de uma discussão cismática, di-remos que o entendimento do que deve ser a razão varia segundo as inúmer-as escolas de pensamento, e que, mesmo nelas, a razão pode ser analítica(classificatória e dedutora), concreta (o que a diferencia do entendimento,que é abstrato), crítica (que se critica a si mesma, como em Kant), dialética(que procede do desenvolvimento histórico e cognitivo, como em Hegel,Marx e Sartre), prática, teórica, e assim, ad libitum. Talvez tivessem razão osmegáricos, que propunham a razão como ignava ratio, razão preguiçosa. Di-ziam não valer a pena inquirir sobre coisa alguma, porque ou bem se descon-hece o objeto que se busca — e então, não se pode orientar a pesquisa —, oubem se conhece o objeto, e não faz sentido procurá-lo. Seja como for, definir

17 O título da obra seminal de Weber (Gerth & Mills, 1974) pode ser entendido como “A políticacomo profissão” ou “A política como vocação”.18 Magritte dizia que a afinidade entre o ovo e a gaiola devia-se à forma, não ao conteúdo; maso surrealismo não deve ser explicado, e sim, sentido (Stake, 1995).

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a racionalidade não é possível mediante o recurso a nenhuma dessas escolasde pensamento. Ao contrário, elas fazem o conceito dar uma volta em tornode si mesmo, já que em todas elas a razão parece ser exatamente o que ra-cionalmente convém à razão ser, e nada além disso.

Essa dificuldade levou a que, nas teorias sociais e humanas, o conceitode racionalidade se abrisse em um leque de possibilidades mais ou menosconseqüentes. Mais ou menos porque, como não se pode evitar uma pres-suposição que seja de método (a premissa dos meios racionais), ou seja, defins (a premissa do propósito racional), os esforços teóricos têm caminhadono sentido de uma definição por exclusão, uma definição da racionalidademediante a supressão do que se poderia considerar irracional, a saber:

t escolhas sem sentido lógico (teoria da decisão);

t custo e tempo na procura de informações superiores aos ganhos pre-visíveis com a decisão (análise de custo-benefício);

t submissão a conflitos de interesse (teoria dos jogos);

t eliminação de improbabilidades (cenários).

Na prática, no que empiricamente verificamos, a atitude profissional secoloca aquém da discussão teórica. A dificuldade com que se confronta deri-va da hesitação entre pelo menos três racionalidades divergentes (Dejours,1998). De um lado, a racionalidade econômica impõe uma eficácia produtivaque desconhece os limites do sentimento e da integração social. De outro, aracionalidade social impele para uma pauta concertada de convívio, sem oque a vida se torna uma tortura. Por fim, a racionalidade privada clama pelapossibilidade, ainda que limitada, de auto-realização. Na vida profissional, ocálculo econômico, a integração sociocultural e a subjetividade buscam inces-santemente encontrar afinidades, forjar uma harmonia, construir uma ponteque as ligue.

Cálculo

A racionalidade do cálculo e da capacidade de controle foi descrita por We-ber como a Zweckrationalität ou racionalidade relativa aos fins que são meiospara outros fins (Weber, 1950). É uma razão científica e técnica, uma razãoque se sabe incompetente para estabelecer juízo de valor. Para Weber, a ra-cionalidade é tanto explanandum, a explicação dos processos sociais, comoexplanans, a racionalização do mundo desencadeada por esses processos, lóg-ica formal-instrumental do Estado, da economia, das organizações e das de-

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cisões privadas, que vai desembocar no “espírito coagulado” do capitalismomonetarizado, na “jaula de ferro” da vida “juridificada” em que estamos con-tidos e nessa “escura noite polar quantitativizada” que a humanidade at-ravessa.

Essa racionalidade daria a regra de formação dos conceitos e enunciadosda história da sociologia, do “racionalismo específico e particular da culturaocidental” (Weber, 1950). Horkheimer19 a denominou razão instrumental.Foi julgada abjeta pelos frankfurtianos, que diziam que a racionalidade instru-mental atesta a perda do “interesse emancipatório” universalista e substantivoda razão. Infelizmente, eles não disseram como é possível desconsiderá-la nomundo em que vivemos. No outro extremo do espectro ideológico, a racionali-dade instrumental foi tida como imperativa. Milton Friedman (1962) a iden-tificou como a capacidade de se manter operante (de sobreviver material-mente) mediante a obtenção de ganhos maiores do que os investimentos. Elenão se pronunciou sobre como alcançar tal capacidade sem se perder o quehá de moral no humanismo básico. De forma que a racionalidade do cálculo,inescapável para o profissionalismo, esbarra exatamente na inconstância daprópria lógica que propõe, uma lógica que se equilibre entre o devaneio e ainiqüidade.

