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Coleção Micropolíca do Trabalho e o Cuidado em Saúde Ricardo Luiz Narciso Moebus O Trágico na Produção do Cuidado Uma Estéca da Saúde Mental

O Tragico Na Producao Do Cuidado

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"Bom convite para um bom encontro. Ainda que faça aqui uma introdução aos temas abordados neste estudo - que é uma versão de minha tese de doutoramento em Medicina no grupo de pesquisa “Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde”, coordenado pelo Prof. Emerson Merhy na Universidade Federal do Rio de Janeiro - faço também o convite a passarmos por estes temas, possivelmente muitas vezes já visitados pelos leitores, ou até demasiadamente já fustigados por incontáveis leituras; convido para podermos fazer, por esses mesmos temas, uma nova travessia."Ricardo Moebus

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  • Coleo Micropoltica do Trabalho e o Cuidado em Sade

    Ricardo Luiz Narciso Moebus

    O Trgico na Produo do CuidadoUma Esttica da Sade Mental

  • Coleo Micropoltica do Trabalho e o Cuidado em Sade

    Ricardo Luiz Narciso Moebus

    O Trgico na Produo do Cuidado

    Uma Esttica da Sade Mental

    1 Edio, RevisadaPorto Alegre, 2014

    Rede UNIDA

  • Coordenador Nacional da Rede UNIDAAlcindo Antnio Ferla

    Coordenao EditorialAlcindo Antnio Ferla

    Conselho EditorialAlcindo Antnio FerlaEmerson Elias MerhyIvana BarretoJoo Jos Batista de CamposJoo Henrique Lara do AmaralJulio Csar SchweickardtLaura Camargo Macruz FeuerwerkerLisiane Ber PossaMara Lisiane dos SantosMrcia Cardoso TorresMarco AkermanMaria Luiza JaegerRicardo Burg CeccimMaria Rocineide Ferreira da SilvaRossana BaduySueli BarriosVanderlia Laodete Pulga Vera KadjaoglanianVera Rocha

    Comisso Executiva EditorialJanaina Matheus CollarJoo Beccon de Almeida Neto

    Arte Grfica - CapaEncenasKathleen Tereza da CruzBlog: http://saudemicropolitica.blogspot.com.br

    DiagramaoLuciane de Almeida Collar

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Copyright 2014 by Ricardo Luiz Narciso Moebus

    DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP)

    M693t Moebus, Ricardo Luiz Narciso. O trgico na produo do cuidado : uma esttica da sade mental / Ricardo Luiz Narciso Moebus. - Porto Alegre: Rede UNIDA, 2014. 252 p.: il. - (Coleo Micropoltica do Trabalho e o Cuidado em Sade)

    Bibliografia ISBN 9978-85-66659-29-0 1. Assistncia a sade mental 2. Ateno sade 3. Esttica 4. Poltica social I. Ttulo II. Srie

    NLM WM30

    Catalogao na fonte: Rubens da Costa Silva Filho CRB10/1761

    Todos os direitos desta edio reservados

    ASSOCIAO BRASILEIRA REDE UNIDA

    Rua So Manoel, n 498 - 90620-110 Porto Alegre RS

    Fone: (51) 3391-1252

    www.redeunida.org.br

  • Para minhas filhas Maria Tereza, Maria Clara e Maria LuzaTrs Marias a constelao regente em meu cu astral.

  • Gracias a La vida

    Que me h dado tanto

    Violeta Parra

    Num mundo feio no pode existir liberdade

    Herbert Marcuse1

    1 Marcuse (apud COHN; PIMENTA, 2008, p.104).

  • ndice

    Prefcio...............................................................Pg.

    I O Convite........................................................Pg. 09

    II - Governamentalidade.....................................Pg. 36

    III - Tragicamentalidade......................................Pg. 65

    IV - O Metdico..................................................Pg. 94

    V Cuidado........................................................Pg. 120

    VI Concluso...................................................Pg. 230

    VII Bibliografica.........................Pg. 238

    Sumrio

    Prefcio.........................................................................11

    I O Convite..................................................................15

    II - Governamentalidade.................................................41

    III - Tragicamentalidade...................................................71

    IV O Metdico...........................................................101

    V - Cuidado..................................................................127

    VI - Concluso..............................................................233

    VII Referncias...........................................................241

  • Prefcio

    possvel uma experincia antifascista?

    Dessas que temos que exercitar quando o encontro com o outro to radical que nos coloca de modo esttico e tico em muitas dvidas. Em momentos que mobilizam, em muitos, repulsas efetivas, mal-estar em estar com o outro to distinto, que temos vontade de nos afastar. Quando esse outro visto por ns no como diferena mas como desigualdade, que inclusive, do ponto de vista tico, nos autoriza agir sobre ele, domin-lo.

    Lgico que isso varia e muito, pois h casos em que a diferena que est instalada mero detalhe para uns, mas esses mesmos, em outras situaes, podem agir de modo fascista em outros tipos de instalao de diferenas. No h como estabelecer qual diferena instala dificuldades em tomar o outro como simtrico, como vlido em si, como diferena que agrega em ns mais vida e no rejeio.

    Cada um de ns, que somos em si sempre muitos ns, tem experincias disso no andar e caminhar nas nossas muitas formas de existir, nesse nosso devir-multido.

    H, de modo concreto, encontros que no so agradveis para uns e os so para outros.

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    Vejo uma criana, dessas consideradas comuns entre ns, encontrando uma outra que para muitos incomodativo como, por exemplo, uma criana com albinismo. E reparo que comeam a conversar a se atrarem e a se movimentarem para acordos de jogos entre si, comeam a brincar e a papear. Converso depois com elas separadamente e vejo que adoraram estar juntas.

    Mas, eu, de fora, olhando tudo isso fico ali engalfinhado, como ser que a considerada comum vai aceitar a outra, albina. No me passa na cabea pensar o contrrio no momento, s depois: como que a tida como a mais portadora de diferenas - o que j um julgamento bem limitado sobre isso de diferenas, pois toma algo de diferente para instalar qualitativamente relao na diferena e mesmo desigualdade vai sentir a outra que para si diferena, tambm.

    No primeiro momento no consigo pensar simetricamente: o outro a minha diferena, seja esse qualquer outro, tido como humano ou no, para muitos de ns. Aqui, s lembro que h alguns que no separam humanos e no humanos, pois todos so humanos no plano da vida: como indica vrios pensadores, a ona to humana quanto qualquer um.

    Volto a mim. No primeiro olhar instalo a diferena e de modo unidirecional, mesmo que as crianas no tenham feito isso.

    Ser que algum tipo de incomodo me desloca e me permite pensar sobre isso, no ato?

    Vejo que tenho dificuldade, mas percebo que h algo que mexe ali. Cedo e consigo perceber que estou sendo unidirecional, mas que poderia mudar a vista do meu ponto de vista e sentir a simetria em mim: elas eram a diferena em mim.

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    Ento, o que fao com isso?

    Posso perceber novos sentidos e isso pode fazer com que outros tipos de encontros, mais radicais ainda, com diferenas que so to fortes que chegam a no ter vozes, em ns, possam pedir passagem e me fazer j operar no agir simtrico, no posicionamento tico que a existncia do outro em si vlida, se implicar em acionar mais vida nas relaes e no mortes, sendo que o acionador de mortes muitas vezes sou eu, esse eu-ns, e no o outro.

    Encontrar algum louco muito louco, que pode me desorganizar no plano afetivo, d para suportar e fazer que experienciemos um encontro no fascista?

    Temos tido dificuldade, no contemporneo com isso. A fbrica de subjetividades da modernidade para c, que tem tomado um antropocentrismo radical perante qualquer forma de vida, tem gerado muitos de ns como sujeitos autocentrados, rejeitadores do que no clone em ns e no outro. Temos agido na direo de explorar a vida do outro para tirarmos proveito de modo eu-centrado, temos sido forjados como egostas e senhores. Isso tem autorizado muitos a verem o outro como seu recurso utilizvel, esse outro qualquer. Esse outro, Terra, Vida.

    Um louco muito louco com facilidade coloca o fascismo em ns em ao.

    H dificuldades em operarmos simetricamente com diferenas to radicais e para enfrent-las praticamos fascismos nominando de outros jeitos.

    Tomo que muito da cincia contempornea tem fortalecido esse agir fascista em ns.

    Precisamos ver isso, precisamos pensar isso no nosso prprio agir.

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    Ricardo Moebus, nesse seu livro, resultado do seu doutorado, coloca isso no lugar mais profundo, na superfcie da nossa pele.

    De modo muito sagaz vai l na Tragdia, vista por Nietzsche, e na Governamentalidade, oferecida por Foucault, e tira seiva, energia disso, nos propondo a Tragicamentalidade como forma de ver a constitutividade do viver, de sentir e encontrar a multiplicidade do fazer redes de conexes de existncias.

    Experencia isso no seu cotidiano, como trabalhador do campo da sade mental, nos seus encontros com loucos muito loucos e nos oferece de modo generoso uma caixa de ferramentas muito instigante. No para copiarmos, mas nos abalarmos e constituirmos em ns, experincias radicais de simetria com os muitos outros, em ns.

    Por uma tica da vida, que: qualquer forma de vida no-fascista vale a pena, toma um posicionamento poltico radical.

    O radical que precisamos, hoje, instalar no mundo da poltica das existncias, em geral, mas, sobretudo, no campo das prticas de sade, no mundo do cuidado.

    A inveno do Ricardo ANIMAdora.

    Emerson Elias Merhy - 2014

  • I O Convite

    A vida a arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida

    Vincius de Moraes

    Quero pensar uma introduo que possa ser, acima de tudo, um bom convite.

    Bom convite para um bom encontro. Ainda que faa aqui uma introduo aos temas abordados neste estudo - que uma verso de minha tese de doutoramento em Medicina no grupo de pesquisa Micropoltica do Trabalho e o Cuidado em Sade, coordenado pelo Prof. Emerson Merhy na Universidade Federal do Rio de Janeiro - fao tambm o convite a passarmos por estes temas, possivelmente muitas vezes j visitados pelos leitores, ou at demasiadamente j fustigados por incontveis leituras; convido para podermos fazer, por esses mesmos temas, uma nova travessia.

    Peo que me acompanhem em uma incerta perspectiva destes temas. Ento, mais do que os temas, quero apresentar aqui uma perspectiva sobre eles, uma perspectiva pela qual valha a pena revisit-los, sem ser mero fastio.

