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10 INTRODUÇÃO No campo jurídico, embora seja possível encontrar obras de juristas que tenham se interessado pela relação existente entre a linguagem e o Direito, por exemplo, pode-se afirmar que tal tema ainda comporta muitos estudos e reflexões. Cumpre ressaltar, antes de adentrar ao corpo deste trabalho, que a linguagem jurídica foi empregada como objeto de diálogo, a fim de se estabelecer uma interdisciplinaridade. O Direito será a disciplina “motora”, ocupando o centro do sistema disciplinar, uma vez que a pesquisa encontra-se situada em tal campo. Entretanto, é preciso esclarecer que não é por esta razão que se perde de vista a perspectiva “externa” oferecida pelas Ciências Humanas. Assim, utilizamos de conceitos básicos advindos de disciplinas como a Lingüística, a Semiótica, a Sociologia etc., para analisar e perscrutar a linguagem jurídica. Um enfoque interdisciplinar sempre possibilita uma sistemática permutação de idéias e posições e, no campo jurídico, ele é essencial. Caso contrário estaríamos fadados a um estudo do sistema jurídico segundo seus mecanismos internos, seus paradigmas, eliminando-se, assim, questões fundamentais para o entendimento do pensamento jurídico dominante. Como já apontamos o uso de conceitos semióticos, é necessário mencionar que esta pesquisa se encaixa na proposta de Luis Alberto Warat, denominada “Semiologia do Poder” ou “Semiologia Política”, uma vez que analisa a linguagem como instituição e aponta para uma pragmática do poder. Traçado esse primeiro objetivo do presente trabalho - a interdisciplinaridade, cabe- nos apontar o seu escopo principal: a demonstração de que a linguagem jurídica é fruto de um trabalho lingüístico efetuado por um monopólio, o da competência jurídica. Busca-se, deste

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INTRODUÇÃO

No campo jurídico, embora seja possível encontrar obras de juristas que tenham se

interessado pela relação existente entre a linguagem e o Direito, por exemplo, pode-se afirmar

que tal tema ainda comporta muitos estudos e reflexões.

Cumpre ressaltar, antes de adentrar ao corpo deste trabalho, que a linguagem jurídica

foi empregada como objeto de diálogo, a fim de se estabelecer uma interdisciplinaridade. O

Direito será a disciplina “motora”, ocupando o centro do sistema disciplinar, uma vez que a

pesquisa encontra-se situada em tal campo. Entretanto, é preciso esclarecer que não é por esta

razão que se perde de vista a perspectiva “externa” oferecida pelas Ciências Humanas. Assim,

utilizamos de conceitos básicos advindos de disciplinas como a Lingüística, a Semiótica, a

Sociologia etc., para analisar e perscrutar a linguagem jurídica. Um enfoque interdisciplinar

sempre possibilita uma sistemática permutação de idéias e posições e, no campo jurídico, ele

é essencial. Caso contrário estaríamos fadados a um estudo do sistema jurídico segundo seus

mecanismos internos, seus paradigmas, eliminando-se, assim, questões fundamentais para o

entendimento do pensamento jurídico dominante.

Como já apontamos o uso de conceitos semióticos, é necessário mencionar que esta

pesquisa se encaixa na proposta de Luis Alberto Warat, denominada “Semiologia do Poder”

ou “Semiologia Política”, uma vez que analisa a linguagem como instituição e aponta para

uma pragmática do poder.

Traçado esse primeiro objetivo do presente trabalho - a interdisciplinaridade, cabe-

nos apontar o seu escopo principal: a demonstração de que a linguagem jurídica é fruto de um

trabalho lingüístico efetuado por um monopólio, o da competência jurídica. Busca-se, deste

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modo, destacar os aspectos lingüísticos, políticos, econômicos e ideológicos da linguagem do

Direito.

Como embasamento, foi necessário recorrer a conceitos de renomados autores,

embora de áreas diversas. Cada qual contribuiu para o desenvolvimento de tal pesquisa em

um aspecto do tema, como, por exemplo, Marilena Chauí quanto à noção do discurso

competente e à questão da ideologia, Herbert L. A. Hart no tocante à aplicação do conceito de

textura aberta na linguagem jurídica, Antonio Carlos Wolkmer e Luis Alberto Warat no que

se refere ao aspecto ideológico da teoria e da prática jurídica etc. Contudo, é preciso destacar

dois autores que foram de extrema importância para todo conteúdo deste trabalho: Pierre

Bourdieu e Ferruccio Rossi-Landi. Suas obras são completamente compatíveis com a idéia da

linguagem como trabalho e como mercado. Ferruccio Rossi-Landi a trata de uma maneira

geral. Pierre Bourdieu a aplica ao Direito, quando aborda sobre o poder simbólico existente

neste campo.

Como se observa, a pesquisa realizada no presente trabalho é exclusivamente

bibliográfica. Já quanto à metodologia a ser utilizada, pode-se dizer que foi a dialética, já que

o tema proposto exige um confronto de textos, e requer uma análise lógica, crítica e

argumentativa.

Antes de passarmos à estruturação do trabalho, é relevante fazer uma observação: a

análise proposta no presente trabalho pode ser aplicada tanto a um sistema de modelo

positivista, como para um de modelo pós-positivista, não sendo seus conceitos aqui

incompatíveis. Dessa forma, no texto faz-se referência a autores positivistas, tais como Hans

Kelsen e Herbert L. A. Hart e; por vezes, aos da linha pós-positivista, como Ronald Dworkin

e Humberto Ávila, para os quais regras e princípios são os referenciais da norma.

Feitas essas considerações, apresentamos a estruturação do trabalho de forma

propriamente dita.

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No capítulo 1, foi estabelecida a relação entre a linguagem e o Direito. Assim,

tratou-se da “linguagem do Direito”, abordando-se as áreas de estudo de linguagem que são

úteis e as já aplicadas ao Direito; do “Direito enquanto linguagem”, apresentando-se, como

exemplo, a teoria comunicacional de Gregorio Robles e o enfoque comunicacional do poder

jurídico de Paolo Semama. Além disso, houve a menção, ainda que de forma sucinta, da

história da linguagem jurídica, baseada na transição da oralidade para a escrita, o que deu

ensejo ao fenômeno da codificação.

Já no capítulo 2, foram feitas considerações sobre o monopólio da competência

jurídica. Partindo da idéia da existência do discurso autorizado no Direito, apontam-se os

instrumentos para o exercício legítimo de tal competência. São eles: o acordo, o discurso

oficial, a forma jurídica e a retórica de base.

O capítulo 3, por sua vez, trata da exploração dos significados jurídicos, que é feita

por meio da presença da textura aberta na linguagem jurídica. Discorre-se, ainda, sobre as

vantagens e as desvantagens quanto ao seu uso e sua explicação sob a perspectiva semiótica.

Quanto ao capítulo 4, pode-se dizer que foi abordada a questão do controle dos

discursos jurídicos, assinalando-se os meios utilizados para isso: o hermetismo, a textura

fechada dos textos jurídicos, a obediência ao discurso anterior e os rituais. Também é

apresentado o assunto sob a perspectiva semiótica.

E finalmente o capítulo 5, dedicado à repercussão da linguagem jurídica no campo

social sob três aspectos: a linguagem jurídica como “fruto da ideologia dominante”, como

“fator impeditivo de acesso à justiça” e como “trabalho e mercado”.

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CAPÍTULO 1 - DIREITO E LINGUAGEM

É inegável que a linguagem tem um papel primordial, essencial no mundo jurídico,

já que é instrumento de comunicação em todos os seus estágios: na produção de leis, na

interpretação das leis, nas petições, nas contestações, nas decisões e nas apelações. O

legislador a usa, assim como o advogado, o promotor e o juiz.

Diante disso, podemos afirmar que o Direito é, por excelência, a ciência da palavra.

Em toda profissão a palavra pode ser útil para atender às necessidades de comunicação, mas

no campo jurídico, ela é indispensável, uma vez que é ferramenta de trabalho.

Essa dependência do Direito em relação à linguagem é proclamada por Paulo Nader

(2003, p. 221-222) quando afirma que distorções de linguagem podem afetar a eficácia de

uma norma ou de sua aplicação:

A dependência do Direito Positivo à linguagem é tão grande, que se pode dizer que o seu aperfeiçoamento é também um problema de aperfeiçoamento de sua estrutura lingüística. Como mediadora entre o poder social e as pessoas, a linguagem dos códigos há de expressar com fidelidade os modelos de comportamento a serem seguidos por seus destinatários. Ela é também um dos fatores que condicionam a eficácia do Direito. Um texto de lei mal redigido não conduz à interpretação uniforme. Distorções de linguagem podem levar igualmente a distorções na aplicação do Direito.

Tercio Sampaio Ferraz Júnior (2005, p. 06), por sua vez, trata da relação básica

existente entre Direito e linguagem em três órbitas:

a) podemos dizer, inicialmente, que o direito, enquanto um fenômeno empírico, tem uma linguagem, usando-se a palavra “linguagem” indistintamente para aquilo que os lingüistas chamam de língua e discurso (langue/parole)1; falamos, assim, da linguagem do direito, objeto das várias

1 Outros lingüistas preferem afirmar que tais termos equivalem à língua/fala. Luis Alberto Warat (1995, p. 21-22) explica tais noções, que constituem a base da lingüística construída por Ferdinand de Saussure, da seguinte forma: “[...] a fala seria o conjunto heteróclito das linguagens naturais, fatos sígnicos concretos que enquadram, mas não determinam, o conhecimento que sobre eles tenha. A fala é reconhecida a partir de uma teoria construída para a sua compreensão. A língua, neste nível, seria o objeto científico da lingüística. Não se constitui em uma síntese das diferentes linguagens naturais do mundo, mas em seu significado como sistema. A fala, no ato de seu conhecimento, existe no interior da língua. Ou seja, a realidade sígnica é reconstruída na língua, que

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disciplinas linguísticas, como a semântica, a hermenêutica, etc; b) invertendo-se a fórmula, podemos falar em direito da linguagem, caso em que, ao contrário, esta aparece como objeto das disciplinas jurídicas, pois se trata aqui de questões referentes à própria disciplinação da língua, não no seu sentido lógico ou gramatical, mas jusnormativo, como a linguagem processual, protocolar, etc; c) finalmente, falando, num terceiro sentido, do direito enquanto linguagem, num relacionamento que assimila o direito à linguagem; neste último caso, estamos diante de uma tese filosófica - tese da intranscendentalidade da linguagem - que vai afirmar, de modo geral, que o jurista, em todas as suas atividades (legislação, jurisdição, teorização) não transcende jamais os limites da língua. (grifo nosso).

Diante de tais abordagens possíveis no estudo da relação Direito/linguagem

apontadas por Tercio Sampaio Ferraz Júnior, destacamos duas: a linguagem do direito e o

direito enquanto linguagem.

Passamos então a tratar, de forma propriamente dita, sobre a linguagem do Direito.

1.1 Linguagem do Direito

Para Maria José Constantino Petri (2000, p. 40) a existência da linguagem do

Direito, ou linguagem jurídica, evidencia-se por meio de dois elementos que a constituem:

Há uma linguagem do direito porque o direito dá um sentido particular a certos termos. O conjunto desses termos forma o vocabulário jurídico [...] Há uma linguagem do direito porque o direito enuncia de uma maneira particular suas proposições. Os enunciados do direito dão corpo a um discurso jurídico.

Desse modo, verifica-se a existência de uma linguagem do Direito por dois motivos:

pelo fato do Direito ter um vocabulário e um discurso próprios. O vocabulário jurídico

nasce por oposição à fala. Para a constituição do objeto da lingüística, a língua e a fala devem ser vistas como duas categorias do concreto pensado. Se a língua é o que nos permite compreender a fala, ela só pode ser reconhecida no interior do modelo que a produz ( a língua) Em outras palavras, a fala só adquire objetividade a partir da língua”.

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compreende a reunião de termos que têm um ou mais sentidos jurídicos, incluindo, assim,

segundo Maria José Constantino Petri (2000, p. 40), os termos de “dupla pertinência” (termos

que têm um sentido no uso ordinário e ao menos um sentido diferente no Direito) e os termos

de “pertinência jurídica exclusiva” (termos que não têm nenhum sentido fora do Direito). Já o

discurso jurídico compreende o conjunto dos textos, dos enunciados do Direito. Constata-se

que o discurso é jurídico quando seu escopo é a criação ou a realização do Direito. Esses

enunciados podem ser produzidos tanto na expressão oral como na escrita, embora esta última

forma predomine.

Como já afirmado acima por Tercio Sampaio Ferraz Júnior, a linguagem do direito é

objeto de várias disciplinas. Há vários ramos de estudo da linguagem. A existência de uma

linguagem própria do Direito fez com que esses ramos de estudo da linguagem começassem a

ser aplicados diretamente ao Direito. Dentre elas, destacamos a Semiótica do Direito,

englobando, assim, a Sintaxe, a Semântica e a Pragmática aplicadas ao Direito.

1.1.2 Semiótica do Direito

A ciência que estuda os signos, quaisquer que eles sejam e quaisquer que sejam as

suas esferas de uso, chama-se Semiologia ou Semiótica. O termo “semiótica” vem da raiz

grega semeion, que quer dizer signo.

Segundo Lúcia Santaella (1996, p. 24), esse termo “semiótica” foi introduzido na

filosofia, no fim do século XVII, pelo filósofo empirista inglês John Locke, como designando

o estudo dos signos em geral.

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No início do século XX, na Europa, Ferdinand de Saussure retoma a acepção do

termo, mas prefere denominá-la de Semiologia. Embora tenha criado tal denominação, sua

preocupação foi a de tão somente apontar a necessidade de uma ciência que estudasse a vida

dos signos no seio da vida social que englobasse a lingüística, já que sua atenção estava

voltada à linguagem verbal. Ferdinand de Saussure, como lingüista, concebeu a “Semiologia”

como uma disciplina que seria “[...] parte da Psicologia Social e, conseqüentemente, da

Psicologia Geral” (SAUSSURE, 2001, p. 24).

Esse termo, por sua vez, foi utilizado também por Charles Sanders Peirce, na

América do Norte. Na verdade, foi ele quem ergueu os fundamentos para que a “Semiótica”

se estabelecesse como ciência. Por ter sido filósofo, lógico e matemático, concebeu a

Semiótica como uma disciplina que se confundia com a Lógica2: “Em seu sentido geral, a

lógica é, como acredito ter mostrado, apenas um outro nome da semiótica [...], a quase-

necessária, ou formal, doutrina dos signos” (PEIRCE, 1977, p. 45).

Mas tanto a Semiologia, quanto a Semiótica tinham como objeto de estudo o signo.

Dessa forma, foram elaboradas definições para que se pudesse entender o que é um signo.

Ferdinand de Saussure (2001, p. 79-81) pensa o signo como uma unidade lingüística,

definindo-o como a combinação do conceito com sua imagem acústica. O signo corresponde à

menor unidade de um sistema de linguagem, sendo provido de um conteúdo semântico

(significado, representação mental, fragmento da experiência, aspecto relacional etc) e de uma

manifestação fônica (significante, imagem acústica, conjunto sonoro). Tornou-se usual, por

2 Quanto à identificação da Lógica com a Semiótica, Lauro Frederico Barbosa da Silveira (2007, p. 18-19) pondera que “[...] convém que compreendamos que a Lógica para Peirce ocupa dois lugares em seu sistema de ciências. Ela pode ser considerada uma parte ou um ramo da Matemática, somente se ocupando de funções estritamente formais de natureza dedutiva que mostram que uma determinada construção está racionalmente bem fundada. Nesses casos, Peirce não acrescenta à matemática qualquer outro conhecimento, mas confere àquela ciência o exercício das funções lógicas de que necessita. À lógica como função matemática, Peirce denomina álgebra lógica, ou lógica formal, ou mesmo lógica dedutiva. [...] A Lógica propriamente dita, como ciência sui generis, contudo, não é estritamente redutível à matemática, à mera formalidade. E é ela que Peirce irá identificar com a Semiótica”.

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conseqüência, os termos significado e significante para explicar a constituição de um signo

lingüístico.

Outros termos foram utilizados posteriormente, mas sempre remetem aos sentidos

designados por Ferdinand de Saussure.

Um exemplo seria a definição de signo dada por Rudolf Carnap (apud WARAT,

1995, p. 39). Para ele, o signo é constituído por dois elementos: indicador, situado no plano

da expressão, de natureza sempre material (som, grafia, gesto), e o indicado, composto pela

situação significativa (fenômeno, fato, situação do mundo), que conseguimos comunicar

mediante o indicador. Como se vê, o referido autor utiliza-se também de uma realidade

bifásica: o indicador corresponde ao significante, e o indicado, ao significado.

Já na semiótica de Charles Sanders Peirce, as definições não se restringem à

linguagem verbal; pelo contrário, aplicam-se a toda e qualquer linguagem. O signo pode ser

entendido, nessa perspectiva, tomando como ponto de partida as categorias do pensamento

(primeiridade, secundidade, terceiridade), que são “modos de apreensão dos fenômenos na

consciência” (SANTAELLA, 1996, p. 25).

Lúcia Santaella (2006) explica esses modos de apreensão dos fenômenos na

consciência da seguinte forma:

Consciência em primeiridade é qualidade de sentimento e, por isso mesmo, é primeira, ou seja, a primeira apreensão das coisas, que para nós aparecem, já é tradução, finíssima película de mediação entre nós e os fenômenos. Qualidade de sentir é o modo mais imediato, mas já imperceptivelmente medializado de nosso estar no mundo. Sentimento é, pois, um quase-signo do mundo: nossa primeira forma rudimentar, vaga, imprecisa e indeterminada de predicação das coisas. (p. 46). [...] meras qualidades não resistem. É a matéria que resiste. Por conseguinte, qualquer sensação já é secundidade: ação de um sentimento sobre nós e a nossa reação específica, comoção do eu como estímulo. (p. 49-50). [...] Finalmente a terceiridade [...] corresponde à camada de inteligibilidade, ou pensamento em signos, através da qual representamos e interpretamos o mundo. (p. 51).

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Lauro Frederico Barbosa da Silveira (2004, p. 25), por sua vez, apresenta tais

categorias, distinguindo-as em:

Três modos distintos de ser apresentam-se à mente: a potencialidade, que Peirce denominará Primeiridade, presente naquilo que é livre, novo, espontâneo e casual; a existência ou factualidade, denominada por Peirce Secundidade, característica do esforço, da resistência, da ação e reação, da alteridade - como presença do outro -, da negação e da existência; e, por fim, a generalidade, denominada por Peirce Terceiridade, característica do contínuo, do pensamento e da lei.

A Semiótica, sob essa perspectiva, estuda a realidade fenomênica, por meios dos

chamados “sistemas sígnicos”. Os signos formam sistemas, com o escopo de expressar

algumas características ou alguns aspectos de uma particular “modelização do mundo”.

Para um melhor entendimento, Charles Sanders Peirce e Charles Morris (apud

LOPES, 1997, p. 17) propunham uma descrição dos sistemas sígnicos, levando-se em

consideração os três tipos de relações: as relações inter-sígnicas, as relações de um signo para

com o seu objeto e as relações do signo para com os seus usuários. Essa tripartição dos

sistemas sígnicos semióticos, acabou por estabelecer três níveis de análise da semiose: a

sintaxe, a semântica e a pragmática. Constituíram-se, desse modo, as partes da Semiótica, que

passou a ser entendida como uma “teoria geral de todos os signos”; uma espécie de

metalinguagem.

Quanto a esses três níveis de análise, é importante ressaltar que estes são

coexistentes, mas que, de uma determinada forma, estão hierarquizados, já que o nível

semântico engloba o nível sintático que é, por sua vez, englobado pelo nível pragmático. Sob

esse prisma, Pragmática é a parte mais complexa e mais abrangente da Semiótica.

Vejamos cada um desses níveis, ainda que de forma sumária.

A Sintaxe tem como objeto de estudo as relações que um determinado signo pode

manter para outros signos pertencentes a um mesmo enunciado, o que pressupõe um conjunto

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de signos e um conjunto de regras. De maneira geral, pode-se afirmar que as regras sintáticas

resumem-se em regras de formação e de derivação.

Já a Semântica trata da relação do signo com os objetos a que se refere, isto,

enquanto veículo de informação. O problema primordial desse campo de análise é o da

verdade. Uma informação só pode ser considerada semanticamente verdadeira se for

verificável no mundo, ou seja, se possui um referente empírico. A verdade, sob esse ponto de

vista, torna-se uma condição ou até um critério para a aceitação e legitimação da informação.

A Pragmática, por sua vez, refere-se à relação do signo com o seu remetente e

destinatário, isto é, com seus usuários, como já foi afirmado. O foco de seu estudo está na

análise dos modos de significar, nos usos e nas funções da linguagem. Parte-se da idéia de que

existe uma significação de base, mas que esta pode sofrer mudanças causadas pelo contexto

da situação comunicativa e pelas intenções dos usuários.

Ainda sobre os sistemas sígnicos é importante destacar o posicionamento de Edward

Lopes quanto ao caráter de tais estudos.

O referido autor (1997, p. 16) afirma que, neste estudo sígnico, a Semiótica pode

constituir-se como “a ciência das ideologias” (idéia defendida também por Rey-Debove) e, ao

mesmo tempo, como a ciência das retóricas. No primeiro ponto de vista, estaríamos diante do

seu plano de conteúdo, e no outro, no seu plano de expressão.

Está evidenciado o caráter ideológico no fato do signo ser a expressão da relação do

homem com o mundo que o cerca, servindo de suporte para a comunicação, para a interação e

para a compreensão entre as pessoas. Seja na fase de aprendizagem da língua natural, ou ao

longo de sua história de vida, o homem interioriza os valores da sociedade da qual é membro,

assimilando também a sua ideologia (entendida aqui como um sistema de valores grupalmente

compartilhados ou como “ideologia do cotidiano” - BAKHTIN, 2004, p. 118). A língua

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estaria, assim, a serviço de controle e aplicação de modelos comportamentais. Por essa razão,

usa-se o termo “sistemas modelizantes”.

A função da Semiótica, sob esse aspecto, deve ser de levar à tomada de consciência

desses sistemas modelizantes. É o que afirma Edward Lopes (1997, p. 17):

É claro que os falantes dessas linguagens não têm consciência da complexa interação de fatores psicossociais envolvidos no mais simples processo de comunicação. E esta é, talvez, a mais importante tarefa dos estudos semióticos: fazer-nos tomar consciência da condição mental (e cultural) da existência humana.

Feitas essas considerações sobre a Semiótica, passamos a discorrer, especificamente,

sobre a linguagem jurídica e como esses estudos supramencionados são a ela aplicados.

1.1.2.A - Sintaxe do Direito

A Sintaxe examina os signos lingüísticos que o direito emprega tendo em vista sua

função, estrutura, estilo, apresentação etc.

Sobre tal assunto, Luis Alberto Warat (1995, p. 40) afirma que, do ponto de vista

jurídico, uma expressão está sintaticamente bem formada quando o enunciado acerca de uma

ação encontra-se deonticamente modalizado.

Os meros operadores do Direito são muito apegados à dimensão sintática, quando

buscam a norma superior que valida a inferior, por conseqüência, dão ênfase à relação entre

signos de um preceito legal.

Uma concepção formalista do direito tende a ver a linguagem jurídica como

unicamente constituída por critérios sintáticos.

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1.1.2.B - Semântica do Direito

Quanto à Semântica, do seu problema primordial, que é a busca pela verdade,

decorre a sua finalidade: a procura pelo significado correto dos signos, extraindo, ao máximo,

toda a imprecisão natural dos termos.

Mas isso não quer dizer que a Semântica aplicada ao Direito limita-se apenas a

dicionários técnico-jurídicos (que informam os significados que se agregam aos termos

jurídicos); pelo contrário, quando se faz uma análise semântica, por exemplo, de um

dispositivo legal, isso implica na busca de sua conotação e denotação. A imprecisão quanto à

conotação se revela pela ambigüidade; já quanto à denotação, pela vagueza.

A ligação da Semântica com o Direito é uma questão evidenciada na obra de Ronald

Dworkin. Em seu livro “O império do Direito” introduziu um item denominado “teorias

semânticas do direito”. Tal autor disserta sobre a clareza da linguagem, apregoando os tipos

conhecidos de obscuridade lingüística: termos ambíguos, termos vagos e termos abstratos.

Segundo ele, as teorias semânticas pressupõem que, tanto os advogados, quanto os

juízes, utilizam-se basicamente dos mesmos critérios (embora esses sejam ocultos e

despercebidos) para decidir quando as proposições jurídicas são falsas ou verdadeiras. E

acrescenta:

John Austin, advogado e acadêmico inglês do século XIX, dizia que uma proposição jurídica é verdadeira no interior de uma determinada sociedade política desde que transmita, corretamente, o comando precedente de alguma pessoa ou grupo que ocupe uma posição soberana em tal sociedade. (DWORKIN, 1999, p. 41).

Como se observa, os critérios semânticos apontam para a questão da ideologia.

Luis Alberto Warat (1995, p. 43), por sua vez, acredita que a análise semântica não

deve ser considerada relevante para o Direito, uma vez que “[...] os critérios de significação

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que a dogmática constrói estão mais vinculados à eficácia e à legitimidade do sistema jurídico

que às condições de validade e de verdade”. Mas o que se verifica é que os operadores do

Direito são muito apegados a tal dimensão semântica e seguem essa construção dogmática.

As condições de validade é a preocupação de Hans Kelsen; já as de verdade, é a da

ciência do Direito. Ou seja, verdadeiros ou falsos são os predicados de juízos ou enunciados

da ciência do Direito; válidos ou inválidos são os predicados de enunciados normativos.

1.1.2.C - Pragmática do Direito

A Pragmática estuda a vinculação do signo com seus usuários, remetendo sempre ao

contexto, ou seja, à situação comunicacional.

Esse aspecto é de extrema relevância para o Direito, porque uma análise pragmática

enfatiza o Direito como fato social, além de considerar a relação existente entre a pessoa que

fala e o que ela está falando. É por essa via, por exemplo, que podemos verificar se o discurso

é autorizado ou não, assunto a ser abordado posteriormente.

Segundo Oscar Correas (1995, p. 69) é, ainda, por esse critério que podemos

enumerar a diversidade de discursos do direito: legal, jurisprudencial, científico e comum3.

Quando se fala em “Pragmática e Direito”, observa-se que existem poucos trabalhos

nessa área.

Seguindo a classificação feita por Edward Lopes quanto ao caminho que o estudo da

Semiótica pode conduzir, podemos dizer que temos a Pragmática sendo aplicada ao Direito

em dois planos: no plano do conteúdo e no plano da expressão.

3 Oscar Correas (1995, p. 69) faz questão de indicar que é o caso da tipologia proposta por Jerzi Wróblewski em “Lenguage jurisprudencial”.

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No plano do conteúdo, como exemplo, podemos mencionar a proposta de Luis

Alberto Warat, denominada “Semiologia do Poder” ou “Semiologia Política”.

Tal proposta utiliza-se da análise pragmática, a fim de reivindicar a existência de

uma significação histórica, apontando a função social do signo. É a construção de uma

pragmática do poder, pois analisa a linguagem como uma instituição. A ênfase não é no

estudo do signo isoladamente, mas em todo o discurso no qual está inserido.

As finalidades dessa pragmática do poder são, explicitamente, destacadas:

[...] a semiologia do poder pretende analisar a significação como instrumento de controle social, como estratégia normalizadora e disciplinar dos indivíduos, como fórmula produtora de consenso, como estágio ilusório dos valores de representação, como fetiche regulador da interação social, como poder persuasivo provocador de efeitos de verossimilhança sobre as condições materiais da vida social, como fator legitimador do monopólio da coerção e como fator de unificação do contraditório exercício do poder social. (WARAT, 1995, p. 18).

Desse modo, a Semiótica toma os rumos apresentados e desejados por Edward

Lopes: como “a ciência das ideologias”.

Nesse sentido é a afirmação de Mikhail Bakhtin (2004, p. 32): “O domínio do

ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o

signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor

semiótico.” Para ele, o signo é criado por uma função ideológica precisa e permanece

inseparável dela.

Esse tipo de concepção é de extrema relevância para o Direito, porque revela o

poder social dos discursos e suas funções.

No entanto, ela é fácil de ser marginalizada, porque se revela como um

contradiscurso à dogmática jurídica. Os positivistas gostam de silenciar o fato de que a

ideologia é um fator indissociável da linguagem, em especial, da linguagem jurídica. Um

contradiscurso, como o supracitado, leva à reflexão e acaba por exigir leituras ideológicas dos

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discursos que se pretendem neutros e científicos. Estaria desmistificada, portanto, a

univocidade e a neutralidade pretendida pela “ciência do Direito”.

Já no plano de expressão, temos a Semiótica firmando-se como a ciência das

retóricas.

A Semiótica passa a ter esse sentido porque, nessa ótica, centraliza sua investigação

na organização discursiva, em especial, nos procedimentos persuasivos inerentes à relação

entre emissor e receptor. Aliás, a busca por formas de persuasão e convencimento por meio da

argumentação constitui seu objetivo específico.

Por conseqüência, temos a elaboração de estratégias, reveladas em técnicas e

métodos, para a interpretação de tais discursos.

Como exemplos de utilização desse plano de expressão da Semiótica, temos as

idéias de Chaïm Perelman e de Theodor Viehweg.

No Brasil, podemos citar Tercio Sampaio Ferraz Júnior que segue o ponto de vista

tópico-retórico de Theodor Viehweg.

Em sua obra ”Direito, retórica e comunicação”, Tercio Sampaio Ferraz Júnior

coloca que o discurso envolve a relação do signo com os seus usuários - orador e ouvinte,

distinguindo dois graus de situação discursiva: o primeiro que revela o discurso como

discussão, resumindo-se no ato de perguntar e responder e; um segundo, em termos de

reflexividade, em que a discussão volta-se sobre si mesma. A reflexividade é uma indagação

que se perfaz na própria discussão, a fim de dar sustentabilidade e de cumprir o dever de

prova que toda ação lingüística exige. Está demonstrada, por essa via, a idéia de

argumentação, que tem como escopo “[...] provocar ou acrescer adesão dos espíritos às teses

que se apresentam ao seu assentimento” (FERRAZ JÚNIOR, 1997, p. 10). Além de tais

considerações, ainda classifica o discurso em monólogo ou diálogo, conforme a reação do

ouvinte, afirmando que são modos de discursar.

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Ainda que de forma sumária, as idéias apresentadas na referida obra demonstram

bem o plano da expressão da Semiótica, quando apresentam tais elementos: a problemática

emissor/receptor, a procura pela clareza conceitual e o culto ao método.