Intersubjetividade

Também é de Max Weber a oposição entre a racionalidade instrumental e aWertrationalität, ou racionalidade absoluta dos valores indicativos das prefer-ências. Idealmente, seria essa racionalidade que deveria reger a vida social.Mas ela padece, ainda mais gravemente do que a racionalidade do cálculo, doproblema de como fundamentar o porquê certos fins seriam considerados “ra-cionais” enquanto outros não. Para resumir a questão, se, por exemplo, pre-tendermos que essa determinação seja dada pela justiça, ou pela igualdadeou por qualquer outro valor, o fim seria eticamente preferível — isto é, teriavalor por si mesmo —, o que não o torna, necessariamente, racional (o amoré preferível ao ódio, mas não é mais racional do que este).

Prático, Weber sustentou que a determinação dos fins seria dada pelaexperiência da vida e pela forma como se comportam os demais. Mas comosempre é possível utilizar métodos racionais para fins irracionais e vice-versa,a questão da racionalidade da conduta continuou em aberto. Anteriormente aWeber, Hegel (1953, t. 1), sob o argumento conhecido como “ardil da razão”,

19 Diferencia a razão da “mera” razão instrumental que depende das razões (o método que seusa para alcançar os fins).

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tinha oferecido uma solução ao problema. Dizia ele que o homem particular,que age em seu próprio benefício, isto é, irracionalmente em relação ao uni-versal, termina por sucumbir enquanto o universal permanece, se haurindodas resultantes das ações particulares em conflito. De tal forma que a razãodo mundo faria com que as paixões individuais, as irracionalidades particu-lares, obrassem por ela. A razão instrumental serviria à razão substancial.Pena que a engenhosidade dessa solução não evite que ela dependa do con-vencimento da progressão dialética do mundo, uma convicção sensata, masuma convicção, e nada mais do que isso. Posteriormente, na década de 1950,Arrow (1974:83) sustentou, com fundamento, que a racionalidade coletivaou transitividade da razão é uma ficção. Que ela só seria possível mediante aautoridade ditatorial sobre a vontade particular de cada um,20 com a sub-missão da razão social a uma razão particular. Isto é, que a razão coletiva oubem é razão ou bem é coletiva.

A subjetividade

Ainda que esteja convencido da impossibilidade de racionalizar o mundo e avida, o ser humano não pode ou não quer admitir o fracasso. Isso porque abusca de uma racionalidade nas relações de produção não reflete apenas odesejo de agirmos logicamente e de nos mantermos em conexão uns com osoutros mas, também, o imperativo de estarmos em contato com nós mesmos,com nossa identidade pessoal, com a nossa história de vida. Estirada em di-reções opostas, entre o cálculo e a vida em comum, a racionalidade subjetivavê-se compelida a escolher entre a fragmentação desconexa e a auto-re-strição, mas não cessa de procurar pontes que conciliem esses extremos.21

Uma das várias dicotomias relacionadas ao conceito de racionalidadefoi desenvolvida por Herbert Simon (1982). A partir da idéia-força de racion-alidade limitada (bounded rationality), Simon, March e os seus associadossustentaram que as escolhas racionais são “multicriteriais”, isto é, que não sefundam na exclusão de um critério em benefício de outro, mas sobre a pon-deração de um em relação ao outro. Que a escolha é uma seleção que “nãoevoca nenhum processo consciente ou intencional. Ela mostra que, simples-mente escolhendo esse ou aquele tipo de ação, o indivíduo renuncia inevitav-

20 É o velho problema da determinação da vontade geral (Rousseau, 1966).21 T. S. Eliot (1936), nos versos de East cooker, dá a exata medida desse sentimento de reinício,de inarticulação, de desordem, de imprecisão: “Is a new beginning, a raid on the inarticulate /With shabby equipment always deteriorating / In the general mess of imprecision of feeling”.

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elmente a alternativas”.22 A idéia do racional em si é abandonada em favor daracionalidade condicionada, do agir mais racional possível em uma dadacircuns-tância (Crozier, 1977).

Simon cunhou o termo “racionalidade substantiva” como referência aoconceito de racionalidade tal como utilizado na economia, e de “racionali-dade procedural” como referência ao conceito tal como utilizado na psicolo-gia. O comportamento racional-substantivo se aproxima, chega mesmo a seconfundir com o racional-instrumental, já que é definido segundo os fins pre-tendidos e é limitado, somente, pelas condições do ambiente em que tem lu-gar. Já o comportamento racional-procedural é o resultado de uma reflexão.Ele depende do processo que o gera, não do ambiente onde se desenvolve. Éuma resposta não-impulsiva aos estímulos afetivos e cognitivos. É um cálcu-lo, mas um cálculo não dirigido aos fins, mas fundado em processos cogni-tivos como a aprendizagem, a resolução de problemas e a elaboração deconceitos.

