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O UNIVERSO ASSOMBRADO POR DEMÔNIOS: O DRAGÃO NA GARAGEM DE GEORGE R. R. MARTIN NO
CONTO A SONG FOR LYA1 PEDRO GOMES MACHADO VIEIRA
“Na minha época, todo mundo acreditava
em Deus. E se alguém fazia perguntas
demais, era porque tinha ficado doido de
tanto ler livros. Deus estava lá. Deus nos
amava. Era isso e ponto final!”
Capitão América (Ultimate Extinction nº 2,
abril de 2006, Warren Ellis e Brandon
Peterson)
“Você espera que eu acredite que Deus é
uma criatura que vive nas cavernas do
planeta Shkea?”
Dino Valcarenghi (A song for Lya, George
R. R. Martin)
“A morte é uma certeza, substituindo tanto o
canto das sereias do Paraíso quanto o horror
do Inferno. A vida nesta terra, com todo o
seu mistério e beleza e dor, deve, então, ser
vivida muito mais intensamente: tropeçamos
e levantamos, nos entristecemos, ficamos
confiantes e inseguros, sentimos solidão e
alegria e amor. Não existe mais nada; mas
eu não quero mais nada.”
Christopher Hitchens (The portable atheist)
No clássico O mundo assombrado por demônios (1995), Carl Sagan cria a hipotética
situação do dragão na garagem. Em um exercício de ceticismo, Sagan leva o leitor a sua garagem
e desfila as peculiaridades do dragão que alega abrigar – invisível, incorpóreo, flutuante, que
1 Monografia produzida para o curso "O medo como prazer estético: o Sublime, o Horror e o Grotesco nas narrativas
literárias", oferecido pelo Prof. Julio França, no âmbito do Mestrado em Teoria da Literatura e Literatura
Comparada da UERJ.
2
cospe fogo atérmico – e em seguida pergunta qual a diferença entre esse dragão e um dragão
inexistente. “A única coisa que você realmente descobriu com minha insistência de que há um
dragão na minha garagem é que algo estranho está se passando na minha cabeça” (SAGAN:
2009, p. 199), Sagan afirma. A discussão perpassa a existência de Deus e as fundações do que
chamamos de fé.
Em A song for Lya, novela de ficção científica do autor norte-americano George R. R.
Martin, o dragão na garagem se chama Greeshka e habita as cavernas de um planeta esquecido
nos confins do universo, Shkea. Acrescentando um tempero grotesco, o Greeshka não se
contenta em ficar invisível em sua garagem particular, ele é bem concreto – assume a forma de
uma gosma repulsiva que parasita seres vivos e devora carne, o que não impede que os nativos
do planeta ergam um culto em torno da criatura e pratiquem suicídio ritual, oferecendo-se para
serem por ele consumidos, em nome de sua fé. Nesse caso, Sagan diria, algo estranho está se
passando na cabeça de todo um planeta.
George Raymond Richard Martin nasceu em 1948 e é um roteirista e autor que transita
pela ficção científica e a fantasia. Já foi contemplado com o Hugo, o Nebula, o Locus, o Bram
Stoker e o World Fantasy, praticamente todos os prêmios voltados para a ficção de gênero em
língua inglesa. A novela A song for Lya, publicada em 1974, lhe valeu o Hugo de Melhor Novela
em 1975. Martin atingiu enorme popularidade – e rompeu as barreiras do fandom2 de ficção
científica e fantasia – graças a série de fantasia épica As crônicas de gelo e fogo, com cinco
volumes da série publicados entre 1996 e 2011 e dois com publicação prevista para os próximos
anos. A saga gerou uma milionária adaptação para a televisão, foi traduzida para mais de 20
línguas e vendeu mais de 15 milhões de cópias no mundo todo.
Em A song for Lya, acompanhamos um casal de investigadores: Robb, um sensitivo
(alguém capaz de captar emoções), e a Lya do título, uma telepata. Eles são enviados ao planeta
Shkea com o objetivo específico de investigar o fenômeno Greeshka – o parasita de aparência
gosmenta e cor avermelhada que habita as cavernas do planeta. Os nativos do planeta – os
Shkeen – são, sem exceção alguma, adeptos do culto ao Greeshka. É a religião dos Shkeen:
2 De acordo com The encyclopedia of science fiction, o termo “fandom” se refere ao público leitor que tem
participação ativa em tudo que diz respeito ao seu gênero de interesse (em geral ficção científica e fantasia),
usualmente mantendo fanzines, blogs e frequentando convenções (CLUTE e NICHOLLS: 1993, p. 402).