1.2 Direito enquanto linguagem

Assumindo uma perspectiva mais ampla, “[...] podemos até indagar se o direito não

é ele mesmo uma linguagem” (PETRI, 2000, p. 39).

Sob essa linha de raciocínio em que direito é linguagem, deparamo-nos com uma

nova tese filosófica a fim de explicar o fenômeno jurídico.

Tercio Sampaio Ferraz Júnior (2005, p. 07) recusa-se à redução total do direito à

linguagem, ainda que no sentido amplo de comunicação; diferentemente de Gregorio Robles e

Paolo Semama, que elaboram suas análises pautadas nessa premissa. Dessa forma, para

exemplificar a perspectiva ora proposta, discorremos sobre os fundamentos da teoria

comunicacional do Direito de Gregorio Robles e do enfoque comunicacional do poder

jurídico de Paolo Semama.

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1.2.1 A teoria comunicacional do Direito de Gregorio Robles

Pode-se afirmar que esta teoria repousa na combinação de pressupostos da filosofia

da linguagem, do método analítico e do hermenêutico. É uma proposta de programa para uma

nova Teoria do Direito, partindo da premissa que o direito é um grande fato comunicacional.

Como o direito é visto como um sistema de comunicação, a análise de todo esse

fenômeno parte do estudo do emitente, da mensagem e do receptor, devidamente integrados

em todo esse processo comunicacional.

É interessante que a linha de pensamento traçada na obra de Gregorio Robles

diferencia-se por não abordar o Direito tão somente como ordem coativa da conduta humana,

ou como meio de controle social, ou simplesmente como um ideal de justiça. Tal teoria

assume, de forma perceptível, o caráter lingüístico do direito, tendo como centro de sua

investigação os discursos que são produzidos no campo jurídico. O Direito seria, assim, um

meio de comunicação social.

Sendo o discurso o tema central de análise, parte-se da noção de texto. Isto pode ser

comprovado nas suas primeiras considerações acerca das bases dessa teoria:

A teoria comunicacional concebe o direito como um sistema de comunicação cuja função pragmática é organizar a convivência humana mediante, basicamente, a regulação das ações. Outra forma de expressar que o direito é um sistema de comunicação se obtém a partir da afirmação de que o direito é texto. Diversamente de outros textos, como o literário ou o histórico, o jurídico é um texto organizador-regulador. Cada ordenamento jurídico é um texto gerado por atos de fala, que denominamos decisões jurídicas. As decisões geram texto num processo inacabado até que o ordenamento, por qualquer razão, desapareça. As decisões produzem texto verbalizado cujas unidades elementares chamamos de normas jurídicas. Estas normas jurídicas não são proporcionadas diretamente pelas decisões, mas, em verdade, constituem o resultado de uma reconstrução hermenêutica que opera sobre o material bruto do ordenamento. O conjunto das normas forma o sistema jurídico, conceito paralelo ao de ordenamento, mas que não se confunde com ele

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porque o sistema também é produto da reconstrução hermenêutica do material bruto que o ordenamento é. As decisões e as normas se articulam em torno de unidades mais amplas que estas últimas, chamadas instituições jurídicas. Estas refletem o aspecto organizador do texto jurídico, que não pode ser entendido como mera agregação de normas. (ROBLES, 2005, p. 01-02).

Como se pode observar, Gregorio Robles faz uma distinção muito importante entre

ordenamento e sistema, partindo da idéia de “texto”. Idéia essa que pauta todos os seus

ensinamentos: o ordenamento é o texto jurídico bruto, resultante da atividade da decisão; já o

sistema seria o texto jurídico elaborado, graças ao trabalho da dogmática jurídica.

O autor usa duas siglas ORD e SIS para designar, respectivamente, ordenamento e

sistema. Sobre tal assunto, o autor deixa claro o trabalho da dogmática jurídica a fim de

refinar o texto jurídico bruto ou simplesmente material jurídico - o ORD - direito produzido

explicitamente nas decisões jurídicas das autoridades competentes, gerando o texto jurídico

elaborado - o SIS.

As autoridades competentes possuem poderes jurídicos para produzir o ORD, mas a

dogmática jurídica (ou ciência do direito em sentido estrito) tem o poder de construir o

sistema. Este último poder é mais amplo, porque é capaz de aperfeiçoar o ORD. Além disso,

sua importância também pode ser comprovada no fato de que

[...] o SIS reflete melhor que o ORD as normas e instituições de um direito positivo concreto. O ORD é material bruto, repleto de lacunas, contradições e omissões. O SIS é o mesmo direito gerado no ORD, mas em sua plenitude ou perfeição expositiva. (ROBLES, 2005, p. 07).

Além desses primeiros conceitos, ressalte-se que o autor trabalha com três níveis de

atividade: a decisão, a norma e as instituições.

A prova plena de que o direito é texto está no fato de o ordenamento poder ser

verbalizado, suscetível de ser escrito, como o próprio autor faz questão de frisar:

A prova palpável de que o direito é texto está em que todo ordenamento jurídico é suscetível de ser escrito, isto é, de ser convertido em palavras. Até mesmo as normas que não nascem escritas, aquelas que são

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consuetudinárias, têm essa característica. O direito é linguagem no sentido de que a sua forma de expressão consubstancial é a linguagem verbalizada suscetível de ser escrita. Isto aparece especialmente no direito moderno, que já nasce escrito. (ROBLES, 2005, p. 02).

Como texto, o direito seria, assim, suscetível das análises típicas de qualquer outro

texto, como por exemplo, aquelas realizadas pela sintática, semântica e pragmática.

Um outro conceito que tem ênfase na teoria comunicacional do Direito é a de

decisão. É esta que produz o direito; é a sua fonte, uma vez que “sem decisão não há norma

nem instituição, não há vida jurídica” (ROBLES, 2005, p. 03), constituindo, dessa forma, “o

elemento dinâmico do direito” (ROBLES, 2005, p. 03).

Segundo Gregorio Robles (2005, p. 03), as decisões podem ser divididas em extra-

ordenamentais (ou extra-sistêmicas) e em intra-ordenamentais (ou intra-sistêmicas). A decisão

extra-sistêmica equivale à decisão constituinte; já as outras, nas decisões constituídas, que

pressupõe a existência da primeira.

Assim, a decisão constituinte é a que cria ou constitui o ordenamento, uma vez que

“Sem decisão constituinte não há constituição, e sem constituição não há ordenamento, nem

sistema” (ROBLES, 2005, p. 04).

O resultado dessa decisão geradora, inicial, é a constituição, englobando o conjunto

de normas e de instituições. É de suma importância destacar, como faz Gregorio Robles

(2005, p. 04), o conteúdo mínimo da decisão constituinte, que é a determinação da autoridade

máxima:

[...] a decisão constituinte se limita a estabelecer quem manda na nova ordem, isto é, a autoridade máxima geradora de normas, a instituição da qual dependem as decisões intra-sistêmicas. O primeiro ato de comunicação necessário numa sociedade é o que determina quem é o soberano (para utilizar o termo clássico da teoria política). Uma vez assinalado o soberano, o ordenamento está constituído. Falta, então, apenas que o soberano comece a funcionar, produzindo novas decisões.

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A constituição, por conseguinte, possui critérios formais e materiais, que equivalem,

respectivamente, à forma de governo e aos princípios de justiça. Aliás, “[...] os dois aspectos

são inseparáveis, porque a determinação da forma de governo já implica uma determinada

concepção da justiça” (ROBLES, 2005, p. 04).

Feitas as devidas considerações sobre a decisão extra-sistêmica, resta-nos comentar

algo sobre as decisões intra-sistêmicas: estas equivalem ao que a doutrina tradicional costuma

denominar de fontes do direito.

Nesse ponto, faz-se uma crítica a esta expressão metafórica, já que, na verdade,

esconde o fato de as normas serem produto das decisões. O uso dessa expressão é capaz de

dissimular a verdadeira realidade de toda produção normativa.

Como o “direito é a razão histórica institucionalizada e verbalizada em textos”

(ROBLES, 2005, p. 11), a teoria comunicacional do direito afirma que o estudo dogmático de

um ordenamento jurídico concreto só é possível se centrado no estudo das instituições e não

nas normas, uma vez que

As normas não vivem isoladas. Pertencem ao sistema e sempre fazem parte de alguma instituição. Se metaforicamente é possível dizer que as normas são células do organismo jurídico que é o sistema, as instituições deveriam ser comparadas a órgãos ou tecidos, não existem normas que não pertençam a instituições.

Diante das afirmações no trecho acima, pode-se inferir que a norma jurídica

constitui uma unidade do texto jurídico elaborado denominado de sistema. Gregorio Robles

(2005, p. 11) a define como

[...] proposição lingüística, pertencente a um sistema de proposições que expressa um ordenamento jurídico, dirigida (por seu sentido) direta ou indiretamente a orientar a ação humana.

De fato, aparece na definição de norma jurídica dada acima a dualidade sistema-

ordenamento, além da vinculação à ação. Mas ressalte-se que há normas que têm relação

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indireta com a ação. São os casos, por exemplo, de normas que criam órgãos, estabelecem

competências etc. O que se pode afirmar, portanto, é que “a norma sempre tem um sentido

diretivo ou prescritivo” (ROBLES, 2005, p. 12).

Partindo desses casos, o autor propõe um modelo, uma classificação simples de

normas: as indiretas e as diretas da ação. As normas diretas da ação se diferenciam funcional

e lingüisticamente em três tipos: normas procedimentais - são aquelas que estabelecem os

procedimentos em que consistem as ações, geralmente podem ser expressas mediante o verbo

“ter que”; normas potestativas - suscetíveis de serem expressas mediante o verbo “poder” e

não indicam a possibilidade de realizar uma ação, mas o fato de estar o sujeito autorizado a

realizá-la e; por fim, as normas deônticas, que são aquelas que estabelecem os deveres e que

podem expressar-se mediante o verbo “dever”.

Dentro dessas últimas normas, as deônticas (em que ação pelo ângulo do dever

torna-se conduta), há uma subdivisão, a saber: as normas de conduta propriamente ditas, as

normas de decisão e as normas de execução. Gregorio Robles (2005, p. 17) as explica da

seguinte maneira:

A norma de conduta propriamente dita é aquela que impõe, de maneira direta, um dever ao destinatário (por exemplo, a que proíbe o homicídio). A norma de decisão é que impõe a um órgão um dever de decidir a imposição de uma sanção ao infrator de uma norma de conduta propriamente dita. Por exemplo, a norma que, dirigida ao juiz, lhe impõe o dever de ordenar ao órgão de execução que imponha uma determinada sanção ao infrator da norma proibitiva do homicídio. Por último, a norma de execução é que expressa o dever do órgão de execução de realizar a ação consistente em impor efetivamente a sanção. A coercitividade do direito exige que o sistema jurídico possua normas deste último tipo. Se não houvesse normas de execução, não se poderia dizer que a coerção é um elemento essencial do direito.

Entendemos que acima foram traçadas todas as bases e os principais conceitos

concernentes à teoria comunicacional de Gregorio Robles. Assim, passo a comentar porque

tal teoria é muito relevante.

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Trata-se de uma teoria que trabalha com o caráter lingüístico do Direito. Em razão

disso, vê as normas jurídicas enquanto mensagens produzidas pela autoridade competente -

assunto este que será abordado oportunamente. Essas mensagens são prescritivas e têm como

escopo orientar o comportamento das pessoas, estabelecendo valores. Dessa forma, é uma

teoria que não é incompatível com as teses sociológicas (o direito como fato social), muito

menos com as ideológicas (o direito como fruto de ideologias).

Além disso, apresenta o direito como uma ciência construtiva e prática, uma vez que

apresenta a linguagem do direito como uma construção criativa dos juristas. Nesse sentido é a

afirmação de Gregorio Robles (2005, p. 09) quando fala sobre a linguagem do ordenamento e

a do sistema:

O ordenamento é o texto que resulta da linguagem criativa das autoridades, que são plurais e muitas vezes isoladas umas das outras. Trata-se de um texto submetido à motorização e à pressa. Sua linguagem é deficiente e precisa de uma reelaboração refletiva que converta o material diverso numa ordem definitiva.É exatamente nisto que consiste o sistema, a construção do ordenamento em linguagem científica. Os juristas não são descritores da realidade do direito, mas construtores criativos dela. A linguagem do direito é a linguagem dos juristas.

Tal construção é fruto, portanto, de um trabalho hermenêutico realizado pela

dogmática jurídica.

1.2.2 O enfoque comunicacional do poder jurídico de Paolo Semama

A obra de Paolo Semama trata da “Linguagem e poder”, tema bastante amplo.

Entretanto, podemos afirmar que tal obra é relevante para o estudioso do Direito, uma vez que

a segunda parte é dedicada à análise do poder jurídico.

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Segundo o referido autor (1981, p. 91), o exercício do poder realiza-se em dois

planos: por meio de contatos diretos, quando o poder se identifica com a força; e por meio do

uso de comunicações, momento em que o poder pode ser regulado. Esse último poder tende a

contrapor-se ao poder exercido por meio da força; mas, apenas o poder jurídico é capaz de

organizar ambos os poderes:

[...] toda ordenação jurídica é, em larga escala, constituída de comunicações normativas, regulamentadas entre si tanto por relações de força, quanto por outras comunicações, também estas constituindo expressão do poder de seus operadores. (SEMAMA, 1981, p. 93).

É importante ressaltar que, para o presente trabalho, interessa-nos, o enfoque

comunicacional dado a este poder. Embora Paolo Semama afirme que “[...] certamente os

fenômenos jurídicos não são apenas lingüísticos”, é possível vislumbrar que as características

e elementos do direito que são apresentados em seu livro são no sentido de “direito enquanto

linguagem”:

Em outros termos, consideremos que a organização do poder forme uma unidade com a organização da linguagem e que, portanto, a linguagem e o poder existam um em função do outro, especialmente quanto o poder se faz direito. (SEMAMA, 1981, p. 108).

Esse traço comunicacional pode ser verificado em suas definições de direito, de

normas jurídicas, de ordenação jurídica etc.:

O poder regulamentado, ou seja, o poder exercido por meio de comunicações que recebem uma comunicação de outras comunicações que já atingiram uma eficácia social, é o direito. As comunicações regulamentadoras do poder são as normas, e a regulamentação tem por objeto as relações que se estabelecem entre operadores, entre sujeitos, e entre uns e outros. As comunicações regulamentadoras que possuem eficácia social, as normas jurídicas, extraem tal eficácia do fato de o poder, exercido por seus operadores, consistir em um controle sobre as comunicações intersubjetivas suscetíveis de influir sobre as representações da vantagem social e da subordinação ao controle das vantagens individuais. Quando um conjunto de relações que concorrem para a produção e manutenção de certas situações é, por sua vez, regulado por normas cujo respeito assegura a funcionalidade do complexo, configura-se uma instituição. Cada instituição e cada execução dos seus atos constituem a manifestação empírica do poder regulamentado ou direito. Por isso, pode-se

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também dizer que o direito é o poder, exercido regularmente, de regulamentar relações diretas e induzidas através de normas tornadas eficazes pelas instituições. (SEMAMA, 1981, p. 92). (grifo nosso). [...] pode-se propor a afirmação de que a norma jurídica tem por objetivo a proibição, a obrigação ou a faculdade de produzir determinadas comunicações normativas. (SEMAMA, 1981, p. 103). (grifo nosso). [...] o poder jurídico é somente aquele de quem impõe eficazmente a uma sociedade o uso de algumas comunicações, proibindo outras. Assim, aquelas comunicações sobre cuja oportunidade não se tiver tomado uma decisão serão consideradas juridicamente desqualificadas. Daí, ocorre que, para uma norma, a qualificação de jurídica não pode depender do destinatário. (SEMAMA, 1981, p. 104). (grifo nosso). [...] o direito como organização do poder obtida através da organização das comunicações, principalmente das comunicações normativas, [...]. (SEMAMA, 1981, p. 108). (grifo nosso).

Como se pode observar, os trechos supracitados apontam para a adoção de uma

visão lingüística e comunicacional do direito, da mesma forma que a da obra de Gregorio

Robles. Aliás, há muitos pontos comuns: como o destaque acima à presença da “decisão”, ou

ainda, quando Paolo Semama critica o fato de o fundamento do direito ser centralizado na

norma e não na relação jurídica ou nas instituições:

Por outro lado, o fato de que, para haver uma relação jurídica, deve ocorrer uma comunicação normativa, levou a crer que a experiência jurídica é essencialmente uma experiência normativa e que, como fundamento do direito, se coloca exclusivamente a norma e não a relação ou a instituição. [...] Do outro lado, as origens da relação jurídica só podem ser encontradas através de pesquisas da filosofia da linguagem ou da comunicação, [...]. (SEMAMA, 1981, p. 101).

Aliás, o referido autor (1981, p. 108-109) evita entender o direito sob uma dimensão

unilateral, adotando, assim, os três critérios mais usados para distinguir os fenômenos

jurídicos dos outros: relação, norma e instituição. Por isso, ele define a ordenação jurídica da

seguinte maneira:

[...] uma ordenação jurídica é um conjunto de institutos, relações e normas, isto é, de comportamentos e de comunicações que visam a assegurar a manutenção das vantagens do poder com o menor dispêndio de energia necessária ao seu exercício, dentro de todo o complexo das intersecções de conjuntos de eventos humanos que se verificam no âmbito espacial que a própria ordenação define. (SEMAMA, 1981, p. 109).

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Outra questão importante abordada por Paolo Semama (1981, p. 113) é quanto à

inclusão da intencionalidade como um dos elementos do direito:

Dever-se-á, portanto, incluir entre os elementos do direito a intencionalidade, o que significa negar a possibilidade de uma teoria pura do direito [...] A intencionalidade aparece, assim, como um termo essencial para fundar uma teoria geral da comunicação; e, sendo inevitável que uma teoria jurídica que adota os mesmos termos de fundo (poder, evento, vantagem, etc.) tenha uma relação funcional com a teoria lingüística, não será considerado espúrio o termo intencionalidade, mesmo na própria teoria jurídica. Na realidade, não se pode ter direito sem comunicações, nem comunicações sem intencionalidade.

Há, na citação acima, uma crítica à teoria pura do direito. Posteriormente,

encontramo-la, ainda que de forma mais clara, sob esse aspecto da “intencionalidade”:

Mas não parece útil [...] diante dos fatores jurídicos, uma teoria de pura metodologia para a qual a única tarefa de interpretação consiste em determinar o significado das normas e das disposições em virtude de métodos lógicos, sem nunca se referir às finalidades do texto. (SEMAMA, 1981, p. 142).

Diante de tais considerações, podemos afirmar que as idéias prestadas por Paolo

Semama também são um exemplo de um enfoque em que o Direito e a Linguagem são

indissociáveis.

1.3 História da linguagem jurídica

Ao iniciarmos esse item, é importante advertir que se podem seguir duas linhas de

análise: uma “história da linguagem jurídica” e uma “história pela linguagem jurídica”.

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Todas as vezes que precisamos pesquisar sobre a história de um conceito a

ferramenta mais utilizada é a própria linguagem; é o que justifica uma “história pela

linguagem jurídica”.

A língua e os discursos limitam e definem o nosso conhecimento do mundo. Essa

perspectiva de investigação aponta para a historicidade das palavras. Nesse sentido é a

afirmação de Agostinho Ramalho Marques Netto também ressalta tal historicidade das

palavras (1993, p. 72):

Os sentidos contemporâneos de uma palavra às vezes recobrem sentidos mais primitivos que, todavia, ali restam como que “dormindo”, ocultos por sob os sentidos novos e de certo modo sobredeterminando-os, no sentido que FREUD confere ao termo. Se, como diz Roland BARTHES, “o sentido de uma palavra pode emigrar”, isso mesmo já dá testemunho de que as palavras têm uma história, às vezes milenar, e fragmentos dos primeiros sentidos podem sobreviver por muitos séculos, mantendo ainda uma relação remota (e, por isso mesmo, importantíssima dos pontos de vista etimológico e semântico) com os sentidos contemporâneos da palavra.

Isso também pode ser aplicado ao Direito: as definições de direito dadas ao longo da

história podem ser compreendidas partindo do estudo da linguagem jurídica, como bem fez

José Reinaldo de Lima Lopes4 (2004, p. 37):

Colocado o conceito de direito no seu lugar próprio na esfera do discurso, o passo seguinte é constatar a historicidade dos discursos. “Os homens não mudam de vocabulário sempre que mudam de costumes”, advertia Marc Bloch (1990: 31). Por isso mesmo, o conceito de direito é, como qualquer conceito, passível de ser submetido a uma investigação da história de sua linguagem, pois sob um mesmo termo podem ocultar-se sentidos distintos e diferentes práticas. Esta é, hoje, uma forma privilegiada de fazer a história do pensamento. (grifo nosso).

Como se pode observar, sob esse ponto de vista, “o direito é constituído e criado

pela linguagem que determina as ações” (LOPES, 2004, p. 44), idéia esta que se coaduna com

a da teoria comunicacional do Direito, como já visto anteriormente.

4 Em sua obra “As palavras e a lei”, José Reinaldo de Lima Lopes estuda o Direito com o auxílio das teorias contemporâneas da linguagem. Faz-se, assim, uma história do pensamento jurídico, a partir da linguagem e do discurso. Para isso, o autor seleciona termos, categorias e conceitos de uso histórico e da linguagem jurídica. O conceito de direito, por exemplo, é formulado no meio de um debate entre a extensão de palavras como lei e direito.

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Entretanto, este não é o foco do presente trabalho. Optamos por abordar a história da

linguagem jurídica, a fim de apontar o momento em que a linguagem e a interpretação se

tornaram primordiais para o Direito.

Isso ocorre, sem dúvida, com a formação da cultura jurídica, na qual o direito se

apresenta e se consolida em fontes escritas. Há um momento de elevação da linguagem escrita

e da interpretação com o fenômeno da codificação que pressupõe, por sua vez, essa transição

da oralidade para a escrita.

É importante ressalvar que mesmo que nossa escolha tivesse sido no sentido de

“uma história pela linguagem jurídica” - com o escopo de avaliar as variações das definições

de direito, ou seja, as reconstruções efetuadas no Direito em função de mudanças no

pensamento dominante da época - teríamos que discorrer sobre os dois assuntos destacados

acima.

1.3.1 Transição da oralidade para a escrita

Paulo Nader (2003, p. 221), ao comentar sobre a linguagem no campo jurídico,

alude a essa transição:

O Direito, para se traduzir mediante fórmulas práticas de conduta social, depende das formas mais comuns de comunicação do pensamento. No passado, manifestava-se pela oralidade, chegando a ser enunciado em caracteres riscados em pedra e lançados em pergaminho; no presente a sua principal forma de expressão é a linguagem escrita através dos códigos.

É interessante notar como a introdução e a difusão do alfabeto influíram também no

campo jurídico. Um estudo minucioso neste sentido revela que o momento de constituição da

lei jurídica como categoria objetiva assenta-se justamente no paradigma oralidade-escritura.

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Nesse sentido é o posicionamento de Plínio Fernandes Toledo (2005, p. 09) quando afirma

que

A passagem da oralidade à escritura reflete-se também na existência social e suas formas de regulação: de uma a outra pode-se observar uma transformação na natureza e função da lei moral e jurídica, no sentido de sua explicitação, de força interna à categoria objetiva.

Essa nova experiência introduzida pela escrita propiciou uma longa adequação

cultural, uma vez que surgiu um novo meio de expressão, consubstanciado em uma sintaxe

própria à palavra escrita. Houve, então, a necessidade de um ajuste: no plano da linguagem,

com um reordenamento segundo esse novo padrão sintático; no plano existencial e categorial,

já que não havia ainda uma nítida separação entre as palavras e as coisas.

Pode-se afirmar que a possibilidade de caracterização da lei como categoria

autônoma acompanha essa “[...] mudança gradual de sua forma de vinculação à existência

social e significação” (TOLEDO, 2005, p. 22). Da mesma forma que palavra desvincula-se,

ainda que de forma gradual, da experiência social e passa a ser uma forma de representação, a

lei - a razão de ser do Direito e seu objeto - “[...] exige a construção de um modelo adequado

de interpretação que possibilite acompanhar as formas de relação entre a imediatez da vida

social e o plano do simbólico que a traduz, representa e regula” (TOLEDO, 2005, p. 09-10).

A lei, a partir desse momento de transição da oralidade para a escrita, tem que se

adequar a essa nova tecnologia, mas, além disso, tem que criar todo um aparato a fim de

organizar a experiência social, seguindo, esse novo modelo normativo. Aparece, assim, o

direito escrito.

Essa nova forma de discurso, fruto de um padrão agora diferenciado, permite um

distanciamento gradual da relação entre a comunidade e a lei:

Todo trabalho intelectual conduzido, assim, desde a introdução da escrita, procurou responder às urgências teóricas e legais impostas pelo novo meio, cuja disseminação levou à busca gradual de formas de representação articuladas não mais com base nas necessidades mnemônicas da oralidade

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mas nas exigências lógicas da palavra escrita, cada vez mais dissociadas da experiência comunitária original. (TOLEDO, 2005, p. 36).

Como se pode observar, a introdução da escrita alterou, inclusive, todo o trabalho

intelectual. No Direito, tal alteração propiciou a objetivação da lei jurídica, levando-a ao

processo de codificação.

Na verdade, o supramencionado autor fala em uma “crise” induzida pela introdução

da escrita que levou à construção da linguagem jurídica, agora calcada na idéia de

representação:

Na tarefa e construção da linguagem jurídica, imposta pela necessidade imperiosa de dar uma nova forma de estruturação legal à existência social, a partir da crise induzida pela introdução da escrita, atesta-se o prodigioso “poder do negativo do logos”, o termo é de Hegel, mediante o qual a linguagem e a lei jurídica são arrancadas de sua aderência imediata ao mundo da experiência e alçadas a um plano de representação no qual as experiências vividas começam a transmutar-se em mediações pensadas. (TOLEDO, 2005, p. 39).

Feita esta exposição acerca da transição da oralidade para a escrita e como esta

repercutiu no campo jurídico, passamos, a seguir, a traçar algumas considerações sobre a

codificação, ainda que de forma sumária, destacando-se somente os pontos considerados

relevantes para o decorrer do presente trabalho.

1.3.2 Codificação

Já foi afirmado que a codificação fez com que a análise da linguagem e a

interpretação se tornassem primordiais no mundo jurídico. Mas as modificações trazidas por

esse fenômeno não se restringem a este fato. Apontamos abaixo algumas delas.

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A partir da obra “As palavras e a lei”, de José Reinaldo de Lima Lopes (2004, p.

22), podemos afirmar que, com a possibilidade de codificação, a legislação, tornando-se

positiva e sistemática, estipulou prescritivamente o que é ou pode ser o direito; mas não só:

estabeleceu a ordem de assuntos, e um verdadeiro método a ser seguido pelos juristas para o

estabelecimento do sistema jurídico. Isso só foi possível com a transferência de campo, como

aponta o referido autor:

Um fator de importância determinante na elaboração e uso dos conceitos jurídicos, típico da modernidade, foi sua transferência de um campo (o do ensino, da doutrina ou da dogmática jurídica) para outro (o da legislação positiva, dos códigos ou das constituições). (LOPES, 2004, p. 22).

Tercio Sampaio Ferraz Júnior (2007, p. 72-73), por sua vez, ao comentar sobre a

positivação do direito como o momento em que se concretiza “o direito como norma posta”,

apresenta também outras alterações:

O fato de o direito tornar-se escrito contribuiu para importantes transformações na concepção de direito e de seu conhecimento. A fixação do direito na forma escrita, ao mesmo tempo em que aumenta a segurança e a precisão de seu entendimento, aguça também a consciência dos limites. A possibilidade do confronto dos diversos conjuntos normativos cresce e, com isso, aumenta a disponibilidade das fontes, na qual está a essência do aparecimento das hierarquias. Estas, no início, ainda afirmam a relevância do costume, do direito não escrito sobre o escrito. Pouco a pouco, no entanto, a situação inverte-se. Para tanto contribuiu o aparecimento do Estado absolutista e o desenvolvimento progressivo da concentração do poder de legislar. Nesse período, a percepção da necessidade de regras interpretativas cresce, o que pode ser observado por sua multiplicação com vistas na organização e articulação das diversas fontes existentes. Essas transformações iriam culminar em duas novas condicionantes, uma de natureza política, outra de natureza técnico-jurídica. Quanto às primeiras, assinale-se a noção de soberania nacional e o princípio da separação dos poderes; quanto às segundas, o caráter privilegiado que a lei assume como fonte do direito e a concepção do direito como sistema de normas postas.

Como se pode observar no trecho acima, a necessidade da interpretação também é

apontada como conseqüência do fato de o direito tornar-se escrito.

Vale lembrar que, com a idéia de “o direito como norma posta”, declara-se, por fim,

a dependência do direito em relação à linguagem, já que “Diferentemente de objetos cuja

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existência é empírica, material ou corpórea, normas não existem fora da linguagem”

(LOPES, 2004, p. 28-29). (grifo nosso).

Pierre Bourdieu (2007) também comenta sobre a força da codificação,

caracterizando-a como fruto do trabalho jurídico. Ele descreve este trabalho como que inscrito

em uma “lógica da conservação”, ligando o presente ao passado; propiciando a garantia de

que “o porvir será à imagem do passado e de que as transformações e as adaptações

inevitáveis serão pensadas e ditas na linguagem da conformidade com o passado” (p. 245); e

constituindo “um dos fundamentos maiores da manutenção da ordem simbólica” (p. 245).

Nesse sentido também é a afirmação de Paolo Semama (1981, p. 154):

Função precípua das comunicações do poder jurídico, por outro lado, é a garantia da manutenção de um complexo de situações que os operadores reputam vantajosas ou a garantia, no mudar das relações não jurídicas e das relações jurídicas, da conservação de um certo equilíbrio entre as capacidades dos operadores que intervêm, aos vários níveis da distribuição social das informações, para difundir e generalizar algumas representações em detrimento de outras. (grifo nosso).

Dessa maneira, pode-se afirmar que a grande contribuição da codificação foi trazer

eficácia simbólica ao Direito, uma vez que, como meio de conservação, introduz uma

previsibilidade e uma racionalidade próprias.

Além disso, podemos destacar o efeito de homologação conferido aos detentores da

competência jurídica por meio da codificação:

A codificação - ao instituir na objectividade de uma regra ou de um regulamento escrito, [...] - permite que se exerça aquilo a que se pode chamar um efeito de homologação (homologein significa dizer a mesma coisa ou falar a mesma linguagem): [...] Mas os poderes da homologação só são exercidos plenamente por aqueles que estão ao mesmo nível no universo regulado do formalismo jurídico: [...] aos detentores de uma forte competência jurídica, à qual está associada - sobretudo entre os advogados - uma competência específica de profissionais da luta jurídica, exercitados na utilização das formas e das fórmulas como armas. (BOURDIEU, 2007, p. 250).