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    Enfastiados, assim que imagino possveis leitores, abarrotados de informaes nesta era de nuvens informacionais, nuvens de tags2, que transitam por todos os poros e esporos lanados pela conectividade incessante e permanente com a informao massiva em avalanche.

    Do fastio ao fausto, e vice-versa, o consumidor/consumido neste mundo informacional convidado a navegar aqui por mares tantas vezes navegados. O que posso oferecer ento uma perspectiva que possa fazer valer a pena esta travessia, que, se to longe est dos mares nunca dantes navegados, possa, em contrapartida, ser um ponto de vista inusitado.

    Ponto de vista, de onde a vista aponta para outras visibilidades, e, se no houver, se o leitor no puder encontrar aqui nada de novo para ver, que ele possa encontrar um novo ver sobre este nada de novo.

    Portanto, primeira vista, nada de novo para ver.

    O que apresento ou interrogo aqui, o que percorro, ou sobre o que me debruo, so as prticas de sade, o trabalho em sade, e, em particular, o trabalho em sade mental, e, mais especificamente, o trabalho em sade mental no interior dos modelos assistenciais produzidos pela reforma psiquitrica brasileira; enfocando, sobretudo, o trabalho que acontece nas redes de servios pblicos de sade mental, a partir da inveno dos Centros de Ateno Psicossocial - CAPS3, de onde venho trazendo minha

    2 Uma tag, ou em portugus etiqueta, uma palavra-chave (relevante) ou termo associado com uma informao (ex: uma imagem, um artigo, um vdeo) que o descreve e permite uma classificao da informao baseada em palavras-chave. um recurso encontrado em muitos sites de contedo colaborativo recentes e por essa razo, tagging associa-se com a onda Web 2.0. Extrado de http://pt.wikipedia.org/wiki/Tag_%28metadata%29, em 15/02/2011.3 Um CAPS um servio de sade aberto e comunitrio do Sistema nico de Sade (SUS), lugar de referncia e tratamento para pessoas com transtornos mentais graves. Ministrio da Sade, 2004b.

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    experincia pessoal de operrio da produo do cuidado em sade mental desde 19974.

    Nada de novo, portanto, pois muito j se escreveu sobre este tipo de trabalho, seus processos de produo, suas particularidades; em especial, suas diferenas e avanos em relao aos modos tradicionais de se produzir sade, suas vantagens em relao aos modos manicomiais de funcionamento dos ultrapassados ambulatrios de sade mental e hospitais psiquitricos.

    Vem-se escrevendo sobre o processo de trabalho e a produo da sade nos CAPS, pelo menos desde a publicao, em 1989, do texto de Slvio Yasui: CAPS: Aprendendo a Perguntar5, portanto, h vinte e cinco anos em 2014.

    Ainda que, lidando com algumas categorias, na abordagem deste processo de trabalho, que no costumam ser consideradas; ao me apoiar em concepes como a de trabalho vivo em ato, que traz para a cena o modo do trabalho em sade se realizar sempre centrado no encontro, no acontecimento que envolve o produtor e o consumidor, acontecendo em ato; e as tecnologias leves no agir em sade, que ressalta a predominncia das tecnologias de relao, sobre as tecnologias duras (equipamentos, mquinas, normas) e leve-duras (saberes estruturados); tambm aqui nada de novo apresento.

    Nada de novo, pois tais categorias j foram apresentadas, explicitadas e debatidas em vrias ocasies, sobretudo por Emerson Merhy, como quando apresenta suas anlises sobre o tema da tecnologia em sade:

    4 Ano em que comecei a trabalhar no Centro de Referncia em Sade Mental CERSAM Leste, um dos primeiros CAPS da Prefeitura de Belo Horizonte/MG.5 YASUI, 1989. p. 47

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    (...) ao se tomar como eixo norteador o trabalho vivo em ato, que essencialmente um tipo de fora que opera permanentemente em processo e em relaes.6

    Ou quando apresenta a composio das valises tecnolgicas envolvidas na produo do cuidado, englobando as tecnologias duras, as leve-duras e a proeminncia das tecnologias leves:

    Por isso, esses processos so regidos por tecnologias leves que permitem produzir relaes, expressando como seus produtos, por exemplo, a construo ou no de acolhimentos, vnculos e responsabilizaes, jogos transferenciais, entre outros.7

    E mesmo ao trabalhar com a delicada noo de produo do cuidado, que ultrapassa a dimenso estritamente teraputica, ou melhor, estritamente clnica, alargando o horizonte do agir em sade, sem necessariamente remet-lo ampliao da clnica; ainda assim, no apresento nada de novo, uma vez que, este tema da produo do cuidado, como sendo a alma do agir em sade, vem sendo insistentemente afirmado por Emerson Merhy8.

    O que tento construir ento, neste nada de novo para ver , segunda vista, um novo ver sobre o nada de novo.

    E, o que trago como possibilidade de novas visibilidades, o trgico. Mas um trgico especfico, a partir da concepo de uma existncia trgica, ou, uma viso de mundo a partir de uma filosofia do trgico, que encontra sua expresso mais contundente em Nietzsche; o que desenvolvo melhor mais adiante.

    6 Merhy, 2002. p.62.7 Ibidem, p.98.8 Ibidem, p. 161.

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    O trgico como postura tico-esttica diante da vida, como proposto por Nietzsche desde sua primeira publicao, O Nascimento da Tragdia ou Helenismo e Pessimismo9, e reiteradamente, ao longo de sua obra.

    Trgico como modo de abraar a vida integralmente, em sua multiplicidade, em sua diversidade, em suas inumerveis ofertas de bons encontros, mas tambm de maus encontros, de alegrias, mas tambm de tristezas, de apogeus e de quedas, com seus comeos, muitas vezes belos, mas tambm com seus finais, muitas vezes difceis. Assumindo suas dores, e todo o lado sombrio que possa haver, como parte que no pode ser amputada da aventura de existir, sem que isto a deixe mutilada e menor.

    O trgico que utilizo aqui, como desenvolvido por Nietzsche, abraar a vida humana como portadora destas duas dimenses, que podem ser simbolizadas pelo apolneo e o dionisaco.

    O apolneo como a vida capaz de razo, de retido, de clculo, de repetio, de previso, identificao, de domnio de si, clareza, discernimento, coerncia. E o dionisaco como a vida capaz de desrazo, paixo, contradio, dissoluo, criao, distoro, imprevisibilidade, descontrole, turbidez, sentimento, afetao.

    Uma perspectiva trgica representa ento, uma aposta no reencontro destas duas dimenses, em oposio vigncia de uma perspectiva, hegemnica, que Nietzsche denominou socratismo reinante.

    Neste socratismo haveria, por sua vez, a exigncia da exclusividade da dimenso apolnea, com a subtrao, a recusa, a negao, o banimento da perspectiva dionisaca, como aposta civilizatria ocidental.

    9 Nietzsche, 2005a.

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    O trgico fala, portanto, de uma aceitao de todas as dimenses da vida, mas, de forma alguma, de uma aceitao passiva, de resignao bem comportada. No, o trgico ofertado por Nietzsche busca uma atitude ativa, determinada, para aproximar a vida de tudo o que ela pode; requerendo a superao de toda posio de remorso, ressentimento, culpa, desnimo. Posies estas que adoecem, diminuem, enfraquecem, empobrecem a vida.

    a posio trgica que no admite recuar diante dos maiores desafios, das maiores diferenas que esta vida nos impe.

    Fazendo retornar este conceito, que nasceu justamente na experincia prtica da produo do cuidado, do ento enfermeiro Nietzsche em tempos de guerra; trazendo-o de volta para este universo de aplicao, que posso, como um desdobramento que muito interessa aqui, servir-me do trgico como analisador, como criador de visibilidades no mundo da produo da sade.

    Compartilho aqui o profundo deslocamento que este conceito pode operar sobre o olhar a vida, de forma geral; e do impacto que ele teve sobre mim, ao me permitir ampliar minha visibilidade sobre a produo da sade, sobre o agir em sade, sua produo como clnica, e sua produo como alm da clnica.

    Conceito capaz de efeitos pticos e ex-pticos, causando mudanas nos jogos de luzes e sombras, com os quais pintamos a realidade vivida; causando efeitos de difrao, refrao, reflexo10 sobre golpes de luzes, ou efeitos talvez de deslocamento, alongamento, descolamento de retinas11, ocultos efeitos corretivos ou causadores de novas 10 A ptica explica os fenmenos de reflexo, refrao e difrao, a interao entre a luz e o meio, entre outras coisas. Extrado de http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%93ptica, em 16/02/11.11 Descolamento de retina uma enfermidade do olho caracterizada

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    miopias, reguladores de novos estrabismos, lapidadores de velhos cristalinos opacos, atravs dos quais acreditamos tocar a superfcie do mundo.

    O conceito de vida trgica, em sua plenitude forjada por Nietzsche, pode ser para alguns, operrios do ressentimento e do remorso que corroem a vontade de potncia da vida, o derradeiro transplante de crneas. E como di, a invaso de raios luminosos violentando antigas escurides adormecidas.

    No menor era a pretenso de Nietzsche do que, a partir da vida trgica, dar a luz a uma nova inteireza da vida, que pudesse fazer cessar aquela que resta apartada de si mesma.

    Mas um cuidado especial se faz necessrio nessa metfora, pois uma crtica severa a vida trgica traz aos iluminismos, aos esclarecimentos, ao aufklrung12, que Nietzsche debita aos socratismos reinantes. Antes, o dar a luz aqui mesmo um parto, que coloca em cena, disponibiliza, toda luminosidade e toda a escurido, todo o dia e toda a noite da existncia, ao mesmo tempo.

    Nesse sentido, a cegueira combatida nestes termos, antes, a cegueira branca, como nos avisa Saramago13, uma cegueira mais pelo excesso de luz que pela falta, cegueira dos mergulhados no claro, quando (...) a terra, inteiramente iluminada, resplandea sob o signo de triunfal desventura14. pela separao das camadas foto-sensvel e de suporte e nutrio da retina. Extrado de http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%93ptica, em 16/02/11.12 Iluminismo, esclarecimento, ilustrao(deriva do latim iluminare, em alemo Aufklrung. O iluminismo a sada do homem do estado de minoridade que ele deve imputar a si mesmo. Minoridade a incapacidade de valer-se de seu prprio intelecto sem a guia de outro. Emanuel Kant (apud REALE, 2007, p. 665).13 Saramago, 1999.14 Max Horkheimer e Theodor W. Adorno (apud Reale, 2007, p. 665).

