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7/29/2019 O Velho Paquetá
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Não havia nada na geladeira, as roupas que vendi só me renderam um pão e
um pouco de café. Fui ao mercado vestindo apenas um pijama, pois não tinha
outra roupa. A atendente parecia não perceber o que eu vestia, me olhou apenas
com um sorriso discreto, parecia não estar interessada em mim. Depois de procurar entre as caixas de leite disponíveis, escolhi a mais barata.
Chegando em casa, ligo a televisão, está sendo transmitida a tradicional
corrida da cidade, o começo dela, para dizer a verdade. Um senhor de 70 anos se
prepara para correr enquanto é entrevistado, o velho é ex-ator e ex-boxeador,
segundo ele. Lembrei de já tê-lo visto correndo pelas ruas do bairro (será ele
mesmo?), quando disse a cidade onde morava, não tive dúvidas.
Pensei em entrevistá-lo para ganhar alguma grana no jornal onde
trabalhava, fui pesquisar sobre sua vida. Lendo os jornais e revistas na biblioteca,
descobri que o velho havia realmente sido ator e que protagonizou, em outros
tempos, um filme de velho-oeste. A intenção era se parecer com as obras de
Sérgio Leone, mas acabou por lembrar mais os filmes de Mazzaropi.
O velho trabalhou durante toda a infância e juventude em plantações na
zona rural, até o dia em que adquiriu uma pequena propriedade e se casou.
Quando seus ganhos como agricultor se tornaram insuficientes, se arriscou a lutar
boxe, ganhando inclusive alguns campeonatos locais, época em que foi apelidado
de “Paquetá”. Decidiu se aposentar das lutas quando lhe ofereceram um papel no
tal filme.
A conversa ao telefone se iniciou com uma mulher dizendo, num tom
áspero e desagradável, que seu marido não se encontrava no momento, pedi para
deixar o recado. No dia seguinte, pela manhã, o próprio velho me ligou, num tom
sereno e educado, perguntando sobre o que se tratava a ligação. Aceitou de
imediato minha entrevista, com a condição de ser feita na minha própria casa.
Lembrei da minha pequena sala do apartamento e de seu péssimo estado,
não havia condições de receber uma visita, o chão estava todo esburacado e o sofá
caindo aos pedaços. Resolvi então cobri-lo com papelão e sacolas de
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supermercado. Para realizar a entrevista, pedi emprestado uma roupa de um
amigo, companheiro do jornal onde trabalhava.
No dia seguinte, pela manhã, a campainha tocou, estavam à porta o velho e
sua esposa, que me despertou imediata antipatia. Convidei-os a sentar e ofereciuma bebida, mesmo sabendo que não tinha nada a oferecer, por sorte recusaram.
Comecei com algumas perguntas, que eram sempre respondidas de forma
agradável e descontraída pelo velho. Quando a mulher me pediu para ir ao
banheiro, lembrei da imundice em que se encontrava, indiquei o caminho assim
mesmo.
Enquanto a mulher usava o toillet, o velho relutou um pouco quando
perguntei sobre o filme, disse que não poderia revelar todos os detalhes. Fiquei
curioso com essa observação, perguntei a razão e ele me respondeu que, apesar de
não mencionar isso a nenhum outro jornalista, me falaria por ter despertado nele
certa afinidade e simpatia, agradeci sua confiança.
“Jamais usei nenhum tipo de droga” - disse ele – mas, a pedido dos
próprios cineastas do filme, se viu obrigado a vender pequenas quantidades
dessas substâncias em sua antiga barraca na feira, para que este pudesse ser
custeado e produzido. A razão para agir dessa forma foi que sua família estava
passando por dificuldades. “Não tive outra escolha” – disse o velho.
Quase encerrando a nossa conversa, quando a sua mulher ainda saía do
banheiro, o velho me olhou e disse que eu saberia exatamente o que eu poderia
divulgar na entrevista, acenei que sim. Quase aos berros, a velha chega até minha
sala dizendo que o banheiro estava pior do que de uma rodoviária, ri
discretamente.
Antes de saírem, o velho ainda me disse que oferecia melhores condições
para sua família hoje em dia, e que sua filha estava agora trabalhando numa
mercearia. Perguntei o nome da loja e soube que era o lugar onde havia feito
minhas minhas compras anteriormente (vestindo apenas um pijama). Resolvi não
mencionar esse detalhe, mas descobri quem trabalhava lá, se chamava Megan.
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Minha entrevista com Paquetá foi divulgada no dia seguinte, imaginei
como seria a vida do velho se transformada em um filme, tão surpreendente era a
sua história. Isso me fez lembrar de um antigo sonho que tinha na época da
faculdade, queria me tornar um cineasta, mas abandonei a ideia quando comeceia trabalhar com o jornalismo, cujos ganhos mal garantem a minha sobrevivência.
A época do inverno estava se aproximando, minha família me convidou a
viajar para um temporada num hotel fora da cidade, aceitei de imediato o convite.
A pousada em que ficamos era realmente muito bela e confortável e, por decisão
do dono, tinha até mesmo um seguro contra incêndios, que indenizava o
proprietário e ressarcia os hóspedes dos apartamentos do hotel.