Por último, é necessário ainda assinalar uma das funções desse trabalho jurídico de

codificação:

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[...] uma das funções do trabalho propriamente jurídico de codificação das representações e das práticas éticas é a de contribuir para fundamentar a adesão dos profanos aos próprios fundamentos da ideologia profissional do corpo dos juristas, a saber, a crença na neutralidade e na autonomia do direito e dos juristas. (BOURDIEU, 2007, p. 244).

Feitas todas essas considerações acerca da ligação do Direito com a linguagem, dos

estudos lingüísticos possíveis no campo jurídico e da origem da história da linguagem

jurídica, passamos então a aprofundar temas já apresentados no decorrer deste capítulo, tais

como: o do trabalho jurídico e o da competência jurídica.

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CAPÍTULO 2 - O MONOPÓLIO DA COMPETÊNCIA JURÍDICA

Não há como discorrer sobre esse tema sem deixar de mencionar um artigo de

Marilena Chauí, em que esta desenvolve o conceito de discurso competente.

Segundo esta autora (1982, p. 07), o discurso competente é “[...] aquele que pode ser

proferido, ouvido e aceito como verdadeiro ou autorizado (estes termos agora se equivalem)

porque perdeu os laços com o lugar e o tempo de sua origem”.

É evidente que vivemos em uma sociedade que privilegia as competências, seja no

campo profissional, intelectual, emocional etc.

De acordo com Adilson Citelli (1995, p. 34), o parâmetro instituído neste nível de

discurso é sempre o da eficiência; a medida é dada pelo que o sujeito produziu ou produzirá.

A eficiência e a competência tornaram-se um mito, isso em razão do fenômeno da

burocratização, que tem como idéia central a organização.

Mas é neste discurso burocrático-institucional, aparentemente neutro, em que se

perpetuam as relações de dominação:

A ponte por onde transita a mistificação da competência é a palavra, é o discurso burocrático-institucional com seu aparente ar de neutralidade e sua validação assegurada pela cientificidade. Afinal, quem afirma é o doutor, o padre, o professor, o economista, o cientista etc.! Isso ajuda a perpetuar as relações de dominação entre os que falam a e pela instituição e os que são por ela falados. Os segundos, sem a devida competência, ficam entregues a uma espécie de marginalidade discursiva: um reino do silêncio, um mundo de vozes que não são ouvidas [...] fazendo com que as verdades de uma instituição sejam expressão da verdade de todos [...]. (CITELLI, 1995, p. 35).

É o que ensina Marilena Chauí (1982, p. 07) sobre o discurso competente ser

confundido com a linguagem autorizada:

O discurso competente confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o direito

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de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já foram predeterminados para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones da esfera de sua própria competência. Cabe-nos, então, indagar o que significam essa repartição, circunscrição e demarcação do discurso quanto aos interlocutores, o tempo, o lugar, a forma e o conteúdo. (grifo nosso).

Como se pode ver no trecho acima destacado, o discurso competente produz alguns

efeitos quanto ao discurso a ser proferido. Tais efeitos acabam por revelar a função

desempenhada por seu uso.

Diante do que foi exposto sobre o discurso competente, é inegável que o discurso

jurídico é um discurso burocrático-institucional, e que tenha estabelecido um monopólio de

competência na sua estrutura-base, sendo certo que seu parâmetro é o da eficiência simbólica.

2.1 O discurso autorizado no Direito

Em razão da existência de uma divisão de trabalho na construção do Direito, pode-se

constatar que há uma concorrência estrutural de competência em “dizer o direito”. Vários são

as instituições e os agentes investidos, social ou tecnicamente, dessa capacidade de produção

ou mesmo de interpretação do corpus jurídico produzido, acabando por consolidar uma visão

do mundo social, consagrando-a como a “justa”.

Oscar Correas (1995, p. 67) destaca esse nível de discurso no Direito, quando afirma

que

Para o reconhecimento do discurso do direito remetemos ao produtor: se quem produz o discurso tem a faculdade de produzi-lo, ou seja, se está autorizado pelo discurso do direito previamente aceito, então este discurso é do direito.

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Como há uma concorrência de competência, seja na produção ou na interpretação,

esta é resolvida por meio de hierarquias, que variam conforme a classe de agentes jurídicos

envolvidos e a especialidade do ramo do direito.

Para Paolo Semama (1981, p. 100), a própria hierarquia das instituições só é

plausível em razão de um poder que é conferido e do exercício de uma capacidade adquirida:

Ao contrário, deve-se considerar que a comunicação através da qual se ordena a aplicação de uma sanção no caso previsto pela lei é, em todo caso, conseqüência daquela com a qual “alguém”, por força de uma instituição, confere ao juiz o poder de emanar uma sentença e, ao mesmo tempo, o obriga a fazê-lo nos modos e nas circunstâncias previstos (sem falar das obrigações concernentes aos seus conteúdos). Isso quer dizer que a hierarquia das instituições se torna possível em virtude do conferimento do poder e do conseqüente exercício da capacidade adquirida. (grifo nosso).

A nosso ver, essa capacidade adquirida é o mesmo que denominamos, no presente

trabalho, de competência jurídica.

Segundo Oscar Correas (1995, p. 68-69), esses produtores de direito (autorizados)

podem ser enumerados da seguinte maneira:

O legislador: todos os sistemas jurídicos estabelecem expressamente quem são os atores sociais autorizados a produzir normas de obediência geral para todos ou alguns dos membros da comunidade [...] Os funcionários da administração pública: [...] Trata-se de órgãos que compreendem desde os secretários de estado ou ministros até os humildes empregados, passando pelos temíveis policiais. Os juízes: [...] plenamente reconhecidos pelo sistema jurídico. As resoluções que produzem em cumprimento de sua obrigação de produzi-las constituem discurso do direito. Os particulares autorizados: os cidadãos comuns são, por excelência, os últimos destinatários da mensagem do direito. (grifo nosso).

Já quanto às diferentes categorias de intérpretes autorizados, Pierre Bourdieu (2007,

p. 217) os distribui em dois pólos extremos - os que contribuem para a elaboração teórica e os

que visam à prática jurídica:

[...] de um lado, a interpretação voltada para a elaboração puramente teórica da doutrina, monopólio dos professores que estão encarregados de ensinar, em forma normalizada e formalizada, as regras em vigor; do outro lado, a interpretação voltada para a avaliação prática de um caso particular, apanágio de magistrados que realizam actos de jurisprudência e que podem,

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deste modo, - pelo menos alguns deles - contribuir também para a construção jurídica.

A construção jurídica se dá no confronto de interesses específicos divergentes.

Por isso, o que se pode observar é que mesmo dentro desse último pólo - dos que

contribuem para a prática jurídica - há uma subdivisão de grupos, que representam os

interesses da classe a que pertencem, seja no campo interno do Direito, ou no campo social. E

são nesses momentos de tomada de posição que se verifica a “luta simbólica” constante na

elaboração do corpus jurídico e as posições na divisão do trabalho jurídico.

Uma luta que pressupõe interesses e visões distintas, mas, que, no Direito,

contribuem para uma complementaridade de funções. É o que argumenta Pierre Bourdieu

(2007, p. 219):

O antagonismo entre os detentores de espécies diferentes de capital jurídico, que investem interesses e visões do mundo muito diferentes no seu trabalho específico de interpretação, não exclui a complementaridade das funções e serve, de facto, de base a uma forma subtil de divisão do trabalho de dominação simbólica na qual os adversários, objectivamente cúmplices, se servem uns aos outros.

A complementaridade funcional leva a uma síntese lógica entre as diversas teses que

são antagonistas, condensando, assim, toda a ambigüidade do campo jurídico.

Embora manifestadas tais ambigüidades, os operadores do Direito buscam

uniformizar o sistema jurídico como um todo, no sentido de constituí-lo como auto-suficiente

e autônomo, exatamente como Hans Kelsen o concebeu.

Esse é elo do campo político e do campo jurídico-científico, uma vez que a

competência jurídica é um poder.

A “mudança de espaço social” garante o domínio da situação aos detentores da

competência jurídica, sendo estes, dessa forma, os únicos capazes de adotar a postura em

conformidade com a lei fundamental do campo:

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A constituição do campo jurídico é inseparável da instauração do monopólio dos profissionais sobre a produção e a comercialização desta categoria particular de produtos que são os serviços jurídicos. A competência jurídica é um poder específico que permite que se controle o acesso ao campo jurídico, determinando os conflitos que merecem entrar nele e a forma específica de que se devem revestir para se constituírem em debates propriamente jurídicos: [...] permite reduzir a realidade à sua definição jurídica, essa ficção eficaz. (BOURDIEU, 2007, p. 233). (grifo nosso).

O monopólio da competência é baseado no monopólio dos instrumentos necessários

à construção jurídica e, dentre eles, está a “forma jurídica”. É a assimilação desta, por parte do

corpo de profissionais do Direito, que assegura que o monopólio dos serviços jurídicos, em

que se verifica uma espécie de venda e oferta de tais serviços, como veremos em item

posterior.

Pode-se, ainda, neste ponto, mencionar as barreiras que são postas para a entrada nas

profissões jurídicas. Elas constatam a busca por este “monopólio de serviços exclusivamente

jurídicos”.

Todo esse processo de apropriação, de formalização, de monopólio de mercado é

sintetizado por Pierre Bourdieu (2007, p. 234-235):

É assim que a evolução recente do campo jurídico permite que se observe directamente o processo de constituição apropriativa - acompanhado do desapossamento correlativo dos simples profanos - [...] Em resumo, à medida que um campo (neste caso, um subcampo) se constitui, um processo de reforço circular põe-se em movimento: cada “progresso” no sentido da “jurisdicização” de uma dimensão da prática gera novas “necessidades jurídicas”, portanto, novos interesses jurídicos entre aqueles que, estando de posse da competência especificamente exigida (na ocorrência, o direito do trabalho), encontram aí um novo mercado; estes, pela sua intervenção, determinam um aumento do formalismo jurídico dos procedimentos e contribuem assim para reforçar a necessidade dos seus próprios serviços e dos seus próprios produtos e para determinar a exclusão de facto dos simples profanos, forçados a recorrer aos conselhos de profissionais, que acabarão pouco a pouco por tomar o lugar dos litigantes e dos demandados, convertidos deste modo em simples “justiciáveis”.

Esse fenômeno da “jurisdicização” pode ser verificado em dois momentos no texto

de Paolo Semama (1981):

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[...] nas ordenações jurídicas modernas tendem a desaparecer as ações não sujeitas a algum tipo de norma, e a liberdade se configura acima de tudo como exercício da faculdade de escolhas entre comportamentos previstos pelo sistema normativo. (p. 95). [...] visa a regular um número cada vez maior de comportamentos, de modo que quase nenhuma relação humana seja deixada ao arbítrio dos indivíduos. [...] Tal dialética se manifesta sob a forma de uma incessante produção de direito, pelo avanço dos acontecimentos que se vão concretizando onde a ordenação jurídica parece sempre a ponto de “estar em crise” e, neste preciso momento, assiste-se ao esforço de remediar a obsolescência através da produção de novas normas e no estabelecimento de novas relações jurídicas e políticas. (p. 156).

Mas não é só a “jurisdicização” que auxilia neste monopólio, como também os

“poderes de nomeação, de instituição, de homologação” - armas que são conferidas a tais

agentes que participam dessa luta simbólica e jurídica. O próprio veredicto do juiz representa

“[...] a forma por excelência da palavra autorizada, palavra pública, oficial, enunciada em

nome de todos e perante todos [...]” (BOURDIEU, 2007, p. 236).

Diante de tal processo, é possível entender a preocupação em se manter a distância

existente entre os profissionais e os leigos no campo jurídico. Tal separação sustenta o

monopólio de competência e o de serviços jurídicos.

O campo jurídico é regulado pelo formalismo. Sendo assim, aqueles que sabem

manejar tais formas e rigores impostos colocam o direito ao seu lado; os restantes estão

condenados a suportar os seus usos - expressão da violência simbólica.

Assim, como se pode observar, há uma apropriação da linguagem jurídica e dos seus

modos de expressão. Só se reconhece que o discurso é jurídico, se for proferido por aquele

que a detém, ou que tem autorização para isso.

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2.2 Instrumentos para o exercício legítimo da competência jurídica

Os agentes autorizados só conseguem atuar no campo jurídico porque conhecem as

regras do jogo jurídico. São aqueles que não só conhecem as leis escritas e os direitos que

delas decorrem, mas que sabem fazer uso dos instrumentos certos para entrar e permanecer

neste campo de lutas simbólicas.

A seguir, buscamos apontar os principais instrumentos que são utilizados para

justificar o exercício legítimo desse monopólio de competência jurídica. Para isso, tomamos

como base um trecho da obra de Pierre Bourdieu (2007, p. 239-240):

[...] se não há dúvida de que o direito exerce uma eficácia específica, imputável sobretudo ao trabalho de codificação, de pôr em forma e em fórmula, de neutralização e de sistematização, que os profissionais do trabalho simbólico realizam segundo as leis próprias do seu universo, também não há dúvida de que esta eficácia, [...] se exerce na medida e só na medida em que o direito é socialmente reconhecido e depara com um acordo, mesmo tácito e parcial, porque responde, pelo menos na aparência, a necessidade e interesses reais.

Diante de tal afirmação, e com alguns acréscimos, assinalamos como instrumentos de

sustentação de tal competência jurídica: a instituição do acordo, do discurso oficial, da forma

jurídica e da retórica de base.

Feitas essas considerações, passamos a discorrer então, ainda que de forma sucinta,

sobre esses instrumentos.

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2.2.1 O acordo

Com a instauração do campo jurídico, aqueles que o buscam, ao aceitarem entrar

nele, acabam por renunciar, ainda que tacitamente, a gerência de seus conflitos. Tal gerência é

destinada somente àqueles agentes autorizados pelo Direito.

Quando afirmamos haver uma “gerência”, lembramo-nos daquele documento

chamado de “procuração ad judicia”, que faz com que os advogados possam falar e agir em

favor das partes. Essa última administração de direitos é somente uma das possíveis. A

origem está no poder dado em um “acordo” inicial, subscrito sobre o nome de Constituição.

Podemos dizer que tal gerência aparece tanto na elaboração de leis, na defesa de

direitos, ou ainda na solução de conflitos.

Todo esse arcabouço de administração de direitos é feito na mudança de toda uma

estrutura histórico-social. O que antecede à instituição de uma estrutura político-jurídica,

como a que temos hoje, é o vínculo comunitário feudal. É a transformação da comunidade

para uma sociedade que vai propiciar um novo ambiente de relações, consubstanciadas em

uma unidade jurídico-estatal, unidade esta elaborada e ratificada pelos chamados sujeitos de

direito. Luiz Moreira (2007, p. 20) retrata essa mudança na concepção dada ao homem;

primeiro este é indivíduo, depois passa a ser pessoa, e por último, cidadão - sujeito de direito:

Na família, o indivíduo está integrado numa universalidade abstrata, [...] Na sociedade civil, [...] passando a existir como pessoa. No Estado, o indivíduo reencontra a universalidade na forma da singularidade de seu existir como indivíduo universal, ou na sua universalidade concreta como cidadão.

É interessante notar que essa mesma modalização aparece no campo do Direito

Penal: uma determinada pessoa pode tornar-se averiguado, indiciado, acusado, réu,

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condenado. O que muda, na realidade, é a visão que se tem deste, ou melhor, a posição que

este deve ter no campo jurídico e social.

Essa mudança faz-nos lembrar dos registros de distribuição do discurso competente.

São eles: o discurso competente do administrador-burocrata, o discurso competente do

administrado-burocrata e discurso competente genérico de homens reduzidos à condição de

objetos sócio-econômicos e sócio-políticos. A modalização indicada acima se encaixa neste

último registro, uma vez que “[...] aquilo que são, aquilo que dizem ou fazem, não depende de

sua iniciativa como sujeitos, mas do conhecimento que a Organização julga possuir a respeito

deles” (CHAUÍ, 1982, p. 10).

Na verdade, o que cria e justifica a “gerência” é o aparato simbólico.

Segundo Luiz Moreira (2007, p. 09-10), a própria locução adjetiva “de direito” o

revela, quando especifica o significado do substantivo “sujeito”:

Tal especificidade consiste, a um só tempo, na constituição plural de uma universalidade jurídico-política que se forma tanto mediante a inclusão de todos como membros fundadores de uma ordem estatal, quanto por meio do reconhecimento de todos os demais como parceiros de iguais direitos e liberdades. Desse modo, o adjunto adnominal de direito abre o sujeito a duas perspectivas: a primeira, a universalidade plural, na medida em que o sujeito é concebido a partir de uma reciprocidade associativa; a segunda, à efetivação da liberdade como isonomia. (grifo nosso).

Dentre as diversas idéias apontadas no trecho acima, destacamos a “inclusão de todos

como membros fundadores de uma ordem estatal”, a fim de demonstrar que toda autorização

de “gerência” no Direito tem sua origem nessa premissa: de que todos os sujeitos de direitos

(embora o sejam, muitas vezes, só formalmente), sejam co-autores de um acordo firmado e

escrito, a saber: a Constituição. Assim, por meio dessa estrutura de inclusão e de

reconhecimento é que se assenta a legitimidade, fazendo do Direito “o médium ao mesmo

tempo normativo e democrático” (MOREIRA, 2007, p. 36) e institucionalizando-se o poder e

sua ordenação normativa.

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Esse é um dos aspectos que leva o autor supracitado a assinalar que a Constituição é

um simulacro, já que a normatividade jurídica deveria universalizar-se formal e

materialmente.

Na verdade, a “inclusão de todos” nesse acordo gera a representação de exercício de

um poder. Nesse sentido é o entendimento de Paolo Semama (1981, p. 157):

Assim, não parece que os homens aceitam o poder jurídico para conservar uma “porção da própria liberdade”, mas porque se produz neles a representação de que isto aumenta para cada um as probabilidades de exercer um poder eficaz em um âmbito de limites suficientemente garantidos. (grifo nosso).

Usando as palavras de Michel Foucault (2006, p. 46-47): “Seria possível que o tema

do sujeito fundante permitisse elidir a realidade do discurso”.

Ronald Dworkin (1999, p. 232, 234-235), quando trata da questão do “enigma da

legitimidade”, cita tal acordo:

Um Estado é legítimo se sua estrutura e suas práticas constitucionais forem tais que seus cidadãos tenham uma obrigação geral de obedecer às decisões políticas que pretendem impor-lhes deveres [...] o acordo tácito [...]; o dever de ser justo [...] as pessoas reconheceriam um dever natural de apoiar as instituições que passem nos testes da justiça abstrata [...]; o jogo limpo -[...] se alguém recebeu benefícios na esfera de uma organização política estabelecida, tem então a obrigação de arcar também com o ônus dessa organização. (grifo nosso).

Assim, o bônus de se tornar “sujeito de direitos”, trouxe também o ônus de concordar

com toda a estrutura jurídica, incluindo, nessa via, a gerência dos direitos e até o uso da

coerção. Em resumo, pode-se dizer que nessa luta simbólica:

[...] aquele que possui um poder efetivo maior que os dos outros, não se limita a controlar-lhes o comportamento, mas emprega esta “diferença de potencial” para contrastar o seu poder com quem o tem em menor grau. Além disso, cada um visa, quando comunica algo, a preencher a própria carência de poder tendo em vista um determinado sucesso, influenciando alguém para que ceda o poder próprio, concordando com o operador da comunicação. (SEMAMA, 1981, p. 102).

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2.2.2 O discurso oficial

A instituição de um “discurso oficial” é também uma base de sustentação e

perpetuação para o exercício legítimo do monopólio de competência jurídica.

O discurso oficial é aquele elaborado e posto pelo Estado. Dessa forma, o discurso

oficial é o próprio discurso estatal. É o que Paolo Semama (1981, p. 96) denomina de

“escolha política fundamental”:

[...] a ordenação jurídica se propõe a dar validade e eficácia a alguns poderes, através da limitação recíproca dos poderes válidos e eficazes ou com o intento de reduzir ao mínimo a eventualidade de se reforçarem poderes que possam entrar em conflito com estes, e que surjam de esferas de ação diferentes daquelas em que surgem os primeiros. Isto quer dizer que a ordenação jurídica se propõe a institucionalizar poderes e, através desses poderes, opor-se à eficácia daqueles não institucionalizados. Já que uma institucionalização geral não admitiria uma exasperação dos conflitos, impõe-se uma escolha, que chamaremos de escolha política fundamental. (grifo nosso).

Em “O discurso e o poder”, Boaventura de Sousa Santos trata especificamente desta

questão do discurso estatal versus o discurso não estatal e, por esta razão, tomamos algumas

ponderações de tal livro como base para a discussão do tema ora proposto.

O supracitado ensaio é uma análise das relações estabelecidas em uma favela do Rio

de Janeiro no início da década de setenta; e o que foi verificado é que tais relações possuíam

uma estrutura homológica às relações jurídicas - as ditas “oficiais”, embora fossem

consideradas ilegais ou juridicamente nulas por estas últimas. No entanto, dentro daquela

comunidade sob observação, foi possível perceber que a associação dos moradores

transformou-se, aos poucos, em um fórum jurídico, constituindo, assim, práticas e discursos

jurídicos, a fim de preencher a lacuna deixada pela não-proteção jurídica oficial. É o que se

denominou “direito de Pasárgada”.

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Assim, o direito de Pasárgada é um direito não oficial, em oposição ao que os

moradores das favelas chamam de “o direito do asfalto” - o direito estatal.

Segundo Boaventura de Sousa Santos (1988, p. 04), a produção jurídica não estatal

pode ser entendida como aquela “[...] fora do estado, paralela ao estado ou mesmo contra o

estado”.

Durante todo o ensaio, o autor esboça comparações entre estes dois tipos de direito,

destacando as diferenças quanto aos recursos tópico-retóricos, ao modelo decisório -

mediação versus adjudicação, à autonomia relativa do pensamento jurídico, à constituição do

universo processual, à formalização da interação, à linguagem de referência e à divisão do

trabalho jurídico.

Embora a caracterização da “subcultura” jurídica de Pasárgada e sua retórica jurídica

baseada no uso de topoi sejam interessantes, o que nos interessa aqui é delinear o direito

oficial e sua estrutura.

Boaventura de Sousa Santos (1988, p. 23), ao comentar sobre o papel da cooperação

no direito de Pasárgada, diz que “[...] dada a precariedade do aparelho coercivo ao serviço

deste direito, a reprodução da juridicidade tem de assentar na cooperação, [...]” (grifo nosso).

Muitas são diferenças entre o direito de Pasárgada e o direito oficial, mas, diante da

afirmação acima, é possível identificar o principal diferenciador deste último: o poder

coercitivo.

O direito oficial dispõe de todo um aparato coercitivo que lhe permite impor suas

regras, suas decisões. A legalidade e a oficialidade misturam-se com a atmosfera de possível

coerção.

Tal coerção faz até com que o mediador no direito de Pasárgada - o presidente da

associação de moradores - entenda “[...] ser preferível não envolver a associação em matérias

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que digam respeito à actuação da polícia no interior da favela” (SANTOS, 1988, p. 26). Essas

questões são designadas pelo referido autor como “proto-políticas judiciais”.

Deste modo, vale destacar que, aqueles que têm autorização para emitir discursos,

também possuem poderes para, se preciso for, fazer uso da força, porque “Quando as palavras

já não bastam, a própria norma jurídica emprega outros meios de ação física direta [...]”

(SEMAMA, 1981, p. 116). O próprio Hans Kelsen (1998a, p. 231-232) deixa claro que:

O Direito é uma organização da força. [...] O Indivíduo que, autorizado pela ordem jurídica, aplica a medida coercitiva (a sanção) atua como órgão dessa ordem ou da comunidade por ela constituída. Portanto, pode-se dizer que o Direito faz uso da força um monopólio da comunidade. (grifo nosso).

É por essa via que Oscar Correas (1995, p. 58-63) aponta o Direito como um

discurso que ameaça com a violência, embora haja uma justificativa para isso: o direito é

instrumento para resolução de conflitos e é caracterizado pela possibilidade de submeter algo

à justiça.

Os motivos empregados para se justificar o uso da força são sempre os mesmos, isto

é, justiça e atendimento ao “bem-estar” de toda sociedade, como aponta também Luiz Moreira

(2007, p. 79):

A introjeção da normatividade estatal é permeada por uma interessante arquitetura firmada a partir da obrigatoriedade da norma estatal decorrente do monopólio da força com a promoção de benesses orquestradas pelo Estado, com o propósito de gerar bem-estar.

Pierre Bourdieu (2007, p. 236), do mesmo modo, assinala a possibilidade da

utilização da coerção física ao discorrer sobre o pleito como uma representação da luta

simbólica que tem lugar no mundo social:

Nesta luta, poder judicial, por meio dos veredictos acompanhados de sanções que podem consistir em actos de coerção física, tais como retirar a vida, a liberdade ou a propriedade, manifesta esse ponto de vista transcendente às perspectivas particulares que é a visão soberana do Estado, detentor do monopólio da violência simbólica legítima. (grifo nosso).

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Na verdade, o direito consagra a visão de ordem do Estado, que é, assim, garantida

por ele. A própria instituição jurídica impõe uma representação do que é normal, do que é

legal, do que é justo, impedindo, segundo a terminologia de Paolo Semama (1981, p. 105), a

produção de “comunicações incompatíveis”:

Quem comunica uma regra de jogo pretende também, embora sem dizê-lo de forma explícita, que, durante o período em que se verifica o comportamento normativizado, todos aqueles cujas relações são igualmente normativizadas com vistas ao mesmo fim, não produzam comunicações incompatíveis com aquelas que possibilitam a instituição.

Essas práticas consideradas diferentes e incompatíveis com as da instituição jurídica

aparecem como “desviantes, anómicas, e até mesmo anormais, patológicas” (BOURDIEU,

2007, p. 247).

Além disso, o direito, explica Pierre Bourdieu (2007, p. 237), como “forma por

excelência do poder simbólico de nomeação”, cria não só as coisas nomeadas5, mas acaba por

criar também os grupos.

É justamente esta a idéia central do ensaio de Boaventura de Sousa Santos (1988): a

busca por demonstrar que “[...] no estado de direito da sociedade capitalista, o estado não é só

de direito e o direito não é só do estado” (p. 99), concluindo que “[...] o direito estatal, sendo

o direito mais institucionalizado, com maior poder coercitivo e com o discurso jurídico

de menor espaço retórico, é concomitantemente o direito mais profissionalizado, mais

formalista e legalista, mais elitista e autoritário” (p. 78).

5 Nessa passagem faz sentido a afirmação de Paolo Semama (1981, p. 123): “[...] a linguagem jurídica vale-se da existência de uma linguagem já capaz de fornecer informações”.

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2.2.3 A forma jurídica

É inegável que no campo jurídico exista uma grande profusão de formalidades e de

requisitos processuais a serem cumpridos. Há uma busca pela autonomia absoluta da forma

jurídica em relação ao mundo social, por meio do emprego dessas fórmulas e formas fixas,

deixando pouco lugar às variações individuais. Tal busca é para firmar, assim, a “vis

formae6”, a força da forma.

Todo esse trabalho de pôr-em-forma, seja elaborando um corpus sistemático de

regras e de princípios que norteariam a prática jurídica, ou ainda ordenando a estrutura de

todo discurso jurídico, requer um pessoal encarregado e especializado, a fim de alcançar este

objetivo.

Todo este trabalho de formalização e de normalização é feito pelos juristas “teóricos”

e “práticos”, que acabam por impor as suas visões e as suas interpretações do direito.

Assim, pode-se dizer que as formas e as fórmulas jurídicas, que têm pretensão

universal, são frutos das diferentes formas de competência, de posições distintas no campo

jurídico, mas que, ao final, complementam-se por possuírem o mesmo interesse: maximizar a

necessidade do “comércio jurídico”.

O aumento do formalismo jurídico reforça a necessidade dos “serviços jurídicos”,

fazendo de tais profissionais da luta jurídica detentores de um poder, de uma capacidade, de

uma competência específica. A força da forma é a arma que necessitam para dar andamento à

lógica tecno-operacional da qual fazem parte, auxiliando na “profissionalização” dos

chamados operadores do Direito e na burocratização institucional que tanto lhes é útil. São

6 Tal termo é usado por Pierre Bourdieu em “O poder simbólico”, 2007, p. 249.

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estes tidos como capazes de traduzir os problemas que se exprimem na linguagem vulgar para

a linguagem do Direito.

Resta, pois, aos leigos, ao entrar neste jogo, (con)formar-se com o direito, ou seja,

não só concordar com tal situação, mas, além disso, tomar a forma do direito, moldar-se a ele.

Nesse sentido é a afirmação de Pierre Bourdieu (2007, p. 250-251):

Quanto aos outros, estão condenados a suportar a força da forma, quer dizer, a violência simbólica que conseguem exercer aqueles que - graças à sua arte de pôr em forma e de pôr formas - sabem, como se diz, pôr o direito do seu lado e, dado o caso, pôr o mais completo rigor formal, summum jus, ao serviço dos fins menos irrepreensíveis, summa injuria.

A eficácia da forma está exatamente em impedir o acesso de “estranhos” ao mundo

jurídico. Por esse motivo, Boaventura de Sousa Santos, ao descrever “o direito de Pasárgada”,

destaca o caráter relativamente informal deste direito. Tal direito, por vezes, utiliza-se das

formas e dos procedimentos do direito oficial, mas como frisa o supracitado autor:

[...] sem permitir que se transformem num ônus que prejudique a acessibilidade e a eficiência do direito de Pasárgada. [...] O cumprimento de tais trâmites, ou não seria possível, ou, sendo-o, seria demasiado oneroso ou complicado e retiraria ao direito a acessibilidade que o caracteriza” (SANTOS, 1988, p. 32-33). (grifo nosso).

2.2.3.A - Rituais: o caráter sacramental do Direito

Em item anterior, foi delineado, ainda que de forma sumária, o aspecto coercitivo do

Direito e como esse monopólio da força reforça a hegemonia do direito estatal.

Somando-se a esta idéia tão debatida e evidente, Luiz Moreira (2007, p. 55)

acrescenta um outro aspecto do Direito que possibilita a supremacia da normatividade estatal:

a osmose operada entre “o aparato estatal e o universo simbólico e institucional da Igreja”.

