O Universo da Feitiçaria - Nubia Hanciau

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    O universo da feitiaria, magia e variantes 75

    Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 44, n. 4, p. 75-85, out./dez. 2009

    LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE

    O universo da feitiaria, magia e variantes

    Nubia Hanciau

    FURG

    RESUMO O texto a seguir apresenta a crtica de vocbulos e conceitos da histria da feitiaria,que reconhece no apenas uma magia, uma bruxaria, uma feitiaria. Para a compreensodos atos mgicos, algumas distines bsicas so necessrias, pois se sabe que existiro tantasprticas quantos forem os sistemas culturais e de acordo com as diversas singularidades domental coletivo. Alm disso, novos caminhos apresentam-se ao historiador contemporneo,que privilegia os estudos dos simbolismos, das representaes mentais, da magia, do mito eparentesco, o que o leva a ver com precauo os sistemas gerais de classicao ou as sntesesantropolgicas, antes de qualquer retomada conceitual.

    Palavras-chave: Histria da feitiaria; Sistemas culturais; Mito

    ABSTRACT The following text presents a criticism of terms and concepts from the history ofwitchcraft, which recognizes not only magic, sorcery, witchcraft. To understand magicalacts it is necessary to make a few basic distinctions, as it is known that there will be as manypractices as there are cultural systems, and according to the various singularities of the collectivemind. Besides, new paths are presented to the contemporary historicist, who privileges thestudies of symbolisms, mental representations, magic, myth and kinship, and is thus led to becautious in relation to general classication systems or anthropological syntheses, before anyconceptual undertaking.

    Keywords History of witchcraft; Cultural systems; Myth

    Quando se trata da histria da feitiaria e se recorrea distintas sociedades ou coletividades, faz-se necessriaa crtica dos vocbulos e conceitos no sentido de evitarconfuso entre os sortilgios em geral magia, bruxaria,feitiaria e sua aplicao. certo que uma interpretaohistrica deve rejeitar toda atomizao e formalizaode noes, combatendo explicaes particularizantesou demasiado gerais, para consider-las em situao deestruturas mentais e interdependncia cultural em que atuao mental coletivo.1 Separaes radicais podem tornar-se

    perigosas, na medida em que os rituais religiosos contmigualmente ingredientes mgicos.

    A bem do rigor histrico preciso que se diga queno existe uma magia, uma bruxaria, uma feitiaria,ou outras particulares manifestaes das prticas mgicas.

    1 Expresso utilizada por Carlos Roberto Figueiredo Nogueira,Em buscados conceitos: magia, 1991, p. 10-25. Jacques Le Goff tambm fala demental singular e plural, tendo em vista que coexistem inmerasmentalidades em uma mesma poca em um mesmo indivduo. a face dahistria que muda lentamente. A expresso mental coletivo, que pareceredundante, tem a ver com a utilizao feita para designar o psiquismocoletivo o modo particular de pensar de um povo ou de um grupo depessoas em uma determinada poca. Cf. Philippe Aris,A histria dasmentalidades, in: LE GOFF, 1998, p. 153-176.

    Depois da extraordinria renovao do pensamentocientco que caracterizou a segunda metade do sculoXIX, e da longa maturao epistemolgica decorrente,muitos signicados alteraram-se. Para compreender osatos mgicos, algumas distines bsicas so necessrias,ainda que sem nenhuma pretenso de validade absoluta,pois existiro tantas prticas quantos forem os sistemasculturais e de acordo com as diversas singularidades domental coletivo. A lm disso, novos caminhos apresen-tam-se ao historiador contemporneo, que privilegia os

    estudos dos simbolismos, das representaes mentais, damagia, do mito e do parentesco, o que o leva a ver comprecauo os sistemas gerais de classicao ou as sntesesantropolgicas, antes de qualquer retomada conceitual.

    ***

    A linguagem, mola mestra da cultura, o elementobsico para a investigao da episteme de um determinadogrupo, localizado no tempo e no espao. Ela constitui-seem meio fundamental para a percepo psico-histrica,conforme j apontara Lucien Febvre (o historiador das

    mentalidades). Febvre dene a linguagem escrita como

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    o principal modo de expresso do campo percepcionalde uma comunidade.2 A literatura captar essa linguagemnos documentos e papis, vestgios (traces) que xama ortodoxia crist e nos quais podem ser encontradas aspegadas do universo mgico. Lembranas de lugares-comuns e todo um manancial das mais diversas ma-nifestaes culturais, seus restos e tempos reunidos em

    coerncias mentais, constituem o mental coletivo deque se fala, no qual devem ser buscadas as continuidades,as perdas, as rupturas, enm, a reproduo mental dassociedades.

    Embora apaream como prticas interpenetradase, em certo sentido, confundidas, resta tentar esclareceras especicidades das personagens ligadas s diferentesprticas mgicas, visando maior adequao realidadehistrica no Ocidente cristo. Bruxos, feiticeiros, magospropriamente ditos e padres com funo mgica, entreoutras distines que dicultam a compreenso, esto

    entre tantos nomes existentes para identicar as prossesocultas. Mesmo que, desde a Bblia, os textos antigosfalem em Cam, o lho maldito de No, fundador de umaraa de mgicos idlatras, a ntida distino entre asprticas mgicas no encontrada em nenhum manual defeitiaria. So registradas apenas nuances nos livros dostelogos, que fazem a diferena supercial entre magiabranca ou negra, um saber um pouco mau ou umsaber muito mau.3 De origem divina s Deus ensinaos grandes segredos , a magia no forosamente boa.H registros de invocaes terrveis, sulfurosas e atmortais, logo seu emprego ser quase sempre negativo ou

    discutvel. Na verdade, a magia, sobretudo em sua formapopular, nunca completamente branca, pois fazer o bema alguns por meio de determinados mtodos pode, emcontrapartida, signicar fazer o mal a outros... Tambmno completamente negra, pois se fosse francamentediablica ou assim se apresentasse, no teria reunido padres,adeptos de uma pequena mgica/feitiaria inocente, qualse convertiam para fazer o bem. interessante salientarque, ao pronunciar alguns encantamentos para vencer aesterilidade feminina ou curar pequenos problemas, essesreligiosos, movidos por bons propsitos, redobravam os

    sinais da cruz com o intuito de reforar a f.Embora obscura ao designar o pior e o melhor, apalavra magia, quando empregada nos livros eruditos pelosautores cristos da Idade Mdia, referia conhecimentossuperiores que possibilitavam conhecer as grandes leisdo universo ou a cura pelas plantas (magia naturalis).A menos nobre, a pequena magia de no-mestres (emfrancs sorcellerie), defendida pela Igreja, utilizava osaber e previa o futuro com ns pouco elevados.4

    Palavra de origem iraniana, incorporada pelo grego(mageia), a magia era utilizada para exprimir uma formaespecial de relao com o sobrenatural. Em seu livro

    La sorcellerie, Jean Palou, um dos pioneiros a estudar

    o assunto na contemporaneidade, dene a magia comoa arte de comandar as foras do mal.5 A feitiaria, a detentar comand-las. Iniciado nos grandes mistrios, almde mestre o mago era considerado um homem de cincia,enquanto o feiticeiro, um aprendiz das aldeias, conhecedorapenas dos pequenos mistrios. Em consequncia, a magiaaparece em muitas obras de referncia como arte ou pr-

    cincia, entre as formulaes avanadas. No mago haveriaconhecimento real; no feiticeiro, vulgarizao.2345