3
“Todos eles são devotos. É um planeta sem hereges”3 (MARTIN: 2007, p. 160), garante Dino
Valcarenghi, o administrador planetário responsável por convocar a investigação. E os sacrifícios
também não são fenômenos isolados, Dino continua: “O Greeshka leva todos eles. E é um ato
voluntário. Como lemingues, eles marcham em direção às cavernas para serem devorados vivos
por aqueles parasitas”4 (p. 161).
Por volta dos 40 anos, todo Shkeen passa pela cerimônia de União (no original, Joining).
Uma “porção” de Greeshka é anexada a sua pele e a relação parasitária tem início. É comum, nas
cidades locais, ver os Shkeen – cuja aparência é a de humanoides com o corpo coberto de pelos –
vagando com massas da gosma avermelhada pendurada à cabeça. A gosma corroe a pele e
penetra pelo corpo do devoto, alimentando-se dele. Robb descreve da seguinte maneira um
Shkeen “unido” pela primeira vez:
Os parasitas eram bolhas brilhantes de uma gosma viscosa e avermelhada, com o
tamanho variando entre uma verruga pulsante atrás do crânio de um dos Shkeen,
até uma cobertura enorme de um vermelho gotejante e ondulante cobrindo a
cabeça e os ombros de outro, como um capuz vivo. O Greeshka vive
compartilhando os nutrientes na corrente sanguínea dos Shkeen. E também
vagarosamente – ah, muito vagarosamente – consumindo seu hospedeiro5 (p.
175).
Antes de completar 50 anos, todos os Shkeen, procediam para a União Final (no original,
Final Union), quando rumavam para as cavernas onde o Greeshka prosperava. As colinas em
volta da cidade mais populosa do planeta eram cortadas por um complexo de cavernas repleto da
gosma avermelhada. Lá, o devoto, passado o período de União, se unia ao Greeshka, tendo
finalmente seu corpo consumido por completo.
A religião dos Shkeen – exótica, primitiva e cruel aos olhos humanos – seria apenas uma
excentricidade da população nativa, se não fosse por um detalhe: o número de humanos se
convertendo e aceitando o parasita como “salvador” aumentava a cada dia, e cabia aos telepatas
Robb e Lya descobrirem o que, afinal, gerava aquela atração e o porquê do crescente volume de
conversões. Em Breaking the spell – religion as a natural phenomenon (2007), o filósofo Daniel
3 Todas as citações subsequentes de A song for Lya serão indicadas apenas pelo número da página e são de minha
tradução. No original: “Every one of them is a believer. This is a planet without heretics” 4 No original: “The Greeshka takes everyone. And they go willingly. Like lemmings they march off to the caves to
be eaten alive by those parasites” 5 No original: “The parasites were bright blobs of crimson goo, ranging in size from a pulsing wart on theback of
one Shkeen skull to a great sheet of dripping, moving red that covered the head and shoulders of the smallest like a
living cowl. The Greeshka lived by sharing the nutrients in the Shkeen bloodstream, I knew. And also by slowly –
oh so slowly – consuming its host.”
4
Dennet define religião como um “sistema social cujos participantes declaram a crença em um
agente ou agentes sobrenaturais cuja aprovação deve ser almejada” (p. 9)6. No mesmo texto,
Dennet também afirma que “a capacidade que temos de dedicar nossas vidas para algo que
consideramos mais importante do que nosso próprio bem estar pessoal – ou o imperativo
biológico de nos reproduzirmos – é uma das coisas que nos separa do resto do mundo animal”
(DENNET: 2007, p. 4)7. Aparentemente, estas características eram algo em comum que
compartilhávamos com os Shkeen. O Greeshka nos coloca, de certa maneira, a questão do
dragão na garagem de Carl Sagan e extrapola, até certo ponto, a definição de Dennet. O agente
sobrenatural de A song for Lya é, na narrativa, natural, mas a ele são atribuídas qualidades
sobrenaturais e a questão é até onde essas qualidades são oriundas da fé ou empiricamente
comprovadas por 14 mil anos de gerações de Shkeen se submetendo à União Final.
