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1 O valor de ligação da corrida de rua na união de indivíduos em tribos contemporâneas: um estudo etnográfico. Autoria: Adriana Moura e Silva, Eduardo Espíndola Halpern Resumo O propósito deste artigo é estudar o fenômeno social das tribos contemporâneas formadas por indivíduos que compartilham valores, estilos de vida, produtos ou atividades em comum. Trata-se de um estudo etnográfico realizado com um grupo de corredores de rua e tem como objetivo avaliar o valor de ligação dessa atividade através da identificação das evidências físicas e temporais da tribo e da classificação dos seus membros. Verifica-se neste estudo que a corrida carrega significados simbólicos que permite a união de indivíduos em tribos e tem como principal contribuição a sugestão de um modelo de classificação dos corredores. Palavras-chave: Tribos Contemporâneas, Corrida de Rua, Linking Value, Etnografia, Hierarquização da Tribo de Corredores.

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O valor de ligação da corrida de rua na união de indivíduos em tribos contemporâneas: um estudo etnográfico.

Autoria: Adriana Moura e Silva, Eduardo Espíndola Halpern Resumo O propósito deste artigo é estudar o fenômeno social das tribos contemporâneas formadas por indivíduos que compartilham valores, estilos de vida, produtos ou atividades em comum. Trata-se de um estudo etnográfico realizado com um grupo de corredores de rua e tem como objetivo avaliar o valor de ligação dessa atividade através da identificação das evidências físicas e temporais da tribo e da classificação dos seus membros. Verifica-se neste estudo que a corrida carrega significados simbólicos que permite a união de indivíduos em tribos e tem como principal contribuição a sugestão de um modelo de classificação dos corredores. Palavras-chave: Tribos Contemporâneas, Corrida de Rua, Linking Value, Etnografia, Hierarquização da Tribo de Corredores.

 

1 Introdução A corrida de rua é considerada um fenômeno contemporâneo (DALLARI, 2009), apesar de ter surgido na Inglaterra no século XVIII, só se expandiu mundialmente no final do século XIX, após a primeira maratona olímpica (SALGADO e CHAKON-MIKAHIL, 2006). Os autores afirmam que a busca pela prática da corrida de rua ocorre por diversos interesses - desde a promoção de saúde e a estética até a integração social e a fuga do estresse da vida moderna – e destacam que as corridas de rua vêm crescendo mais como um comportamento participativo do que como um esporte competitivo. Na verdade, poucos são os corredores profissionais (DALLARI, 2009): o sentido de competir bem específico das corridas de rua é de que os participantes das provas evidentemente não estão preocupados em obter as primeiras colocações. A grande maioria dos praticantes o faz como atividade lúdica, fora dos horários de trabalho e a aderência à atividade é fortemente motivada pelo convívio obtido na prática em grupos de pessoas com interesses similares (TRUCCOLO, MADURO e FEIJÓ, 2008). O presidente da Corpore, maior clube de corredores da América Latina, defende que um dos aspectos positivos da corrida é a possibilidade de convívio social (ISTOÉ DINHEIRO, 2009): “a corrida é muito mais um elemento de relacionamento entre seus participantes que um esporte em si”. Dallari (2009) corrobora esse pensamento ao declarar que a base para as ligações entre corredores de longa distância é a prática cotidiana. O lugar dos treinos, os horários e o ritmo desenvolvido na atividade são determinantes para a formação de grupos. É a experiência vivida e os hábitos semelhantes que vão formar as tribos contemporâneas (MAFFESOLI, 2004), associações baseadas na ajuda mútua, nos sentimentos compartilhados e marcadas pelo afeto. Neste contexto, percebe-se o potencial da corrida como uma atividade que é compartilhada entre os indivíduos que formam uma subcultura de consumo (SCHOUTEN e MCALEXANDER, 1995), ou como elemento aglutinador que une os indivíduos de uma tribo e fortalece o sentimento de comunidade (COVA e COVA, 2001), encorajando o senso de pertencimento à tribo – linking value (valor de ligação). Essa perspectiva aliada à expansão da atividade no país (CORPORE, 2012), admite que a corrida seja objeto desta pesquisa, que tem como objetivo estudar o fenômeno social das tribos, baseando-se nos modelos propostos no estudo realizado por Cova e Cova (2001) com patinadores in-line na França. Neste estudo será aplicado o método etnográfico com um grupo de indivíduos que se reúnem em torno da atividade de corrida de rua na cidade do Rio de Janeiro e será investigado o valor de ligação da atividade a partir dos indícios espaciais e temporais que classificam esse grupo como uma tribo contemporânea e dos diferentes papéis adotados pelos seus membros. A corrida de rua foi escolhida por carregar muitos significados (DALLARI, 2009) – pessoas se deslocam, nacional e internacionalmente, treinam por vários meses, adotam hábitos rigorosos de alimentação e de repouso, se privam de outras práticas no seu tempo livre, tudo isso para correr -, e estes significados ajudam a criar um link entre os indivíduos que formam uma tribo. Além disso, é uma atividade que tem na sua prática cotidiana a base para a ligação entre os corredores, sendo determinante para a formação de grupos. 2 Revisão da Literatura 2.1 Tribos Contemporâneas De acordo com Cova (1997), uma das correntes de pesquisas sociológicas (LIPOVETSKY, 1983, 1987 e 1990) defende que a pós-modernidade é caracterizada pelo individualismo, que