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É possível notar, ainda hoje, que todo o projeto político e jurídico da modernidade

assemelha-se à estrutura do poder eclesiástico, embora o faça por meio de todo um aparato

burocrático. Por essa razão é que Luiz Moreira (2007, p. 74) assegura que “Não houve uma

cisão entre o mundo administrado pelo clero e o mundo regido pelo Estado. O que ocorreu foi

uma metamorfose nos padrões normativos”.

Dessa forma, pode-se afirmar que o domínio normativo, que era, ao mesmo tempo,

eclesiástico - o de prescrever condutas - é transferido para as mãos do soberano, assumindo

este último, por conseguinte, tal poder com todas as suas nuances clericais.

Luiz Moreira (2007, p. 74) emprega um termo utilizado anteriormente por Paolo

Prodi para definir tal apropriação e sucessão por parte do Estado: “o eclesiasticismo do

Estado7”.

Afirmado que o Estado apreendeu o encadeamento prescritivo da Igreja8, é

importante salientar que toda a estrutura assimilada deu-se em dois planos. O primeiro plano é

o fático, verificado na “obrigatoriedade” das normas jurídicas; e o outro é simbólico, revelado

na sua “legitimidade”.

Ainda segundo o referido autor (2007, p. 74), esses dois planos assimilados podem

ser resumidos na incorporação do principal aparato eclesiástico e sua introjeção nos súditos: a

confissão.

O arcabouço da confissão no Direito se dá por meio das formas jurídicas, dos rituais

estabelecidos pelos códigos, que pertencem à parte simbólica de todos os preceitos

prescritivos do Estado.

A parte simbólica, por sua vez, une-se à questão espacial. Toda a estrutura física e

espacial do Judiciário aponta para a superioridade daqueles que se fazem mediadores e

determinantes para a solução dos litígios. É uma forma velada de se introjetar a submissão às 7 A bibliografia é apontada por Luiz Moreira : PRODI, Paolo. Il sacramentodel potere. Il giuramento político nella storia constituzionale dell’Occidente. Bolonia: Il Mulino, 1992, pp. 161-225. 8 Igreja e Estado têm sua origem comum no Império romano.

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ordens recebidas. A começar pelas “salas de audiências”, avançando para a “cerimônia”

montada em dia de sessão em um Tribunal do Júri. Um confessionário é montado, tendo o

Estado, por meio de seu corpo de funcionários, a função de grande confessor, redimindo

pecados ou não.

A estrutura espacial, como acima apresentada, leva as proposições, que

anteriormente eram abstratas, à concretude. A instauração de um lugar como esse se destina

ao controle interno e externo quanto à introjeção das normas prescritas.

Outra via de demonstração dessa osmose entre o religioso e o jurídico é a

sacralização da norma jurídica, verificável, em especial, na Constituição. As cláusulas pétreas,

por exemplo, são intocáveis, irrevogáveis, assim como determinados dogmas de fé da Igreja e

tal “invocação constitucional garantiria a instauração do rito de passagem de uma esfera

profana a uma esfera sacrossanta” (MOREIRA, 2007, p. 80).

Logo, é importante saber deste caráter sacramental do Direito e sua feição histórica,

para entender o porquê de o mundo jurídico ser também um mundo sacralizado. Não houve,

portanto, total ruptura entre Estado e Igreja, sob o aspecto da elaboração das formas

prescritivas de ambos.

Dessa não-ruptura, estabelece-se a classificação do mundo em dois pólos, a saber: o

sagrado e o profano. É justamente o que conclui Luiz Moreira (2007, p. 90)9:

Posteriormente, à época do monopólio religioso empreendido pelo clero, houve a consagração da teoria de dois mundos, firmada pela distinção entre sagrado e profano e pela posterior osmose entre ambos, de modo a formar um direito que se expressa pelo simulacro.

A função das formas ritualizadas é exatamente esta: manter à distância os profanos.

Walter de Oliveira Campos (2002, p. 07) também aponta essa sacralização do mundo

jurídico, estendendo-a à linguagem jurídica:

9 Embora tal autor aponte a consagração do mundo nesses dois pólos posterior à época do monopólio religioso, é preciso ressalvar que essa realização entre o jurídico e o sagrado é muito anterior à Igreja.

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[...] o mundo jurídico, principalmente no que tange às autoridades judiciárias, é cercado por uma aura sacra. Ainda não desapareceram por completo os resquícios da época em que os juízes eram considerados porta-vozes de Deus, quando os rituais eram sagrados. Ainda predomina essa ritualização não só de costumes e práticas forenses mas também, e principalmente, na linguagem, altamente rebuscada, intrincada por vezes, e quase sempre inacessível às pessoas mais simples. É como se tratasse de uma linguagem superior, entendida por seres superiores.

Interessante é que Marilena Chauí (1982, p. 06) trata do tema ora proposto quando

afirma que não houve laicização da política, uma vez que a representação moderna do Estado

é de “[...] um poder uno, separado, homogêneo e dotado de força pra unificar, pelo menos de

direito, uma sociedade cuja natureza própria é a divisão de classes”. Além dessa primeira

afirmação, esta autora, posteriormente, acrescenta:

[...] não houve passagem de uma política teológica a uma política racional ateológica ou atéia, [...] A nova ratio é teológica na medida em que conserva, tanto em política quanto em ideologia, dois traços fundamentais do poder teológico: de um lado, a admissão da transcendência do poder face àquilo sobre o que este se exerce [...]; por outro lado, a admissão de que somente um poder separado e externo tem força para unificar aquilo sobre o que se exerce [...]” (CHAUÍ, 1982, p. 06).

O Direito, como já foi dito anteriormente, consagra a visão de ordem do Estado.

Assim, toda estrutura do Direito, seja fisicamente ou não, condiz com a estrutura sacrossanta,

como se tentou demonstrar acima.

E a permanência de símbolos religiosos, como, por exemplo, os crucifixos, em

dependências de órgãos públicos, em especial nos órgãos do Poder Judiciário, como se

justifica? Em geral, as justificativas assentam-se na tradição e na cultura cristã brasileira. Mas

a verdade é que esses símbolos religiosos são as representações concretas de um conceito

abstrato, o fenômeno visível da seguinte idéia: a fusão entre o Estado e a Igreja, contribuindo,

para o desenvolvimento da atmosfera sacrossanta nos referidos órgãos. Pode-se dizer que a

idéia age permanentemente sobre a imagem, constituindo, assim, um signo ideológico.

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2.2.4 Retórica de base

Além do uso de formas jurídicas a fim de legitimar o exercício da competência

jurídica, é possível vislumbrar também uma retórica de base. Todas as interpretações e

leituras do direito se tornam legítimas em razão dessa retórica de base, calcada na

neutralidade e na universalidade.

Pierre Bourdieu (2007, p. 216) afirma que esta retórica “[...] está longe de ser uma

simples máscara ideológica. Ela é a própria expressão de todo o funcionamento do campo

jurídico [...]”. Em razão disso, optamos por traçar comentários sobre tal tema, ainda que de

forma bem sumária.

Paolo Semama (1981, p. 94) trata dos elementos constitutivos dessa retórica, embora

não utilizando explicitamente os termos “universalidade” e “neutralidade”:

A norma tem como finalidade apresentar a proibição sob uma forma mais aceitável, tanto porque o sujeito não mais a sente como uma imposição destinada única ou particularmente a ele, quando porque a função do impositor se dissolve para dar lugar à representação de uma fonte não pessoal do poder. (grifo nosso).

A neutralidade e a universalidade são dois efeitos produzidos pelos processos

lingüísticos característicos da linguagem jurídica, conforme explica Pierre Bourdieu (2007, p.

215-216):

O efeito de neutralização é obtido por um conjunto de características sintáticas tais como o predomínio das construções passivas e das frases impessoais, próprias para marcar a impersonalidade do enunciado normativo e para constituir o enunciador em sujeito universal, ao mesmo tempo imparcial e objectivo. O efeito de universalização é obtido por meio de vários processos convergentes: o recurso sistemático ao indicativo para enunciar normas, o emprego, próprio da retórica da atestação oficial e do auto, de verbos atestivos na terceira pessoa do singular do presente ou do passado composto que exprimem o aspecto realizado (“aceita”, “confessa”, “compromete-se”, “declarou”, etc.); o uso de indefinidos (“todo o condenado”) e do presente intemporal - ou do futuro jurídico - próprios para exprimirem a generalidade e

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a omnitemporalidade da regra do direito: a referência a valores transubjectivos que pressupõem a existência de um consenso ético (por exemplo, “como bom pai de família”); o recurso a fórmulas lapidares e a formas fixas, deixando pouco lugar às variações individuais.

Mas é preciso ressaltar que essa busca pela neutralidade, por exemplo, não se dá só

no plano sintático da linguagem jurídica. Vê-se na definição da figura do magistrado, como

alguém eqüidistante, imparcial. Além disso, lembremo-nos que a este é feita, dentre outras, a

seguinte vedação: exercício de atividade político-partidária, a fim de ratificar essa imagem

dada antes. É como se este não fizesse parte da classe dominante, embora sua pertença esteja

atestada em toda a parte, como esclarece Pierre Bourdieu (2007, p. 242).

O efeito de universalização, por sua vez, é um dos fortes mecanismos de dominação

simbólica, já que traz como resultado a aceitação ou a imposição dos pontos de vista

institucionalizados. Aliás, um discurso jurídico só adentra ao campo jurídico se possuir esta

postura universalizante. Serve, pois, de mecanismo de entrada.

A universalização, em geral, pode ser reconhecida em discursos que dizem condizer

com “o espírito jurídico” ou “o sentido jurídico”. Tal efeito convém também à coerência

interna do sistema jurídico, que segue uma lógica da conservação:

O trabalho jurídico, assim inscrito na lógica da conservação, constitui um dos fundamentos maiores da manutenção da ordem simbólica também por outra característica do seu funcionamento: pela sistematização e pela racionalização a que ele submete as decisões jurídicas e as regras invocadas para as fundamentar ou as justificar, ele confere o selo da universalidade, factor por excelência da eficácia simbólica, a um ponto de vista sobre o mundo social que, como se viu, em nada ele pode conduzir à universalização prática, [...]. (BOURDIEU, 2007, p. 245). (grifo nosso).

É complicado discorrer sobre esses dois efeitos sem relacioná-los com os temas

abordados anteriormente, uma vez que todos se interligam, compondo todo o aparato

simbólico do direito estatal. Quando uma norma toma a forma jurídica, ela passa a ser

considerada “oficial”, assim como social e “universal”. Havendo uma desobediência a tal

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norma, há uma justificativa para o uso da coerção por parte dos detentores da competência

jurídica.

Acima de tudo, o que buscou demonstrar com as análises dos instrumentos de

sustentação, justificação e perpetuação do exercício da competência jurídica foi que o

discurso jurídico, além de ser um discurso oficial, institucional, formal, escrito, calcado na

pretensa neutralidade e universalidade, e coercitivo, é um discurso feito10. É um discurso

construído por aqueles agentes que vivem da produção e da venda de bens e de serviços

jurídicos.

10 Este termo foi utilizado por Boaventura de Sousa Santos em “O discurso e o poder”, 1988, p. 108.

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CAPÍTULO 3 - A EXPLORAÇÃO DOS SIGNIFICADOS

JURÍDICOS

As relações entre o direito e o meio pelo qual ele se instrumentaliza - a linguagem -

já foram comentadas nos capítulos anteriores. Mas neste tópico, além de continuar a análise

sobre a importância da linguagem na constituição e na estruturação do direito, buscamos

delinear como ocorre sua operacionalização no direito. É evidente que tal operacionalização

se dá com a exploração dos significados jurídicos, tema sobre o qual passamos então a

discorrer.

Uma das funções apontadas ao Direito é o de exercer o controle social. Esse

controle, excluindo-se a possibilidade do uso da coerção em um primeiro momento, é feito

por meio da elaboração de um corpus jurídico, que se expressa por meio de uma linguagem

generalizada. Sem esse tipo de linguagem, ou seja, sem termos gerais classificatórios, não

seria possível o reconhecimento do direito:

Em qualquer grande grupo, as regras gerais, os padrões e os princípios devem ser o principal instrumento de controle social, e não as directivas particulares dadas separadamente a cada indivíduo. Se não fosse possível comunicar padrões gerais de conduta que multidões de indivíduos pudessem perceber, sem ulteriores directivas, padrões esses exigindo deles certa conduta conforme as ocasiões, nada daquilo que agora reconhecemos como direito poderia existir. Daí resulta que o direito deva predominantemente, mas não de forma alguma exclusivamente, referir-se a categorias de pessoas, e a categorias de actos, coisas e circunstâncias, e o seu funcionamento com êxito sobre as vastas áreas da vida social depende de uma capacidade largamente difundida de reconhecer actos, coisas e circunstâncias particulares como casos das classificações gerais que o direito faz. (HART, 1986, p. 137).

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A exploração dos significados jurídicos efetua-se por meio dessa linguagem

generalizada, consistente em formulações verbais. Tal exploração é possível devido à

legislação ser positivada11.

Entretanto, em uma análise mais detalhada de tal emprego de termos gerais, verifica-

se que, muitas vezes, estes geram dificuldades de interpretação quando de sua aplicação ao

caso concreto. Por esse motivo, Noel Struchiner (2002, p. 39) afirma que “[...] o recurso às

regras gerais, em certos casos, gera um excesso de simplificação que deve ser corrigido nos

casos concretos”.

Além dessa primeira forma de se comunicar os padrões gerais de conduta, Herbert

L. A. Hart aponta outra: a realizada pelos exemplos, costumeiramente chamados de

“precedentes judiciais”. Esta última forma de comunicação também faz uso mínimo de termos

gerais, como se pode apreender da seguinte afirmação:

Têm-se usado dois expedientes principais, à primeira vista muito diferentes um do outro, para a comunicação de tais padrões gerais de conduta, com antecipação das ocasiões sucessivas em que devem ser aplicados. Um deles faz um uso máximo o outro faz um uso mínimo de palavras gerais a estabelecer classificações. O primeiro é exemplificado por aquilo que chamamos de legislação e o segundo pelo precedente. (HART, 1986, p. 137).

Apresentados esses dois recursos utilizados pelo Direito, optamos por tratar das

formulações verbais e gerais das regras, já que são estas que permitem a exploração dos

significados jurídicos por parte dos operadores do direito. Acreditamos que o uso de

precedentes auxilia mais no controle dos discursos e, por essa razão, deixamos este assunto

para ser comentado posteriormente, em outro capítulo.

Porém, ao discorrer sobre estas formulações, é preciso assinalar que faremos uma

cisão: excluímos da presente análise as regras legais, gerais, válidas, que são exaustivas 11 As mudanças causadas pela positivação da legislação já foi tema abordado no Capítulo 1, no item “Codificação”. No presente momento, podemos acrescentar mais esta contribuição: a de permitir a elaboração de construções verbais que, exploradas e aplicadas a casos concretos, dão sustentação ao controle social estabelecido pelo direito.

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quanto à sua aplicação, ou seja, que possuem significados fixos no seu núcleo; e destacamos

somente aquelas que são inconsistentes, vagas, em razão da linguagem que as tornou escritas.

Assim, pode-se dizer que escolhemos tratar do problema da indeterminação

lingüística no Direito, decorrente do fenômeno da textura aberta da linguagem, e as

conseqüências da sua aplicação ao campo jurídico.

3.1 A textura aberta na linguagem jurídica

Um estudo sobre a textura aberta da linguagem nos leva a verificar que as palavras

nem sempre descrevem com exatidão aquilo a que queremos nos referir, gerando, muitas

vezes, uma imprecisão ou até mesmo uma dúvida na sua interpretação.

Na verdade, o direito, ao instaurar modelos de comportamento social, o faz com uma

parte de indeterminação, uma vez que a aplicação de uma norma ao caso concreto depende,

muitas vezes, de uma interpretação, que une os aspectos legais já fornecidos e os aspectos

extralegais estabelecidos pela situação concreta. É nesses momentos de indeterminação

lingüística, geradores de lacunas e incompletudes, que nos deparamos com os hard cases - os

casos difíceis, não rotineiros.

Um dos autores que se preocupou com a noção da textura aberta da linguagem de

forma mais minuciosa é Herbert L. A. Hart - mais especificamente no seu livro O conceito do

Direito, no Capítulo VII, que tem como título “Formalismo e cepticismo sobre as regras”.

Aliás, Noel Struchiner, ao pesquisar também sobre esse assunto, adota o

supramencionado autor, justificando que ele é o primeiro filósofo do direito a descrever o

fenômeno jurídico por meio da investigação da natureza da linguagem:

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Isso é inevitável não apenas porque foi ele quem primeiro incorporou a discussão acerca desse fenômeno, utilizado para descrever o funcionamento da linguagem ordinária, para tratar especificamente das regras jurídicas, mas, também, porque foi ele quem mais aprofundou no tratamento das questões sobre as conseqüências da textura aberta da linguagem para o direito e para a filosofia do direito. (STRUCHINER, 2002, p. 02).

Mas, além dessa justificativa, ao decorrer de sua obra, Noel Struchiner (2002, p. 04)

acrescenta outro motivo: a versão de Herbert L. A. Hart é considerada uma das construções

mais sofisticadas do positivismo jurídico.

Herbert L. A. Hart descreve o direito como um sistema de regras; contudo, não

exclui a existência de regras vagas em razão da linguagem por meio da qual foram escritas.

Em decorrência destas, admite a possibilidade de preenchimento de lacunas no direito por

parte do juiz, fazendo uso do poder discricionário. Esse é um traço intrigante do modelo

positivista de Herbert L. A. Hart, propiciado, inclusive, por sua concepção de textura aberta

da linguagem aplicada ao Direito:

Ao admitir a necessidade da discricionariedade, Hart constrói um modelo de positivismo mais difícil de se refutar; um modelo de positivismo que adota uma via intermediária entre o formalismo radical (adotado pelos positivistas mais tradicionais) - de acordo com o qual as regras existentes no sistema jurídico seriam totalmente claras e capazes de dar conta da realidade jurídica como um todo - e o ceticismo em relação à capacidade das regras de oferecerem uma determinação legal. Hart defende a posição intermediária dizendo que no âmbito do direito surgem casos simples que podem ser resolvidos por regras claras e os hard cases que têm que ser resolvidos por critérios que estão além das regras válidas que compõem o direito. O que possibilita esse “caminho do meio” adotado por Hart é, principalmente, a sua concepção sobre a “textura aberta” (open texture) da linguagem. (STRUCHINER, 2002, p. 05-06).

Dessa maneira, podemos dizer que a textura aberta da linguagem jurídica demanda a

utilização de outros critérios, que não se restringem a mera referência às regras legais. É por

essa via, por exemplo, que a argumentação assume um papel relevante.

A textura aberta pode ser definida da seguinte forma: “[...] é a possibilidade

permanente da existência de uma região de significado onde não conseguimos determinar

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com segurança se a palavra se aplica ou não” (STRUCHINER, 2002, p. 06); ou ainda, de

forma mais clara: “Por textura aberta entende-se que a palavra que apresenta essa qualidade

não teve seu uso previsto para todas as situações possíveis que poderiam surgir [...]”

(STRUCHINER, 2002, p. 19).

Essa indeterminação gerada é de natureza semântica. Na verdade, o problema a ser

solucionado é quanto à extensão do significado da regra. Até se sabe os fatos que constituem

o caso jurídico, mas não como classificá-los, com precisão e clareza, dentro da linguagem já

fornecida previamente pela regra jurídica.

É exatamente o contrário do que ocorrem com as regras que têm significados fixos

no seu núcleo - as chamadas “regras claras” - que comunicam os padrões de conduta de modo

tão evidente que a sua aplicação é feita facilmente mediante um processo de “subsunção”, em

que a conclusão é silogística e simples. Herbert L. A. Hart (1986, p. 139) diz que esse tipo de

regra é aquela que “pode aplicar por si própria e a si mesma”. Em geral, estas regras são auto-

aplicáveis porque previstas para os casos simples e familiares, decorrentes de contextos

semelhantes.

Já as regras com textura aberta possuem “incertezas de comunicação”, que só podem

ser determinadas na aplicação do caso concreto, exigindo-se, assim, interpretação. Mas é

preciso assinalar que

Os cânones de <<interpretação>> não podem eliminar estas incertezas, embora possam diminuí-las; porque estes cânones são eles próprios regras gerais sobre o uso da linguagem e utilizam termos gerais que, eles próprios, exigem interpretação. Eles, tal como outras regras, não podem fornecer a sua própria interpretação. Os casos simples, em que os termos gerais parecem não necessitar de interpretação e em que o reconhecimento dos casos de aplicação parece não ser problemático ou ser <<automático>> são apenas casos familiares que estão constantemente a surgir em contextos similares, em que há acordo geral nas decisões quanto à aplicabilidade dos termos classificatórios. (HART, 1986, p. 139). (grifo nosso).

É interessante notar que mesmo nos casos simples, Herbert L. Hart fala em

“decisões” quanto à aplicabilidade. Pode-se imaginar a sua importância quanto à

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indeterminação gerada pela textura aberta, uma vez que esta há de ser resolvida mediante uma

escolha entre as alternativas abertas e possíveis para a solução do caso. É por essa via que se

encontra o poder discricionário:

O poder discricionário que assim lhe é deixado pela linguagem pode ser muito amplo; de tal forma que, se ela aplicar a regra, a conclusão constitui na verdade uma escolha, ainda que possa não ser arbitrária ou irracional. A pessoa opta por acrescentar a uma série de casos um caso novo, por causa das semelhanças que podem razoavelmente ser consideradas, quer como juridicamente relevantes, quer como suficientemente próximas. No caso das regras jurídicas, os critérios de relevância e de proximidade da semelhança dependem de factores muito complexos que atravessam o sistema jurídico e das finalidades ou intenção que possam ser atribuídos à regra. Caracterizá-los seria caracterizar tudo o que é específico ou peculiar no raciocínio jurídico. (HART, 1986, p. 140). (grifo nosso).

O trecho acima começa assinalando que há um poder deixado pela linguagem. As

subseqüentes escolhas efetuadas têm como escopo o exercício desse poder. Esse é o

entendimento de Paolo Semama (1981, p. 102):

Não há dúvida de que quem se interessar por ditar regras a linguagem interessa-se mais por certos comportamentos do que por outros e, portanto, fez certas escolhas com vistas ao exercício do poder [...]. (grifo nosso).

Uma vez que há uma escolha a ser feita, podemos dizer que a função dos juízes não

se limita a “dizer”, “deduzir” ou “aplicar” o direito, mas também a “interpretá-lo”. Quando o

juiz exerce esse poder discricionário, ele também desempenha uma atividade criativa e

construtiva, por isso, costuma-se denominá-la de “legislação judicial”.

Pierre Bourdieu (2007, p. 222-223) também comenta essa função de invenção, por

vezes, concedida ao juiz:

Em resumo, o juiz, ao invés de ser sempre um simples executante que deduzisse da lei as conclusões directamente aplicáveis ao caso particular, dispõe antes de uma parte de autonomia que constitui sem dúvida a melhor medida da sua posição na estrutura da distribuição do capital específico de autoridade jurídica; os seus juízos, que se inspiram numa lógica e em valores muito próximos dos que estão nos textos submetidos à sua interpretação, têm uma verdadeira função de invenção. Se a existência de regras escritas tende sem qualquer dúvida a reduzir a variabilidade comportamental, não há dúvida também de que as condutas dos agentes jurídicos podem referir-se e sujeitar-se mais ou menos estritamente às

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exigências da lei, ficando sempre uma parte de arbitrário, imputável a variáveis organizacionais como a composição do grupo de decisão ou os atributos dos que estão sujeitos a uma jurisdição, nas decisões judiciais [...]. (grifo nosso).

A autonomia acima apontada é que se costuma falar em “livre convencimento do

juiz”. O próprio Hans Kelsen (1998b, p. 385-397), em sua “Teoria pura do direito”, admite

isso, quando disserta sobre a interpretação. Primeiro, aponta que há duas espécies de

interpretação no Direito, a saber: a realizada pelo órgão que o aplica e a efetuada por uma

pessoa privada e, especialmente, pela ciência jurídica; depois, aborda sobre a indeterminação

(relativa, intencional ou não) do ato jurídico. É neste último momento que afirma:

Essa determinação nunca é, porém, completa. A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior, ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer. (KELSEN, 1998b, p. 388). (grifo nosso).

Entretanto, é preciso ressalvar que tal possibilidade de “livre apreciação” admitida

por Hans Kelsen não se aplica à interpretação do Direito feita pela ciência jurídica,

entendendo-a como “não autêntica”:

A interpretação jurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica. Como conhecimento do seu objeto, ela não pode tomar qualquer decisão entre as possibilidades por si mesma reveladas, mas tem que deixar tal decisão ao órgão que, segundo a ordem jurídica, é competente para aplicar o Direito. (KELSEN, 1998b, p. 395-396).

Gregorio Robles (2005, p. 29), por sua vez, ao comentar sobre a sua teoria

comunicacional do Direito, também afirma que o texto jurídico é um texto aberto, que vai

sendo gerado e regenerado paulatinamente.

Segundo este autor, o texto jurídico regenera-se justamente mediante a força da

decisão:

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Esta é outra das características essenciais do texto jurídico, que se configura pela força da decisão. Ao contrário de outros tipos de texto que mencionamos, o texto jurídico é sempre um texto aberto, que vai sendo paulatinamente criado e recriado mediante decisões concretas. Cada decisão produz um novo texto, que se incorpora ao já existente, renovando dia a dia o ordenamento jurídico. (ROBLES, 2005, p. 32).

Pode-se observar que o supracitado autor, filia-se à teoria da decisão; mas não só,

esta está aliada à teoria da ação, já que, para ele, “toda decisão geradora de novo texto é uma

ação” (ROBLES, 2005, p. 35).

Ao definir a ação, enfatiza também a importância do contexto situacional:

A ação é o sentido que um determinado movimento psíquico-físico tem. Mas o mesmo movimento pode ter vários significados, que dependerão do contexto situacional dentro do qual se insere a ação e, em última análise, do discurso comunicacional ao qual pertença. (ROBLES, 2005, p. 36).

Desse modo, ao tomar como base o modelo “decisão-norma” e apresentar a decisão

jurídica como antecedente ou conseqüente à norma, justifica-se por essa via o papel da

argumentação:

Outro aspecto importante da teoria da decisão jurídica é a chamada teoria da argumentação jurídica, cujo objeto é a averiguação dos critérios e modelos metodológicos para interpretar e aplicar o direito nos processos de decisão. Argumentar significa dar razões que justifiquem a decisão como uma decisão justa ou, pelo menos, não injusta; significa fundamentar a decisão. (ROBLES, 2005, p. 62-63).

A verdade é que, em geral, em todo sistema jurídico, faz-se necessário o uso da

textura aberta na linguagem por uma razão bem simples: a incapacidade humana de abranger

nas regras jurídicas toda e qualquer situação, de prever os casos que surgirão. Assim, há

regras que apresentam certezas quanto à conduta a ser praticada (senão a segurança jurídica

estaria abalada); por outro lado, há regras que deixam a questão em aberto, para que haja uma

solução ulterior no caso concreto, por meio de uma escolha oficial. Essa incapacidade humana

é apontada por Herbert L. A. Hart (1986, p. 143):

A teoria jurídica tem nesta matéria uma história curiosa; porque está apta, quer a ignorar, quer a exagerar as indeterminações das regras jurídicas. Para

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escapar a esta oscilação entre os extremos, precisamos de nos recordar que a incapacidade humana para antecipar o futuro, que está na raiz desta indeterminação, varia em grau nos diferentes campos de conduta e que os sistemas jurídicos providenciam quanto a esta incapacidade através de uma variedade correspondente de técnicas.

Afinal, o nosso mundo vive em constante mudança de valores. As regras jurídicas

são elaboradas a fim de conter não só todas as características e hábitos sociais predominantes,

mas as possíveis tendências. Essa idéia está presente também na obra de Paolo Semama

(1981, p. 120): “[...] a ordenação jurídica visa a regular não só os comportamentos para os

quais o direito surgiu, mas também outros que se produzem sucessivamente”.

Noel Struchiner (2002, p. 117) resume, em poucas palavras, a conseqüência da

textura aberta da linguagem no campo jurídico:

A conseqüência da textura aberta da linguagem para o direito é que as regras jurídicas apresentam instâncias em que as suas aplicações são claras, a possibilidade da existência de casos fronteiriços nos quais não sabemos se as regras devem ser aplicadas ou não (região de penumbra) e instâncias nas quais claramente não devem ser aplicadas.

A existência de casos fronteiriços, por vezes, assusta aos operadores do Direito, mas,

como se pode observar, a textura aberta constitui uma necessidade jurídica. Ela permite a

operacionalização do direito, de toda a estrutura jurídica. Quando presente, pode, inclusive,

ter o papel de mudar as “comunicações estabilizadas” do campo jurídico: “[...] do ponto de

vista do conteúdo, a ordenação jurídica deve ser aberta, ou seja, capaz de desenvolver-se em

razão da produção de eventos passíveis de modificar o campo das comunicações

estabilizadas” (SEMAMA, 1981, p. 140).

Após abordarmos o tema proposto, ainda que de forma sucinta, cabe-nos, ainda,

apontar as vantagens e desvantagens do uso da textura aberta na linguagem jurídica. É o que

fazemos a seguir.

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3.1.1 As vantagens e as desvantagens do uso da textura aberta na

linguagem jurídica

Ao observarmos as novas regras que são promulgadas diariamente, podemos

constatar que o Direito usa e abusa deste modelo de linguagem.

Muitos, ao analisar a textura aberta, acreditam que ela constitui um obstáculo para o

bom funcionamento do direito, uma vez que traz uma vagueza, uma indeterminação para as

regras jurídicas que dela se utilizam, fazendo surgir uma região de penumbra no momento da

aplicação ao caso concreto. Essa linha de pensamento, em geral, é a dos operadores do direito

que buscam preservar a “segurança jurídica”, eliminando, assim, toda e qualquer forma de

imprevisibilidade.

É evidente que, como o direito tem que fornecer pautas de conduta, a linguagem tem

que ser clara e eficiente. Caso contrário seria frustrada a função do direito como meio de

comunicação social.

Assim, a grande maioria das regras traz comportamentos a serem adotados ou

repelidos e, isso, com o uso de termos determinados, não geradores de dúvidas quanto à

interpretação.

Mesmo que se tivesse como ideal a elaboração de regras tão bem detalhadas, a fim

de eliminar essa textura tão aberta dos textos jurídicos, isso seria impossível, uma vez que as

regras jurídicas não dariam conta de toda e qualquer situação atual, ou principalmente futura.