A song for Lya não é uma narrativa de horror propriamente dita, não à primeira vista. O
leitor desavisado encontrará uma ficção científica soft (sem ênfase na especulação de caráter
científico ou tecnológico), permeada por questionamentos filosóficos e existencialistas.
Entretanto, na medida em que a narrativa evolui, o Greeshka toma proporções macabras, quase
lovecraftianas.
Noël Carroll, em seu estudo sobre a natureza do horror, traçou algumas receitas para a
composição do monstro no que ele chamou de “horror artístico”. Ele considera crucial que o
monstro de horror articule duas características: que ele seja tanto ameaçador, causando perigo à
vida ou integridade física e mental de suas vítimas, quanto impuro, suscitando repulsa ou
rompendo tabus que provocam repugnância (CARROLL: 1999, p. 28). Partindo do olhar do
Outro – no nosso caso, o Outro seriam os humanos recém chegados ao planeta – não há como
negar o Greeshka como impuro. O próprio Carroll não poderia ser mais enfático quando diz que
“um objeto ou criatura é impuro caso seja categoricamente intersticial, categoricamente
contraditório, incompleto ou disforme”8. O Greeshka se inclui facilmente nessas categorias.
Quando a telepata Lya experimenta sondar a criatura, se surpreende: “‘Nada,’ Lya disse. ‘É o
6 No original: “social system whose participants avow belief in a supernatural agent or agents whose approval is to
be sought” 7 No original: “our ability to devote our lives to something we deem more important than our own personal welfare
– or our own biological imperative to have offspring – is one of the things that set us aside from the rest of the
animal world” 8 No original: “an object or being is impure if it is categorically interstitial, categorically contradictory, incomplete,
or formless”
5
mesmo que ler uma planta ou um pedaço de tecido. Nem mesmo um sim-eu-vivo.’”9 Todas as
formas de vida, por mais primitivas que fossem, emitiam um sinal psíquico de sim-eu-vivo (no
original, “yes-I-live”). O Greeshka não diferia de qualquer matéria inanimada, em termos de
assinatura psíquica ele não está nem vivo nem morto, é amorfo e não se inclui em nenhum reino
ou filo.
Todavia, nesse primeiro momento o Greeshka não parece ameaçador. Carroll também
afirma que “o componente ameaçador da análise deriva do fato de que os monstros encontrados
em narrativas de horror são uniformemente perigosos ou pelo menos assim aparentam ser”10
. O
Greeshka não é uma ameaça a menos que você voluntariamente se submeta à cerimônia de
União e, mesmo assim, o administrador planetário assegura: “Não se preocupe. O Greeshka leva
horas para se fixar e pode ser removido facilmente. Ele não vai te agarrar se você tropeçar
nele.”11
(p. 206). Bem diferente de monstros amorfos do cinema como o de A Bolha Assassina
(1958) ou A Coisa (1985), o Greeshka não ameaça ninguém. De acordo com Carroll, “caso
apenas potencialmente impura, a emoção seria repulsa”12
, e não horror. No entanto, veremos
mais adiante que o cenário muda de figura rapidamente.
O crítico e escritor de ficção científica Adam Roberts se referia ao clássico Solaris
(1961), do polonês Stanislaw Lem, quando afirmou que “É possível explorar a estranheza e grau
de ameaça associados com o Outro sem entregar-se à caricatura bidimensional da Alteridade
como algo maligno”13
(ROBERTS: 2002, p. 27). Solaris retrata um planeta-oceano, o próprio
oceano por si só sendo uma criatura inexplicável. Tal qual o Greeshka, Solaris não parece
representar uma ameaça iminente, e os cientistas, assim como os investigadores Robb e Lya,
procuram compreendê-lo, ou, “reduzi-lo à uniformidade da explicação científica”14
(p. 27). O
planeta-oceano “rejeita esse voraz impulso de transmutar toda alteridade em versões alternativas
da uniformidade”15
(p. 27) e os cientistas, atormentados por alucinações misteriosas, são levados
à loucura.