 

tem na fragmentação da sociedade e do consumo uma das consequências mais visíveis. No entanto, uma segunda corrente (BAUMAN, 1992; MAFFESOLI, 1988, 1990, 1992 e 1993) defende o movimento inverso, cujo individualismo corresponde apenas a um momento de transição. O autor afirma que a era pós-moderna é caracterizada pelas dinâmicas sociais - compostas por uma multiplicidade de experiências, representações e emoções - e estas dinâmicas, geralmente explicadas pelo individualismo, também podem ser ilustradas pelo tribalismo. O tribalismo pós-moderno traduz a necessidade de se pertencer a não apenas um, mas a vários grupos simultaneamente. Pertencer a uma tribo não significa possuir os mesmos traços de personalidade, mas expressar uma experiência compartilhada e talvez, alguns aspectos da história pessoal de seus membros (COVA e COVA, 2001). Os autores definem tribo como um conjunto de pessoas heterogêneas - em termos de idade, sexo, renda – que se mantêm unidas através do compartilhamento de emoções, estilos de vida, valores e práticas de consumo. De acordo com Cooper, McLoughlin e Keating (2005), a tribo pode ser descrita como uma rede de relacionamentos entre pessoas que se conectam para partilhar uma emoção por um dado objeto, o qual pode ser um lugar, um indivíduo, um produto, uma marca ou uma atividade. Para Schouten e McAlexander (1995), um grupo baseado no consumo, ou subcultura de consumo – que neste trabalho será utilizado como sinônimo de tribo contemporânea de consumo –, é aquele cujos membros selecionam a si mesmos com base no compromisso compartilhado em relação a uma classe de produto, marca ou atividade de consumo específica. Percebem-se nesses grupos a existência de uma estrutura social hierárquica, um conjunto de valores compartilhados, e jargão, rituais e expressões simbólicas singulares. Maffesoli (2006) alega que o neo-tribalismo é cada vez mais visível na forma como as pessoas se comportam coletivamente e produzem forças sociais. Esses agrupamentos são baseados em afinidade emocional assim como as tribos pré-modernas eram baseadas em valores familiares. Neste contexto desenvolvem-se valores que unem os indivíduos, fortalecem o sentimento de comunidade e encorajam a formação de tribos – o linking value (COVA e WHITE, 2010). Os autores defendem que as comunidades de consumidores são ao mesmo tempo criadoras e usuárias do linking value – também denominado de “valor de ligação” neste estudo. Quanto mais pessoas participam, maiores as oportunidades de interação e de criação de relacionamentos, pois são os consumidores que criam a comunidade através de sua participação ativa. Considerando a tribo de indivíduos unidos pela corrida, vale destacar que a sociabilidade – o nível em que um indivíduo se utiliza de uma atividade de forma a fazer parte de um grupo e relacionar-se – passa, com o tempo, a ser um fator cada vez mais importante para a manutenção da prática (GONÇALVES, 2011). O autor afirma que o fato de poder correr ao lado de mais pessoas auxilia na prática de uma atividade que muitas vezes pode se tornar um momento solitário e de dor. Desta forma, a corrida em grupo passa a ser uma forma de extravasar, compartilhar sentimentos e de trocar experiências com outras pessoas – deixando claro o forte valor de ligação que a atividade possui. Segalen (2002) também explica o poder do linking value presente em eventos que reúnem milhares de corredores, como as provas oficiais. Ela afirma que a experiência de se participar de uma grande maratona, como a de Nova York, permite o corredor compartilhar momentos de agregação e de forte energia, que fortalecem a sua paixão pela atividade. 2.2 Identificação da Tribo Cova e Cova (2001) afirmam que, ao contrário dos segmentos de consumidores, as tribos são difíceis de identificar. Tribos não são claras, são agrupamentos mutáveis de pessoas

 

emocionalmente conectadas, mas que transmitem sinais com os quais os seus membros se identificam. Esses sinais não conseguem expressar a totalidade do sentimento de pertencimento, mas sugerem e conduzem as pessoas para esse entendimento. Maffesoli (2006) destaca a importância desse sentimento de pertencimento a um lugar ou a um grupo, considerando-o um fundamento essencial de toda a vida social. Frehse (2006) afirma que o tribalismo permite ao indivíduo experimentar esse sentimento de identificação a um ou vários grupos, criando a possibilidade de representar papéis dentro das tribos das quais ele participa. Para Cova e Cova (2001) existem pelo menos dois tipos de indícios que identificam as tribos: as evidências temporais e físicas. A partir do seu estudo com patinadores in-line na França, os autores propõem um modelo, ilustrado na Figura 1. Figura 1: Trevo Tribal – Identificação da tribo Nota Fonte: Adaptado de Cova e Cova (2001). Neste modelo, as evidências físicas das tribos estão representadas na linha horizontal e referem-se aos momentos nos quais os membros da tribo se reúnem para seus rituais (ocasiões), e aos espaços físicos ou virtuais (instituições) onde os membros se reúnem. O eixo vertical representa as evidências temporais, que são indícios mais abstratos que explicam que as tribos podem ser identificadas por meio das atividades que seus membros praticam regularmente e pelo compartilhamento de suas experiências, ou por meio de tendências ou modas relacionadas ao seu estilo de vida que caracterizam a existência da tribo. Em termo temporal, as tribos surgem, crescem, alcançam seu pico, enfraquecem e se dissolvem. Considerando as evidências físicas, as tribos existem e ocupam um espaço físico. Seus membros podem se reunir e realizar seus rituais em diversos locais. Esses espaços são chamados de “espaço-âncora” (AUBERT-GAMA e COVA, 1999), que proporcionam um lar momentâneo para a tribo e podem assumir um papel de facilitador à medida que encorajam e sustentam as interações sociais entre os indivíduos. Vale destacar que nenhum desses sinais de identidade exaure todo o potencial das tribos (COVA e COVA, 2001). Pertencer a uma tribo é algo que faz parte do dia a dia dos seus membros, até de maneira informal com outros indivíduos em qualquer lugar. Uma tribo pode ser apenas um sentimento ou uma fantasia. Os autores reforçam que membros de uma tribo nunca estão realmente sozinhos, porque eles pertencem de alguma forma, real ou virtual, a uma vasta comunidade. Outras pesquisas também corroboram os aspectos referentes à identificação das tribos contemporâneas, como o estudo realizado com praticantes de parkour no Rio de Janeiro