    Entretanto, se o mgico ou mago arriscava apenasa alma aos olhos dos crentes, protegido que era pelosgrandes que o consultavam e em cuja corte vivia, ofeiticeiro arriscava a alma e a vida, pois era sobre ele quese acumulavam dios e invejas dos irmos de misria. Estaconcepo de Palou antecipa em trinta anos os conceitosde Guy Bechtel (1997/2000), para quem ningumdene exatamente onde termina a magia ou comea afeitiaria. Ao confrontar o feiticeiro com o mgico, esse

    historiador refora em muitos aspectos a interpretao dePalou, acrescentando, porm, ao feiticeiro, a funo desubalterno, imitador diante de seu modelo, um algebristaface ao mdico, um emprico frente ao cientista. Sendomestre, o mgico iniciado nos grandes mistrios. Nestamedida, a magia ser a cincia dos que sabem e a feitiariaa aproximao dos que gostariam de saber.6 Talvez estejaaqui a distino capital feita por esses estudiosos, semesquecer, contudo, que a magia era para ambos umaconcepo de mundo, uma viso esclarecida, extralcida,ao considerarem o universo suscetvel de modicaespor outros meios que no os materiais.

    Ao distinguir a magia antiga da que se tornardiablica, importante observar que nem o mago, nema feiticeira eram inicialmente serviais do Diabo, apenas

    2 FEBVRE, 1953, p. 211.3 No Brasil, a umbanda considerada a magia branca; a magia negra,

    praticada com maus propsitos ainda denominada, dependendoda circunstncia, bruxaria (tida como sinnimo de feitio, feitiaria,sortilgio) ou necromancia ou nigromancia (adivinhao pela invocaodos espritos). J a magia simptica a que pretende ter ao sobrepessoa ou objeto distante, do qual se detm uma parte. Cf. Novo Aurlio,1999, p. 1254.

    4 Doutrina dos magos para o dicionrio, a magia considerada a arte oucincia oculta para produzir por meio de atos, palavras e por interferncia

    de espritos, gnios e demnios efeitos e fenmenos extraordinrios,contrrios s leis naturais. Na antropologia, designa o conjunto desaberes, crenas e prticas, relativamente institucionalizados dentro deum grupo social, que respondem necessidade de manipular certas forasimpessoais ou indecifrveis, manifestas na natureza, na sociedade ounos indivduos. Os gregos distinguiam trs grandes categorias mgicasem sua origem: o taumaturgo (de thaumatourgs), curandeiro que faziamilagres, intrprete dos sonhos, enviado pelos deuses; ogos (que vemde lamentaes, imprecaes), tambm chamado mestre do fogo e do voomgico, altamente suspeito por manipular a iluso e praticar uma espciede magia com a qual evocava os espritos malignos. Tcnico do xtase,de quem Cassandra (profetisa detentora do xtase e do entusiasmo) aencarnao feminina, ogos era um inspirado, primo do misterioso xamoriental. Por ltimo, abaixo nessa hierarquia, o pharmakos, apoticriodos ltros, das drogas e dos venenos. BECHTEL, 1997, em captulointitulado Lternel malce, p. 13-54.

    5 PALOU, 1995, p. 8-17.6 Cf. BECHTEL, 1997, p. 50.

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    comandavam os espritos. A magia dominadora dosprimeiros sculos da era crist apaga-se cada vez mais antea feitiaria vulgar encontrada nos bairros mais pobres. Assupersties medocres ascendem das classes inferioress superiores; os ltros, as drogas, os preparados e aspoes mgicas tomam cada vez maior espao nos nveismais elevados da sociedade. Nessa evoluo, uma gura

    estereotipada anuncia a feiticeira medieval, a estrige(strige,stix, stria, striga), mulher que voava noite parafrequentar reunies, desencadear ventos, tempestadese fabricar unguentos e venenos. Do magus passa-se aomalecus (feiticeiro) e de modo cada vez mais clere malca (feiticeira).

    Volta s origens

    As populaes primitivas da Europa, como as dos outroscontinentes, conheciam os charmes ou a feitiaria [...]

    mas o essencial da nova demonolatria o pacto comSat, o sab das feiticeiras, as relaes carnais comos demnios, etc. assim como a estrutura sistemticae hierarquizada do reino diablico, so criaes quedatam do m da Idade Mdia.

    H. R. Trevor-roper

    Foi somente no sculo XIII, a partir da alta IdadeMdia, quando o mgico se torna citadino, que se tomouconscincia do encantamento geral na Europa, seusconsequentes desmembramentos e suas designaes. Pelasprticas o mgico perpetuou a tradio das antigas religies

    cultos de druidas ou pagos , gerando um problemade estratgia crist, pois o processo de superposiodo cristianismo ao paganismo levou implicaes para acoletividade. Ao combater o paganismo com o objetivode catequizar os is e tirar sua fora, os primeirostelogos o negaram, pretendendo mostrar que as antigastradies estavam superadas pela emergncia da f crist.Alm da puricao e consagrao dos antigos locais deculto, os eclesisticos conferiram um sentido cristo aosritos tradicionais dos druidas ou pagos. Assim, de umlado o sistema evangelizador atenuou o trauma cultural

    da converso; do outro, sob a cobertura e tolernciada autoridade da Igreja, era favorecida a permannciados antigos costumes e das crenas (supersties), quese assemelhavam s tradies mgicas da Antiguidadeclssica e exigiam meios para erradic-los, inexistentesat ento.

    O processo de desvalorizao do mundo mgicotransforma-se e renova-se a partir do sculo XII, quandose d o contato com os livros rabes de ocultismo e arecuperao dos textos gregos, que modicam o panoramaeuropeu e resgatam o pensamento pago intocado pelocristianismo. Estudos de alquimia e astrologia colocam

    em segundo plano a participao demonaca da magia

    e lanam as bases da magia natural, fundamentada emvirtudes ocultas e experincias de difcil acesso, opostass prticas medievais e diablicas. o tempo dos rgidosprincpios ticos, das foras naturais, imateriais, oriundasda tradio hebraica, a Kabbalah,7 em que frmulas eritos eruditos transformam os indivduos em criadorese manipuladores do universo. A arte mgica chega

    ao Renascimento apresentando nova estrutura, queabandona os critrios pragmticos. Sem perder totalmentea qualicao demonaca atribuda pela ortodoxia crist,ela ascende categoria de atividade erudita, celebradae includa em um cnone separado das demais prticasdiablicas.

    Arte encantatria, a magia inclui o conhecimento dosgrandes princpios que regem o universo, a certeza de queos elementos podem ser movidos pelo pensamento, poruma operao cognitiva, um trabalho interior de espritoe fora. Assim como o universo poderia ser modicado,

    modicados tambm poderiam ser os acontecimentos,as doenas, o tempo e o destino, primeira pretenso dosprossionais do futuro. Embora se encontrem innitasdiferenas na concepo do mundo e nas mentalidadesdos pensadores, sbios, mdicos e telogos, prevaleceuma espcie de platonismo vulgar, que acreditava emum universo instvel, impenetrvel, pleno de mistrios. o novo historiador, na sua reticncia ao progresso e modernidade e em sua paixo pelo estudo das sociedadespr-industriais, quem faz a ponte entre o presente e opassado para evocar a crena comum nos quatro elementosem equilbrio, conguradores do universo e responsveis

    pela mudana da vida das coisas, dos animais e doshomens.