9 No original: “ ‘Nothing’, Lya said. ‘Like reading a plant or piece of clothing. Not even yes-I-live.’”
10 No original: “the threat component of the analysis derives from the fact that the monsters we find in horror stories
are uniformly dangerous or at least appear to be so” 11
No original: “Don`t worry. The Greeshka takes hours to attach itself, and it`s easily removed. It won`t grab you if
you stumble against it” 12
No original: “if only potentially impure, the emotion would be disgust” 13
No original: “It is possible to explore the strangeness and threat of the Other without surrendering to two-
dimensional caricature of Otherness as evil” 14
No original: “to reduce it to the sameness of scientific explanation” 15
No original: “denies this devouring urge to transmute all alterity into versions of sameness”
6
Em determinado momento, um dos personagens em Solaris diz: “Não queremos
conquistar o cosmo, apenas queremos levar a Terra às fronteiras dele. (…) Só nos interessa o
homem. Não precisamos de outros mundos. Precisamos de espelhos.” (LEM: 1961, p. 98). Robb
e Lya estão seguindo a mesma lógica especulativa e se surpreendem ao sondar os Shkeen: “‘Eles
são pessoas,’ ela [Lya] disse. ‘são como nós.’ (...) ‘Eles são mais humanos do que qualquer outra
raça que já encontramos no espaço.’ Eu [Robb] considerei. (…) ‘Se eles são como nós, não faz
sentido seguirem tão voluntariamente para a própria morte.’”16
(p. 174)
Na medida em que a investigação continua, e Lya tem a oportunidade de sondar alguns
dos humanos convertidos pelo Greeshka, o sentimento inicial de repulsa e curiosidade passa
gradualmente a ser substituido pelo horror. Esgotando-se as opções, Robb, frustrado, decide por
uma abordagem mais radical:
“Essa coisa na sua cabeça.” Eu disse, bruscamente. “É um parasita. Está bebendo
o seu sangue agora mesmo, se alimentando dele. Na medida em que cresce, irá
absorver cada vez mais do que você precisa pra viver. Compreende? Isso vai te
devorar.”
Eu esperava – o quê? Raiva? Horror? Repulsa? Não senti nada disso. (…) Tudo
que eu li foi amor e alegria, e um pouco de pena.
“O Greeshka não mata.” Ele disse, enfim. “O Greeshka nos dá alegria e uma
União feliz. Apenas aqueles que não têm nenhum Greeshka morrem. Eles estão
… sozinhos. Ah, sozinhos para sempre.” Algo em sua mente estremeceu com um
medo repentino, porém desapareceu logo.”17
(p. 186-7)
Mas a mesma frustração não se repete com Lya. Já um tanto perturbada pela experiência
de sondar a mente dos nativos, a telepata fica ainda mais atormentada após ler os humanos
adeptos do culto. Robb e Lya se consideravam um casal de amantes privilegiado. Uma vez que
ambos eram dotados de talentos psíquicos, um sempre estaria seguro do sentimento do outro, um
tipo particular de união, ao contrário da possível aos Normais, que – Lya dizia, citando o poeta
16
No original: “’They are people,’ she [Lya] said. ‘they are like us.’ (...) ‘They are more human than any other race
we’ve encountered in space’ I [Robb] considered that. (…) ‘If they are like us it doesn’t make sense that they’d go
off so willingly to die.’” 17
No original: “’That thing in your head.’ I said sharply. `It’s a parasite. It’s drinking your blood right now, feeding
on it. As it grows it will take more and more of the things you need to live. Understand? It will eat you.
I`d expected – what? Rage? Horror? Disgust? I got none of these. (…) All I read was his love and joy and a little
pity.
“The Greeshka do not kill.” He said, finally. “The Greeshka gives joy and happy Union. Only those who have no
Greeshka die. They are… alone. Oh, forever alone.” Something in his mind trembled with sudden fear, but it faded
quickly.” (p. 186-7)
7
Henry Wadsworth Longfellow – possuíam “apenas um olhar e uma voz, então escuridão
novamente e o silêncio”.18
Contudo, quando Lya sonda os Unidos, ela se depara com outro tipo de união, em uma
escala que ela, como telepata, nunca pudera conceber: “Eu estava lá, com os Unidos,
compartilhando eles e o amor deles. Estava de verdade. E não queria sair de lá. Não queria deixá-
los, Robb. Quando os deixei, me senti tão isolada, arrancada.” E em seguida, arremata: “Não é só
você. Somos todos nós. O que nós temos comparado a eles?”19
(p. 194).