Em que pese à sensatez dessas formulações, até onde pudemos verific-ar nas pesquisas a que vimos nos referindo, o enfeixamento dos processos “ra-cionais” subjetivos deságua em uma interação de equilíbrio precário, em umapseudo-racionalidade ou, no máximo, em uma racionalidade tão sutil quepassa despercebida. A racionalidade subjetiva, na prática, se determina nega-tivamente; isto é, ela se dá pela supressão da irracionalidade, dos dogmas,crenças, superstições, tradições ou de qualquer proposição não sustentadapor argumentos inteligíveis.23

Seja como for, a suposição de uma escolha racional — que jamais deix-ou de ser, isso mesmo, uma suposição — vem sendo questionada até comohipótese válida. Há tempos se argumenta que, para que o termo “racional”possa ser aceito como predicado da escolha humana subjetiva, teria que sertão elástico que suprimiria apenas o mais louco irracionalismo. Já no começodo século XX, na época do surgimento do profissionalismo, Whitehead (1919)questionou a necessidade de que o profissional refletisse demoradamente so-bre suas ações, uma vez que “a civilização tem avançado pelo aumento donúmero de operações que podemos realizar sem pensar nelas”. Mais adiante,foi Schumpeter (1934) quem argumentou ser o instinto uma das principais

22 A racionalidade é limitada ao nível psicológico pela capacidade humana de informação ereflexão, ao nível sociológico pelo sistema de categorias de percepção e apreensão — constitu-tivos da formação individual — e, ao nível cultural, pela estrutura de valores do meio em que serealiza. As escolhas são restringidas: pela capacidade de elaboração da informação; pela capaci-dade de cálculo dos seres humanos; pela complexidade relativa do ambiente em que a escolhaocorre (Simon, 1983).23 É claro que “argumentos inteligíveis” são a mesma coisa que argumentos racionais, o que sig-nifica o retorno ao sem-fim da razão “fundante”, que precisa de uma razão normativa que afunde etc.

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qualidades do empreendedor. Recentemente, essa posição ganhou força como questionamento, não da racionalidade, mas do próprio ato de escolher. Háevidências (Lane, 1996) de que, no mundo econômico contemporâneo, aação tem primazia sobre a escolha. Isto é, as decisões em um mundo deeconomia volúvel têm que ser tão rápidas que não podem ser tomadas combase em ponderações conscientes. Elas são baseadas em expertise, na períciaresultante do instinto e da experiência.24

2. Na corda bamba

Por trás da frieza ostensiva do profissionalismo há uma tensão constante. Oprofissional procura a convivência, o não-conflito entre duas esferas contra-ditórias de valores. Para alcançá-la, não pode permitir que se juntem ou quese subordinem um ao outro, a vida e o sistema. Muito menos, pode buscar umimprovável meio-termo aristotélico entre valores e interesses diversos.25 Oprofissional procura vivenciar dois mundos simultaneamente, vive na cordabamba, equilibrando-se entre duas realidades, vive uma cultura bipartida.

As dificuldades decisórias de viver culturalmente em dois mundosequivalem ao tipo de atribulação que Weber chamou de “guerra dos deuses”.Ele achava que a vida “não conhece senão o combate eterno que os deusestravam entre si (...) não conhece senão a incompatibilidade dos pontos de vis-ta últimos, a impossibilidade de regular os seus conflitos, e, conseqüente-mente, a necessidade de se decidir entre um ou outro” (Weber, 1959:32).Assim sendo, seria inútil tentar confrontar valores religiosos, culturais, de sit-uações diferentes. A cultura, no sentido que lhe dá Weber, é um “conceito-valor”, isto é, seu conteúdo está aberto a interpretações.26 Nós construímos oconceito, dando-lhe significados pela “ordenação intelectual do empirica-

24 Expertise: o profissional das organizações se distingue por “tocar de ouvido” (Barnard, 1961).25 Nas pesquisas a que vimos nos referindo, no que tange à percepção sobre os elos com osdemais atores do sistema, os que se enquadram no que denominamos atitude profissional ten-dem para uma visão mais equilibrada, sem tocar os extremos (ótima e ruim) da amostragemgeral no que se refere aos concorrentes, e mais para os extremos de ótimo e ruim nas relaçõescom os clientes, de interesse mais direto da organização. A tendência para a autonomia tam-bém é indicada tanto na visão negativa das relações com os governos como na visão positiva dasrelações com os demais empregados e com a comunidade, atores mais próximos do mundo davida.26 “Cultura” para Weber é um segmento finito da realidade, recortado da infinitude inal-cançável do mundo. Um segmento a que os seres humanos conferem sentido e significância. Se,de um lado, esse entendimento segue a tradição de opor o cultural ao natural, de outro, é intei-ramente inovador em relação às definições correntes. Evidencia o caráter incerto e mutável doconceito de cultura, sua permanente destruição e reconstrução (Arnason, s.d.).

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mente dado” e separando-o do “infinitamente inapreensível processo do mun-do” (Scaff, 1989:85). Não só mudam as culturas como muda aquilo quereconhecemos como cultura.27

O que poderíamos fazer para sobreviver em uma cultura bipartida se-ria reconstruí-la a cada passo, nos equilibrando entre os “deuses” em luta.Ora, para o profissional essa luta se dá em duas instâncias: a que contrapõe atradição à atualidade tecnológica e econômica, e a que contrapõe as formasde trabalho solidárias ao tipo de relações sociais nas organizações contem-porâneas. É sobre a corda bamba do equilíbrio instável resultante dessasoposições que caminha o profissionalismo.