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    Vida trgica me parece, enfim, um conceito daqueles capazes de gerar um reordenamento, ou um redirecionamento do olhar, ainda que sobre um j visto, um nada de novo; e minha relao com esta produo de Nietzsche foi, em mim, portadora de uma potencializao, daquelas a que se refere Ariano Suassuna, quando diz:

    Mas eu digo sempre aos estudantes que melhor estudar um s livro, qualquer que seja ele, com raa, alegria e entusiasmo, do que estudar todos os livros do mundo friamente. Porque em tais casos, um livro, examinado e reexaminado em todas as suas implicaes, aplaudido aqui e ferozmente negado ali, pode ser, para o jovem que o leia, o que foi, para mim, o Assim Falou Zaratustra, de Nietzsche, na adolescncia: a descoberta da ardente e duradoura alegria do conhecimento.15

    Um livro capaz de despertar em mim tamanho entusiasmo foi exatamente O Nascimento da Tragdia16 de Nietzsche, a partir do qual procurei desvendar esta concepo trgica da vida, este decidido Sim a vida; essa busca por uma Grande Sade, ou mil sades e ocultas ilhas da vida17, busca por uma inteireza, por uma aproximao da vida com o que ela pode, por esse reatar os laos que a compem, por esse compromisso contra as doutrinas do cansao e da renncia18, contra a amputao de parte considervel da vida, parte esta denominada, nesta concepo, de dionisaca.

    Este trgico constitui o prprio movimento e reconhecimento da reintegrao entre as dimenses apolneas e dionisacas; como ambivalncia, como polivalncia constitutiva da vida.15 Suassuna, 2007, p. 13.16 Nietzsche, 2005a.17 Nietzsche, 2007.18 Ibidem. p. 71.

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    Trgico este que se constitui como uma esttica, mas esttica aqui, bem entendida, no como uma especialidade filosfica de apreciao do belo, mas como compromisso com a produo, a criao de si mesmo, da prpria vida, como obra mxima de cada vivente.

    assim, que se pode falar em uma esttica do trgico, como um compromisso com a prpria vida, compromisso em reat-la com o que ela pode, com sua potncia que advm da integralidade da existncia.

    Sendo assim, ao aplicarmos este conceito de trgico, esta concepo de esttica do trgico, ao mundo das prticas de sade, nos encontramos com bem mais do que a racionalidade e intencionalidade clnica, nos encontramos com a produo do cuidado, enquanto produo de vida. Da ento, podemos falar de uma esttica do trgico na produo do cuidado.

    Caber, a partir desta esttica do trgico, revisitar as vrias clnicas que compem a produo da sade no mbito dos servios de sade mental, escopo deste estudo. Para tanto, agrupando-as, ou melhor, resumindo-as, em trs blocos, ainda que sabidamente heterogneos: as clnicas psiquitrica, psicanaltica e psicossocial; lanando sobre as mesmas este olhar desde uma posio trgica perante a vida.

    A opo por uma abordagem que considera estas trs clnicas se justifica a partir do lugar de onde tento construir este olhar.

    Lugar de um psiquiatra, trabalhador dos servios de sade mental, na segunda metade dos anos noventa e primeiras dcadas do sculo XXI, em Minas Gerais, com as peculiaridades que isto apresenta.

    Primeiramente, com uma prtica necessariamente

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    marcada e tributria da tradio do saber psiquitrico; segundamente, vivendo nesta fase de emergncia, implantao mais decidida, em Minas Gerais, das modelagens assistenciais da reforma psiquitrica, com sua clnica psicossocial; terceiramente, com a influncia marcante que a psicanlise imprimiu reforma psiquitrica especificamente em Minas Gerais.

    Em relao peculiaridade deste ltimo ponto, vale lembrar alguns autores que reafirmam esta importncia crucial da psicanlise para se entender a sade que se fabrica no dia a dia dos servios de sade mental em Minas Gerais.

    Nesta direo, Penido, a partir de sua pesquisa realizada em vrios Centros de Referncia em Sade Mental CERSAMs, da cidade de Belo Horizonte, entre agosto de 1998 e fevereiro de 2001, afirma que:

    Dos entrevistados, todos os psiquiatras, psiclogos e um de cada dois entrevistados de categorias no-psi baseiam sua prtica na Psicanlise.19

    tambm desta pesquisa, que Penido chega concluso que:

    A Psicanlise lacaniana identificada como a principal referncia terica a orientar a prtica clnica dos profissionais das equipes dos CERSAMs.20

    Penido ressalta tambm que:

    O prprio Frum Mineiro de Sade Mental, instncia representante da ideologia antimanicomial em Minas, sustenta a bandeira da Psicanlise, ao contrrio do

    19 Penido, 2005. p. 97.20 Ibidem. p. 97.

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    restante do Movimento Antimanicomial no pas, conforme o ex-coordenador de sade mental e representante do prprio Frum.21

    E ainda com Penido temos que:

    Entretanto, a Psiquiatria nunca deixou de ser um discurso ou uma prtica central na sade mental, mas to-somente passa a dividir com a Psicanlise a referncia hegemnica para a clnica.22

    Confirmando esta tendncia da Psicanlise, insiste Penido que:

    Na prtica, isso nem sempre significa variedade de possibilidades no que toca ao tratamento, que se baseia, na maior parte das vezes, na escuta orientada pela Psicanlise e no uso dos psicofrmacos.23

    E ainda com esta mesma autora, temos que:

    Mais do que opo, parece haver uma espcie de domnio consentido em relao Psicanlise, para o qual a superviso colabora.24

    E, ainda como ltima meno a esta pesquisa de Penido, realizada nos CAPS, que em Belo Horizonte so denominados CERSAMs, temos que:

    Em sntese, a superviso, importante mecanismo de controle, enfatiza a dominncia da clnica no trabalho dos CERSAMs, sobretudo da clnica psicanaltica (Freud e Lacan) e psiquitrica (Psicopatologia e Nosologia Psiquitrica).25

    21 Penido, 2005, p. 98.22 Ibidem. p. 99.23 Ibidem. p. 102.24 Ibidem. p. 103.25 Ibidem, p. 104.

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    Encontramos tambm em Lobosque esta importncia da Psicanlise na sade mental em Minas, referindo-se igualmente s experincias clnicas em CERSAM:

    Assim, por exemplo, na medida em que a psicanlise possui, indubitavelmente, um corpo terico muito mais inventivo e rigoroso do que aqueles das demais disciplinas, desmontveis com grande facilidade, em certo momento parecia que deveramos recorrer ao seu discurso para fundamentar teoricamente nossas intervenes.26

    Ou ainda, quando afirma que:

    A questo da presena, ou das formas de presena, da psicanlise nas prticas de Sade Mental no nova para mim, nem para os meios nos quais minha atividade se exerce; desempenha, alis, um papel significativo em todo o percurso mineiro da luta antimanicomial.27

    Tambm em Barreto encontramos esta confirmao da relevncia da psicanlise na sade mental, referindo-se peculiaridade deste vnculo em Minas Gerais:

    Devido confluncia de vrios fatores, a histria recente de nossos servios pbicos de sade mental est marcada por forte influncia da psicanlise de orientao lacaniana, na sustentao do trabalho clnico com por exemplo psicticos, toxicmanos e crianas, alm de neurticos.28

    Por fim, Garcia, tambm se referindo viabilidade de uma abordagem clnica no CERSAM, e reforando a prerrogativa da psicanlise, afirma que:

    26 Lobosque, 2003. p. 34-35.27 Ibidem. p. 43.28 Barreto, 1999. p. 159.

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    Antes de irmos adiante, vamos anotar que: a clnica do sujeito, pois ele poltico; qualquer preferncia por outra entidade pesa na prtica do atendimento.29

    Portanto, caber mais adiante realizar esta revisita s clnicas psiquitrica, psicanaltica e psicossocial; lanando sobre elas esta perspectiva que trago da vida trgica.

    Eis aqui uma perspectiva imprevista, que retoma sobre aqueles velhos mares navegados, novos ventos, novas ondas em novas dobras.

    Mas ser que, este novo ver, poder produzir at mesmo uma superao do no h nada de novo?

    Podemos pensar que sim, considerando a possibilidade de que uma nova visibilidade possa ser constitutiva de um novo para se ver, nesta dana, pas-de-deux, entre olhar, visibilidade e enunciados que se constituem reciprocamente, como demonstra magistralmente Michel Foucault em seu texto O Nascimento da Clnica, j de incio apresentado como um livro que trata do olhar, procurando:

    (...) questionar a distribuio originria do visvel e do invisvel, na medida em que est ligada separao entre o que se enuncia e o que silenciado (...).30

    E ainda:

    (...) mas que a relao entre o visvel e o invisvel, necessria a todo saber concreto, mudou de estrutura e fez aparecer sob o olhar e na linguagem o que se encontrava aqum e alm de seu domnio. Entre as palavras e as coisas se estabeleceu uma nova aliana fazendo ver e dizer (...).31

    29 Garcia, 2002. p. 133.30 Foucault, 2003. p. IX-X.31 Ibidem, p. X.

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    Neste sentido, que tentarei demonstrar, mais adiante, como vai surgindo deste jogo de novas visibilidades - possveis a partir do trgico, da esttica do trgico, lanada sobre as prticas clnicas - a novidade da tragicamentalidade.

    Conceito irmo siams da governamentalidade, como proposta por Michel Foucault, de forma mais evidente, a partir de seu curso no Collge de France, do ano de 1978, Segurana, Territrio, Populao32.

    Desta forma, como quadro geral deste estudo, o convite comea por uma visita formulao e relevncia central deste conceito Governamentalidade em Foucault, tomando por local privilegiado para reencontr-lo, as aulas e resumos disponveis, em portugus, do ensino de Foucault no Collge de France, de 1970 at sua morte em 1984.

    Em seguida, j com a governamentalidade estabelecida, convido a percorrermos os caminhos que levaram formulao do trgico, da esttica do trgico, com seu apogeu em Nietzsche. E ainda neste captulo, procedendo aplicao do trgico governamentalidade, podermos trazer a tona, a idia de tragicamentalidade.

    A partir da, tomando-os por conceitos-ferramentas (vide logo abaixo), a governamentalidade e a tragicamentalidade, vamos revisitar as trs clnicas que compem as prticas de sade nos servios de sade mental, quais sejam: as clnicas psiquitrica, psicanaltica e psicossocial.

    Desde as prticas clnicas ento, que arriscaremos este salto para alm das clnicas, em direo produo do cuidado. Saltando os altos muros da clnica, entraremos nas praias do cuidado, e a, que poderemos encruzilhar estes dois pares, que se desdobram e redobram, governamentalidade/tragicamentalidade e clnica/cuidado.32 Foucault, 2008a.