O valor que seria pago ultrapassaria em muito o necessário para realizar um
filme. Pensei na idéia de fraudar um incêndio e lembrei da história do velho
Paquetá, que ajudou sua família vendendo entorpecentes numa determinada época
de sua vida – mas são situações muito diferentes - concluí. Escrevi em meu diário
como realizaria tal feito, apesar de não ter coragem de realizar o sinistro.
No dia seguinte resolvemos andar pelo parque e conhecer toda a cidade. Ao
término do passeio pegamos o caminho de volta, foi quando percebemos ao longe
uma movimentação incomum próximo ao hotel. Quando chegamos ao local,
descemos rapidamente do carro, os bombeiros estavam tentando apagar as últimas
chamas sobre a pousada. Fui questionado sobre a presença de um diário entre os
escombros, quando disse a quem pertencia, fui preso pela polícia.
A fiança foi fixada num valor que minha família não estava disposta a
pagar, tamanha era a desconfiança. Liguei para o velho Paquetá, que ouviu minha
versão sobre o caso, ficou sensibilizado pela minha história e feliz com minha
ideia do filme. Perguntou o valor da fiança e estabeleceu como condição de
ressarcimento um trabalho de seis meses em sua antiga barraca.
Desacreditado de minha família, indiciado por um crime que não cometi,
sem trabalho e devendo aluguéis do meu apartamento, não tive outra escolha
senão aceitar o emprego do velho. Após os seis meses de trabalho, tendo pago
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minha dívida, tentei me aproximar de Megan, que sempre me olhava com medo e
desconfiança.
Fui até a mercearia contar toda a minha história, sobre o engano de minha
prisão, a distância de minha família e a intenção de realizar um filme sobre o seu pai, ela não se impressionou e disse que conversaria com Paquetá antes de ter
uma opinião. Fui visitá-la no dia seguinte, ela estava mais serena e amável,
dizendo que acreditava em mim e se lembrava da primeira vez em que estive lá.
Depois de ser inocentado do crime, voltei a trabalhar como jornalista e
retomei o contato com minha família. Tentei me aproximar um pouco mais de
Megan e chamá-la para sair. Aceitou o meu convite e depois de alguns encontros,
iniciamos um relacionamento. Depois de alguns anos de namoro, consideramos a
ideia de nos casar, notícia que foi recebida com alegria pelo velho, que só relutou
quando dissemos que iríamos morar com a tia de Megan, uma mulher solitária.
Não dei muita importância ao fato, pois a expectativa do casamento me
alegrava tanto que cheguei a esquecer da ideia de filmar a vida de Paquetá.
Depois de alguns meses juntando nossas economias, Megan e eu resolvemos
reviver esse antigo projeto, faltava apenas o aval do velho, que se viu feliz com a
ideia. Decidimos então realizar a película, e após um ano de filmagens, ele estava
finalmente pronto.
O filme fez relativo sucesso nos cinemas da cidade, certamente pela sua
tímida divulgação, ultrapassou em pouco o valor do orçamento gasto. Megan me
falou sobre a influência de sua tia, que trabalhou com a imprensa em outras
cidades. Os motivos da relutância do velho logo se mostraram evidentes quando
esta se ofereceu para ajudar em troca de favores sexuais.
O meu relacionamento com Megan já não andava bem, e depois de
algumas brigas e discussões, começamos a nos questionar sobre a decisão de
realizar o filme. A sua renda no mercado e meus ganhos como jornalista eram
insuficientes para manter a nossa casa. Lembrei mais vez dos sacrifícios que
Paquetá fez pela sua família, decidi aceitar aquela oferta.
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Fui para o trabalho no dia seguinte pensando em realizar o acordo o quanto
antes. Depois de me despedir de Megan, fiquei à espreita para aguardar sua saída,
buscando uma oportunidade para realizar minha sórdida tarefa. Quando o trato
com sua tia já havia sido feito, fui até a cozinha buscar um copo d’água quando ouvi um estrondo do quarto. Quando cheguei, havia sangue estava escorrendo
pelo travesseiro.
“Como você foi capaz” – me perguntou – antes mesmo de responder ela já
estava gritando “desgraçado” de forma descontrolada. A arma que estava em suas
mãos tremia a todo instante, Megan não sabia como segura-la. Tentei acalmá-la,
mas o seu olhar de ódio só aumentava o meu pavor. A vizinhança logo se agitou,
a polícia não demorou a chegar ao local.
Suspeito novamente de um crime contratei os serviços de um bom
advogado, que quase exauriu minhas finanças. Praticamente na miséria e
separado de Megan, me senti completamente desiludo com a vida, foi quando
decidi viver pelas ruas como um andarilho. Para sobreviver, realizava pequenos
furtos com a ajuda de pivetes do meu bairro. Dormia em locais sujos e
abandonados, quase sempre fugindo da polícia e dos olhares da sociedade.
O dia em que resolvemos saquear a antiga feira da cidade foi decisivo em
minha vida. Os garotos estavam correndo pelas barracas, com sacolas cheias de
alimentos, quando a polícia apareceu mais uma vez. A prisão me parecia um
destino inevitável, o desespero já tomava conta de mim quando uma voz me falou
– “se esconda aqui” – ele disse. Paquetá havia me salvado mais uma vez.