5
Ensaios FEE, Porto Alegre. 8(2): 131-135, 1987 O uso CAPITALISTA DO SOLO URBANO: NOTAS PARA DISCUSSÃO Naia Oliveira * Tanya M.. de Barcellos * Dentre os estudos sociológicos recentes sobre as áreas urbanas do País, encon- tramos algumas vertentes analíticas extremamente férteis que concentranl esforços na pesquisa das condições em que se dão o uso e a ocupação do solo,' enquanto ele- mentos fundamentais para alcançar níveis mais aprofundados de compreensão das desigualdades sociais que observamos nas grandes cidades. No âmbito desse enfoque, uma das questões que nos parece ser de grande re- levância, pois retrata a perversidade que pode estar presente no processo de valori- zação do capital, é a dos vazios urbanos, ou seja, as áreas ociosas existentes dentro da malha urbana em condições de serem ocupadas para moradia ou outra atividade qualquer, porém mantidas em estoque à espera de maior valorização. É nossa intenção pôr em discussão alguns pontos que consideramos importan- tes para entender de que modo ocorrem a valorização do solo urbano e a conse- qüente expulsão de grandes segmentos da população dos benefícios que a cidade oferece, questões que mantêm estreita relação com o fenômeno dos vazios urbanos. O esclarecimento do significado que tem a cidade no capitalismo parece-nos ser o primeiro passo a ser dado na tentativa de desvendar essa complexa problemá- tica que o espaço urbano nos apresenta. No estágio atual de desenvolvimento do capitalismo, o urbano aparece como o lugar onde se concentram as atividades produtivas, a infra-estrutura necessária à produção e à circulação de mercadorias e a força de trabalho, constituindo-se, por- tanto, em condição necessária para o avanço do processo de acumulação. Essa aglo- meração permite um aumento da produtividade através do desenvolvimento da co- operação em níveis ampliados, o que significa a extrapolação do processo que ocor- re dentro da fábrica e que tem como desdobramento a economia de uma série de gastos. São os chamados efeitos úteis da aglomeração ou externalidades urbanas. •Socióloga da FEE. ' São representativos dessa vertente analítica os trabalhos de: Ribeiro (1982, p.2947); Sin- ger (1982, p.21-36) e Campanário (1984, p.11-30).

O Uso capitalista do solo urbano

Embed Size (px)

DESCRIPTION

O Uso capitalista do solo urbano: notas para discussão

Citation preview

  • Ensaios FEE, Porto Alegre. 8(2): 131-135, 1987

    O uso CAPITALISTA DO SOLO URBANO: NOTAS PARA DISCUSSO

    Naia Oliveira * Tanya M.. de Barcellos *

    Dentre os estudos sociolgicos recentes sobre as reas urbanas do Pas, encon-tramos algumas vertentes analticas extremamente frteis que concentranl esforos na pesquisa das condies em que se do o uso e a ocupao do solo,' enquanto ele-mentos fundamentais para alcanar nveis mais aprofundados de compreenso das desigualdades sociais que observamos nas grandes cidades.

    No mbito desse enfoque, uma das questes que nos parece ser de grande re-levncia, pois retrata a perversidade que pode estar presente no processo de valori-zao do capital, a dos vazios urbanos, ou seja, as reas ociosas existentes dentro da malha urbana em condies de serem ocupadas para moradia ou outra atividade qualquer, porm mantidas em estoque espera de maior valorizao.

    nossa inteno pr em discusso alguns pontos que consideramos importan-tes para entender de que modo ocorrem a valorizao do solo urbano e a conse-qente expulso de grandes segmentos da populao dos benefcios que a cidade oferece, questes que mantm estreita relao com o fenmeno dos vazios urbanos.

    O esclarecimento do significado que tem a cidade no capitalismo parece-nos ser o primeiro passo a ser dado na tentativa de desvendar essa complexa problem-tica que o espao urbano nos apresenta.

    No estgio atual de desenvolvimento do capitalismo, o urbano aparece como o lugar onde se concentram as atividades produtivas, a infra-estrutura necessria produo e circulao de mercadorias e a fora de trabalho, constituindo-se, por-tanto, em condio necessria para o avano do processo de acumulao. Essa aglo-merao permite um aumento da produtividade atravs do desenvolvimento da co-operao em nveis ampliados, o que significa a extrapolao do processo que ocor-re dentro da fbrica e que tem como desdobramento a economia de uma srie de gastos. So os chamados efeitos teis da aglomerao ou externalidades urbanas.

    Sociloga da FEE. ' So representativos dessa vertente analtica os trabalhos de: Ribeiro (1982, p .2947); Sin-

    ger (1982, p.21-36) e Campanrio (1984, p.11-30).