Lya tenta transmitir a Robb sua reação ao contato com a União Greeshka, mas, ao tentar
verbalizar seus sentimentos, termina apenas mais frustrada:
Você disse que nós nos conhecemos tanto quanto dois seres humanos podem se
conhecer. Está certo. Mas quanto dois seres humanos podem conhecer um ao
outro? Não estamos todos isolados, na verdade? Cada um sozinho em um
universo vazio, enorme e escuro? (…) No final, no fim gelado e solitário, somos
apenas nós, cada um por si, na escuridão. (…) Você diz que temos mais sorte do
que os Normais. Eles possuem apenas um toque e uma voz, certo? Quantas vezes
citei isso? Mas o que nós temos? Um toque e duas vozes, talvez. Não é mais
suficiente. Estou assustada. De repente, estou assustada.20
(p. 195)
“O horror artístico é antes de tudo identificado em função de perigo e de impureza”
(CARROLL: 1999, p. 29), já havia declarado Carroll. Embora ainda trafegue por um terreno
incerto quanto à natureza do que estão lidando, Robb identifica o terror genuíno em Lya. Algo
indefinível os ameaçava, como casal, e perturbava a percepção de Lya como indivíduo. “O medo
é fundalmentalmente o medo da morte”, escreveu Jean Delumeau (NOVAES: 2007, p. 39), e o
que afligia Lya era uma extrapolação ainda mais radical da morte, a morte como a solidão
genuína. Ele próprio, seu talento bem mais fraco do que o da mulher, experienciara apenas uma
pequena fração daquele sentimento.
Após dormirem juntos e compartilharem experiências e pensamentos por meio de seus
talentos telepáticos – uma última desesperada tentativa de Robb se “conectar” à mulher – ele
18
No original: “only a look and a voice, then darkness again and silence” 19
No original: “I was in there, with the Joined, sharing them and their love. I really was. And I didn’t want to come
out. I didn’t want to leave them, Robb. When I did, I felt so isolated, so cut off.” (…) “It’s not you. It’s all of us.
What do we have compared to them?” 20
No original: “You said we know each other as much as any human beings ever can. You are right. But how much
can human beings know each other? Aren’t they all cut off, really? Each alone in a big dark empty universe? (…) In
the end, in the cold lonely end, it’s only us, by ourselves, in the blackness. (…) You say we are luckier than
Normals. They have only a touch and a voice, right? How many times have I quoted this? But what do we have? A
touch and two voices, maybe. It’s not enough anymore. I’m scared. Suddenly I’m scared.”
8
compartilha um sonho onde Lya recita – em uma amálgama de impressões visuais e sensoriais –
um de seus poemas favoritos, “Dover Beach” (1867), do poeta vitoriano Matthew Arnold (1822-
1888): “Estamos aqui como em uma planície sombria” (no original, “We are here as on a
darkling plain”). Tal intertexto torna impossível desvincular o dilema de Lya do dilema do autor
do poema, um típico homem instruído da era Vitoriana, testemunhando o estremecimento da sua
fé perante a dúvida introduzida por novidades como o Darwinismo, a revolução industrial, o
imperialismo. “Meus poemas representam, no geral, a principal tendência da mente do último
quarto do século”21
, o próprio Arnold afirmava (ABRAMS, STILLINGER, FORD et al: 1993, p.
1346), e a mesma incerteza enfrentada pela mente do final do século XIX se reflete no futuro
distante de A song for Lya. A “planície sombria” seria a metáfora para a condição central do ser
humano, justamente onde Lya se sentia, embora, ao contrário de Arnold, o Greeshka lhe
oferecesse uma tentadora saída.
Em Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo
(1756), o filósofo Edmund Burke argumentava (em referência à Morte, descrita por Milton em
Paraíso perdido) que o “escuro, incerto, confuso, terrível” (BURKE: 1993, p. 67) estavam
absolutamente vinculados ao sublime. Ele acreditava que "o terror é, em todo e qualquer caso. . .
o princípio primordial do sublime" (BURKE: 1993, p. 66). A “planície sombria”, de onde Lya
não via saída, era sublime, na medida em que sua vastidão metafórica estava inerentemente
conectada à condição humana que o contato com o Greeshka tornara evidente e, de certo modo,
remediável.