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    Mas antes deste trajeto proposto, tomo a liberdade de esclarecer ainda alguns pontos que me parecem importantes.

    O primeiro em relao a esta aposta de interao, conexo entre prtica e teoria que se chama de conceito-ferramenta, e que se refere ao proposto por Gilles Deleuze em dilogo com Foucault, da seguinte maneira:

    isso. Uma teoria exatamente como uma caixa de ferramentas. Nada a ver com o significante... preciso que isso sirva, preciso que isso funcione. E no para si mesmo. Se no h pessoas para dela se servirem, a comear pelo prprio terico que cessa ento de ser terico, porque ela no vale nada, ou porque o momento ainda no chegou. No se retorna a uma teoria, fazem-se outras, tm-se outras a fazer. curioso que seja um autor que passa por um puro intelectual, Proust, que o disse to claramente: tratem meu livro como um par de culos voltados para fora; pois bem, se eles no lhes caem bem, pequem outros, encontrem vocs mesmos seu aparelho que, forosamente, um aparelho de combate.33

    nesta direo que proponho aqui a retomada do conceito-ferramenta governamentalidade, mas que nunca uma retomada, uma nova maneira de faz-lo funcionar, e, para tanto, ambiciono articul-lo ao conceito-ferramenta tragicamentalidade, de forma que, juntos, possam compor uma alavanca articulada, uma mquina que nos impulsione a uma nova visibilidade, ou, um par de culos voltados para fora, que me parecem que servem e funcionam quando aplicados ao mundo do cuidado.

    Neste sentido, que me atrevo a falar em tragicamentalidade, como resultante de uma operao

    33 Foucault, 2006c. p. 39.

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    de acoplamento, ou talvez, escarificao do conceito de governamentalidade, como dobra e desdobramento desta, uma vez que:

    Todo conceito tem um contorno irregular, definido pela cifra de seus componentes. por isso que, de Plato a Bergson, encontramos a idia de que o conceito questo de articulao, corte e superposio.34

    O segundo ponto a que me remeto antes de nos lanarmos na trajetria proposta acima, diz respeito ao efeito, produzido em mim, antes mesmo de aplic-lo ao mundo do cuidado, pelo conceito de trgico, de vida trgica em Nietzsche, efeito de ressignificao da obra Histria da Loucura, de Michel Foucault.

    Insisto em me deter neste ponto, porque esta obra, e sua ressignificao a partir do trgico, encontram uma intensa relevncia na trajetria de produo de clnica e cuidado que integram este estudo.

    Primeiramente porque representa, em si mesma, uma verdadeira experincia limite aos saberes e fazeres da sade mental, um xeque-mate estabelecido a partir deste fabuloso texto, praticamente inaugural na obra de Foucault.

    Em segundo lugar, porque me parece que, justamente neste mesmo texto, podemos encontrar preciosas pistas para a construo de possveis caminhos, rotas ou linhas de fuga deste xeque-mate.

    Relembro que travei contato com esta obra de Foucault em 1995, em meu primeiro ano de residncia mdica em Psiquiatria, no Instituto Raul Soares da Fundao Hospitalar do Estado de Minas Gerais; sendo a mesma apresentada aos residentes pela, ento professora de Psiquiatria Social, Ana Marta Lobosque, reconhecida militante da Luta 34 Deleuze; Guattari, 2009, p.27.

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    Antimanicomial em Minas Gerais.

    Para vrios que, como eu, entravam a galope nesta residncia, depois de vrios anos de uma vocao para a sade mental amordaada, abafada e desprezada em um curso de medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, que, ao menos naquela poca, no priorizava definitivamente esta rea, o tropeo com esta obra de Foucault era uma verdadeira flechada em nosso cavalo vocacional, que se no o fazia deitar, ao menos detinha seus arroubos.

    No que fosse este o objetivo do curso, pois certamente no era, mas acabava sendo um de seus efeitos, pois recm diplomados como mdicos, vidos para construir uma identidade, um territrio identitrio de especialistas em psiquiatria, nos deparvamos com esta fantstica desconstruo do saber psiquitrico, demolio de suas pretenses epistemolgicas, e por decorrncia, desterritorializao dos profissionais da medicina mental, entre eles os residentes.

    Eu pessoalmente j cultivava interesse por este autor desde 1989 quando ento li seu volume I da Histria da Sexualidade A vontade de saber, e j havia ficado muito entusiasmado no s pelo contedo surpreendente, mas pela forma como Foucault se dava uma invejvel liberdade de pensar e expressar o surpreendente, o insuspeitado, o imprevisto. Mas ento seu efeito sobre mim foi muito sutil se comparado ao impacto profundo em minha perspectiva de vida profissional causado pela Histria da Loucura.

    Como levar adiante minha vontade verdadeira de agir em sade mental, de ser psiquiatra, mesmo depois daquelas palavras, revelaes sobre as origens obscuras, sobre a funo social da medicina mental? Como seguir construindo uma identidade profissional a partir da? E,

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    ainda mais difcil, como compatibilizar minha prtica como profissional psiquiatra, mantendo-a viva, e mantendo, ao mesmo tempo, uma identificao pessoal com as causas emancipatrias, mudancistas, ou autonomistas?

    Parto ento do prprio Foucault para recolher algumas pistas, anunciadoras de possibilidades desta compatibilidade entre agir em sade mental e manter um projeto, uma vontade pessoal de trabalhar pela valorizao da vida, pelo respeito dignidade de todos e de cada um, pela produo de encontros que possam ser potencializadores da vontade e da capacidade de viver mais plenamente, para que cada vida merea ser vivida, e para que estar ainda vivo possa ser sempre um privilgio e jamais uma condenao, uma expiao.

    Quero ento retornar a esta que a tese de doutoramento de Michel Foucault, como nos conta Georges Canguilhem:

    Mas se h em meu trabalho universitrio um momento com que me sinta feliz, ainda hoje, e de que possa me envaidecer comigo mesmo foi o de ter sido relator da tese de doutorado de Michel Foucault.35

    Trata-se da Histria da Loucura, defendida como tese em 20 de maio de 1961, com o ttulo original: Loucura e desrazo, histria da loucura na idade clssica, publicada no mesmo ano, e que a partir da edio Gallimard de 1972, passou a chamar-se simplesmente, Histria da Loucura na Idade Clssica36, traduo publicada no Brasil desde 1978.

    deste livro de 1961, considerado inaugural da trajetria intelectual de Michel Foucault, ainda que houvesse publicado o pequeno Doena Mental e

    35 Canguilhem, G. Abertura, in: Roudinesco, E., 1994. p. 3336 Roudinesco, 1994. p. 8.

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    Psicologia em 195437; partindo deste livro que Henri Ey, talvez o maior dos psiquiatras franceses do ps-guerra, nomeou como psiquiatricida38, que procuro recolher dele especificamente algo que reverberou em mim, mas que no era evidente em si mesmo, pelo contrrio, mantinha-se enigmtico, at poder ser ressignificado pela leitura de Nietzsche: a experincia trgica da loucura.

    Foucault vai construindo desde o incio deste seu texto uma passagem para uma nova sensibilidade social perante a loucura, que vai se esboando a partir do sculo XVI, e se consolidando de forma cada vez mais pronunciada nos sculos seguintes, desde a idade clssica.

    Nesta nova sensibilidade, cuja gestao e nascimento Foucault procura resgatar, acontece uma ruptura com perspectivas vigentes at o sculo XV, criando um novo lugar para a loucura, no qual:

    (...) esta nova realeza pouca coisa em comum tem com o reino obscuro de que falvamos ainda h pouco e que a ligava aos grandes poderes trgicos do mundo.39

    Foucault apresenta uma diviso entre duas formas de experincia da loucura: por um lado, as figuras da viso csmica, compondo o elemento trgico, e por outro lado, os movimentos da reflexo moral, compondo o elemento crtico. De um lado a loucura com sua fora primitiva de revelao, e por outro lado, mera odissia exemplar e didtica dos defeitos humanos40.

    Foucault insiste nesta distino de uma possibilidade trgica para a loucura quando afirma:

    37 Roudinesco, 1994, p. 20.38 Ibidem. p. 11.39 Foucault, 1987. p. 23.40 Ibidem, p. 27.

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    Em suma, a conscincia crtica da loucura viu-se cada vez mais posta sob uma luz mais forte, enquanto penetravam progressivamente na penumbra suas figuras trgicas. Em breve estas sero inteiramente afastadas. Ser difcil encontrar vestgios delas durante muito tempo; apenas algumas pginas de Sade e a obra de Goya so testemunhas de que esse desaparecimento no significa uma derrota total: obscuramente, essa experincia trgica subsiste nas noites do pensamento e dos sonhos, e aquilo que se teve no sculo XVI foi no uma destruio radical mas apenas uma ocultao. A experincia trgica e csmica da loucura viu-se mascarada pelos privilgios exclusivos de uma conscincia crtica.41

    E ainda sobre essa conscincia trgica que se perde progressivamente a partir do sculo XVI, insiste Foucault:

    ela, enfim, essa conscincia, que veio a exprimir-se na obra de Artaud, nesta obra que deveria propor, ao pensamento do sculo XX, se ele prestasse ateno, a mais urgente das questes, e a menos suscetvel de deixar o questionador escapar vertigem, nesta obra que no deixou de proclamar que nossa cultura havia perdido seu bero trgico desde o dia em que expulsou para fora de si a grande loucura solar do mundo, os dilaceramentos em que se realiza incessantemente a vida e morte de Sat, o Fogo.42

    Temos aqui, portanto, me parece claro agora diante da leitura de Nietzsche, uma referncia esttica do trgico, vida trgica, ao conceito de tragicidade como formulado em Nietzsche:

    (...) a experincia da loucura que se estende do sculo XVI at hoje deve sua figura

    41 Foucalt, 1987, p. 28-29.42 Ibidem, p. 29.

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    particular, e a origem de seu sentido, a essa ausncia, a essa noite e a tudo que a ocupa. A bela retido que conduz o pensamento racional anlise da loucura como doena mental deve ser reinterpretada numa dimenso vertical; e neste caso verifica-se que sob cada uma de suas formas ela oculta de uma maneira mais completa e tambm mais perigosa essa experincia trgica que tal retido no conseguiu reduzir. No ponto extremo da opresso, essa exploso, a que assistimos desde Nietzsche, era necessria.43

    E Foucault continua desenvolvendo esta idia, afirmando que no limiar da era clssica todas as imagens trgicas da loucura at ento evocadas se dissiparam na sombra44; e que a loucura no mais considerada em sua realidade trgica, no dilaceramento que a abre para outro mundo45, j estando despida de suas ameaas trgicas46, exceto em obras, como j foi dito, como as de Goya e Sade que ofereceram a possibilidade de reencontrar a experincia trgica para alm das promessas da dialtica47.