 

(SILVA, COSTA e CARVALHO, 2010), com praticantes de rafting nos Estados Unidos (ARNOULD e PRICE, 1993), com adeptos ao Mountain Man (BELK e COSTA, 1998) e com proprietários de motocicletas Harley-Davidson (SHOUTEN e MCALEXANDER, 1995; PINTO, 2011). 2.3 Classificação dos Membros da Tribo De acordo com Cova e Cova (2002), cada indivíduo pertence a diversas tribos e em cada uma delas ele desempenha um papel diferente. Os autores afirmam que pertencer a estas tribos se tornou mais importante que pertencer a uma classe social ou um segmento, ou seja, o status social (a posição do indivíduo em uma classe social) está sendo progressivamente substituído pela configuração societal, que reflete o posicionamento dinâmico e flexível do indivíduo entre as tribos. Costa (1995 apud MEIR e SCOTT, 2007) destaca que as tribos possuem padrões particulares de consumo (de marcas ou produtos afins) que se não forem aderidos podem ameaçar a presença do membro no grupo. Consequentemente, o comportamento de consumo se torna um veículo pelo qual a identidade individual é expressa – ele define o pertencimento do membro à tribo. Corroborando esse pensamento, Cooper, McLoughlin e Keating (2005) enfatizam que os membros de uma tribo compartilham gostos, emoções, estilos de vida, valores e padrões de consumo – isto significa um comprometimento simbólico com os demais membros. Figura 2: Classificação dos membros de uma tribo Nota Fonte: Adaptado de Cova e Cova (2001). Cova e Cova (2001) propõem um modelo utilizado para classificar os membros de uma tribo de acordo com os papéis que eles adotam. O eixo horizontal representa o papel dos “devotos”, caracterizado pela associação formal à tribo, e dos “participantes”, marcado pela adesão aos eventos ou ocasiões informais da tribo. O eixo vertical envolve o papel dos “praticantes”, caracterizado pelo envolvimento com as atividades cotidianas típicas da tribo e dos “simpatizantes”, que podem ser caracterizados pela atitude favorável em relação à tribo. No estudo com a tribo de patinadores in-line, Cova e Cova (2001) classificaram como devotos os 28.000 patinadores associados formalmente à FFRS (Federação Francesa de Patinadores). Aqueles que participaram dos eventos nacionais (Roller City e Tatoo Roller Skating) e dos

 

encontros semanais (Friday Night Fever) foram considerados participantes, pois aderem a outros eventos além da prática cotidiana da atividade. Além disso, os autores constataram a existência de dois milhões de praticantes regulares no país e alguns milhões de simpatizantes. Outro exemplo de classificação dos membros de acordo com os papéis adotados no grupo é descrito no estudo com proprietários de motocicletas Harley-Davidson (SHOUTEN e MCALEXANDER, 1995). Os autores identificaram uma estrutura social hierárquica baseada no status do membro no grupo. Esse status é conferido ao membro de acordo com a sua idade, participação e liderança nas atividades do grupo; experiência e expertise em pilotar uma Harley; conhecimento específico sobre a Harley-Davidson e o comprometimento com os valores de consumo do grupo. 3 Metodologia Considerando a abordagem qualitativa mais adequada para se aprender sobre o comportamento e compartilhamento da cultura entre indivíduos ou grupos (CRESWELL, 2010), o método de pesquisa utilizado para a coleta e interpretação dos dados foi a etnografia. Apesar de ser um método de pesquisa tipicamente antropológico (GOLDENBERG, 2009), é uma abordagem que vem ganhando popularidade nos campos da sociologia, estudos da cultura, marketing e pesquisa de consumo (KOZINETS, 2010). Rocha e Rocha (2007) defendem que o objetivo dos estudos etnográficos em marketing é o de se compreender como os grupos sociais atribuem significados a produtos e serviços. A ideia central é entender a experiência do consumo e como essa experiência traduz afetos, desejos e relações sociais. As principais técnicas de coleta de informações de que se utiliza o método etnográfico são a observação participante e as entrevistas em profundidade (VIEIRA e PEREIRA, 2005). No presente estudo, a observação participante foi realizada por um período de sete meses – entre agosto de 2012 e fevereiro de 2013. Um dos pesquisadores se tornou aluno de uma assessoria esportiva especializada em corrida e passou a participar ativamente dos treinos diários, competições e dos eventos promovidos pelo grupo. Após cada contato com o grupo, toda a experiência era transcrita imediatamente para o diário de campo. Elliot e Jankel-Elliot (2003) destacam que as notas de campo são muito importantes e devem ser feitas pouco tempo depois do evento acontecer. Nesta pesquisa, foram registradas tanto as expressões próprias do grupo, quanto as impressões pessoais do pesquisador sobre os eventos observados. Os temas principais dessa pesquisa foram delineados previamente, baseando-se nos objetivos específicos do estudo: identificação da tribo e a classificação dos seus membros. A Tabela 1 ilustra essas categorias e os itens específicos que compõem cada tema principal. Alguns aspectos foram previstos antes da pesquisa de campo e outros foram sendo incluídos à medida que as observações foram se desenvolvendo (MATTOS, 2001). Esses itens nortearam a composição das notas de campo e formaram a base para a estruturação da análise e interpretação dos dados. Considerando que a etnografia pode combinar múltiplos métodos (KOZINETS, 2010), juntamente com a observação participante, foi aplicada a “netnografia” como uma forma de observação mecânica (ARNOULD e WALLERDORF, 1994). O objetivo era a obtenção de dados complementares para a construção de diferentes perspectivas de interpretação. A netnografia é um tipo de pesquisa participante e observacional baseada no conteúdo online (KOZINETS, 2010). Durante os sete meses de observação de campo, todo o conteúdo online também foi acompanhado. Foi feito um segundo diário de campo, onde foram registrados os depoimentos, comentários, interações entre os membros e as imagens consideradas relevantes para a análise de dados da pesquisa. As observações de campo também foram