A narrativa continua com a visita de Robb às cavernas do Greeshka, para onde toda
população do planeta migra em busca da União Final. Lya havia desaparecido e, sob a insistência
de Dino, Robb decide continuar a investigação sem ela. Nas cavernas, ele encontra uma cena
ainda mais repulsiva do que esperava:
Sua cor era de um vermelho-amarronzado opaco, como sangue coagulado, em
nada similar ao avermelhado brilhante quase translúcido das pequenas amostras
penduradas nos crânios dos Unidos. Havia borrões escurecidos também, como
queimaduras ou manchas de fuligem em seu vasto corpo. Mal conseguia avistar o
lado oposto da caverna; o Greeshka era grande demais. (...) Entre nós e a enorme
massa principal do Greeshka estava uma floresta de filamentos avermelhados
suspensos, pendurados, uma teia viva de tecido Greeshka que por pouco não
alcançava os nossos rostos.
21
No original: “My poems, represent, on the whole, the main movement of mind of the last quarter of a century”
9
E aquilo pulsava. Como um organismo. Até os filamentos marcavam um ritmo,
estendendo-se e então contraindo-se novamente, movendo-se de acordo com uma
batida silenciosa, em unísono com o enorme Greeshka logo atrás.
Senti meu estômago embrulhar.22
(p. 205)
A cena toma proporções ainda mais perturbadoras quando Robb é informado que cada
uma das “manchas de fuligem” é uma União Final recente – um Shkeen sendo digerido pelo
Greeshka. Robb, então, se aventura a sondar uma Shkeen que, sorridente, acaba de se deitar na
camada de gosma e, ao ser vagarosamente engolida, está iniciando seu processo de União Final.
Apesar do talento de Robb como sensitivo ser bem mais limitado do que o de Lya, o turbilhão
emocional é tão intenso que ele finalmente consegue experimentar algo similar ao que Lya
sentira:
Era errado chamar aquilo de tempestade mental. Foi imenso e impressionante e
intenso, cauterizante e ofuscante e sufocante. Mas foi tranquilo também, e gentil
com uma gentileza mais violenta do que o ódio humano. (...) desta vez eu não
estaria sozinho, em minha planície sombria.
Mas com essa frase eu pensei em Lya.
E de repente me encontrei resistindo, lutando contra aquilo, combatendo aquele
oceano avassalador de amor. Eu corri, corri, corri, CORRI... e fechei a porta da
minha mente, tranquei todas as fechaduras e deixei a tempestade açoitá-la e uivar,
enquanto segurava a porta com todas as minhas forças, resistindo. Ainda assim ela
começou a entortar e estalar.
Gritei. A porta abriu de sopetão e a tempestade invadiu e me tragou com ela,
sacudiu-me em círculos indo e voltando. Velejei até as frias estrelas mas elas não
mais eram frias, e cresci e cresci até que eu fosse as estrelas e elas fossem eu, e
éramos a União, e por um único solitário instante iluminado eu era o universo
inteiro.
Então nada..23
(p. 207-8) 22
No original: “Its colour was a dull brownish-red, like old blood, not the bright near translucent crimson of the
small creatures that clung to the skulls of the Joined. There were spots of black too, like burns or soot stains on the
vast body. I could barely see the far side of the cave; the Greeshka was too huge. (…) Between us and the great bulk
of the Greeshka was a forest of hanging, dangling red strands, a living cobweb of Greeshka tissue that came almost
to our faces.
And it pulsed. As one organism. Even the strands kept time, widening and then contracting again, moving to a silent
beat that was one with the great Greeshka behind. My stomach churned.” 23
No original: “(…) it's wrong to call it a mindstorm. It was immense and awesome and intense, searing and
blinding and choking. But it was peaceful too, and gentle with a gentleness that was more violent than human hate.
(…), this time I would not be alone afterwards upon my darkling plain.
But with that phrase I thought of Lya.
And suddenly I was struggling, fighting it, battling back against the sea of sucking love. I ran, ran, ran, RAN … and
closed my mind door and hammered shut the latch and let the storm flail and howl against it while I held it with all
my strength, resisting. Yet the door began to buckle and crack.
I screamed. The door smashed open, and the storm whipped in and clutched at me, whirled me out and around and
around. I sailed up to the cold stars but they were cold no longer, and I grew bigger and bigger until I was the stars
and they were me, and I was Union, and for a single solitary glittering instant I was the universe. Then nothing.”