Tradição e atualidade

O que chamamos de racionalidade varia segundo modo e lugar. A racionali-dade, ou a aparência de racionalidade, é dada pela lógica do todo. A racional-idade dominante da cultura ocidental, a do capitalismo, a da busca de lucrose da sua multiplicação, que gera e depende de instituições — como as organi-zações industriais, a separação entre as áreas onde negociamos e aquelas emque vivemos, a contabilidade, o trabalho formalmente livre — necessaria-mente, tem que ser a mesma racionalidade para a ciência, o treinamento mil-itar, a administração, a contemplação mística e a ética. Pouco importa que ocapitalismo atual tenha perdido “qualquer significado religioso e ético” e ad-quirido um “caráter de esporte” (Scaff, 1989:90). O que ficou foi um sistemade “causação circular”, onde o progresso técnico, a estandardização, a “rotini-zação” da vida, o cálculo (enfim, a racionalização) produzem a especializa-ção, a fragmentação, além de tensões éticas de toda sorte, que são resolvidasvia mais racionalização, mais “rotinização”, mais cálculo, em um ciclo semfim. A racionalização de tudo é como uma jaula de ferro.28

27 Portanto, quando tentamos compreender os valores de um indivíduo ou de um grupo, deve-mos considerar que esses valores correspondem a uma cultura particular, a uma visão demundo diferente da nossa, e que ambas as culturas, a observada e a do observador, estão emtransformação. A tarefa de deslindar os traços culturais requer, por isso, um esforço metodológ-ico considerável. Weber propõe superar essa dificuldade mediante a construção de “tipos-ide-ais”, isto é, mediante a redução da complexidade da economia e da sociedade a recortes lógicos.28 A qual Weber descreveu na segunda parte da Ética protestante e o espírito do capitalismo (em1906, após visitar os EUA): “Os puritanos queriam trabalhar por vocação; nós temos que fazê-lo(...) Essa ordem (econômica) está hoje limitada por pressuposições técnicas e econômicas deprodução mecanizada, que determina (...) o estilo de vida do indivíduo nascido nesse mecanismo(...) [que aparentemente é] (...) um leve manto, que pode ser deixado de lado a qualquermomento. Mas o destino decretou que tal manto se tornaria uma jaula de ferro“ (Weber,1950:181).

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Sob uma perspectiva muito mais limitada, mas de igual natureza, os quebuscam no profissionalismo a via de convivência com o sistema se deparamcom uma dicotomia similar.29 O estilo de vida determinado pela mecânica cap-italista engendrou e validou um código de conduta dúplice, lógico em relaçãoao funcionamento da economia, mas descabido em relação à vida social. Presoem uma jaula de ferro, o profissional equilibra-se em uma tensão lógica, emuma cultura bifronte, regida pelo conhecimento técnico, pela eficácia, mas tam-bém por temores, que, como sempre, são os temores do desconhecido. O profis-sional balança entre um perigo e outro, entre um medo e outro.30

Ao analisar a economia tradicional, Weber escreveu que “é muito intensa ainfluência que exerce a magia estereotipada do comércio, a grande aversão a in-troduzir modificações no regime de vida em comum, por temor de provocar tran-stornos de caráter mágico” (Weber, 1968:310). Pois, os levantamentos querealizamos evidenciam o mesmo fenômeno no mundo racionalizado do capitalis-mo avançado. De um lado existem as virtudes tradicionais, familiares, que nonosso caso, são as virtudes do catolicismo. De outro, temos a entidade “mercado”que hoje encerra o caráter mágico suscitado por aquilo que não se compreende.31

O inalcançável número de determinantes do comportamento dos mer-cados fetichizou o conceito-base do capitalismo. Para os que adotam a postu-ra profissional como estratégia de sobrevivência, as virtudes do capitalismoestão no passado ou no futuro (Thiry-Cherques, 2000). Em face da coação domercado, o trabalhador contemporâneo vê-se compelido à atitude fria da re-lação profissional que o prende à tradição herdada, de seriedade e competên-cia. Simultaneamente, o imperativo da sobrevivência material o arrasta paraum mundo que valoriza a flexibilidade e a velocidade. As virtudes modernassão diferentes das virtudes exaltadas pelo protestantismo, mas o problema dacoabitação é o mesmo. Essas virtudes não se encaixam no quadro resultanteda fetichização do mercado.

Indivíduo e sociedade

29 Para os que adotam a atitude profissional — segundo as pesquisas em que nos baseamos —,o nível tecnológico é percebido mais positivamente se comparado à média da população investi-gada; enquanto a percepção sobre o nível cultural tende a ser, substancialmente, mais positiva(38% contra 28% acham que o nível é melhor).30 Essa sensação de que nos encontramos presos aos mecanismos da produção é evidenciada,principalmente, pela maior importância que os profissionais emprestam aos fatores relaciona-dos como virtudes. A amizade, o otimismo, a solidariedade, a coragem recebem um grau derelevância substancialmente acima da média.31 Para os profissionais, as perspectivas da economia são vistas sempre positivamente. Por exem-plo, a percepção sobre a participação no mercado é francamente mais otimista do que a média dapopulação investigada (62% acham que aumentou a participação contra apenas 47% da média).