 

complementadas com a coleta de fotografias (ARNOULD e WALLERDORF, 1994) e a leitura de revistas e blogs especializados em corrida. Tabela 1: Categorias de observação e itens de análise das categorias  

CATEGORIAS DE OBSERVAÇÃO ITENS DE ANÁLISE DAS CATEGORIAS

Identificação da tribo:

Evidências Físicas

Espaço físico dos locais de treino e dos eventos do grupo; Página do grupo no Facebook; Ocasiões: treinos diários, treinões e provas.

Identificação da tribo: Evidências Temporais

Atividades do dia a dia; Experiências compartilhadas; Evolução dos membros dentro do grupo.

Membros da tribo

Qualificação os corredores de acordo com os papéis adotados no grupo; Identificação de possíveis subgrupos.

Também foram realizadas entrevistas em profundidade com alguns membros intencionalmente selecionados (CRESWELL, 2010). Eles foram escolhidos de acordo com uma classificação dos corredores observada durante a pesquisa de campo. Além dos alunos, foi entrevistado um dos sócios da assessoria. No total foram realizadas cinco entrevistas não estruturadas, seguindo um roteiro geral com questões abertas. Collis e Hussey (2005) destacam que um dos grandes benefícios da entrevista não estruturada é que novas questões podem surgir ao longo da entrevista, gerando novas descobertas. A fim de preservar a identidade dos entrevistados, eles foram identificados por um nome fictício e pelo número de quilômetros que eles correm – considerando que a classificação observada segue essa referência. Na Tabela 2 é possível visualizar o perfil dos entrevistados. Tabela 2: Perfil dos Entrevistados

ENTREVISTADO

IDADE

PROFISSÃO

HÁ QUANTO TEMPO CORRE

HÁ QUANTO TEMPO ESTÁ

NA SPEED João

Sócio/Treinador 31 anos Educador

físico 14 anos 6 anos

Ana Corredor 5km 35 anos

Designer/ Estudante

3 anos 5 meses

Maria Corredor 10 km 39 anos Dona de casa

3 anos e 6 meses

2 anos e 6 meses

Ricardo Corredor 21 km 54 anos Empresário 6 anos 2 anos

Vicente Corredor 42 km 42 anos Arquiteto 12 anos 2 anos

O tratamento dos dados se baseia na análise de discurso – uma das ferramentas da microanálise etnográfica (MATTOS, 2001). Gill (2011) destaca que a análise de discurso é “uma leitura cuidadosa, próxima, que caminha entre o texto e o contexto”, por isso é vital a familiaridade do pesquisador com o contexto estudado. Neste estudo, o discurso é qualificado

 

através do conteúdo dos diários de campo, da transcrição das entrevistas, da revisão de literatura e dos artigos de revistas e blogs especializados em corrida. A principal limitação deste método é a busca da imparcialidade por parte do pesquisador, pois a leitura da realidade tende a sofrer influência dos seus valores e crenças pessoais (PEREIRA, 2008). 4 Resultados 4.1 Identificação da tribo de corredores Baseando-se no modelo proposto por Cova e Cova (2001), a identificação da tribo de corredores será analisada a partir da descrição das suas evidências físicas e temporais. A Figura 3 propõe um modelo comparativo ao Trevo Tribal (FIGURA 1) para demonstrar os aspectos que identificam a tribo de corredores. Figura 3: Identificação da tribo de corredores Fonte: Dados da pesquisa de campo. A mais forte evidência física da existência da tribo é a estrutura montada no Parque do Flamengo, uma tenda que serve de apoio para a realização dos treinos, bem como ponto de encontro para interação entre os seus membros. Um dos sócios da assessoria, explica que o Aterro foi escolhido para a inauguração da primeira unidade devido ao potencial do lugar. Percebia-se que muitas pessoas corriam no Aterro, mas lá não havia assessorias na época.

A gente vê que existia uma possibilidade de um negócio dar certo aqui no Flamengo, porque não tinha ninguém que dava treino aqui na área. É uma área nobre pra você treinar, porque você tem os três tipos de terreno: areia, grama, asfalto. Você tem uma pista muito boa (João, 31 anos, Sócio-Treinador).

Durante as observações, ficou evidente que alguns alunos ficam no espaço da tenda além do seu tempo de treino. Na maioria das vezes as conversas estão relacionadas à corrida: provas que realizaram ou que ainda irão realizar, o tempo percorrido nas provas, materiais e acessórios de corrida, entre outros. A evidência física da tribo também pode ser representada pela sua página na rede social Facebook, que possui aproximadamente 2000 seguidores e é um local de interação constante entre os membros do grupo. Seu perfil na rede é o principal canal de informações da empresa,

 

que mantêm os alunos informados sobre as novidades e eventos do grupo, as provas, parcerias, produtos, serviços e notícias relacionados ao mundo da corrida. No entanto, uma característica que ficou fortemente evidenciada nos depoimentos postados pelos alunos é o orgulho que eles demonstram ao compartilhar os resultados e os sentimentos vivenciados nas provas das quais eles participam. A maior parte do conteúdo gerado pelos alunos é desse teor e as respostas dos demais membros são de estímulo e congratulação.