10
Robb acorda em seu quarto, onde é informado que teve que ser nocauteado. Tão logo
começou a ler a Shkeen em União Final, surtou e começou a andar em direção ao Greeshka.
Nesse momento Robb começa a compreender que as questões com as quais estavam lidando
tinham dimensões um pouco mais vastas do que descobrir a melhor maneira de catalogar um
parasita sem cérebro que inspirou uma religião exótica.
O dilema experimentado por Robb pode ser compreendido pela perspectiva de críticos
radicais da religião, como Daniel Dennet e o biólogo Richard Dawkins, que já sugeriram a
possibilidade de uma natureza parasitária da religião como fenômeno cultural. Dennet,
aproveitando o conceito dos memes de Dawkins e formulando uma hipótese para o surgimento
das religiões como simbiontes culturais, especula que “Caso (algumas) religiões sejam parasitas
evoluídos culturalmente, podemos esperar que elas sejam ardilosamente bem projetadas de modo
a esconder suas verdadeiras naturezas de seus hospedeiros, uma vez que essa é uma adaptação
que iria alavancar sua própria disseminação”24
(DENNET: 2006, p. 85). George R. R. Martin vai
além dos memes e cria o autêntico pesadelo do novo ateísmo de Dawkins, Dennet, Christopher
Hitchens e companhia: a religião na forma de um parasita concreto que – aparentemente – não se
importa em esconder a sua verdadeira natureza de seus hospedeiros, pois estes o aceitam da
maneira como ele se apresenta, por mais aterrorizante que aparente.
Durante a noite, Lya aparece para Robb em sonhos. Logo ele percebe tratar-se de uma
projeção telepática e que era tarde demais para a mulher: Lya havia se entregue ao Greeshka e
usava o elo psíquico de ambos não para se despedir, mas para tentar convencer Robb a fazer o
mesmo:
Robb. Por favor. Una-se a nós. Una-se a mim. É felicidade, sabia? Para todo o
sempre, e pertencer e compartilhar e estar juntos. Estou apaixonada, Robb, estou
apaixonada por um bilhão de bilhões de pessoas, e conheço todas elas melhor do
que eu jamais conheci vocês e todas elas me conhecem, no mais íntimo, e elas me
amam. E será para sempre. Eu. Nós. A União. Ainda sou eu mesma, mas sou eles
também, entende? (…)
O Greeshka não é importante, não tem nem uma mente, ele é apenas o elo, o
meio, a União é o Shkeen. Milhões de bilhões de bilhões de Shkeen, todos os
Shkeen que já viveram e se Uniram em catorze mil anos, todos juntos e amando e
pertencendo, imortais. (…)
24
No original: “If (some) religions are culturally evolved parasites, we can expect them to be insidiously well
designed to conceal their true nature from their hosts, since this is an adaptation that would further their own spread”
11
É o que os humanos sempre estiveram buscando, ansiando, chorando por em
noites solitárias. É amor, Robb, amor real, e o amor humano é apenas uma
imitação pálida. (…)
Venha, Robb. Una-se. Ou você estará sozinho para sempre, sozinho na planície,
com apenas uma voz e um toque para te apoiar. E no final, quando o seu corpo
morrer, você não vai ter nem mais isso. Apenas uma eternidade de escuridão
vazia.25
(p. 210-11)
Mesmo com os apelos eloquentes da mulher, o ceticismo de Robb prevalece e ele,
ainda que muito perturbado, não cede. Lya era ateia, assim como Robb admitia ser e, também,
como a maioria dos detentores de talentos psíquicos. Isso acentuava ainda mais a dificuldade de
Robb em aceitar tudo aquilo. Na definição de religião por Daniel Dennet, o devoto busca a
aprovação da entidade sobrenatural que considera divina. Os seguidores do Greeshka extrapolam
qualquer busca de aprovação ao se submeterem para serem devorados. Diferente de mártires –
que usam uma causa ou invocam o nome de um Deus para acabar com a própria vida – os
Shkeen apenas fornecem os próprios corpos como nutriente para seu Deus. É como se o dragão
na garagem de Carl Sagan estivesse sempre faminto e fosse insaciável.