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O segundo centro da tensão que importuna àqueles que procuram manteruma atitude profissional reside na confusa fronteira entre as racionalidadestécnico-econômica, social e pessoal. A primeira impera sobre todas as institu-ições e força a sua aceitação pelo mundo da vida, tentando colonizá-lo. A seg-unda se retrai sob a pecha do tradicionalismo que perdeu a razão. A terceiraafigura-se como sem-razão, como irracionalidade.

A primeira racionalidade é a da jaula de ferro, da objetivação da cultu-ra material, do “mercado” e do seu “poder inexorável” (Scaff, 1989). Mas étambém a prisão mental, na qual estamos encerrados em razão de nossa for-ma de pensar. É a prisão do ser humano especializado, “vocacionado”, com-pelido a abandonar a “universalidade da humanidade” e viver em um mundo“desencantado”. Dependemos social, política e economicamente de organiza-ções “racionais” e de pessoas treinadas dentro dessa racionalidade. A racion-alidade é a chave da nossa cultura.

Mas há uma segunda racionalidade. Uma racionalidade que se prende aosvalores e não aos fins. Weber dizia que “uma coisa nunca é irracional por elamesma, mas somente quando considerada a partir de um determinado ponto devista” (Weber, 1950:187). Por isso, distinguiu vários tipos de ações segundo ograu de maior ou menor racionalidade. A ação que é racional quanto aos finsque se propõe a alcançar, a ação que é racional quanto aos meios empregados, aação “afetiva”, que é racional quanto aos sentimentos, e a ação tradicional,próxima da irracionalidade, já que fundada unicamente no hábito (Weber,1999, parte 1, cap. 1). Um comportamento racional não precisa, necessaria-mente, obedecer a uma “lógica fim-racional”. Pode ser “valor-racional”, sempreque seus fins ou seus meios sejam religiosos, morais ou éticos, e não direta-mente ligados à lógica formal, à ciência ou à eficiência econômica. Essa “não-ra-cionalidade” está presa às convicções, à religião, e não deve ser confundida coma irracionalidade.32 No Ocidente, houve uma passagem da magia à racionali-dade — que Weber denominou o “desencanto do mundo” —, a perda dalegitimidade de qualquer tentativa de validação incondicional de valores (We-ber, 1946). A experiência intuitiva do mundo foi sublimada por uma ética ra-cionalizada a partir da religião e do pensamento teórico. O mundo sedesencantou. Houve um processo de racionalização e não a prevalência qualita-tiva de uma dada racionalidade sobre outra. Mas a não-racionalidade per-maneceu e permanece mantendo a tensão entre o que é valor e sentimento e oque é fim e utilidade.

A terceira racionalidade é a da conduta ou a do pensamento, e guardauma lógica apenas aparente. Nossa vida está plena dessas irracionalidades, decomportamentos que não são nem “fim-racionais” nem “valor-racionais”.33 Porexemplo, a forma como organizamos o nosso tempo quase sempre prescinde deuma razão, seja quanto aos fins, seja quanto aos valores que declaramos a nósmesmos como prioritários. Por outro lado, muitas das nossas ações são irrefleti-das: quem utiliza um elevador não precisa saber como funciona. Aceitando ocotidiano como se fosse racional, despreocupamo-nos de conjeturar sobre o

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propósito de nossas ações. Com o pressuposto da racionalização do mundo, abri-mos espaço para o ceticismo, a mistificação, o charlatanismo. Mesmo porque ex-istem “ações afetivas”, fins e meios ligados a afetos e às paixões eirracionalidades no comportamento individual (sentimentos) ou coletivo (re-lações de poder, por exemplo) que correspondem a uma “irracionalidade axi-ológica”, a um “antagonismo dos valores”.

Enredados na divergência entre as racionalidades, os que buscam a ati-tude do profissionalismo como caminho de sobrevivência tendem a descon-hecer as esferas da não-racionalidade e da irracionalidade (Freund, 1970).34

O profissionalismo, a racionalização das relações de trabalho, acaba por de-pender de uma lógica acrobática para se manter sobre uma mistura detradição e renúncia à nostalgia, de permeabilidade nas relações de trabalho econstrução de barreiras às pressões sociais, de firmeza de propósito e de in-certeza quanto ao futuro.35