    Esses equilbrios, o fogo, o ar, a gua e a terra, semesquecer o equilbrio dos contrrios, calor/frio, seco/mido, associados ao princpio de simpatia/antipatia,causam a atrao ou a repulsa neste continuum instvel doplaneta, que abriu um dia o caminho a todos os magos efeiticeiros. O ltimo deles, o dos quatro humores no corpohumano o sangue, as duas biles (amarela e negra) e aeuma foi considerado responsvel pelo desempenho devrios papis determinantes do temperamento sanguneo,

    colrico, melanclico ou eumtico. Um dos humoressobrepondo-se nitidamente aos demais, as perturbaesinsurgiam-se; estabilizando-os, o mdico poderia traba-lhar a sade, e o feiticeiro, provocar a doena. Tudo semove por uma questo de equilbrio/desequilbrio. Essaera a ideia de sade na medicina hipocrtica, mantidano mnimo at o sculo XVI. Permanece-se no teor deesquemas loscos, em que a ao mgica (superior)ou feiticeira (inferior) torna-se possvel em funo dasituao do mundo.

    7 Originria do hebraico, a kabbalah (= tradio) designa os movimen-tos msticos e esotricos europeus do sculo XII em diante. RIFFARD,1987, p. 73.

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    O complexo universo dosneoplatnicos

    A natureza, segundo os neoplatnicos, estava prova-velmente povoada por demnios e animada por

    foras mgicas, que agiam conforme as leis daanidade e da repulso. Isto no exclua a existncia

    das feiticeiras, criaturas que, por meios ocultos,esforavam-se em curto-circuitar ou transformar ocurso das coisas.

    H. r. Trevor-roper

    A Europa dos sculos XV e XVI viu despontar odesejo de um novo mundo, no apenas geogrco, masinterior, um universo innito, mesmo que se apresentassecada vez mais nito. Esse mundo o dos lsofosneoplatnicos, pensadores que se sentiam atrados pelasletras, pelas losoas antigas e pelo amor Antiguidadepag, menos desaparecida do que se poderia supor,

    subjacente durante toda a Idade Mdia.Entre os que animaram esta corrente de retornoao passado esto Marsile Ficin (1433-1499), o nomemais importante da losoa neoplatnica; Picco dela Mirndola (1463-1494) e Paracelso (1493-1543),considerado o pai da medicina moderna. Evidentementetodos eles leram Plato (428-347 a.C.) atravs de seudiscpulo Plotin (203-270) ou com a ajuda de comentriosposteriores Idade helenstica.8 Pode-se dizer que oneoplatonismo est para o verdadeiro platonismo assimcomo o neogtico do sculo XIX, com Walter Scott ouViollet-le-Duc, est para o gtico da Idade Mdia: uma

    re/criao quase completa ou acentuao tardia de algunsaspectos isolados da poca, voluntariamente exagerados.Para Ficin e Mirndola, o conhecimento s poderia seresotrico, escondido, secreto, elitista, um saber acessvela poucos, afastado do ideal de Scrates e de Plato.

    Para esses lsofos, o Cristianismo havia injusta-mente eliminado os grandes pensadores do passado.Com o Renascimento, surge o desejo de melhor conheceresse fundo antigo pago, de reconstituir o patrimnioe redescobrir suas obras-primas. o que faro os neo-platnicos, buscando equilibrar a limitao externa com

    maior liberdade interna, sonhando, por volta dos anos1500, com um mundo mais amplo e complexo. No havianenhuma razo para valorizar ideias simples e claras,das quais se tivera justamente indigesto com a escols-tica.9

    Embora no se resuma facilmente um pensamentoessencialmente complexo, universal e alusivo, dada suainuncia nas mentalidades da poca e a relevncianeste enfoque, so pertinentes algumas palavras sobreo neoplatonismo, seus seguidores e suas relaes com amagia. Ilustrados, preocupados com o pensamento original(mas longe do vulgar), animados de imenso entusiasmo,

    em sua maioria os neoplatnicos estavam

    [...] sempre prontos a pensar de maneira exuberante,buscando antes de mais nada se caracterizarem por umaetiqueta espiritual particular, por um saber absconso;eram mais estranhos do que perigosos, s vezes atum pouco ridculos, numa espcie de pedantismoextravagante e antigo. Como houve mais tardepreciosos e preciosas literatos, eles foram preciososlsofos avant la lettre.108910

    A busca essencial de alguns (entre eles Ficin,Mirndola, Paracelso) consistia em tentar reencontraro fundo misterioso da natureza humana, apreender osobjetivos e os ns de tudo o que estivesse vivo, pararestituir ao universo sua verdade primitiva e rica, inserindoo homem em uma escala de seres assim ordenada: noalto os espritos angelicais; no centro as almas racionais;embaixo, a matria, colocada em forma ou totalmenteinformal.

    Acreditando-se superiores aos feiticeiros, os lsofos

    do Renascimento apostavam no homem, em seus imensospoderes, encontrados nos objetos terrestres, dos quaisse apropriavam atravs da alta magia. Propunham umamagia sbia, que abria a porta a todos os campos do saber,s causas secundrias, s entidades intermedirias, Natureza, seus diversos nveis de realidade, suas relaescom o mundo divino e angelical, aspectos abandonadospela Igreja, inuenciada pela escolstica (sobretudo oaristotelismo). Ao acentuar os traos esotricos11 daobra de Plato, os neoplatnicos apaixonaram-se pelosdemnios, espritos intermedirios entre Deus e oshomens. Para eles o universo estava constantemente sob

    inuncia, irrigado por radiaes universais, bencas oumalcas, produzidas pelo sol, estrelas, deuses, seres eelementos terrestres.

    8 BECHTEL, 1997 e 2000.9 Conjunto de doutrinas teolgico-loscas dominantes na Idade Mdia

    dos sculos IX ao XVII, notadamente caracterizadas pelas questes darelao entre a f e a razo. Estes ensinamentos, em escolas loscasda Antiguidade grega eram reservados aos discpulos completamenteinstrudos. Desenvolveram-se na escolstica inmeros sistemas que sedenem, do ponto de vista estritamente losco, pela posio adotadaquanto ao problema dos universais, dos quais se destacam os sistemas deSanto Anselmo (anselmiano), de So Toms (tomismo) e de Guilhermede Ockham (okhamismo). Novo Aurlio, p. 797.

    10 BECHTEL, 1997, p. 209.

    11 Doutrina ou atitude de esprito, que preconiza o ensinamento da verdade(cientca, losca ou religiosa). Como a escolstica, o esoterismo reservado a um nmero restrito de iniciados, escolhidos pela sua inteli-gncia ou pelo valor moral. Com inuncias religiosas orientais e dascincias ocultas, associadas a tcnicas teraputicas, o esoterismo mobilizasupostamente energias no-integrantes da cincia, que visam iniciar os in-divduos no caminho do autoconhecimento, da paz espiritual, da sabedoria,da sade e da imortalidade.RIFFARD, 1997, p. 153-158. Embora a palavraesoterismo (de eso-thodos, mtodo ou caminho em direo do interior)tenha tardado a surgir na Europa (m do sculo XIX), a noo deesoterismo conheceu fortuna crtica singular por ter retomado da ricae complexa herana da Antiguidade e da Idade Mdia, o que era chamadodephilosophia occulta ephilosophia perennis. Os trabalhos de AntoineFaivre, historiador da cole Pratique des Hautes tudes, de Paris, con-triburam para o conhecimento desse pensamento multiforme, uma dasexpresses caractersticas do imaginrio ocidental na aurora dos temposmodernos. O interiorismo do esoterismo passa por uma gnose, para atingiruma forma de iluminao e de salvao individuais. FAIVRE, 1996, t. 1-2.