Nesse sentido é a afirmação de Agostinho Ramalho Marques Netto (1993, p. 90):

[...] não há forma de expressão lingüística, por mais “depurada” que possa ser, que seja capaz de esgotar a totalidade significante de seu objeto sem deixar qualquer resto (o que nos ensina que, a rigor, a última palavra nunca pode ser dita e, portanto, não pode haver discurso sem lacunas) [...].

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Não há como haver uma determinação absoluta dos termos gerais contidos nas

regras. E, diante desse fato, torna-se necessário o uso da textura aberta.

Noel Struchiner (2002, p. 117-118) apresenta, de forma clara, o seu posicionamento

quando afirma que

Todavia, que surjam casos de penumbra, quando potencial vaguidade se manifesta, é interessante para o funcionamento do direito. A textura aberta representa uma potencial vaguidade e, portanto, traz com ela uma certa indeterminação e imprevisibilidade. Apesar disso significar um estremecimento da segurança jurídica, Hart constata que, ainda assim, a textura aberta da linguagem é um benefício para o direito. As regras se tornam imprecisas diante de situações extraordinárias, que não foram antecipadas no momento em que elas foram criadas e não são facilmente classificadas de acordo com as nossas convenções lingüísticas.

Além de ser impossível evitar a textura aberta na linguagem jurídica, Herbert L. A.

Hart ainda assinala que ela constitui um benefício para o direito, na medida em que permite a

“atividade judicial criadora”:

A textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais e pelos funcionários, os quais determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre interesses conflitantes que variam em peso, de caso para caso. Seja como for, a vida do direito traduz-se em larga medida na orientação, quer das autoridades, quer dos indivíduos provados, através de regras determinadas que, diferentemente das aplicações de padrões variáveis, não exigem deles uma apreciação nova de caso para caso. Este facto saliente da vida social continua a ser verdadeiro, mesmo que possam surgir incertezas relativamente à aplicabilidade de qualquer regra (quer escrita, quer comunicada por precedente) a um caso concreto. (HART, 1986, p. 148). [...] os tribunais exercem uma escolha criadora, ao interpretarem uma lei concreta que se revelou indeterminada. [...] os tribunais têm jurisdição para os resolver, através da escolha entre as alternativas que a lei deixa em aberto, mesmo se preferirem disfarçar esta escolha apresentando-a como uma descoberta. [...] (HART, 1986, p. 166).

E ressalte-se que, nesses casos dependentes de uma escolha no momento da

interpretação da uma textura aberta, os indivíduos só podem prever como os tribunais irão

decidir e ajustar o seu comportamento em conformidade posteriormente.

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Dessa forma, pode-se dizer que a textura aberta é vantajosa porque ela supre essa

necessidade de deixar certas questões em aberto, a fim de serem apreciadas em um tempo

mais adequado e de forma mais restrita ao caso em concreto, acomodando, inclusive, novas

descobertas e entendimentos acerca do assunto em pauta.

Ao final de sua análise sobre o tema, Noel Struchiner (2002, p. 129-138) ainda

acrescenta que a textura aberta da linguagem auxilia na construção de uma teoria do direito

que vai contra o formalismo jurídico e o realismo jurídico.

Para os formalistas, as normas são absolutamente claras e precisas e o juiz é a mera

“boca da lei”. Contudo, se esquecem que nem todos os casos a serem resolvidos são tão claros

assim, e que nem todos os termos contidos nas regras jurídicas são suficientes para todos os

casos que surgem no campo jurídico.

Já os realistas acreditam que os juízes não precisam decidir de acordo com o núcleo

de significado da regras proposto pelo Legislativo. Aliás, as regras que emanam deste último

servem apenas de fontes do direito, e o juiz é que é, na verdade, o legislador para o caso

concreto. Todos os casos que surgem ficam reduzidos à idéia de casos difíceis.

Assim, utilizando-se da noção de textura aberta da linguagem, Noel Struchiner

(2002, p. 144-147) acredita que Herbert L. A. Hart elabora uma teoria intermediária, na

medida em que não descarta nenhuma das posições extremadas descritas acima: há casos

claros, em que o juiz limita-se a aplicar o direito por meio de um silogismo; mas há também

casos de penumbra, em que o juiz interpreta o direito, exercendo seu poder discricionário.

É preciso salientar que há outros autores que abordam sobre os discursos jurídicos e

o uso da textura aberta, ainda que de forma indireta.

Michel Foucault (2006, p. 22), por exemplo, trata do tema quando afirma que há

discursos que “[...] são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer”. É o caso dos

discursos jurídicos. E isso só é possível pelo uso da textura aberta na linguagem jurídica. Essa

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permissão de “estar ainda por dizer” é o que o referido autor chama de “uma espécie de

desnivelamento entre os discursos”:

Em suma, pode-se supor que há, muito regularmente nas sociedades, uma espécie de desnivelamento entre os discursos: os discursos que “se dizem” no correr dos dias e das trocas, e que passam com o ato mesmo que os pronunciou; e os discursos que estão na origem de certo número de atos novos de fala que os retomam, os transformam ou falam deles, ou seja, os discursos que, indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer. Nós o conhecemos em nosso sistema de cultura: são os textos religiosos ou jurídicos [...]. (FOUCAULT, 2006, p. 22).

Esse desnível entre o texto primeiro e o texto segundo - este fruto de um comentário

- é capaz de desempenhar dois papéis: o de consentir a construção continuada de novos

discursos e o de dizer, de forma conclusiva, o que estava articulado, embora silenciosamente,

no texto primeiro. Na verdade, tais papéis são solidários, conspirando contra o acaso do

discurso:

[...] conforme um paradoxo que ele desloca sempre, mas ao qual não escapa nunca, dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito. [...] O comentário conjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado. [...] O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta. (FOUCAULT, 2006, p. 25-26).

Assim, novos discursos podem ser construídos, mas conforme um jogo restrito.

Embora as interpretações, as leituras, as aplicações possam mudar, a função permanecerá. O

deslocamento do discurso é realizado segundo os limites do jogo. Pode-se dizer que há e não

há uma liberdade comunicativa.

Luiz Moreira (2007, p. 28), por sua vez, ao comentar sobre a Teoria Discursiva do

Direito, afirma que a ênfase de análise de tal teoria é justamente essa liberdade comunicativa

que o fenômeno jurídico tem ou precisa ter:

Assim, a Teoria Discursiva do Direito não privilegia um direito formal (Estado liberal), tampouco um direito material (Estado social), pois não se atém a padrões dados, mas à constituição de uma liberdade comunicativa

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que assegura o perpetuar-se da criação do ato jurídico como processo constituinte permanente. [...] A normatividade que é elevada a paradigma é uma normatividade posterior, fruto de um processo decisório constante, que cria e constitui seu próprio sentido. (grifo nosso).

Esse “criar e constituir” de sentido aos textos jurídicos só pode ser realizado por

aqueles que têm a competência jurídica e lingüística para tanto. Voltamos, assim, à

estruturação dada ao Direito no tocante aos seus usuários - tema já anteriormente esmiuçado.

Gregorio Robles (2005, p. 08) faz referência a essa construção interpretativa feita

pelos juristas, quando afirma que a importância dos juristas dogmáticos revela-se porque estes

“[...] não se limitam a constatar a existência das normas no ordenamento e acrescentam seu

grão de areia (ou talvez algo mais), reelaborando o material bruto e construindo a norma

aplicável”.

Mas, ocorre que, existem divergências doutrinárias12 que fazem com que algumas

zonas do sistema jurídico não sejam tão claras ou que não se possa chegar a um mínimo

consenso. Nestes casos, pode-se identificar “[...] a causa principal da insegurança jurídica,

reflexo das variações interpretativas do texto jurídico bruto” (ROBLES, 2005, p. 07).

O significado de uma norma não é algo incorporado somente no conteúdo das

palavras, mas algo que decorre da interpretação. Isso pode ser comprovado pelas flutuações

de sentidos pelos quais passam os termos no tempo e no espaço. É a busca do sentido mais

adequado ao texto legal. Nesse sentido é a seguinte afirmação de Humberto Ávila (2005, p.

23-24):

[...] a interpretação não se caracteriza como um ato de descrição de um significado previamente dado, mas como um ato de decisão que constitui a significação e os sentidos de um texto. A questão nuclear disso tudo está no fato de que o intérprete não atribui “o” significado correto aos termos legais. Ele tão-só constrói exemplos de uso da linguagem ou versões de significado - sentidos -, já que a linguagem nunca é algo pré-dado, mas algo que se concretiza no uso ou, melhor, como uso. (grifo nosso).

12 Para Gregorio Robles (2005, p. 08), os juristas dogmáticos são intermediários necessários nos processos de decisão jurídica.

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Entretanto, deve-se fazer uma ressalva: quando se afirma que a linguagem se

concretiza no uso não é o mesmo que dizer que não há significado algum antes do processo de

interpretação13.

O intérprete pode, afinal, construir ou reconstruir sentidos.

Como bem declara Humberto Ávila (2005, p. 25), reconstruir é construir a partir de

algo e nisso consiste a própria interpretação jurídica, uma vez que:

[...] a uma, porque utiliza como ponto de partida os textos normativos, que oferecem limites à construção de sentidos; a duas, porque manipula a linguagem, à qual são incorporados núcleos de sentidos, que são, por assim dizer, constituídos pelo uso, e preexistem ao processo interpretativo individual.

No caso da textura aberta, o papel da interpretação é justamente eliminar a

indeterminação de uma regra que será aplicada a uma situação conflituosa à espera de uma

solução, operando, dessa maneira, a historicização da norma:

A interpretação opera a historicização da norma, adaptando as fontes e as circunstâncias novas, descobrindo nelas possibilidades inéditas, deixando de lado o que está ultrapassado ou o que é caduco. Dada a extraordinária elasticidade dos textos, que vão por vezes até à indeterminação ou ao equívoco, a operação hermenêutica de declaratio dispõe de uma imensa liberdade. (BOURDIEU, 2007, p. 223).

Aliás, é neste ponto também que podemos visualizar, de forma mais evidente, que

“A realidade jurídica nunca é realidade natural, mas realidade convencionalmente

estabelecida mediante decisões ou atos de fala” (ROBLES, 2005, p. 18). Assim como a

verdade jurídica, que sempre é encontrada nesse sistema construído.

Na verdade, tanto as normas jurídicas, como o próprio sistema, são resultado de uma

construção dogmática. Por esse motivo é que Gregorio Robles (2005, p. 08) afirma que “A

13 Para fazer essa diferenciação, Humberto Ávila (2005, p. 24) cita Wittgenstein - para quem há sentidos que preexistem ao processo particular de interpretação, os chamados jogos de linguagem; Heidegger - que acredita que há estruturas de compreensão existentes de antemão ou a priori e; Miguel Reale - que menciona condições estruturais preexistentes no processo de cognição, a chamada condição a priori intersubjetiva.

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dogmática influi decisivamente em todos os degraus da produção decisiva e normativa, a

partir da própria constituição”.

Para finalizar esse item é essencial relembrar que a questão da luta simbólica entre

os profissionais competentes intervém no campo e nos discursos jurídicos. Cabe-nos, neste

momento, frisar que o próprio conteúdo prático das regras jurídicas é o resultado dessa luta. O

significado jurídico de uma regra advém de uma exploração, que só é possível mediante

a indeterminação constante nos textos jurídicos. Isso é o que se pode extrair do

pensamento de Pierre Bourdieu (2007, p. 224-225):

Os juristas e os juízes dispõem todos, embora em graus muito diferentes, do poder de explorar a polissemia ou a anfibologia das fórmulas jurídicas recorrendo quer à restrictio, processo necessário para se não aplicar uma lei que, entendida literalmente, o que deveria ser, quer à extensio, processo que permite que se aplique uma lei que, tomada à letra, não o deveria ser, quer ainda a todas as técnicas que, como a analogia, tendem a tirar o máximo partido da elasticidade da lei e mesmo das suas contradições, das suas ambigüidades ou das suas lacunas. [...] Com efeito, o conteúdo prático da lei que se revela no veredicto é o resultado de uma luta simbólica entre os profissionais dotados de competências técnicas e sociais desiguais, portanto, capazes de mobilizar, embora de modo desigual, os meios ou recursos jurídicos disponíveis, pela exploração das <<regras possíveis>>, e de os utilizar eficazmente, quer dizer, como armas simbólicas, para fazerem triunfar a sua causa; o efeito jurídico da regra, quer dizer, a sua significação real, determina-se na relação de força específica entre os profissionais, podendo-se pensar que essa relação tende a corresponder (tudo o mais sendo igual do ponto de vista do valor na equidade pura das causas e questão) à relação de força entre os que estão sujeitos à jurisdição respectiva. (grifo nosso).

Ressalte-se, por último, que o sistema, nesse processo de exploração dos

significados jurídicos, tem que ignorar o que se tem de arbitrário; ou melhor, ao contrário,

torna-o legítimo, para ser plausível a eficácia simbólica.

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3.2 A textura aberta sob a perspectiva semiótica

A proposta de análise ora apresentada só é possível se considerarmos o caráter

dialógico, comunicacional e interpretativo inerente à teoria do signo de Charles Sanders

Peirce.

Existem muitos trabalhos e reflexões teóricas sobre a semiose, no entanto, o fazem

sem estabelecer essas propriedades semióticas. Por essa razão, adotamos, para o

desenvolvimento deste item, um artigo de Lauro Frederico Barbosa da Silveira, intitulado

“Semiose: Diálogos e linguagem”, que, ao contrário, destaca essas características do signo.

No tocante ao caráter dialógico, Lauro Frederico Barbosa da Silveira (2001),

pondera que, para Charles Sanders Peirce, “Ser em pensamento é ser em diálogo com os seres

pensantes com os quais convivemos ou podemos conviver” (p. 79), e, por essa razão,

“Mesmo, portanto, que o fluxo do pensamento se faça somente no interior de alguém, ele

jamais será um monólogo.” (p. 87).

Mas todo pensamento que se impõe em uma mente busca ser interpretado. Estamos

diante do caráter interpretativo da semiose: um signo só tem o seu significado quando

devidamente interpretado.

Aliás, a teoria semiótica peirceana entende que significar é designar um objeto, de

forma a permitir uma conduta racional e que tem como objetivo representá-lo. O significado,

por sua vez, seria a “a forma lógica potencial de representação” (SILVEIRA, 1998, p. 57).

Por esse motivo, quando se busca entender qual a função de um signo lingüístico

utilizado, busca-se, de um ponto de vista peirceano, compreender as relações de

interpretantes.

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Acerca dos interpretantes futuros, Vincent Colapietro (apud SILVEIRA, 2001, p.

80) afirma que

Um signo separado de seus interpretantes futuros é um signo ao qual é negada a possibilidade de realizar sua essência; isto é, a possibilidade de ser um signo. Tal signo é a negação da semiose, pois é impossível que ele realize sua essência.

Como se pode observar, quando se compreende o caráter dialógico e o interpretativo

da semiose, entende-se também que são estes momentos (diálogo e interpretação) em que

ocorre a tomada de consciência diante das possibilidades e dos riscos de uma conduta.

Mais do que isso, são as situações que permitem os embates ideológicos de tomada

de posição ou comportamento.

Entretanto, às vezes, o signo se torna insuficiente, e acaba por exigir que o seu

significado se efetive na experiência. Lauro Frederico Barbosa da Silveira (2001, p. 85)

afirma que Charles Sanders Peirce denomina essa exigência da semiose de “universo de

discurso”, enquanto Claudine Tiercelin nomeia de “contexto de asserção”.

Na verdade, é quando o contexto é condição para a interpretação - dimensão

pragmática da mensagem. Paolo Semama (1981, p. 140) também comenta que há momentos

em que o contexto lingüístico não é suficiente, sendo necessário recorrer aos dados concretos

da situação.

Mikhail Bakhtin (2004, p. 106), por sua vez, considera tal aspecto quando afirma

que “O sentido da palavra é totalmente determinado por seu contexto. De fato, há tantas

significações possíveis quantos contextos possíveis”.

Traçados os pressupostos da semiose, cabe-nos, ainda, discutir sobre a

indeterminação do signo.

Para que tenha eficácia a comunicação, exige-se que o signo mantenha um grau

de indeterminação, pois o ato de significar supõe um ato de escolha por uma qualidade,

deixando de lado, deste modo, as outras indeterminadas.

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Esse grau de indeterminação é identificado quando há o uso de signos vagos e

objetivamente gerais. Lauro Frederico Barbosa da Silveira (2001, p. 97) pondera que

Recorrer ao vago e ao geral e, através deles, construir uma economia de comunicação que leve ao maior sucesso possível a semiose, traduz-se, basicamente, em duas estratégias no interior de um jogo entre emitente (ou elocutor) e intérprete.

O referido autor ainda cita um trecho do texto de Charles Sanders Peirce (apud

SILVEIRA, 2001, p. 98) que trata de tais signos:

Um signo que é objetivamente indeterminado quanto a alguma relação, é objetivamente vago na medida em que autoriza que seja feita uma determinação ulterior em um outro signo conceptível, ou ao menos enquanto ele não designa o intérprete como seu embaixador nesse assunto.

Assim, com a utilização dos signos supracitados, todo processo de comunicação

permanece aberto, permitindo, ao emitente e ao intérprete, “[...] aprofundar o hábito de

conduta tencionado pela Verdade como summum bonum” (SILVEIRA, 2001, p. 98).

Contudo, a comunicação só será eficaz, se o emitente fizer a modalização do signo

vago, o que não significa que irá suprimir, de forma total, a indeterminação imposta. É nesse

aspecto que a contextualização torna-se imprescindível para determinar não só o signo, como

a conduta exigida.

Chaïm Perelman (2005, p. 671-684) trata exatamente de tal tema quando disserta

sobre o uso e o abuso das noções confusas. Ele indaga se pode haver um uso defensável de

noções confusas. Na verdade o que faz é ressaltar a importância das noções confusas no

Direito.

Desse modo, o autor supracitado apresenta exemplos em que há a introdução de

ambigüidades e confusões, inclusive com caráter de obrigatoriedade. São casos em que o

intérprete da lei tem que recorrer a uma interpretação que não pode ser a literal, mas a que dá

suporte às construções jurídicas. Nesses momentos, em que é preciso aclarar uma noção

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confusa, é indispensável determinar o contexto, o que resultará em um sentido novo para o

termo.

Tal interpretação, na verdade, pode até aumentar a confusão da noção examinada, se

não contextualizada novamente. Está aí evidenciada a dimensão pragmática de um signo. É

preciso adentrar ao “universo do discurso”.

Chaïm Perelman (2005, p. 675) deixa claro que essa é uma prática jurídica e que, por

vezes, distancia-se da letra da lei; mas que, ainda assim, há a legitimidade, por se afirmar que

está em consonância com o “espírito da lei”:

Essa técnica é largamente empregada quando se trata de textos jurídicos: quem deve justificar, em direito, uma solução aceitável, às vezes será levado a afastar-se da letra da lei para fornecer outra interpretação, mais conforme ao seu espírito.

O juiz, ao aplicar o direito em um caso em concreto, em que há um conflito de

interesses, tem que decidir e motivar sua decisão. Cabe-lhe, muitas vezes, eliminar

obscuridades, contradições e lacunas da lei, por meio da interpretação.

Para cumprir tal objetivo, acaba por fazer uma escolha ao aclarar o texto da lei,

decidindo por uma das interpretações possíveis, ora preenchendo tais confusões, ora

aumentando-as, ora trazendo um uso inesperado. Exemplos de introdução de noções confusas

são os termos “eqüidade” ou “bons costumes”. Só o “contexto de asserção” permitirá que o

juiz decida que casos que se encaixam em tais conceitos, ou não.

Estamos diante de um poder de escolha que é dado ao intérprete da lei. Por esse

motivo, o uso e até o abuso das noções confusas tem uma função específica. Chaïm Perelman

(2005, p. 675-676) a destaca:

O recurso a uma noção vaga ou confusa aumenta, por esse próprio fato, o poder de interpretação daquele que deve aplicá-la. Inversamente, ao precisar uma noção, de preferência através de indicações de natureza quantitativa, diminui-se o poder de apreciação do juiz. (grifo nosso).

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Tal recurso é demonstrado no direito interno, mas não só; no direito internacional

público, é uma condição indispensável para que Estados que têm ideologias diferentes

tornem-se signatários de um determinado acordo. O uso das noções confusas, neste último

caso, facilita o caráter dialógico, comunicacional e interpretativo na comunicação.

Entretanto, quando se trata da aplicação de uma noção confusa, o único limite que

não se deve transgredir, é do uso desarrazoado14.

Portanto, esses signos (de textura aberta) acabam por constituir, na prática,

instrumentos de comunicação por sua vagueza e sua generalidade, contribuindo para uma

função determinadora de condutas. Tem-se, assim, uma vantagem e uma desvantagem com

seu uso, uma vez que permite uma liberdade comunicativa, mas ao mesmo, serve para uma

“manipulação”.

Karl Olivecrona (2005, p. 50-51) afirma que a nossa linguagem serve às nossas

intenções:

Nossa linguagem é moldada para servir aos nossos propósitos. Na filosofia moderna afirmou-se com freqüência que esses propósitos são múltiplos. As palavras são usadas não só para descrever a realidade ou informar acerca de fatos; também são usadas para expressar emoções, para as provocar e para influir na conduta.

Quando o emitente de tais signos fornece sua própria definição a estes, na verdade,

tenta obter a adesão do destinatário e tornar seu significado um valor incontestável. Costuma-

se alargar o campo de aplicação da noção, permitindo escapar às críticas, deixando-a mais

vaga e mais confusa; ou ainda, tornando-a precisa e clara, mas, ao mesmo tempo, rígida.

14 Algumas observações são feitas por Chaïm Perelman (2005, p. 682) sobre tal assunto: “[...] ainda que nem sempre se esteja de acordo sobre a maneira de agir em dada situação, pois várias soluções podem ser igualmente razoáveis, existe normalmente, numa comunidade humana, em dado momento, um amplo acordo sobre o que seria desarrazoado e, conseqüentemente, inaceitável ou intolerável. Essa aplicação não resulta da não conformidade a regras, mas de uma apreciação do resultado, do fim buscado, ao qual a ação desarrazoada ou abusiva é manifestamente oposta”. O comportamento desarrazoado seria, portanto, a manifestação concreta do comportamento contrário à moral estabelecida “em uma determinada comunidade humana, em dado momento, em amplo acordo”, o que o torna, inválido também no direito, seja qual for o motivo jurídico para seu uso.

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Assim, os textos jurídicos com textura aberta servem de instrumento de persuasão,

assim como as “noções confusas” que, segundo Chaïm Perelman (2005, p. 684), não podem

ser eliminadas, mas exigem um manejo com prudência.

É o que Karl Olivecrona (2005, p. 67) denomina de “linguagem diretiva”:

O propósito é influir na conduta dos homens e dirigi-las de certas maneiras. A linguagem jurídica tem que ser considerada, em primeiro lugar, como um meio para atingir esse fim. É um instrumento de controle social e de comunicação social. Podemos chamá-la de linguagem diretiva, por oposição à linguagem informativa.

Assim, o intérprete de tais textos delimita os signos utilizados conforme essa ou

aquela linha de conduta que será tomada. Essa escolha é um ajuste da noção, do termo ao caso

concreto.

É necessário salientar que, por serem signos com traços de generalidade, muitas

vezes, o contexto é que traz uma “experiência compartilhada”, capaz de conceder condições

mínimas para o diálogo entre o elocutor e intérprete e para dirigir suas condutas para o mesmo

fim.

Em suma, a textura aberta é importante à natureza da linguagem, na medida em que

contribui para a comunicação. Por isso, pode-se afirmar que ela tem uma função essencial,

tanto na teoria como na prática jurídica: permite a operacionalização do direito. Isso só é

possível pelo caráter dialógico, comunicacional e interpretativo que os signos escolhidos para

as regras jurídicas possuem.

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CAPÍTULO 4 - O CONTROLE DOS DISCURSOS JURÍDICOS

Após serem feitas as devidas considerações sobre a exploração do significado

jurídico, cabe-nos abordar, ainda, um tema bastante relevante: a do controle do discurso

jurídico.

No segundo capítulo, discorremos sobre os instrumentos que são utilizados com o

escopo de legitimar o exercício da competência jurídica. Naquele momento, discutimos as

justificativas para tal exercício; por ora, buscamos demonstrar como é feita a entrada, a

permanência e a saída dos discursos no sistema jurídico: por meio de um controle de tais

discursos.

Em toda sociedade a produção do discurso é controlada. Todos nós sabemos que,

como vivemos em sociedade, inclusos em grupos sociais, sempre, em nossa fala,

consideramos o outro.

Em razão disso, não temos o direito de dizer tudo sobre qualquer coisa, em toda e

qualquer situação vivenciada. Há, segundo Michel Foucault (2006, p. 09), um “Tabu de

objeto, ritual de circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala [...]”.

Aliás, é justamente isso que caracteriza o discurso competente de acordo com

Marilena Chauí (1982, p. 07):

O discurso competente é o discurso instituído. É aquele no qual a linguagem sofre uma restrição que poderia ser resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. (grifo nosso).

A formação efetiva dos discursos passa por limites de controle, seja interna ou

externamente, não constituindo etapas que devam ser separadas:

Na verdade, estas duas tarefas não são nunca inteiramente separáveis; não há, de um lado, as formas de rejeição, da exclusão, do reagrupamento ou da

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atribuição; e, de outro, em nível mais profundo, o surgimento espontâneo dos discursos que, logo antes ou depois de sua manifestação, são submetidos à seleção e ao controle. (FOUCAULT, 2006, p. 66).

Assim, pode-se afirmar que existem procedimentos de controle do discurso do plano

externo - que são aqueles denominados por Foucault como “sistemas de exclusão” e que

concernem à parte do discurso que põe em jogo o poder e o desejo - e os do plano interno -

que funcionam como formas de classificação, de distribuição, de ordenação.

No que concerne ao plano externo, Michel Foucault (2006, p. 19) apresenta três

grandes sistemas de exclusão que atingem o discurso, a saber: a interdição - a palavra

proibida, a segregação da loucura e a vontade de verdade.

Já quanto ao plano interno, podemos dizer que existem procedimentos que dominam

os poderes dos discursos (uma vez que “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as

lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos

queremos apoderar” - FOUCAULT, 2006, p. 10), os que conjuram os acasos de suas

aparições, os que determinam as condições de seus funcionamentos e os que impõem certo

número de regras. Neste último tipo, é importante destacar, as formas ritualizadas.

O direito, como subsistema social que é15, também possui os seus procedimentos de

controle de discursos e, mais especificamente, meios de exclusão de discursos - que são

verificáveis principalmente quando têm como objetivo a entrada no campo jurídico. Mas não

só; é importante também ressaltar a existência de limitações e restrições aos discursos que

penetram o campo jurídico, que acabam por determinar a permanência e a aceitação destes ou

não.

Assim, no campo jurídico, embora haja procedimentos considerados internos, é

exatamente por essa via que podemos encontrar também o elo do direito com a política, uma

vez que há uma “política” discursiva, que pode vir a ativar, reativar ou não cada discurso

15 Essa é uma idéia também presente na obra de Paolo Semama, Linguagem e Poder, 1981, p. 119.

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jurídico que adentra ao campo jurídico. É o que muitos denominam de “politização do

judiciário”, em que se verificam posicionamentos políticos influenciando nas tomadas de

decisões judiciais. Aliás, Clarice von Oertzen de Araújo (2005, p. 16) afirma que “[...]

decisões judiciais freqüentemente são proferidas em prestígio aos valores políticos [...]”.

Paolo Semama (1981, p. 153), por sua vez, resume esse elo da seguinte maneira:

“Com efeito, o controle social das comunicações não pode ocorrer sem a intervenção do

poder político, cujas comunicações se dirigem tanto ao poder jurídico quanto aos sujeitos

deste poder (os quais se tornam também sujeitos do primeiro)”.

Outro dado relevante a ser sublinhado é que todos os procedimentos, sejam

externos ou internos, possuem uma função pré-determinada: não permitir que todos

tenham acesso ao universo jurídico.

Diante de tais ponderações, passamos a nos deter mais especificamente nos

principais procedimentos de controle.

4.1 Procedimentos de controle

A fim de impedir a entrada ao campo jurídico, como forma de controle de exclusão

de discursos, deparamo-nos com a questão do discurso autorizado. Entretanto, como já foi

abordado tal tema anteriormente, restringimo-nos ao controle discursivo somente ao âmbito

da forma ou do conteúdo do discurso jurídico, eliminando, neste momento, o âmbito do

sujeito que fala.

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Assim sendo, podemos apontar outros tipos de controle, agora de restrição. Tipos

estes que restringem, por vezes, a entrada ao campo jurídico, como também a permanência de

discursos no mesmo.

4.1.1 O hermetismo

Uma das formas de controle dos discursos jurídicos é o uso do hermetismo jurídico.

Alexandre Cesar (2002, p. 91) diz que, apesar dos avanços já conquistados no

âmbito do acesso à justiça, muitos entraves específicos e genéricos ainda existem à

efetividade deste direito. Este autor denomina esses entraves de “restrições”. São restrições

econômicas, socioculturais, psicológicas, jurídicas e judiciárias. Dentro dessas últimas

restrições, ele menciona o hermetismo do discurso jurídico:

Por fim, outro aspecto limitante ao acesso é o hermetismo do discurso jurídico e a profusão de normas que atulham a sociedade [...] Assim, mesmo as pessoas dotadas de maiores recursos têm dificuldade em entender as normas jurídicas, além do que a rapidez com que sucedem as legislações, coloca em xeque o próprio operador profissional do direito que nunca sabe se a norma em vigor ontem é a vigente hoje. Por outro lado, essas normas, ao invés de tornarem os comandos mais acessíveis e eficazes, através de uma linguagem coloquial, tornam-se cada vez mais rebuscadas e enigmáticas. (CESAR, 2002, p. 104-105). (grifo nosso).

Para Luiz Guilherme Marinoni (1993, p. 36), esse hermetismo é intencional, a fim

de distanciar as normas da realidade social: “Esse hermetismo pode ser fruto de uma intenção

de impedir que muitos tenham acesso crítico à legislação, o que faz com que as normas

fiquem muitas vezes distantes da realidade social”.

Esse rebuscamento na linguagem jurídica tem sido denominado como “juridiquês”.

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O “juridiquês” é esse linguajar jurídico difícil, pomposo e inacessível. Por ser um

exagerado requinte na linguagem, é marcado pelo emprego de palavras ou expressões

extravagantes e pouco usuais. Constitui uma espécie de “preciosismo”, sendo um desvio dos

padrões normais da linguagem jurídica compreensível.

A impressão que se tem diante de um discurso desse tipo é que ele não visa um fim

utilitário. O que existe é um exibicionismo lingüístico e estilístico, que só prejudica a

naturalidade do discurso e a compreensão do mesmo, revelando até certo “pedantismo”.