4. O portal

32 Por exemplo, o “racionalismo” está contido na ética chinesa embora “apenas a ética puritana,orientada para o além do mundo, [tenha levado] às últimas conseqüências a lógica econômicaintramundana (...) porque para ela, o trabalho intramundano não passava de expressão doesforço por uma meta transcendente”. O nível de racionalização de cada religião é dado pelo dis-tanciamento que apresenta da magia e por sua coerência interna. O protestantismo ascético é omáximo que uma religião pode se afastar da crendice e da magia, enquanto o confucionismoretém o máximo de coerência interna. No protestantismo, a aparente irracionalidade do mundo édevida a nossa incapacidade de alcançar os desígnios de Deus. Os desígnios de Deus não podemser compreendidos, mas o mundo tem um sentido dado por Deus. No confucionismo, o mundo éque dá a ética, não havendo tensão entre o homem, o mundo e Deus (‘Tao’ = ordem cósmica). Aconfiança na China é baseada nos laços de parentesco e amizade. No protestantismo, o que vale éa comunidade e a “qualidade ética” dos indivíduos singulares. Enquanto “o racionalismo confu-ciano significa a adaptação racional ao mundo, o racionalismo puritano significa dominaçãoracional do mundo” (Weber, 1982:158). O cristianismo possibilitou uma explicação do mundo lib-erta do caráter mágico. A vida não precisa ser boa, mas tem que ser lógica. Não aceitamos o“carma”, mas aceitamos a nossa carga na esperança “racional” de uma felicidade futura. Há aquium contínuo entre magia e racionalidade, de tal forma que, quanto menos mágica é a religião,mais os seus fundamentos necessitam de uma justificativa lógica (Weber, 1974).33 Por exemplo, o “intelectualismo“, que tanto preocupou Weber, não é sinônimo de racionaliza-ção. Antes, é um “enfeitiçamento (sorcery) racional” que reduz o mundo à teoria. Abre caminhopara a racionalização de tudo mas, em sua incapacidade de explicar a realidade, também abre cam-inho para a reintegração do universo mágico via desenvolvimento das interpretações religiosas.34 Isso é expresso, claramente, quando comparamos a percepção sobre os fatores econômicos.Os profissionais tendem a emprestar uma importância muito acima da média às virtudes doconvívio.

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Em 1907, dois anos depois da formação do Die Brücke, Simmel (1988) es-creveu que a ponte é antes de tudo um atributo do isolamento. Que a ponte se-ria ilógica e absurda se ligasse o que não está separado. Que ela denuncia econfirma a separação. A ponte, estendendo-se entre dois pontos, prescreveuma segurança absoluta porque mantém a distância e permite o regresso, sen-do indiferente o lado para o qual é atravessada.

De fato, os elos sociais, as afinidades que convergem sem jamais se con-fundirem, através de pontes ou da corda bamba das racionalidades em conflito,permitem não mais do que o equilíbrio entre a vida e o sistema, um equilíbrioque deve ser continuamente renovado. Como o balanceamento entre a lógicafria do mercado e a não-racionalidade afetiva do ser humano é, na prática, im-possível, a atitude profissional é um eterno “vir-a-ser”, uma fantasia que jamaisse realiza.

É a porta, diz Simmel, que pode abolir imediatamente o que está separa-do e separar o que está unido. A porta pode ser fechada ante as intempéries dosocial ou franqueada para a liberdade. Como a ponte, a porta admite que sepasse nos dois sentidos, mas os resultados são diversos, conforme se resolvaentrar ou sair, fechar ou deixar aberta a passagem.

O profissionalismo, a tentativa de resolver a tensão entre valores de ori-gem e sentido diferentes,36 que aspirou lançar uma ponte entre duas esferasdistintas da existência, terminou por se arriscar em uma travessia sem retorno,abandonou a administração das incertezas em direção ao mundo fechado da

35 Ao deter-nos sobre as comparações dos fatores mais relevantes para os que adotam a atitudeprofissional em relação à média dos trabalhadores, vemos, de um lado, uma nostalgia das for-mas de convívio passadas, quando a amizade, a honestidade e o trabalho eram importantes; istoé, tinham uma importância muito maior do que a atribuída pela média dos entrevistados. Deoutro, a aceitação do tempo presente, isto é, dos fatores do sistema (competitividade, quali-dade, produtividade) como preponderantes na atualidade. E, por último, as novas formas deorganização flexíveis ganhando importância no futuro.36 Ao compararmos a percepção sobre o trabalho dos que aderem ao modelo da conciliação com amédia da população entrevistada reunimos as seguintes observações. Corresponde ao passado otrabalho entendido como sacrifício, como ofício e como vocação. As virtudes do trabalho tambémficaram no passado, em uma época em que a qualificação e outros fatores econômicos não tinhama relevância que têm hoje. Na atualidade, o trabalho é referido à utilidade, à competição, mas,sobretudo, à qualificação e à criatividade. Bem abaixo da média está a visão do trabalho como umnegócio. O que pudemos deduzir desses dados e, principalmente, das informações obtidas duranteas entrevistas, foi a existência de uma terceira dicotomia — a par das dicotomias entre a tradição ea economia, entre as pressões do sistema e o convívio — com que os profissionais tentam con-viver. Uma dicotomia que reside na ruptura entre a moral econômica tradicional e a ética result-ante do processo de formação da cultura do capitalismo. A da cisão entre o discurso moral, queainda ecoa as idéias de eqüidade (igualdade de oportunidade), de fraternidade (a “grandefamília” que muitas organizações dizem constituir), de santificação do trabalho (a “força motrizda sociedade”) e as práticas de competitividade, não só empresariais, mas, também, profissionais.

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segurança do saber técnico, da certificação, da corporação. Não tendo sido pos-sível aderir ao sistema, porque o sistema se tornou o oposto da vida; não tendosido, também, possível renunciar ao sistema, porque o sistema sustenta a vidamaterial, o profissionalismo veio a se aproximar de uma forma de relação detrabalho encapsulada, uma porta autônoma e fechada sobre si mesma.