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    Os discpulos aristocrticos de Plato viam a ne-cessidade de elevarem-se a um estado segundo, umestado de entusiasmo12 no sentido etimolgico, alcanadograas a esses demnios semidivinos. Invocando taisintermedirios seria possvel comunicar-se com as grandesverdades do mundo, captar as foras por votos, frmulase encantamentos. Assim, o homem instrudo poderia ter

    xito em tudo o que pretendiam as supostas feiticeiras:transportar objetos, fazer pessoas e animais adoecerem,enfeitiar, decidir sobre a seca e as chuvas. Mesmopropondo objetivos nobres, o neoplatonismo no era toinocente nem to catlico quanto pretendia ser. Ao estudaras foras obscuras, esses brilhantes espritos queriam umantdoto a Aristteles, para eles excessivamente clssicoe racional. Estavam cansados de sua lgica muito lgica,almejavam um sopro de ar fresco que arejasse a atmosferaconnada do pensamento cristo na aurora dos temposmodernos.

    Para encontrar a unidade original do universono bastaria simplic-lo com algumas concepesinadequadas; ao contrrio, seria necessrio conceber amultiplicidade do todo, complexicar. O mundo falava;os astros, por sua vez, viviam e falavam, deixando escaparmensagens carregadas de sentido. Simpatias ou antipatiasligavam as coisas entre si, estas aos elementos, estes aosplanetas e, nalmente, tudo a tudo. O remdio estavaprximo da dor, as solues dos problemas. Nesse sistemade unio entre o cu e a terra, a astrologia apresentava-secomo necessidade, parte da losoa, seu corao e suametafsica. Sem ela nada seria compreendido.

    Princpios e valores populares eeruditos

    [...] resumindo a sua essncia, toda a magia consisteapenas em esperar, a seguir atribuir-se o que vem...;e sempre vem alguma coisa...

    Guy BecHTel

    Foi nessa poca que a crena ativa no sobrenaturale a prtica de receitas mgicas apresentaram-se de forma

    generalizada entre o povo. Paradoxalmente, mesmo asreceitas com carter oral e destinadas a analfabetoscirculavam atravs de livros ou coletneas, que produziamefeitos ora positivos, ora negativos na vida cotidiana.Insubstituveis fontes de informao, esses livros emborano tenham sido escritos por magos ou feiticeiros, o forampor testemunhas de sua ao, sendo mais ecazes e teisque as divagaes dos meios ilustrados, na medida emque representavam as esperanas mgicas da populaoe do seu tempo.13

    O que dizer, ou o que se sabe dessa magia/feitiariapopular? O prprio termo duplo j denota embarao.

    magia quando acredita na existncia de um mundo

    estruturado, onde os espritos poderiam agir. Pouco terica,conserva fragmentos do conhecimento divino. Nem brancanem negra, tambm no feitiaria no sentido diablicoe habitual, uma vez que o Diabo nela pouco aparece.Pretende apenas o bem, mas est claro, pelo contedodas receitas propostas, que est apta a fazer o mal. O quese ensina nos meios populares fundamenta-se na relao

    dos dois mundos: o microcosmo do corpo humano e omacrocosmo do universo, supostos reagirem um ao outro.Mas, como nenhum fundamento terico expresso, asreceitas apiam-se em dois princpios de base simplistaconforme a verso popular: o princpio da imitao e oprincpio do contgio.1213

    O princpio da imitao ou de semelhana supeque todo semelhante atrai seu semelhante, o quesignica uma ao por vias ditas homeopticas. Estesistema teraputico consiste em tratar os doentes com aajuda de agentes que dispem de afeco anloga quela

    que se quer combater. Na medicina, celebram-se osmedicamentos que se assemelhamao rgo a ser tratado,quer pela cor, quer pela forma, e as plantas que contm oque os cientistas magos chamavam de assinatura. Assim,so curadas as doenas dos testculos (ou aumentada a dordesses rgos) por meio de qualquer planta com bulbo(que tenha forma aproximada). Para fazer uma pessoasofrer do corao feita uma boneca to parecida a elaquanto possvel; espeta-se a gura na regio do corao.O princpio de semelhana possui sua variante inversa,que o princpio do contraste (do calor nasce o frio; doseco, o mido).

    O princpio do contato ou do contgio arma que,ao se tocarem, as foras passam de uma situao a outra(para atingir algum, seria preciso toc-lo/a ou, pelomenos, tocar algo de sua provenincia). Dessa forma, comrelao boneca destinada aos encantamentos, para que

    12 Do grego enthousiasms, xtase. Na Antiguidade, exaltao daquelesque estavam sob inspirao divina, as sibilas, entre outros.Novo Aurlio,p. 774.

    13 Os Canards, fascculos populares abundantemente difundidos, anun-ciavam a apario de cometas, contavam sobre acontecimentos, semprerelacionando a realidade terrestre inslita e fenmenos astronmicos.Fonte para conhecer a magia-feitiaria, alm dessas publicaes popu-

    lares, assinala-se, na baixa Idade Mdia, o sermo de Santo Eli (porvolta de 650), oIndiculus superstitionum no sculo VIII. Os escritos deGautier Map, Guillaume dAuvergne ou Bernard Gui (sculos XII-XIV)pretendiam relatar as supersties dos pagos ou dos herticos, pormsem recomend-los. Foi oMalleus malecarum (redigido em 1484), emsua perfdia e infmia, a obra que relacionou os malefcios atribudos sfeiticeiras que mais as detratou. Os grandes manuais de receitas aparecemsomente nos sculos XVII e XVIII.Les clavicules de Salomon, La poulenoire eas verses apcrifas do Grand Albert, entre outros, formam umconjunto importante na livraria de colportage. Sobre a eterna magia, queexplode nas livrarias na poca do triunfo da razo, sua raiz encontra-seem seis coletneas de receitas cuja redao se situa entre os sculos XIIIe XVI, embora com fortuna crtica tardia. So eles: o Picatrix, o LivredHonorius,Lvangile des quenouilles, obra mgica atribuda a Albertle Grand, osPropos rustiques, de Nol du Fail e, enm, a Philosophieocculte, de Henri-Corneille Agrippa, publicado em 1531, a mais completacoletnea de prticas de feitiaria sem diabolismo. BECHTEL, 1997,p. 233-241.