Muitos se utilizam desse tipo de discurso argumentando que estão fazendo uso de

um “bom vernáculo”. Mas essa última expressão não deve ser entendida como o uso de uma

linguagem complexa, mas “[...] o que se pretende é que, em Direito, a língua portuguesa seja

utilizada de modo escorreito e inteligível, a fim de que a mensagem veiculada seja facilmente

entendida pelo receptor”. (CAMPOS, 2002, p. 03).

É exatamente o pensamento de Paulo Nader (2003, p. 222), quando afirma que

A linguagem jurídica deve conciliar, a um só tempo, os interesses da ciência com os relativos ao conhecimento do Direito pelo povo, evitando o tecnicismo desnecessário. [...] A sobriedade, simplicidade, clareza e concisão devem ser as notas dominantes no estilo jurídico. A preocupação fundamental que deve inspirar ao legislador há de ser a clareza da linguagem e a sua correspondência ao pensamento.

Portanto, quando se critica o “juridiquês”, não se quer dizer que a linguagem jurídica

não deva ser bem-feita, conceitualmente precisa, formalmente elegante, discreta; e sim, que a

linguagem não pode ser rebuscada, simplesmente para disfarçar a pobreza de idéias e a

inconsistência de argumentos, e muito menos perder o caráter funcional.

Ademais, sempre quando uma crítica é feita, busca-se achar o culpado para se

apontar os erros. No caso do uso do “juridiquês”, a responsabilidade pelo rebuscamento vem

de todas as partes.

Não são só os juízes, os responsáveis por essa linguagem, embora se verifique que

muitas decisões e sentenças não são um ato de caráter utilitário, de aplicação concreta.

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Importante ressaltar que os advogados também são responsáveis por essa linguagem.

Termos empolados e parágrafos inteiros em latim, incompreensíveis, predominam em muitas

petições.

Os funcionários da Justiça também são responsáveis pelo uso do “juridiquês” na

medida em que fazem uso de jargões próprios (embora o façam na forma oral).

Mas deriva, em primeiro lugar, da lei, porque a sua linguagem é rebuscada para o

cidadão comum. Talvez seja por essa razão que Rui Barbosa dizia que se alguém queria

aprender a escrever bem deveria ler várias vezes o Código Civil.

O advogado e historiador Alberto Venancio Filho (apud CHRISTOFOLETTI;

MACHADO, 2005, A8) ensina que essa linguagem é fruto das tradições. Seria a tradição

lusitana, portanto, uma das explicações históricas para o “juridiquês”.

Antes de 1827, quando foram fundados os cursos jurídicos no Brasil, a maioria dos

advogados se formava na Universidade de Coimbra (VENANCIO FILHO, 1982, p. 07).

Mesmo depois dessa data, a tradição não acabou, porque os professores que lecionavam aqui

vinham de lá, sendo, inclusive, “[...] contemplados com todas as honras e prerrogativas de que

gozavam os da Universidade de Coimbra” (VENANCIO FILHO, 1982, P. 36). Assim, o

discurso jurídico era bem diferente do coloquial e foi passando de geração a geração.

O supracitado historiador (apud CHRISTOFOLETTI; MACHADO, 2005, A8) ainda

identifica como explicação histórica para o “juridiquês” a influência de Rui Barbosa, já que

“[...] ele foi um dos maiores juristas do Brasil, mas deixou uma tradição ruim. Antes dele,

existiam pareceres curtos. Ele introduziu a citação de diversos autores estrangeiros e a

prolixidade”.

Deixando um pouco de lado as explicações históricas para o “juridiquês”, interessa-

nos apontar que são aspectos lingüísticos e ideológicos que fazem com que esse rebuscamento

se perpetue na linguagem jurídica.

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Os aspectos lingüísticos de perpetuação referem-se ao uso de latinismos, arcaísmos,

estrangeirismos, neologismos, ambigüidades, imprecisões, siglas desnecessárias, enfim, uso

de formas e fórmulas jurídicas, calcadas em uma retórica-base.

Já os aspectos ideológicos podem ser verificados no fato da linguagem ser

burocrática e elitista, tema que será abordado posteriormente.

Ressalte-se, por último, que o pensamento de Michel Foucault (2003) é exatamente

no sentido de que “[...] o hermetismo é uma forma de controle social” (p. 157), e que “[...] os

discursos têm uma materialidade” (p. 141):

Se considerarmos a linguagem como uma série de fatos tendo um determinado estatuto de materialidade, essa linguagem é um abuso de poder pelo fato de podermos usá-la de uma determinada maneira, tão obscura, que vem impor-se à pessoa a quem é dirigida, do exterior, criando problemas sem solução, seja de compreensão, de re-utilização, de retorsão, de respostas, de críticas, etc. (FOUCAULT, 2003, p. 158). (grifo nosso).

4.1.2 A textura fechada dos textos jurídicos

Embora já tenhamos tratado da predominância da textura aberta da linguagem

jurídica como forma a permitir a exploração dos significados jurídicos, cabe, neste momento,

uma observação: nem todas as dimensões do discurso jurídico apresentam-se abertas.

De um modo geral, as dimensões são abertas apenas aos agentes que cumpriram as

devidas exigências do sistema jurídico e que demonstraram ser qualificados para entrar na

ordem dos discursos. Entretanto, algumas dimensões do discurso jurídico, ou melhor, do

corpus jurídico, são proibidas até mesmo para esses agentes autorizados.

Os discursos de textura fechada são marcados pela utilização de signos fechados

que, “[...] colocados como expressão de ‘uma verdade’, querem fazer-se passar por sinônimos

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de ‘toda a verdade’”. (CITELLI, 1995, p. 32). Tenta-se, ao escolher um signo, conferir um

caráter intangível ao discurso, com o fim de abafar ou de ocultar os índices sociais de valor. É

quase sempre uma expressão de um discurso institucional. É o que Adilson Citelli (1995, p.

32) denomina de “discurso dominante”, uma vez que são produzidos com a intenção de

dominar, de fazer com que outro faça algo ou interprete de determinada maneira.

Oscar Correas (1995, p. 55), ao comentar sobre os enunciados jurídico-prescritivos,

apresenta-os com três operadores deônticos:

Penso que está claro que os enunciados prescritivos proíbem, obrigam ou permitem. A idéia geral de dever foi desdobrada nestes três operadores denominados deônticos: proibido, obrigatório, permitido. O sentido prescritivo dos enunciados é outorgado aos enunciados através destes três operadores. Pode dizer-se que são enunciados prescritivos aqueles que podem ser traduzidos ou reescritos de modo que algum dos operadores deônticos possa ser utilizado nesta nova escrita sem que o enunciado deixe de ter algum sentido sintático.

Assim, pode-se afirmar que a textura fechada se encaixa no plano do “obrigatório”.

É possível notar que, se as prescrições estão nesse plano, e sob o plano semântico têm como

finalidade mudar o mundo, isto é, fazer que alguém faça algo, costumam incluir em seus

enunciados o verbo “dever”.

Um exemplo de textura fechada no Direito é o chamado “rol taxativo” ou “numerus

clausus”. Para que o texto legal não seja interpretado de forma ampla, ou a fim de impedir

uma inclusão posterior, o legislador define, expressamente, a extensão da norma. Assim,

elimina-se a usual flexibilidade na interpretação e a lei aplica-se àqueles casos e tão somente a

eles.

Uma grande ferramenta para tal classificação e definição é a linguagem que foi

utilizada. Se na letra da lei houver expressões do tipo “dentre outras”, seguramente o texto

será considerado, ao contrário, um rol exemplificativo, comportando a inserção de outros

casos, medidas e soluções análogas.

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Mas é importante salientar que, ao se afrontar esse discurso fechado e imutável, que

é uma determinação institucional, rompe-se com a normatividade da organização e pode-se,

como conseqüência, advir formas repressivas.

4.1.3 A obediência ao discurso anterior

Uma outra forma de controle que gera limitações aos discursos jurídicos é a regra da

obediência ao discurso anterior, principalmente se é proveniente de uma hierarquia superior.

Paolo Semama (1981) discorre sobre esses discursos anteriores e a sua conseqüência

nas ações dos detentores do poder jurídico:

[...] os detentores do poder jurídico não podem intervir para ordenar ou proibir comportamentos que não pertençam a um conjunto de atos que já foram objeto de comunicações orais ou escritas efetuadas por detentores do mesmo poder jurídico. (p. 104) (grifo nosso). Diante de uma ameaça do poder não-jurídico, o sujeito “deve” obedecer; em um contexto de relações jurídicas, o sujeito deve fazer ou não fazer alguma coisa em virtude de ter assumido convicções induzidas mediante as comunicações anteriores. (p. 122). (grifo nosso). [...] faz parte de uma ordenação jurídica a capacidade de recordar quais as comunicações (e respectivos comportamentos) que se pretendeu bloquear até o momento, e quais as comunicações (e respectivos comportamentos) que se pretendeu permitir. A memorização das decisões do poder jurídico (jurisprudência) permite estabelecer em relação a que dados da situação devem ser tomadas as providências (produção de normas, interpretação, aplicação). Isso significa que se estabelece o conteúdo do direito que é produzido. (p. 123). (grifo nosso).

Pierre Bourdieu (2007, p. 230) também comenta tal assunto quando afirma que

existe “A regra que impede ir-se para além das decisões jurídicas anteriores, stare decisis,

[...]”.

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Nesse ponto, são necessárias algumas considerações acerca do stare decisis, a

começar por seu conceito:

Expressão latina que significa à letra acatar os casos decididos. Esta expressão designa o princípio fundamental do direito inglês segundo o qual os precedentes constantes das decisões anteriores dos tribunais régios gozam de autoridade, são vinculativos, devendo ser seguidos por todos os tribunais quando ocorram no futuro casos semelhantes. (HART, 1986, p. 149)

Sobre a história da stare decisis é comum a sua divisão em quatro partes e está

relacionada diretamente com a história da publicação da jurisprudência, como aponta Augusto

César Moreira Lima (2001, p. 19):

a) De 1290 a 1535, o período dos Yearbooks; b) De 1535 a 1765, o período Plowden e Coke; c) De 1765 a 1865, o período das revistas de jurisprudência oficiais; d) De 1865 até o presente, o período moderno. Como pôde ser visto dessa divisão, a história da stare decisis está muito ligada com a história da publicação da jurisprudência. A divisão é baseada no surgimento de novas maneiras de publicar e editar jurisprudência e na crescente importância dos respectivos editores no raciocínio jurídico daquele tempo. O nascimento e desenvolvimento da doutrina tiveram lugar na Inglaterra.

José Rogério Cruz e Tucci (2004, p. 160), por sua vez, explica a consolidação da

teoria do stare decisis da seguinte maneira:

A moderna teoria do stare decisis (da expressão latina stare decisis et non quieta movere = mantenha-se a decisão e não se moleste o que foi decidido) informada pelo princípio do precedente (vertical) com força obrigatória externa para todas as cortes inferiores, veio inicialmente cogitada em prestigiada doutrina de um dos maiores juristas ingleses de todos os tempos, Sir Baron Parke J., que, por certo, inspirado na velha lição de Blackstone, escreveu: “O nosso sistema de Commow Law consiste na aplicação, a novos episódios, de regras legais derivadas de princípios jurídicos e de precedentes judiciais; e, com o escopo de conservar uniformidade, consistência e certeza, devemos aplicar tais regras, desde que não se afigurem ilógicas e inconvenientes, a todos os casos que surgirem; e não dispomos da liberdade de rejeitá-las e de desprezar a analogia nos casos em que ainda não foram judicialmente aplicadas, ainda que entendamos que as referidas regras não sejam razoáveis e oportunas quanto desejaríamos que fossem. Parece-me de grande importância ter presente esse princípio de julgamento, não meramente para a solução de um caso particular, mas o interesse do direito como ciência”.

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Como se pode notar, para tratar sobre o uso de precedentes - núcleo da doutrina

stare decisis, adotamos o sistema anglo-saxônico de justiça, o Common Law, já que este tem

como traço marcante o fato de dar importância às decisões dos juízes, elevando-as à categoria

de “fontes do direito”. Pode-se afirmar que modelo de raciocínio que é desenvolvido por este

sistema é o de exemplos, diferentemente dos países de direito codificado, como o Brasil. Em

geral, o sistema anglo-saxônico sugere uma supressão na produção legislativa, mas o mesmo

não ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos da América, em que são apontadas como fontes

do direito “a Constituição, as leis ordinárias federais [...] e estaduais, e as regras herdadas da

commow law” (TUCCI, 2004, p. 166) Entretanto, vê-se que as cortes de justiça julgam, com

grande freqüência, segundo a teoria do stare decisis, fazendo com que os códigos apresentem

uma importância relativa. Isso se deve a três fatores que são apresentados por Augusto César

Moreira Lima (2001, p. 46-49): o sistema de publicação de casos que torna acessíveis os

precedentes, o método de ensino jurídico calcado no estudo de casos e no diferente papel que

possuem os juízes. Sobre esse último motivo vale tecer alguns comentários:

[...] o argumento de que os juízes da commow law têm mais poder era verdadeiro no início e formação da commow law, ou quando, ainda hoje, o direito em certa área é inexistente. [...] O poder dos juízes diminuiu em especial porque eles não estão autorizados a decidir como entenderem. Ao passo que uma juíza de um sistema codificado pode decidir como quer que ela pense ser apropriado para resolver o caso, desde que forneça razões bastantes para sua decisão. (LIMA, 2001, p. 48).

Na verdade, Paulo Stanich Neto (2008, p. 01) afirma que podem ocorrer duas

situações distintas no sistema do Commow Law em que o precedente tem uma função

relevante: o da criação de nova norma e o da interpretação de norma em vigor. No caso da

criação de precedente, o referido autor esclarece que

Os magistrados do common law possuem a prerrogativa de criar um precedente novo para soluções de casos sem precedentes e normas legisladas sobre determinado tema, vinculando automaticamente com outras decisões futuras. [...]

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Uma vez estabelecido o precedente, este só poderá ser modificado ou revogado pela corte originária ou hierarquicamente superior. (STANICH NETO, 2008, p. 01).

É comum no Commow Law não se encontrar leis que disciplinem várias matérias,

constituindo os precedentes sua única fonte. Assim, estaremos diante do caso de interpretação

da norma em vigor contida no precedente. O maior problema, nessa situação, é identificar se o

caso concreto está dentro dos parâmetros da decisão já proferida. Por essa razão, Noel

Struchiner (2002, p. 47) afirma que “A grande dificuldade encontrada na aplicação dos

precedentes judiciais reside na questão das semelhanças necessárias e suficientes entre os

casos anteriores e o caso presente para que a mesma decisão possa ser tomada”.

Na verdade, não há nada que obrigue que o caso presente seja tratado da mesma

forma que o caso precedente, mas o que ocorre é que este último serve como forma de

restrição ao novo discurso apresentado no novo caso.

Para se concluir que um caso deva receber o mesmo julgamento que outro caso

recebeu, ou seja, que um discurso novo deva estar em conformidade com um proferido

anteriormente, não basta a afirmação vazia de que os dois casos são semelhantes. É preciso

também mostrar em que aspectos, ou quais as propriedades os casos têm em comum, e qual é

o peso das propriedades compartilhadas que justificam o mesmo tratamento.

A partir da observação da colocação das decisões passadas, discursos estes já

proferidos e reconhecidos como legítimos, perpetua-se a idéia que os casos análogos devam

ser tratados de forma análoga. Aliás, como assinala Augusto César Moreira Lima (2001, p.

81-87) essa idéia é utilizada como um dos argumentos a favor da doutrina stare decisis: a

justiça gerada pelo tratamento dos casos parecidos de maneira parecida.

Entretanto, o que se constata é que nunca os casos presentes têm uma identidade

absoluta em todos os aspectos. Isso porque, de acordo com Noel Struchiner (2002, p. 55),

“[...] a determinação de um peso que estabelece o grau de relevância da propriedade

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compartilhada vai variar em função do contexto no qual se pretende estabelecer a

semelhança entre objetos”.

A linguagem pode ajudar nessa identidade, como aponta Augusto César Moreira

Lima (2001, p. 64):

A identidade de um precedente, visando a sua aplicação, pode ser determinada pelo uso ou falta de uso de linguagem canônica na decisão prévia. Essa é de certa forma um tipo de autolimitação que o próprio juiz precedente pode fazer. Se ele usa palavras muito abrangentes, é mais provável que o precedente terá um uso mais abrangente. Mas algumas vezes o juiz pode fazer articulações caracterizadas e específicas de fatos e circunstâncias. Neste caso, o precedente é limitado. É mais difícil fazer assimilações se o próprio juiz restringiu sua decisão. [...] Para identificar se um precedente é aplicável, o operador tem em mente, para que possa fazer os paradigmas analíticos, a própria estrutura da linguagem.

Um argumento utilizado contra a doutrina stare decisis é que sua utilização causa

uma supressão da liberdade do juiz em decidir o caso submetido. Mas como se verifica no

trecho acima, dependendo da postura adotada pelo juiz que proferiu o discurso anterior, o

precedente pode ser interpretado de modo restritivo ou ampliativo. A restrição ou ampliação

depende do uso da textura aberta no precedente que, uma vez presente no texto jurídico, pode,

muitas vezes, comportar a aplicação de princípios opostos, de teses opostas entre as duas

decisões. É por essa razão que José Rogério Cruz e Tucci (2004, p. 175) completa: “A

submissão ao precedente [...] encerra uma escolha, uma opção hermenêutica [...]”.

Sobre tal argumento, Augusto César Moreira Lima (2001, p. 75) conclui:

[...] dizer que precedentes constringem a liberdade dos juízes na decisão dos casos não é incorreto. Os juízes podem, é verdade, decidir de modo contrário e diferenciar. Mas também se sabe que as decisões em sentido contrário e a diferenciação de casos são a exceção, não a regra.

Sob o nosso ponto de vista, quando o precedente é usado para interpretação, de

modo restritivo e vinculativo16, é possível verificar sua função de “controle de discurso”.

16 Augusto César Moreira Lima (2001, p. 59-62) tece alguns comentários sobre a autoridade do precedente e o classifica em: “precedente persuasivo” e “precedente vinculativo”. Segundo este autor (2001), “Um precedente é

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Uma vez apresentados alguns argumentos que se mostram contrários à prática da

stare decisis, cabe tecer alguns comentários sobre os favoráveis a esta.

Além da justiça que é propiciada com o seu uso (aspecto apontado anteriormente),

Augusto César Moreira Lima (2001, p. 87- 100) apresenta, ainda, mais outros cinco

argumentos favoráveis: previsibilidade, consistência (ou a força cumulativa da stare decisis),

eficiência, tradição e a legalidade juntamente com o gradualismo.

Noel Struchiner (2002, p. 46), por sua vez, também apresenta os fatores subjacentes

que dão sustentação ao uso de precedentes:

Os fatores subjacentes que norteiam essa noção são certos valores como a igualdade, consistência, segurança ou estabilidade jurídica e a previsibilidade. Esses valores, entre outros, são partes constitutivas do próprio conceito de justiça e são necessários para a existência de um sistema jurídico eficaz. (grifo nosso).

Na verdade, segurança, estabilidade e previsibilidade jurídicas são os elementos

mais almejados pelos sistemas jurídicos. E, de certo modo, recorrer com continuidade ao stare

decisis, pode torná-lo um postulado que tenha como função impedir as aparições aleatórias de

discursos, isto é, barrar o surgimento de discursos diferentes do corpus jurídico já constituído

pelos agentes autorizados em hierarquia superior, sendo a tradição17 do monopólio da

competência jurídica mantida.

Além disso, podemos acrescentar que o efeito gerado pelo uso de precedentes pode

também ser o de garantir que uma decisão apareça “[...] como produto de uma aplicação

neutra e objetiva de uma competência especificamente jurídica” (BOURDIEU, 2007, p. 231).

persuasivo se o tribunal ao qual um pedido com base no precedente foi feito não está constrito ao precedente citado. Esse fato toma lugar quando o precedente citado é de outra jurisdição ou de um tribunal hierarquicamente inferior ao tribunal presente” (p. 59); por outro lado, “Diz-se que um precedente é vinculante quando ele foi decidido por um tribunal superior, ou pelo mesmo tribunal, caso em que o precedente é menos vinculante do que quando um tribunal superior tenha decidido o precedente” (p. 60). 17 É preciso esclarecer que o tradicionalismo também pode ser visto como um argumento contra a stare decisis, quando ele barre o desenvolvimento do direito. É nesse sentido que se usa o termo nessa passagem.

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Por isso, Pierre Bourdieu (2007, p. 231) alerta: “[...] é preciso evidentemente ter

cuidado em não fazer do stare decisis uma espécie de postulado racional próprio para garantir

a constância e a previsibilidade, e ainda a objetividade das decisões judiciais [...]”.

Michel Foucault (2006, p. 36) trata da busca de tal previsibilidade como um dos

princípios de controle da produção do discurso, exercendo uma espécie de função restritiva e

coercitiva à mesma, embora sob a denominação de “disciplina”: “A disciplina é um

princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma

identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras”. (grifo nosso).

Assim, segundo a visão dos referidos autores, a previsibilidade pode manter o

sistema jurídico fechado, em razão do “modus operandi” dos agentes autorizados.

4.1.4 Os rituais

Traçado o controle via “obediência ao discurso anterior”, resta-nos apenas comentar

as formas jurídicas como meio de controle de discursos.

No segundo capítulo introduzimos tal assunto quando tratamos dos instrumentos que

auxiliam o exercício e a perpetuação da competência jurídica. Entretanto, neste momento,

destacamos os rituais (abarcando todas as formas e procedimentos jurídicos) não só como

justificativa para um monopólio de competência, mas, claramente, como próprio meio de

controle de discursos.

Paulo Nader (2003, p. 223), por exemplo, é um dos autores que afirma que os rituais

visam à necessidade de controle: “No âmbito do Judiciário, a formalidade é uma constante,

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pois o rito das ações é pontilhado de exigências formais, que visam à garantia de validade

dos atos praticados e à necessidade de controle dos atos judiciais”. (grifo nosso).

Michel Foucault (2006, p. 38-39) também inclui o ritual como sistema de restrição.

Aliás, o considera como a forma mais fácil de ser identificada:

A forma mais superficial e mais visível desses sistemas de restrição é constituída pelo que se pode agrupar sob o nome de ritual; o ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciados); define gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coerção. (grifo nosso).

Os rituais que são exigidos para a prática de atos jurídicos, seja em qualquer ramo do

direito que se encontrem, possuem as funções acima expostas, em especial, a de definirem os

signos que os discursos devem apresentar, impondo-se, assim, certo grupo de palavras,

influindo no tecer do discurso. Assim, não se pode falar o que se quer e como quer, deve-se,

ao contrário, restringir, amenizar o discurso a ser proferido, com palavras determinadas pelo

corpus jurídico, sob pena de não se obter o pretendido, ou seja, a ponto de se perder a sua

eficácia.

Ao adentrarmos no mundo jurídico, é muito fácil verificar essa ligação entre os

discursos jurídicos e a prática de rituais. Basta abrir qualquer código jurídico e encontraremos

“ritos”, determinando para os sujeitos que podem se manifestar no campo jurídico, o tempo, o

modo, a forma e os papéis a serem desempenhados. O jogo jurídico e todas as suas regras são

pré-estabelecidos.

Michel Foucault (2006, p. 40) deixa claro que mesmo o discurso desprovido de

qualquer ritual contém formas de apropriação de segredo e de não-permutabilidade:

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É certo que não mais existem tais “sociedades de discurso18”, com esse jogo ambíguo de segredo e de divulgação. Mas que ninguém se deixe enganar; mesmo na ordem do discurso verdadeiro, mesmo na ordem do discurso publicado e livre de qualquer ritual, se exercem ainda formas de apropriação de segredo e de não-permutabilidade.

O direito faz uso desse jogo de segredo e de divulgação. Segredo e divulgação,

porque os rituais são cumpridos por aqueles que deles têm conhecimento, aqueles que têm

acesso às regras estabelecidas. É a forma erigida para conservar e produzir discursos e de

fazê-los circular em um espaço fechado.

Os discursos realizados por meio de rituais são legitimados por serem considerados

“discursos verdadeiros”; isso depois de cumpridos todos os atos e as exigências do campo

jurídico. É o que diz Michel Foucault (2006, p. 62): “[...] para ver como o discurso eficaz, o

discurso ritual, carregado de poderes e de perigos, ordenou-se aos poucos em uma separação

entre discurso verdadeiro e discurso falso”.

Enfim, pode-se dizer que todas essas formas de controle acima expostas, são

coerções que o Direito realiza no plano do discurso, uma vez que são “[...] as que limitam

seus poderes, as que dominam suas aparições aleatórias, as que selecionam os sujeitos que

falam” (FOUCAULT, 2006, p. 37).

Além disso, ressalte-se que todas elas transformam o discurso em um jogo de

significações prévias, ditadas por uma autoridade competente. É o que Michel Foucault (2006,

p. 51) denomina de “soberania do significante”. É como se o discurso sempre se apresentasse

legível.

Ao contrário dessa idéia, Michel Foucault (2006, p. 53) pensa que não temos de

decifrá-lo apenas, assinalando que “Deve-se conceber o discurso como uma violência que

18 Michel Foucault (2006, p. 40) explica que em tal sociedade, “[...] o número de indivíduos que falavam, mesmo se não fosse fixado, tendia a ser limitado; e só entre eles o discurso podia circular e ser transmitido”. Como exemplo, cita os grupos de rapsodos, que possuíam o conhecimento dos poemas a recitar. A aprendizagem destes exigia um grupo e um segredo, no qual os papéis de “palavra” e “escuta” também não podiam ser trocados.

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fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos em todo o caso; e é nesta prática que

os acontecimentos do discurso encontram o princípio de sua regularidade”.

Por fim, pode-se dizer que o jurista, mediante esse controle, tende a desempenhar o

papel de conservador dos dogmas do Direito.

4.2 O controle dos discursos sob a perspectiva semiótica

O controle realizado nos discursos jurídicos, além de estar ligado ao acesso ao

campo jurídico, contribui para toda uma organização da linguagem.

Deste modo, podemos dizer que tal controle é efetuado com base em dois eixos:

paradigma e sintagma.

O eixo paradigmático é aquele em que há um repertório de símbolos e regras,

também chamado de “eixo de seleção”, aproximando-se daquilo que chamamos de

“semântica”. Já o sintagmático é o eixo em que se tem uma combinação dos símbolos,

aproximando-se, por sua vez, da sintaxe19.

Ou seja, há dois modos dos signos se organizarem em códigos: no eixo

paradigmático, há um conjunto de signos donde se escolhe aquele que vai ser utilizado, já no

eixo sintagmático, os signos escolhidos se combinam.

Clarice von Oertzen de Araújo (2005, p. 29) aplica tais conceitos na análise da

organização do discurso no código jurídico, fazendo a ressalva que “os eixos não existem

19 Comentários sobre esses dois eixos, o da seleção e o da combinação, podem ser encontrados na obra de Clarice von Oertzen de Araújo (2005, p. 28), que toma como referência artigo “Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia” de Jakobson para tratar de tal tema.

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separadamente, mas são interdependentes”, ocorrendo somente “a predominância de um eixo

sobre o outro em uma determinada operação”.

Comecemos por comentar a aplicação do eixo paradigmático no Direito.

A “seleção” pode ser verificada em vários momentos no Direito.

Tercio Sampaio Ferraz Júnior (2007, p. 102-103), ao abordar a “concepção dos

fenômenos sociais como situações normadas, expectativas cognitivas e normativas”, afirma

que há uma seletividade. Segundo ele, como “[...] as situações comportamentais são

complexas, há nelas uma compulsão para selecionar expectativas e possibilidades atualizáveis

de interação [...]” (FERRAZ JÚNIOR, 2007, p. 103).

Desse modo, a estrutura jurídica, para garantir uma certa estabilidade ao sistema, é

“[...] uma espécie de seletividade fortalecida, uma dupla seletividade”, aliviando, “[...] os

agentes da carga da complexidade e da contingência que se mostra na seletividade” (FERRAZ

JÚNIOR, 2007, p. 103).

Marcelo Neves (2007, p. 136-137), também aponta que há processos seletivos no

sistema jurídico:

A vigência jurídica das expectativas normativas não é determinada imediatamente por interesses econômicos, critérios políticos, representações éticas, nem mesmo por proposições científicas, pois depende de processos seletivos de filtragem conceitual no interior do sistema jurídico. (grifo nosso).

Paolo Semama (1981, p. 121), por sua vez, também trata dessa “seleção” dentro da

comunicação jurídica:

Finalmente, deve-se lembrar que a comunicação jurídica visa a selecionar as comunicações possíveis dentro de um certo âmbito espaço-temporal por meio da aplicação de um mesmo critério a todas as novas comunicações que se manifestem dentro de um sistema de relações intersubjetivas e tenham um mínimo de tendência à estabilidade.

As três citações acima servem de exemplo da utilização do eixo paradigmático da

linguagem jurídica-normativa.

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Mas Clarice von Oertzen de Araújo (2005, p. 30-32), além dos autores supracitados,

faz questão de apresentar ainda outros exemplos, tais como: a liberdade do editor normativo

nas operações de seleção dos fatos sociais que constarão nas normas jurídicas, a operação de

subsunção e a incidência da norma, o próprio início de um processo jurídico - quando o

advogado elege a norma aplicável ao caso concreto, o momento de interpretação e aplicação

do Direito - quando o intérprete é obrigado a fazer escolhas, identificando a hipótese legal ao

caso concreto.

Quanto ao eixo sintagmático, pode-se citar como exemplos a combinação feita entre

o direito material - que fundamenta o pedido - e o direito formal/processual - o procedimento

escolhido no qual o pedido será encaminhado; assim como, o caso de uma norma superior

fornecer a outra inferior o seu fundamento de validade.

O interessante é que “o sistema prevê sanções para a realização de operações

inadequadas, estejam elas no eixo paradigmático (seleção) ou no eixo sintagmático

(combinação)” (ARAÚJO, 2005, p. 33).

Mas tanto o eixo paradigmático, como o sintagmático, são manejados pelos

operadores do Direito de forma a manter “o sentido comum teórico dos juristas”20. É a forma

de preservação do sistema; “a informação nova não entre diretamente no sistema, mas tem

que ser dominada por ele” (ARAÚJO, 2005, p. 62).

Diante de tudo que foi exposto, percebe-se que o controle dos discursos é realizado

tanto na seleção como na combinação. O eixo paradigmático revela-se quando se faz a

escolha por determinado termo rebuscado, por determinado precedente ou norma fundamental

que vai ao encontro aos propósitos de seu usuário; assim como será eixo sintagmático quando

se combina ritual e norma, precedente e norma etc.