Ontem cruzei a linha de chegada do Circuito Rio Antigo chorando, pq sabia que estava abaixo de 30 min.. Em Fevereiro, correr 500m parecia impossível. Agora, a

cada prova venho diminuindo o tempo aos pouquinhos (G.; 40 anos). Comentário: Ah eu te avisei que isso iria acontecer! Bem vinda ao mundo dos

loucos por corridas. Fico muito feliz por você! Tenho certeza que você fará a meia maratona no ano que vem! PARABÉNS! Beijos (S.; 47 anos).

Ficou evidente que os corredores gostam de compartilhar fotos do número de peito (número que fica preso na camiseta para identificar o corredor) e a medalha que recebem após a prova. Muitos comentam sobre o tempo e distâncias percorridos e as emoções que sentiram.

Em 29/07/2011, trotava os primeiros e intermináveis 3,53 km em eternos 25 minutos. (...) Mas de lá para cá já foram 4 corridas de rua (10K) mais 2 meias

maratonas e pelo menos 4 treinos por semana. Isso sem contar com os quase 15 kg que não preciso mais carregar (A.; 47 anos).

Além dos espaços físicos e virtuais, outro indício espacial são os momentos nos quais os membros da tribo se reúnem para seus rituais (ocasiões). Na tribo de corredores pesquisada essas ocasiões são representadas pelos treinos diários, os treinões e as provas oficiais. A rotina de treinos baseia-se em uma planilha que é feita de forma personalizada, dependendo do perfil e dos objetivos do aluno. Todas as informações, como tempo e distância do treino, ficam registrados nela. Os treinadores incentivam os alunos a colocarem uma prova como meta específica e eles registram essa “prova-alvo” na planilha.

A gente trata todos os alunos individualmente, até porque esse é o primeiro princípio do treinamento desportivo, que é o princípio da individualidade biológica. Cada

indivíduo está em um momento (João, 31 anos, Sócio-Treinador).

Outra ocasião que tipicamente reúne os alunos são os treinões, seja para celebrar algum evento importante para a equipe, oferecer treinos específicos para algumas provas ou apenas para integração dos alunos. Os sócios da assessoria entendem a importância desses eventos como forma de socialização entre os alunos e de fortalecimento do relacionamento. Percebe-se que há forte aderência por parte dos alunos, que relataram a importância desses momentos de integração e confraternização e sugerem que deveriam acontecer com mais frequência.

Em geral os treinões eu sempre faço questão de participar porque eu acho que é sempre o momento de encontro e de troca (Maria, 39 anos, Corredora de 10km).

É fundamental porque é uma maneira de agregar alunos antigos com alunos novos,

com pessoas novas, que tão começando, tão tomando gosto pela coisa... é legal (Vicente, 42 anos, Corredor de 42km).

Outra ocasião que une os membros do grupo são as provas oficiais das quais eles participam. Os corredores têm metas a serem atingidas e essas metas geralmente convergem para uma prova específica. Os treinos são planejados visando uma prova a curto ou médio prazo, mantendo o corredor mais focado e estimulado.

 

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Eu comecei a me preocupar com meu pace, com meu ritmo, a tentar fazer a planilha certinha... hoje eu treino muito mais forte e com mais objetivo do que antes, hoje eu sei que pra eu chegar bem na meia, eu tenho que tá muito bem nos 10 (...) Essa meia maratona, ela é uma conquista pessoal, não é só em relação ao desempenho (Maria,

39 anos, Corredora de 10km).

Esse ano tá todo baseado, desde o início do ano que eles já sabem, entendeu, que esse ano tá todinho focado na meia maratona de julho... E tudo que acontecer até lá,

todas as provas até lá, é, que vão acontecer no caminho, elas serão consideradas como treino... pra atingir esse objetivo (Ricardo, 54 anos, Corredor de 21km).

O pesquisador participou de algumas provas e vivenciou a sensação de dever cumprido e de que os treinos valeram a pena. O espírito não é de competição com os outros corredores, mas de tentar melhorar o próprio desempenho. Esse sentimento torna a atividade de corrida extremamente prazerosa e finalizar uma prova é o ápice dessa realização.

Ah é muito bom, dá vontade de gritar, de anunciar pra todo mundo “ahh consegui!!”... e o meu tempo baixou muito também... fiquei muito feliz... dá vontade de gritar pra todo mundo, né?! (Ana, 35 anos, Corredora de 5km). Você não tem só aquele momento da prova, você tem todo o histórico que te levou até aquele momento. Tudo que você sofreu, toda chuva que você pegou pra treinar, e ali na linha de chegada você vê “pô, eu consegui”... ah, ninguém tem noção do que é você conseguir às vezes dois, três segundos que sejam mais rápidos do que aquilo que você queria... essa sensação, é, não adianta, ela é indescritível. Só quem corre é quem talvez saiba o que é isso (Ricardo, 54 anos, Corredor de 21km).

Além dos indícios espaciais há também os temporais, que envolvem as atividades do dia a dia e as experiências compartilhadas entre os membros da tribo. Percebe-se uma forte ligação entre as evidências espaciais e temporais, pois são os espaços e os momentos de integração que permitem a realização das atividades e troca de experiências. Os sinais temporais também estão relacionados à percepção de tempo percorrido e a evolução do membro na tribo, desde o seu primeiro contato, integração e desenvolvimento dentro do grupo. As atividades e os eventos vivenciados pelo pesquisador como membro da tribo de corredores iniciou com a realização do teste de VO2, que calcula a quantidade de oxigênio que o corpo consegue “pegar” do ar, definindo o condicionamento do aluno.