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    ela represente exatamente a pessoa desejada, a semelhanano basta; preciso ainda t-la personalizado peloacrscimo de algum elemento que pertena vtimadesignada: um pedao de unha, cabelo, plo ou umpedao de suas roupas. Esses princpios so revelados porautores que colocam lado a lado efeitos positivos (curar,apaixonar-se), efeitos negativos (fazer adoecer, impedir o

    amor) e efeitos de premonio. Nestes casos, uma mulhergrvida que come a cabea de uma lebre pode dar luz umacriana com cabea de coelho. Presentear com uma facacorta o amor. O gato prenuncia a chuva quando passaa pata atrs da orelha. Todas, crendices populares, entretantas ouvidas ontem e hoje... A histria da medicina estrepleta de casos semelhantes. Durante o ltimo milnioacreditou-se que purgantes ou lavagens intestinais(o clister) tinham o poder de limpar o organismo,livrando-o de suas impurezas. Frequentemente, porm, opaciente piorava, debilitado pela diarria que lhe sugava

    lquido e sais minerais. Por que ento as pessoas tinhamtanta f na purga? A preciso lembrar o signicadosimblico da evacuao. Purgar redimir-se: a almapurga-se na penitncia. Ao folclore brasileiro no faltamprocedimentos mgicos. No interior do Cear a doenamental tratada dando-se ao paciente um pombo cozidoem uma panela de barro no-usada. Em muitos lugarescura-se a embriaguez dando ao brio caldo de coruja.Cncer: ch de couro de jacar ou suco de caranguejopilado. Criana que no consegue urinar? Ch de asas degrilo. Paralisia? Aplicaes de caldo de carne nas pernas.Na Paraba, afeces dos olhos so supostamente curadas

    com colrio feito de ossos de camaleo. Diz-se que oestrume de coelho resolve qualquer conjuntivite.14

    Ao discorrer sobre o valor das cincias antigas nodomnio da magia, quando o subjetivismo reinava, parecetil distinguir o valor em si (valor terico) do valorressentido (valor emprico), o primeiro correspondendoao valor contestvel de um conhecimento, desenvolvidopelo pensamento cientco e estabelecido por umtrabalho racional (a mecnica de Galileu ou a diptricade Descartes). O valor ressentido corresponde ao valoremprico, ligado ao emprego de prticas mgicas, to

    real quanto o valor em si, compartilhado por populaesinteiras, sincrnico, no-reconhecido hoje, na diacronia.Designa o valor pragmtico, de uso experimentado pelaspessoas ou por um crculo prximo, em oposio ao valorcientco. Essa diferenciao estabelecida e aplicada scincias secretas permite ver que a magia ou a feitiariapossuem uma boa dose de valor ressentido, com fraco ounulo valor terico, demonstrado cienticamente.

    No que diz respeito astrologia, seu valor em si foiquase nulo, insustentvel do ponto de vista diacrnico.No so muitos os que acreditam que o destino de uma

    14 SCLIAR, Mito ou verdade?, 2000.

    pessoa e o de todas aquelas que nascem na mesma hora,sob um mesmo meridiano pode ser determinado pelalongnqua posio dos planetas no cu. Ao fazer o processocientco da medicina astrolgica, das diversas formasde adivinhao e das invocaes celestes ou diablicas,os defensores do valor em si nas cincias secretas doRenascimento combateram a favor do assunto, mas seus

    argumentos no eram consistentes. provvel que oastrlogo tenha sido til e tenha possibilitado progressosem sua rea, mas seu conhecimento dos astros circulounaquela poca em outro sentido, muito mais pilhandodo que reforando os conhecimentos astronmicos.

    No que concerne alquimia, que se ocupava prin-cipalmente da transmutao das almas, no est cien-ticamente comprovado se contribuiu efetivamente parao progresso da sabedoria. Acredita-se que seus adeptostenham utilizado alguns medicamentos qumicos naprocura do elixir da longa vida, da pedra losofal ou

    de novas molculas. Embora o terreno da alquimia sejamais slido do que o da astrologia, e tenha interessadopersonalidades (Leibniz e Newton, que, certamente porprudncia, nada publicaram sobre o assunto), os progressosconseguidos tm pouco peso e seu valor em si ou terico discutvel. Alm disso, a prosso de alquimista estavaminada por grande nmero de impostores (Gilles deRais e aclitos), denunciados na poca, o que induz concluso de que astrologia e alquimia pouco ajudaramno desenvolvimento das cincias positivas.

    Entre medicina acadmica (regular e verdadeira) emedicina mgica (irregular), a diferena era mnima na

    poca. Ambas misturavam produtos inativos, venenose bons votos, o que no impediu os mdicos, semmedicamentos com validadehoje, de aliviar milhares dedoentes. Poderiam ser chamados de charlates? Por queseria diferente para os magos e sua medicina astrolgica ealqumica to semelhante? No h dvida de que a orao,assim como o p de pirlimpimpim, foram responsveispor curas excelentes e produziram inmeros efeitosbencos.

    Mesmo sem relao de causa e efeito, muitosencontraram suas chaves e sadas graas a Santo Ant-

    nio; outros tantos devem a inumerveis santos a conquistade milagres (seus lhos de volta da guerra ou curadosde doenas consideradas incurveis). Milhes de pessoasmorreram mais felizes, aliviadas dos seus pecados de-pois de terem confessado e terem sido absolvidas, o quelhes trouxe enorme liberdade no momento fatal. Apenasimaginao ou iluso? A dvida permanece: comodiferenciar a crena daquilo que pode ser a indicaopromissora de um novo tratamento? S h uma manei-ra de entender o que realmente est acontecendo. Essacompreenso est relacionada ao farmacolgicaou outra, mas sem dvida tambm dimenso sim-

    blica.

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    Considerando-se as benfeitorias s Igrejas na pers-pectiva do valor ressentido, no ser preciso distingui-lasentre imaginrias ou reais para determinar sua validade.Pode-se assegurar que, subjetivamente, o valor ressentidodos aportes mgicos ou religiosos antigos indiscutvel,atestado pelo bom senso. Se esses aportes no tivessem fun-cionado, ajudado, curado, aliviado, certamente no teria

    havido is durante sculos, tampouco existiriam os gabi-netes dos astrlogos, dos curandeiros e dos invocadores.

    Deste somatrio de teorizaes, no h dvidade que a magia sempre buscou aliviar indivduos ecoletividades das suas frustraes e anseios, para, atravsdo conhecimento dos segredos e das prticas ocultas,satisfaz-los, tentando ir alm da realidade que os aigee compromete suas aspiraes na busca de solues parao caos existente. A estrutura arboriforme das prticasmgicas e as nuanas na terminologia e nas designaesrevelam o quanto as ligaes no universo so mltiplas,

    sutis e relacionadas, como j dizia no sculo XIII Jeande Meung,15 para quem o homem compartilha sua exis-tncia com as pedras, a vida com a vida das plantas, asensibilidade com os animais, a inteligncia com os anjos.Magos, mgicos, bruxos e feiticeiros, homens e mulheres,encontram no universo vasto terreno para agir, destruir osequilbrios duvidosos ou restabelec-los.

    As feiticeiras sabiam muito a respeito do uso de certasplantas, da posio dos astros (princpios populares) e, aomesmo tempo, serviam-se de conhecimentos mdicos reais,quase cientcos (saber erudito). Em romntica evocao, possvel vericar os pequenos progressos paralelos que

    elas trouxeram, mesmo sob suspeita, para as pesquisasrealizadas em tempos obscuros. Michelet descreve suafeiticeira ora revoltada e envenenadora, ora aventureirana busca de ervas medicinais, clandestina na madrugada,quando menos temia ser descoberta. No entanto, a crenaque se espalhou a de que todos os achados foram obtidospelos doutores, os semi-escolsticos,reconhecidos pelassuas roupas, seus dogmas e pela rigidez de seus hbitos.Mas nada encontraram aquelas mulheres ousadas, quecaminhavam livres e soltas nas orestas?

    As feiticeiras e seu mundoRainhas, magas da Prsia, esplendorosa Circe! sublimeSibila! o que vos ocorreu? que brbara transformao!...