Autonomia

Diferentemente de outros animais sociais, os seres humanos não só vivem emsociedade mas criam a sociedade para viver. Na sociedade que estamos crian-do, tanto no plano da sociabilidade como no plano interior da “eticidade”, otrabalho, que antes se apresentava como o único elo verdadeiramente opera-cional de integração entre a vida e o sistema, está perdendo esse privilégio.Os avanços da telemática e os processos de automação da produção faculta-ram o trabalho não-presencial, uma forma de trabalho em que as relaçõesprofissionais estão progredindo (ou regredindo) para a esfera da intersubje-tividade fria, calculista, insensível.

No seu advento, o profissionalismo referia-se somente às profissões libe-rais. O profissional era uma exceção. Não era um capitalista nem um emprega-do, nem um burocrata. No século XV, as ocupações liberais-profissionais erama teologia, a filosofia, o direito e a medicina. No Renascimento, profissio-nalizaram-se as artes ligadas às ciências naturais, especialmente, à física e àastronomia. No século XIX, as engenharias. Só no século XX o conceito deprofissionalismo foi estendido ao pessoal técnico e executivo atuando nas or-ganizações (Parsons, 1960). Foram muitos os formatos sob as quais se mani-festou, mas sempre teve o sentido de separação, de distanciamento, deautonomia.37 As formas de organização que dispensam o convívio favorecemo trabalho profissional, que ganha força e se institucionaliza. Paradoxalmente,é essa institucionalização que ameaça estrangular a autonomia do profission-alismo.

A autonomia profissional envolve, pelo menos, quatro instâncias: ocontrole, a autoridade do saber, o monopólio sobre sua área de conhecimen-to e a regulação soberana. Controlar significa ter o poder sobre alguma coisa.No profissionalismo, significa não estar submetido às injunções organizacion-ais. Esse poder é obtido do conhecimento, tanto do domínio das práticas e do

37 Como os que aderem à atitude profissional projetam a superação do “trabalho-labor” pelo“trabalho-opus”, alimentam a esperança de um forte declínio do trabalho como sacrifício e umaascensão igualmente forte de fatores como a qualificação, a criatividade e competição, a realiza-ção e a utilidade do trabalho.

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instrumental do ofício como do trânsito no interior das organizações, que de-pendem do conhecimento especializado. Ambos os tipos de conhecimento re-fletem um monopólio sobre uma área do saber técnico, que não significa,apenas, deter o saber, mas que esse saber é único e deve ser adquirido segun-do regras e normas estabelecidas. Somados, a capacidade de controle, a au-toridade do saber e o monopólio levam à autonomia profissional, expressanas diversas formas de representação e de auto-regulação. Uma soberaniaque, exercida sobre o ingresso de novos profissionais, fecha o ciclo de reali-mentação do sistema.

A autonomia não dispensa a vinculação, isto é, não prescinde das re-lações — inclusive, de ordem ética — que o profissional mantém com a organi-zação para a qual trabalha. Contudo, implica um vínculo sem compromissooutro que não aquele de unir o resultado à remuneração. Por isso, ainda naépoca do surgimento do profissionalismo, Durkheim (1950) sustentou que a di-visão forçada do trabalho na sociedade industrial leva à “corporação profission-al”, única instituição capaz de gerar uma nova ordem ética, estabelecendo amediação entre a burocracia do Estado e o indivíduo perdido nas incertezas domundo do trabalho. Para ele, o profissionalismo não pode existir sem uma dis-ciplina moral que regulamente os “apetites individuais (...) insaciáveis”. En-tretanto, uma moral não pode ser improvisada. Ela é controlada pelo Estado oupela corporação profissional, ou por ambas. E, continua Durkheim, com umaprevidência surpreendente, não há que se preocupar com a adesão ao regula-mento profissional, porque, uma vez constituída a força coletiva, os que a elanão se submetem não poderão se manter. Serão expulsos do mercado, di-ríamos nós hoje, quando as instituições que deveriam garantir a autonomia dotrabalho se embaralham nas contradições de sua própria lógica. Quando oprofissional, que pretendeu tomar para si a soberania sobre o trabalho das or-ganizações a que servia, agora se vê compelido a aliená-la às organizações quedeveriam garanti-la.

A luta pela sobrevivência do profissional é diferente da luta pela sobre-vivência travada pelo assalariado, mas, nem por isso é menos árdua (Engel,1970). Se, por um lado, esse traço é evidenciado pelo descolamento entre avida particular e a vida na organização e também, pelo valor atribuído à qual-idade e ao bom cumprimento das obrigações do trabalho; por outro, afasta oimperativo da realização através do trabalho (da realização profissional) e doreconhecimento da dependência mútua entre a organização e o trabalhador.A atitude profissional emancipou o trabalhador. Ele já não é mais uma peçana engrenagem da produção. É algo exterior. É o ente autônomo; livre, semdúvida, mas impessoal, intercambiável.