O teste que a gente faz hoje é um teste de ciclismo que nós adaptamos pra corrida. Validamos o teste e em cima da ciência a gente foi construindo a metodologia de trabalho que nos permite avaliar e prescrever o treinamento tanto com segurança,

tanto com qualidade (João, 31 anos, Sócio-Treinador).

A cada dois meses era realizado um novo teste e percebeu-se uma evolução significativa no volume dos treinos e no tempo total a ser desempenhado pelo corredor. Essa evolução exige mais dedicação aos treinos, fazendo com que o corredor passe mais tempo em contato com os demais membros da tribo, fortalecendo os laços entre eles. O vínculo com os demais corredores se tornou mais forte à medida que eles verificaram que o pesquisador estava empenhado e assíduo aos treinos. As práticas do dia a dia oferecem uma diversidade de experiências ao corredor, que podem ser vivenciadas individualmente ou em grupo. A realização da planilha, por exemplo, envolve diferentes tipos de treino, que podem ser feitos no asfalto, areia ou grama. Cada treino é uma experiência diferente, que é frequentemente compartilhada com os demais membros do grupo como mais um desafio alcançado. Essa sensação após cada treino forte concluído é um dos principais “combustíveis” para o corredor traçar metas mais difíceis e inspiradoras.

 

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Treino de hoje: 1 x 1500 (9':13") + 5 x 200 (0':52") + 1 x 1500 (9':13") + 5 x 400 (1':49") + 1 x 1500 (9':13") + 10 x 100 (0':23"). Quem corre sabe o que é isso.

Confesso que quando vi isso na planilha achei que seria muito difícil conseguir... Mas a sensação de ter conseguido, e com todos os tempos abaixo do prescrito, não

existe igual! "Endorfinado" até agora! (Ricardo, 54 anos, Corredor de 21km). É comum entre os corredores do grupo eles se organizarem e combinarem para fazer determinados treinos em conjunto – mais um aspecto que fortalece a união entre eles. Ficou perceptível que, além de correr a fim de melhorar o desempenho, eles também se reúnem para correr por lazer. Um bom exemplo são os treinões, que apesar de terem distâncias curtas, têm a aderência de todos os perfis de corredor, que querem prestigiar a equipe independente se estão fazendo um treino programado na planilha. Também foi verificado que existe uma relação entre a evolução do corredor e o consumo de determinados produtos e serviços, como as inscrições das provas, ou suplementos exigidos para treinos e provas mais longas. Durante a evolução do corredor, as provas funcionam como balizadores do seu desempenho, motivando-o a dar continuidade à atividade e, consequentemente, a se manter como membro da tribo.

Seguindo os treinamentos direitinho e tal, eu praticamente já bati todos os meus tempos. Só falta agora os meus 21, que eu só não bati o ano passado porque eu corri

a prova doente (Ricardo, 54 anos, Corredor de 21km).

Minha primeira meia maratona, lembro como se fosse hoje, fiz em 2h e 19, quando fiz a segunda já fiz em 1h e 48, quase meia hora menos com um intervalo de uns 6 meses. Peguei gosto assim, né?! Incorporou (Vicente, 42 anos, Corredor de 42km).

Ficou evidente que a possibilidade de interagir, de dividir emoções e conquistas e de receber o apoio dos demais corredores, proporcionada pelos espaços e momentos compartilhados entre os membros da tribo, reforça o poder de agregação da prática da atividade em grupo. Esses indícios também demonstram que a corrida é uma atividade com forte valor de ligação, que tem o poder de unir indivíduos em tribos. 4.2 Classificação dos membros da tribo de corredores Os corredores do grupo pesquisado podem ser classificados como membros de uma tribo pós-moderna, pois estão unidos em torno de uma paixão em comum: a corrida. Baseando-se no modelo de classificação dos membros de uma tribo (FIGURA 2), é possível qualificar os corredores de acordo com os papéis que eles desempenham no grupo – Figura 4. O papel de “devoto” se caracteriza pela associação formal à tribo e pode ser identificado pelo número de alunos matriculados na assessoria, que possui 350 membros. Essa associação é motivada por fatores como: melhoria da qualidade de vida, prática de uma atividade física, orientação para melhoria do desempenho na corrida ou a busca de uma atividade social. O grupo pesquisado tem cerca de 50% dos membros buscando melhoria de qualidade de vida. Cerca de 30% são os chamados “corredores recreacionais” – aquele que já incorporou a corrida na sua rotina e procura melhorar seu desempenho e os 20% restantes são os atletas, aqueles altamente focados em desempenho.

 

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Figura 4: Classificação dos membros da tribo de corredores Fonte: Dados da pesquisa de campo.

Eu era bem sedentária, ex-fumante... se eu subisse um lance de escadas eu morria. Aí resolvi parar de fumar... resolvi entrar numa assessoria pra evoluir, porque eu

tava querendo correr na pista mesmo (Ana, 35 anos, Corredora de 5km).

É o cara que, se tá chovendo hoje, “pô, tá chovendo, mas eu vou treinar mesmo assim”. O corredor recreacional é o cara que se preocupa com o tempo, o cara que já colocou a corrida dele na agenda dele e aquilo ali já faz parte da vida dele (João, 31

anos, Sócio-Treinador). Alguns membros assumem o papel de “participantes”, aqueles que aderem aos eventos ou ocasiões informais da tribo. Os eventos como treinões e provas agregam uma média de 80 a 90 alunos. Foi verificado que alguns corredores estão presentes em todos os eventos, mostrando-se engajados e entusiasmados com essas ocasiões.