20 Luis Alberto Warat (1988, p. 31) deu o nome de “sentido comum teórico dos juristas” ao conjunto de representações, imagens, noções baseadas em costumes, metáforas e preconceitos valorativos e teóricos, que governam os atos, as decisões e as atividades dos juristas de profissão.

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Seja qual for o eixo, há um controle institucional, que é “[...] um controle discursivo

que se exerce através do poder do discurso, o qual impõe uma só possibilidade de

interpretação” (WARAT, 1988, p. 37).

Vale lembrar o que Fábio Ulhoa Coelho (2005, p. 46) pondera quanto ao poder:

Não se vincula o poder à obtenção de determinados resultados, mas à transmissão de performances seletivas; trata-se de um meio de comunicação que neutraliza a vontade do submetido, mas não a quebra. Mais que dominação, poder é influência; mas que força, é controle. (grifo nosso).

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CAPÍTULO 5 - A REPERCUSSÃO DA LINGUAGEM JURÍDICA

NO CAMPO SOCIAL

Nossa preocupação, até o momento, foi analisar a estrutura e as relações internas do

campo jurídico, no tocante à linguagem jurídica. Mas, não podemos nos esquecer das relações

entre a linguagem e a sociedade, mais especificamente, das vinculações entre a linguagem

jurídica e a sociedade. Dessa maneira, buscamos demonstrar o “retro-agir” da linguagem

jurídica sobre o campo social.

Dessa forma, abordaremos, ainda que de forma sucinta, as afinidades existentes

entre os temas “linguagem jurídica e ideologia”; “linguagem jurídica e acesso à justiça”

(embora no capítulo sobre o controle dos discursos isso já tenha se tornado aparente) e

“linguagem jurídica e trabalho/mercado”.

5.1 A linguagem jurídica como fruto da ideologia dominante

A primeira observação a ser feita é que para se traçar as relações existentes entre a

linguagem e a ideologia é preciso considerar a linguagem como uma instituição social, ou

seja, um instrumento de mediação entre os homens. Mas não é esta última uma instituição

qualquer; ela tem suas especificidades.

Uma outra ressalva é que, ao se discutir essa relação existente entre a linguagem e a

ideologia, usa-se constantemente termos como “discurso” e “fala”; por esta razão, é de grande

importância iniciar este tópico com uma definição, ainda que simples, desses termos.

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O discurso “[...] são as combinações de elementos lingüísticos (frases ou conjuntos

constituídos de muitas frases), usados pelos falantes com o propósito de exprimir seus

pensamentos, de falar do mundo exterior ou de seu mundo interior, de agir sobre o mundo”.

(FIORIN, 1995, p. 11).

Já a fala é “a exteriorização psico-físico-fisiológica do discurso” e “[...] é

rigorosamente individual, pois é sempre um eu quem toma a palavra e realiza o ato de

exteriorizar o discurso”. (FIORIN, 1995, p. 11).

Diante do conceito de discurso, pode-se ter a impressão que discurso é apenas um

amontoado de frases, o que não é verdade. O sentido que deve ser atribuído é que o discurso

tem uma estrutura e não só; o discurso tem na sua essência uma sintaxe e uma semântica. Por

essa razão, Ingedore Grunfeld Villaça Koch define discurso como “[...] ação verbal dotada de

intencionalidade”. (KOCH, 2002, p. 17).

A sintaxe discursiva preocupa-se com os processos de estruturação do discurso, tais

como: o discurso direto, indireto; a utilização ou não da primeira pessoa no discurso; etc. Já a

semântica discursiva cuida dos conteúdos dos quais estão investidos os modelos sintáticos,

dependendo diretamente de fatores sociais.

Segundo José Luiz Fiorin (1995, p. 18-19), há no discurso um campo de

manipulação consciente e o da determinação inconsciente. A sintaxe discursiva é o campo da

manipulação consciente, em que o falante utiliza-se de estratégias argumentativas e de outros

procedimentos para criar efeitos com o intuito de convencer o seu interlocutor. A semântica

discursiva é, por sua vez, o campo da determinação inconsciente, em que o falante escolhe um

conjunto de elementos semânticos habitualmente usados, sem se dar conta que constitui a

maneira de ver o mundo de uma dada época, numa dada formação social.

É essa última linha de análise do discurso que interessa quando se fala em linguagem

e ideologia, porque é a via de determinação ideológica propriamente dita, confirmando o que

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diz Marilena Chauí:“A ideologia não é um processo subjetivo consciente, mas um fenômeno

objetivo e subjetivo involuntário produzido pelas condições objetivas da existência social dos

indivíduos”. (CHAUÍ, 2004, p. 72).

Falar em “ideologia” é adentrar em questões complexas, uma vez que, embora seja

uma palavra muito empregada, possui uma multiplicidade de significações que lhe são

atribuídas.

O termo “ideologia” aparece pela primeira vez na França, após a Revolução

Francesa, no início do século XIX, em um livro de Destutt de Tracy, que tem o seu título

traduzido da seguinte forma: “Elementos de Ideologia”. Este livro tinha como objetivo

elaborar uma ciência da gênese das idéias, em consonância com o que a própria expressão

designava: junção lingüística da raiz grega eidos (idéia) com logos (estudo, conhecimento).

Porém, a verdade é que esse termo passou a ser usado de modo pejorativo. Tudo

leva a crer que esse sentido negativo veio de uma declaração de Napoleão, que, em um

discurso ao Congresso de Estado em 1812, disse que todas as desgraças que afligiam a França

deveriam ser atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica, que advinha das idéias dos

intelectuais liberais do “Institut de France”. A qualificação a estes era no sentido de afirmar

que constituíam uma especulação abstrata e falsa.

Oscar Correas (1995, p. 31-34) pondera que quando o termo “ideologia” é utilizado

para “denotar o campo de valores”, este perde suas conotações pejorativas, propondo que o

termo seja usado para fazer referência a “qualquer conteúdo de consciência”.

José Luiz Fiorin (1995, p. 28-29), por sua vez, diz que ideologia é o conjunto de

idéias e representações que servem para justificar e explicar a ordem social, as condições de

vida do homem e as relações que ele mantém com os outros homens. Acrescenta ainda: ela

existe independentemente da consciência dos agentes, sendo uma forma fenomênica21 da

21 Numa formação social, temos dois níveis de realidade: um de essência e um de aparência, ou seja, um profundo e um superficial, um não-visível e um fenomênico. (FIORIN, 1995. p. 26).

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realidade, que oculta as relações mais profundas e as expressa de modo invertido. A inversão

da realidade é ideologia.

Como se pode observar, dos múltiplos usos do termo, pode-se dizer que se verificam

dois tipos gerais de significado: o significado positivo e o negativo de ideologia22. Em síntese,

o significado positivo aponta a ideologia como um instrumento de justificação ou de análise

crítica; já o negativo, como instrumento de manipulação e ocultação.

Mas, independentemente do sentido que se atribui à ideologia, o que é relevante é

que ela tem influenciado as diversas práticas normativas no campo jurídico. Embora a Ciência

do Direito negue, pensamos que, “Sendo o Direito uma ordenação valorativa, não está imune

e não pode desvincular-se da constante valoração ideológica em todos os seus níveis”

(WOLKMER, 2003, p. 172).

A base do discurso de legitimação de uma Ciência do Direito está na pretensa

neutralidade normativa. A crença nessa neutralidade estende-se, inclusive, aos que integram

toda a estrutura jurídica, em especial, os juízes, uma vez que são denominados como

“imparciais”.

Esquece-se que, ao longo de sua história de vida, sem perceber, o homem deixa que

a sua consciência seja formada. A consciência de um indivíduo é fruto de um conjunto de

discursos que foram sendo assimilados por ele. Por essa razão, pode-se afirmar que não existe

um discurso que seja desprovido de uma consciência social, ou que seja resultado exclusivo

de uma individualidade. O homem é um ser social e influenciado por suas relações em

sociedade. Um discurso, no seu nível de realidade profunda, sempre cita outros discursos já

interiorizados.

Mikhail Bakhtin (2004, p. 35) resume bem essa “interiorização” de outros discursos

com a seguinte afirmação: “A consciência individual é um fato sócio-ideológico”.

22 Uma explanação sobre tal assunto pode ser encontrada no livro de Antonio Carlos Wolkmer: “Ideologia, Estado e Direito”, 2003, p. 99-109.

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Edward Lopes (apud FIORIN, 1995, p. 42) explica da seguinte forma: “[...]

combinando uma simulação com uma dissimulação, o discurso é uma trapaça: ele simula ser

meu para dissimular que é do outro”.

Em outras palavras, o homem sempre reproduz inconscientemente o que seu grupo

social diz.

Se no plano individual, por meio do aplicador da lei, não se pode negar a presença

de ideologias, quanto mais no seu plano teórico.

Embora este caráter ideológico do Direito seja passível de ser detectado também na

doutrina positivista, isso jamais é declarado ou reconhecido; pelo contrário, é ocultado pela

dogmática jurídica.

Sobre esse assunto, Antonio Carlos Wolkmer (2003, p. 154) pondera que

Parece que criticamente a neutralidade normativa de uma Ciência “pura” do Direito não resiste mais à sua ideologização. A Ciência do Direito não consegue superar sua própria contradição, pois enquanto “Ciência” dogmática torna-se também ideologia da ocultação. Esse caráter ideológico da Ciência Jurídica se prende à asserção de que está comprometida com uma concepção ilusória de mundo que emerge das relações concretas e antagônicas do social. O Direito é a projeção normativa que instrumentaliza os princípios ideológicos (certeza, segurança, completude) e as formas de controle do poder de um determinado grupo social.

Isso vem a confirmar o que Ingedore Grunfeld Villaça Koch (2002, p. 17) afirma:

“[...] a neutralidade é apenas um mito: o discurso que se pretende ‘neutro’, contém também

uma ideologia - a da sua própria objetividade”.

José Eduardo Faria (1988, p. 15-16) trata dessa busca, por parte da dogmática

jurídica, pela neutralidade, pela objetividade, pela apoliticidade do intérprete:

Ao permitir uma aceitação acrítica do direito positivo, ele oculta as origens históricas tanto de suas categorias quanto dos interesses políticos nelas subjacentes. Ao projetar um conhecimento pretensamente objetivo, recusando questões metodológicas que articulam os planos da explicação e da realidade, ele também transforma a imparcialidade em instrumento para a socialização dos valores dominantes tutelados pela ordem jurídica.

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O mais interessante é que se desenvolve todo um aparato conceitual no sentido de

demonstrar que o Direito é isento de contaminações ideológicas, que “[...] servem como

elementos organizadores do próprio discurso jurídico, com funções ideológicas definidas:

despertar nos indivíduos a confiança nas leis e nos códigos como um sistema legítimo de

institucionalização e resolução dos conflitos” (FARIA, 1988, p. 16).

Desse modo, propicia-se o desenvolvimento do “judicialismo”, a idéia de que só o

juiz é capaz de solucionar conflitos.

Não há como negar que a dogmática representa uma atitude ideológica que, segundo

José Eduardo Faria (1988, p. 17), constitui “um ethos cultural específico”.

Esse “ethos cultural específico” é identificável com a consolidação do Estado

Liberal:

Em termos históricos, a transição dos antigos para os novos paradigmas da dogmática jurídica foi deflagrada pela emergência do modo capitalista de produção, isto é, pela substituição do capitalismo concorrencial pelo capitalismo monopolista; e foi acelerada pela institucionalização de novas formas organizacionais no âmbito do Estado liberal, mediante a consolidação de anéis burocráticos que ampliaram sua capacidade de direção e controle do processo produtivo visando reajustá-lo estruturalmente às novas exigências da lógica do capital. (FARIA, 1988, p. 23).

Interessante que Pierre Bourdieu (2007, p. 247) também discursa sobre um

“etcnocentrismo dos dominantes” no Direito:

Vê-se que a tendência para universalizar o seu próprio estilo de vida, vivido e largamente reconhecido como exemplar, qual é um dos efeitos do etnocentrismo dos dominantes, fundamentador da crença na universalidade do direito, está também na origem da ideologia que tende a fazer do direito um instrumento de transformação das relações socais e de que as análises precedentes permitem compreender que ela encontre a aparência de um fundamento na realidade: [...].

Mas a dogmática jamais admitiria sua origem em tais relações específicas de

dominação, muito menos que o Direito posto é decorrente de uma ideologia, a da burguesia

triunfante.

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Para se entender o Direito, como fenômeno social, histórico e concreto que é, é

preciso atentar para as acepções e os valores do tipo de Estado ao qual está ligado23 e que,

cada Estado, tem uma classe dominante no poder. Nesse sentido é a afirmativa de Carlos

María Cárcova (1998, p. 72):

Numa sociedade heterogênea, o direito, mais que uma expressão das aspirações do povo em seu conjunto, é uma expressão das aspirações dos grupos dominantes que - em qualquer hipótese - exercem sua dominação, não sem confrontações.

E a linguagem jurídica revela as aspirações desses grupos dirigentes:

O uso de expressões formalmente imperativas foi aos poucos desaparecendo desde a linguagem jurídica antiga até a moderna, mesmo porque o estabelecimento da norma garante melhor aquele que exerce o poder em relação aos riscos de uma contestação. Talvez a linguagem jurídica seja o elemento mais revelador da fonte principal de poder para uma classe dirigente. A própria permanência nas linguagens jurídicas modernas de elementos da linguagem mágico-religiosa, ético-teísta, ético-naturalista e científica serve não apenas para testemunhar a passada existência de pontos de força da sociedade, mas assinala também, dentro de certos limites, que o exercício do poder se serve atualmente da perene eficácia de algumas considerações. Daí poder-se afirmar que, quando se desfaz uma das bases sociais de poder, a linguagem jurídica aceita tal situação muito lentamente e, ao mesmo tempo, se esforça para refletir a matiz de autoridade que se veio produzindo no lugar daquela autoridade solapada e decadente. (SEMAMA, 1981, p. 115-116). (grifo nosso).

Além da propagação da idéia do Estado como um aparelho neutro na linguagem

jurídica, um “Estado democrático de direito”, há a projeção de todo um pensamento jurídico,

que Luis Alberto Warat (1988, p. 31) denominou como o “sentido comum teórico dos

juristas”24.

Todos os juristas de profissão são influenciados por esse conjunto de saberes, ainda

que de forma imperceptível. Como esse conjunto de pautas condiciona todas as atividades

23 A identidade entre Direito e Estado também é ressaltada na obra de Paolo Semama. Para este autor (1981, p. 119) é necessário “ter em mente o complexo entrelaçamento dos fenômenos políticos de um Estado, para podermos entender o seu status jurídico”. 24 O que se entende por “sentido comum teórico dos juristas” já foi apontado em nota de capítulo anterior.

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cotidianas do Direito (atividade advocatícia, judicial e teórica), pode-se dizer que “funciona

como um arsenal ideológico” (WARAT, 1988, p. 31).

O “sentido comum teórico” tornou-se, inclusive, uma linguagem comum, revelando

que há um discurso que foi interiorizado. Na verdade, essa aceitação e reprodução de discurso

são condições que permitem que o Direito positivo esteja em vigor, que a dogmática perdure.

Constitui uma técnica de exercício, manutenção e eficácia do controle social:

Sem estes saberes, não poderia haver prática jurídica, isto é, não existiriam as condições objetiváveis para produzir decisões significativas socialmente legitimáveis, exigir o acatamento das relações sociais e de poder impostas e manter o controle social. Aceitando que o direito é uma técnica de controle social, não podemos deixar de analisar o papel que o “sentido comum teórico” desempenha como estratégia asseguradora de eficácia do controle social. (WARAT, 1988, p. 31).

Fábio Ulhoa Coelho (2005, p. 23) também aborda essa “tecnologia jurídica”:

A tecnologia é um nível ideológico do conhecimento jurídico. Não apenas porque deixa de questionar os fins para os quais apresenta os meios adequados, mas principalmente porque contribui para o conteúdo mesmo da norma jurídica. Os tecnólogos do direito, como mencionado, são, pela função que exercem, pessoas de destaque na comunidade jurídica. Sua vontade e sua ideologia são de importância fundamental para aquilo que, em concreto, será tomado como norma jurídica; ela, em boa parte, é o que a tecnologia diz que ela é. As relações entre este nível específico de conhecimento jurídico e o poder, assim, revestem-se de um caráter todo especial, simbiótico mesmo.

Ao se estudar o “sentido comum teórico”, vê-se que a definição de ideologia dada

por Marilena Chauí encaixa-se perfeitamente neste conjunto de saberes propagado, uma vez

que ideologia, para ela, “[...] é um ideário histórico, social e político que oculta a realidade, e

que esse ocultamento é uma forma de assegurar e manter a exploração econômica, a

desigualdade social e a dominação política”. (CHAUÍ, 2004, p. 07).

Luis Alberto Warat (1988, p. 34-35), por sua vez, ensina como identificar um saber

ideológico:

É possível dizer que temos um saber ideológico todas as vezes que estamos diante de discursos que, em lugar de nos mostrarem os determinantes da

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realidade, aparecem carentes deles, ocultados e silenciados através de enunciados tidos como verdadeiros. Os critérios de verdade e falsidade devem sempre ser vistos como efeitos do campo ideológico de significação de uma mensagem ou discurso.

É exatamente o que ocorre no campo jurídico: temos discursos que tentam traçar

uma identidade entre o saber e a realidade concreta, ou seja, “As imagens discursivas são

vividas como a realidade concreta da sociedade” (WARAT, 1988, p. 33).

O direito como “dever-ser” é a manifestação dessa busca pela identidade. Têm-se

projeções da realidade, que aparecem com distorções:

A ciência social e jurídica, que aparece como suporte indiferente das relações de poder, faz surgir, no entanto, uma instância ideológica, sobretudo e na medida em que atribui significações discutíveis de realidade social, projetadas imaginariamente como possíveis e desejáveis, ainda que nem sempre factíveis, plasmando-as em discursos reificantes, a-históricos e com pretensões de generalidades e universalidade. (WARAT, 1988, p. 33).

A ciência jurídica busca eliminar o subjetivo, por isso aparece como “suporte

indiferente” - idéia de neutralidade, por meio de “discursos reificantes”, isto é, transformando

imaginações como se de fato existissem.

Pierre Bourdieu (2007, p. 248) discorre sobre esse “esforço dos grupos dominantes”

em impor uma representação oficial do mundo social que esteja de acordo com a sua própria

visão de mundo, favorecendo seus interesses.

Assim, o “sentido comum teórico” consegue mascarar as contradições sociais,

operando-se a identidade entre as relações sociais com os esquemas ideais elaborados.

Entretanto, é importante ressaltar que isso não quer dizer que todo conteúdo

normativo vem ao encontro dos anseios da classe que detém o controle efetivo do poder.

Fábio Ulhoa Coelho (p. 08-09) aborda sobre o perigo da redução voluntarista, que

desconhece o papel das classes dominadas:

Pela redução voluntarista, o direito é visto como mera expressão dos interesses da classe dominante. Ignora-se, nessa perspectiva, o papel que as classes dominadas desempenham na história e a própria dinâmica da luta de

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classes. O direito acompanha, com maior ou menor proximidade, os movimentos dessa luta. As concessões localizadas da burguesia e os avanços e conquistas do proletariado estão presentes no condicionamento da produção normativa. Além disso, a classe dominante possui suas segmentações, seus projetos diferenciados, que compõem uma complexa rede de interesses, impossível de ser sintetizada na idéia de um direito que atenda exclusivamente aos de uma classe social apenas. Claro que o direito manifesta a tendência de privilegiar os interesses dominantes, mas isso ocorre porque tais interesses prevalecem sobre os demais nas evoluções da luta de classes.

Marcelo Neves, ao tratar da constitucionalização simbólica, apresenta uma tipologia

da legislação simbólica. Tomando como base um modelo tricotômico elaborado por

Kindermann, ele (2007, p. 33) afirma que o conteúdo de uma legislação simbólica pode

confirmar valores sociais, demonstrar a capacidade de ação do Estado e adiar a solução de

conflitos sociais por meio de compromissos dilatórios.

Seja qual for o objetivo acima descrito, a legislação simbólica pode atentar para as

necessidades e exigências dos cidadãos. Entretanto, é preciso salientar que, em geral, o

legislador o faz com o escopo de gerar nos cidadãos uma confiança, seja no sistema político,

quanto no jurídico25. É uma forma de o Estado reagir às pressões sociais, dando uma solução

“imediata”; embora, esta constitua meramente em um “compromisso dilatório”26, já que a

verdadeira solução fica, normalmente, para um futuro indeterminado.

Mas o fato desse conteúdo normativo atender às expectativas da população não

elimina a função ideológica concretizada com o texto da lei.

Aliás, Marcelo Neves (2007, p. 39-40) afirma que tal legislação é meio de

manipulação social e faz uma advertência:

Neste sentido, pode-se afirmar que a legislação-álibi constitui uma forma de manipulação ou de ilusão que imuniza o sistema político contra outras alternativas, desempenhando uma função “ideológica”. [...] Por fim, é importante salientar que a legislação-álibi nem sempre obtém êxito em sua função simbólica. “Quanto mais ela for empregada, tanto mais

25 Marcelo Neves (2007, p. 36) diz que Harald Kindermann faz referência a essa atitude com a expressão “legislação-álibi”. P. 36 26 Marcelo Neves (2007, p. 41) esclarece que o termo “compromisso-fórmula dilatório” constante em sua obra é, na verdade, uma expressão já utilizada anteriormente por Carl Schmitt em relação à Constituição de Weimar.

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freqüentemente fracassará.” Isso porque o emprego abusivo da legislação-álibi leva à “descrença” no próprio sistema jurídico, [...].

Por último, é preciso ressaltar que tudo que foi dito neste tópico pode ser resumido

em dois aspectos.

O primeiro deles é quanto à busca pela neutralidade, pela universalidade, difundida

em todos os planos possíveis - teórico e prático, a fim de conseguir a aceitação dos profanos à

própria ideologia profissional do corpo de juristas, que, por sua vez, é identificável com a da

classe dominante. Nesse sentido é a afirmação de Pierre Bourdieu (2007, p. 243-244):

A crença que é tacitamente concedida à ordem jurídica deve ser reproduzida sem interrupção e uma das funções do trabalho propriamente jurídico de codificação das representações e das práticas éticas é a de contribuir para fundamentar a adesão dos profanos aos próprios fundamentos da ideologia profissional do corpo dos juristas, a saber, a crença na neutralidade e na autonomia do direito e dos juristas.

Fábio Ulhoa Coelho (2005, p. 11) também afirma que a ideologia jurídica atua por

meio das normas jurídicas e por um conjunto de crenças.

Por último, é necessário destacar que toda essa formação ideológica se materializa

na linguagem, que é uma linguagem comum entre os juristas.

Pode-se dizer, portanto, que a ideologia é indissociável da linguagem. Esta, sob este

prisma, pode ser utilizada como instrumento de veiculação de valores e de condutas positivas,

de libertação, de mudança; mas também, de estereótipos, de valores e comportamentos

negativos, de opressão e de conservação, como se pode observar no campo jurídico.

A obra de Mikhail Bakhtin (2004) trata de tal questão, ou seja, do papel privilegiado

da palavra na reprodução das ideologias arraigadas na consciência. Isso é confirmado em

vários momentos de seu discurso: “A palavra é o fenômeno ideológico por excelência” (p.

36); “[...] o papel da palavra como material semiótico da vida interior, da consciência

(discurso interior) (p. 37); “[...] a palavra funciona como elemento essencial que acompanha

toda criação ideológica, seja ela qual for” (p. 37); “A palavra está presente em todos os atos

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de compreensão e em todos os atos de interpretação” (p. 38); e, “A palavra está sempre

carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial” ( p. 95).

É preciso também lembrar que “[...] a prática do discurso não é dissociável do

exercício do poder” (FOUCAULT, 2003, p. 140).

No Direito, os projetos de dominação escondem-se por detrás de signos verbais.

Assim, “[...] a palavra, o discurso e o poder se contemplam de modo narcisista [...]”.

(CITELLI, 1995, p. 36).

5.2 A linguagem jurídica como fator impeditivo de acesso à justiça

A nosso ver, o tema “acesso à justiça” é de extrema relevância no que tange à

repercussão da linguagem jurídica no campo social, uma vez que toda a estrutura lingüística

do Direito gera alguns efeitos nas relações sociais. Além disso, é um assunto que está

intimamente ligado a outros já apresentados em outros capítulos, como o do monopólio da

competência jurídica ou, ainda, o do controle dos discursos jurídicos. Assim, é inevitável

considerações acerca de tal tema.

A primeira observação a ser feita sobre tal questão é que o conceito que muitos têm

em mente quando se trata de acesso à justiça é restrito: é a imagem de acesso aos Fóruns e aos

Tribunais. Acesso à justiça é isso também, mas não só.

Não se pode reduzir a concepção de acesso à justiça à idéia de acesso ao Judiciário e

suas instituições; ao contrário, deve-se associá-la, a “uma determinada ordem de valores e

direitos fundamentais para o ser humano” (RODRIGUES, 1994, p. 28).

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Nesse sentido Kazuo Watanabe (1988, p. 128) argumenta, ao afirmar que é preciso

viabilizar o acesso à ordem jurídica justa:

A problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites dos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa.

Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel

Dinamaco (2002, p. 33) também entendem que o acesso à justiça é mais do que o ingresso em

juízo:

Acesso à justiça não se identifica, pois, com a mera admissão ao processo, ou possibilidade de ingresso em juízo. Como se verá no texto, para que haja o efetivo acesso à justiça é indispensável que o maior número de pessoas seja admitido a demandar e a defender-se adequadamente [...].

Quando se fala em acesso à justiça, não se pode deixar de mencionar Mauro

Cappelletti e Bryant Garth, as maiores autoridades no assunto. Esses últimos autores ensinam

que

A expressão “acesso à Justiça” é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico - o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 08).

Mauro Cappelletti e Bryant Garth introduzem um novo enfoque ao acesso à justiça,

afastando o enfoque tradicional - a dos produtores do direito, e estabelecendo o que Kazuo

Watanabe (1988, p. 128) denomina de “[...] perspectiva do consumidor, ou seja, do

destinatário das normas jurídicas, que é o povo [...]”.

Há um elo entre a linguagem jurídica e o acesso à justiça. Podemos apontar,

inclusive, a linguagem jurídica como um fator de impedimento ao acesso à Justiça.

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Quanto mais complicada é a linguagem jurídica, menos compreensível ela se torna

para os leigos, conferindo, deste modo, mais poder àqueles que a detém.

Na verdade, o exagero no linguajar provoca distanciamento e intimidação, uma vez

que torna o Judiciário inacessível em um dos seus aspectos. É também uma forma de

proteção, porque preserva o monopólio do conhecimento.

É evidente que o leigo experimenta um sentimento de estrangeiridade diante da

linguagem jurídica. Maria José Constantino Petri (2000, p. 40) chega a concluir que “A

linguagem do direito existe para não ser compreendida”.

Vale lembrar que Direito acessível, antes de tudo, é um Direito inteligível. A clareza

em um discurso jurídico é característica essencial.

Paulo César Santos Bezerra (2001, p. 214-215) aponta que o discurso jurídico pode

vir a ser um obstáculo ao acesso à justiça:

Não podemos nos conformar com a superação apenas dos obstáculos econômicos do acesso à justiça. Temos que atinar para os obstáculos sociais e culturais para afastá-los. E não pode haver obstáculo mais significante do que um juiz-paredão dos direitos. Nestes, até o discurso pode ser obstáculo. Dizem o direito, com a mesma linguagem truncada, até para os casos de direitos com baixo grau de abstração, discerníveis apenas na solução concreta de litígios particulares, ou para direitos com pouca ou nula especialização em relação às restantes atividades sociais. Mecanismos burocráticos são utilizados em lugar daqueles caracterizados pela informalidade, rapidez, participação ativa da comunidade (essa idéia soa como heresia), conciliação ou mediação entre as partes através de um discurso jurídico retórico, persuasivo, assente na linguagem costumeira. (grifo nosso).

Embora a linguagem jurídica seja uma linguagem de especificidade, técnica e

tradicional, não se pode esquecer o seu caráter funcional.

Maria José Constantino Petri (2000, p. 41) ressalta isso também quando afirma que

“[...] resulta de ser a linguagem jurídica ao mesmo tempo culta (na sua origem), popular (por

destinação), técnica (na produção)”. E acrescenta: “Sua juridicidade a especializa quando sua

finalidade é a de se destinar a todos”.

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Além da distância provocada pelo rebuscamento na linguagem jurídica, pode-se

acrescentar como conseqüência também a lentidão na prestação dos serviços jurídicos, porque

há um bloqueio, inclusive, no processo de concretização normativa. A Teoria da

Comunicação denomina isso de “ruído”27 na comunicação.

A lentidão leva, por sua vez, à descrença da população para com a Justiça. É o que

afirma Sérgio Lacerda (apud CESAR, 2002, p. 104):

O apego excessivo à forma, ao minute dos ritos e do casuísmo, às canseiras e aos custos das instâncias, é sempre mais relevante do que a objetividade dos fatos ou a premência da decisão. Para a população, esses excessos bacharelescos chegam às raias da crueldade: os direitos essenciais de milhares de brasileiros não são considerados por uma camada letrada e culta que, com a arrogância de seus privilégios, agrava o desespero e a descrença da imensa maioria na possibilidade de justiça neste mundo, ainda que tardia.

Percebe-se que esse aparato legal, na verdade, é um sistema que está montado

mediante uma expectativa: a de não funcionar prontamente. E a linguagem jurídica contribui

para a continuidade e permanência dessa prática que nega o direito ao litigante.

Há um monopólio de acesso aos meios jurídicos, que como já destacado em outros

capítulos, não permitindo que qualquer pessoa adentre ao mundo jurídico. Nesse sentido é a

afirmação de Pierre Bourdieu (2007, p. 212):

A concorrência pelo monopólio do acesso aos meios jurídicos herdados do passado contribui para fundamentar a cisão social entre os profanos e os profissionais favorecendo um trabalho contínuo de racionalização próprio para aumentar cada vez mais o desvio entre os veredictos armados do direito e intuições ingênuas da equidade e para fazer com que o sistema das normas jurídicas apareça aos que o impõem e mesmo, em maior ou menor medida, aos que a ele estão sujeitos, como totalmente independente das relações de força que ele sanciona e consagra. (grifo nosso).