Insulamento

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No sentido estrito do termo (Freidson, 2001), existem hoje duas categorias deprofissionais, os que obtêm sua legitimação das organizações — do Estado, decorporações, das instituições, em geral —, cuja autonomia reside na organiza-ção social do trabalho, e os “liberais”, que obtêm sua legitimação dos clientes/públicos a que servem e cuja autonomia está baseada no controle do domíniotécnico. A profissionalização como atitude de resistência ante as pressões do sis-tema buscou a conjunção dessas duas categorias. A primeira vem sendo dadapelas próprias organizações e por uma rede de instâncias formais (associações,conselhos) e informais setorializadas. Regem a segunda o orgulho profissional,decorrente do domínio do métier, o treinamento continuado e o reconhecimen-to expresso nos sistemas de recompensa.

O cerne do profissionalismo contemporâneo é o mesmo do da época deseu surgimento. No entanto, as conseqüências da profissionalização do tra-balho não foram as então esperadas. Como via de sobrevivência espiritualante as pressões da economia e das organizações, o profissionalismo contin-ua sua trajetória em equilíbrio precário. Mas, agora, é arrastado por duasforças mais complexas, a do insulamento da autonomia e a da sujeição às in-stituições que construiu para reparar a solidariedade perdida.

Liberto do jugo das hierarquias, o trabalhador profissionalizado já nãopertence a uma classe, já não integra um estamento. Os profissionais não se cir-cunscrevem ao mesmo estrato econômico. Fora do trabalho, não conservam osmesmos interesses culturais, não vivem no mesmo bairro nem freqüentam osmesmos lugares. O traço que os distingue tem uma origem objetiva, não senti-mental. Este limita o poder burocrático dos gerentes, reforçando o pluralismonas organizações, contrapondo-se à alienação pelo envolvimento na produção erepresenta uma defesa contra a incompetência.38 Num ambiente de grandemutação técnica como o nosso, o profissionalismo não é uma mera nostalgia dotrabalho de ofício. É o anteparo que alguns trabalhadores encontraram paraque pudessem sobreviver à desintegração organizacional e à volatilidade daeconomia. É uma proteção contra o caráter aleatório dos mercados, as insufi-ciências das políticas públicas e o despreparo do empresariado.

No entanto, como mostram claramente os estudos sociológicos (Larson,1977), o profissionalismo enquanto estratégia coletiva tende para um “fecha-mento social” (social closure) dado, fundamentalmente, pela restrição do aces-so a postos de trabalho via certificação legal. Colabora para esse fechamento aexistência de um saber seletivo e legitimado pelo Estado que, como no caso damaioria das profissões que requerem estudos universitários, é apropriado poruma parcela da população que detém e controla um segmento do mercado detrabalho.

38 O profissionalismo não acarreta maior turnover e, parece, causa menos estresse (Bartol, 1979).

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Esses mecanismos do servocontrole profissional — cabe aos profission-ais dizer quem é e quem não é profissional, assim como controlar os seuspares — e a conseqüente criação e reforço de um mercado legalmente re-strito, no qual um serviço só é negociável (marketable) profissionalmente, istoé, não pode ser comprado ou vendido a não ser de e por um trabalhador cer-tificado, transferiu a luta pela sobrevivência na organização para a sobre-vivência nas associações. Ao contrário do que se pensava, as associações,inclusive os sindicatos, não levaram à desprofissionalização. Antes, se tornar-am instituições que visam restaurar os sistemas de exclusão (Raelin, 1989). Ofato é que o trabalhador que, conscientemente ou não, buscava se libertar daspressões do sistema por meio do profissionalismo, apenas deslocou as fontesde pressão, sem que, por isso, conseguisse atenuá-las.

Se o profissionalismo assegura um mínimo de constância às relações en-tre o indivíduo e a organização, um mínimo de racionalidade em face da insen-satez do mundo do trabalho, ele também apresenta riscos ponderáveis, tanto àsobrevivência econômica quanto à do espírito. O nivelamento introduzido pelaautomação está desqualificando o trabalho profissional. Os sistemas computa-dorizados estão permitindo a trabalhadores sem formação especializada exerc-er funções de controle e de produção. O monopólio do saber está perdendoimportância. Isso pode ser socialmente positivo, como a taylorização e o fordis-mo foram, no seu tempo e em certa medida, positivos, por serem democrati-zantes. Mas o profissional, que desde o assentamento das profissões liberaisteve como atributo o contrato efêmero — entre médico e paciente, entre oadvogado e o cliente etc. —, que, ao espraiar-se pelas organizações, carregouconsigo a transitoriedade do convívio, corre agora os riscos inerentes à exacer-bação. No mundo desencantado da racionalidade, na “sociedade McDonald”(Ritzer, 1996), onde o significado do trabalho é medido pelo produto ou peloserviço que se entrega no balcão da economia, as pontes entre a vida e o siste-ma foram levantadas. O que aí está é uma porta que se entreabre para o prove-dor de resultados, para o trabalhador plug-and-play, para o profissional hello-and-goodbye, para todo mundo, para qualquer um.

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