Participo de todos, na medida do possível... acho que é bom pra você se socializar, sabe?! Conhecer as outras pessoas do grupo. E eu gosto dos eventos... (Ana, 35

anos, Corredora de 5km).

Alguns membros exercem o papel de “praticantes”, que são aqueles que se envolvem com as atividades cotidianas do grupo. Na tribo pesquisada, ficou perceptível que existe um subgrupo composto por aproximadamente 20 alunos que são membros do grupo há mais tempo ou que correm há vários anos e participam de provas mais longas, de trilha e ultramaratonas. Por fim, existem os “simpatizantes”, que frequentam menos o espaço físico do grupo e não se envolvem com as atividades informais da tribo. Os simpatizantes também são aqueles indiretamente ligados ao grupo, como os seguidores da página do grupo no Facebook, que contabilizam mais de 2.000 pessoas. Dentre os seguidores estão profissionais de empresas parceiras, corredores de outras equipes, profissionais de educação física, corredores profissionais, parentes dos membros do grupo, entre outros. O modelo proposto por Cova e Cova (2001) consegue explicar de forma adequada os papéis desempenhados pelos corredores do grupo. No entanto, a pesquisa de campo evidenciou a existência de uma classificação entre os seus membros que é feita quase que de forma intuitiva, mas que ficou clara através das observações. Percebe-se que os membros são

 

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categorizados pelos demais componentes do grupo de acordo com os quilômetros que eles correm e as provas das quais participam. Ficou evidente que o corredor pode ser classificado por correr 5 km, 10 km, 21 km, 42 km ou ultramaratonas (acima de 42 km). Essa quilometragem define seu status dentro do grupo; as provas das quais ele participa; os produtos e serviços que serão consumidos; o tempo dedicado aos treinos e a maior interação com o seu treinador. É sugerido, portanto, um modelo de classificação de acordo com as observações de campo – ilustrado na Figura 5.

Figura 5: Hierarquização dos membros da tribo de corredores Fonte: Dados da pesquisa de campo. Percebe-se que a primeira meta do “corredor iniciante” é completar uma prova de 5 km sem caminhar. Nessa primeira etapa ele está em busca principalmente de melhoria na qualidade de vida e na saúde. Ele recebe as orientações iniciais para começar a atividade, como o tipo de tênis adequado, um relógio para marcar o tempo do treino, e faz o seu primeiro teste de VO2. A partir da conquista dos 5 km, o corredor começa a focar em uma prova de 10 km, sendo classificado como o “corredor recreacional 1”. Ele já se preocupa mais com seu desempenho, controla mais seu pace, consome produtos específicos e busca por orientação nutricional e suplementação adequada. Essa é a distância que serve de “trampolim” para partir em busca da primeira meia maratona (21 km).

Sabe aquela conquista “eu conquistei os 5 km? Caramba! Eu conquistei 10? 21 então é o máximo!!” (...) Primeira vez que eu corri os 5, que eu consegui terminar,

que a minha meta era terminar os 5 sem caminhar, eu tive a certeza que eu ia fazer a meia (Maria, 39 anos, Corredora de 10km).

Quando eu completei, que eu fiz os meus primeiros 2 km correndo... Uma emoção do caramba, né?! Hoje vou correr a minha 16ª maratona... é um orgulho dizer isso!

(Vicente, 42 anos, Corredor de 42km). Quando o corredor atinge os 10 km, ele é estimulado a focar em uma meia maratona (21 km), começando a mudança para “corredor recreacional 2”. Percebe-se uma postura diferente do treinador, que passa a cobrar e a estimular mais o corredor, prescrevendo treinos mais desafiadores. Nessa fase o indivíduo já tem a corrida incorporada no seu dia a dia e está mais disposto a dedicar o seu tempo, inclusive nos finais de semana, para se preparar para a prova.

 

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Você começa a ter o cara focado, ele começa a fazer escolhas, né?! Aí você começa a perceber o seguinte: o cara vai dormir cedo porque no dia seguinte ele quer render bem no treino, vai se alimentar bem... Porque ele tem um objetivo maior... Seja qual

for o tamanho desse sonho, mas ele começa a se comportar de maneira a efetivamente realizar esse sonho. Então, tudo isso faz parte do processo de evolução

e esse comportamento ele é bem sinalizado pelo corredor, ele demonstra isso com muita clareza pra você (João, 31 anos, Sócio-Treinador).