    Mas o que seria exatamente essa experincia trgica perdida? A que espcie de tragdia estava Foucault se referindo afinal? Isto no me parecia nada claro nesta sua obra, que passava, logo aps este incio introdutrio, a se ocupar dos temas do grande internamento que arrebanhou a loucura, entre muitas outras figuras sociais, em um movimento fortemente excludente; e da construo do lugar da loucura em um mundo correcional; e das pocas do furor classificatrio, do tratamento moral, do alienismo, do nascimento do asilo, etc.

    43 Foucault, 1987, p. 29.44 Ibidem. p. 29.45 Ibidem. p. 40.46 Ibidem. p. 44.47 Ibidem. p. 527.

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    Foi ento, em um s depois, que a leitura de Nietzsche pode operar em mim uma causa retroagindo sobre esta obra de Foucault, sobre esta necessidade de esclarecer este ponto que era em si to obscuro, e por isto mesmo promissor: uma sensibilidade trgica perdida, dando lugar a uma coerncia que nos atravessa.

    Coerncia que:

    (...) no nem a de um direito nem a de uma cincia, mas sim a coerncia mais secreta de uma percepo.48

    Posso entender ento que possvel buscar nesta possibilidade trgica outra forma de percepo, que possa, por sua vez, exceder esta conscincia que Foucault explicita como sendo crtica, prtica, enunciativa, e analtica da loucura49.

    E mais ainda, posso a partir desse novo campo de visibilidade aberto pela leitura do trgico em Nietzsche, retomar este texto de Foucault, em outro campo de entendimento, para alm das inmeras crticas que pesaram intensamente sobre ele, como relata Roudinesco, referindo-se a esta injuriosa onda desabonadora que se abateu sobre Foucault:

    (...) tinha literalmente inventado aquela famosa cena primitiva da diviso primordial e sempre recorrente: diviso entre a desrazo e a loucura, diviso entre a loucura ameaadora dos quadros de Bosh e a loucura aprisionada do discurso de Erasmo, diviso entre uma conscincia crtica, na qual a loucura se torna doena; e uma conscincia trgica, na qual se torna criao, como em Goya, Van Gogh ou Artaud. Diviso, enfim, interna ao Cogito cartesiano, no qual a

    48 Foucault, 1987, p. 103.49 Ibidem, p. 166-169

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    loucura excluda do pensamento no mesmo instante em que deixa de pr em risco os direitos do pensamento.50

    A partir da vida trgica, posso refazer os percursos por este texto, encontrando outras possibilidades, inclusive mais fortemente propositivas do que imaginaram seus tantos adversrios com suas acusaes:

    (...) assim como os psiquiatras, os historiadores da psicopatologia tiveram ento a impresso de que essa loucura, que eles no tinham visto nos arquivos e que Foucault parecia ter exumado num passe de mgica, decorria de uma construo literria brilhante mas irresponsvel. Ela permanecia alheia realidade do sofrimento dos verdadeiros doentes que os psiquiatras tinham a seu cargo, cuja triste epopia os historiadores tinham por tarefa relatar. E, por causa disso, ganhou fora essa ideia de que Foucault no era nem mdico, nem psiquiatra, nem psiclogo, e que ele jamais se encontrara com verdadeiros loucos de asilo. Com que direito ousava transformar a loucura annima dos verdadeiros loucos em um afresco sublime? Em que o louco comum do asilo comum se pareceria com um Artaud, um Van Gogh? Parece que Foucault, disseram, se diverte zombando dos honestos funcionrios hospitalares, que todos os dias tm de enfrentar loucos de camisa-de-fora.51

    tambm pela lente do trgico que posso repensar no apenas esta obra, mas seu prprio autor, que para certa crtica, merecia ser desqualificado porque j havia tentado antes o suicdio, era homossexual, tentou submeter-se anlise sem sucesso, no quis seguir uma carreira nas profisses da sade, apesar do pai mdico, tampouco 50 Roudinesco, 1994. p. 17.51 Ibidem, p. 17.

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    era reconhecido pela maioria dos historiadores como legitimamente um de seus pares, e entre os filsofos no eram poucas suas restries, chegando a ser acusado de ser ao mesmo tempo obscurantista e antidemocrata.52

    Tambm entre os militantes de vrios setores da esquerda francesa era considerado quase uma aberrao, entre muitos marxistas era tido como revisionista e capitulado, os psicanalistas o tinham em absoluta reserva, e, mesmo seu amigo pessoal, Jacques Derrida, lhe direcionou uma obstinada crtica sobre o estatuto do Cogito cartesiano em relao histria da loucura53, acusando-o de uma interpretao excessivamente restritiva, porque excessivamente estruturalista, do sistema das divises.54

    Ou seja, pela lente da tragicidade que se descortina para mim, um novo horizonte de leitura desta obra de Foucault (Foucault, 1987). Leitura no apenas nova, ou mais uma possvel, mas uma leitura que potencializa e amplifica as possibilidades de desdobramentos no cotidiano dos servios de sade mental. Atualizando seus efeitos no movimento de construo de estratgias e tticas, em busca de formas de produzir cuidado em sade mental, que tragam essa dimenso trgica, para alm das dimenses crtica, prtica, enunciativa e analtica da loucura (dimenses que a reduziram doena mental).

    Ou ainda, segundo os propsitos explicitados pelo prprio Foucault, pela lente da tragicidade, sua obra pode atuar mais vivamente nos servios de sade mental, para torn-los capazes de oposio e de luta contra a coero de um discurso terico unitrio, formal e cientfico.55

    E nos tempos que correm, somos cada vez mais 52 Roudinesco, 1994, p. 28.53 Ibidem, p. 29.54 Ibidem, p. 3.55 Foucault, 2005. p. 15.

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    testemunhos do imprio deste discurso unitrio, que torna urgente a retomada de obras que, como vislumbrava Foucault, permitam a constituio de um saber histrico das lutas e a utilizao desse saber nas tticas atuais.56

    Cabe lembrar por fim, perante as crticas que desqualificaram esta obra aqui retomada, que o projeto que a animava era o da insurreio dos saberes57, era justamente o das anticincias58, contra a hierarquizao cientfica do conhecimento.

    Encerro esta digresso que pretende, acima de tudo, registrar esse primeiro efeito, que testemunho em mim mesmo, desta tragicidade como conceito operatrio.

    E retomo o propsito de percorrer a formulao da governamentalidade, seu desdobramento pela tragicamentalidade, e a aplicao destes conceitos-ferramentas s trs clnicas da sade mental.

    Pode-se perceber, ento, que, este tema do trgico, ter aqui uma total centralidade. Saltando das pginas da Histria da Loucura, iremos reencontr-lo neste texto, tambm inaugural, da produo terica de Nietzsche: A Origem da Tragdia.

    Publicado quase cem anos antes do texto de Foucault, nesta obra reconhecemos sua distino primordial entre uma concepo trgica da vida, que contemple tanto o dionisaco quanto o apolneo, em oposio a uma esttica socrtica, que nega o dionisaco, retendo apenas a dimenso apolnea da existncia.

    Buscarei ento rever esta discusso de uma esttica do trgico, e suas repercusses sobre uma abordagem da vida e do viver, retomando alguns dos caminhos de uma 56 Foucault, 2005, p. 13.57 Ibidem, p. 14.58 Ibidem, p. 14.

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    filosofia do trgico.

    Para pensar esta esttica do trgico, procederei tambm a uma brevssima e sucinta discusso sobre a esttica, entendida em seu sentido mais amplo, da vida como plenamente sensvel.

    Ser com esta compreenso de esttica, de acordo com certa tradio da filosofia do trgico, que poderei falar em dimenso esttica do agir em sade, podendo estabelecer a concepo do trgico na produo do cuidado.

    Mas antes e primeiro, revisito este conceito-ferramenta da governamentalidade, ao longo do ensino de Foucault, como anunciado acima, para que possa ir emergindo, em seguida e a partir deste, esse outro conceito-ferramenta da tragicamentalidade.

  • II - Governamentalidade

    Antes de entrar propriamente na governamentalidade, me permito um preldio, partindo desta perda da conscincia trgica da loucura, apontada por Foucault como constitutiva do nascimento da psiquiatria, da medicina mental.

    Mas como dimensionar a importncia deste tema do trgico na obra de Foucault?

    Considerando, por exemplo, a expressiva sistematizao da obra de Foucault organizada por Edgardo Castro59, em um louvvel esforo de produo de um vocabulrio de Foucault, diremos que este tema tem importncia mnima, pois nem sequer o encontraremos ali.

    Entre centenas de temas, no encontramos o trgico ou a tragdia, e nem mesmo uma referncia direta a sua ligao com a obra inaugural de Nietzsche, quando este amplamente abordado como tema e influncia na obra de Foucault60.

    Da mesma forma, se recorremos ao vocabulrio organizado por Judith Revel, professora do Centro Michel

    59 Castro, 2009.60 Ibidem, p. 305-309.

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    Foucault (Paris), em seu Michel Foucault Conceitos Essenciais61, no encontramos este conceito de trgico ou tragdia, confirmando que, ao menos para estes estudiosos, este tema deve ser relegado a segundo plano.

    Mas, por outro lado, o trgico ganha a maior relevncia, se o tomamos como absolutamente representativo do que antecede a ruptura, caracterizada por Foucault, como constitutiva da psiquiatria; se consideramos a psiquiatria, por sua vez, no apenas como um interesse em si mesmo, mas como representativa deste movimento de criao da nova mentalidade, sensibilidade social, pertinente modernidade ocidental. E se considerarmos ainda, este perodo de mudana, como inaugural deste processo de formao societria que inclui os momentos que sero denominados, de forma marcante e reveladora, como sociedade carcerria62, sociedade disciplinar63, sociedade de controle.64

    Teremos, enfim, uma ntima relao entre, por um lado, a descrio dos jogos de poder/saber constitutivos da psiquiatria, da medicina mental, como uma prtica, um exerccio social especfico; e, por outro lado, uma tecnologia bem mais geral de poder, que Foucault nomear posteriormente em sua obra, como governamentalidade.