  • ^ O conceito de segregao urbana desenvolvido por Lojkine sintetiza as formas que assume a oposio entre capital e trabalho no espao urbano: desigualdade entre o centro e a perife-ria; separao entre reas de habitao popular e reas de moradia das populaes de renda mais elevada; tendncia formao de reas especializadas dentro da cidade (zonas indus-triais, comerciais, residenciais, e t c ) . Ver Barcellos (1986, p.7 e 8).

    que caracterizam a cidade como o locus onde se toma possvel ocorrer a socializa-o das condies gerais da produo. No processo de produo de mercadorias, o capital, ento, apropria-se dos efeitos liteis da aglomerao de modo a se valorizar em melhores condies.

    Em suma, a cidade garante a reproduo do conjunto do capital, atendendo a necessidades que so gerais e que no dizem respeito exclusivamente aos capitais in-dividuais.

    No podemos esquecer, no entanto, que a cidade no somente o espao da acumulao, mas ela tambm o lugar onde se d a reproduo da fora de traba-lho, sendo, dessa forma, foco de conflito entre as demandas relativas reproduo do capital e as que dizem respeito sobrevivncia da populao trabalhadora.

    O atendimento do leque cada vez mais amplo de necessidades tanto do capi-tal como da fora de trabalho vem conferindo ao Estado um papel de crescente re-levncia na configurao do urbano.

    A atuao do Estado capitalista tende a privilegiar os interesses das diferentes fraes do capital, provendo a infra-estratura necessria ao processo de acumulao, em detrimento das demandas relativas ao suprimento dos meios responsveis pela reproduo da fora de trabalho.

    As contradies que emanam do desenvolvimento do capitalismo expressam--se no espao urbano, o qual no ser homogneo com relao implantao e dis-tribuio dos benefcios advindos das externalidades urbanas. O processo que de-semboca nessa heterogeneidade caracterizadora do fenmeno da segregao espa-cial^ tem nas formas de valorizao capitalista do solo um importante elemento ex-plicativo.

    Cabe reafirmar que a oposio fundamental que se retrata no espao urbano a que se estabelece entre capital e trabalho. No entanto as contiradies existentes entre as diversas fraes do capital e os diferentes segmentos da populao em rela-o ao uso do solo tambm interferem na configurao espacial da cidade.

    Vrios atores, representantes de diferentes interesses, esto envolvidos em for-tes conflitos que tm por palco o urbano: os proprietrios de terra e as empresas imobilirias, cujo objetivo a apropriao direta de renda; os intermedirios finan-ceiros que indiretamente visam a obter taxas de retorno para suas aplicaes dirigi-das rea de negcios imobilirios; o setor da construo civil, buscando lucros atravs dos seus empreendimentos; o capital "em geral" que tem no espao urbano as condies para produo e acumulao; e a fora de trabalho, para quem a cidade significa meio de consumo e meio de reproduo (Harvey, 1982, p.7).

  • Assim, observamos que o processo segregativo de uso e ocupao do solo re-presenta a concretizao no espao da diviso de classes que se observa na sociedade.

    Com relao aos aspectos mais especficos atinentes valorizao capitalista do solo urbano, a primeira considerao a ser feita diz respeito ao fato de que as ca-ractersticas ou qualidades de que a terra dotada e que estabelecem as condies de sua "produtividade" fazem com que a mesma no possa ser oferecida em quanti-dade ilimitada, e, mesmo no podendo ser considerada como um meio de produo, ela condio essencial ao desenvolvimento de qualquer atividade, o que lhe confe-re um papel de relevo no processo produtivo (Low-Beer, 1983, p.33-4).

    De outro lado, podemos entender, como Ribeiro (1982, p.32),

    "que a terra um bem no-produzido que, portanto, no tem valor, mas que adquire um preo. Ora, um bem no-produzido no pode ter seu preo regulado pela lei da oferta e da procura, pois no h lei regu-lando a sua oferta. a procura que suscita o preo da terra e no o en-contro no mercado de 'produtores' e compradores de solo. Mas aqui necessrio esclarecer que no a demanda final formada pelos consumi-dores orientados pelas suas preferncias e levando em considerao as utihdades das vrias pores de solo. Trata-se da demanda capitalista por solo".

    A demanda capitalista pelo uso do solo o fator fundamental no processo de definio do preo da "mercadoria" terra urbana. Os diferentes setores capitalistas que necessitam da terra para o desenvolvimento de suas atividades e que valorizam seus capitais pela utilizao e transformao do solo so os principais responsveis pela formao dos preos fundirios e tambm pela configurao scio-espacial da cidade.

    importante mencionar que, na compreenso da disputa capitalista pelo uso do solo, est imbricada a questo da propriedade.^

    A propriedade privada do solo representa um obstculo para a expanso das atividades capitalistas, pois, sendo um elemento essencial produo, nO pode ser criado pelo capital, o que se constitui numa contradio, j que ela um dos supor-tes fundamentais desse modo de produo.