    Aquela que do trono do Oriente ensinou as virtudes dasplantas e a viagem das estrelas, a que no pedestal deDelfos, radiosa do deus da luz, entregou, de joelhos,seus orculos ao mundo mil anos depois, ela quecaam como um animal selvagem, que perseguemnas encruzilhadas, maldita, maltratada, apedrejada,assentada sobre brasas ardentes!...

    MicHeleT

    Delimitada a signicao da magia lato sensu,

    parte-se na busca do entendimento da feitiaria para se

    chegar feiticeira, termo muitas vezes justaposto magia,sem qualquer distino. Mais genrico, embora algunsautores o alternem com bruxaria (bruxa), conformeexplicitado anteriormente, a mesma antiga confuso notratamento da magia se dpara a feitiaria, que pode serboa ou condenvel conforme os que dela fazem uso ede acordo com seus objetivos. Empregada com propsito

    criminoso, quando utilizada para curar torna-se quaseinocente.161516

    As perseguies por feitiaria remontam ao passado,desde as primeiras civilizaes mediterrneas, quando asfeiticeiras j existiam; dizia-se at mesmo que voavam noite, como pssaros de caa,17 embora por muitotempo tivessem permanecido suaves e contidas. Nomundo greco-romano a feitiaria ainda no apresentava ocarter diablico; faltava-lhe ainda algo capital, o Diabopropriamente dito. Mas ele j oferecia todos os atributoscaractersticos dos enfeitiadores, possua seus livros,

    receitas e instrumentos. A pequena feiticeira dos bairrosromanos, mesmo sendo apenas pragmtica, j manipulavaos engrimanos (grimoires), com imagens e receitas,procurados simplesmente pelo gosto em colecion-los oudestru-los.

    As feiticeiras disseminaram-se nos sculos XIIIe XIV. Os processos so escandalosos, dominados porcomponentes polticos, embora o perl do Diabo aindano estivesse bem concludo, faltando alguns toques,razo pela qual a feitiaria permaneceu rara e brandaat ento. A lenta transformao dessa gura primeira,desde sua origem at o momento em que alguns letrados

    europeus tiveram a ideia de torn-la correspondente dodemnio, pode ser vista numa perspectiva ampla, queabraa a histria do Ocidente e alcana o sculo XVIII,poca de seu desaparecimento.

    A rigor, dois perodos da histria da feitiaria sesucedem: o de uma retomada da feitiaria do primeirotipo, entre os sculos XI e XIII, quando a magia ocidentaldescobre o grande livro de receitas, o Oriente, que, aospoucos, abre-se para o Ocidente. quando se expandemos textos gregos traduzidos entre outros, as Cyranides(1168), os livros atribudos a Hermes, os inumerveis

    15 Autor da segunda parte doRoman de la Rose, redigida por volta de 1236.A primeira parte atribuda a Guillaume de Lorris.

    16 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, ao contrapor as prticas mgicasv diculdade em diferenci-las pelas sutis nuanas que apresentam.1991, p. 32-36. A leitura dos caps. 4 e 5 de sua tese de doutoramento,apresentada USP (Universo mgico e realidade, 1980) pode aprofundaro assunto. Lus da Cmara Cascudo considera feitiaria o nome genricode todas as prticas mgicas populares e tradicionais, com ou semcerimnias religiosas, como o candombl na Bahia ou a macumba noRio de Janeiro. Para ele as inuncias so numerosas e amalgamadas emsculos de uso e conana. Da bruxaria europia, poderosa na IdadeMdia, dizendo-se possuidora de segredos egpcios e das sibilas romanas,procedem incontveis processos teraputicos e mgicos, especialmenteamorosos, ltros, benzeduras, oraes, ensalmos, com a convergnciado cristianismo. CASCUDO, 1986, p. 324.

    17 BECHTEL, 1997, p. 11.

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    Secrets, dos quais se acredita ter sido Aristteles oautor e as primeiras Clavculas de Salomo, manualde comunicao com os espritos. No segundo perodoexplode o reino do inferno. o perodo da feitiariasatnica, ou do segundo tipo, desenvolvido principalmenteentre os sculos XIII e XIV. Nesse momento Lcifer torna-se prncipe e as heresias maniquestas espalham uma viso

    do mundo que coloca em confronto os princpios do beme do mal.

    Na retomada da histria da feitiaria pertinente re/lembrar que: a) magia, bruxaria, feitiaria, superstiesem geral e religio misturaram-se sem trgua durante aIdade Mdia, o Renascimento, at o sculo XVII; b) nahistria das fogueiras, em que foram queimadas tantasmulheres, no h distino clara entre os vrios tipos defeitiaria, mas ambiguidades e grande confuso semntica;c) muitas vezes misturados, imbricados, superpondo-se,apoiando-se e combatendo-se, paganismo, cristianismo,

    magia, bruxaria, feitiaria e religio estiveram presentesem todos os tempos.

    A sociologia da feiticeira, instrumentodo mal

    A mulher um verdadeiro Diabo, uma inimiga da paz,uma fonte de impacincia de quem o homem deve car

    afastado.

    peTrarca

    As denies sobre as especicidades fsicas, psi-

    colgicas, culturais ou sociolgicas apresentadas pelasfeiticeiras so diferentes e polmicas. Muitos, entre elesa controversa antroploga inglesa Margaret Murray,consideram-nas pertencentes a uma religio particular, umaraa diferente, pequeninas, cabelos loiros, injustamenteperseguidas. Outros, entre eles Robert Muchembled,acentuam as caractersticas normais: guras banais, bemintegradas, no marginais, despercebidas no dia-a-dia dosque as rejeitariam conhecendo-as melhor.

    Fala-se de caa s bruxas ou feiticeiras, masno de caa aos bruxos. Voltaire j havia registrado a

    desproporo, a histria, o nome e o destino lamentvelde grandes guras de feiticeiras Circe, Hcate, Media,Joana dArc, La Voisin, Tituba, Corriveau desde aAntiguidade at hoje. Todas eram mulheres, francamaioria entre as vtimas da caa. Para um feiticeiro,nove feiticeiras,18 triste privilgio, que se explica pormuitas razes.19A primeira, de ordem biolgica, determinaque a mulher, mais sensvel a diversas inuncias, maisinfeliz do que o homem, nos lares camponeses dos sculospassados sofreu maiores inquietaes, penas, dramas etumultuada sexualidade.

    Sacerdotisa de uma religio pag desaparecida,

    vidente para alguns, sedutora, logo criminosa, na realidade

    a feiticeira foi vtima das supersties religiosas, dosdios sociais e de desesperadas revoltas. O feiticeiro eraapenas seu companheiro, que ela muitas vezes denunciavaaos juzes e carrascos. Mesmo inocentes com relao sacusaes desencadeadas est comprovado pelas cifrasque as mulheres predominam. Jovens ou idosas, vivendonas cidades ou no interior, exercendo ou no atividades

    fora do lar, seu perl mdio talvez contribua para entenderas razes para as acusaes. A inexistncia de ao menosum feiticeiro clebre conduz inevitavelmente pergunta:por que foram elas as mais atingidas?20181920

    Est claro que a tradio e a Igreja desempenharampapel importante na questo. Ao considerar a mulherinferior, lasciva, fraca, mentirosa, ligada s categorias dofrio e do mido, naturalmente ela teria maior anidade como demnio e melhor orientao para a feitiaria. Se assim aIgreja acreditou, assim acreditaram povos e letrados, e atmesmo Michelet, a despeito de ser um dos seus primeiros

    defensores. Ao examinar os preconceitos contra a mulher,o historiador a entende mais frgil e infeliz, podada peloshomens e pela sociedade, logo responsvel pela procura demeios subterrneos para ajustar suas contas.