    Esta linha de raciocnio nos leva, portanto, a considerarmos este tema do trgico como um avesso desta tecnologia geral de poder denominada, em seu seminrio de 1978 no Collge de France, de governamentalidade, e desta governamentalidade especfica, que ele denomina biopoltica, na era do liberalismo, e tambm do neoliberalismo.

    61 Revel, 2005.62 Foucault, 2002.63 Ibidem.64 Deleuze, 2007.

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    Encontramos a indicao desta aproximao na aula de 08 de fevereiro de 1978:

    Ser que possvel repor o Estado moderno numa tecnologia geral de poder que teria possibilitado suas mutaes, seu desenvolvimento, seu funcionamento? Ser que se pode falar de algo como uma governamentalidade, que seria para o Estado o que as tcnicas de segregao eram para a psiquiatria, o que as tcnicas da disciplina eram para o sistema penal, o que a biopoltica era para as instituies mdicas? Eis um pouco o objeto [deste curso].65

    Chegamos ento a este ponto de aproximao, de interesse pelo trgico, que passa a ser, de um tema negligenciado no estudo da obra de Foucault, a uma via de importncia capital para percorrer um avesso da governamentalidade.

    E esta importncia se torna ainda mais significativa quando pensamos em dois aspectos relevantes: primeiro, as dificuldades de abordagem que o tema da governamentalidade apresenta em si mesmo, necessitando de mltiplas estratgias para seu entendimento; e, segundo, a fora centrpeta deste conceito, que faz girar em torno de si, boa parte do ensino de Foucault.

    Quanto ao primeiro aspecto, que faz valorizar ainda mais uma possvel abordagem deste conceito pela via de um avesso, o prprio Foucault que ressalta a nebulosidade conceitual na qual mergulhamos com a governamentalidade, quando declara ainda nesta aula de 08 de fevereiro de 1978:

    (...) por que querer estudar esse domnio, no fim das contas inconsistente, nebuloso,

    65 Foucault, 2008a, p. 162.

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    cingido por uma noo to problemtica e artificial quanto a de governamentalidade? (...) por que querer abord-lo atravs de uma noo que plena e inteiramente obscura, a de governamentalidade? Por que atacar o forte e o denso com o fraco, o difuso e o lacunar?66

    Quanto ao segundo aspecto, a fora centrpeta, ou o campo magntico ou gravitacional deste conceito na obra de Foucault, por ser bem mais problemtico, ser necessrio me estender um pouco mais, pois passo a apresentar aqui, em uma perspectiva no metdica, a suposio da implicao deste conceito com boa parte das pesquisas desenvolvidas por Foucault, mesmo antes da criao conceitual propriamente dita da governamentalidade. Ou seja, dizer que as pesquisas de Foucault, inclusive as que antecedem este conceito, caminham em sua direo.

    Com isto, quero tentar demonstrar que, a governamentalidade seria um conceito dos mais preciosos e significativos na obra de Foucault. E que podemos reconhec-lo como tema transversal ou subjacente, seno em toda sua obra, pelo menos ao longo do seu ensino no Collge de France.

    Com isto, quero dizer que, ao rastrear este conceito, e suas origens, nestes cursos, j teremos algo absolutamente representativo, de sua importncia, dentro do que pode ser chamado, o conjunto dos atos filosficos efetuados por Michel Foucault. 67

    Isto se confirma, ao lembrarmos que, Foucault assumiu a cadeira de Histria dos Sistemas de Pensamento no Collge de France em 1970, aos 43 anos, mantendo seus cursos ali at a sua morte em 1984. Portanto, sendo ali que

    66 Foucault, 2008a, p. 15667 Ewald; Fontana, 2005, p. XII.

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    constituiu um importante ncleo de atividades de pesquisa e ensino, e onde desenvolveu sua genealogia das relaes poder/saber, em oposio a uma arqueologia das formaes discursivas, de que at ento vinha se ocupando.68

    Comeo ento pelo curso no qual o conceito propriamente dito de governamentalidade surgir, o seminrio de 1977-1978, intitulado Segurana, Territrio, Populao, quando na aula de 1 de fevereiro de 1978 declara:

    Por esta palavra, governamentalidade, entendo o conjunto constitudo pelas instituies, os procedimentos, anlises e reflexes, os clculos e as tticas que permitem exercer esta forma bem especfica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a populao, por principal forma de saber a economia poltica e por instrumento tcnico essencial os dispositivos de segurana. Em segundo lugar, por governamentalidade entendo a tendncia, a linha de fora que, em todo o Ocidente, no parou de conduzir, e desde h muito, para a preeminncia desse tipo de poder que podemos chamar de governo sobre todos os outros soberania, disciplina e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda uma srie de aparelhos especficos de governo [e, por outro lado]*, o desenvolvimento de toda uma srie de saberes. Enfim, por governamentalidade, creio que se deveria entender o processo, ou antes, o resultado do processo pelo qual o Estado de justia da Idade Mdia, que nos sculos XV e XVI se tornou o Estado administrativo, viu-se pouco a pouco governamentalizado.69

    68 Ewald; Fontana, 2005, p. XII.69 Foucault, 2008a, p. 143-144.

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    Temos aqui, neste momento do curso, um evidente esforo conceitual, um verdadeiro trabalho de parto, no qual Foucault tenta dar contornos ao seu nebuloso conceito, e, neste esforo, encontramos alguns importantes elementos que vale a pena destacar.

    Em primeiro lugar, encontramos aqui inmeros elementos que constituem, em si, campos de interesse para a pesquisa de Foucault, que extrapolam, em muito, o escopo deste curso de 78, como os conceitos de dispositivos de segurana, governo, Estado, populao, soberania, disciplina, poder, ttica, saber.

    Em segundo lugar, vale ressaltar a amplitude do conceito, que se subdivide em trs partes; sendo a primeira este conjunto de instituies, anlises, reflexes, tticas que permitem exercer esta forma de poder que tem por alvo a populao, por saber a economia poltica, por instrumento os dispositivos de segurana. Sendo a segunda, esta linha de fora, operando em todo o ocidente, deslocando o regime de poder do soberano, do disciplinar, para o poder de governo, com seus aparelhos especficos e os saberes que lhe so prprios. E a terceira, esta governamentalizao do Estado.

    Estamos pois, no centro do que reconhecido como sendo a segunda fase dos cursos de Foucault, constituda pelos cursos Em Defesa de Sociedade (75-76), Segurana, Territrio, Populao (77-78), Nascimento da Biopoltica (78-79), Do Governo dos Vivos (79-80).

    Antes desta, temos a fase dos cursos cujo eixo de trabalho foi a genealogia das disciplinas, com A Vontade de Saber (70-71), Teorias e Instituies Penais (71-72), A Sociedade Punitiva (72-73), O Poder Psiquitrico (73-74), Os Anormais (74-75); e que serviram de material para seus livros Vigiar e Punir e A Vontade de Saber.

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    E depois, temos a terceira fase, quando predomina a investigao sobre as formas de subjetivao, entrecruzando-se com a questo do governar, a si e aos outros, com os cursos Subjetividade e Verdade (80-81), A Hermenutica do Sujeito (81-82), O Governo de Si e dos Outros (82-83), O Governo de Si e dos Outros: A Coragem da Verdade (83-84); que serviram de material para a redao dos volumes II e III da Histria da Sexualidade.70

    Podemos ver como, portanto, este conceito de governamentalidade ocupa, literalmente, temporalmente, uma posio de centralidade no ensino de Foucault, com seis cursos que sero oferecidos antes, e seis cursos que sero oferecidos depois deste seu Segurana, Territrio, Populao.

    E tambm dentro deste curso, notvel como os conceitos de dispositivos de segurana, governo, populao, razo de Estado, e outros; giram em torno da noo de governamentalidade, gravitando em sua rbita.

    Foucault assimila neste conceito, como descrito acima, sua noo to singular de poder, como profundamente relacional e interativo, produtivo, e em ato; sendo a governamentalidade este conjunto (reflexes, anlises, instituies, tticas, clculos, procedimentos) que permite e sustenta o exerccio de uma forma bem especfica e complexa de poder.

    Ento, por um lado, podemos entender, que a governamentalidade , ela mesma, uma forma de poder. E, por outro lado, podemos entender que ela no uma forma de poder, como o so o poder pastoral, o poder soberano, o poder disciplinar, mas um conjunto que viabiliza uma forma de poder.

    70 Castro, 2009, p 188-189.

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    E esta forma de poder viabilizada, ou seja, referente governamentalidade, aquele poder que tem por alvo preferencial a populao, por forma de saber, a economia poltica, e por instrumento tcnico, os dispositivos de segurana, e por mquina privilegiada, o Estado governamentalizado.

    Temos aqui ento, a conjuno, sempre presente em Foucault, entre forma de poder e forma de saber, que se conjugam, sem que se saiba exatamente da precedncia de um ou de outro, sem reduzir-se a uma relao simplista causal, mas constituindo uma relao integrativa, interacionista.

    Mas qual seria afinal o sobrenome deste poder referente governamentalidade?

    Para buscar esta resposta, vamos lembrar que na primeira fase de seus cursos, descrita acima, Foucault trabalhou, sobretudo, a questo das disciplinas, tomando por exemplar, a constituio da medicina mental; e descrevendo, nesta fase de seus cursos, tambm um poder especfico, um poder chamado de disciplinar.

    Poder este que tambm foi se constituindo, sempre, em relao a certas formas de saber, incluindo a os saberes classificatrios, ordenatrios; e que possua seus instrumentos tcnicos, de vigilncia dos indivduos, de diagnsticos; e que representou, no uma superao, pois no se trata aqui de uma perspectiva evolucionista, mas uma sobreposio, ou uma superposio, que desqualifica o poder soberano, predominante at ento.

    Este poder, intensamente apontado na primeira fase dos cursos de Foucault, tambm apresenta, portanto, seus procedimentos especficos, seus saberes pertinentes, seus instrumentos de vigilncia, seu alvo predominante de

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    incidncia sobre os corpos individuais (sua separao, seu alinhamento, sua colocao em srie e vigilncia), e sobre o que eles fazem. E que vo construindo a incompatibilidade com as relaes de soberania, que o precederam. , neste momento, a constituio do poder disciplinar.