    Para o capital imobilirio, esse obstculo se coloca com maior intensidade, uma vez que ele necessita de grandes quantidades de terra a cada ciclo de reproduo.

    A existncia da propriedade privada condio para a obteno de uma renda que podemos chamar de renda absoluta. No entanto a renda do solo urbano no resultante somente do direito propriedade privada, pois ela sofre um acrscimo advindo principalmente das vanta-gens locacionais com relao ao(s) centro(s) da cidade, aos servios urbanos disponveis,ao prestgio social da rea, s garantias legais sobre o uso e ocupao do solo, e t c , caracteri-zando a renda diferencial, que decorrente, na maioria das vezes, da atuao do poder pii-blico. As vantagens locacionais aparecem, ento, como elementos que permitem aos proprie-trios fundirios usufrurem de ganhos extraordinrios nas transaes com a terra.

  • Alm disso, a produo de imveis freqentemente esbarra em uma dificulda-de adicional que a presena, no meio urbano, de atividades no capitalistas, como o artesanato ou o pequeno comrcio por exemplo, cuja racionalidade se ope do capital. Para superar esse obstculo, em alguns casos, torna-se necessrio que o Esta-do atue atravs da promoo de projetos de "renovao urbana" (Ribeiro, 1982,p.36).

    O aparecimento da incorporao como um agente fundamental na disputa pe-lo espao urbano significa um avano do capitalismo no sentido da superao desse obstculo. Com ela, presenciamos a formao de um capital de circulao, o que permite ao incorporador intervir no mercado de terras, definindo, com preponde-rncia, as condies em que se daro o uso e a ocupao do solo.

    No obstante, o sistema de incorporao convive com outros agentes que lu-tam por espaos em busca de maior lucratividade para os seus empreendimentos, o que confere um carter de heterogeneidade lgica que preside a ocupao da cidade.

    no interior desse jogo que nos deparamos com o fenmeno dos vazios urba-nos, os quais se constituem, portanto, em uma das marcas que o capital imprime na cidade como decorrncia do seu movimento de expanso.

    Se, por um lado, a estocagem de terras representa um meio de valorizao do capital, por outro, para a fora de trabalho, ela significa um obstculo na realizao das suas necessidades de sobrevivncia.

    Os vazios urbanos so demonstrativos do carter perverso que a cidade assume no capitalismo: sendo reas que podem ser prioritariamente utilizadas para moradia, possuem um valor em grande parte resultante do trabalho social, que as torna, po-rm, inacessveis para uma parcela significativa da populao.

    Observamos, ento, que o nus social advindo da presena de reas vazias se refere, antes de mais nada, apropriao privada de ganhos que so permitidos pelo investimento pblico em benfeitorias e que proporcionam maior valorizao ao es-pao onde so realizadas.

    Bibliografa BARCELLOS, Tanya M. de, coord. (1986). Segregao urbana e mortalidade em

    Porto Alegre. Porto Alegre, FEE. CAMPANRIO, Milton de Abreu (1984). O mercado de terras e a excluso social

    na cidade de So Paulo. In: KRISCHKE, Paulo J , org. Terra de habitao ver-sus terra de expoliao. So Paulo, Cortez.

    CASTELLS, Manuel (1977). Crise do Estado, consumo coletivo e contradies ur-banas. In; POULANTZAS, Nicos, org. O Estado em crise. Rio de Janeiro, Graal.

    HARVEY, David (1982). O trabalho, o capital e o conflito de classes em torno do ambiente construdo nas sociedades capitalistas avanadas. Espao e Debates, So Paulo, Cortez, 2(6):7, jun./set.

  • LIPIETZ, Alain (1982). Alguns problemas da produo monopolista do espao ur-bano. Espao e Debates, So Paulo, Cortez, (7):5-20, out./dez.

    LOJKINE, Jean (1979). Existe urna renda fundiria urbana? In: FORTI, Reginald, org. Marxismo e urbanismo capitalista: textos crticos. So Paulo, Cincias Hu-manas.

    (1979). El marxismo, el estado y Ia cuestin urbana. Mxico,Siglo Veinteuno.

    LOW-BEER, Jacqueline Doris (1983). Renda da terra: algumas noes para a com-preenso do caso urbano. EspaoeDebates,So Paulo,Cortez,(8):31-41,jan./abr.

    RIBEIRO, Luiz Csar de Queiroz (1982). Espao urbano, mercado de terras e pro-duo da habitao. Rio de Janeiro, Zahar. (Debates Urbanos, 1).

    SINGER, Paul (1982). O uso do solo urbano na economia capitalista. In: MARI-CATO, Ermnio, org. A produo capitalista da casa (e da cidade) no Brasil in-dustrial. So Paulo, Alfa-Omega.