Contudo, o que mais perturba Robb não é o suicídio ritual por si só, mas o
depoimento de Lya. É interessante notar – e Lya estava totalmente ciente disso – que os Shkeen
não possuíam conceito de vida após a morte, apenas a União Final, quando o falecido “se tornará
seus irmãos e seus irmãos se tornarão ele” (p. 168). Por mais que seja uma ideia completamente
alienígena, Lya compreende e não se importa, e Robb, mais tarde, tenta explicar a Dino
Valcarenghi: “Eles encontraram Deus, ou tanto de um Deus quanto jamais é provável que
encontrem. A União é uma mente coletiva, imortal, muitos em um, todos feitos de amor. (…)
Talvez aquilo não tenha criado o universo, mas é amor, puro amor, e dizem que Deus é amor,
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No original: Robb. Please. Join us, join me. It's happiness, you know? Forever and forever, and belonging and
sharing and being together. I'm in love, Robb, I'm in love with a billion billion people, and I know all of them better
than I ever knew you, and they know me, all of me, and they love me. And it will last forever. Me. Us. The Union.
I'm still me, but I'm them too, you see? (…)
The Greeshka isn't important, it doesn't even have a mind, it's just the link, the medium, the Union is the Shkeen. A
million billion billion Shkeen, all the Shkeen that have lived and Joined in fourteen thousand years, all together and
loving and belonging, immortal. (…)
It's what humans have always been looking for, searching for, crying for on lonely nights. It's love, Robb, real love,
and human love is only a pale imitation. (…)
Come, Robb. Join. Or you'll be alone forever, alone on the plain, with only a voice and a touch to keep you going.
And in the end when your body dies, you won't even have that. Just an eternity of empty blackness.
12
não é?”26
(p. 212). Robb, embora pareça acreditar genuinamente no que diz, está horrorizado
demais para seguir Lya em sua comunhão final.
Em se tratando de horror sobrenatural, podemos consultar H. P. Lovecraft. Ele
afirma:
O desconhecido, sendo também o imprevisível, tornou-se, para nossos ancestrais
primitivos, uma fonte terrível e onipotente das benesses e calamidades concedidas
à humanidade por razões misteriosas e absolutamente extraterrestres, pertencendo,
pois, nitidamente, a esferas de existência das quais nada sabemos e nas quais não
temos parte. (LOVECRAFT: 2007, p.13)
O próprio Lovecraft criou seu panteão de divindades extraterrestres, o Mito de
Cthulhu, junto às quais o Greeshka pareceria inofensivo. Contudo, o tipo de horror evocado por
tais divindades sobrenaturais é semelhante, uma vez que tem raiz neste sentimento que a
humanidade herdou de seus mais primitivos ancestrais e que provavelmente inspirou o
surgimento das primeiras crenças, mitos, supertições e, no geral, os embriões das atuais religiões
como conhecemos.
Assim, um impressionado Robb escapa de Shkea, após tentar fazer-se entender – sem
sucesso – para seu cético empregador. Na espaçonave que o transportaria para longe do planeta,
Robb encontra Laurie, uma jovem estudante de antropologia e ex-namorada de Dino. Solitários e
decepcionados, eles repetem a previsível rotina de duas almas frustradas que buscam apenas a
companhia alheia para preencher o vazio e aliviar a dor: passam a noite juntos. “Então, senti a
escuridão aliviar” (p. 215)27
, Robb diz.
Não havia como Robb rejeitar a hipótese do dragão na garagem, mas George R. R.
Martin nos apresenta a uma realidade que vem obrigatoriamente associada a outras dúvidas
cruciais, dúvidas que apelam de maneira íntima à natureza humana. Robb sempre iria se
perguntar, “mas e se eu estiver errado... ?” (p. 215)28
e provavelmente só conseguirá a resposta
tarde demais. De fato, não havia como rejeitar a hipótese daquele dragão na garagem. Mas Robb
também não precisava gostar dela, afinal, ele é apenas humano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
26 No original: “They’ve found God, or as much of a God as they’re ever likely to find. The Union is a mass mind, an immortal
mass mind, many in one, all love. (…) Maybe it didn’t create the universe, but it’s love, pure love, and they say that God is love,
don’t they?” 27
No original: “Then, the darkness softened” 28
No original: “But If I’m wrong...”
13
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Campinas: Papirus Editora, 1999 (p. 26-91).
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Medo. São Paulo: Editora SENAC SP / SESC SP, 2007 (p.39-52).
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Paulo: Companhia das Letras, 2009.