    Foucault declara em 1976 que vinha buscando desde 1970-1971, ou seja, desde o comeo de seu ensino, o como do poder.71 E no final deste curso de 76, Em Defesa da Sociedade, que inicia a segunda fase de seus cursos, apresenta esta nova reviravolta ao nvel das tecnologias, dos mecanismos do poder:

    Ora, durante a segunda metade do sculo XVIII, eu creio que se v aparecer algo de novo, que uma outra tecnologia de poder, no disciplinar dessa feita. Uma tecnologia de poder que no exclui a primeira, que no exclui a tcnica disciplinar, mas que a embute, que a integra, que a modifica parcialmente e que, sobretudo, vai utiliz-la implantando-se de certo modo nela, e incrustando-se efetivamente graas a essa tcnica disciplinar prvia. Essa nova tcnica no suprime a tcnica disciplinar simplesmente porque de outro nvel, est noutra escala, tem outra superfcie de suporte e auxiliada por instrumentos totalmente diferentes.72

    Encontramos enfim, em seguida, a resposta ao sobrenome deste poder que o referente governamentalidade:

    (...) Depois da antomo-poltica do corpo humano, instaurada no decorrer do sculo XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo sculo, algo que j no uma antomo-poltica do corpo humano, mas que eu

    71 Foucault, 2005, p. 28. 72 Ibidem, p. 288-289.

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    chamaria de uma biopoltica da espcie humana.

    De que se trata nessa nova tecnologia do poder, nessa biopoltica, nesse biopoder que est se instalando? Eu lhes dizia em duas palavras agora h pouco: trata-se de um conjunto de processos como a proporo dos nascimentos e dos bitos, a taxa de reproduo, a fecundidade de uma populao, etc.73

    A est, a governamentalidade um conjunto que permite o exerccio desta forma especfica de poder, o biopoder, o que diz Foucault, em sua ltima aula do curso de 1976, antecipando o que viria a seguir, em seu prximo curso:

    (...) Dizer que o poder , no sculo XIX, tomou posse da vida, dizer pelo menos que o poder, no sculo XIX, incumbiu-se da vida, dizer que ele conseguiu cobrir toda a superfcie que se estende do orgnico ao biolgico, do corpo populao, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentao, de outra.

    Portanto, estamos num poder que se incumbiu tanto do corpo quanto da vida, ou que se incumbiu, se vocs preferirem, da vida em geral, com o plo do corpo e o plo da populao. Biopoder, por conseguinte, do qual logo podemos localizar os paradoxos que aparecem no prprio limite de seu exerccio.74

    Temos a confirmao dessa ligao entre governamentalidade, como sustentculo do biopoder, tambm logo na primeira aula, nas primeiras palavras deste

    73 Foucault, 2005, p. 289-290.74 Ibidem, p. 302

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    curso que se seguiu, em 11 de janeiro de 1978:

    Este ano gostaria de comear o estudo de algo que eu havia chamado, um pouco no ar, de biopoder, isto , essa srie de fenmenos que me parece bastante importante, a saber, o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espcie humana, constitui suas caractersticas biolgicas fundamentais vai poder entrar numa poltica, numa estratgia poltica, numa estratgia geral de poder.75

    Ento, retomando aquele esforo conceitual a propsito da governamentalidade, temos que esta o conjunto de relaes, saberes, estratgias, tticas, instituies, que permitem, viabilizam, sustentam o exerccio do biopoder; tendo por alvo principal a populao, por saber predominante a economia poltica, por instrumento tcnico essencial, os dispositivos de segurana. Com a proeminncia do governo, da regulamentao, sobre a soberania ou a disciplina, e com a transformao do Estado de justia da idade mdia, e do Estado administrativo dos sculos XV e XVI, no Estado governamental.

    Mas, se parece agora mais delimitado tal conceito, convm perceber suas origens ou ramificaes em outros cursos de Foucault que no apenas estes dois que acabamos de abordar aqui, e que so os que lhe dizem respeito mais diretamente.

    Retomando ento os cursos que antecedem estes apresentados, convm recordar logo de imediato que, como afirma Foucault, a governamentalidade uma estratgia que se realiza em um jogo duplo, uma somatria das estratgias das disciplinas e das estratgias da regulamentao. Donde conclumos, para comear, que toda a formao das disciplinas, foco das pesquisas anteriores, j participa, desta

    75 Foucault, 2008, p. 4

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    forma, do processo que culminar no estabelecimento da governamentalidade.

    Neste sentido, uma primeira aproximao possvel entre a construo do conceito de prticas discursivas, como pressuposto de uma microfsica do poder, que permitir chegar ao biopoder, e portanto, governamentalidade.

    No seminrio de 1970-71 a propsito da Vontade de Saber, Foucault se detm sobre as prticas discursivas, como um dos pontos cruciais. E, a psiquiatria aparece justamente como pertinente a estas prticas discursivas, uma vez que

    (...) caracterizam-se pelo recorte de um campo de projetos, pela definio de uma perspectiva legtima para o sujeito de conhecimento, pela fixao de normas para a elaborao de conceitos e teorias. Cada uma delas supe, ento, um jogo de prescries que determinam excluses e escolhas.76

    E ainda:

    As prticas discursivas no so pura e simplesmente modos de fabricao de discursos. Ganham corpo em conjuntos tcnicos, em instituies, em esquemas de comportamento, em tipos de transmisso e de difuso, em formas pedaggicas, que ao mesmo tempo as impem e as mantm.77

    E, finalmente:

    Estudos empricos sobre psicopatologia, sobre a medicina clnica, sobre a histria natural etc. haviam permitido isolar o nvel das prticas discursivas. As caractersticas gerais dessas prticas e os mtodos prprios

    76 Foucault, 1997, p. 11.77 Ibidem, p. 12.

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    para analis-las haviam sido inventariados sob o nome de arqueologia.78

    J no seminrio de 1971-72, Teorias e Instituies Penais, encontramos, como precedentes desta formao conceitual da governamentalidade, a anlise do desenvolvimento do aparelho policial, a vigilncia das populaes, no sculo XVIII, como a preparao e gestao de um novo tipo de poder-saber que se efetivar somente no sculo XIX.79

    Ainda neste curso, encontramos tambm a noo fundamental, preparatria, de sociedade inquisitorial:

    Pertencemos a uma civilizao inquisitria, que h sculos pratica, segundo formas cada vez mais complexas, porm todas derivadas do mesmo modelo, a extrao, o deslocamento, o acmulo do saber. A inquisio: forma de poder-saber essencial nossa sociedade.80

    No curso de 1972-1973, A Sociedade Punitiva, j encontramos mais referncias constituio do poder disciplinar, atravs da descrio da composio desta sociedade carcerria, que parte integrante do projeto de uma civilizao da vigilncia, que integra, em um Estado centralizado, mecanismos de controle e vigilncia.

    Acompanhamos a formao de uma sociedade carcerria onde:

    -A recluso intervm tambm no que diz respeito conduta dos indivduos. Sanciona, num nvel infrapenal, maneiras de viver, tipos de discursos, projetos ou intenes polticas, comportamentos sexuais, reaes autoridade, bravatas opinio, violncias, etc. Em suma, intervm menos em nome da lei do

    78 Foucault, 1997, p. 13.79 Ibidem, p. 22.80 Ibidem, p. 22.

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    que em nome da ordem e da regularidade. O irregular, o agitado, o perigoso e o infame so objeto da recluso. Enquanto que a penalidade pune a infrao, a recluso, por sua vez, sanciona a desordem.81

    Percebe-se, portanto, a preparao do terreno onde se assentar, coerentemente, a juno das disciplinas e da regulamentao. E esta preparao colocada como um captulo na histria do corpo; e uma questo de fsica, fsica do poder, com sua tica, rgo da vigilncia generalizada, sua mecnica do isolamento, agrupamento, sua fisiologia das normas.

    Esta aproximao fica ainda mais evidente ao lembrarmos que, na aula de 24 de janeiro de 1979, portanto, seis anos depois, Foucault retoma o tema, to caro sociedade carcerria, do panptico de Bentham, para delinear a arte liberal de governar:

    Segunda conseqncia desse liberalismo e dessa arte liberal de governar a formidvel extenso dos procedimentos de controle, de presso, de coero que vo constituir como que a contrapartida e o contrapeso das liberdades.82

    Nesta mesma aula de 1979, Foucault chegar a dizer, referindo-se a Bentham, que o panptico a prpria frmula de um governo liberal, portanto, intimamente relacionado a esta forma de governamentalidade, constituda pela biopoltica.

    Portanto, neste curso de 1972-1973 j temos a referncia direta sociedade da disciplina e da normalizao, que s se intensificar no curso seguinte, de 1973-1974, O Poder Psiquitrico.

    81 Foucault, 1997, p. 36.82 Foucault, 2008a, p. 91.

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    Chegamos ento a este que um dos cursos de maior interesse para este estudo, j que, como esclarecido acima, este rastreamento do conceito de governamentalidade vincula-se ao esclarecimento da ruptura, da perda da experincia trgica, descrita por Foucault, em sua Histria da Loucura.

    Pois este O Poder psiquitrico se prope a ser, como declarado na aula de 07 de novembro de 1973, o segundo volume da Histria da Loucura, porm, com uma anlise radicalmente diferente, que pretende abandonar o ncleo representativo que remete necessariamente a uma histria das mentalidades, em favor de, ressaltando, os dispositivos de poder.

    E isto, na medida em que tais dispositivos de poder podem ser produtores de enunciados, produtores de prticas discursivas, produtores de formas de subjetivao, e tambm, de resistncias.

    Como se v, retorna aqui o tema das prticas discursivas, presente desde o primeiro curso de 1970, e, na verdade, presente desde sua aula inaugural no Collge de France, pronunciada em 02 de dezembro de 1970, intitulada A Ordem do Discurso, quando refere que:

    Os discursos devem ser tratados como prticas descontnuas, que se cruzam por vezes, mas tambm se ignoram ou se excluem.83

    nesta perspectiva das prticas discursivas que Foucault buscar investigar neste curso as relaes entre dispositivo de poder e dispositivo de verdade, e suas inscries no corpo, uma vez que, h entre o corpo e o poder poltico uma ligao direta.84 83 Foucault, 1996, p. 52-53.84 Foucault, 2006a, p. 19.

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    Estamos ento plenamente na discusso do exerccio do poder sobre o corpo, na discusso da antomo-poltica, do poder disciplinar, que precedem a biopoltica e o biopoder, mas que iro se encontrar, de forma integrativa, na composio da governamentalidade.

    Foucault volta ainda a insistir, no apenas que este seu curso o segundo volume, mas, at, uma oportunidade de retificar a Histria da Loucura.85 E que ele pode declarar, agora com mais clareza, que no a instituio que determina as relaes de poder, tampouco um discurso de verdade, e nem mesmo o modelo familiar, quando se trata da emergncia do poder disciplinar em sua microfsica.