É nesse ponto que se pode indagar sobre o papel da linguagem jurídica a fim de

viabilizar, de pôr ao alcance de centenas de milhares de pessoas o jurídico. Mas, na verdade,

o que se verifica é que há uma estratégia política e econômica que põe à margem grande parte

27 Ruído é tudo aquilo que dificulta a receptação da mensagem ou, em outras palavras, todo fenômeno que perturba a transmissão correta das mensagens.

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dos cidadãos, privando-os de seus direitos. Faz parte de esta estratégia permitir que o jurídico

pareça “exterior, alheio, estranho, impróprio. E, destarte, como inapreensível e

incompreensível” (CÁRCOVA, 1998, p. 54), embora o direito tenha sido concebido, “a

partir do desenvolvimento da modernidade, como um mecanismo paradigmático de

integração social”. (CÁRCOVA, 1998, P. 54). (grifo nosso).

Há uma opacidade que envolve o Direito e, em decorrência disso, “Quanto mais

entrelaçado for o manto de opacidade, [...] quer a partir do senso comum quer do saber

especializado, menores serão as possibilidades de as pessoas compreenderem o direito que as

rege” (CÁRCOVA, 1998, p. 93).

A opacidade do texto jurídico contribui para a consagração do simbólico. É o que

pode concluir da seguinte afirmação de Marcelo Neves (2007, p. 10): “O símbolo considera-

se vivo na medida em que é encarado como a expressão de um conteúdo incompreensível

e desconhecido”. (grifo nosso).

Em contraposição a essa opacidade encontrada nos textos jurídicos, a linguagem

jurídica deveria ser clara para qualquer cidadão, a fim de que este possa fixar antecipadamente

seus direitos e deveres perante o outro e em relação a toda a sociedade. Isso garantiria menos

litígios e confusões.

A comunicação é elemento essencial para qualquer sistema social. Toda

comunicação é iniciada mediante um código pré-estabelecido, um repertório de

representações que permitem que haja uma troca de mensagens. Da mesma forma isso se

aplica ao Direito: é preciso que o emissor e o receptor tenham um código comum para que

haja comunicação entre ambos. Esse é um traço fundamental para a existência da

receptividade e da reprodutividade da mensagem.

Clarice von Oertzen de Araújo (2005, p. 48) ressalta a importância de tal repertório:

O conceito de repertório é importante para a análise dos fenômenos jurídicos porque a existência de um repertório de experiências, seja ele

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social ou individual, atua no sentido de influir nos hábitos de conduta, estando incluídos entre tais hábitos a obediência ou desobediência às prescrições normativas.

Ocorre que todo desnível de desconhecimento da lei, por exemplo, é solucionado

pelo próprio sistema quando estatui que “ninguém pode se escusar de cumprir a lei, alegando

que não a conhece”. Uma vez que nenhum dos operadores do Direito conhece de forma

absoluta todas as normas em vigor, vê-se que tal presunção jurídica constitui uma construção

artificial, que tem por escopo assegurar o funcionamento do Direito. Cria-se uma

homogeneidade de repertório que não existe, com o fim de preservar certos valores:

Ao uniformizar os repertórios de emissor e receptor mediante a adoção de uma presunção jurídica absoluta, o que verificamos é a tendência do direito a trabalhar com a redundância em nome da preservação de valores como a estabilidade, a previsibilidade e a segurança jurídica. (ARAÚJO, 2005, p. 51).

É interessante notar como que os discursos jurídicos nascem e são veiculados por

canais tão exclusivos, institucionais, tais como os Diários Oficiais. Com isso, há uma “[...]

diminuição da probabilidade de sucesso coletivo através da adoção de mensagens especiais e

de canais especiais [...]” (SEMAMA, 1981, p. 121). (grifo nosso).

Na verdade, só têm acesso a estes meios de comunicação os que já adentraram ao

espaço interno e organizado chamado de campo jurídico:

[...] mensagem e compreensão, somente estão presentes no seu interior, não em seu ambiente, de tal maneira que ela pode ser caracterizada como um sistema “real-necessariamente fechado”. (NEVES, 2007, p. 133-134). (grifo nosso).

Paulo César Santos Bezerra (2001, p. 101) também trata dessa rigidez do sistema e

do acesso à justiça:

O ordenamento nacional carece de abertura maior e de flexibilidade de suas normas. Mostra-se extremamente fechado, rígido. As leis são feitas de forma a beneficiar grupos, coarctando o acesso à justiça aos menos privilegiados. Principalmente as leis processuais, extraordinariamente complexas e permissivas de mecanismos de protelação de decisões, têm

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transformado a justiça num sonho longínquo e inacessível às camadas mais pobres da população. O próprio ordenamento encaminha o jurisdicionado para a via judicial como quase única via de solução de seus conflitos, impedindo um verdadeiro acesso à justiça.

Tais textos jurídicos que deveriam destinar-se a um universo indeterminado de

destinatários, na verdade, dirigem-se a destinatários já determinados. Cada signo presente no

código e o seu sentido só são entendidos por estes últimos, porque são eles que podem

decifrá-lo.

Assim, pode-se dizer que “[...] não há uma integração suficiente entre programa

normativo (dados lingüísticos) e âmbito ou domínio normativo (dados reais)”. (NEVES, 2007,

p. 92).

O conceito de inclusão, tão apregoado nos nossos dias, pode ser aplicado ao tema

ora proposto, uma vez que se refere à inserção de toda população, ou de grupos que não

participam, ou ainda, daqueles que participam, mas marginalmente. Entretanto, observa-se

que linguagem jurídica tem auxiliado à exclusão. A seu modo, Marcelo Neves (2007, p. 76)

define a exclusão:

[...] pode-se designar como exclusão a manutenção persistente da marginalidade. Na sociedade contemporânea, isso significa que amplos setores da população dependem das prestações dos diversos sistemas funcionais, mas não têm acesso a elas (subintegração). (grifo nosso).

Em suma, é inegável que o Direito tem uma linguagem que lhe é própria, mas

“Caberia acrescentar que nem todos podem compreender o discurso do direito e dele se

apropriar. Para muitos, hoje talvez para a maioria, o direito é um discurso opaco, crítico

e, com isso, distante e indisponível” (CÁRCOVA, 1998, p. 59). (grifo nosso).

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5.3 A linguagem jurídica como trabalho e mercado

Como afirmado anteriormente, as palavras são as ferramentas de trabalho de todo e

qualquer operador (ou agente) do Direito. Assim, pode-se dizer que toda mensagem ou

discurso produzido no campo jurídico é fruto de um “trabalho lingüístico”. Se o próprio

homem é resultado de seu próprio trabalho, quanto mais as palavras e as mensagens por ele

estabelecidas. Essa é uma das idéias descritas na obra de Ferruccio Rossi-Landi (1968, p. 62)

quando afirma que:

Dalla constatazione che le parole e i messaggi non esistono in natura, perché vengono prodotti dagli uomini, si ricava immediatamente che sono anch’essi prodotti di lavoro. É questo il senso in cui si può cominciare a parlare di lavoro umano linguistico.

O homem sempre teve a necessidade de comunicar-se com os seus semelhantes e,

com esse objetivo, foi desenvolvendo várias formas de comunicação: gestos, gritos, olhares e,

por último, a fala.

Podemos dizer que há, pelo menos, duas concepções de linguagem: a linguagem

como “[...] o sistema de sinais empregados pelo homem para exprimir e transmitir suas idéias

e pensamentos”. (PETRI, 2000, p. 25); ou ainda como concebe Ingedore Grunfeld Villaça

Koch (1992, p. 09-10):

[...] como lugar de interação que possibilita aos membros de uma sociedade a prática dos mais diversos tipos de atos, que vão exigir dos semelhantes reações e/ou comportamentos, levando ao estabelecimento de vínculos e compromissos anteriormente existentes.

A primeira concepção de linguagem é a de um código que tem como função a

transmissão de informações e a representação do mundo e do pensamento humano; a segunda,

por sua vez, é mais moderna, mais dinâmica, pois concebe a linguagem como uma atividade,

uma forma de ação.

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Ferruccio Rossi-Landi (1968, p. 64) deixa bem claro que não pode reduzir o trabalho

lingüístico a uma mera atividade, a um mero comportamento. Em razão disso, expõe seu

posicionamento: o trabalho lingüístico pode ser “manipolativo” ou “trasformativo” (p. 62).

Disso podemos aferir que o homem, ao estabelecer cadeias comunicativas, tem

objetivos embutidos - informar, convencer, emocionar, explicar, determinar, aconselhar etc.

A complexidade desse trabalho manipulativo ou transformativo, por sua vez, é

determinada pela complexidade da necessidade do homem, formando-se uma dialética

especial28, dentro desse processo de instituição do trabalho e das suas produções.

A idéia de trabalho lingüístico pode ser apreendida de conceitos estabelecidos por

Ferdinand de Saussure, tais como: langue/parole. Muitos lingüistas se opõem a essa imagem

de língua como produto, mas essa última é sim resultado de um trabalho lingüístico.

Todo posterior trabalho lingüístico para ser constante necessita de um material e

instrumento, fruto de um trabalho lingüístico antecedente também (a língua), a fim de dar

continuidade e reatualização lingüística. É exatamente isso que sugere Ferruccio Rossi-Landi

(1968, p. 78):

Il lavoro linguistico, comune per definizione a tutti gli uomini, non può svolgersi e non può essere studiato se non in (almeno) una determinata lingua. Come si è detto, una lingua è un insieme istituzionalizzato di produtti di precedente lavoro linguistico (come tale ha simiglianze, ma anche e piú differenze, con il diritto). Con le sue parti costitutive, cioè con le parole, le loro combinazioni e le regole per usare e combinare sia le parole sia le combinazioni, la lingua ci fornisce materiali e strumenti, nel senso tecnico di produtti di precedente lavoro sui e coi quali rispettivamente si lavora. Con questi materiali e strumenti noi costruiamo messaggi che ci servono per esprimerci e comunicare. (grifo nosso).

A língua é formada, a fim de satisfazer certas necessidades, mas sempre dentro do

processo de relações de trabalho e produção.

Trazendo tais considerações ao campo do Direito, pode-se dizer que o Direito

Positivo segue o modelo lingüístico de Ferdinand de Saussure. Há a criação de uma língua no

28 Ferruccio Rossi-Landi (1973, p. 66) denomina esse caráter dialético especial da linguagem de prolessi lógica.

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Direito, por meio da concepção de Direito como sistema. Toda a estrutura formulada por

Hans Kelsen, com sua “norma fundamental”, por exemplo, possui muitas semelhanças com

Ferdinand de Saussure.

Luis Alberto Warat (1995, p. 19-35) é um dos autores que destaca as fortes

analogias existentes entre as categorias saussurianas e as kelsenianas, como por exemplo, o

primado da língua sobre a fala:

Analisando Kelsen como um teórico da língua jurídica [...] o direito positivo teria dois planos de manifestação: o real concreto (fala) e o objeto unitário de conhecimento (língua). [...] Assim, para Kelsen, as normas jurídicas, como objeto da ciência do direito, não podem ser identificadas com as normas existentes no âmbito do ser (vistas como dados fáticos). (WARAT, 1995, p. 21).

Assim, o sistema criado por Hans Kelsen equivale à língua de Ferdinand de

Saussure.

Essa idéia é importante para entendermos o pensamento de Ferruccio Rossi-Landi.

Para este último autor, como destacado em trecho acima, a língua é esse conjunto

institucionalizado de produtos do trabalho lingüístico. Há a idéia de um mercado, onde as

palavras, as expressões, as mensagens circulam como mercadorias (ROSSI-LANDI, 1968, p.

83), traçando-se, assim um paralelo entre a produção lingüística com a produção material.

Neste momento, é importante lembrar que tal visão se encaixa perfeitamente com todo

pensamento de Pierre Bourdieu quanto ao campo jurídico, como apontamos no decorrer deste

trabalho.

Uma das idéias recorrentes no texto de Pierre Bourdieu é quanto à existência de uma

“divisão do trabalho”. Sobre esse assunto, Ferruccio Rossi-Landi (1968, p. 71) afirma que

“Leonard Bloomfield sosteneva addirittura che <<la divisione del lavoro, e com essa l’intiera

operazione della società umana, è dovuta al linguaggio>>”.

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Assim, podemos dizer que a divisão do trabalho jurídico, ou melhor, o monopólio da

competência jurídica descrito no segundo capítulo, só se concretiza em razão da linguagem

jurídica.

Voltando ao tema da língua como produto do trabalho lingüístico, outros aspectos

devem ser destacados:

La naturalità del parlare é una socialità, ed è il frutto di un esercizio assai lungo dell’individuo e di una tradizione assai lunga del vivere sociale. Si trata di una pseudo-naturalità sociale. [...] gran parte delle nostre ricorse sono state impegnate; [...] um patrimonio già costituito di strumenti con le regole per impiegarli. (ROSSI-LANDI, 1968, p. 72-73). Avviene che, col loro ingresso in nuovi processi lavorativi linguistici in qualità di oggetti di lavoro e di mezzi di produzzione, le parole perdono il carattere di produtti e funzionano ormai soltanto come fattori oggettivi del lavoro vivente. (ROSSI-LANDI, 1968, p. 76).

Sonia Maria Vieira Negrão (2002, p. 32), que estudou a obra de Ferruccio Rossi-

Landi, explica tais trechos da seguinte forma:

Da constatação de que as palavras e as mensagens não existem em estado natural, uma vez que são produzidas pelo homem, conclui-se que elas também são produtos de trabalho. A naturalidade do falar está na sociedade e é fruto de exercícios realizados por um longo período de vivência social. Seu aprendizado tem com objeto um patrimônio cultural de falantes já construído e com regras para utilizá-lo. O falante comum trata a palavra apenas como meio com o qual fala e como objeto que elabora falando, mas lhe é indiferente que as palavras por ele usadas sejam produtos de um trabalho passado. Aprender a falar significa aprender a usar as palavras, não a produzi-las. Os processos por meio dos quais as palavras se produzem aparecem como tais apenas aos que ingressam em novos trabalhos lingüísticos tendo-as como objeto de trabalho e de meios de produção. As palavras, então, perdem o caráter de produtos e funcionam apenas como fatores objetivos do próprio trabalho.

Tudo isso pode ser aplicado ao campo jurídico: os que adentraram a esse ambiente,

aos que compõem o monopólio da competência jurídica, a linguagem jurídica é meio de

trabalho e de produção, mas para os demais, os meros “profanos”, ela funciona como produto,

restando-lhes apenas a busca por “aprender a falar”. Se estes últimos não aprenderem a falar

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segundo as regras estabelecidas, não serão entendidos e terão sérias dificuldades para adentrar

no universo jurídico, o que resultará, provavelmente, em expulsão ou marginalização.

Ferruccio Rossi-Landi (1968, p. 80) pensa a língua como um meio de troca

universal. Para isso, usa-se da figura do “dinheiro”:

Inoltre la lingua, in quanto mezzo di scambio universale per qualsiasi comunicazione, presenta anche lo spesso notato aspetto del denaro, con cui si comprano e vendono tutte le altre merci. Come materiale, strumento e denaro, la lingua costituisce a pieno titolo il capitale costante di ogni ulteriore lavorazione linguistica, cioè di ogni espressione e comunicazione; ed è solo come capitale costante - nei tre aspetti di materiale, strumento e denaro - che può essere intesa. (grifo nosso).

A língua é, portanto, o capital constante. Mas, para o referido autor, tal capital é

complementado pela capital variável, constituído pelos falantes, ou seja, pela força de

trabalho despendida pelos trabalhadores lingüísticos:

Il capitale linguistico costante è cosa morta se ad esso non si aggiunge un capitale variable costituito dalla forza lavorativa linguistica erogata dagli uomini che parlano e intendono quella lingua, che in essa si esprimono e comunicano - siano essi nella posizione del parlante o scrivente o in quella dell’ascoltatore o lettore (in termini di comunicazione, di emittente o di ricevente). (ROSSI-LANDI, 1968, p. 81).

É muito atraente essa visão, porque muitas análises da comunicação no campo

jurídico limitam-se à língua. Aliás, toda e qualquer decisão produzida em tal campo, volta-se

tão somente a esse capital constante. Sobre tal assunto, Sonia Maria Vieira Negrão (2002, p.

34) afirma que “Quando descrevemos separadamente a língua e os falantes, não percebemos

que, excluindo o trabalho, estamos excluindo-os do processo comunicativo, tornando-os

meros usuários da língua e não trabalhadores lingüísticos”. Mas é essa mesma a intenção no

Direito: a ocultação de todo trabalho lingüístico.

Ferruccio Rossi-Landi (1968, p. 84-85) acrescenta, ainda, a questão do “valor de uso

ou utilidade” e do “valor de troca”: as palavras, expressões e mensagens têm o seu valor de

uso quando satisfazem as necessidades humanas, já o valor de troca refere-se “ao

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relacionamento de palavras com outras que tenham o mesmo significado, mas com um

acréscimo do dispêndio da força de trabalho lingüístico” (NEGRÃO, 2002, p. 34).

A linguagem jurídica possui esses dois valores. Entretanto, pode-se dizer que para se

entender o seu “valor de troca” é preciso, antes, a compreensão desse trabalho lingüístico,

porque “La capacità di parlare e di intendere il valore di scambio di parole, espressioni e

messaggi è mera erogazione di forza lavorativa linguistica [...]” (ROSSI-LANDI, 1968, p.

90). É por isso que buscamos abordar sobre o monopólio da competência jurídica antes de

tratarmos, mais especificamente, de como a linguagem jurídica é trabalhada.

Outra questão importante da teoria de Ferruccio Rossi-Landi é a da transmissão do

capital lingüístico. Sonia Maria Vieira Negrão (2002, p. 37) a destaca:

Segundo Rossi-Landi (1968), o ponto mais importante, em termos de capital lingüístico variável, é o modo como ele é transmitido. É essencial para o funcionamento do capital lingüístico que se preserve não apenas a parte constante, ou seja, a língua, mas também a parte variável, os trabalhadores lingüísticos, os quais são produzidos associados à produção lingüística. Para que a língua continue funcionando, devem continuar existindo aqueles que falam; transmitindo-se a língua de geração em geração, transmite-se também a alienação lingüística.

Como se pode observar, para que o Direito funcione linguisticamente, é preciso que

haja a conservação da língua, do código, do sistema. Isso só é mesmo possível mediante a

permanência do monopólio da competência jurídica - daqueles que efetivamente falam no

campo jurídico - e da alienação lingüística29. O modo de transmissão do capital lingüístico é

que mantém essas duas condições vivas.

Além disso, ressalte-se, ainda, outro ponto fundamental na obra de Ferruccio Rossi-

Landi: o da propriedade privada lingüística, como se verifica no trecho a seguir:

Su questo fondamento, si può dire che il processo lavorativo linguistico, e a maggior ragione l’intero processo della produzione e della circolazione

29 Quanto à alienação, Sonia Maria Vieira Negrão (2002, p. 36) comenta: “A alienação é produto da existência de mercadoria e de transformação do trabalho humano em mercadoria. A transformação do produto em mercadoria que gera lucro (mais-valia) demanda a transformação do próprio trabalho humano em mercadoria, vendida e apropriada como qualquer outra. Eis o reinado da alienação: o produto se separa do produtor”.

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linguistica, diventano esterni al singolo parlante proprio con l’assumere la forma istituzionalizzata di un capitale e di um mercato linguistici che nessun parlante può mutare a piacere. [...] egli deve usare prodotti già esistenti, consumarli riproducendoli inconsapevolmente secondo modelli che in tal modo risultano confermati e perpetrati. (ROSSI-LANDI, 1968, p. 103-104). (grifo nosso).

Essa afirmação é aplicável ao mundo jurídico, uma vez que o falante tem que

assumir as formas e as fórmulas jurídicas, não podendo mudá-las, sob pena de ser expulso de

tal ambiente. A verdade é que os grupos dominantes impõem aos falantes modelos, servindo

estes como exemplos para toda a produção lingüística no sistema. Como já afirmado, é o que

Ferruccio Rossi-Landi chamou de “capital lingüístico constante”, constituindo, assim, uma

espécie de patrimônio.

Sonia Maria Vieira Negrão (2002, p. 38-39) resume bem quais são os instrumentos

utilizados para essa exploração lingüística:

A exploração lingüística tem lugar através da posse, do domínio, do controle da codificação das mensagens, dos canais de transmissão, e através da decodificação e interpretação das mensagens recebidas. [...] Assim, o sistema ensina, ou melhor, impõe à classe explorada técnicas verbais e mentais para produção e interpretação de mensagens.

É interessante a menção do termo “codificação”. Já no primeiro capítulo, apontamos

a relevância de tal fenômeno para o Direito. É mediante a codificação que a posse começa a

ser exercida, uma vez que são poucos os que têm a posse dos códigos - não me refiro aqui à

posse real, física, mas a posse dos modelos neles contidos.

No que tange aos canais de transmissão, já apontamos, anteriormente, como há uma

exclusividade, por meio de seus “Diários oficiais”, mesmo vivendo-se em uma época

denominada “comunicação de massa”. Ressalte-se, ainda, como há interferência do

monopólio da competência jurídica no que se refere às mensagens que contrariam seus

modelos ou que poderiam desestabilizar sua posição no Direito:

Para entender o esquema, deve-se imaginar que em todas as fases da transmissão das informações foram eliminados os distúrbios, para garantir a

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estabilidade das informações aprovadas, isto é, informações para as quais existe consenso. (SEMAMA, 1981, p. 124).

Já quanto à decodificação e interpretação das mensagens recebidas, pode-se dizer

que ocorre da mesma forma que a codificação: “[...] como se condiciona a codificação, se

condiciona também a decodificação” (NEGRÃO, 2002, p. 40).

O tema “propriedade privada lingüística” leva-nos à questão “público-privado”.

Sabemos que a linguagem possui um caráter público, mas isso não quer dizer que esta seja

passível de apropriação. Aliás, Ferruccio Rossi-Landi (1968, p. 102-103) trata dos termos

“privado” e “público” como pares, como complementares:

A ciò, in economia, si obietterebbe subito che si può isolare un capitale come privato proprio perché il capitale è un fatto pubblico, cioè perché sono pubblici gli strumenti, i materiali e il denaro; e che si può agire individualmente sul mercato proprio perché il mercato è um fatto sociale. [...] la lingua come capitale linguistico costante è un bene pubblico e sociale, e la comunità cioè il mercato linguistico è uma realtà pubblica e sociale, che vi si possono isolare una proprietà linguistica privata e un uso linguistico individuale (o di gruppo).

Segundo o supramencionado autor, pode-se sim privatizar um capital, uma vez que

os materiais e os instrumentos são públicos.

No Direito, os direitos e a defesa destes por meio da palavra estão à disposição de

todos, como garante nossa Constituição. Vemos aqui a importância do “acordo”, já apontado

no segundo capítulo do presente trabalho.

Contudo, apesar desta defesa ser pública, “possíveis a todos”, vemos que há uma

privatização desse capital - alguns fazem a “gerência” desses direitos. E assim, toda produção

lingüística no Direito continua, independentemente da intromissão daqueles que deveriam ser

os verdadeiros falantes.

Mas, o mais intrigante em todo esse processo é que mesmo estes agentes autorizados

são meros repetidores de modelos que se tornaram obrigatórios. Ferruccio Rossi-Landi (1968,

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p. 104) diz que, nesses casos, o trabalhador lingüístico não sabe o que faz quando fala, não

sabe por que fala ou como fala:

Come ripetitore di modelli obbligatori e sovra-personali, il lavoratore linguistico viene a trovarsi nella situazione di non sapere cosa fa quando parla, di non sapere perché parla come parla, e di appartenere a processi di produzione linguistica che lo condizionano fin dal principio, che lo obbligano a vedere il mondo in determinate maniere e che gli rendono difficile il lavoro originale o semplicemente diverso.

O referido autor denomina tal estado do trabalhador lingüístico de “morte

lingüística” ou “morte comunicativa”.

Diante de tudo que foi exposto, pode-se afirmar que a linguagem jurídica decorre

desse trabalho lingüístico realizado no campo jurídico, revelando-se como uma forma

ideológica.

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CONCLUSÕES

Ao se encerrar este trabalho, espera-se ter cumprido, em seu desenvolvimento, os

objetivos propostos: a integração de disciplinas e a demonstração de que a linguagem jurídica

é fruto de um trabalho lingüístico efetuado por um monopólio, o da competência jurídica,

destacando-se os seus aspectos lingüísticos, políticos, econômicos e ideológicos.

Antes de chegarmos a todos esses aspectos, apontados acima, optamos,

primeiramente, por discorrer sobre a relação entre a linguagem e o Direito, apresentando-se os

caminhos de pesquisa que podem ser trilhados ao se abordar o tema: o da “linguagem do

Direito”, ou o do “Direito enquanto linguagem”. Além disso, abordamos, ainda que de forma

sucinta, a história da linguagem jurídica, a transição da oralidade para a escrita e o fenômeno

da codificação, uma vez que este é que fez com que a linguagem e a interpretação tornassem

primordiais no mundo jurídico.

Em um segundo momento, passamos a tratar mais especificamente do monopólio da

competência jurídica, apontando-se os instrumentos para o exercício legítimo de tal

competência. O “realce” foi quanto ao discurso autorizado no Direito, mediante o qual se

percebe claramente a existência de uma “divisão do trabalho jurídico”, consubstanciada em

toda uma hierarquia propícia a isto.

Já os capítulos 3 e 4, pode-se dizer que foram construídos a fim de se evidenciar o

“trabalho lingüístico” dos agentes autorizados no Direito: como exploram os significados

jurídicos, por meio do uso da textura aberta na linguagem jurídica e como controlam os

discursos jurídicos. As duas formas de manejo da linguagem jurídica são apresentadas sob

uma perspectiva semiótica.

E por último, discutimos sobre a repercussão da linguagem jurídica no campo social

sob três aspectos: a linguagem jurídica como “fruto da ideologia dominante”, como “fator

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impeditivo de acesso à justiça” e como “trabalho e mercado”; momento este em que foi

possível acrescentar os demais aspectos da linguagem jurídica.

Diante de tudo que foi analisado no decorrer deste trabalho, podemos concluir que a

linguagem jurídica não é mero instrumento de comunicação e/ou conhecimento em toda teoria

e prática jurídica. É claro que ela constitui um repertório e que mantém a comunicação entre

os agentes do campo jurídico, mas serve apenas àqueles autorizados a adentrar em tal campo.

Tal repertório é estabelecido mediante o uso de formas simbólicas, o que exige de

seus usuários um modo de produção, um modo de interpretação. Cada agente autorizado

contribui para a perpetuação destes modelos, por uma questão de sobrevivência no campo. O

modelo imposto liga-se à idéia da sociedade capitalista, cujo desenvolvimento está baseado

numa “divisão de trabalho”.

A competência jurídica concedida aos agentes autorizados é mobilizada, é exercida

quando há a possibilidade de “deciframento” só para estes.

O Direito é um jogo: um jogo de escritura por meio do acordo, que tem uma retórica

de base, um jogo de leitura na exploração dos significados jurídicos, um jogo de troca no

controle dos discursos jurídicos. Mas, acima de tudo, põem-se em jogo os signos.

Por isso, a linguagem jurídica faz uso de signos com textura aberta, porque sempre

haverá uma “porção imprecisa de conteúdo” necessitando de interpretação, dando condições a

todo esse jogo. Um jogo em que cada peça tem o seu devido lugar e sua devida função.

Embora muitos busquem atribuir ao Direito a imagem de um sistema fundamentado

em regras de subsunção, pela via do uso da textura aberta, da qual decorrem a ambigüidade e

a vagueza de muitos textos jurídicos, há a exigência de um processo de concretização, de

contextualização. Requer-se uma escolha, uma “decisão”. A dimensão sintática fica

completamente subordinada à semântica-pragmática. Mas mesmo nestes casos, oculta-se o

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“subjetivo”, porque o fato do sistema ser cognitivamente aberto desfavorece a idéia de

univocidade e segurança pretendida.

Embora o direito seja cognitivamente aberto, é, ao mesmo tempo, normativamente

fechado para os verdadeiros destinatários dos textos jurídicos. A linguagem jurídica é

inacessível à população, a destinatária final dos discursos, uma vez que esta não detém o

código lingüístico apresentado.

Há um esforço para o estabelecimento de barreiras e distâncias. A dogmática

jurídica tenta fechar toda possibilidade de mudança e de adequação com uma alta

impenetrabilidade ao campo jurídico.

Não há acesso ao capital constante. E o capital variável advém do monopólio da

competência jurídica, com seu trabalho manipulativo da linguagem jurídica.

Deste modo, a linguagem jurídica serve como instrumento de poder e força da classe

dominante, legitimando a ordem vigente. Resta ao “profano” a aceitação do seu status quo.

Ela é, portanto, uma “estrutura estruturante”, na medida em que possibilita a

existência do mundo jurídico, e é condição material para a permanência do monopólio da

competência jurídica, preenchendo, assim, funções políticas, econômicas e ideológicas.

Esquece-se que quando se prega que “a ninguém é dado o direito de ignorar a lei”,

estabelece-se uma dimensão social para a linguagem jurídica. Criou-se aos detentores da

linguagem um poder e um dever, em relação a seus destinatários. A linguagem jurídica

deveria ser para o povo.

A linguagem jurídica deveria remeter a um contexto social e cultural. As relações

sociais é que são, na verdade, o objeto do Direito, e constituem o “texto não verbal” do

Direito. Mas este significado nem sempre aparece nos textos jurídicos oficiais. É a troca de

informações entre o campo jurídico e o social que confere ao Direito a sua tão buscada

circularidade sistêmica.

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O primeiro passo seria eliminar a organização sofisticada do discurso, pautada nessa

linguagem irreconhecível, rebuscada, distante do jurisdicionado.

Mas é preciso ressaltar: para que a linguagem jurídica cumpra sua função social, não

basta eliminar latinismos, arcaísmos, estrangerismos, neologismos, ambigüidades,

imprecisões e siglas desnecessárias. Seria um começo. Na verdade, só seria mesmo possível,

primeiramente, quando os trabalhadores lingüísticos do Direito, a saber, seus agentes, saírem

da “alienação lingüística” e, conseqüentemente, da falta de compromisso com o social.

Depois, havendo mudanças no controle da codificação e decodificação das mensagens e nos

canais de transmissão. Assim, talvez pudesse haver uma apropriação social do discurso

jurídico.

Mas enquanto isso não ocorre, a nossa postura é que a linguagem jurídica:

Deve ser constantemente criticada sob pena de sermos, Juízes, Promotores e Advogados, agentes inconscientes da opressão. Inocentes úteis de um sistema desumano. Não quero dizer que não possa optar por tal sistema, mas que, se assim se fizer, o seja conscientemente. (CARVALHO, 1997, p. 29).

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