    Ao pensar na importncia da feitiaria sexual, queemprega muitas vezes em seus ingredientes menstruaesou placenta, ca mais fcil compreender o papel damulher, que as tradies judaicas dizem impura, e aIgreja, pensando em Eva, considera agente de Satans.Por ser mais sensvel e triste, a ele se entregar com maiorfacilidade; as perturbaes biolgicas a faro delirante,pronta a todas as extravagncias da imaginao; a tortura

    atingir seu corpo bem mais rpido. Somente o fogo ou aforca viro enm liber-la das penas sofridas.

    O desenvolvimento de um mental coletivo tambmfornece resposta presena avassaladora do sexo femininono universo mgico. O medo mulher tem longa tradio,

    18 ALBISTUR e ARMOGATHE, 1977, p. 30.19 No sculo XVII, la Voisinpossua um nmero muito maior de clientes

    que seus colegas feiticeiros ou os padres detentores dos segredos,habituados s consses. No h registro de nenhuma gura notvel defeiticeiro na histria da feitiaria, apenas grandes feiticeiras. A Clestine(1499), do espanhol Fernando de Rojas, traduzida em vrias lnguas,atesta que,por volta de 1500, havia feiticeiras como as de Atenas, queexerciam comrcio de ltros em pequenas ocinas, boticas freqentadas

    por prostitutas. Mais tarde, a magia da Corte, que atraa ricos astrlogose magos assalariados no sculo XVI, funciona mais ou menos da mesmaforma. Os poderosos tambm gostavam de estar cercados por mulheresque supostamente detinham poderes sobrenaturais.

    20Cabe relativizar essa armativa por no ser to evidente em todas asculturas. Se a feitiaria africana for considerada ou a feitiaria rural queexiste at hoje em alguns pases, conforme relata Jeanne Favret-Saada,emLes mots, la mort, les sorts, a tarefa essencial de um feiticeiro ade ser sucientemente forte para impor seus sortilgios ou, na versodefensiva, para fazer retornar os feitios aos inimigos. Esta tarefa erarealizada predominantemente por homens, bem ao contrrio do quese viu nos sculos XVI e XVII, quando os feiticeiros homens foramdenidos como fracos. Os nmeros pelas suas propores so eloqentes:as mulheres tornaram-se vtimas majoritrias de imputao por feitiaria,representando 4/5 dos acusados, em alguns momentos e lugares atingindoa porcentagem de at 95% dos sacricados. Esse dado consequncia daabrangente difuso doportrait-robot, esteretipo da feiticeira malca.FAVRET-SAADA, 1977.

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    remonta aos hebraicos e Antiguidade clssica. Paraos gregos, foi Pandora, o presente enviado por Zeus aEpimeteu, a responsvel pela introduo de todos osmales do mundo.21 A tradio crist incorporou mais tardeas tradies do judasmo e da civilizao greco-romana,intensicando-as, sobretudo com relao s suspeitas eaos preconceitos frente s relaes sexuais. Os primeiros

    padres da Igreja relacionavam a mulher ao porto poronde entrava Satans, Janua diaboli, epteto patrsticopara designar a herdeira de Eva. Para a Soma Teolgica,quando fala dofenmeno das geraes, o homem quemdesempenha um papel positivo; sua parceira apenasreceptculo. No existe verdadeiramente mais que umsexo, o masculino. De acordo com a Soma, a fmea ummacho deciente. Assim, no surpreendente que estedbil ser, marcado pela imbecillitas de sua natureza cedas tentaes do tentador, devendo car sob tutela.

    Ciente de que uma mulher quando pensa sozinha

    pensa o mal, So Toms de Aquino sistematiza e confereindiscutvel autoridade idia de imperfeio do feminino.Mais tarde, no Canon Episcopi (sculo IX), as relaesentre a fraqueza feminina e sua ligao com o sobrenaturalso reforadas. Mas ser o Malleus malecarum quedeixar a herana do maior antifeminismo. Seus autores,implacveis detratores da mulher, evocam outro santo,So Bernardo, para desgur-la ainda mais: seu rosto como vento custico e a sua voz como o silvo dasserpentes: lanam conjuros perversos sobre um nmeroincontvel de homens e de animais. Mais ainda, toda afeitiaria tem origem na cobia carnal, insacivel nas

    mulheres,22 deformadas desde sua formao (oriunda deuma costela curva do homem). Essa imagem sobsuspicioatravessou os sculos e inuenciou certamente os juzesdo Renascimento, que a julgaram impiedosamente.

    Pelo seu papel no seio da famlia, controle daalimentao, cuidados para com as crianas e doentes,teoricamente a mulher poderia fazer o mal, envenenarcom maior facilidadedo que aqueles que trabalhavamfora.23 Entretanto, para alguns autores, a prtica dafeitiaria incompatvel com os deveres da vida familiar.A atividade no se restringe apenas a um conhecimento

    tcnico; a total disponibilidade que a feitiaria requer modo de vida asctico, exigncia de rituais no meio danoite ou na aurora, permanente ameaa de doena graveou morte casa mal com as obrigaes de me, do que poupado o grande nmero de feiticeiras solteiras, vivasou sem lhos.

    Quanto idade, no se comprova nenhuma regularidadeentre as feiticeiras condenadas. Se a jovem fazia parte doimaginrio anal era preciso que a condente do demniofosse dotada de um mnimo de seduo para que pudesseperverter os homens essa beleza, mesmo que comprovadaem algumas gravuras,24 contradiz a representao clssica,

    que perdura at hoje e que a identica ao portrait-robot

    no perodo da grande caa: uma vtima idosa e horrorosa,armativa na maioria das vezes reforada pelas estatsticase exemplos.25 De fato, as mulheres mais velhas eramas mais culpabilizadas, mais perigosas, maior alvo dodio coletivo, provavelmente pela correspondncia aoesteretipo dominante. Os esteretipos antifemininosforam severos at o sculo XVII. A mulher metia

    medo. Sua siologia era mal conhecida dos mdicos; ostelogos a julgavam um ser inconstante, que precisava sercontrolado. Sob a tutela do pai, e a seguir do marido, doponto de vista jurdico ela s veio adquirir uma relativaautonomia com a viuvez. Se as amigas do Diabo deveriamser feias e idosas (mas habilidosas nos jogos do amor, logomais aptas a enfeitiar os homens...), em contrapartida,por serem mais maduras, j meio murchas, suas chancesde abandono eram maiores.2122232425

    Do ponto de vista psicolgico, intelectual e mdicoa sorte das mulheres no foi melhor. Apresentadas como

    imbecis, eram aconselhadas a contratar um advogado, jque no tinham a menor capacidade para a prpria defesa.Para Montaigne,26 essas infelizes eram vtimas de ilusesde demnios porque sua mente to obscura as impediade perceberem suas rusgas. De Lancre27 estava certo deque Sat recrutava principalmente os espritos estpidos,pendendo para o rstico, sobretudo as dbeis mentais.J no que tange compreenso das coisas espirituais,as mulheres pareciam ser de uma natureza diferenteda masculina. Nessa premissa estendem-se Kramer eSprenger, em uma srie de citaes das Escrituras e deautoria das autoridades crists, com o intuito de provar

    que as mulheres, em intelecto, eram iguais s crianas,incapazes de compreender losoa.