    Temos, nesta altura de sua obra, indivduo como um corpo sujeitado, pego num sistema de vigilncia e submetido a procedimentos de normalizao86; ao mesmo tempo que, nesta constituio da sociedade disciplinar, a funo-psi passa a ser a instncia de controle de todas as instituies e de todos os dispositivos disciplinares.87

    Esta funo-psi, esclarece Foucault,

    , a funo psiquitrica, psicopatolgica, psicossociolgica, psicocriminolgica, psicanaltica, etc. E, quando digo funo, entendo no apenas o discurso mas a instituio, mas o prprio indivduo psicolgico. E creio que essa a funo desses psiclogos, psicoterapeutas, criminologistas, psicanalistas, etc.; qual ela, seno ser os agentes da organizao de um dispositivo disciplinar que vai se ligar, se precipitar onde se produz um hiato na soberania familiar?88

    85 Foucault, 2006a, p. 33.86 Ibidem, p. 71.87 Ibidem, p. 107.88 Ibidem, p. 105-106.

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    Foucault descreve pormenorizadamente como os chamados mtodos teraputicos psiquitricos funcionam apenas para que o mecanismo da ordem e da obedincia seja absolutamente engrenado.89, de forma que, esse exerccio de poder psiquitrico representa uma maneira de gerir e de administrar, antes que uma interveno teraputica, sendo assim um verdadeiro regime.

    E, mais do que isto, a ateno de Foucault se volta para o momento em que o poder psiquitrico sai dos asilos, e vai alm:

    uma espcie de difuso, de migrao desse poder psiquitrico, que se difundiu em certo nmero de instituies, de outros regimes disciplinares a que ele veio, de certo modo, se adicionar. Em outras palavras, creio que o poder psiquitrico como ttica de sujeio dos corpos numa certa fsica do poder, como poder de intensificao da realidade, como constituio dos indivduos ao mesmo tempo receptores e portadores de realidade, se disseminou.90

    exatamente este ponto de disseminao que ser abordado no curso seguinte, de 1974-1975, Os Anormais, dando seqencia a esta mesma descrio do poder disciplinar, encaminhando-se gradualmente em direo governamentalidade.

    J no curso de 1973-1974, Foucault antecipara a profunda difuso do poder psiquitrico em nossa sociedade, convertendo um fato de assistncia num fenmeno de proteo, atravs das noes de periculosidade, de anormalidade, de comportamento automtico, e outras; que ele agora aprofunda e desvenda.

    89 Foucault, 2006a, p. 187.90 Ibidem, p. 236.

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    Este curso, Os Anormais, especialmente instrutivo para a compreenso da formao da governamentalidade, porque demonstra esta mutao ocorrendo no interior mesmo das prticas psiquitricas, atravs do reposicionamento da psiquiatria na trama das relaes de fora, constituintes de uma lgica de funcionamento do poder, cuja mudana podemos acompanhar da maneira mais evidente neste curso.

    assim que Foucault vai demonstrando como podemos enxergar esta mudana, esta ascenso de uma nova arquitetura, nova insero do poder, em seus trs aspectos, atravs do modelo exemplar da psiquiatria.

    Recordando ento esses trs aspectos descritos acima, vemos que na idade da governamentalidade, primeiro, a psiquiatria sofre uma mutao de seu alvo, que deixa de ser sua insero diretamente voltada para disciplinar o corpo, passando a ser a populao.

    Em segundo lugar, a psiquiatria experimenta uma mudana de seu saber, que deixa de ser centrado na doena, nos doentes, na exceo, para se voltar para a totalidade dos homens, atravs da psiquiatrizao da infncia, que um atributo universal, atravs da psiquiatrizao do comportamento, da psiquiatrizao da desadaptao, da incongruncia social; da psiquiatrizao do instinto e da sexualidade, de uma forma que, agora, o conjunto da espcie humana que diz respeito psiquiatria, e no apenas o seleto grupo dos doentes mentais, da loucura.

    Em terceiro lugar, acompanhamos a mudana nos instrumentos tcnicos que viabilizam e solidarizam com as outras duas, e a psiquiatria j no se restringe mais ao espao asilar, com suas tecnologias de funcionamento, mas encontra-se agora na famlia, na escola, difusamente no tecido social, em mecanismos jurdicos, pedaggicos e

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    teraputicos, mas j sem seu antigo compromisso com a cura, uma vez que, no tem mais seu antigo compromisso com a doena.

    Em sua nova dimensionalidade, a psiquiatria, j muito alm do poder disciplinar, apresenta de forma cada vez mais forte, seu compromisso com a segurana pblica, seu compromisso com a proteo social, seu compromisso com o planejamento estatal, com a regulamentao governamental, estabelecida na Idade Clssica, como explica Foucault:

    A Idade Clssica, portanto, elaborou o que podemos chamar de uma arte de governar, precisamente no sentido em que se entendia, nessa poca, o governo das crianas, o governo dos loucos, o governo dos pobres e, logo depois, o governo dos operrios. E por governo cumpre entender, tomando o termo no senso lato, trs coisas. Primeiro, claro, o sculo XVIII, ou a Idade Clssica, inventou uma teoria jurdico-poltica do poder, centrada na noo de vontade, na sua alienao, na sua transferncia, na sua representao num aparelho governamental. O sculo XVIII, ou a Idade Clssica, implantou todo um aparelho de Estado, com seus prolongamentos e seus apoios em diversas instituies. E depois nisso que gostaria de me deter um pouquinho, ou deveria servir de pano de fundo para a anlise da normalizao da sexualidade ele aperfeioou uma tcnica geral de exerccio do poder, tcnica transfervel a numerosas e diversas instituies e aparelhos.91

    Neste curso, vai ficando cada vez mais transparente a generalizao da psiquiatria como poder social, uma vez que:

    91 Foucault, 2001, p. 60-61.

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    Essa transformao permitiu, no fundo, um intenso processo que no est concludo em nossos dias, o processo que fez que o poder psiquitrico intramanicomial, centrado na doena, pudesse se tornar uma jurisdio geral intra e extramanicomial, no da loucura, mas do anormal e de toda conduta anormal.92

    Aps este curso seguiram-se os cursos Em Defesa da Sociedade de 1975-1976, e Segurana, Territrio, Populao, de 1977-1978 (portanto, depois de um ano sabtico), j comentados acima, por serem os mais diretamente relacionados formulao da governamentalidade.

    Em seguida, temos o curso Nascimento da Biopoltica, 1978-1979, no qual Foucault dar seguimento e desdobramento ao estudo da governamentalidade:

    O prprio termo poder no faz mais que designar um [campo]* de relaes que tem de ser analisado por inteiro, e o que propus de chamar de governamentalidade, isto , a maneira como se conduz a conduta dos homens, no mais que uma proposta de grade de anlise para essas relaes de poder.

    Tratava-se portanto de testar essa noo de governamentalidade e tratava-se, em segundo lugar, de ver como essa grade da governamentalidade podemos supor que ela vlida quando se trata de analisar a maneira como se conduz a conduta dos loucos, dos doentes, dos delinquentes, das crianas -, como essa grade da governamentalidade tambm pode valer quando se trata de abordar fenmenos de outra escala, como por exemplo uma poltica econmica, como a gesto de todo um corpo social, etc. O que eu queria fazer

    92 Foucault, 2001, p.167-168.

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    e era esse o objeto da anlise era ver em que medida se podia admitir que a anlise dos micropoderes ou dos procedimentos da governamentalidade no est, por definio, limitada a uma rea precisa, que seria definida por um setor de escala, mas deve ser considerada simplesmente um ponto de vista, um mtodo de decifrao que pode ser vlido para a escala inteira, qualquer que seja a sua grandeza.93

    Esta definio preciosa nos ajuda, em primeiro lugar, a esclarecer, mais ainda, esta proximidade da governamentalidade com a conduo da conduta dos homens, lanando ento, uma conexo com o ensino de Foucault nos anos que se seguiram, e nos quais se dedicou muito ao governo dos vivos, de si, dos outros.

    E, em segundo lugar, esta definio aponta para a governamentalidade como lanando uma particular visibilidade sobre a microfsica do poder, sobre a micropoltica e suas conexes com a macropoltica, que no seriam, como dito acima, uma questo de setores distintos de escala, ou seja, no referindo-se ao grande e ao pequeno; mas uma questo de ponto de vista, que diz respeito escala inteira, qualquer que seja a sua grandeza.

    tambm neste curso que Foucault se debrua sobre a governamentalidade especificamente nos tempos do neoliberalismo, ps 1930:

    Trata-se, ao contrrio, de obter uma sociedade indexada, no na mercadoria e na uniformidade da mercadoria, mas na multiplicidade e na diferenciao das empresas.Eis a primeira coisa que eu queria lhes dizer. A segunda acho que no vou ter tempo agora , segunda consequncia desta arte liberal de

    93 Foucault, 2008a, p. 258.

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    governar, [so] as modificaes profundas no sistema da lei e na instituio jurdica.94

    Desta forma, vamos descortinando as particularidades da governamentalidade no regime liberal contemporneo, com sua arte liberal de governar, com seu pressuposto de que sempre se governa demais, constituindo a Sociedade empresarial descrita neste curso, andando passo a passo com a sociedade judiciria.

    Desenvolve-se ento a razo de estado mnimo:

    essa multiplicao da forma empresa no interior do corpo social que constitui, a meu ver, o escopo da poltica neoliberal. Trata-se de fazer do mercado, da concorrncia e, por conseguinte, da empresa o que poderamos chamar de poder enformador da sociedade.95

    A governamentalidade neoliberal ter ento, algumas peculiaridades, sendo cada vez mais regida pela racionalidade econmica, caminhando na direo de colocar a sociedade a servio do mercado, tendo assim o:

    homo oeconomicus como parceiro, como vis--vis, como elemento de base da nova razo governamental tal como se formula no sculo XVIII.96

    Em seguida, temos o curso Do Governo dos Vivos, de 1979-1980, no qual Foucault d prosseguimento s anlises dos anos anteriores, sobre as tcnicas e procedimentos destinados a dirigir a conduta dos homens.97 Contudo, observa-se um deslocamento importante na direo do resgate histrico do exame de conscincia e da confisso, investigando-se os atos de obedincia e de submisso, os atos de verdade.94 Foucault, 2008a, p. 204.95 Ibidem, p 203.96 Ibidem, p. 370.97 Foucault, 1997, p. 101.

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