Alguns corredores, ao alcançar os 21 km, vão em busca dos 42 km – esses são os “maratonistas”. Nesta fase, percebe-se um papel mais ativo do treinador, inclusive controlando os dias de descanso desses corredores. Aqui o corredor já atingiu o máximo na corrida, o “olimpo”, que é uma prova de 42 km. A partir daí ele começa a buscar maratonas em cidades diferentes ou novas modalidades de corrida, como a corrida de trilha. Alguns corredores, após atingir os 42 km, optam por se tornarem “ultramaratonistas”. Esses atletas são altamente focados em desempenho e precisam passar por uma avaliação atlético-desportiva para participarem das provas de ultramaratona. A dedicação aos treinos é maior e o investimento em equipamentos também. É exigido mais tempo para os treinos longos, que podem chegar a 60 km no final de semana, dependendo da prova da qual ele irá participar. Essa classificação ratifica a existência de diferentes papéis que os membros assumem dentro de uma tribo de corredores. Interessante lembrar que esses papéis são dinâmicos, ou seja, o indivíduo evolui dentro do grupo e assume diferentes comportamentos à medida que a atividade vai se incorporando no seu dia a dia. 5 Conclusões Este estudo teve a finalidade de estudar o fenômeno das tribos contemporâneas e analisar como a prática da corrida de rua pode atuar como um fator que une indivíduos em torno de uma paixão em comum. Para isso, a pesquisa procurou identificar os indícios espaciais e temporais que classificam o grupo de corredores como uma tribo e os diferentes papéis adotados pelos seus membros, baseando-se nos modelos propostos por Cova e Cova (2001). A pesquisa corroborou a existência de evidências físicas e temporais que possibilitam a classificação do grupo observado como uma tribo. Esses indícios foram evidenciados através da identificação dos espaços físicos e virtuais que apoiam a interação entre os indivíduos e das ocasiões nas quais os indivíduos se reúnem: treinos diários, treinões e provas. As evidências temporais foram comprovadas através das experiências compartilhadas a partir da convivência e interação do pesquisador com os demais corredores do grupo e da sua evolução como corredor, à medida que a prática da atividade foi se incorporando na sua vida. Esse aspecto ratifica o papel dinâmico da tribo, que funciona como um organismo vivo, transformando-se de acordo com o contexto e com as mudanças que os indivíduos sofrem. O modelo de classificação dos membros da tribo também foi confirmado a partir da identificação dos diferentes papéis desempenhados pelos indivíduos: devotos, participantes, praticantes e simpatizantes. No entanto, a maior contribuição desta pesquisa é a sugestão de um modelo de classificação visualizado nas observações de campo. Este modelo se baseia nos quilômetros que o corredor percorre, definindo seu status no grupo. Esse modelo de classificação pode auxiliar a assessoria no processo de segmentação dos seus alunos, ajudando na compreensão mais detalhada da necessidade do corredor, de acordo com o nível no qual ele esteja incluído. Esse entendimento mais profundo das mudanças pelas quais o corredor passa e como isso está associado às suas expectativas, podem ser decisivos no planejamento de estratégias futuras da empresa. Analisando de forma macro, esse modelo de segmentação pode ser adotado pelas marcas que desenvolvem produtos para corredores, procurando soluções que auxiliem o praticante na

 

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melhoria do seu desempenho. Essa classificação também pode ajudar as empresas na conquista de novos consumidores, pois considerando que o corredor iniciante desconhece alguns produtos e marcas específicos, ele pode ser mais facilmente convencido a consumir determinado item antes que corrida se incorpore no seu dia a dia. Assim, pesquisas futuras podem ter como objetivo conferir se o modelo de classificação dos membros da tribo proposto nesse estudo pode ser verificado em outros grupos de corredores. Também pode ser investigado como as empresas desse setor segmentam o mercado, e se esse modelo é possível de ser aplicado na segmentação do mercado voltado para a corrida. Por fim, sugere-se a aplicação dos parâmetros desse estudo em tribos contemporâneas de consumo diversas, sejam elas unidas pela prática de uma atividade, pela paixão por uma marca ou produto, ou por unirem pessoas que defendam uma mesma ideia. Há um vasto campo inexplorado que pode ajudar os pesquisadores a entenderem melhor o fenômeno social das tribos e suas implicações para o mercado. Referências ARNOULD, E. J.; PRICE, L. L. River Magic: extraordinary experience and the extended service encounter. Journal of Consumer Research, v. 20, p. 24-45, jun./1993. ARNOULD, E. J.; WALLENDORF, M. Market-oriented ethnography: interpretation building and marketing strategy formulation. Journal of Marketing Research, v. 31, p. 484-504, nov./1994. AUBERT-GAMET, V.; COVA, B. Servicescapes: from modern non-places to postmodern common places. Journal of Business Research, v. 44, p. 37-45, 1999. BELK, R. W.; COSTA, J. A. The mountain man myth: a contemporary consuming fantasy. Journal of Consumer Research, v. 25, p. 218-240, 1998. COLLIS, J.; HUSSEY, R. Pesquisa em administração. Um guia prático para alunos de graduação e pós-graduação. 2. ed. Porto Alegre: Bookman, 2005. COOPER, S.; MCLOUGHLIN, D.; KEATING, A. Individual and neo-tribal consumption: tales from the Simpsons of Springfield. Journal of Consumer Behaviour, v. 4, n. 5, p. 330-344, 2005. CORPORE. Estatísticas. Corpore, 2012. Disponível em: <http://www.corpore.org.br/cor_corpore_estatisticas.asp>. Acesso em: 10 ago. 2012. COVA, B. Community and consumption: towards a definition of the “linking value” of products or services. European Journal of Marketing, v. 31, n. 3/4, p. 297-316, 1997. COVA, B.; COVA, V. Tribal aspects of postmodern consumption research: the case of French in-line roller skaters. Journal of Consumer Behaviour, v. 1, n. 1, p. 67-76, 2001. ______. Tribal marketing: the tribalisation of society and its impact on the conduct of marketing. European Journal of Marketing, v. 36, n. 5/6, p. 595-620, 2002. COVA, B.; WHITE, T. Counter-brand and alter-brand communities: the impact of Web 2.0 on tribal marketing approaches. Journal of Marketing Management, v. 26, n. 3/4, p. 256-270, 2010. CRESWELL, J. W. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2010. DALLARI, M. M. Corrida de rua: um fenômeno sociocultural contemporâneo. São Paulo: USP, 2009. ELLIOT, R.; JANKEL-ELLIOT, N. Using ethnography in strategic consumer research. Qualitative market research: an International Journal, v. 6, n. 4, p. 215-223, 2003. FREHSE, F. As realidades que as “tribos urbanas” criam. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 21, n. 60, p. 171-174, fev./2006.

 

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