    Essa ideia prevalece por sculos. O que se rela-cionava com a magia ou a feitiaria foi visto como delriode pessoas retardadas. Nesta linha de pensamento, as

    21 Epimeteu esquece o conselho de jamais receber um presente de Zeus,se desejasse livrar os homens de uma desgraa. A raa humana viviatranquila, ao abrigo do mal, da fadiga e das doenas. Quando Pandora, porcuriosidade feminina, abriu o jarro de larga tampa, que trouxera do Olimpocomo presente de npcias a Epimeteu, dela saram todas as calamidadesque at hoje atormentam os homens. Cf. BRANDO, 1996, p. 234-235.

    22 KRAMER e SPRENGER, 1997, p. 121.23

    ARIS, 1981.24Alude-se aqui bela feiticeira representada por Platzi (La sorcire), nacobertura da obra de Michelet. Trata-se de pintura da arte amenga do sculoXV, que a retrata preparando um ltro. Entre as feias, mais numerosas,encontram-se as feiticeiras de Goya, Bosch e Fssli;La mchante femme,de I. Van Meckenem,Les Sorcires,de Hans Baldung Grien, nos sculosXV e XVI; Les Sorcires, de Leonor Fini, e A bruxa de AlbrechtDrer, entre tantas outras. A presena da feiticeira nas artes em geral altamente esclarecedora da representao de um estado mental coletivo.

    25 BECHTEL, 1997, p. 579.26LesEssais, captulo XI.27 O demonlogo e jurista Pierre de Lancre (1553-1631), autor de Trait

    de linconstance des mauvais anges et dmons (1612), contrastava porsua elegncia sdica (era considerado no, distinto, tocava auta edanava, alm de ser helenista, mundano, delicado e marido da sobrinhade Montaigne), com a brutalidade e o racismo que provou em suasnarrativas demonolgicas, que o levaram a ser chamado de carrasco dopas basco. BECHTEL, 1997, p. 312, 331 e 334.

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    imagens do sab correspondem a crises alucinatriascausadas por enfermidades mentais.28 impossvelnegar que, em todas as pocas, a Igreja condenou ainferioridade, a sensualidade, as pretenses espirituaisabusivas e o lado diablico inato do segundo sexo. Aosseus olhos, se quisesse resgatar seu pecado original,a mulher honesta deveria ser invisvel e modesta na

    sociedade, pronta ao sacrifcio, indiferente aos atrativosda moda e intelectualmente insignicante.

    Mesmo sem serem mais diferentes do que asoutras, do ponto de vista fsico as culpadas por feitiariaapresentavam sempre alguma anomalia, alm da feira nemsempre evidenciada. To logo as manchas demarcadorase as excrescncias fossem assinaladas, conrmavam-se assuspeitas dos juzes. Margaret Murray, alm de sustentarque as feiticeiras no incio dos tempos modernos erammulheres agrupadas em sociedades secretas, que adoravamos deuses da fertilidade, como ocorrera na Antiguidade,

    assegura que as marcas diablicas eram tatuagens ousignos de iniciao, servindo ao reconhecimento dasliadas da seita.29

    O sistema de marcao, notadamente vestimentria j utilizado nos judeus e leprosos, aplicado aos soldadosromanos, escravos e em alguns delinqentes , entreas feiticeiras, signica submisso completa, fsica eespiritual ao Diabo, seu mestre. Segundo De Lancre,ele impunha ostigma diaboli em sua vtima com umalnete ou as prprias unhas. J para Reginald Scott, odemonlogo ingls, autor deDiscovery of witchcraft, Satmordia a vtima. Na verdade, a forma da marca variava

    de uma verruga a uma cicatriz, algumas vezes um pontoinvisvel, mas sempre dotado de in/sensibilidade especial.Uma das trs nicas provas que garantiam a feitiaria(com o testemunho da presena no sab e a consso), amarca deveria ser procurada com prioridade pelos inquisi-dores.

    Difcil de acreditar, essa tese no explica por que asmarcas eram insensveis. Se as feiticeiras eram mulhereshistrico-epilpticas, conforme ser sustentado maistarde, no surpreendente que apresentassem pontosde sensibilidade. Nem falso, nem demonstrado, este

    pressuposto induz pergunta: o fenmeno da feitiaria que perdurou por sculos pode ser considerado umasimples doena mental? Que outras explicaes podem

    28 BECHTEL, 2000, p. 215.29 Esse sistema foi propalado nos sculos XVI e XVII pelos novos

    especialistas do demnio: Boguet, Del Rio, Binsfeld, entre outros.Reconhecida pela insensibilidade, a marca, tambm chamada depunctum diabolicum, spatula, sigillum diaboli, stigma diaboli, guraem geral do lado esquerdo do corpo, em lugares escondidos (o interiorda boca ou do sexo.Sobre ostigma ver: Pierre De Lancre, Tableau delinconstance des mauvais anges et dmons, 1982, p. 195; J. Fontaine,Des marques de sorciers et de relle possession que le diable prendsur le corps des hommes, Lyon, 1611; Franois Delpech, La marquedes sorciers: logique(s) de la stigmatisation diabolique, in JACQUES-CHAQUIN e PRAUD, 1993, p. 447-368.

    ser fornecidas? Quanto aos stigmae, certamente reais,eram sempre as mulheres mais velhas que recebiam ummaior nmero dessas marcas do Diabo... Mas qual ocorpo, sobretudo a partir de uma certa idade, que noapresenta as rugas da vida? Manchas, sardas, verrugas,calosidades, cicatrizes?

    curioso que os mesmos autores que propem a

    revolta feminina contra a misoginia medieval originriada feitiaria se utilizem de teorias pseudopsicolgicas,ou argumentos de ordem biolgica, para armar que asmulheres, supostas feiticeiras, apresentam uma tendnciafsica que as predispe mais do que os homens ao fantstico,ao sobrenatural e as transforma em seres delirantes.Essas argumentaes no estariam congurando umantifeminismo mascarado por uma pretensa defesa doelemento feminino, que, por sua fragilidade natural,no deveria ser punido, mas protegido?

    Conhecedora desde a Antiguidade de segredos m-

    gicos, a mulher converte-se em artes demonaca, j queo mundo que a circunda no admite outra magia que noa malca. Os laboratrios de feitiaria representam,no imaginrio coletivo, arsenais de amor e lubricidade,repletos de importantes substncias e de simbolismossexuais destinados a satisfazer os desejos e os apetiteserticos reprimidos e proibidos. A feiticeira (ou a bruxa)representa a intermediria entre a amarga realidade e omundo do prazer, fornecendo coletividade os meiosmgicos passaporte de ingresso que muitas vezes noentanto, ela forada a temer e a rejeitar.

    Mais do que isso, a gura da feiticeira (ou bruxa)

    passa, no raras vezes, a ser protagonista de narrativas,tanto no campo da histria, quanto da literatura, quevo referendar, num primeiro momento, os esteretiposconcebidos ao longo do tempo; num segundo momento,contudo, esses esteretipos so objeto de contestaoe desconstruo no mbito dos discursos histrico eccional da contemporaneidade, fato que aponta paraa presena de conuncias signicativas entre as duasmodalidades discursivas referidas.

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  • 7/22/2019 O Universo da Feitiaria - Nubia Hanciau

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    Recebido: 25.10.2009Aprovado: 10.11.2009Contato: